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Investigações em Ensino de Ciências – V5(2), pp. 121-154, 2000 121 DO RELATIVISMO NO ENSINO DE FÍSICA AO OBJETIVISMO NA FÍSICA (From relativism in physics education to objectivism in physics) Carlos Eduardo Laburú [[email protected]] Depto. de Física, Universidade Estadual de Londrina CEP 86051-970, Cx. P. 6001, Londrina, PR Marcos Rodrigues da Silva [[email protected]] Depto. de Filosofia, Universidade Estadual de Londrina CEP 86051-970, Cx.P.6001, Londrina, PR “... ao dizermos que não nos interessamos pela filosofia, o que estamos provavelmente a fazer é substituir por uma filosofia explícita, uma filosofia implícita, por isso, imatura e incontrolada.” Mario Bunge ( 1973, p. 11) Resumo Analisaremos, neste trabalho, o contraste entre o construtivismo no ensino de física e o objetivismo metodológico da física. Faremos ver que muitas das perspectivas pedagógicas, epistemológicas e ontológicas construtivistas encontram-se no centro das críticas de parte da literatura em educação científica. Mostraremos também que as críticas, particularmente, epistemológicas e ontológicas são sustentadas por eminentes físicos. Nossa preocupação principal, concentrar-se-á nos aspectos construtivistas que transferem pressuposições de caráter epistêmico e ontológico do processo de ensino-aprendizagem, de estatuto relativista, para a compreensão da própria natureza do desenvolvimento do conhecimento científico. Por final, tentaremos ver em que medida não é necessário o comprometimento com uma epistemologia realista a fim de tornar a postura objetivista na física sustentável. Palavras-chave: construtivismo; relativismo; objetivismo; ensino de Física Abstract In this paper, we shall analyse the contrast between constructivism in the physics teaching and methodological objetictivism about physics. We will show that many pedagogical, epistemological and ontological constructivist perspectives are at the core of criticism of science education literature. We will also show, particularly, that the epistemological and ontological criticism is supported by eminent physicists. Our main concern will concentrate on relativist statute aspect of constructivism, that transfer epistemic and ontological presuppositions of learning- teaching process, to an understanding of the nature of development of the scientific knowledge. Finally, we will try to see in what manner it is not necessary to compromise with a realistic epistemology in order to make the objectivist posture defensible in physics. Key-words: constructivism; relativism; objectivism; physics education. Introdução As pesquisas a respeito do conhecimento e das crenças dos professores rapidamente têm crescido nas últimas décadas e agora constituem-se em áreas substanciais de investigação, tratando dos diversos fatores influentes no processo de ensinar (Calderhead, 1996, Fang, 1996). Em particular, pesquisadores da área de ensino de ciências, igualmente, vêm, há um certo tempo,

Do Relativismo No Ensino de Física Ou Objetivismo Na Física

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Do relativismo ao objetivismo

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  • Investigaes em Ensino de Cincias V5(2), pp. 121-154, 2000

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    DO RELATIVISMO NO ENSINO DE FSICA AO OBJETIVISMO NA FSICA

    (From relativism in physics education to objectivism in physics)

    Carlos Eduardo Labur [[email protected]] Depto. de Fsica, Universidade Estadual de Londrina

    CEP 86051-970, Cx. P. 6001, Londrina, PR Marcos Rodrigues da Silva [[email protected]]

    Depto. de Filosofia, Universidade Estadual de Londrina CEP 86051-970, Cx.P.6001, Londrina, PR

    ... ao dizermos que no nos interessamos pela filosofia, o que estamos provavelmente a fazer substituir por uma filosofia explcita, uma filosofia implcita, por isso, imatura e incontrolada.

    Mario Bunge ( 1973, p. 11)

    Resumo

    Analisaremos, neste trabalho, o contraste entre o construtivismo no ensino de fsica e o objetivismo metodolgico da fsica. Faremos ver que muitas das perspectivas pedaggicas, epistemolgicas e ontolgicas construtivistas encontram-se no centro das crticas de parte da literatura em educao cientfica. Mostraremos tambm que as crticas, particularmente, epistemolgicas e ontolgicas so sus tentadas por eminentes fsicos. Nossa preocupao principal, concentrar-se- nos aspectos construtivistas que transferem pressuposies de carter epistmico e ontolgico do processo de ensino-aprendizagem, de estatuto relativista, para a compreenso da prpria natureza do desenvolvimento do conhecimento cientfico. Por final, tentaremos ver em que medida no necessrio o comprometimento com uma epistemologia realista a fim de tornar a postura objetivista na fsica sustentvel.

    Palavras-chave: construtivismo; relativismo; objetivismo; ensino de Fsica

    Abstract

    In this paper, we shall analyse the contrast between constructivism in the physics teaching and methodological objetictivism about physics. We will show that many pedagogical, epistemological and ontological constructivist perspectives are at the core of criticism of science education literature. We will also show, particularly, that the epistemological and ontological criticism is supported by eminent physicists. Our main concern will concentrate on relativist statute aspect of constructivism, that transfer epistemic and ontological presuppositions of learning-teaching process, to an understanding of the nature of development of the scientific knowledge. Finally, we will try to see in what manner it is not necessary to compromise with a realistic epistemology in order to make the objectivist posture defensible in physics. Key-words: constructivism; relativism; objectivism; physics education.

    Introduo

    As pesquisas a respeito do conhecimento e das crenas dos professores rapidamente tm crescido nas ltimas dcadas e agora constituem-se em reas substanciais de investigao, tratando dos diversos fatores influentes no processo de ensinar (Calderhead, 1996, Fang, 1996). Em particular, pesquisadores da rea de ensino de cincias, igualmente, vm, h um certo tempo,

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    inquietando-se a respeito das concepes de professores e alunos relativas funo social da cincia (Solomon, 1991), ao esteretipo que os aprendizes fazem do cientista (Williams, 1990) ou, ainda, da natureza e do papel da cincia e o seu impacto no ensino de cincias (Songer & Linn, 1991; Abell & Smith, 1994; McComas et al., 1998; Nott & Wellington, 1998; Robinson, 1998; Newton & Newton, 1998; Smith & Schrmann, 1999; Irwin, 2000). No que toca especificamente ao professor que ministra uma determinada disciplina cientfica, faz parte das variadas preocupaes subjacentes a estas pesquisas, aquela que procura levar em considerao a necessidade de garantir, como parte do horizonte cultural do professor de cincias, respostas s questes do tipo: qual a origem do conhecimento cientfico, quais so os seus mecanismos de transmisso, procedimentos de validao e mtodos que o respaldam, quais as diferenas e semelhanas entre a disciplina cientfica especfica ensinada pelo professor e as demais, ou, entre estas e as de outras reas de conhecimento. Estas pesquisas, consequentemente, vem a importncia deste profissional dominar com competncia, no s o contedo que lhe cabe ensinar, juntamente com os mtodos didticos associados sua disciplina, mas, tambm, entendem como sendo necessrio para a qualidade profissional do mesmo, que o professor tenha conscincia e posio formada a respeito das questes aqui mencionadas, entre outras, pertinentes a sua disciplina. E nesse sentido, as pesquisas anteriores contribuem de maneira significativa para uma tomada de conscincia e uma reflexo por parte do professor sobre esses temas.

    Dentro dessa linha de raciocnio, temos em conta que o professor, ao inclinar-se

    inconscientemente por uma teoria especfica de ensino-aprendizagem, muitas vezes no percebe que a teoria por ele utilizada tem como pano de fundo um conjunto de pressupostos, entre os quais, por exemplo, uma viso da natureza do conhecimento humano, de como esse conhecimento adquirido, aperfeioado e aprendido por cada gerao. Particularmente, em relao educao cientfica, interesse principal da nossa reflexo, acreditamos que estas questes deveriam fazer parte das preocupaes dos professores de cincias, pois toda a prtica docente reflete uma postura epistmica da forma como o conhecimento apreendido. Mas, infelizmente, o que de fato se constata, para a grande maioria dos professores, que as suas aes pedaggicas e as suas relaes com o conhecimento da disciplina por eles ministrados, so, fundamentalmente, baseadas em decises e aes irrefletidas, imaturas, quando no preconcebidas intuitivamente1. Talvez, uma razo bvia para a existncia deste elevado perfil, encontre-se nos cursos de formao de professores, restritos aos contedos da disciplina de formao, s teorias didtico-pedaggicas correspondentes, estando raramente preocupados e, por isso, dedicando uma carga horria insuficiente, com a meta-anlise filosfica da prpria disciplina de formao, assim como com o processo epistmico subjacente prtica pedaggica adotada.

    Como resultado destas colocaes, este trabalho pretende localizar, sinteticamente, as

    controvrsias filosficas e pedaggicas construtivistas que esto no palco da discusso atual e que aliceram tanto a viso da cincia quanto o ensino de suas disciplinas. Iniciando pela oposio ao empirismo-positivismo, feita pelo relativismo construtivista, faremos ver, a partir de ento, as crticas a esse relativismo, principalmente quando certos construtivistas transferem pressuposies epistmicas e ontolgicas do processo de ensino-aprendizagem de estatuto relativista para a compreenso da prpria natureza do desenvolvimento do conhecimento cientfico. Para isso, numa primeira instncia, procuraremos deixar visvel as crticas s pretenses filosficas e pedaggicas construtivistas de autores importantes que pensam a educao cientfica. Num segundo momento, respaldando as posies destes autores, apresentaremos alguns pensamentos de singulares, mas, eminentes cientistas, alguns deles fsicos-nobeis - logo, personalidades que tiveram destaque real e, sem dvida, efetivo no avano do conhecimento da humanidade, em particular, da fsica, que ser

    1 Por exemplo, em Arruda e Labur (1998), observa-se que o laboratrio didtico de fsica encarado como uma atividade basicamente de fundo empirista, onde se pode freqentemente observar entre os professores afirmaes categricas do tipo: a atividade no laboratrio de fsica serve para o aluno, por meio da observao, inferir as leis e os conceitos da fsica de uma maneira muito mais efetiva do que uma aula de teoria.

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    a cincia de interesse destas discusses -, cuja viso sobre a cincia de sua especialidade vai bem de encontro ao relativismo construtivista.

    Ao passar por esta leitura, espera-se que o professor atuante, que talvez no tenha ainda se

    defrontado com as questes aqui colocadas, inicie um processo reflexivo sobre elas e reavalie as suas possveis crenas. Igualmente, este artigo objetiva, em certa medida, contrapor-se constante propaganda imprimida pelo perfil relativista do movimento construtivista, que vem influenciando a atual gerao de professores, transcendendo os limites a que se destinou originalmente, ou seja, o de ser uma frente pedaggica, com interessantes implicaes didticas localizadas, contrria aos empiristas e comportamentalistas do didatismo tradicional ou ingnuo.

