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Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC Centro de Artes - CEART Programa de Pós-Graduação em Teatro Giselly Brasil Trajetos do espectador nas travessias de Lygia Clark e Pina Bausch Florianópolis - SC 2011

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Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC

Centro de Artes - CEART

Programa de Pós-Graduação em Teatro

Giselly Brasil

Trajetos do espectador nas travessias de Lygia Clark e Pina Bausch

Florianópolis - SC

2011

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Giselly Brasil

Trajetos do espectador nas travessias de Lygia Clark e Pina Bausch

Dissertação apresentada como requisito à obtenção

do grau de mestre em Teatro, Curso de Pós-

Graduação em Teatro, Linha de Pesquisa: Teatro,

Sociedade e Criação Cênica.

Orientador: Prof.Dr. Edélcio Mostaço

Florianópolis –SC

2011

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GISELLY BRASIL

Trajetos do espectador nas travessias de Lygia Clark e Pina Bausch

Dissertação apresentada para a obtenção do título de mestre, na linha de pesquisa: Teatro,

Sociedade e Criação Cênica, em sua forma final, pelo Programa de Pós Graduação em Teatro,

da Universidade do Estado de Santa Catarina, em 03 de setembro de 2011.

Profa Vera Regina Martins Collaço, Dra

Coordenadora do PPGT

Apresentada à Comissão Examinadora, integrada pelos professores:

Orientador:

-------------------------------------------------------

Prof. Dr. Edélcio Mostaço

Universidade do Estado de Santa Catarina

Membro:

-------------------------------------------------------

Profa. Dra. Sandra Meyer

Universidade do Estado de Santa Catarina

Membro:

--------------------------------------------------------

Profa. Dra. Elisabeth Lopes

Universidade de São Paulo

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Agradecimentos

Gostaria de agradecer a todos que, de forma direta ou indireta, ajudaram no desenvolvimento

desta pesquisa. Pessoas, coisas e situações que alteraram caminhos, despertaram novos

trajetos e proporcionaram encontros valiosos. Agradeço também aos desencontros que

estimularam o meu pensamento e me permitiram seguir desbravando possibilidades de acesso

a um espaço que só se constrói em movimento. Espaço por onde transitei durante o tempo de

confecção desta dissertação. Idas, vinda, observações, anotações, desenhos, inúmeros

rabiscos, esquemas, papéis, muitas canetas, reflexões, frases soltas em algum papel que já não

encontro, fotografias de lugares, pausas, palavras, muitas palavras, silêncio, viagens, trânsitos,

amigos e a vida toda acontecendo ao mesmo tempo. Percursos de uma aprendizagem na qual

fui guiada por um mestre. Alguém que observou com cautela e me permitiu experimentar o

pensamento em seus inúmeros movimentos e variantes. Agradeço ao professor Edélcio

Mostaço, meu orientador, pelas conversas, pelas referências e pelo cuidado em permitir que a

pesquisa fosse mais do que um registro de informações, mas um ato de aprendizagem. Pela

qualificação cuidadosa e generosa agradeço às mulheres fortes que me inspiram. À professora

Sandra Meyer agradeço o carinho, a presença do corpo, as referências, os tantos encontros na

graduação e a continuidade deste vínculo após a conclusão do curso. À professora Elisabeth

Lopes agradeço as palavras, a escuta, a atenção e a oportunidade de perceber que é possível

sensibilizar. À professora Rosângela Cherem agradeço a aula maravilhosa sobra a História da

Arte e o cuidado em apontar com lindas e justas metáforas os meus acertos e equívocos.

Agradeço à CAPES pela possibilidade de dedicação exclusiva ao meu projeto de pesquisa e

ao PPGT pelo incentivo ao desenvolvimento de uma investigação que pode contar com

auxílio de viagens para a coleta de materiais em diferentes centros de referência. Obrigada às

secretárias maravilhosas Mila e Sandrinha pelo carinho e eficiência.

A lista de agradecimentos seria imensa, por isso gostaria de agradecer a todos e finalizar

agradecendo aos meus pais pela enorme dedicação à minha educação. Agradeço à minha mãe

pela força, pela luz, pela alegria, pelo amor que não pode ser medido e pela presença

constante em minha vida. Agradeço ao meu pai por ter me deixado o registro de que a vida é

amor, trabalho, muito esforço e dedicação. Agradeço aos meus irmãos pelos laços de amor e

afeto. Agradeço às histórias impossíveis inventadas pelo meu irmão, quando era pequena, e

que hoje influenciam na minha escolha em transitar por lugares onde as coisas todas são

possíveis. Ao Bernhard, agradeço os anos em transformação e as lições austríacas de muita

disciplina, determinação e foco.

E da família que escolhemos agradeço à Stefano Cunha, Rosa Ribeiro e Mariana Palmeira,

pessoas lindas que transformaram e continuam transformando a minha vida. Rosinha,

obrigada por ter me inspirado o exercício intelectual. Aqui estou eu.

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Ao meu pai, presente no incomensurável.

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“Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do

instante já que de tão fugidio não é mais porque agora

tornou-se um novo instante-já que também não é mais.

Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero

apossar-me do é da coisa.”

Clarice Lispector

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RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo investigar processos de produção da arte contemporânea

que se fundamentam em princípios de interação e experiência estética. Para tanto, serão

analisados os procedimentos sugeridos pelas artistas Lygia Clark e Pina Bausch. A obra como

dispositivo que provoca a ação e a percepção do espectador é o eixo central desta pesquisa. O

fenômeno da arte, neste contexto, se dá na articulação entre sujeito, objeto e espaço. Todos

acontecendo ao mesmo tempo. Público e obra pretendem formar uma única paisagem. Eles

não estão separados, mas se constituem reciprocamente. O lugar do espectador torna-se

também o lugar da obra. Este trabalho se constrói sobre referências bibliográficas que

abordam a experiência como evento que incentiva a participação do espectador a partir de

aproximações, questionamentos e revelações. Movimentos estes que coincidem com o

deslocamento do olhar e com a transformação de sentidos instituídos. As propostas e

reflexões sugeridas pelas artistas fornecem material para a especulação da arte e do ambiente

teatral contemporâneo como campo em expansão – lugar que ultrapassa os limites das

linguagens e se legitima como campo de experiência que solicita um olhar antropofágico,

olhar que observa e absorve o mundo como pela primeira vez.

PALAVRAS – CHAVE: Espaço. Espectador. Obra. Experiência

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ABSTRACT

This dissertation aims to investigate processes of production of contemporary art that are

based on principles of interaction and aesthetic experience. To this end, we will analyze the

procedures suggested by the artists Lygia Clark and Pina Bausch. The artwork as a device that

causes the spectator's perception and action is the core of this research. The phenomenon of

art in this context occurs in the relationship between subject, object and space. All of them

happening at the same time. Public and artwork as an unique landscape. They are not

separated, but constitute each other. The place of the spectator also becomes the place of the

artwork. This work is built on references that addresses the experience as an event that

encourages participation from the spectator trough approaches, questions and revelations.

These movements coincide with the displacement of the gaze and the transformation of

meanings imposed. The proposals and reflections suggested by the artists provide material for

speculation of art and contemporary theatrical environment as a growing field - a place that

pushes the boundaries of languages and is legitimated as a field of experience seeking a

cannibalistic look, look which observes and absorbs the world as the first time.

WORDS - KEY: Space. Spectator. Artwork. Experience

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Imagens

Why not sneeze Rrose Sélavy? ou Por que não espirrar Rrose Sélavy? (1921) (21)

First Papers of Surrealism (1942) (22)

Caminhando (1964) (54)

Luvas Sensoriais (1968) (57)

Mandala (1969) (59)

Dominique Mercy em Bandoneon (69)

Nelken (1982) (72)

Kontakthof (1978) (76)

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Sumário

Introdução (11)

Ato 1 – ao abrir

Movimento 1. A noite de Marcel Duchamp e o encontro com os Dadaístas (18)

Movimento 2. Duchamp: entre moderno e contemporâneo (21)

Movimento 3. O passeio do espectador pela quarta dimensão (25)

Movimento 4. Experiência, estética, relação (27)

Movimento 5. A arte como campo em experiência ou “um mundo sem vis-à-vis” (33)

Movimento 6. Interferências: Oriente e Ocidente (35)

Movimento 7. O espectador: que sujeito é esse? Ou que espectador é esse que afeta e é

afetado? (37)

Ato 2 – ao atravessar

Movimento 1. Percurso de Lygia Clark (43)

Movimento 2. O neoconcretismo e Lygia Clark (46)

Movimento 3. Travessias de Lygia Clark (49)

Travessia A) A crise da representação ou quando a pintura transborda (49)

Travessia B) Um corpo, um espaço ou o corpo como lugar de experiência (52)

Movimento 4. Percurso de Pina Bausch (60)

Movimento 5. Tanztheater e Pina Bausch (63)

Movimento 6. Travessias de Pina Bausch (68)

Travessia A) Quebra de representação e zonas de intensidade (69)

Travessia B) Memórias, registros, perguntas, respostas e desdobramentos ou o sensível do

método Bausch (74)

Movimento 7. Breves considerações sobre o corpo neste contexto (78)

Ato 3 - ao espacializar

Movimento 1. Quando o espaço se molda (79)

Movimento 2. Espaço e corpo, instâncias entre a obra e o espectador (81)

Movimento 3. A obra como lugar de habitação (84)

Movimento 4. Uma obra, do objeto ao quase-corpus (86)

Movimento 5. Aproximação de pontos visuais e cênicos ou a liberação da arte (87)

Ato 4 – Trajetos do espectador nas travessias de Lygia Clark e Pina Bausch

Movimento 1. Considerações sobre a interação em Pina Bausch (91)

Movimento 2. Espaços móveis contemporâneos ou as relações entre obra e espectador (94)

Movimento 3. A situação do espectador neste novo lugar: notas de Susan Sontag (102)

Movimento 4. O sensível (102)

Considerações finais ou linhas finais que se iniciam (106)

Referências bibliográficas (108)

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Introdução

Inicio. Seleciono movimentos que me parecem fundamentais para o mapeamento do

campo de investigação aqui proposto. Inquietações minhas que justificam esta pesquisa.

Escrevo aqui uma espécie de síntese. Um possível recorte de um assunto amplo e que

certamente não terminará nas últimas páginas desta dissertação. Os motivos que me trazem às

discussões aqui expostas coincidem com o meu percurso como artista, pesquisadora e

espectadora do mundo. As coisas que eu vejo, que me transformam e alteram meus padrões de

relação com o entorno e comigo mesma são alguns dos estímulos principais que me

conduzem a esse trabalho. As coisas que não estão separadas de mim e que por isso me

afetam, me deslocam, me movem e acionam movimentos antes desconhecidos. Uma coisa

toca na outra. E nas palavras de Clarice Lispector: ―O mundo: um emaranhado de fios

telegráficos em eriçamento. E a luminosidade no entanto obscura: esta sou eu diante do

mundo.‖ (LISPECTOR, 1998, p.28).

Muitos artistas se propõem trabalhar nessa zona de contato, nesse limite que provoca o

toque entre as coisas. Obras que contém rachaduras, fissuras, frestas. Aberturas que

favorecem a superação da noção de obra como coisa separada e pertencente a um suporte

específico. Obra que vibra e aciona um espaço amplo. Obra que transborda, que extravasa os

limites convencionais e que admite o espaço do espectador como o seu próprio campo de

ação.

