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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA FACULDADE DE LETRAS WEBER WAGNER RODRIGUES SILVA O OUTRO É O SENTIDO DA VIDA

Analise de Gullar II

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORAFACULDADE DE LETRAS

WEBER WAGNER RODRIGUES SILVA

O OUTRO O SENTIDO DA VIDA

Juiz de Fora2014WEBER WAGNER RODRIGUES SILVA

O OUTRO O SENTIDO DA VIDA

Juiz de Fora2014

O outro o sentido da vidaWeber Wagner Rodrigues Silva

RESUMONo presente artigo, faremos uma anlise da poesia Narciso e Narciso, de Ferreira Gullar, presente no livro Toda poesia, publicado pela primeira vez em 1980. Buscaremos a partir de sua leitura, pensar sua estrutura, com base em algumas teorias politicas, filosficas, lingusticas e sociolgicas, bem como refletir sobre problemas da modernidade ali colocados, como a desvalorizao das relaes sociais, em contraponto ascenso dos individualismos. Palavras-chave: Sociedade; poltica; modernidade; alteridade; mitologia.

ABSTRACTIn this paper, we are going to make an analysis of the poetry Narcissus and Narcissus by Ferreira Gullar, present in the book All poetry, published in 1980. We intent, from reading the text, thinking its structure, based on some theories about the politics, philosophic, linguistics and sociological, as well as reflect on issues of modernity placed there, as the evaluation of social relations, in contrast to the rise of individualism.Keywords: Society; politic; modernity; alterity; mythology.

Vs deveis procurar o vosso inimigo e fazer a vossa guerra, uma guerra por vossos pensamentos. E se o vosso pensamento sucumbe, a vossa lealdade, contudo, deve cantar Vitria (NIETZSCHE, 2012, p 55)INTRODUOFerreira Gullar, poeta brasileiro de So Luiz do Maranho, em entrevista ao programa Encontro marcado com a arte (Disponvel em: http://www.youtube.com/watch?v=gjwXTSVfgYI. Acesso em: 02/02/2014) conta que ao desintegrar a linguagem no final de seu livro a Luta corporal, escrito no perodo em que teve de se exilar do Brasil devido ditadura, colabora para a instalao de uma crise que instaura a poesia concreta no Brasil. O poeta se junta a outros artistas paulistas por um tempo, entretanto, Gullar, que nunca havia concordado com a ideologia concretista e que propunha uma teoria lgica da composio potica, mas que era adepto da teoria de que a poesia se forma a partir do espanto de Plato, deixa de participar deste grupo e se junta a outros poetas do Rio de Janeiro, onde juntos elaboram e publicam no final da dcada de 1950 o Manifesto Neoconcreto, que buscava uma forma de expresso da poesia que no fosse desapegada da vida, do acaso, mas que privilegiasse o nascimento deste espanto, do subjetivismo. Posteriormente, sentindo que havia esgotado suas possibilidades criativas na poesia neoconcreta, o poeta deixa tambm este grupo. Gullar diz que sua adeso poltica, em sua fase de poesia engajada, aconteceu devido ao esgotamento do movimento de vanguarda que participava, sendo uma tentativa de reconstituio da linguagem potica que ele havia desintegrado. Assim, ele reinicia sua experincia autoral como poeta de feira no CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (Unio Nacional dos Estudantes), com uma poesia de cordel que ficou conhecida como: Joo Boa Morte, cabra marcado para morrer.A anlise a seguir trata-se de uma proposta de interpretao da poesia Narciso e Narciso, presente no livro Toda Poesia de Ferreira Gullar. Segue transcrio da poesia:Narciso e NarcisoSe Narciso se encontra com Narcisoe um deles fingeque ao outro admira(para sentir-se admirado),o outropela mesma razo finge tambme ambos acreditam na mentira.