    Bases Epistemolgicas e Ontolgicas do Construtivismo

    Nesta seo indicaremos, sinteticamente, as principais bases filosficas do construtivismo,

    que muito vm influenciando o ensino de cincias. Durante a exposio, no nos preocuparemos em fazer distino entre as diversas vertentes construtivistas, entre elas, principalmente, a radical e a social. A primeira, melhor identificada com as idias de Glasersfeld (Nola, 1997; Geelan, 1997; Matthews, 1994), cuja inspirao tem marca piagetiana; a segunda, toma por base as idias vygotskianas. Tambm lembramos que na literatura presencia-se outro eixo construtivista, denominado sociolgico, que ignora os mecanismos psicolgicos, fundamento dos primeiros, e que se centra nas circunstncias sociais extra individuais, que determinam as crenas dos indivduo. Formas extremas deste construtivismo alegam que a cincia no nada mais do que uma construo intelectual humana, comparvel construo literria ou artstica, deixando de apresentar um carter de verdade (Matthews 1994, p. 138). O conhecimento cientfico visto como um tipo de conversao e uma prtica social, sem preocupao de qualquer relao com a natureza (Rorty 1979, p. 171). No decorrer da exposio veremos que estas proposies, num certo sentido geral, sintetizam a pregao construtivista.

    Para iniciar a discusso, possvel estabelecer que o construtivismo preconiza uma tentativa

    de afastamento da tradio filosfica de senso comum de leigos e cientistas que propem, primeiramente, que o conhecimento deve ser uma representao da realidade. Por realidade, entende-se um mundo independente a ser ou j vivenciado, que postula a existncia de objetos observveis ou no, como entidades autnomas em relao s atividades mentais. A ttulo de exemplificao, uma afirmao realista seria: h coisas l fora ainda que ns no estejamos percebendo ou teorizando algo sobre elas (Nola 1997, p.70). Os construtivistas, contrariamente, defendem uma posio oposta a essa. Para eles, o reino natural no preexistente, mas constitudo pelas nossas indagaes; em vez de ser dirigido por um mtodo cientfico racional, estas indagaes tomam forma em virtude dos vrios fatores e processos individuais ou sociais. Segue disto, que o mundo natural preexis tente tem um pequeno ou nenhum papel na construo do conhecimento cientfico (Phillips 1997, p.89). No entender de Nola (1997, p.71), Glasersfeld, no entanto, no prope a afirmativa ontolgica de que no h realidade que transcenda a experincia. Ele adota, sim, a tese cptica epistemolgica de que ns no podemos conhecer qualquer realidade alm da experincia e que nunca poderemos saber se a realidade apresenta as entidades postuladas pelas nossas teorias - tudo o que podemos conhecer o que a natureza nos entrega. Isto leva a um afastamento do conceito tradicional rgido de verdade, ao acreditar que uma idia, teoria ou qualquer construo conceitual uma representao acurada de algo que supera o campo vivencial (Glasersfeld, apud Nola 1997, p.70). O que existe e o que podemos dizer, que a verdade relativa s estruturas conceituais que cada um de ns constri, tendo cada pessoa acesso apenas s suas prprias experincias. Tais teses levam o construtivismo alm do empirismo para o relativismo (Nola 1997, p. 73).

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    Na prxima seo, trabalharemos mais estas idias, na medida em que as diversas crticas

    que esto sendo feitas a essas e a outras colocaes filosficas, e suas conseqncias pedaggicas, forem apresentadas. Antes, porm, para efeito de comparao, comecemos com as proposies sustentadas pela aprendizagem por descoberta ou investigao, adotadas pela comunidade de educao cientfica nos anos 60, qual o construtivismo procura se opor. Como poderemos ver, enquanto o construtivismo afasta-se definitivamente dos compromissos epistemolgicos e ontolgicos do didatismo tradicional, tal no foi o caso para a aprendizagem por descoberta, onde, segundo Matthews (1994, p.147), fundamentos arriscados so revividos, tais como, apreenso do conhecimento isoladamente e atravs da observao direta. As proposies desta ltima se resumem em (ibid.):

    ? A criana isoladamente pode descobrir e reivindicar verdades cientficas. ? A linguagem e os conceitos para formular as hipteses podem ser adquiridos

    independentemente do professor, ou mais geralmente, independentemente da interao social e participao de uma linguagem comunitria.

    ? A interpretao e o teste de hipteses so diretos, sendo suficientemente simples, mesmo para crianas da escola elementar.

    ? Os conceitos cientficos so formados pela abstrao, a partir de particularidades. ? O mtodo cientfico indutivo.

    As teses da aprendizagem por descoberta se aproximam, em muitos pontos, das teses

    construtivistas sustentadas por Glasersfeld. No entanto, estas ltimas tm a sua origem na psicolingustica, psicologia cognitiva e nos trabalhos de Piaget, e do sustentao, sob o ponto de vista ontolgico e epistemolgico para a maioria das afirmaes construtivistas que se encontram na literatura. Matthews (1994) resume essas teses em dez proposies:

    1. O conhecimento no se refere a um observador independente do mundo. 2. O conhecimento no uma representao do mundo; pensar que as teorias correspondam a ele

    um equvoco. 3. O conhecimento criado pelos indivduos, num contexto histrico e cultural. 4. Conhecer um processo de adaptao que organiza o nosso mundo da experincia. No h a

    descoberta de um mundo independente e preexistente fora da mente. Portanto, no h uma realidade ontolgica.

    5. O conhecimento ativamente construdo por um sujeito que pensa e no passivamente recebido do ambiente.

    6. O conhecimento constitudo pela estrutura conceitual dos indivduos. 7. As estruturas conceituais constituem conhecimento quando os indivduos as consideram como

    viveis em relao s suas experincias: o construtivismo uma forma de pragmatismo. 8. No h uma estrutura conceitual epistmica preferencial. 9. O conhecimento o ordenamento apropriado da realidade vivencial. 10. No h uma realidade extravivencial racionalmente acessvel.

    Ademais, o construtivismo adota muitas teses ps-positivistas da filosofia da cincia como

    se pode ver (Garrison, apud Matthews 1994, p.140):

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    11. As proposies observacionais so sempre dependentes de um sistema terico particular. H uma diferena ent re estar vendo e estar vendo como. Esta ltima - uma proposio observacional - dependente da linguagem e da teoria.

    12. Numa teoria, a distino entre termos observacionais e tericos somente pode ser feita sob bases pragmticas e no sob bases epistmicas.

    13. As observaes, por si prprias, so dependentes ou determinadas teoricamente; o que as pessoas notam influenciado pelo que elas querem ver ou pelo que elas consideram como relevante para uma investigao.

    14. As teorias so sempre sub-determinadas pela evidncia emprica, no importando quanta evidncia tem-se acumulado. Para qualquer conjunto de dados, inmeras teorias que impliquem naqueles dados podem ser construdas; para todo conjunto de pontos experimentais sobre um grfico, qualquer nmero de curvas pode ser desenhado sobre eles.

    15. As teorias so imunes contra prova ou falsificao emprica porque sempre possvel fazer ajustes para acomodar a evidncia discordante; no h experimentos cruciais na cincia.

    No que diz respeito s idias de Glasersfeld, especificamente em relao aquisio da linguagem, h o reconhecimento desse autor de que a linguagem um instrumento para a formulao do conhecimento. Este ltimo, formado por conceitos, que por sua vez pressupem palavras. Estas transmitem o significado, que subentende uma comunidade que as usa (Matthews 1994, p. 153). A aquisio da linguagem fundamentalmente um ato privado, onde os conceitos e os significados so basicamente adquiridos por iniciativa individual. Neste sentido, mais trs proposies podem ser retiradas do trabalho de Glasersfeld, que se aplicam linguagem (ibid., p.154):

    16. A construo de conceitos e significados pode ser acelerada pela interao social, mas ela um processo essencialmente individual.

    17. Os elementos da linguagem (idias, conceitos, palavras e significados) no podem ser transferidos de um usurio a outro.

    18. Mesmo com interao social, os conceitos, idias e significados precisam ser subtrados da experincia individual.

    Com as principais teses do construtivismo explicitadas, passemos a uma anlise crtica das

    mesmas.

    Crticas Epistemologia e Ontologia Construtivista

    Partindo dos enunciados da seo anterior resgatemos, ento, algumas crticas que esto sendo colocadas s posies construtivistas. As crticas passam no s pelas questes gerais epistemolgicas e ontolgicas levantadas, mas, igualmente, voltam-se para as conseqentes implicaes pedaggicas mais especficas2, as quais optamos tratar com mais detalhes na prxima seo.

    2 Neste trabalho, optamos por no mencionar crticas igualmente relevantes que seguem uma linha de argumentao centrada nas condies sociais que influenciam o construtivismo. Uma dessas crticas, por exemplo, localiza no construtivismo, atravs da volta do seu atrelamento ao domnio da psicologia da educao, posies que constituem uma regresso conservadora, envolvidas com um processo de vigilncia e controle do homem, para melhor produzir subjetividades e identidades (Tadeu da Silva 1996, p.216). Nesse sentido, o construtivismo, atravs do predomnio da

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    Para comear, tomemos por base os problemas epistemolgicos e ontolgicos. dito que a

    alternativa construtivista falha epistemologicamente na medida em que representa, de maneira equivocada, a cincia e a sua prtica. O construtivismo, segundo Osborne (1996):

    ? tem-se concentrado muito intensivamente na recuperao das crenas do aprendiz e na construo da realidade. Quando tais traos encontram-se em foco, outros so desconsiderados, e tal concentrao naquelas questes conduz a srias falhas epistemolgicas nas concepes construtivistas sobre a cincia, ou seja, a forma como o conhecimento feito. Alm do mais, na medida em que se d prioridade ao pessoal ou ao social sobre o mundo natural, falha-se em distinguir entre entidades tericas e reais. O resultado uma epistemologia instrumentalista e uma falsa interpretao da cincia, atravs de uma demasiada nfase na construo de conceitos, tanto pessoalmente como atravs do discurso (...) Noes de verdade tm simplesmente sido trocadas pelo conceito de viabilidade e a falha em examinar como uma idia poderia ser considerada mais vivel do que uma outra o centro da negao da objetividade e da racionalidade da cincia. Ainda mais, a pedagogia construtivista freqentemente faz conexes falaciosas entre a maneira em que novos conhecimentos cientficos so criados e a maneira como eles so aprendidos(p.54).