E é a partir deste princípio de ação e interação, que pode se dar de diferentes maneiras,

que escolho refletir sobre procedimentos artísticos que de algum modo alteram padrões

operativos tradicionais. Padrões que delimitam a obra numa área distinta daquela ocupada

pelo espectador. Interessam-me então as experiências que, de maneiras diversas, criam

espaços de interação, passagens e travessias que tendem a dissolver fronteiras e aproximar

obra e espectador.

A aproximação, o toque. Instiga-me a aventura de tentar escrever sobre esse lugar de

contato onde as coisas se tocam. Lugar-movimento-trânsito que justifica o assunto aqui

escolhido.

E de encontro em encontro e de deslocamento em deslocamento, eis que surge Marcel

Duchamp. Um encontro inusitado que me trouxe importantes estímulos para a seleção dos

movimentos que se transformariam na estrutura fundamental desta dissertação. A seguir farei

uma breve descrição de um suposto início desta pesquisa.

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Por algum motivo essa dissertação começa numa exposição do artista francês Marcel

Duchamp no Museu da Arte Contemporânea de São Paulo no ano de 2008. O nome da

exposição: ―Marcel Duchamp: uma obra que não é uma obra de arte‖. Este foi um dos pontos

de partida para o meu pensamento sobre a arte que acontece num lugar que escapa às

molduras, às configurações e aos padrões vigentes para se fazer num espaço onde espectador

e produção artística se conjugam em um ambiente de interações.

A obra é aquilo que acontece no intervalo, em um espaço entre o que se convencionou

chamar de obra e o que se convencionou chamar de espectador. Cabe ao artista o estímulo e a

construção de potencialidades que provocarão percepções, sensações, movimentos e a criação

de um espaço contínuo que não diferencia obra e espectador. O público não está mais à parte,

mas integrado ao evento. Aliás, é possível que neste lugar já não exista mais o espectador

como o conhecemos e o concebemos. Entre questionamentos sobre o espaço do público é

possível trazer as palavras do artista Hélio Oiticica no seguinte texto:

A questão do público: público, que, aliás, não tô mais usando essa palavra, eu tava

lendo um negócio do Nietzsche, que ele diz que o público não existe, eu acho isso

muito importante, detesto a palavra público! É uma grande generalização, é uma

individualização assim duma coisa de massa, que na realidade significa o quê? A

preferência mediana. Bom, ele falava isso em relação à coisa do Eurípedes, que

Eurípedes tinha criado o espectador , dois espectadores, um era ele mesmo, o outro

seria o espectador que ele supunha que seria igual a ele. Que na realidade é o que

passou a ser o público. (OITICICA, 2009, p.123)

A partir daí, meu interesse investigativo encontra um foco que me permite observar,

através dos exemplos das ações de vanguarda e de artistas do contexto das artes visuais,

problemáticas pertinentes às artes cênicas e mais precisamente ao teatro no que se refere à

crise da representação e à expansão do campo de ação da experiência artística. Assim como o

quadro escapa da moldura, a cena escapa do palco. O evento se dilata e toca o espaço antes

reservado à contemplação do espectador.

Inquietações minhas procuram respostas referentes ao exercício cênico. Muitas pistas

aqui e ali, e a experiência que mais me instigou, na abertura para conexões que expandiam o

meu olhar sobre a prática teatral, aconteceu nos estudos de propostas e procedimentos de

artistas inseridos num contexto das artes visuais e conectados com problemáticas filosóficas.

Encontrei, em letras brancas numa parede cinza do Museu de Arte Moderna de São

Paulo, durante uma exposição de Marcel Duchamp, uma frase que viria a me acompanhar:

―uma obra que não é uma obra de arte‖.

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Um novo campo de perguntas e respostas surgiu. Lá estava eu, imóvel e observando a

rede de conexões invisíveis que interliga todas as coisas. Nesta mostra retrospectiva dos

trabalhos de Duchamp, muitas de suas proposições ativaram uma memória minha de

ambientes já conhecidos. Eu conhecia sem poder localizar o objeto do meu conhecimento. Os

procedimentos do artista acessavam, de algum modo, questionamentos meus sobre a ação

teatral. Eu não estava no teatro, mas o teatro estava presente. Percebia um encaixe

inexplicável entre as propostas de Duchamp e um tipo de teatro que me mobiliza à ação como

artista, espectadora e pesquisadora. Despertava-me a percepção de tal modo que eu, como

público, não estava na posição de observadora ou deslocada do espaço expositivo. Ver não era

sinônimo de passividade, de recepção, na noção primeira do termo. Ver era estar presente

num espaço que se produzia entre mim e os elementos todos que estavam compondo o

ambiente. Encontrar um objeto do cotidiano, como um ready-made, em um museu, me fez

perceber o entorno, os objetos outros deste lugar, como o cenário montado para a exposição,

os sons, o silêncio, as frases que não se explicavam, as imagens de situações imprevistas, o

aleatório e o acaso. Lá estava eu. Um ambiente me absorveu. Fui devorada pelo espaço. A

experiência antropofágica do lugar. Um ambiente me movia e esse parecia ser o movimento

que eu buscava no teatro. Interessava-me compreender a ação teatral sob outros pontos de

vista. E neste trajeto, pensar sobre uma área a partir de um campo distinto pareceu-me

coerente e fundamental para revisitar conceitos e provocar deslocamentos.

Meu foco de investigação tornava-se mais nítido e direcionava meu interesse para as

crises anunciadas no final do século XIX e início do século XX. Deste período, quando as

perguntas se multiplicam e os campos todos se questionam sobre as suas fronteiras,

interessam-me os procedimentos artísticos que atuam no limite entre linguagens, entre a arte e

a vida, e que estimulam a ação do espectador.

A dissertação aqui sugerida trará como eixo principal de discussão a crise da

representação anunciada no início do século XX e ainda hoje investigada em procedimentos

de arte contemporânea. Tal crise apresenta a ação artística como possibilidade de uma

experiência ou prática que de algum modo problematiza modelos representacionais. Padrões

são questionados e a presença do espectador em seus afetos e interseções com o ambiente cria

novas paisagens no campo das artes. Tal abordagem favorece considerações sobre as

potencialidades discursivas presentes nos procedimentos das artistas Lygia Clark e Pina

Bausch, que por caminhos bastante distintos exploram espacialidades, limites, sentidos e

registros particulares do espectador.

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É importante dizer ainda que não pretendo comparar os trabalhos das artistas, mas sim

destacar procedimentos que dialoguem com o tema em questão. Práticas e propostas que

alargam o lugar da obra e incluem o espectador fazendo seu corpo vibrar em experiência.

As práticas das artistas Lygia Clark e Pina Bausch auxiliarão na investigação de

procedimentos estéticos que visam a participação e a ativação do espectador em um lugar que

pode ser comparado a uma zona liminar1. As texturas do real, a vida, o particular de cada um

e o meio entram em consonância como material de um fazer artístico que poderá provocar e

estimular experiências, memórias e a ressignificação do evento da arte.

A inserção do espectador vem sendo significativamente investigada tanto nas artes

cênicas quanto nas artes visuais. Contudo, parece ainda predominar o discurso que classifica

como interativa a proposta que solicita a manipulação da obra e contemplativa aquela que se

apresenta sem um envolvimento físico do espectador – quando este não ocupa fisicamente

uma suposta zona de ação do evento.

No contexto desta dissertação centrarei meu foco sobre duas diferentes possibilidades

de interação que surgem a partir da análise dos procedimentos e propostas de Lygia Clark e

Pina Bausch. No recorte aqui sugerido, Clark propõe o toque a partir da presença física do

corpo do espectador e Bausch incita movimentos na plateia que coincidem com a presença de

um corpo de afeto que é acionado na relação. Mesmo apresentando diferentes alternativas de

interação com o espectador, ambas exploram caminhos de acesso ao sensível, lugar por onde

se cruzam forças, afetos e memórias. Lugar que acontece na reverberação de movimentos que

escapam a moldes e padrões. Espaço de revelação de forças que habitam a forma. Lugar que

não está condicionado e que promove transformações no participante.

O teatro será aqui investigado em sua extensão ou saturação, como ambiente ou

movimento de interação presente em diferentes práticas.

Então serão destacados procedimentos da arte contemporânea que privilegiam a ação, a

relação entre espectador e obra e a criação de um espaço de tensão por onde transitam forças.

Surge uma zona de indeterminação na qual somente a ação do espectador ou o seu

engajamento ao evento poderá gerar um sentido particular da experiência. Arte e vida, real e

ficcional, visível e invisível se tocam e inauguram um ambiente que é atualizado por

interferências e contaminações. Não há isolamento. Tudo está em constante relação e os

movimentos aparecem sempre como pela primeira vez. Uma rede de conexões é ativada a

1 Conceito desenvolvido pela autora Ileana Diéguez Caballero no livro ―Escenarios Liminales: Teatralidades,

performances y política‖ (2007).

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cada ato, refazendo assim o terreno do fenômeno da arte. Destas ações e relações resulta o que

pode vir a ser a experiência estética.

A produção de arte pretende, sob esta perspectiva, dar-se como modo de ultrapassar os

limites daquilo que é previsto pelos olhos. O olhar busca novas orientações, espaços

desconhecidos e possibilidades de relações imprevistas. O olhar se alarga e acontece nos

intervalos dos demais órgãos dos sentidos. Ver-se-á com o corpo todo. A obra de arte e seus

contornos já não se limitarão à esfera das suas bordas, pedestais, molduras e da ideia de uma

quarta parede2. Pequenas ou grandes fissuras tratarão de aproximar obra e público de tal

maneira que se tornará imprescindível a presença de um e de outro.

E é no contexto deste panorama que conceitos como o de obra de arte e espectador serão

revistos. Onde começa e onde termina a obra de arte? Onde começa e termina o espaço do

público? Neste sentido, o toque do espectador auxilia na descoberta de novos conceitos para

aquilo que se convencionou chamar arte e público.

As questões lançadas aqui aparecerão como estímulos que pretendem sugerir um olhar

que ultrapassa o olho e um toque que invade a pele. O corpo, sob esta perspectiva, aparecerá

como vibração, como ato no qual o sujeito absorve e recebe o meio ambiente. Um corpo que

se constitui enquanto percorre trajetos e é afetado pelo entorno. Corpo que não está separado

dos lugares que percorre.

É importante ainda considerar que esta pesquisa não pretende se filiar a discursos que

supervalorizam procedimentos da arte contemporânea em detrimento de produções

tradicionais e fundamentadas em ideias e regras pré-estabelecidas. Pretende-se apontar

questões, como vínculos e reverberações entre obra e espectador, com o intuito de refletir

sobre a redescoberta do espaço como um ambiente de integração e interação que promove

toques entre obra e espectador - que tradicionalmente ocupavam campos distintos.

As informações e os discursos acerca desta ou daquela forma de arte serão aqui

confrontados com alternativas que questionam paradigmas dualistas e investigam

possibilidades outras para o acontecimento artístico. Não se trata de um julgamento de valores

sobre os melhores ou piores métodos e procedimentos, mas sim de uma tentativa de

identificação de diferentes possibilidades de abordagem e prática da arte.