Para Narcisoo olhar do outro, a vozdo outro, o corpo sempre o espelhoem que ele a prpria imagem mira.E se o outro como eleoutro Narciso, espelho contra espelho:o olhar que mirareflete o que o admiranum jogo multiplicado em que a mentirade Narciso a Narcisoinventa o paraso. E se amam mentindo no fingimento que necessidade e assim mais verdadeiro que a verdade.

Mas exige, o amor fingido,ser sinceroo amor que como ele fingimento. E fingem maisos doiscom o mesmo esmerocom mais e mais cuidado - e a mentira se torna desespero.Assim amam-se agora se odiando.

O espelho embaciado,j Narciso em Narciso no se mira:se torturamse feremno se largam que o inferno de Narciso ver que o admiravam de mentira.

(GULLAR, 2001, p. 367-368)

1- O mito na poesiaAo efetuarmos uma primeira leitura da obra salta-nos a vista a figura mtica de Narciso, da qual transcrevo uma adaptao particular da traduo da lenda presente no livro Metamorfoses de Ovdio, colhida em Carvalho (2010, p. 100:105). Segue transcrio:A beleza excelsa do mancebo logo chamou a ateno de sua me que conforme narra Ovdio, foi a primeira a comprovar a realidade das previses de Tirsias. Disse o sbio ao ser arguido pela me a propsito da longanimidade da vida de seu filho: ter longa vida caso no veja a si mesmo!. No entanto, passado vrios anos e parecendo v a voz do augure, aos dezesseis anos, o rapaz era desejado por homens e mulheres, sem nunca se deixar ser tocado por ningum. Narciso era comparado com a esttua de mrmore de Paros, to belas as suas formas e to rude sua soberba. A ninfa Eco, ainda possuidora de corpo, vivia exilada na floresta devido a um castigo de Hera que a condenou a repetir somente as ltimas palavras de quem ela as ouvisse. Tudo isso se passou, pois a ninfa vivia enredando a deusa para que ela no descobrisse os relacionamentos de Zeus com suas irms ninfas. Eco ao ver Narciso pela floresta se apaixona no mesmo instante e o rapaz ao ouvir a prpria voz consentiu at o ponto em que a ninfa tenta agarra-lo pelo pescoo, no que repelida com as palavras: tira as mos, no me abraces, morrerei antes que tu possas me reter!. Tamanha dor sente a ninfa que lhe consome todo o corpo e escondida na floresta resta-lhe apenas a voz e os ossos transformados em pedra. Assistindo a todo o martrio de sua irm as outras ninfas da gua e outros rapazes tambm desdenhados pelo mancebo, rogam erguendo as mos para o cu: que ele ame e qui no possua o amado!.Assentindo a justa splica, a deusa da vingana Nmesis envia um calor enorme fazendo com que Narciso passasse por uma parte da floresta coberta dos raios do sol onde havia uma fonte intocada pelos animais e pelas folhas. Assim, ansiando aplacar sua sede, enquanto bebe, o rapaz avista a si mesmo e ama, na mesma hora, sua imagem produzida na gua. Dali no mais deseja sair e tomado pela paixo morre, deixando em seu lugar uma bela flor que passa ento a se chamar narciso.