    A posio de Osborne talvez possa ser melhor entendida quando contrastamos as posies

    filosficas do construtivismo com a epistemologia que orienta a pedagogia tradicional. Esta, em sntese, baseada na viso do conhecimento como representao de sucesso da realidade, ou seja, pode-se fazer afirmaes sobre o mundo, pois existem proposies verdadeiras sobre o mesmo, quando h razes articuladas para nelas se acreditar. Dessa forma, o conhecimento distinto da opinio e a racionalidade da cincia a exigncia fundamental para que a razo transite do caminho da evidncia para o do conhecimento. O construtivismo, por outro lado, uma tentativa de afastamento desta viso, resultando no abandono de qualquer papel para a verdade, para a observao, para a realidade de um mundo independente que d respostas s nossas crenas (Nola 1997, p.74). Primeiramente, conforme a proposio sete (7), substitui o conceito de verdade pelo de vivel, conceito vago, capaz de ser interpretado por adaptado (ibid., p.75) (4), reconhecendo o conhecimento como resultado de uma atividade construtiva, que no pode ser transferida para um receptor passivo (5). Logo, a viabilidade entendida como um conhecimento que se ajusta, se adapta experincia, e que se mantm coerente com outros entendimentos pessoais ou de um conjunto social mais extenso (3). A busca pela verdade algo sem sentido, sendo, quando muito, uma questo de f. A noo de viabilidade construtivista uma forma de pragmatismo (12)3, sendo verdadeiro tudo aquilo que funciona, ou melhor, temos uma explicao vivel quando ela d conta das nossas experincias (Wheatley 1991, p.10) (7). Assim, o conhecimento existe somente na mente dos seres cognitivos onde ele construdo, e no pode ser achado, por exemplo, em livros, textos, ou outros meios tradicionais humanos, que, simplesmente, representam smbolos, com uma possibilidade enorme de interpretaes (Osborne 1996, p.56-57). Parte-se tambm da concepo de que o reino natural no preexistente mas, antes, construdo pelas nossas indagaes, e em vez destas serem dirigidas por um mtodo cientfico racional elas tomam forma prpria, em virtude dos vrios fatores e processos sociais. Segue disto, que o mundo natural preexistente tem um pequeno ou nenhum papel na construo do conhecimento cientfico (Collins, apud Phillips 1997, p.89). Este, no fundo, visto como um tipo de conversao e uma prtica social, em vez de uma tentativa de espelhar a natureza.

    Psicologia da Educao, representaria um esforo de despolitizao da educao, tornando-a mais eficaz do ponto de vista de uma conformao da fora de trabalho ao sis tema de produo e de controle da populao. 3 Conforme tambm Matthews (1994, p.149).

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    Osborne, contundentemente, critica essas posies epistemolgicas, na medida em que elas criam uma dicotomia entre falso e verdadeiro, que inexistente, pois todo conhecimento tratado como subjetivo, provisrio e incerto. Afirma que a interpretao construtivista posta, no h possibilidade de um caminho intermedirio nessa forma de compreender, isto , um caminho em que o conhecimento iria assintoticamente aproximando-se de uma melhoria e de um crescimento. Nesse sentido, o construtivismo radical essencialmente instrumentalista, uma forma de pragmatismo, e relativista (8)4. Instrumentalista, por negar que as teorias cientficas tenham valor de verdade e que elas expliquem uma realidade subjacente aos dados experimentais; as teorias cientficas seriam meros esquemas lingsticos ou fices, que permitiriam fazer previses sobre as observaes, organizando-as de maneira econmica (13). Relativista, por afirmar que a verdade estaria vinculada ao contexto social ou psicolgico, no qual estaria inserido o sujeito. Alm disso, Osborne aponta que h necessidade de uma considerao mais completa do modo como fazemos julgamentos entre teorias e, por isso, deve haver o reconhecimento de que a nossa linguagem e as nossas idias esto vinculadas realidade. Este vnculo se d por meio de referentes que de fato existem, e que, apesar de no ser possvel verificar qual construo imaginada a correta, podemos, pelo menos, identificar qual a melhor. Fica difcil para os construtivistas explicar, por exemplo, sobre o que acontece quando as predies de uma estrutura conceitual do certas ou erradas em um nmero, s vezes, suficientemente grande de casos, tanto num caso, quanto no outro. Das suas proposies poder-se- ia simplesmente inferir, segundo Nola (1997, p.75), que a estrutura ou vivel ou invivel, respectivamente. Mas isso, possivelmente, apenas mascare uma forma de pensar baseada na confirmao ou falsificao (ibid., p.75), que nos ajuda a escolher a melhor construo. A desconsiderao desta prtica importante da cincia conduz implicitamente a uma ontologia relativista, como dissemos, em que a viabilidade igualada validade, onde qualquer teoria vivel tem o seu valor. Osborne d o seguinte exemplo para amparar os seus argumentos. As concepes de senso comum das crianas satisfazem os critrios epistemolgicos do construtivismo de viabilidade, de ajuste com a experincia; esse conhecimento pode, ainda, ser um produto da negociao social em sala de aula. Ento, sob que bases esse conhecimento de senso comum deficiente? Um outro exemplo dado por ele a favor desse argumento, que vai de encontro plausibilidade de se aceitar o conceito de viabilidade, ter que vir a reconhecer que todas as nossas doenas causadas por vrus ou pela poluio so meras construes da nossa experincia de estar doente ou saudvel (ibid,p.77).

    Alguns defensores do construtivismo, ao alegarem que a cincia um produto cultural (3),

    distinguvel pela sua forma e no pelos mtodos utilizados, chegam a negar que ela possua um conjunto de critrios racionais e consistentes para avaliar as teorias frente s evidncias, justificando os seus argumentos pelo fato de haver uma constante desconsiderao destes elementos, quando da prtica cientfica. Osborne (1996, p.60) contra argumenta dizendo que a constatao de que tais critrios no estejam sempre presentes na prtica cientfica, no significa questionar todo o edifcio da cincia. No porque existem eventuais similaridades entre a estrutura, o processo de elaborao, de explorao, de divulgao e a dinmica da formao explicativa entre mitos, dogmas religiosos, pseudocincias, etc., e a cincia, que esta se iguala s primeiras em termos epistemolgicos e, principalmente, metodolgicos. O pensamento cientfico, evidentemente, uma construo social, com normas comunitrias estabelecidas por uma comunidade cientfica. E as normas cientficas, diferentemente das normas doutrinrias, so, por essncia, potencialmente violveis por meio da crtica. As suas violaes so, contudo, dificilmente aceitveis e podem, ocasionalmente, resultar no colapso da ordem da prtica cientfica. Mas, a falta de consistncia na aplicao das regras, na prtica epistmica, no significa que os cientistas no tenham normas muito bem definidas. Logo, o construtivismo falha, fundamentalmente, no julgamento e no reconhecimento de que possvel haver escolha entre teorias (Osborne, 1996), quando no admite

    4 Conforme tambm Matthews (1994, p. 149).

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    que a comunidade cientfica se vale de regras para selecionar as melhores teorias das piores5, mostrando, dessa forma, que o conhecimento cientfico se diferencia de outras formas de conhecimento6. Falha, principalmente, em distinguir o objeto do discurso das proposies do discurso. Estas ltimas so o resultado de conhecimento anti- intuitivo, scio-culturalmente construdo simbolicamente pela comunidade de cientistas como os conceitos de tomo, evoluo gentica, velocidade instantnea, referencial, energia, etc., representando teorias e conceitos, que para os construtivistas so afirmaes com utilidade apenas para alguns propsitos7. Tal discurso construtivista no se engana, porm, quando enfatiza o trusmo de que a representao cientfica um produto da atividade criativa individual humana scio-construda (3), que est cond icionada ou respeita as contingncias temporais culturais e histricas (Matthews 1994, p.152). Porm confunde, ao mesmo tempo, o conhecimento produzido, com o conhecimento do objeto. Igualmente para Matthews (1994, p. 142), assim como para Osborne, a no distino entre objetos tericos e reais, entre atividades fsicas e intelectuais, faz com que os construtivistas abracem, de fato, a tese ontolgica idealista (4) ou uma teoria idealista da existncia dos objetos, tanto do cotidiano, quanto dos cientficos. Esta tese afirma que o mundo natural tem um pequeno papel, se que existe algum, na construo do conhecimento cientfico. Para o idealista Woolgar (apud Matthews 1994, p. 141) no h uma realidade independente das palavras, textos, sinais, etc., para apreend- la, ou seja, a realidade constituda atravs do discurso. Consequentemente, lembramos tambm que Osborne (1996, p.62), em concomitncia, critica autores que do esses tons pedaggicos ditos contrutivistas, quando procuram ilustrar a natureza discursiva do conhecimento cientfico a partir das representaes personalistas e subjetivas das crianas8. No h uma conscincia de que a atuao da linguagem e do discurso so limitadas, no pela imaginao ou pelas condies culturais, mas pela prpria evidncia que os cientistas vo juntando, ou como sintetiza esse autor: podemos pensar no que quisermos, mas no podemos fazer o que quisermos, a natureza sempre limita o nosso discurso9. Reforando, na viso construtivista h um abandono da viso realista, na medida em que se tem um entendimento de que o mundo faz a cincia e no feito por ela. Em ltima instncia, essa abordagem, ao tratar o conhecimento como primordialmente moldado pelo discurso humano, fica sem ter defesa frente a empreendimentos irracionais da cincia, em que a persuaso e a fora do argumento seriam os princpios pelos quais as teorias seriam julgadas. A defesa realista, para tais acusaes, est no fato de que os discursos e a veracidade podem ser verificados atravs de uma cuidadosa contestao das afirmaes estabelecidas. Sendo assim, no podemos inventar o mundo de acordo com certas convenincias, sejam particulares ou coletivas. Os fatos, naturalmente, podem ser lidos em funo de uma teoria, mas esta, segundo Matthews (1994, p.152), deve ser compreendida como uma criao hipottica humana que, ao contrrio do que prope o programa construtivista, tem seus limites condicionados pela experincia 10. Permanece claro, dessa forma, 5 Citemos para adiantar, por exemplo, as teorias pertencentes a programas de pesquisa com maior fora heurstica (Lakatos & Musgrave 1979, p. 191), ou a tradies de pesquisa que se submetem avaliao baseada na sua efetividade ou adequacidade e progressividade (Laudan 1977, p. 69, 106 e 107). Ver mais detalhes em seo a frente. 6 Uma diferena importante entre as reas de conhecimento refere-se s questes de juzo de valor. Diferentemente das cincias humanas, podemos dizer que o estudo da fsica fundamental no se compromete diretamente com atributos ticos ou juzos de valor. Assim lembramos uma afirmao de Feynman (apud Davies & Brown, 1995): No nosso campo (Fsica) ns temos o direito de fazer qualquer coisa que ns quisermos. somente uma suposio. (...) se alguma coisa estiver errada ns a checamos contra o experimento (p.193) (...) A nica coisa perigosa todo mundo fazer a mesma coisa(p.196). 7 Novamente, uma viso que carrega uma interpretao instrumentalista da cincia. Ver outro comentrio na nota seguinte. 8 Aqui cabe uma observao de Wolpert (1992, p.11) com sentido de crtica: se alguma coisa ajusta-se ao senso comum ela quase certamente no cincia... a maneira como o universo funciona no a maneira como o sentido comum trabalha. 9 Lembrar o que diz Feynman na nota vi. 10 Uma reflexo que sintetiza melhor a postura realista e, por que no, objetiva aqui colocada, pode ser resumida na seguinte definio de paradoxo de Feynman. Para ele um paradoxo uma situao fsica que d respostas distintas, dependendo da forma em que analisada. E afirma: Certamente, na Fsica no h nunca qualquer paradoxo real porque h somente uma resposta correta; pelo menos ns acreditamos que a natureza atuar de uma nica maneira (e esta a maneira correta, naturalmente) (Feynman et al. 1972, p.17-8) (grifos nossos).