Com base nesta perspectiva, aprofundar os estudos das artes cênicas com base na

aproximação de diferentes campos das artes é uma possibilidade de ampliar as leituras dos

processos artísticos, humanos e existenciais e de contribuir com uma bibliografia que trate da

2 Termo, que no contexto do teatro, corresponde a uma parede imaginária localizada na frente do palco. Através

dela o público é separado da encenação.

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arte como evento que reside para além de conceitos pré-estabelecidos, de limites entre

linguagens e de fronteiras entre obra e espectador.

Deste modo esta dissertação percorre o campo da estética e apresenta como eixo

principal a discussão sobre possíveis modos de ativação e incorporação do espectador ao

evento artístico.

Para abrir a reflexão aqui proposta serão levantadas considerações iniciais sobre os

vestígios da criação de um campo no qual obra e espectador se tocam. Tais apontamentos

serão pautados, inicialmente, nas propostas e conceitos presentes nos trabalhos do artista

Marcel Duchamp e em seu contexto de atuação.

Em seguida, e como núcleos de investigação, serão investigados os procedimentos das

artistas Lygia Clark e Pina Bausch. Os distintos campos de Clark e Bausch serão explorados a

partir de diferentes alternativas no que se refere à criação de um espaço que inclui o

espectador.

O terreno proposto ou o lugar da experiência será aqui abordado, inicialmente, a partir

de questões que colocam em diálogo princípios encontrados em relações que caracterizam

uma estética ocidental e uma oriental, de acordo com as reflexões sugeridas pelo músico

alemão Hans-Joachim Koeulheutter (1915-2005). Posteriormente será sugerida uma reflexão

sobre o termo estética e sobre o espectador, como sujeito da experiência. Em seguida, serão

apontados movimentos e produções da arte contemporânea que têm como fundamento a

criação da obra no mundo, na relação com o meio.

O espectador aqui abordado é aquele da experiência, solicitado em suas memórias,

rastros, percepções e sensações que reverberam no ambiente do acontecimento da arte.

Proponho como pano de fundo desta investigação a sugestão de quatro grandes atos que

coincidem com indícios de possíveis movimentos de espacialização da obra – momento no

qual esta se dilui e se faz no espaço. Os atos serão os seguintes: ato primeiro, ao abrir; ato

segundo, ao atravessar; ato terceiro, ao espacializar; e ato quarto, trajetos do espectador nas

travessias de Lygia Clark e Pina Bausch. A abertura se localiza em um cabaré dadaísta, onde

tensões, conflitos e reflexões girarão em torno de experiências e propostas lançadas pelas

vanguardas europeias e, sobretudo, por Marcel Duchamp e pelo movimento Dadaísta no que

se refere aos novos acordos propostos entre obra e espectador. As principais questões e os

embasamentos teóricos serão discutidos nos movimentos3 deste ato primeiro. No ato segundo

aparecerão reverberações desses acordos e seus efeitos nos encaminhamentos das artistas

3 Os quatro atos, correspondentes aos capítulos, serão divididos em movimentos, como tópicos de um mesmo

capítulo.

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Lygia Clark e Pina Bausch. Na sequência, no ato terceiro, serão apontados desdobramentos

desta abordagem que incluem o espectador no fenômeno artístico a partir da compreensão do

espaço e do corpo como instâncias e campos de ação. No ato quarto apresentarei movimentos

que insinuam interações e dinâmicas entre espectador e obra nos procedimentos de Clark e

Bausch.

O início do ato primeiro coincide com um acontecimento verídico – Marcel Duchamp

comparece a uma estranha apresentação teatral e assiste à encenação de Impressões da África,

espetáculo baseado em um romance de Raymond Roussel. A partir daí a problemática e as

reflexões sugeridas nesta dissertação oscilarão entre fatos, ações de artistas, considerações

teóricas e reflexões sobre o fenômeno da arte.

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ATO 1- ao abrir

Movimento 1. A noite de Marcel Duchamp e o encontro com os Dadaístas.

Uma noite no ano de 1911. Marcel Duchamp (1887-1968) e Francis Picabia (1879-

1953) foram assistir ao espetáculo Impressões da África, inspirado em romance de Raymond

Roussel (1877-1933). ―Foi extraordinário‖, diria Duchamp referindo-se àquela noite, como

aponta Rosalind Krauss (1998, p. 85). Duchamp diria ainda: ―Havia no palco um modelo e

uma cobra que se movimentava lentamente – era a absoluta loucura do inesperado. Não me

lembro muito do texto. Na verdade, nem prestamos atenção nele.‖ (KRAUSS, 1998, p.85).

Segundo Rosalind Krauss, Duchamp assistiu a uma das curiosidades da literatura

francesa que conta a ―história de uma requintada festa de gala para comemorar a investidura

de um rei africano na coroa de uma nação vizinha derrotada.‖ (KRAUSS, 1998, p.85). A festa

foi constituída por uma série de espetáculos apresentados sem nenhum vínculo narrativo entre

eles.

Todavia, a impressão de descontinuidade entre esses espetáculos desaparece tão

logo o espectador ou o leitor apreende o tema subjacente a cada ato do festejo.

Unificando todos eles, a imagem de uma série de máquinas primitivas que

trabalham para gerar um produto semelhante; cada qual envolve um intrincado

conjunto de mecanismos que terminam produzindo ―arte‖. (KRAUSS, 1998, p.85-

86)

Um dos espetáculos apresentados pode ser visualizado no seguinte trecho:

Há, por exemplo, uma máquina de pintura: uma chapa fotossensível presa a uma

roda com vários pincéis. As imagens de paisagens que incidem na chapa são

registradas e transmitidas ao mecanismo que impulsiona os pincéis, que, por sua

vez, registram a imagem em tinta sobre a tela. (KRAUSS, 1998, p.85)

A cena do espetáculo acima citado pretende criticar os processos de mecanização das

produções artísticas. Forças biológicas e físicas são transformadas em máquinas que criam

imagens que atuam como base da experiência considerada ―arte‖, conforme Krauss (1998).

Neste cenário, estruturas análogas ao funcionamento repetitivo e padronizado das máquinas

são alvos de comparações e questionamentos em relação aos modelos e padrões vigentes no

contexto da arte.

Neste processo de mecanização da arte o sujeito que fomenta a ação é, aos poucos,

excluído dos processos artísticos, como sugere Rosalind Krauss:

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Ao automatizarem a produção artística, no entanto, as máquinas chegam a um

resultado no qual a estrutura da imagem está absolutamente desvinculada da

estrutura psicológica e emocional do indivíduo que dá início à arte, que põe a

máquina em funcionamento. (KRAUSS, 1998, p.86)

A partir do espetáculo e das referências mencionadas acima, é possível dizer que

movimentos do final do século XIX e início do século XX promoveram críticas decisivas que

alteraram mecanismos de funcionamento do evento artístico. A engrenagem toda precisou ser

revisada e novas propostas incentivaram trocas, desterritorializações, mudanças de lugar,

aberturas e intercâmbios constantes que desenharam um novo lugar para o acontecimento da

arte.

Neste contexto, trarei inicialmente para o mapeamento do campo de discussão desta

pesquisa o Dadaísmo, que não constitui um movimento de vanguarda no sentido tradicional

do termo, mas antes uma atitude de questionamento e ruptura que transformará radicalmente o

modo de fazer e pensar arte. Os dadaístas negam os padrões estéticos, negam a arte do

passado, e negam ainda a arte como estrutura pautada em estilos e tendências. O intuito do

Dadá foi o de romper radicalmente com as regras que definem o lugar da arte e promover uma

revisão dos movimentos que acionam o fenômeno artístico.

O dadaísmo prevê uma revisão de conceitos que começa no próprio nome do grupo. O

movimento dadaísta traz em si e em seu nome um dos primeiros estímulos que explodirá a

concepção da palavra como vocábulo dotado de sentido. Surge uma composição de letras e

sílabas que já não se limita a uma associação imediata. Aparece então a palavra como

sugestão, som, lugar poroso e flexível logo no nome do grupo de artistas – os dadaístas4.

O elogio ao ilógico foi uma das principais motivações do Dadá. Desejavam ―(...)

destruir os enganos lógicos do homem e recuperar uma ordem natural, irracional.‖ (ADES,

1976, p.17). O espontâneo deveria agir livremente. E o acaso e a indeterminação foram

4 Considerações sobre o dadaísmo e sobre a palavra Dadá: Embora seja ainda discutida a significação da palavra

Dadá o poeta Richard Huelsenbeck (1892-1974) afirma que a descoberta do nome foi acidental. Ele e Hugo Ball

(1886-1927) descobriram a palavra num dicionário alemão-francês. O vocábulo Dadá, que significaria

cavalinho- de- pau, teria como possível sinônimo o primitivismo, o começar do zero, o novo. Um grupo de

jovens, em sua maioria pintores e poetas, refugiados na Suíça por conta da guerra adotou a palavra Dadá.

Nasceram assim os dadaístas de Zurique. As reuniões do grupo aconteciam em um night club literário, o cabaret

Voltaire, organizado por Hugo Ball em 1916. Os dadaístas desejavam uma nova ordem que pudesse restaurar o

equilíbrio entre Céu e Inferno, uma arte que pudesse salvar a humanidade da loucura furiosa visível na Primeira

Guerra Mundial. E neste movimento sofreram inúmeras reprovações. As noites no cabaret Voltaire eram

agitadas. Músicas, danças, teorias, poemas, manifestos e pinturas aconteciam diante de uma multidão. Tristan

Tzara (1896-1963), da Romênia, e integrante do movimento, diante do público, em pé e na frente da cortina

explica a nova estética: ―poema ginástico, concerto de vogais, poema ruidista, poema estático, arranjo químico

de ideias, «Biribum, biribum... poema vogal a a o, i e o, a i i ...».‖ ( ADES, Dawn, 1976, p.17)

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trazidos como elementos ordenadores que regem uma ordem que encaminha a natureza e as

produções de arte.

Estes breves apontamentos aparecem aqui como estímulos para a reflexão sobre

algumas transformações que alteraram padrões de sentido e, consequentemente, dos vínculos

entre obra e espectador. O foco sai da compreensão de discursos visuais ou teóricos e se dirige

a uma multiplicidade de relações que acionam vínculos entre espectador e obra. Mesmo que o

objetivo dos dadaístas não estivesse na criação de novas coordenadas para o evento da arte,

mas sim na desarticulação dos padrões vigentes, o movimento antecipou importantes

deslocamentos e alterações que influenciaram inúmeras práticas e procedimentos posteriores.

O fenômeno da arte se torna livre de condicionamentos que até então impõem formatos e

estruturas; novas ações e relações são sugeridas.

Aos poucos, as vanguardas apontam novas possibilidades de compreensão e experiência.

O dadaísmo desarticula sentidos constituídos e provoca novas compreensões que se fazem na

relação entre espectador e obra.

A partir daí, meu interesse reside na mobilidade adquirida pela noção de sentido, relação

e experiência no período que coincide com os movimentos de vanguarda. Os sentidos já não

podiam ser construídos a partir de certezas e ideais conhecidos e assimilados pelo senso

comum. Havia uma nova proposta em sua organização e produção. O espectador passa então

a integrar esse processo que prevê significações e experiências particulares. O que está em

pauta não é a apreensão de um significado, mas os movimentos de interação que provocam

diferentes experiências no espectador.