A fundamentao mtica como matria potica contempornea remonta a criao do ser humano e da linguagem. Quanto criao do ser humano, escamoteia o criacionismo cristo, quanto linguagem, reafirma sua natureza convencional e socializadora, cedendo sentido para a justificao do ttulo deste artigo, O outro o sentido da vida. Ttulo este tomado de emprstimo da fala do prprio Gullar em entrevista concedida ao programa Roda Viva (Disponvel em: http://www.youtube.com/watch?v=YvjojB4PVd0. Acesso em: 02/02/2014), no entendimento de que este outro a matria da qual somos feitos, tambm de que necessitamos deste outro para a construo dos significados que abstramos da experincia vital. Alexander Supertramp, Christopher McCandless, mochileiro americano que se apartou da convivncia social para viver como eremita pelas montanhas e florestas americanas, e que veio a falecer devido, provavelmente, a um engano de tipo na ingesto de ervas venenosas. Assevera em uma de suas frases que: a felicidade s existe quando compartilhada. Esta frase, a sua maneira, nos afirma a importncia deste outro em nossas vidas, ao menos, no caso de haver o desejo de sermos felizes. Ainda quanto ao escamoteamento do cristianismo, a poesia em anlise cria um arco parabolar, que, longe de propor uma trajetria alternativa mais simples para a constituio do homem moderno, realiza um vnculo, uma ponte, propondo, nesta forma, um processo de desalienao, exibindo-nos um espelho metafrico onde nos mostra a ns mesmos e, ao trazer tona e renovar as foras do aforismo grego, nos desafia dizendo: Conhece-te a ti mesmo. Nota-se a criao de um bloco potico que narra uma lenda muito antiga e conhecida, mas que tambm cria uma variedade de interpretaes, na medida em que reflete - torna para fora - o que h dentro de ns, nosso subjetivismo, ou seja, uma viso personalizada, um entendimento particularizado de nossa prpria realidade cultural. Contudo, insistimos em dizer que no todo do bloco potico no h uma interpretao convencional alm daquela que varivel. Segundo Octavio Paz: O poema no diz o que e sim o que poderia ser. Seu reino no o do ser, mas o do impossvel verossmil de Aristteles. (PAZ, 1982, p. 120-121). Talvez por isso, a poesia, Narciso e Narciso, oferea certa resistncia para a execuo de sua anlise, na medida em que recria poeticamente o quadro de uma realidade atemporal. Nesta realidade, o que se encontra em moldura, neste quadro, uma pintura abstrata. O suporte, a dobra, do qual podemos e vamos nos valer na tentativa de buscar um arranjo interpretativo do poema, reside no mito que ele retoma. No entanto, este cone, torna-se um convite que permite a entrada para o corpo labirntico de possibilidades de significados da poesia. Nesse labirinto, o fio de Ariadne est no encontro com este outro que habita em si mesmo. Octavio Paz afirma que: o prprio homem desenraizado desde o nascer, reconcilia-se consigo quando se faz imagem, quando se faz outro. (...) A poesia coloca o homem fora de si e simultaneamente o faz regressar ao seu ser original: volta-o para si. (PAZ, 1982, p.137-138). Segundo Marcia Canado:O esquema de imagens a forma central da estrutura conceitual dentro da semntica cognitiva. A ideia bsica que devido nossa experincia fsica de ser e de agir no mundo de perceber o ambiente em nossa volta, de mover nossos corpos, de exercitar e de experienciar foras, etc. formamos estruturas conceituais bsicas com as quais organizamos nosso pensamento sobre outros domnios mais abstratos. Em Johnson (1987), o esquema de imagens visto como o nvel mais primitivo da estrutura cognitiva, subjacente s metforas, e que fornece uma ligao entre a experincia corporal e os domnios cognitivos mais altos, tais como a linguagem. (CANADO, 2005, p. 102:103)A tentativa de explicar a origem do ser humano pela concepo mitolgica atrela sua evoluo ao desenvolvimento da linguagem, conforme compreendemos da afirmao de Marilena Chau na crtica ao empirismo e ao intelectualismo. A autora diz que no pensamos sem palavras, no h pensamento antes e fora da linguagem, as palavras no traduzem pensamentos, mas os envolvem os englobam (CHAUI, 1997, P. 144). Assim verificamos que os mitos originais de um povo so organizaes de uma realidade catica, que visa o estabelecimento de um nexo que explique a configurao do universo atravs de narrativas sagradas. Desta perspectiva podemos depreender que as narrativas mticas ao contar os eventos sagrados organizam o caos do mundo natural e fundam o real, a razo. Desta forma, enchendo o mundo de significados. Segundo Mircea Eliade:De modo geral pode-se dizer que o mito, tal como vivido pelas sociedades arcaicas, 1) constitui a Histria dos atos dos Entes Sobrenaturais; 2) que essa Histria considerada absolutamente verdadeira (porque se refere a realidades) e sagrada (porque a obra dos Entes Sobrenaturais); 3) que o mito se refere sempre a uma "criao", contando como algo veio existncia, ou como um padro de comportamento, uma instituio, uma maneira de trabalhar foram estabelecidos; essa a razo pela qual os mitos constituem Os paradigmas de todos os atos humanos significativos; 4) que, conhecendo o mito, conhece-se a "origem" das coisas, chegando-se, conseqentemente, a domin-las e manipul-las vontade; no se trata de um conhecimento "exterior", "abstrato", mas de um conhecimento que "vivido" ritualmente, seja narrando cerimonialmente o mito, seja efetuando o ritual ao qual ele serve de justificao; 5) que de uma maneira ou de outra, "vive-se" o mito, no sentido de que se impregnado pelo poder sagrado e exaltante dos eventos rememorados ou reatualizados. (ELIADE, 1972, p. 18)