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    que o retrato da cincia, como um processo de construo e manipulao de representaes, deslocada de uma realidade ontolgica, equivocada.

    A tese construtivista (5), que afirma que a realidade no pode ser imprimida na mente do

    observador (ou do cientista), j era reconhecida pelos realistas, como comenta Matthews (1994, p.142). Para ele, construtivistas como Glasersfeld (1989) se enganam quando no reconhecem que a cincia no trata com objetos reais em si, mas com objetos reais que so selecionados pelo aparato terico da cincia (ibid., p.142). O conhecimento cientfico mediado pelos objetos tericos idealizados pela cincia. Em outras palavras, Matthews acentua que, apesar do mundo existir e se comportar de maneira autnoma e independente, a cincia inventa os seus prprios objetos intelectuais, que so uma aproximao dos objetos reais. com os objetos intelectuais que o cientista observa a natureza e quando esta ltima se ajusta aproximadamente aos primeiros, pode-se dizer que a teorizao est apreendendo a realidade. Assim, por serem idealizaes, os objetos tericos podem, por exemplo, vir a ser concebidos ou excludos num certo momento da histria cientfica, em razo de uma necessidade lgica ad doc11. Outros, por deduo igualmente lgica, podem ser antecipados teoricamente e s muito tempo depois observados12. Assim, se analisarmos algumas das proposies e conceitos da cincia, como velocidade instantnea nula e acelerao no nula no topo de um lanamento vertical, energia potencial, ftons virtuais, dualidade onda-partcula, etc., veremos que eles no emergem de sensaes e no so obtidos de uma ditadura exclusiva da experincia. Pelo contrrio, contradizem a experincia imediata, sendo, alm do mais, apenas aproximadamente vlidos dentro dos erros experimentais13. Ao observarmos o movimento de um cavalo correndo em uma pista, de imediato constatamos uma complexidade indiscutvel de movimentos, com partes do corpo do animal descrevendo movimentos variveis, dificilmente computveis. Contudo, o movimento desse mesmo animal, olhado atravs dos culos tericos de um fsico, convenientemente simplificado por uma representao de um ponto material com velocidade uniforme, apresentando relevantes fins prticos e tericos, dentro de uma margem de erro requerida. Analogamente, sistemas calorimtricos reais, como garrafas trmicas, podem ser, em certas condies, convenientemente inseridos na categoria dos sistemas adiabticos ideais; a Terra, para muitas experincias nela realizadas, pode ser classificada dentro da categoria dos idealizados sistemas inerciais; pndulos so supostos como pontos materiais, de fio sem massa, com perodos e amplitudes constantes, etc.. Logo, o trusmo construtivista de que os aparatos tericos so construes humanas (6) e de que os objetos naturais so considerados somente dentro de um adorno terico (11), no implica que os objetos naturais em si sejam criaes humanas ou que eles no tenham qualquer papel na apreciao das estruturas cientficas, inclusive na busca em direo da verdade. Para finalizar, interessante notar que por detrs da assero (18) de Glasersfeld, de que os significados so abstrados da experincia individual, Matthews (1994, p.156) interpreta a mesma como sendo uma postura basicamente positivista, pois ela admite que os conceitos, noes ou idias derivam ou so redutveis s sensaes, impresses, percepes, lembranas visuais ou auditivas14. 11 A idia do ter e da constante cosmolgica (Gleiser, 1998, p.16), do neutrino, do princpio de excluso de Pauli, a necessidade do nmero quntico cor para resolver o problema do hadron ? ++(Fritzsch 1990, p.111-112), etc., so exemplificaes que atestam tal posio. 12 Por exemplo: novas partculas na cromo dinmica quntica, polarizao do vcuo na eletrodinmica quntica, desvio da luz na relatividade geral, as previses da antimatria e do spin na equao de Dirac, etc.. 13 Os cientistas, particularmente os fsicos, esto conscientes de que raramente esperam obter uma concordncia total entre teoria e experimento (ou, mais precisamente, as medidas experimentais); a aplicao de uma teoria implica em algum grau de aproximao: o plano no sem atrito, os tomos so afetados pelas colises, a construo de instrumentos pode implicar em algum grau de aproximao (Kuhn 1977, p.229). Nesse sentido, a prpria realidade um instrumento objetivo que delimita o alcance da teoria, assim como do rumo do seu aperfeioamento. Fica, consequentemente, prejudicado o carter normativo relativista da assero (14), j que a especificao do modelo terico, na interpretao dos dados, tem, na teoria de erros, uma grande ajuda na comparao entre diferentes modelos (Vuolo 1992, p. 38). 14 Qualquer viso epistemolgica que formula o problema do conhecimento em termos de que o mesmo se encontre na observao ou, em outras palavras, de que ao haver um sujeito olhando para um objeto e ao questionar o quanto bem a

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    Para concluir sinteticamente o que foi elaborado at agora, podemos dizer que os conceitos

    tericos no so levantados da experincia imediata e nem mesmo se referem diretamente a ela. Tambm, podemos entender que os conceitos cientficos no resultam de uma simples negociao social culturalmente vinculada a um conjunto de leigos. A cincia artificial, foge do sentido comum, no auto evidente e na ausncia do mostrar, do dizer, da organizao clara dos conceitos, do subsdio da informao e da sua tambm importante memorizao, aqueles que esto se iniciando na cincia dificilmente adquirem e conseguem articular de maneira satisfatria o conhecimento elaborado pelos cientistas. Ao que parece, o referencial construtivista, por um lado, encaminha-nos para uma priso epistmica, onde o entorno emprico acaba impedindo os nossos saltos imaginativos ou, por outro lado, para uma devassa epistemologia libertina, em que a realizao cientfica acaba se reduzindo a um empreendimento exclusivamente poltico.

    Crticas Pedagogia Construtivista

    Nas discusses precedentes tivemos a oportunidade de identificar diversas contestaes aos

    pressupostos epistemolgicos e ontolgicos construtivistas. Como no poderia deixar de ser, os enunciados e as prticas pedaggicas que se apoiam naqueles pressupostos so, por sua vez, alvo de contestao. Nesta seo pretendemos enfatizar questes e preocupaes de mbito mais pedaggico, que vo de encontro a esses enunciados e suas conseqentes prticas pedaggicas.

    Para comear, apontemos uma das principais crticas que afronta diretamente a tese

    individualista sustentada pelo construtivismo, que, como vimos (6, 7), imputa ao nvel do privado, do subjetivo, a aquisio das asseres do conhecimento. Essa abordagem, ao considerar a construo do conhecimento como sendo um processo eminentemente individual, resqucios da influncia da teoria de reequilibrao piagetiana (Piaget, 1977), mostrou-se insuficiente para dar conta da complexidade das relaes envolvidas no processo de ensino-aprendizagem. Dentro dessa viso, o aprendiz , num sentido cognitivo, um ser solitrio e o professor visto, praticamente, como um mero provedor e organizador dos meios necessrios ao desenvolvimento do aprendiz. A valorizao inicial dessa proposio (Rowell, 1983a; Nussbaum & Novik, 1982), levou ao surgimento de estratgias de ensino centradas no conflito cognitivo, em que as idias prvias do aluno eram expostas e, em seguida, contraditadas; imaginava-se que elas seriam superadas e substitudas, a partir da, por conceitos cientficos mais coerentes. Investigaes realizadas mostraram que o conflito cognitivo, na seqncia precedente, no apresentava bons resultados pedaggicos (Rowell, 1983), pois os alunos se protegem de vrias maneiras dos conflitos, (Labur, 1996; Labur & Carvalho, 1995; Chinn & Brewer, 1993; Rowell, 1989; Karmiloff-Smith, 1974). Como se procurou argumentar na seo antecedente, por detrs de tais atribuies instrucionais so identificadas posturas empiristas (Matthews, 1992), pois a discrepncia emprica no condio suficiente para que ela assim seja observada como tal15. Em termos gerais, a crtica feita resume-se no seguinte: didaticamente falando, nenhuma experincia individual pode estimular, de todo, a construo de conceitos cientficos, que so, em ltima instncia, construes abstratas, idealizadas.

    Tomando por base as anlises contrrias estratgia anterior e, por conseguinte, sua

    sustentao terica, ou seja, que o ensino no pode ser visto como um simples mecanismo de

    sua experincia ou sensao reflete a natureza ou a essncia do objeto fundamentalmente empirista (Matthews 1994, p.150). Tal erro possvel de ser imputado aprendizagem por descoberta, em que a experincia vem em primeiro plano, e em seguida, a classificao (lembrar, na seo anterior, as proposies da aprendizagem por descoberta). 15 Apesar de no ser esta a nica estratgia que usa conflitos cognitivos a partir do uso de eventos refutadores. H, por exemplo, variaes dessa estratgia que empregam contradies ao nvel conceitual (Stavy & Berkokvitz, 1980; Cosgrove & Osborne, 1985).

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    reequilibrao, construtivistas da vertente social (entre outros, por exemplo, Mortimer & Machado, 1996; Howe, 1996; Driver et al.,1994; Edwards & Mercer, 1987; Newman, Griffin & Cole, 1989), procuram levar em considerao a dimenso scio- interacionista na anlise do processo de ensino. Destacam que a construo do conhecimento em sala de aula depende fundamentalmente de um processo de negociao social, onde os significados e a linguagem do professor vo sendo apropriados pelos alunos na construo de um conhecimento compartilhado. Os construtivistas em geral, reconhecem que h um mundo pblico, simblico, criado pela cincia, em que as crianas tm que ser introduzidas, e que tal processo envolve a internalizao dos conceitos. Em particular, os construtivistas sociais, ao contrrio dos radicais, a quem eles pretendem se opor, esto conscientes de que esse mundo no pode ser descoberto pelas crianas solitariamente atravs de um inquirir privado, e chegam a afirmar, inspirados em Vygotsky, que novas e mais poderosas estruturas podem ser construdas interpsicologicamente e estas podem interagir com as estruturas lgicas intrapsicolgicas da criana a fim de resultar numa mudana cognitiva (Edwards e Mercer 1987, p.68). Ao postularem a componente social na aprendizagem, claramente identificam nela a parte indispensvel do processo de aprendizagem (Hardy & Taylor 1997, p. 140). Na procura por uma sada para enfrentar o construtivismo individualista, reconhecem que o conhecimento um processo coletivo de enculturao nas idias e modelos da cincia convencional (Driver et al., 1994). Como conseqncia dessa postura, do uma justificao mais sus tentada para que se proliferem atividades de ensino baseadas na discusso em grupo e na colaborao social16. Todavia, o modelo cognitivo de aprendizagem de determinados scio-construtivistas, ao procurar se contrapor ao construtivismo individualista, no se liberta, no entanto, dos problemas pedaggicos deste ltimo e ao mesmo tempo chega a enfrentar alguns novos. Um deles no proferir uma adequada explicao de como as componentes sociocultural e pessoal da aprendizagem interagem. Mais especificamente, fica a questo: o que se compreende, explicitamente, em termos didticos, com a mxima construtivista negociao, extensivamente empregada e que denota a idia da interao do expert (professor ou pares) com o novio? Por detrs dessa mxima, parece haver o sentimento da existncia de uma velada proibio do expert (professor) poder dar direta e claramente a explicao ou dizer a resposta correta, ao novato. Negociar, subentende uma imposio pedaggica de que o aprendiz deva alcanar o conhecimento de maneira independente, chegando concluso sempre exclusivamente por si prprio. Ao expert (professor) caberia oferecer pistas, sugestes, caminhos e os meios, evitando dar a resposta direta (Hollon et al. 1991, p.148).