Os vínculos possíveis a partir de novas organizações, de questionamentos sobre lugares

já conhecidos e de um retorno a uma materialidade ignorada em prol de ideias formatadas e

concebidas sobre as coisas são algumas das principais heranças da vanguarda. Tais iniciativas

formarão um dos principais eixos de conexão na relação direta e viva que se pretende

estabelecer entre público e obra. Não há um discurso prévio e preparado como um simulacro

que se apresentará ao espectador. As construções e as experiências se localizam nos trânsitos

de um lugar no qual se fazem presentes público e evento artístico.

Neste ponto é possível trazer novamente o protagonista que abriu esta cena – Marcel

Duchamp. Nos limites entre arte moderna e contemporânea, Duchamp anuncia paradigmas e

procedimentos que influenciarão práticas artísticas e pensamentos sobre a função e o lugar da

arte. As fronteiras entre obra e público começam a conhecer abalos.

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Movimento 2: Duchamp, entre moderno e contemporâneo

Movimentos e intervalos no trânsito entre a arte moderna e a arte contemporânea -

períodos denominados e classificados cronológica e historicamente – parecem coincidir com o

aparecimento de um terreno no qual as relações e interações são ressaltadas em detrimento

das formas.

Nesta transição, regras, nomes, práticas e conceitos são questionados de forma radical

em algumas manifestações artísticas. E para dar conta de algumas das questões levantadas

neste período proponho considerações sobre um dos lugares mais restritos e mais livres - o

conceito de ―obra de arte‖.

A ―obra de arte‖ costuma se vincular à ideia de um objeto irreparável, completo e inteiro

em si. A obra que se constrói em um espaço delimitado e que constitui um sistema

independente daquele que a observa. A obra de arte limitada aos aspectos ―retinianos‖,

criticada e rompida por Marcel Duchamp, é a obra da apreciação, da reprodução de técnicas e

formas. A ―obra‖ que reproduz um sistema de normas e regras que serão contempladas em

suas categorias e enquadramentos. Uma ideia distinta daquela que prevê a obra como

processo que é recriado continuamente.

A crise da representação anunciada por Duchamp favorece o desdobramento de ações

que convocarão novos movimentos no contexto artístico. A desarticulação de fórmulas que

priorizam o apelo visual e a manutenção de padrões estéticos e artísticos pré-estabelecidos,

ditados pelo mercado e pelo senso comum, serão os principais alvos de discussão no trânsito

entre a arte moderna e contemporânea.

Tais configurações e suas reverberações serão aqui discutidas a partir do território da

vanguarda5, que orientará a ruptura de modelos e sentidos assimilados pelo senso comum.

Para tanto, localizo tal território, neste primeiro momento, no continente europeu.

Marcel Duchamp, artista francês, descendente do movimento dadaísta e um dos

precursores da arte conceitual, inicia sua carreira como pintor inspirado pelo Impressionismo,

Expressionismo e Cubismo. O conceito de ready-made, por ele desenvolvido, coincide com o

deslocamento de um objeto do cotidiano para o campo das artes. O ready-made mais

comentado e discutido de Duchamp é a Fonte, mictório comprado em uma casa de construção

e assinado pelo artista com o pseudônimo de R. Mutt. A Fonte provocou questionamentos e

reflexões sobre a arte e o espectador em um ambiente que legitima a arte pelas suas

5 Termo utilizado no livro O moderno e o contemporâneo: O novo e o outro novo, de Ronaldo Brito e Paulo

Venâncio (1980).

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propriedades formais e pelos valores de mercado. Segundo o crítico e historiador Giulio Carlo

Argan (1992), os ready-mades podem ser lidos como atos de protesto contra o conceito

―sacro‖ da ―obra de arte‖. E conforme considerações apontadas no artigo ―Duchamp, o

sensível, a indiscernibilidade‖6, de Marcos Martins (2007), os ready-mades propõem ainda

uma temporalidade complexa por indicarem o registro de uma ação do artista. O objeto pela

inscrição da data, que indica o momento em que ele foi deslocado de seu espaço e inserido

num contexto artístico, anuncia um tempo, um ato, tornando-se ele mesmo a revelação de uma

ação ou percepção de Duchamp.

Há nos ready-mades vestígios de uma experiência do tempo como a permanente

presença da memória em vias de atualização, como aponta Martins (2007). O objeto,

descolado de seu espaço e livre de uma condição padrão e cotidiana, tende a se fazer agora

como um novo lugar, um espaço em vias de, um devir, uma zona de indiscernibilidade. E

assim os intervalos e deslocamentos entre sujeito e objeto, ou espectador e obra, sugerem que

as propostas do artista anunciem um espaço sensível, lugar que não separa, mas que conjuga a

visão e a matéria cinza7.

Quando Duchamp leva um mictório para o museu, ele desloca um objeto cotidiano e

provoca, com muita ironia, um confronto do espectador com uma materialidade ignorada no

dia a dia. Duchamp vai além, questiona os parâmetros que classificam um trabalho como obra

de arte e propõe uma reflexão sobre o estatuto do espectador.

A crítica ao espaço considerado ―retiniano‖ e a utilização de novos recursos em suas

produções indicam novas condutas no ambiente das artes ditas ―visuais‖ e, como cita Martins

(2007),

(...) o empenho de Duchamp em rejeitar os procedimentos da pintura como

forma de escapar ao risco de uma apreensão da obra de forma puramente visual

dada pela impregnação de convenções pictóricas de ―leitura‖ já cristalizadas.

(MARTINS, 2007, p. 2)

Como exemplo é possível citar o trabalho Why not sneeze Rrose Sélavy? ou Por que não

espirrar Rrose Sélavy?, de 1921, no qual ele apresenta uma gaiola branca que ―contém 152

cubinhos de mármore, como torrões de açúcar, um termômetro e um osso de siba.‖8 O título

do trabalho e os elementos apresentados indicam que todas as associações são permitidas,

como sugere o próprio autor.

6 Artigo publicado na VISO – Cadernos de estética aplicada. Revista eletrônica de estética. Localização:

http://www.revistaviso.com.br/pdf/Viso_2_MarcosMartins.pdf. Acesso: 12/02/2011. 7 Relação com o conceitual, com o cerebral - alvo de seus trabalhos.

8 Catálogo da exposição Marcel Duchamp: Uma obra que não é obra de ―arte‖, 2008, p.55

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A seguir, o trabalho mencionado acima:

Why Not Sneeze Rrose Sélavy?

ou Por que não espirrar Rrose Sélavy?( 1921)

Marcel Duchamp, que estimulará as vanguardas do século XX ao acionar o pensamento,

recupera o corpo como lugar potencial para a realização do evento artístico. O espectador é

aos poucos inserido ao acontecimento da arte. Em seus trabalhos como curador, as propostas

são mais radicais no que se refere à presença e ativação do corpo. O artista cria espaços ou

environments9 por onde o público circula e é afetado por experiências sensoriais. Em uma das

exposições que realizou, do movimento surrealista, linhas foram colocadas no espaço

expositivo, de modo que o espectador precisava se livrar dos emaranhados para conseguir se

aproximar dos quadros. A experiência tátil e os estranhamentos assim sugeridos provocaram a

inserção do corpo do espectador na relação com a ―obra‖. A ―obra‖, aliás, já não estava

apenas na parede, mas também nesse percurso que possibilitou a criação de uma nova relação

entre a ―obra‖ e o ―espectador‖.

Este exemplo se refere à exposição First Papers of Surrealism, realizada em 1942 na

Whitelaw Reid Mansion, em Nova York.

9 Termo que pode ser ―traduzido como meio ambiente ou envoltório‖, de acordo com Glusberg (2009, p. 29). E

ainda sobre as relações entre Duchamp e o environment é possível destacar sua última obra, Étant donnés. ―A

obra não podia ser fotografada, só vista. Pela abertura de uma porta grande de madeira incrustada em uma parede

de tijolos via-se outra parede similar e, através de um buraco aberto nela, um bosque e uma cascata pintados. Em

primeiro plano, deitado sobre um monte de galhos, o manequim de uma mulher nua, com o rosto coberto pelo

cabelo loiro. Seu braço direito está erguido e de sua mão pende uma lâmpada elétrica.(...) pode-se inferir (...) que

este environment é uma extensão do trabalho sugerido por Roussel em 1912, com o Impressions d´Afrique

(GLUSBERG, 2009, p. 30-31)

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First Papers of Surrealism (1942)

Neste contexto, modelos são rompidos e novos espaços e conceitos são sugeridos.

Contudo, ao romper com um modelo não teria Duchamp criado outro? Duchamp estava

inserido em um contexto em que suas propostas surgiram como respostas a um sistema que

supervalorizava a figura do artista, as técnicas, a apreciação e a contemplação. Suas questões

propunham um novo olhar sobre a ação criadora. Contudo, quais são as bases e as questões

que provocam tais rupturas hoje? Não estariam muitos artistas reproduzindo um modelo que

tem sua origem nas inquietações pertinentes de Duchamp ou de algum outro artista? Com

sarcasmo e ironia o artista perturbou o ambiente tranqüilo dos museus e lançou perguntas que

continuam instigando propostas artísticas.

A partir deste ponto de vista é necessário rever a condição do espectador. Se a proposta

artística sugerida é a imitação de um modelo, independentemente de sua matriz conceitual, a

relação com o público não é aquela do campo da apreciação? Voltamos, ao que tudo indica,

para a mesma situação verificável na arte renascentista. O alerta, neste caso, se dá como

questionamento das formas que se reproduzem, mesmo em contextos que se apresentam

construídos sobre bases contemporâneas. Será do terreno da arte contemporânea a ação

investigativa do fazer artístico ou a apreensão e repetição de modelos sugeridos? A

reprodução de esquemas e composições que demonstram rupturas de convenções tradicionais

e visuais não garante a subversão da forma e nem sugere encaminhamentos para uma

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experiência estética. Pelo contrário, constroem um conjunto novamente emoldurado com base

apenas em novos arranjos e associações.

Ao provocar deslizamentos, rupturas e criar zonas de instabilidade, alguns movimentos

de vanguarda provocaram a descoberta daquilo que se pensava saber e conhecer. As sugestões

tornam-se mais relevantes do que a obra como objeto e o espectador é solicitado em uma

experiência que extravasa padrões e categorias.

Aquilo que estava ali, está agora aqui. Aquilo que se vinculava a esta forma se vincula

agora àquela forma.

Deslocamentos provocam alterações em concepções e encaminhamentos. O processo, o

acontecimento ou o evento são categorias móveis, lugares de trânsito, que talvez possam

melhor retratar o movimento das tendências que surgem em um contexto de ruptura com

padrões e fórmulas fixas. Rupturas estas que promovem aberturas para a interação do

espectador.

E ainda sobre a interação do espectador é possível trazer as seguintes considerações

sobre trajetos sugeridos por Marcel Duchamp:

Movimento 3. O passeio do espectador pela quarta dimensão

Apresento breves considerações sobre o espaço que surge como interação e movimento

a partir da ideia de quarta dimensão investigada por Marcel Duchamp.

Em setembro de 1918 Duchamp viaja para Buenos Aires e lá permanece até junho de

1919. Existem diferentes explicações e especulações sobre os motivos desta viagem. Contudo,

interessam-me aqui as reflexões subjacentes que surgem com este acontecimento.