2- O narcisismo nas relaes culturais e humanasConta a lenda, que Narciso era um rapaz de beleza sem igual, filho da ninfa Lirope com o Deus rio Cfiso. Sua me, ao rejeitar Eros, buscando refgio prximo s guas de Cfiso, o rio de guas volutuosas, acertada pela flecha de Eros que a faz ficar enamorada pelo rio, onde passa duas noites em amor com ele. De toda esta falta de comedimento amoroso entre os dois, um atentado ira dos deuses, nasce Narciso, uma lenda marcada desde o seu incio pelo orgulho, pela desobedincia, pelas paixes e por escolhas individualistas.A leitura do mito aponta para uma afirmao da necessidade de nos relacionarmos uns com os outros, criando um entendimento de que a unio faz a fora. A antiguidade clssica, bero de nascimento dos mitos gregos, era uma poca que havia uma maior necessidade de concentrao de foras humanas para manter as posies alcanadas, dar uma relativa proteo a mulheres, crianas e idosos, agindo com esprito de corpo, em associao. Talvez por isso o mito de Narciso condene tanto o seu alheamento das questes da coletividade. Por esta perspectiva a entonao da poesia adquire um aspecto de admoestao. Podemos perceber os motivos da submisso a esta norma, sendo afirmada pelo mito, atravs da histria da Batalha das Termpilas, matria do filme 300, (2007), onde os diretores cinematogrficos Zack Snyder e Frank Miller criam uma adaptao, que apresenta a sociedade militarizada de Esparta, uma cidade-estado grega, em combate com os Persas e contra interesses individuais e difusos, trazidos com a possibilidade de se tirar proveito financeiro, ou mesmo na ocupao de cargos que poderiam surgir a partir de uma possvel reestruturao do status quo da sociedade espartana. Nesta pelcula, os espartanos so uma nao de guerreiros que sacrificavam seus filhos deficientes ou aleijados, fato que hoje em dia pode nos soar como uma tremenda falta de humanidade. No entanto, isso era feito como uma necessidade para que o seu exrcito e cidados no viessem a possuir peas defeituosas, inclusive as mulheres eram guerreiras. Contudo, Efialtes (filho de Euridemo), um espartano defeituoso que vivia escondido nas redondezas de Esparta, acometido por deficincias, mentais e fsicas, teve sua vida poupada, talvez por comoo, por falta de empatia ou do prprio individualismo de seus pais espartanos. Posteriormente, Efialtes tentou ingressar na marcha dos trezentos contra Xerxes sendo novamente dispensado pelo rei Lenidas. A dispensa o deixou furioso e o levou a buscar consolo junto s serviais de Xerxes. Assim, evidenciando sua falta de compatibilidade com a causa espartana, em troco de sexo e de um uniforme, esse traidor revela aos persas uma passagem secreta pelo desfiladeiro das Termpilas. Neste interim, os foros, tradutores do orculo de Apolo em delfos, haviam sido subornados pelos generais de Xerxes para tentar persuadir o rei Lenidas rendio, e um senador corrupto deseja e obriga a rainha Gorga a lhe prestar favores sexuais com a promessa de manipular a opinio do senado e convencer os senadores a enviarem tropas auxiliares ao rei na frente de batalha e, numa reviravolta, morto por ela em pleno senado, onde deixa cair moedas de ouro com a imagem de Xerxes, o deus persa. Efialtes a figura que melhor se adapta percepo do que pode o individualismo, sua maior deficincia, causar ao bem comum coletivo. Ao revelar a travessia das Termpilas, aquele que, honradamente, deveria ter sido