    Outra questo mais geral, agora de mbito epistemolgico, com imediatas implicaes

    didticas, refere-se ao subjetivismo anteriormente mencionado. Como vimos, assim como para o construtivismo radical individualista, tal postura problemtica, o dissidente construtivismo social sofre igualmente de semelhante problema, s que agora a crtica bsica direcionada defesa do subjetivismo coletivo. Neste caso cabe, novamente, um questionamento pedaggico anlogo quele feito aos construtivistas individualistas: qual grupo de alunos, ou num sentido mais geral, qual grupo social estar julgando correto o seu conhecimento? (Matthews 1994, p. 161). Ou, noutras palavras, como podemos estar certos de que grupos em sala de aula (ou num entendimento mais

    16 Quando os construtivistas postulam atividades pedaggicas em grupo ou coletivas, estas se comparam, a nvel epistmico, correlao intra -subjetiva existente entre o indivduo e o objeto (ver na seqncia do texto). Devemos esclarecer, ainda, que o emprego, quando se torna excessivo, do estilo discusso em grupo e da penetrao estremada deste estilo no crculo pedaggico, atravs dos construtivistas em geral, deva-se, talvez, a uma leitura distorcida, ou melhor, exagerada do trabalho de Vygotsky (1978). Quando Vygostky coloca que no grupo cultural onde o indivduo nasce e se desenvolve, que lhe so fornecidas as formas culturalmente determinadas de perceber e organizar o real, que os processos psicolgicos do indivduo so internalizados a partir dos processos interpsicolgicos (Oliveira 1993, p.37, 97), no devemos esquecer que tambm para ele fundamental que a alterao de desempenho de uma pessoa se d por meio da interferncia de outra. Isto quer dizer que um indivduo tem a capacidade de se desenvolver e de se beneficiar de uma colaborao de outro indivduo (Oliveira 1993, p.59). Tal proposio pode vir a ser entendida sem a enftica implicao e determinao de que em todo e qualquer momento deve-se recorrer s discusses em grupo e, por outro lado, no descarta a influncia direta da exposio oral convencional, logo, assistncia explcita, do professor.

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    abrangente, na cincia), deixados independentes uns dos outros, formam um consenso entre si (Nola 1997, p. 74)? E, adicionalmente, como a negociao se traduz numa linguagem comum dentro do grupo e entre os grupos?17 Perigosamente, para alguns construtivistas sociais, presenciam-se resqucios de um discurso pedaggico que os aproximam da mesma problemtica dos radicais privativos, pois, assim como estes, os primeiros aparentemente continuam sustentando que, apesar da interao social, da eminente experincia individual que os aprendizes criam significados e afirmaes prprios, quando da apropriao dos elementos socioculturais (18), como se pode ver no seguinte trecho de alguns de seus representantes:

    ? Se ensinar significa conduzir os aprendizes s idias da cincia convencional, ento a interveno dos professores essencial tanto para prover uma completa e apropriada evidncia vivencial como para tornar as idias e convenes da cincia disponveis para as crianas.(Driver et al. 1994a, p.6) (grifo nosso).

    As palavras de ordem, facilitar, conduzir, orientar, nortear, prover, negociar, mediar, entre

    outras, denotam a convico construtivista, j mencionada, do sujeito auto-construtor do seu conhecimento, apenas que, agora, o saber vivenciado a partir de uma evidncia convencionada comunitariamente. A objeo posio scio-construtivista, portanto, comparvel crtica subjetivista- individualista difundida atravs da afirmao pedaggica de carter geral, que aponta a necessidade de haver um mecanismo bem definido de ajuda ao indivduo, afim de que ele possa, por si s, desenvolver e gerar novas idias e conceitos para interpretar a experincia e a transcender o pensamento de senso comum. Dada esta assertiva e a grifada na citao acima, poderamos perguntar: que mecanismo, que tipo especfico de interveno ou de providncias so essas, e de onde viriam as idias para interpretar as percepes sensoriais e os novos conceitos? Para esclarecer melhor, suponhamos, no caso das percepes sensoriais, o exemplo de deixarmos um aprendiz (ou um grupo de aprendizes solidrios) livremente a observar o movimento browniano de partculas de plen com o auxlio de um microscpio. Nessa situao o aprendiz (ou aprendizes, neste caso, por intensa negociao consensual entre si) pode vir a inferir que o contexto no qual se d o movimento dessas partculas o biolgico, em vez de localiz- lo no contexto fsico. Isto , as partculas mover-se-iam, pois seriam pressupostas como corpsculos vivos, logo, situa-as no contexto biolgico e no no fsico. Por outro lado, poderia (ou poderiam) voltar a sua ateno para o microscpio e no para o movimento em si18. Como se v, uma observao solitria (ou solidria) pode encaminhar-se por vrios caminhos e conduzir a diversas concluses que, muitas vezes, so discrepantes daque las objetivadas pelo instrutor. Nesse sentido, Di Sessa (1982), apropriadamente, lembra que muito poucos estudantes, se que existe algum, aprendem a fsica newtoniana tratando com o mundo dirio. Desse modo, as palavras de ordem do incio do pargrafo s seriam convincentes se a elas associarmos outras palavras de ordem basicamente centralizadas e dependentes das aes do professor, que poderiam ser entre outras: conduzir, no sentido de estabelecer previamente o que vai ser estudado, dizendo o que preciso ver; colocar, explicar e expor os novos conceitos, explicitando e organizando as novas informaes de maneira clara; mostrar a forma de ver e do que precisa ser visto ou entendido; advertir e corrigir os entendimentos errados de cada aluno, sanando dificuldades; mostrar e comparar a estrutura conceitual oficial, com a do aluno.

    17 Uma outra linha de argumentao poderia vir a perguntar o seguinte. Ser que o sujeito est sempre a merc do capricho do grupo? A nossa resposta seria: nem sempre. No caso da sala de aula constatamos, quando se usa a tcnica de estudo em grupo, que apesar de existirem alunos lderes em idias dentro de certos grupos, ao mesmo tempo presenciam-se alunos que no aceitam a posio do lder e defendem idias independentes (Labur, 1993, p.87). Na cincia, muitas vezes, reconhecem-se grandes avanos quando indivduos se atrevem a romper com conceitos aceitos pela coletividade cientfica. 18 Como fizeram historicamente os cardeais crticos de Galileu em relao luneta astronmica, quando este procurava demonstrar a existncia de sombras ou manchas lunares, com a inteno de convenc-los de que a lua no era um perfeito cristal aristotlico. Os crticos, mantendo as suas crenas, dizia m que as lentes da luneta distorciam as imagens dos corpos supraterrestres (Feyerabend, 1989).

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    Para complementar essas idias, uma anlise com maior destaque precisa ser feita em relao linguagem, sem dvida um instrumento pedaggico imprescindvel por parte do professor. Para os construtivistas em geral, os elementos da linguagem, como as idias, os conceitos e a palavra no podem ser transferidos de um usurio para outro (17). A linguagem, para eles, tem a sua principal apreciao alicerada a partir do ponto de vista do subjetivo e no fora deste, ou seja, do agente transmissor. Porm, esta reao construtivista de que os elementos da linguagem no podem ser transferidos bvia, pois tais entidades so de natureza mental e no podem ser literalmente transferidas, como coloca Matthews (1994). Tambm, no se quer discutir aqui a inegvel declarao de que elaborar uma linguagem requer do aprendiz ateno e atividade intelectual. Analogamente, difcil polemizar que a referida atividade um processo essencialmente individual. Contudo, isso no implica que o indivduo d um significado exclusivamente subjetivo a uma estrutura conceitual, elaborando atravs da linguagem um discurso prprio. O que se constata de fato, pela prpria possibilidade de comunicao inter-sujeitos, que os significados individuais, atravs da instruo, vo se aproximando isomorficamente dos cientficos, publicamente estabelecidos. O exerccio do processo educativo cientfico o de aproximar melhor e o mais eficientemente possvel, o discurso individual do coletivo oficial. Nesse sentido, Matthews (1994, p. 156) chega a dizer que, na maior parte do tempo, o sujeito aprende e no constri os significados e completa observando que, caso se d ao sentido da palavra transferir, acima, o de poder ser ensinado, de poder ser aprendido, ou mesmo de poder ser assistido o seu desenvolvimento, a assero que afirma que o conhecimento no pode ser transferido ou transmitido vai de encontro ao bom senso; incontestvel que os pais instruem as crianas numa srie enorme de assuntos, os professores, em matrias complexas como matemtica, cincias e histria. Quem de ns no leu um bom livro e constatou que aprendeu muito com as idias novas transmitidas pela linguagem escrita do autor. Tambm fcil verificar que quase a totalidade da comunicao e troca de informao inter-pessoal do dia a dia se d via transmisso verbal direta, sem que exista nenhuma tcnica construtivista por detrs. Alm do mais, sabemos que a maior parte da tradio cientfica passada de mo em mo e no reinventada por cada gerao. Como poderia qualquer aprendiz reinventar conceitos e conhecimentos quando as melhores e as mais privilegiadas cabeas da histria levaram anos ou sculos para elabor- los? O legado construtivista, indicando que a transferncia de significado atravs da linguagem no implica que se possa aprender tudo o que ensinado, inegvel. Mas, a em dizer que significados no so passveis de transferncia, de que eu no posso fornecer s pessoas, numa audincia, qualquer novo conceito, mas apenas estim-los a combinar de diferentes maneiras os conceitos com as palavras que eu estou usando, afrontar as evidncias.