De acordo com o autor Gonzalo Aguilar10

, Julio Cortázar foi o primeiro a escrever sobre

a viagem de Duchamp a Buenos Aires. Cortázar aponta para o fato de Marcel Duchamp ter

viajado para a Argentina após ter assistido à Impressões da África, de Raimond Roussel. A

apresentação que impactou Duchamp, e descrita no início desta dissertação, narra, entre

outros episódios, uma viagem para Buenos Aires. De acordo com uma declaração do próprio

artista presente no texto de Aguilar, o caminho que ele devia adotar foi indicado pelas suas

impressões da obra de Roussel.

10

No texto ―Viaje a la ciudad de la quarta dimensión‖ publicado no CD que acompanha o Catálogo da exposição

―Uma obra que não é uma obra de arte‖.

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O tom de ironia, presente nos comentários e produções de Marcel Duchamp, permite

que cada ato seu possa ser interpretado e abordado sob diferentes pontos de vista. Não há

como saber se a viagem de Duchamp a Buenos Aires foi mesmo influenciada por Raimond

Roussel, entretanto, o mais relevante é discorrer sobre o importante trajeto que o artista

percorreu durante sua estadia na cidade.

No ambiente tranquilo e em crescimento cultural da capital argentina, o artista investiga

a desmontagem da perspectiva renascentista, ou euclidiana. Segundo Aguilar, o tema e as

investigações de Duchamp, neste período, coincidem com interesses que dão ênfase às

―relações da percepção do espaço físico com o desejo, a volição, a intuição e o

entendimento.‖11

O artista propõe uma ―reflexão sobre o estatuto do espectador numa arte que

já não é regida pelas leis da perspectiva tridimensional e o afã da representação, senão uma

arte que procura conseguir um novo espaço, quadrimensional e mental antes que físico.‖12

A

partir destas considerações é possível prever que o interesse de Duchamp não estava na obra

como matéria, como elemento físico, mas como via de acesso e mobilização do pensamento e

da reflexão. Aliás, pensamento este que por não estar dissociado do corpo prevê um

acionamento integral do espectador.

Marcel Duchamp se dedica à investigação de um espaço que permite o trânsito e a

descoberta do avesso da obra. O que é oferecido ao espectador não se limita aos efeitos de

uma tridimensionalidade representativa, ele é agora convidado a atravessar a obra, a continuá-

la e completá-la. O movimento, o efeito pertubador que desloca o espectador de sua zona de

conforto e passividade é o ato que está sujeito às interferências do acaso e do tempo. Em

última análise, é uma quarta dimensão que não pode ser fixada em abstrações geométricas,

porém apenas experimentada como afirmação do instante. A quarta dimensão como uma

sucessão de movimentos que se apresentam entre um ato e outro, um momento que não pode

ser apreendido, uma intuição que impulsiona diferentes percursos, movimentos que surgem

sempre novos, um início que não tem início e nem fim, uma sucessão de interferências que

alteram as rotas previstas. As inquietações e produções de Marcel Duchamp como pano de

fundo de alterações e perturbações que reverberam em todos os cantos favorecem a

compreensão de uma abordagem estética que prevê a experiência.

11

AGUILAR, Gonzalo, 2008, p.7 in ―Viaje a la ciudad de la quarta dimensión‖. Original: ―investigar las

relacionesde la percepción del espacio físico con el deseo, la volición, la intuición y el entendimiento.‖ Tradução

nossa. 12

AGUILAR, Gonzalo, 2008, p.7 in ―Viaje a la ciudad de la quarta dimensión‖. Texto original: ―reflexión sobre

el estatuto del espectador en un arte que ya no se rige por las leyes de la perspectiva tridimensional y el afán de

la representación, sino que procura conseguir un nuevo espacio, cuatridimensional y mental antes que físico.‖

Tradução nossa.

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As primeiras perturbações e desconfortos provocados nos espectadores por Duchamp

reverberam e cruzam práticas, procedimentos, artistas e propostas. Retornam destacando que

o fundamental não pode ser visto e nem mesmo medido. O motor que aciona a obra aciona a

vida. Uma toca na outra e entre loopings eis que o evento artístico se dá. A obra se abre,

transborda e atravessa lugares enquanto se constitui como quarta dimensão e experiência

estética.

Movimento 4: experiência, estética, relação

Em alguns instantes antes da apresentação do próximo movimento questiono-me sobre

possíveis modos de participação do espectador no contexto do fenômeno da arte. Será que

todo modo de interação pressupõe um contato físico? É possível mobilizar e tocar sem que

dois corpos se aproximem fisicamente? Em quais condições é criado um terreno no qual os

espaços individuais se dissolvem dando lugar a um campo compartilhado de relações?

Quando as molduras, as quartas-paredes e os pedestais se rompem favorecendo o

acontecimento da obra no mundo? Quando sujeito e objeto se afetam?

Falar de relação é falar de experiência, de estética. Neste ponto fundamento alguns dos

pensamentos subjacentes aos vínculos que se pretende criar entre espectador e obra no

contexto dos questionamentos levantados pelas vanguardas, sobretudo pelo Dadaísmo e por

Marcel Duchamp. É importante ressaltar ainda que tais referências de movimentos e rupturas

de vanguarda aparecem aqui como ambientes que dialogam com as práticas das artistas Lygia

Clark e Pina Bausch, e não como lugares que inauguram pensamentos inéditos. O que

interessa é a fissura, a abertura apontada pelas transformações das ações de vanguarda que

irão reverberar nos trabalhos e práticas das artistas em questão.

A experiência

Localizo os movimentos e ambientes de interação propostos no contexto da estética e da

experiência. Para tanto, trarei inicialmente apontamentos sobre a experiência, como questão

estética discutida a partir do pragmatismo.

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Entre os pioneiros da escola filosófica americana conhecida como pragmatismo estão os

pensadores Charles Peirce (1839-1914), William James (1841-1910) e John Dewey (1859-

1952).

Para iniciar essa discussão é interessante partir das propostas levantadas pelo filósofo

americano John Dewey (1859-1952) quanto à experiência. O autor propõe que ela pode ser

geral ou estética, que pode acorrer tanto no cotidiano quanto em situações de produção de

arte. A experiência, deste modo, não se volta a um objeto, mas a uma atividade da própria

percepção. E segundo Dewey (1974), um dos inimigos do estético é a submissão à convenção

nos procedimentos práticos e intelectuais. A experiência estética implica uma reconstrução do

supostamente conhecido. Há movimento e mudanças constantes. E nas palavras do autor: ―a

experiência constitui-se de um material cheio de incertezas, movendo-se em direção a sua

consumação através de uma série de variados incidentes.‖ (DEWEY, 1974, p.253). E ainda:

Não é a experiência que é experienciada, e sim a natureza – pedras, plantas,

animais, doenças, saúde, temperatura, eletricidade, e assim por diante. Coisas

interagindo de determinadas maneiras são a experiência; elas são aquilo que é

experienciado. (...) Portanto, a experiência avança para dentro da natureza; tem

profundidade. É também dotada de largura infinitamente elástica. Estira-se. Esse

estirar-se constitui a inferência.‖ (DEWEY, 1980, p.163)

Para o autor, é importante abordar a experiência estética como o próprio e o único

método para atingir a natureza, penetrar seus segredos, e o lugar no qual a natureza, revelada

empiricamente, aprofunda, enriquece e dirige o desenvolvimento posterior da experiência

(DEWEY, 1980).

Neste contexto, experiência e natureza convivem harmoniosamente juntas, e segundo

Dewey:

A experiência, se a investigação científica se justifica, não é alguma camada

infinitamente fina ou um primeiro plano da natureza, mas penetra dentro dela,

atingindo suas profundezas, e de maneira tal que seu apoderar-se é capaz de

expansão; constrói túneis em todas as direções, e ao fazê-lo traz à superfície coisas

anteriormente ocultas – tal como os mineiros amontoam sobre a superfície da terra

tesouros trazidos do subsolo. (DEWEY, 1980, p.162)

Contudo, existem condições que atuam como facilitadoras de experiências estéticas.

Levando-se em conta que toda experiência ocorre na interação entre uma criatura viva e

algum aspecto do mundo no qual ela vive, a adaptação mútua do sujeito e do objeto em

determinada ação anuncia um processo em vias de tornar-se uma experiência estética. Nesta

trajetória, ação e consequência devem estar juntas, assim como acontece no ato perceptivo.

Assim:

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(...) se imaginarmos uma pedra, a qual esteja rolando por uma colina, para ter uma

experiência. (...) A pedra parte de algum lugar, e movimenta-se, conforme o

permitam as condições, para um lugar e para um estado onde possa permanecer

imóvel – para um fim. Agreguemos, pela imaginação, a tais fatos externos, as

ideias de que a pedra olha para diante desejando um resultado final; que se

interessa pelas coisas que encontra pelo caminho, condições que aceleram e

retardam seu movimento em relação a seu término; que atua e sente com respeito a

elas de acordo com a função de impulsioná-la ou detê-la que lhes atribua; e que a

chegada final ao repouso seja relacionada com tudo o que aconteceu antes

enquanto a culminância de um movimento contínuo. Então a pedra teria uma

experiência, e dotada de qualidade estética. (DEWEY, 1974, p.250)

A experiência estética, deste modo, relaciona-se diretamente com a ação, com o ato. Ato

como evento que assume interferências, pausas e suspensões. Ação que não se limita à

repetição ou a uma atividade mecânica. Uma ação que acontece enquanto padrões se

desfazem. A percepção é assumida em seu próprio ato. Percepção que se distingue de

reconhecimento, já que reconhecer prevê uma antecipação de uma possível ação ou

experiência. Quando há o reconhecimento há também um esquema previamente organizado.

Reconhecimento é a percepção detida antes que esta tenha oportunidade de desenvolver-se

livremente, segundo Dewey (1974). A arte neste contexto assume-se como ato, ação,

movimento e experiência estética.

Neste ponto, seria possível discorrer sobre a postura reforçada por Jorge Larrosa

Bondía13

, ao afirmar:

Começarei com a palavra experiência. Poderíamos dizer, de início, que a

experiência é, em espanhol, o que nos passa‖. Em português se diria que a

experiência é ―o que nos acontece‖; em francês experiência seria ―ce que nous

arrive‖; em italiano, ―quello che nos succede‖ ou ―quello che no accade‖; em

inglês, ―that what is happening to us‖; em alemão, ―was mir passiert‖. A

experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se

passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas,

porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ía que tudo o que se

passa está organizado para que nada nos aconteça. (LARROSA, 2001, p.21)

Esta abordagem apreende na palavra experiência os vestígios de uma compreensão que a

situa em um território de passagem, uma zona de encontros, de aproximações e

agenciamentos onde a experiência se distingue da informação. Receber ou dar uma

informação não corresponde necessariamente ao ato de promover uma experiência.

Experienciar, segundo Larrosa, requer suspensões, pausas, silêncios, (...)

13

* Conferência proferida no I Seminário Internacional de Educação de Campinas, traduzida e publicada, em

julho de 2001, por Leituras SME; Textos-subsídios ao trabalho pedagógico das unidades da Rede Municipal de

Educação de Campinas/FUMEC. In Revista Brasileira de Educação.