descartado, reconhece e assume o peso de ser o que nunca admitiu ser, pondo o exrcito dos trezentos e, consecutivamente, as prprias foras persas a se perderem. Ento, por contrariar toda a ideologia guerreira de Esparta, na qual a vida de um guerreiro espartano considerada plena e honrada quando ele morre em batalha fazendo o que nasceu para fazer, Lenidas condena Efialtes dizendo: Efialtes voc vai viver para sempre!.Morrer pela liberdade no foi um ideal que Efialtes teve a capacidade de compreender, no conhecia da glria que acompanhava o orgulho de ser espartano e de ter dado a sua vida como um verdadeiro guerreiro quando o pode faz-lo. Percebemos que o prprio Narciso em sua individualidade ao verificar que no poderia ser feliz sem se apossar de si mesmo entrega sua vida prpria causa, ele no admitia o fato de no poder ser tomado por si mesmo. O filsofo Thomas Hobbes em Leviat (2013, p.104) diz que os homens no sentem nenhum prazer (ao contrrio, um grande desgosto) em se reunir quando no h um poder que se imponha a eles. Podemos considerar que o poder de que fala Hobbes, em Narciso, o poder da prpria beleza. Na mesma passagem o filosofo diz que cada homem considera que seu semelhante deve valoriza-lo tanto quanto ele se valoriza e que quando no existe um poder comum capaz de manter os homens numa atitude de respeito, temos a condio do que denominamos guerra; uma guerra de todos contra todos. Assim, tal qual o dbil Efialtes, que no consegue compreender a causa espartana, espreita-se que ns ocidentais no possumos a carga cultural que nos faria compreender, por exemplo, o judaico-cristianismo. Esta situao tenta ser explicada em uma passagem do filme de Ridley Scott, O Conselheiro do Crime, (2013), parafraseando as falas de um velho senhor joalheiro de Amsterdam, sefardita, ramo do judasmo de cunho filosfico, cidado espanhol, que ao tentar traduzir o sentimento de seu povo sobre o cristianismo ocidental diz: Para eles, o profeta Jesus no pode ser compreendido em sua plenitude, pois o seu modelo de civilizao, que tem como base a cultura grega fundada sobre outros valores. Ento, justamente por no ser gerado no interior dessa sociedade, Jesus, para os Judeus sefarditas considerado roubado no ocidente. Ou seja, podemos entender que no ocidente, fazemos um uso utilitrio deste profeta judeu, como se fosse um esplio de guerra da doutrina hebraico-crist. De maneira semelhante, Etienne de La Botie, em O discurso da servido voluntria, explica que Hidarmes, administrador do rei de todas as cidades da sia banhadas pelo mar, ao receber Esprtias e Blis, dois espartanos voluntrios para servir de pagamento e compensar os emissrios jogados no poo em Esparta (somente por tentar, em seu discurso, contra a liberdade de Esparta pressupondo um condicionando de sua manuteno ao fornecimento de gua e terra aos exrcitos persas) o rei o faz com grandes honrarias dizendo: Vede, Espartanos, disse ele, e atravs de mim reconhecei como um rei sabe honrar os que o defendem e pensais que se deles dependsseis faria o mesmo convosco; se dele dependsseis e se ele vos tivesse conhecido, no h dentre vs quem no seria senhor de uma cidade da Grcia. Quanto a isso, Hidarmes no poderia dar-nos bom conselho, disseram os Lacedemnios, pois tentaste o bem que nos prometes, mas aquele que gozamos, no sabes o que ; conheceste o Lavor do rei; mas da uberdade nada sabes que gosto tem, como doce. (LA BOTIE, on-line, p. 8:9)