    Por conseqncia, outra questo criticvel diz respeito estratgia usada para ensinar e ao modo particularizado de aprender de cada um. Tambm, nesta situao, difcil dar crdito radical reao construtivista ao didatismo, quando valoriza em demasia a pedagogia do estilo de discusso em grupo, estilo que observado na medida em que h excessivo destaque das atividades desse tipo, fundamentadas na promulgada colaborao social para a produo do conhecimento. Como dissemos, o falar, o mostrar, tpicas atividades expositivas, tm um papel ignorado nessa produo, ou vlida, ao que se presume, somente para e entre os pares. Assim, na literatura, podemos encontrar argumentos contrrios a esse destaque do uso de atividades em grupo. Por ela, vemos que, enquanto o primeiro estilo preferido e efetivo para alguns estudantes, isto no acontece com outros estudantes. V-se que a natureza da aprendizagem individual particularizada. Por exemplo, Pask (1976) observou que os indivduos tm preferncias quanto ao estilo de aprendizagem. Uns estudantes obedecem a um estilo holista, no sentido de que preferem formar uma viso mais global quando da resoluo de problemas. Costumam trabalhar com vrias hipteses, simultaneamente, tendo por hbito adotar uma postura individualista de aprendizagem. Outros so serialistas, pois preferem integrar, passo a passo, tpicos separados daquele que est

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    sendo aprendido e examinar, progressivamente, uma hiptese por vez. Enquanto os primeiros tm uma preferncia em construir uma descrio geral do que conhecido, os segundos tm uma postura mais operacional, procurando dominar detalhes dos processos e dos procedimentos. Da mesma forma, existem estudantes com personalidade competitiva que apreciam demonstrar sua capacidade intelectual. Por outro lado, h aqueles que so pessimistas sobre suas habilidades, ou que so metodicamente estudiosos, gastando vrias horas de estudo 19. Kempa & Martin-Diaz (1990 a, b) chegam a dividir em quatro padres de motivao a preferncia dos estudantes pelos modos de instruo da cincia. So eles: 1) os executores, 2) os curiosos, 3) os cumpridores de tarefas, 4) os sociais. Estes ltimos so os que mostram maior afinidade por atividades em grupo, enquanto os penltimos preferem um ensino didtico convencional com experimentos sustentados por instrues. Os segundos acham melhor aprender a partir de livros, por descoberta, e fazer mais atividades prticas. Por final, no caso dos executores, no h identificao de qualquer das preferncias anteriores, parecendo que qualquer estilo lhes indiferente. Ainda, em outras obras (Shade 1982; Swisher & Deyhle 1987; Huber & Powewardy 1990), v-se que as caractersticas cognitivas e de aprendizagem de grupos de minorias tnicas e lingsticas so diferenciadas do grupo social dominante, e que a melhoria da aprendizagem dessas minorias afetada quando somente o estilo do grupo dominante valorizado. Para finalizar, sem querer esgotar o que foi colocado, possvel mencionar a influncia devida prpria instituio, quando cria hbitos escolares que se mostram, mais tarde, nos graus posteriores, impecilhos ao processo formativo. Nesse sentido, um antigo trabalho de Schonell et al. (1962), realizado na Austrlia, verificou que crianas provenientes de escolas onde a nfase era a instruo formal, achavam extremamente difcil ajustar-se s condies universitrias mais abertas. Portanto, todos os trabalhos mencionados indicam que os estudantes variam em suas motivaes e preferncias, no que se refere ao estilo ou modo de aprender. E isso, sem mencionar as suas habilidades mentais especficas, ritmos de aprendizagem, nvel de motivao e interesse para uma determinada disciplina, persistncia dedicada a um problema e experincias vividas pelo grupo social a que pertencem. Estes fatores certamente influenciam, entre outros, na qualidade e na profundidade da aprendizagem. Por conseguinte, questionvel um esquema educacional baseado numa nica perspectiva que s daria conta das necessidades de um tipo particular de aluno ou alunos e no de outros.

    Em suma, as estratgias instrucionais construtivistas, que procuram encontrar exclusivos

    caminhos no emprego do j mencionado conflito cognitivo ou no vagar de uma explorao intelectual autnoma como, por exemplo, de aspectos experimentais, mostram-se pouco efetivas. Da mesma forma que o ensino tradicional objetivista-empirista, ao advogar a exclusividade das prescries de um ensino mecnico, homogneo, ritualista ou apenas de observao, falha em reconhecer o papel ativo do aprendiz heterogneo e idiossincrtico, tambm as propostas pedaggicas construtivistas, como visto, falham ao no admitir que essa abordagem pode levar a uma postura indutivista da aprendizagem. Ao mesmo tempo, no reconhecem a possibilidade de existirem alunos que no se adaptam pedagogicamente ao seu estilo de ensino. Os construtivistas deixam de reconhecer que existe um papel para as exposies orais, para as demonstraes, para o ver e o mostrar, como capazes de construir e orientar o conhecimento do aluno. No admitem

    19 Essa diferenciao de personalidade e estilo de trabalho pode ser vista mesmo entre os grandes cientistas. H cientistas que preferem descobrir leis da natureza enquanto outros preferem usar as mesma leis j conhecidas para melhor entender a maneira como a natureza se comporta. Por exemplo, Pauli, em toda a sua vida, publicou muito menos do que devia, por ser muito crtico. Tentava inspirar-se em experimentos e verificar, de certa forma intuitiva, como as coisas se ligavam. Ao mesmo tempo, procurava racionalizar suas intuies e encontrar um esquema matemtico rigoroso, que lhe permitisse provar tudo o que dissera. Bohr, ao contrrio, ousava publicar artigos que no tinha condies de provar e que se mostravam corretos no final (Salam et al. 1993, p.89). Heisenberg achava perigoso uma nica prescrio de trabalho. Para ele a prescrio deve ser diferente para diferentes fsicos. (...) a prescrio que sempre adotei foi a de que no convm prender-se demais a um grupo especial de experimentos; ao contrrio, devemos tentar nos manter a par de todos os desenvolvimentos em todos os experimentos relevantes, de modo a poder ter sempre a viso geral do quadro, antes de tentar estabelecer uma teoria em linguagem matemtica ou outras (opus cit.p.90).

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    abertamente a possibilidade do professor prover verbalmente o estudante com informaes prvias que lhe preencham lacunas20 ou que lhe ampliem as relaes de significado, dentro de um perfil conceitual cientfico, capacitando-o a dar sentido s suas percepes que, de outra forma, focariam elementos desnecessrios aos objetivos educacionais (como o caso citado do movimento browniano). Ademais, o instrumental terico do construtivismo, aqui mencionado, falho ao no reconhecer que a descrio dos objetos reais passa por idealizaes que, no fundo, so processos de abstrao no acessveis ao experimento sensrio e que no se chega a essas idealizaes atravs de uma negociao coletiva que, em sua grande maioria, precisam ser previamente impostas pelo professor, por serem antiintuitivas. Poderamos assim perguntar, que tipo de experincia nos faria imaginar e aprender os conceitos de ponto material, referencial inercial, rotacional de um campo, banda de valncia, princpio da incerteza, etc.. Ou, ainda, que tipo de interao entre um grupo de aprendizes leigos, isolados dos experts, dos manuais, poderia conduzir aos mesmos conceitos, ou como um novio ou grupo de novios construiriam esses conceitos, distantes do senso comum, por meio da simples negociao, no sentido de barganha conceitual, com um expert.

    No h o que discutir da bvia noo de que o conhecimento construdo pessoalmente, mas no h a menor dvida de que o processo pedaggico para essa construo altamente complexo, pouco entendido e longe de ser trivial (Osborne 1996, p.66). Certos construtivistas como Posner et al.(1982) e Hewson & Thorley (1989) chegam a imaginar uma aproximao epistemolgica entre o aprender cincia e o fazer cincia. Porm, advertem Osborne (1996, p.67), Ogborn (1997. P.122) e Nola (1997, p. 79), entre outros, que no existe uma necessria conexo funcional epistemolgica entre fazer cincia e os mtodos pelos quais ela aprendida e, principalmente, ensinada para os no cientistas. Em termos mais gerais, o ltimo autor comenta sobre a sua preocupao em se estabelecer uma fa lsa ligao entre a filosofia relacionada com a natureza do conhecimento cientfico e a educao cientfica e acentua que precisamos separar, principalmente no construtivismo, a interpretao terica da formao das teorias cientficas, da teoria de como os estudantes aprendem a cincia (ibid. p. 57, 78). Em ltima instncia, preciso reconhecer que nenhum compromisso com uma possvel viso parcial epistemolgica da cincia justificativa suficiente para nos orientarmos na maneira de ensin-la. Osborne, por sua vez, chama a ateno para o fato de que o construtivismo, como uma viso de aprendizagem, situado como uma grande teoria, aplicvel a todas as circunstncias e no um simples referencial de valor parcial e limitado. A ttulo de exemplo, ele critica particularmente o emprego generalizado da metacognio, como um mecanismo para descrever o pensamento gerado na aprendizagem e chega a perguntar se o uso desse mecanismo traz benefcios para todos os aprendizes indiscriminadamente, assim como para todas as idades. A pertinncia dessa crtica pode ser verificada em Brown (1987), onde encontramos a indicao de vrios trabalhos mostrando que, antes da adolescncia, a metacognio tem pouca eficcia cognitiva.

    Para concluir, um outro lado diferente da questo, que tem uma conseqncia prtica

    importante e imediata para o ensino de cincias, relaciona-se mencionada e delicada defesa relativista do conhecimento, feita pelo construtivismo. Essa posio justificada em razo do individualismo pregado ou devido a uma negociao social autnoma, como tivemos oportunidade de ver nos pargrafos anteriores. Ento, caso imaginemos os esquemas conceituais da cincia como pertencentes a um mundo real e se as afirmaes da cincia sobre o mundo pretendem ser verdadeiras, justificvel o esforo em mudar as concepes das crianas. Mas, se a cincia no trata de um mundo real ou no pode ser pensada como verdadeira, fica difcil legitimar um argumento que convena os alunos a modificarem as suas concepes que, em ltima instncia, so mais plausveis, logo, auto-confiantes, e no se apresentam, como as cientficas, contrrias aos seus valores culturais (Osborne, 1996). Nesse sentido, Nola (1997, p. 46) chega a externar a opinio de 20 Aqui, a importncia durante a instruo de se levar em conta o papel da memorizao de informaes e da aquisio de habilidades profissionais especficas, no pode ser trivialmente desconsiderada.

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    que se as representaes dos professores ou da comunidade cientfica no so melhores do que aquelas do nefito estudante, ento no h nada a ensinar e o tempo gasto poderia ser gasto com ortografia. Phillips (1997, p.89) complementa dizendo que se uma ou outra das consideraes do construtivismo forem aceitas, a Fsica descrita em nossos livros, por exemplo, no poderia ser retratada na sala de aula como um empreendimento que procura por consideraes verdadeiras e objetivas da realidade externa, independente de gostos e crenas humanas. Ela precisaria ser retratada como um empreendimento poltico, como um tipo de conversao de uma prtica social, que no se amolda, em qualquer grau significativo, natureza externa. Do ponto de vista desses crticos, vemos que os construtivistas ignoram o fato de haver possveis teorias mais corretas na cincia, e de que estas, quando assim imaginadas, do um estmulo para algum comear a aprend-las sem, contudo, estar obrigado a se comprometer com a afirmativa de que eles sabem, com absoluta certeza, que as suas teorias so verdadeiras (Nola 1997, p.79).