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requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar,

olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar,

demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a

vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir

os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar

aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e

espaço. (LARROSA, 2001, p.24)

Assim, algo acontece e algo se transforma. No desdobramento de um evento – que não

se limita a um campo ou área determinada - acorre a experiência investigada nesta

dissertação. Ela é um acontecimento complexo que implica no cruzamento de diferentes

conceitos, práticas e teorias que neste estudo está centrado na questão do espaço que emerge

como manifestação de interconexões entre espectador e obra. O espaço metafórico é superado

e um espaço de trânsitos e contatos é inaugurado.

A experiência, nesta esfera de inter-relações, altera o vetor de uma situação. Sua

característica fundamental é a reconfiguração de hábitos a partir de propostas que incitam

alterações, mudanças nas relações e nas configurações.

A estética, a relação

O pensamento aqui apresentado levanta questões relativas à aisthesis, como meio das

relações que se estabelecem entre o mundo e o sujeito – aqui escolhido como o espectador -

os modos como a percepção cria as intermediações entre o interno e o externo, e como a

consciência é afetada pelas informações fornecidas pelas sensações, afetos e emoções.

A estética, como domínio da ciência e do conhecimento, tem origem na segunda metade

do século XVIII e o filósofo alemão Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762) é

considerado uma espécie de fundador desta disciplina filosófica. A partir dele a estética reúne

distintos campos do conhecimento e passa a se situar num âmbito que congrega conceitos

como os de obra de arte, percepção e beleza. Tais conceitos, que pertenciam a distintos

domínios, aparecem como variantes de um mesmo fenômeno – o fenômeno estético.

A estética proposta por Baumgarten propicia e avalia a produção de conhecimento, seu

grande interesse de estudo. Sua zona de ação abrange aspectos sensíveis, como percepção e

faculdades racionais.

Antes de escrever ―Aesthetica‖, entre 1750 e 1758, o filósofo propôs a ―tese de que o

campo da lógica deveria ser ampliado por uma estética, que incluiria, como objeto, a res

sensitive cognoscendae, ou a coisa cognoscível sensitivamente.‖ (KIRCHOF, 2003, p.25).

Contudo, a configuração do pensamento sensível foi, por algum tempo, obscura e esteve

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condicionada à superação a partir de uma lógica racional. Somente após inúmeros ajustes e

modificações em suas abordagens é que ele sugere uma visão mais abrangente sobre a

percepção e a sensibilidade, incluindo o não-racional nos processos cognitivos humanos.

Assim, suas colocações podem ser apreendidas:

Baumgarten, contrariando a tendência predominante em sua época, investe sobre a

percepção de um valor cognitivo positivo, concebendo a estética como disciplina

que propicia e avalia a produção do conhecimento desde o seu lado sensível, dado

pela percepção, até o seu lado lógico, avaliado pelas faculdades racionais. De forma

simplificada, pode-se dizer que o lado perceptivo do conhecimento corresponde,

para Baumgarten, àquelas impressões que possuímos dos objetos antes de

formularmos o seu conceito. (KIRCHOF, 2003, p.147)

A arte e o belo eram compreendidos, antes de Baumgarten, como técnica e concepção

moral, respectivamente, conforme indicação de Edgar Roberto Kirchof (2003). A integração

de diferentes aspectos para a discussão do fenômeno estético cria uma área de conhecimento

que, paralela ao pensamento cartesiano e lógico, sugere brechas para a discussão do sensível.

Ela indica uma capacidade primordial do ser humano de sentir a si próprio e ao mundo

num todo integrado, como anuncia o autor João Francisco Duarte Júnior (2001). Ela restitui o

conhecimento sensível e é contra o privilégio tradicionalmente concedido ao conhecimento

conceitual, conforme anuncia Hans Robert Jauss (1979):

Enquanto experiência estética receptiva básica, a aisthesis corresponde assim a

determinações diversas da arte: como ―pura visibilidade‖ (Konrad Fiedler), que

compreende a recepção prazerosa do objeto estético como uma visão intensificada,

sem conceito ou, através do processo de estranhamento (Chklovski), como uma

visão renovada; como contemplação desinteressada da plenitude do objeto‖ (Moritz

Geiger); como experiência da ―densidade do ser‖ (J-.P. Sartre); em suma, como

―pregnância perceptiva complexa‖ (Dieter Henrich). (JAUSS, 1979, p.101)

Entretanto, por um longo período a estética esteve vinculada às qualidades relativas ao

objeto ou à obra da arte, como aconteceu no Renascimento, quando os aspectos formais e

analíticos estipulavam valores e padrões artísticos. Neste momento, cabia ao espectador uma

função muito mais analítica e orientada pelos valores constituídos do que o exercício da

percepção e da sensibilidade. A obra de arte ocupava uma área delimitada por regras e

parâmetros tão claros quanto os limites construídos entre esta e o público.

Referências da fenomenologia podem ser aqui apontadas como pensamentos e conceitos

que se articulam com propostas de vanguarda. Procedimentos que procuram superar os

binômios dicotômicos anunciados acima e típicos dos ambientes onde obra e espectador são

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considerados como eventos distintos. Parece-me pertinente então levantar breves

considerações sobre aspectos fenomenológicos da questão, como modo de exemplificar

pensamentos e reflexões que se propõem romper modelos pautados pelas dicotomias.

A fenomenologia, que tem sua origem no início do século XX com o filósofo alemão

Edmund Husserl (1859-1938), traz como principal alvo um retorno ao homem em suas

relações imediatas com as coisas, com o mundo, com o entorno e consigo próprio. A

alternativa fenomenológica não aparece como um método, mas como uma atitude frente aos

eventos da vida. Nas considerações de Maurice Merleau-Ponty, os alvos de interesse são: a

essência que se esconde por detrás da aparência e os atos praticados, como o da percepção,

que são em si a própria consciência sobre as coisas. Tal abordagem prevê ainda o corpo como

lugar da percepção, do sentido e da experiência. E nas palavras do autor:

A experiência revela sob o espaço objetivo, no qual finalmente o corpo toma lugar,

uma espacialidade primordial da qual a primeira é apenas o invólucro e que se

confunde com o próprio ser do corpo. Ser corpo, nós o vimos, é estar atado a um

certo mundo, e nosso corpo não está primeiramente no espaço: ele é no espaço‖

(MERLEAU-PONTY, 1999. p.205)

A percepção, deste modo, manifesta-se como evento de corporeidade, como relação

estabelecida, e não como uma representação analítica e racional. Merleau-Ponty critica a

supremacia da razão e anuncia que o conhecimento do mundo se dá através de experiências

que desenham continuamente um novo corpo. Corpo este que aparece como o próprio lugar

do conhecimento.

Um outro nome da fenomenologia é Martim Heidegger, que aparece no contexto desta

pesquisa por conta das suas considerações sobre a percepção como acontecimento e não como

faculdade do homem. ―A percepção não é um modo de comportar-se, que o homem possui,

como uma propriedade. Muito pelo contrário: a percepção é o acontecimento, que possui o

homem.‖ (HEIDEGGER, 1978, p.165).

Sob este enfoque e reconhecendo o conhecimento do mundo como superação de

categorias dicotômicas, é possível vislumbrar aproximações entre pontos da fenomenologia e

a noção de estética em seu sentido mais original. Assim, segundo João Francisco Duarte

Júnior, a experiência estética seria um vibrar em comum, sentir em uníssono, experimentar

coletivamente e colocar-se face a face com os estímulos do mundo.

A experiência estética pode então assim ser comparada com a seguinte situação:

movimentar-se através de brechas, de aberturas e lugares que oferecem novos acessos àquilo

que se supõe conhecer. Deparar-se com o conhecido e encontrar o novo em novas abordagens

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33

e relações. Experimentar o mundo como pela primeira vez, quando o entorno interfere na

apreensão e incorporação do conhecimento.

A arte, nesta acepção, é um ―estado de encontro‖, conforme a noção do crítico Nicolas

Bourriaud, e um espaço de produção e troca que dá testemunho das efêmeras relações com o

outro. Assim, ele ratifica sua abordagem fenomenológica da estética relacional. Tais

encontros tendem a transformar as relações com o entorno e possibilitar experiências que

desestabilizam padrões de interação e movimentos. Padrões estes que de algum modo

anestesiam os sentidos. O tecido conectivo proposto pela estética que investe em relações que

não se fundamentam em regras e padrões vigentes é um lugar de passagem onde se negociam

trocas, deslocamentos, contaminações e agenciamentos.

Movimento 5: Arte como experiência estética ou “um mundo sem vis-à-vis”

Ainda na abordagem da arte enquanto experiência estética e relação é possível citar

procedimentos recorrentes em pensamentos e práticas orientais que dialogam com o objeto

desta pesquisa, favorecendo a visualização de campos que se fundamentam em condições nas

quais obra e espectador se aproximam.

Para levantar algumas considerações sobre essa abordagem serão considerados

apontamentos do músico e compositor Hans-Joaquim Koellreutter (1915-2005) a partir da

troca de cartas com o músico japonês Satoshi Tanaka, no livro ―Estética: à procura de um

mundo sem vis-à-vis‖. Uma das principais questões levantadas já no início das

correspondências trata de expor contextos ideológicos e estéticos do Oriente e do Ocidente.

Para tanto, Takana sugere o desenho das condições que diferem as relações ocidentais e

orientais a partir da imaginação de uma superfície, metáfora para a compreensão de um

terreno de relações e engajamentos no mundo. Tal superfície, sob o ponto de vista da estética

ocidental, tende a se relacionar com um ponto deslocado e situado logo acima da mesma.

Takana descreve a imagem do seguinte modo:

Imaginemos um ponto colocado acima dessa superfície, sem ter com ela qualquer

ligação direta. Esse ponto representa o Absoluto. Enquanto o ocidental, de alguma

maneira, tende a ligar a superfície com esse ponto, o japonês prescinde disso.

(Koellreutter, 1983, p.14)

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Nesta imagem estão sugeridas analogias que procuram viabilizar a compreensão de

diferenças que estão na base dos procedimentos estéticos orientais e ocidentais. O oriental

localiza-se na superfície e é de lá que estabelece seus vínculos. Ele não consegue visualizar o

Absoluto, o ponto acima da superfície, e se compreende num plano bidimensional em que

tudo é relativo e depende do ponto de vista. Neste contexto não há separação. O ocidental, em

oposição, se dirige ao Absoluto e assim se separa, analisa e constrói sistemas de apreensão. A

não separação oriental inclui e aproxima. Arte e vida não estão separadas e são consideradas

―caminho‖, do vocábulo japonês ―Dô‖. Assim ―sa-dô‖ é traduzido como cerimônia do chá, e

―ka-dô‖, arranjo de flores. Tais práticas não são consideradas como arte no sentido isolado do

movimento da vida, mas sim como ―caminhos‖, um caminho para filosofar e viver. Portanto,

as relações do oriental com a arte parecem se dar de modo imediato e direto. Ao contrário da

relação do ocidental, que passa pelo contato tridimensional com o Absoluto.

Dos agenciamentos possíveis, os orientais constroem elos que se fazem no contato com

seus pares e com o entorno. E somente quando este elo se rompe ele se sente isolado. No caso

dos ocidentais, os indivíduos estão na superfície e isolados, cada um conectado ao seu

Absoluto, ou ao seu Deus. Os elos são construídos em relação ao Absoluto e não em relação

ao outro.