3- A sociedade narcsicaNo bojo do sentimento narcsico, encontramos a dualidade de um ser que no deseja se relacionar com o outro, usufruindo da liberdade de no o fazer, porm, encontramos tambm este mesmo ser querendo, contudo, no conseguindo se relacionar com este outro ser, que teria as caractersticas que lhe so agradveis, pois no compartilham um mesmo plano. O Narciso da imagem especular a representao, o abstrato, o perfeito porque existe no plano das ideias, ele exatamente aquilo que seu idealizador necessita. O Narciso mortal, no tem que lidar com as diferenas deste outro, no tem que ceder de suas vontades, no precisa forjar um comum acordo que lhe garanta a sobrevivncia, no quer se sujeitar a ser um outro.. Observamos ento, que na mesma proporo em que o narcisismo denota o individualismo, conota a necessidade de uma associao que vise manuteno de um bem comum. Nesta relao fica explcito que para uma coexistncia harmnica entre semelhantes necessrio que exista uma imposio de limites que viabilizem a instituio de uma liberdade. Liberdade esta, ainda que relativa, comum, procurando nesta relao evitar com que o extravasamento das paixes particulares interfira no bem estar coletivo. O trgico do individualismo demonstrado com a morte, num entendimento de que aquele que no se assujeita a uma determinada organizao social no pode coabitar um mesmo territrio.Narciso se valoriza em demasia, no se abre para as possibilidades, seu semelhante ele mesmo, sua causa comum consigo. A prpria morte no gera infortnio para o rapazote. Sempre fiel a seus desgnios, ele vai guerra por seu ideal, no obstante, uma guerra edipiana, contra si mesmo. Cito Ovdio traduzido por Carvalho:Esse sou eu! Sinto; no me ilude a imagem dbia./Ardo de amor por mim, fao o fogo que sofro./Que fao? Rogo ou sou rogado? A quem rogar? (465)/Quero o que est em mim; posse que me faz pobre./Oh! Se eu pudesse separar-me de meu corpo!/Desejo inslito: querer longe o que amamos!/J a dor me tira a fora, resta-me de vida/pouco tempo e na minha mocidade expiro. (470)/A morte no me pesa, alivia-me as dores./Este que amo queria que vivesse muito./Agora, os dois concordes, morreremos juntos./Disse e, demente, torna o olhar mesma face,/(...). (CARVALHO, 2010, p. 104)