    Objetivismo, o Clculo e a Medida

    A discusso desta seo centralizar-se-, basicamente, em cima de um recorte das idias de dois eminentes fsicos nobis, complementadas por citaes de outros reputados fsicos. A nossa inteno ser, primeiramente, mostrar que as questes e as teses contrrias ao construtivismo dos pensadores da educao cientfica discutidas at agora, aproximam-se muito de perto das desses pesquisadores. preciso advertir, contudo, que ao destacar estes dois cientistas no estamos a generalizar os pensamentos desta comunidade cientfica, nem mesmo a mostrar que haja convergncia de pensamento entre eles ou entre os demais citados. Estamos to somente a apresentar idias de pesquisadores que, por terem alcanado respeitabilidade cientfica mundialmente reconhecida, em funo de suas reais e, acima de tudo, importantes contribuies para o avano do conhecimento da fsica, so ilustrativas de como particulares tipos de compreenso epistemolgica podem conduzir, de fato, e apesar delas, ao aprimoramento do conhecimento da natureza. Em segundo lugar, esperamos dar nesta seo, com a apresentao do pensamento destes cientistas, um enfoque mais contundente e complementar de determinadas argumentaes at aqui inventariadas e, com isso, mostrar que h alternativas que se contrape ao perfil relativista, componente principal do movimento construtivista dominante.

    Comecemos pela questo do realismo, citando a afirmao do filsofo L. Wittgenstein sobre a cincia, cuja proximidade com o movimento construtivista fica evidente na seguinte frase relativista:

    ? na base de toda viso moderna do mundo est a iluso de que as chamadas leis da natureza so explicaes dos fenmenos naturais (grifo nosso).

    Como se pode verificar, para o nobel em fsica Weinberg, 21 esse tipo de aviso no lhe toca.

    Ele comenta, enfaticamente, que dizer para um fsico que as leis da natureza no so explicaes dos fenmenos naturais como dizer para um tigre caando sua presa que toda carne grama (Weinberg 1996, p. 32). Ele critica as posies filosficas que declaram que a busca das explicaes cientficas so sem valor. Diz, ademais, que uma falcia lgica quando se parte da observao de que a cincia um processo social e se conclui que as teorias cientficas so moldadas exclusivamente por foras histricas e sociais que agem nesse processo. Neste ponto, Weinberg ilustra, comentando que a mudana de nfase da fsica de alta energia no pode ser comparada

    21 Responsvel, junto com Salam e Glashow, pela unificao da fora nuclear fraca com o eletromagnetismo (Salam et al. 1993, p.34).

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    uma mera mudana de moda, como o deslocamento, na arte, do impressionismo para o cubismo, ou das saias longas para as curtas (opus cit., p. 149), e declara:

    ? No posso provar que a cincia seja assim, mas tudo na minha experincia como cientista me convence de que . As negociaes a respeito de mudanas nas teorias cientficas continuam, e os cientistas mudam de opinies vrias vezes, em resposta a clculos e experincias, at que, finalmente, uma viso ou outra tenha uma marca inconfundvel de sucesso objetivo. Estou certo de que estamos descobrindo algo de real na fsica, cuja forma de ser no tem qualquer conexo com as condies sociais ou histricas que nos permitam descobri- lo (ibid.) (grifos nossos).

    Desses comentrios, podemos extrair a defesa de um forte sentimento de carter realista e

    objetivo das interpretaes tericas fsicas sobre as leis da natureza, que se pautam por algo universal, respondendo de maneira independente de uma atuao imaginativa humana. Para o autor, a expresso sucesso objetivo acima, conota uma idia de xito quantitativo, suficiente para fazer acreditar que existe algo de vlido nas idias tericas (ibid., p.159).

    Em considerando as idias tericas como vlidas, com isso, contrariando o senso relativista

    de apreend- las como viveis, podemos resgatar, de novo, tal discusso, mas, agora, tomando por base o ponto de vista deste fsico a respeito das seguintes perguntas: como um cientista avalia o progresso ou decide entre diversas teorias? Como saber qual teoria est certa ou errada? Mais concretamente, como estabelecer critrios avaliativos entre uma explicao que emprega a substncia gua, assim entendida pelos milsios da cidade de Tales, como o constituinte fundamental da matria e, um sculo depois, a idia de tomo de Leucipo e Demcrito, dos mesmos antigos gregos? Em outras palavras, o quanto temos progredido em direo ao entendimento do porqu da natureza se comportar como o faz pelo fato de Demcrito ou Tales dizer que uma pedra feita de tomos ou de gua, ou em outro caso, de Ptolomeu ou Coprnico dizer, respectivamente, que a Terra o centro do universo ou que gira em torno do Sol como um insignificante objeto? Para Weinberg, a idia moderna de uma explicao cientfica adequada tem que vir acompanhada do entendimento quantitativo do fenmeno. Para o caso da pedra, s progredimos numa idia se soubermos calcular a sua densidade, dureza, condutividade (ibid., p. 16) ou, para o caso da Terra, as paralaxes das estrelas, a aberrao da luz de Bradley (Whittaker 1989, p. 94), etc.. Sem a capacidade da predio quantitativa proporcionada pelo clculo, nunca poderemos dizer quem estava certo, se Tales ou Demcrito, Ptlomeu ou Coprnico. Para que uma teoria em fsica seja considerada satisfatria, deve estar no s de acordo com os resultados experimentais j obtidos, mas tambm deve fazer previses ao menos plausveis de serem observadas experimentalmente22. Calcular e medir em detalhes o que acontece em vrias circunstncias em sistemas fsicos diversos ter a noo de quanto poder h nestas capacidades humanas. Generalizando, no que toca comunidade de cientistas, o martelo final norteador das decises sobre as teorias est vinculado, em ltima instncia, ao clculo e medida, duas entidades cujas existncias s podem ser imaginadas de forma concomitante, solidria e indissocivel.

    Para os fsicos em geral, o sucesso na previso dos dados numricos vai alm da condio de determinante fator de seleo entre teorias concorrentes. ainda, diga-se de passagem, convincente garantia de que a teoria selecionada est tocando de maneira singular e certa a realidade externa.

    22 Estas idias de Weinberg so convergentes com o conceito de fora heurstica envolvido com os programas de pesquisa de Lakatos (1978). Estes, em linhas gerais, compem-se de diretrizes metodolgicas responsveis pela construo e modificao das teorias cientficas. A fora heurstica, por seu lado, caracteriza a capacidade de um programa de pesquisa em antecipar teoricamente fatos novos em seu crescimento (Lakatos e Musgrave, 1979). Para Feynman (1989, p.210) a cincia s til se se referir alguma experincia que ainda no foi realizada, no servindo para nada quando apenas fala daquilo que j foi feito.

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    Dificilmente um fsico no aceitaria ou deixaria de confiar na validade ou correo de uma teoria, quando ela consegue predizer e alcanar expressivos resultados decimais; um fsico eminente, certa vez, comentou que as futuras verdades da fsica devem ser procuradas na sexta casa decimal (Weinberg 1996, p.20)23. Com isso, estamos a realar, que do ponto de vista destes cientistas, o conhecimento matemtico o instrumento ontolgico de primeira instncia na avaliao do progresso cientfico e para agarrar a realidade, no campo da fsica. Ao mesmo tempo, aquele conhecimento permite objetividade no tratamento da natureza e, consequentemente, para a cincia que a estuda. Este argumento pode ser mais enfaticamente ilustrado num seguinte pensamento de Bohr. Ao especular em 1922 sobre o futuro da sua teoria anterior da estrutura atmica, ele dizia que a matemtica tem apenas um nmero limitado de formas que podem ser adaptadas natureza, e que, apesar de ser possvel que a forma certa seja encontrada numa investigao, podem ter sido formulados conceitos completamente errneos (Bohr apud Weinberg 1996, p. 122). Por este raciocnio de Bohr, fica igualmente claro que a idia de objetividade no necessariamente precisa ser interpretada como certeza de uma interpretao correta, pois contedos fsicos diferentes de algumas teorias podem ser representados por formalismos idnticos24. Mas, dizer que a matemtica limita o nmero de formas possveis capazes de se adequar natureza , em nossa compreenso, um ponto a favor da direo objetiva do conhecimento fsico e um problema para o relativismo. Lembremos, ainda, que tal defesa j era feita pelo filsofo Kant, quando afirmava que a matemtica objetiva - ou intersubjetiva - quando aplicada cincia emprica, em funo de ser vlida para todas as percepes humanas, sejam elas do passado, presente ou futuro (Steiner, 1992). O lgico Godel e o mencionado Kant chegaram ao extremo de sustentar as posies, respectivamente, de que existe alguma outra conexo entre ns e a realidade, que no seja o sentido de percepo e esta seria a intuio matemtica, que, efetivamente, coloca os limites da nossa percepo no espao-tempo (Steiner, 1992).

    Por outro lado, retomando Weinberg, falar em verdades mais fundamentais deixa muitos

    filsofos nervosos. Para ele, no entanto, pode-se dizer que as verdades mais fundamentais so aquelas mais coerentes, abrangentes, unificadoras, mais reducionistas, onde poucos princpios, de preferncia com a elegncia da simplicidade, explicam uma grande quantidade de fenmenos. Diz ainda, que se fossemos ver, por acaso, porque a mecnica quntica do jeito que , veramos que qualquer mudana na mesma lev- la- ia a absurdos lgicos25. Assim sendo, Weinberg acredita que nenhum fsico duvida que as leis de Newton so mais fundamentais que as de Kepler ou de que a teoria do fton de Einstein mais fundamental do que a da radiao trmica de Planck. Fazendo um paralelismo entre a histria da guerra e a histria da cincia, este cientista (Weinberg 1996, p. 106) declara que, em ambos os casos, os estudiosos tm procurado regras sistemticas sobre como maximizar a sua chance de sucesso, no sentido de procurar uma cincia da guerra ou uma cincia da cincia. Mas, tanto na histria da cincia como na histria militar, num grau muito maior do que na histria poltica, cultural ou econmica, existe um linha clara entre derrota e vitria. Segundo 23 A Teoria da Eletrodinmica Quntica chega a fazer previses numricas da ordem de 10 -12. Isto no fundo como pedir para algum realizar a proeza de fazer uma estrada semelhante Transamaznica, cometendo um erro aproximado de um fio de cabelo. 24 Heisenberg ilustra isto dizendo que para se calcular o efeito Zeeman anmalo na mecnica quntica deve-se resolver um problema de perturbao, representado por um determinante secular. Este determinante significa um conjunto de vrias equaes lineares com vrias incgnitas. Ora, dois osciladores acoplados so exatamente a mesma coisa, eles tambm significam vrias equaes lineares com vrias incgnitas (Salam et al. 1993, p.72). 25 O critrio lgico-matemtico, assim como outros que esto sendo vistos, um dos importantes guias que orientam o cientista na busca do conhecimento vlido. Assim, sabe-se que algo est muito incorreto com uma teoria, ou com o seu encaminhamento, quando se obtm grandezas infinitas e no se deveriam obt-las; caso da antiga teoria da interao fraca e da gravitao quntica baseada na teoria da relatividade geral de Einstein, ou, ainda, num exemplo mais geral, da gerao de anomalias - quebra de simetrias (ver tambm nota xxviii) durante a reformulao de teorias clssicas - quando estas so quantizadas (Davis & Brown 1995, p.66). Ainda, quanto a manuteno da estrutura lgica, Bohr encontra na histria da cincia a demonstrao de que, em havendo explorao de campos cada vez maiores da experincia, revelando limitaes das idias costumeiras, novos caminhos so apontados para se estabelecer a ordem lgica (Bohr 1995, p.94).