Neste ponto é possível destacar apontamentos no texto de Tanaka sobre aspectos

negativos que podem se fazer nessa conexão oriental e bidimensional. Uma das questões é a

dificuldade dos japoneses em se distanciar dos objetos que não são próprios da sua cultura e

criticá-los de modo objetivo. O déficit de crítica anuncia também uma falta de auto-

conhecimento. O japonês não se defronta verdadeiramente com outras culturas porque

facilmente se entrega a elas, se mistura, se relaciona sem o auxílio de um ponto de fuga que o

auxiliaria na visualização do contexto. A não visualização do outro parece demonstrar então a

não visualização de si.

Levando-se em conta os prós e contras de qualquer sistema relacional e operacional

vigente, como os acima mencionados, esta investigação se situa num intervalo em que

premissas e movimentos orientais e ocidentais se encontram, daí nascendo uma variedade de

pensamentos e ações. O estatuto da arte sob esse viés e suas áreas com limitações claras e

visíveis se entrelaçam e anunciam um campo estendido. Campo este que supera o pensamento

ocidental e dualista no qual objeto e sujeito tendem a ser entendidos como realidades de

distintas naturezas.

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Tais considerações lançam as bases para uma reflexão estética que não pretende

formatar ou delimitar zonas, como Ocidente e Oriente, mas sim fomentar uma discussão que

admite distintas possibilidades de agenciamentos do sujeito com a vida e com a arte, e

diferentes vínculos entre obra e espectador.

Ao se fazer nos eventos diários, a arte não se isola em um espaço destinado a sua

execução e ainda promove constantes encontros com o sujeito, seja ele artista ou espectador.

O espaço entre obra e espectador aparece como um lugar de conexões e vínculos. Neste

contexto, a obra é sugestão de relação e contato.

Contatos entre Ocidente e Oriente provocam alterações em noções e conceitos.

Vestígios de uma zona conhecida pela orientação geográfica como oriental irão influenciar e

reverberar em diferentes direções.

Movimento 6. Interferências: Oriente e Ocidente

Ainda sobre as interferências e trocas entre Ocidente e Oriente, é possível dizer que em

diversos momentos da História da zona ocidental do mapa-mundi, e mais precisamente das

regiões que se somam e compõem aquilo que conhecemos como Continente Europeu,

ocorreram contaminações que alteraram profundamente padrões e referenciais. Tais alterações

não foram e não são privilégio deste continente. Contudo, o interesse aqui é mapear e

localizar interferências que parecem ter provocado a agitação de uma grande placa tectônica

no campo das artes no Ocidente. Bases se alteram, o chão conhecido se rompe e um novo

paradigma encontra solo para o seu desenvolvimento. Configura-se aqui um momento da

História no qual processos de transformação alteram eixos e referenciais daquilo que se

conhece como Arte.

No que se refere à arte contemporânea ocidental ou aos movimentos de vanguarda, é

possível relacionar o campo em expansão que surge vinculando obra e espectador às

influências de princípios como os de unidade, silêncio, vazio e fluxos espontâneos, originários

de práticas como o Zen Budismo e o Taoísmo, principalmente. Tais princípios trouxeram ao

contexto ocidental fundamentações que pretendiam romper com regras e esquemas binários e

dualistas.

As coordenadas referentes às tendências ocidentais costumam se basear em princípios

como a racionalização, o acúmulo, a informação, a categorização e a formatação de esquemas

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dualistas, como dentro e fora, eu e mundo, claro e escuro, matéria e espírito, céu e terra e

corpo e alma. Neste contexto, a tendência é compreender o mundo como espaço distinto e

localizado fora do sujeito. Fronteiras e limites separam sujeito e objeto, aquele que observa e

aquele que é observado. E assim nasce uma dicotomia decisiva no pensamento ocidental – o

dualismo. A natureza é percebida como algo exterior e o distanciamento da consciência do

sujeito permite a ordem do pensamento. O sujeito age sobre a natureza e a controla. Nesse

molde, o método é dualista e impõe uma clara separação entre o dentro e o fora, entre corpo e

espírito, entre alma e matéria.

Muitas correntes orientais se fundamentam, ao contrário, em princípios do Taoísmo –

tendência do pensamento chinês que dá ênfase à sabedoria intuitiva, à espontaneidade e à

harmonia com a natureza. O Taoísmo caracteriza-se pela ideia de complementaridade entre as

coisas, unidade e caminho, como ordem ou movimento natural. Tais princípios, de algum

modo, se aproximam da dialética, filosofia que procura compreender o permanente

movimento das coisas em suas relações históricas, ambientais e materiais. O estudo dos

fenômenos naturais e do pensamento, neste contexto, são processos em constante

transformação. A realidade, sob este ponto de vista, é matéria em movimento. A dialética

parece ter suas raízes na Grécia Antiga, quando a natureza era vista como um todo, já que os

gregos, neste período, não possuíam recursos que permitissem a análise dos fenômenos em

partes separadas. A dialética admite relativizações, contradições e mudanças. Nas palavras do

filósofo grego Heráclito: ―nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos.‖

(HERÁCLITO, 1973, p.90).

E neste ponto, e na ruptura de padrões dualistas, é possível apontar ainda procedimentos

da psicanálise, a física relativista e o materialismo dialético, que procuram compreender o

mundo a partir das condições apresentadas, da integração, da relação e do movimento. Daí é

possível mencionar o pensamento complexo proposto pelo filósofo francês Edgar Morin. A

percepção da impossibilidade de se compreender o universo apenas como ordem, trouxe ao

pensamento ocidental uma complexidade anticartesiana, que não exige a distinção e a clareza

como princípios de verdade. O pensamento complexo não isola os objetos uns dos outros, mas

antes sugere processos de interação que, pautados no ―princípio dialógico, permitem manter a

dualidade no seio da unidade. Associa dois termos ao mesmo tempo complementares e

antagônicos.‖ (MORIN, 2005, p.107). Como aponta Edgar Morin:

A própria ideia de complexidade comporta em si a impossibilidade de unificar, a

impossibilidade da conclusão, uma parcela de incerteza, uma parcela de

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indecidibilidade e o reconhecimento do confronto final com o indizível. (MORIN,

2005, p.96)

Contudo, o intuito aqui não é discorrer sobre especificidades orientais ou ocidentais,

mas sim apontar estímulos que podem dialogar com questões atuais e referentes às práticas e

às escolhas estéticas contemporâneas.

Frente às breves considerações acima mencionadas sobre aspectos e tendências do

Ocidente e do Oriente é importante que os trânsitos e as trocas apontem os movimentos

curvos e não lineares que relacionam pontos de um e de outro lugar.

As perguntas ―Qual a função da arte?‖, ―Quais as coordenadas que indicam o

acontecimento ou não de uma ação artística?‖ e ―Um acontecimento artístico pode coincidir

com uma experiência estética?‖ são alguns dos questionamentos que, já no início do século

XX, no contexto europeu, indicam desestabilizações de padrões coordenados por uma lógica

dualista - que tende, por exemplo, a separar arte e vida e obra e espectador. São então

oferecidas novas possibilidades de fundamentação do terreno das artes. Em um compasso que

prevê a superação de limites entre áreas delimitadas a esta ou aquela linguagem e ao lugar

restrito da arte ou da vida, rupturas anunciam um novo espaço formado na relação e no

processo artístico.

Movimento 7: O espectador: que sujeito é esse? Ou que espectador é esse que afeta e é

afetado?

A partir das indicações e das reflexões propostas até aqui é possível apresentar uma

noção de espectador que coincide com a concepção de um sujeito que é constituído no

decorrer e no desenvolvimento do evento artístico. Um sujeito que não está preso a uma

identidade, mas antes em construção e em experiência. Que não é uma unidade independente

ou ponto fixo e que pode ser apresentado como espaço de trânsito e fluxo que sofre

perturbações e transformações continuamente.

O sujeito aqui investigado é de difícil localização. É um sujeito que se faz ao se

desfazer. Entretanto, seguirei buscando novas pistas.

A partir de considerações da psicanálise, as transformações na concepção do sujeito

estão diretamente relacionadas aos cruzamentos entre o sujeito e o espaço, de acordo com

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Tania Rivera (2007)14

. A autora aponta dois importantes episódios que incentivam alterações

decisivas no que se refere à noção de sujeito. O primeiro é quando Sigmund Freud (1856-

1939) desaloja a razão e a consciência afirmando que ―o eu não é mais senhor em sua própria

casa‖ (FREUD, 1917/1944, p.295 apud RIVERA, 2007). Com isso, a dinâmica do

inconsciente desestabiliza o lugar que o eu supunha habitar. O espaço do eu, ou do sujeito,

não é mais o lugar fixo, a casa conhecida e construída. Há lugares desconhecidos, espaços

móveis, áreas em constante transformação. O sujeito já não domina o espaço, ele se confunde

com esses lugares em determinados momentos. O segundo episódio é anunciado por Jacques-

Marie Émile Lacan (1901-1981) no ―divórcio existencial onde o corpo desmaia na

espacialidade‖ (LACAN, 1960/1966a, p.681apud RIVERA, 2007). O espaço aqui deixa de ser

uma categoria e se torna um elemento despercebido, instável e imprevisível que se molda de

acordo com os atos praticados. Neste momento surge o espaço como desdobramento do

sujeito. Sujeito este que é corpo em movimento e em interação.

Como observamos no tópico anterior, pode-se perceber que o desdobramento do sujeito

admite mobilidades e trânsitos que apontam formatos múltiplos, descentrados e nômades para

a subjetividade. Este caráter móvel e transitório do sujeito, e consequentemente da

subjetividade, promove uma ruptura com a concepção clássica do espaço. Há um

―rompimento com o esquema da perspectiva fazendo com que o sujeito fixo, olho central que

organizava, saia de repente a perambular por aí.‖ (RIVERA, 2007).

E é justamente neste ponto que aparece o sujeito ou o espectador referido nesta

dissertação. O sujeito que está a perambular, que não está fixo em um ponto, mas em

constante movimento no âmbito do fenômeno artístico. Movimento este que pressupõe a

interação – deslocamentos que ultrapassam as bordas daquilo que pode ser visto. Transitar,

provar e experienciar sem que um discurso intelectual oriente as compreensões que agitarão o

corpo. Deixar-se afetar, permitir-se atravessar um espaço que não está delimitado pela

representação, pela imagem fixa, mas que apresenta fissuras e passagens que incentivam o

contato, a presença e o toque, que aproximam arte, vida, sujeito, objeto e espaço. Pois, de

acordo com Rivera (2007): ―Divorciado do espaço, o sujeito não tem mais casa. Recolocado

no interior da geometria que ele antes sustentava como que de fora, inquestionado, ele

cambaleia e põe a girar, a oscilar o próprio espaço.‖

14

Tania Rivera é psicanalista e professora da UnB. Doutora em Psicologia pela Université Catholique de

Louvain. Pós-doutorado em Artes Visuais (EBA-UFRJ). Pesquisadora do CNPq. Autora do artigo ―Ensaio sobre

o espaço e o sujeito. Lygia Clark e a Psicanálise.‖ Ano: 2007

Localização:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S151614982008000200004&lng=en&nrm=

iso. Acesso: 31/04/2011.