4- O individualismo na ps- modernidadeA sensao que paira sobre o individuo ps- moderno nada est de distante da condio de Narciso, em guerra contra os limites de seu prprio corpo e mente. O ser humano nos dias atuais tem a conscincia das limitaes de seu corpo, mais tem que se desdobrar, no seu dia a dia, para dar conta de cumprir com suas obrigaes, num tempo em que tantas coisas acontecem simultaneamente. Octavio Paz, em Os filhos do barro, d o tom mais correto desta sensao afirmando no poder dizer que os dias passam mais rapidamente hoje, porm que mais coisas se passam neles. Passam-se mais coisas e todas elas passam quase ao mesmo tempo (PAZ, 1984, p. 22). A mente do ser humano, a sua forma de perceber e interagir com o mundo no nvel abstrato, espraia-se, dilui-se, ele tem que ser um vrio, um mltiplo, estar acessvel, sempre preparado para acessar e lidar com as diferentes situaes em que pode se envolver no seu cotidiano. O cogito ergo sum cartesiano demonstra sinais de fraqueza.Na dianteira da ps-modernidade encontramos os ideais de Nietzsche, em quem o ditado grego: conhece-te a ti mesmo, pretende alcanar seu sentido mximo. O individualismo nietzschiano transforma a admoestao do mito Narcsico em exaltao. Se em Maquiavel a mensagem era construda dentro de uma realidade particular e direcionada ao prncipe, em Nietzsche, a mensagem, similar de Maquiavel, direcionada ao individuo, agora ento elevado categoria de prncipe. No Poema em linha reta lvaro de campos, heternimo de Fernando Pessoa, crtica o individualismo da poca moderna na poesia que transcrevo a seguir:Nunca conheci quem tivesse levado porrada.Todos os meus conhecidos tm sido campees em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,Indesculpavelmente sujo,Eu, que tantas vezes no tenho tido pacincia para tomar banho,Eu, que tantas vezes tenho sido ridculo, absurdo,Que tenho enrolado os ps publicamente nos tapetes das etiquetas,Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,Que tenho sofrido enxovalhos e calado,Que quando no tenho calado, tenho sido mais ridculo ainda;Eu, que tenho sido cmico s criadas de hotel,Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moos de fretes,Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachadoPara fora da possibilidade do soco;Eu, que tenho sofrido a angstia das pequenas coisas ridculas,Eu verifico que no tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheo e que fala comigoNunca teve um ato ridculo, nunca sofreu enxovalho,Nunca foi seno prncipe - todos eles prncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de algum a voz humanaQue confessasse no um pecado, mas uma infmia;Que contasse, no uma violncia, mas uma cobardia!No, so todos o Ideal, se os oio e me falam.Quem h neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? prncipes, meus irmos,