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    Weinberg, pode-se argumentar indefinidamente sobre as causas e os efeitos de uma guerra em particular, contudo, sem dvida alguma, sabe-se qual exrcito derrotou o outro. De forma semelhante, no h dvida de que a viso de Coprnico, do sistema solar, melhor que a de Ptolomeu ou de que a teoria da evoluo de Darwin melhor que a de Lamarck.

    Nesse sentido, contrariando mais uma vez as teses relativistas, possvel verificar que os cientistas compartilham alguns compromissos heursticos para encaminhar decises. Alguns deles so: os cientistas preferem teorias que ofeream um maior alcance explicativo, universalidade e fora preditiva, devendo demonstrar avano tcnico e progresso terico com relao s teorias predecessoras; procuram por teorias mais parcimoniosas (Gleiser 1999b, p.14), compactas, de preferncia que acumulem status epistemolgico, advindo das teorias predecessoras e que se baseiam em princpios que levem a uma teoria rgida e no a uma variedade de teorias26; escolhem teorias mais profundas, que demonstrem mais conexes, contendo uma rica estrutura lgica, sem ser exclusivamente ad-hoc, tratando de encaminh- las para uma maior acurcia (Kuhn 1977, p. 241 e 260-261); procuram fixar-se menos em aspectos arbitrrios, que apelem ao experimento direto (Davies & Brown 1995, p. 6); buscam incessantemente consistncia com a evidncia emprica e coerncia lgica-conceitual; os cientistas manifestam um interesse maior por teorias que resolvam um nmero maior e importante de problemas empricos, deduzindo destes o nmero e importncia das anomalias e problemas conceituais gerados (Laudan 1977, p. 68, 106).

    interessante acrescentar lista acima, um outro compartilhado elemento heurstico, muitas vezes enfaticamente comentado pelos expoentes da comunidade cientfica, que a elegncia, o sentido de beleza. Esta ltima, que precisa ser entendida dentro de um contexto lgico-matemtico, incorpora, engloba ou sintetiza vrios dos critrios prvios expostos, responsvel pelo convencimento de muitos cientistas de que eles esto na busca do caminho correto do entendimento da natureza. Assim, comenta Weinberg, que repetidas vezes os fsicos foram guiados pelo seu senso de beleza, no somente para desenvolver novas teorias, mas at mesmo para julgar a validade das teorias fsicas j desenvolvidas. Para ele, por exemplo, a receptividade geral que teve a teoria da relatividade deveu-se, em grande parte, a seus prprios atributos, ou seja, a sua elegncia (opus cit., p.77, 83), pela forma matemtica sucinta que apresenta. Corroborando com esse sentimento, podemos nos referir ao comentrio de Schwarz quando observa que Einstein partiu de princpios muito bonitos - o princpio de equivalncia (Schwarz 1995, p. 83), na formulao da sua teoria. Ou ainda, a Dirac, que sempre acreditou na beleza para orientao correta do desenvolvimento do pensamento terico. Para ele, a beleza de uma teoria determinava se devia ou no ser aceita (Salam et al. 1993, p. 44). Cita Weinberg que, em 1974, Dirac, numa palestra em Harvard, chegou ao extremo de aconselhar aos seus estudantes que se preocupassem somente com a beleza das equaes e no com o que elas significariam (Weinberg 1996, p. 108). parte destes exageros, lembrando a colocao de Bohr acima, o senso de beleza do fsico , certamente, um dos guias sinalizadores do progresso das suas teorias. Concretamente, em concordncia com o que foi dito nas argumentaes precedentes, v-se que nos estudos sobre partculas elementares descobrem-se leis que se tornam cada vez mais coerentes e universais, que partem de princpios mais profundos, simples e econmicos. No caso, comea-se a suspeitar que isso no um mero acidente pois, nas palavras de Weinberg, por existir uma beleza nessas leis isto deve refletir alguma coisa inerente estrutura do universo em nvel mais profundo (ibid., p. 191).

    Para completar, se observarmos a histria cientfica veremos que dentre os compromissos freqentemente compartilhados pelos cientistas para desenvolver a fsica, podemos ainda adicionar 26 Para Weinberg no h dvidas de que uma das razes para Einstein ter ficado to feliz com a idia de equivalncia entre gravitao e inrcia foi o fato de que esse princpio leva somente a uma teoria rigorosa da gravitao e no a uma variedade infinita de teorias da gravitao possveis (Weinberg 1996, p. 121).

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    mais dois princpios: o de unificao e o de simetria. Em relao ao primeiro, a histria mostra que os cientistas esto constantemente tentando buscar grandes unificaes, juntando ou reconciliando teorias previamente dissociadas ou inconsistentes (Salam et al. 1993, p.12; Witten apud Davies & Brown 1995, p. 97)27. Em relao ao segundo28, pode-se constatar que a sua explorao matemtica, no somente atravs da histria, mas principalmente contemporaneamente, tem mostrado ser responsvel por um formidvel avano nesta rea, tornando-se um guia heurstico indispensvel de ajuda aos fsicos para poderem progredir no seu entendimento do mundo (Davies & Brown 1995, p. 42). Mesmo que as simetrias matemticas para o desenvolvimento da fsica atual sejam difceis ou mesmo impossveis de serem visualizadas fisicamente, elas podem apontar para novos importantes princpios da natureza. Logo, procurar por simetrias desconhecidas tem se tornado importante mtodo de ajuda aos fsicos para avanarem no seu conhecimento do mundo (opus cit. p. 42). Uma demonstrao significativa disso, inclusive, ilustrativa da atuao concomitante e solidria dos conceitos de unificao e simetria, pode ser vista nas prsperas pesquisas atuais da fsica terica em altas energias. Para certas teorias, como o Modelo Padro ou a Teoria da Relatividade Geral, nota-se que a simetria inerente s mesmas do- lhes uma caracterstica de inevitabilidade e simplicidade (Weinberg 1996, p.111). Particularmente em relao a esta ltima caracterstica, a profunda crena de que a natureza deva ser simples (Feynman 1989, p.211), tem motivado, como um ato de f, a procura por uma teoria do tudo29 (Davies & Brown 1995, p. 6). Ao que parece, e isto o ponto de vista de muitos pesquisadores deste campo de investigao, as teorias que empregam generalizaes de simetrias, as denominadas teorias supersimtricas, so promissoras para se chegar a uma teoria do tudo, objetivo, que se conquistado, certamente seria um dos maiores empreendimentos e conquista triunfal do saber cientfico da humanidade (opus cit. p. 117).

    Das discusses precedentes fizemos ver, sem querer esgotar, que simplesmente existem preferncias em relao aos critrios pelos quais os cientistas julgam as teorias (Osborne 1996, p.59). Apesar desses critrios terem um peso maior ou menor para cada pessoa, observamos que, no entanto, a importncia do clculo para o desenvolvimento objetivo do conhecimento natural consensual. Ao mesmo tempo em que esse consenso se mostra verdadeiro, interessante notar que, nas ltimas dcadas, parece haver um distanciamento das questes filosficas por uma parte representativa dessa comunidade. primeira vista, estes cientistas do a entender que, para eles, estas questes so desnecessrias ou esto desvinculadas de um necessrio progresso para o crescimento da compreenso da rea. Isto pode ser visto principalmente a partir da segunda metade deste sculo, quando uma gerao destes profissionais, j tendo nascido e convivido com as novas idias revolucionrias da fsica do incio do sculo, comea a se distanciar mais das preocupaes metafsicas e filosficas, baseadas nos porqus do comportamento da natureza, fixando-se mais nos como30. Esta nova gerao, em funo, muito provavelmente, da maneira peculiar pela qual a

    27 Alguns exemplos mais eloqentes de unificaes bem sucedidas na histria da fsica seriam: Newton demonstrando que os movimentos dos corpos celestes conformam-se s mesmas leis dinmicas e gravitacionais dos corpos prximos superfcie terrestre; Maxwell unificando as leis da eletricidade e magnetismo e, adicionalmente, estabelecendo uma ligao entre a teoria do campo eletromagntico e a ptica, mostrando que a luz consiste de ondas eletromagnticas; Einstein achando uma conexo entre energia e massa, espao-tempo e gravitao (ver tambm a nota abaixo). E, mais atualmente, a unificao do micro com o macro mundo, em que a fsica das partculas elementares condio para entender o prprio cosmos. 28 H uma estreita conexo entre o conceito de simetria e as leis de conservao. A simetria nada mais que uma afirmao de que algo se apresenta da mesma forma quando olhado de pontos de vista diferentes. Assim, uma simetria das leis da natureza pode ser entendida como uma afirmao de que as leis que descobrimos no mudam, quando fazemos certas declaraes no ponto de vista do qual observamos os fenmenos naturais (Weinberg 1996, p. 111). 29 A teoria contempornea de supercordas tem a pretenso de teoria do tudo. Atravs dela procura-se a unificao das foras eletrofraca, forte e gravitacional. 30 Todavia, para a gerao de primeira linha da primeira metade do sculo, os problemas filosficos sempre estiveram em pauta durante o desenvolvimento inicial da fsica moderna; o que se pode ver nos debates realistas versus positivistas de Bohr-Einstein, a respeito dos fundamentos metafsicos da mecnica quntica; ou nos tipos de conversas de Heisenberg com Einstein em 1926, onde este ltimo dissuade o primeiro a partir da teoria para decidir o que pode ser

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    natureza intrnseca do mundo se comporta (Feynman 1992, p. 29; 1989, p. 166), trabalha com teorias que rompem com modelos mentais intuitivos, com o senso comum, com imagens mecnicas, em que bolinhas, trajetrias e relaes deterministas deixam de fazer o menor sentido e pouco ou nada contribuem para o desenvolvimento das teorias31. Esta nova postura epistemolgica, que inclusive acreditamos ser uma evoluo em cima do estatuto idealista das teorias, como colocado por Matthews e Osborne em seo anterior, faz com que a citada gerao reconhea nos formalismos matemticos, o exclusivo caminho que conduz ao avano objetivo, no sentido da interlocuo dos protagonistas, portanto, no necessariamente ontolgico32, do entendimento da natureza. Assim, quando se observa uma afirmao que diz que somos capazes de descrever com grande preciso como ocorrem os fenmenos a nossa volta e de que o questionamento do porqu talvez no seja puramente cientfico (Gleiser 1999, p.12) e, por isso, os debates filosficos so menos importantes conforme se tem um maior