Arre, estou farto de semideuses!Onde que h gente no mundo?

Ento sou s eu que vil e errneo nesta terra?

Podero as mulheres no os terem amado,Podem ter sido trados - mas ridculos nunca!E eu, que tenho sido ridculo sem ter sido trado,Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?Eu, que venho sido vil, literalmente vil,Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.(PESSOA, 2012, p.85)Nesta poesia Fernando Pessoa cria para seu heternimo lvaro de Campos o thos de um sujeito que no consegue se adaptar ao mundo moderno, um mundo de mscaras sociais. Como Narciso, ele outro que se olha no espelho e no consegue enxergar ou perceber seno, o embaciado dos defeitos que o impedem de alcanar o ideal modelar do qual em essncia ele no feito.Na obra suprema de Nietzsche, Assim falava Zaratustra, encontramos no discurso de Zaratustra, Da guerra dos guerreiros, o mesmo campo figurativo utilizado na descrio da Batalha das termpilas. Zaratustra diz:Irmos na guerra! Amo-vos de todo o corao; eu sou e era vosso semelhante. Tambm sou vosso inimigo. (...) Vs deveis procurar o vosso inimigo e fazer a vossa guerra, uma guerra por vossos pensamentos. (...) No possvel estar calado e permanecer tranquilo seno quando se tem a flecha no arco; (...) a boa guerra a que santifica todas as coisas. (...) O homem deve ser superado. (NIETZSCHE, 2012, p. 55-56) Observamos nessa passagem o clima de competio vigente em nossa sociedade. A guerra interpessoal declarada ao outro. A antiga assertiva aristotlica que diz que o ser humano um animal cvico (ARISTTELES, on line, p. 11) e, portanto, social, perde o sentido prtico. O que, categoricamente, resta de social no ser humano da ps-modernidade resiste na afirmao do psicopedagogo Henri Wallon, o Homem [] um ser intimamente e essencialmente social. (...) social no em virtude de contingncias exteriores, mas em consequncia de uma necessidade ntima. Ele o geneticamente. (WALLON apud MAHONEY e ALMEIDA, 2000, p. 20). A sociedade de outrora, que servia de local para a prtica das liberdades do cidado, a mesma que limita o exerccio das liberdades do indivduo.5- Narciso(s) e a poesia Encontra-se neste ponto o clmax da sociedade e da poesia de Gullar. O paraso social, criado sobre as fantasias mitolgicas, entra em colapso, na proporo em que a realizao pessoal transferida do Estado para o indivduo. Neste instante, Narciso se encontra com Narciso representado pelo modelo, aquele ideal ao qual a grande massa humana anseia por ser, ou ter. Assim, tudo que olha somente o que se quer ver, somente o suprassumo de todas as coisas. Cria-se um ideal de mulher, as outras no existem mais. Lana-se um novo carro, o antigo, do ano anterior, no presta mais. Se vamos dar um passeio na praia, certamente, teremos que nos exercitar fisicamente para entrarmos em exposio. Tudo comparvel e descartvel, tudo est numa relao imagtica e modelar de um instante que ainda est por ser, um atropelo do futuro. A partir deste instante o amor fingido, da poesia de Gullar, torna-se mais verdadeiro que a verdade, pois quando se trabalha com a busca de ideais, geralmente, no se consegue amar/valorizar o que se tem, apenas fingir que ama, gastando se o mnimo de tempo e ateno com aquilo que j se possui no momento presente (verdade/real), que j passado. "A oposio entre o passado e o presente literalmente se evapora (PAZ,1984, p.22). Assim, fingem mais/os dois/com o mesmo esmero um cuidado que de mentira, que momentneo ou oportuno; Assim amam-se agora, o agora passado, se odiando, pois se agora no se feliz, tem-se o direito de o ser, e se aquilo que temos no reproduz o ideal que buscamos, ento, j no nos faz feliz, logo, odiamos. O individuo se sente preso ao agora em disjuno com a felicidade que s reside no futuro; ele deseja, somente, se comprazer com o gozo da vitria, da meta alcanada, do desejo satisfeito, mas nunca se compraz com os esforos fsicos e mentais, dispersos entre o antes e o agora. Esforos esses que so to necessrios para completar o percurso, ou qui, vencer a corrida! Como diz Zygmunt Bauman: a linha de chegada se move mais veloz que o mais veloz dos corredores; (...) como na Maratona de Londres, pode-se admirar e elogiar os vencedores, mas o que verdadeiramente conta permanecer na corrida at o fim..Uma espcie de senso utilitrio toma conta de todas as coisas e a prpria coisa toma conta do ser, como expressa Drummond na poesia, Eu etiqueta: (...)/Eu que antes era e me sabia/To diverso de outros, to mim mesmo,/(...)/E nisto me comprazo, tiro glria de minha anulao/(...)/Onde terei jogado fora/meu gosto e capacidade de escolher,/ minhas idiossincrasias to pessoais,/to minhas que no rosto se espelhavam (Andrade, on-line). A poesia de Drummond fala do consumismo, de um ser humano que vive de aparncias, de status, que no sabe mais quem ele mesmo. S lhe resta esperar, at que lhe sejam ditadas as tendncias da sempre nova moda. O ter, condies financeiras, possibilita que o ser possa estar em continuo acontecimento. Assim, na atualidade o questionamento shakespeariano de Hamlet - ser, ou no ser - cede espao para uma nova indagao, qual seja, ter ou no ter.

Consideraes finaisA poesia de Gullar ao fazer uma leitura atualizada do mito de Narciso adquire um carter de advertncia. Explicitando na tragicidade de seus versos, os efeitos negativos da assuno de uma postura desmesuradamente individualista. Portanto, devemos procurar formas de melhorar nossas condies de vida, porm com a conscincia de que olhar para o modelo como um fim, fortalece quase que unicamente os meios que os sustentam e, ao mesmo tempo, nos oprime e reserva ao fracasso. Por conseguinte, consideramos que a poesia Narciso e Narciso detentora de um elevado potencial motivador da busca por novas solues para as dificuldades do convvio social, pois cria um panorama histrico que nos leva a compreender a importncia de nosso conhecimento e envolvimento poltico-social, consequentemente do equilbrio reflexivo de nossas aes, fazendo com que os ecos de toda a civilizao passada, que somos ns, possam enfim sair das cavernas.

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