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Este sujeito pode ainda ser aproximado da noção de ―sujeito da experiência‖, de Larossa

(2001). A partir das considerações do autor, o sujeito aparece como um lugar, uma superfície

sensível e porosa que é afetada, que se transforma e que está aberta às interferências do meio.

Sujeito este que se constitui pelas suas conexões, engajamentos e disponibilidades para com o

entorno. Larrosa contextualiza o sujeito da experiência em sua passividade, receptividade e

abertura. Contudo, tal passividade não se vincula à dualidade de agente e paciente sugeridas

pelo pensamento cartesiano e analítico, mas à uma disponibilidade primeira e fundamental.

Esse sujeito/espectador que surge, inicialmente, nas inquietações da psicanálise pode ser

encontrado ainda junto às concepções de subjetividades nômades que apontam o corpo como

superfície e campo de reverberação e interação. Um corpo não limitado pelas fronteiras da

pele, mas que se expande, se contrai e se constitui enquanto vaga pelo espaço. Assim, surge

um corpo que interage e aproxima observador e observado. Do olho para o olhar. Do objeto e

do sujeito para a relação. Nessa superação de dicotomias o espectador é incluído na

experiência artística, o que convém dizer que sua participação coincide com as reverberações

que acontecem em seu corpo. O campo de ação da obra se amplia e o corpo do espectador se

torna lugar por onde transitam cheiros, texturas, toques, sons e memórias que alterarão a

percepção e a configuração do espaço. O acontecimento da arte, neste contexto, parece

coincidir com a alteração de trajetos conhecidos e previstos, estimulando a experiência de

movimentos particulares que aproximam obra e espectador.

Nesta abordagem, que prevê a discussão sobre os movimentos e os trânsitos que

parecem configurar espaços e eventos entre obra e espectador, pode ser incluída a noção de

matéria definida pelo filósofo Henri Bergson (1859-1941).

Para o filósofo, matéria é como um conjunto de imagens. As imagens, por sua vez,

podem ser entendidas como uma existência situada entre a ―coisa‖ e a ―representação‖. Para o

senso comum, a ideia de imagem costuma coincidir com a ideia de objeto, como algo que

existe independentemente da percepção e que constitui por si próprio uma imagem.

Entretanto, para Bergson (2010), é falso reduzir a matéria à representação que temos dela. O

modo como percebemos é um trajeto particular de construção de imagens. Imagens que

nascem então da relação que estabelecemos com algo.

É possível afirmar ainda que a representação de uma imagem não é o conhecimento

total que se tem dela. O conhecimento primeiro, ou o contato primeiro com a matéria – que é

um conjunto de imagens – acontece mediante afecções, o que supõe a presença e ação do

corpo em um processo complexo. De modo que a imagem que meu pensamento conhece,

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muitas vezes abstrata, não coincide com o conhecimento que o meu corpo tem sobre ela.

Chego assim à questão da ação e da interação.

A interação diz respeito à noção de movimento real. Tal movimento se constitui como

uma qualidade ou sensação em vibração e em desenvolvimento num número incalculável de

eventos. E o movimento não é aquele estudado pela física ou pela mecânica, como são os

símbolos ou as abstrações. Mas sim o movimento que acontece em estreita relação com o

espaço. Bergson (2010) sugere, portanto, a noção de um movimento real, que é o movimento

considerado nele mesmo e vibrando em suas qualidades. E, neste contexto, é possível dizer

que a matéria converte-se assim em inumeráveis estímulos, todos ligados numa continuidade

ininterrupta, todos solidários entre si, e que se prolongam em todos os sentidos como

tremores. (BERGSON, 2010, p.245). E a experiência do movimento real poderia ser assim

apresentada: ―Vale dizer que toco a realidade do movimento quando ele me aparece,

interiormente a mim, como uma mudança de estado ou de qualidade.‖ (BERGSON, 2010,

p.229-230).

O movimento real de Bergson não coincide com a abstração ou o símbolo, tais como

são estudados pela física ou pela mecânica, mas sim com um deslocamento que acontece à

medida que as interferências e as sensações acontecem. Deste modo, a ideia da existência de

um mundo exterior a nós é transformada na compreensão de um mundo criado por

movimentos reais, que não são dissociados das sensações, e que são os grandes responsáveis

pela construção dos espaços que conhecemos. O mundo existe à medida que eu me relaciono

com ele, à medida que o movimento coincide com a sensação.

Neste contexto, tende a ser superada a descontinuidade que separa as coisas e os

objetos uns dos outros, como aponta e estabelece o senso comum. Contudo, vale a pena

lembrar que, de acordo com Bergson (2010), tal descontinuidade que se manifesta nas

separações e distinções entre uma coisa e outra é um dos mecanismos de manutenção da vida.

Como exemplo, é possível dizer que o reconhecimento do próprio corpo e dos demais, como

unidades que se relacionam, favorece aproximações e afastamentos em diferentes situações.

Um corpo em sua busca por comida deve reconhecer seu alvo e se aproximar. Um corpo num

ambiente hostil deve reconhecer os corpos que supõem ameaças para poder se proteger ou

fugir. E é deste modo que a descontinuidade criada pela própria vida atua como um

mecanismo de proteção da espécie. Entretanto, tal necessidade fundamental da vida – de

reconhecimento do outro como evento, até certo modo, independente - não coincide com os

processos de interação ou conhecimento. Como questiona e discorre Bergson:

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(...) se essa primeira subdivisão do real corresponde muito menos à intuição

imediata do que às necessidades fundamentais da vida, como se obteria um

conhecimento mais próximo das coisas levando a divisão ainda mais longe? Deste

modo prolongamos o movimento vital; viramos as costas ao conhecimento

verdadeiro. (...) Tal operação representa, com efeito, uma forma usual da ação útil,

indevidamente transportada ao domínio do conhecimento puro. (BERGSON, 2010,

p. 233)

Deste modo, é importante lembrar que as leis que favorecem a sobrevivência não devem

ser comparadas ao domínio do conhecimento ou ao modo como o corpo se relaciona com seu

ambiente, já que este processo é fundamentado numa sucessão de fenômenos que não podem

ser separados das relações com o entorno.

Que existem, num certo sentido, objetos múltiplos, que um homem se distingue de

outro homem, uma árvore de outra árvore, uma pedra de outra pedra, é

incontestável, uma vez que cada um desses seres, cada uma dessas coisas tem

propriedades características e obedece a uma lei determinada de evolução. Mas a

separação entre a coisa e seu ambiente não pode ser absolutamente definida; passa-

se por gradações insensíveis, de uma ao outro: a estrita solidariedade que liga todos

os objetos do universo material, a perpetuidade de suas ações e reações recíprocas,

demonstra suficientemente que eles não têm os limites preciosos que lhes

atribuímos. Nossa percepção desenha, de certo modo, a forma de seu resíduo; ela o

delimita no ponto em que eles cessam, consequentemente, de interessar nossas

necessidades. (BERGSON, 2010, p.246)

Aqui pontuo o foco de interesse desta dissertação – a abordagem da ação, da relação, da

interação e do movimento como continuidade, como ato que não está separado do trajeto e

nem mesmo do espaço.

Henri Bergson (2010) localiza esses processos de interação com o entorno na memória,

registro de qualidades sensíveis que acontecem enquanto o corpo se relaciona. E seguindo

este pensamento, a percepção parece coincidir com toques e deslocamentos de memórias.

Qualidades sensíveis são acessadas a partir de movimentos reais, que não acontecem num

mundo exterior, mas na relação do corpo com o ambiente. Movimentos que não podem ser

mensurados, mas apenas experienciados em intervalos nos quais o corpo percebe, interage e

move memórias criando novos fluxos de imagens e alterando a matéria.

E é nesse constante trânsito que provoca alterações e solicita o corpo como lugar de

acontecimento que devemos nos concentrar para dimensionalizar o trabalho de Lygia Clark e

o de Pina Bausch, uma vez que ambas propuseram novas relações para as interações com o

espectador. As práticas e movimentos aqui destacados foram influenciados por tendências

filosóficas que compreendem o evento como uma sucessão de relações que não estão fechadas

em si, mas que dialogam com o ambiente e superam classificações e divisões. Princípios

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fundamentais da vida, da natureza, entram em diálogo com procedimentos artísticos que

dirigem sua atenção para a ação do espectador como ponto principal do fenômeno artístico.

O espectador no contexto aqui apresentado coincide com o sujeito da experiência

artística. Experiência que neste caso está pautada nos vínculos entre espectador e obra.

Entretanto, o espectador aqui investigado está inserido numa ação que pretende superar os

limites entre obra e público e sujeito e objeto. Este é o sujeito da experiência, que se constitui

no ato, no acontecimento da arte. Desse toque que desfaz sujeito e objeto como unidades

independentes surge um espaço ou ambiente no qual o espectador é acionado em suas

faculdades perceptivas e sensoriais. Pretende-se ativar os sentidos para além do discurso

formal e dos padrões já conhecidos. O espectador transita por zonas de indeterminação que

estimulam percepções e movimentos que o incluem no acontecimento da arte como um

participante ativo. O que há entre obra e espectador é uma tensão particular que aciona a

percepção, a sensação e a participação no evento artístico. O espaço, neste contexto, é

redimensionado e os sentidos são estimulados para novas relações.

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43

ATO 2 – Ao atravessar

Neste ato, trago apontamentos sobre importantes aspectos e procedimentos nos

trabalhos de Lygia Clark e Pina Bausch no que se refere à incorporação do espectador.

No caso de Pina Bausch, as investigações aqui apresentadas apontam aspectos da sua

produção que podem ser localizados em trechos de espetáculos e em comentários de

pesquisadores. Não faço uma análise das peças completas de Bausch, mas antes aponto

referências que possam dialogar com esse texto. As peças de Pina Bausch costumam reunir

uma quantidade enorme de variações e possibilidades de abordagem, e é por este motivo que

detive minha atenção tão-somente sobre procedimentos que problematizam os mecanismos de

aproximação entre obra e espectador.

Sobre Lygia Clark as análises e reflexões aqui apresentadas tendem a recair sobre os

próprios trabalhos da artista. Seus trabalhos são proposições que apresentam, de modo

bastante claro e objetivo, os questionamentos e as problemáticas subjacentes à ação artística

em suas relações junto à experiência do espectador.

Movimento 1. Percurso de Lygia Clark

Lygia Clark (1920-1988) nasceu em Belo Horizonte e aos 27 anos libertou-se das

obrigações familiares – era casada e mãe de três filhos. Iniciou seus estudos de arte com

Roberto Burle Marx, em 1947, no Rio de Janeiro. Deste encontro com o paisagista a artista

herdou, principalmente, a necessidade de trabalhar com o orgânico – que fundamentou suas

pesquisas sobre o espaço. A autora Dirce Helena Benevides de Carvalho, na pesquisa ―Lygia

Clark, o vôo para o espaço real: do bi para o tridimensional‖, sinaliza ainda que a

problematização do lugar da obra em relação ao espaço do mundo foi a grande motivação de

Lygia Clark desde os seus trabalhos iniciais. Havia um desejo de integrar espaços – o

pictórico e o real, o dentro e o fora, o sujeito e o objeto, a vida e a arte. Tais espaços deveriam

superar as divisões que apontam dicotomias e fronteiras entre um lugar e outro.

As propostas da artista refazem, de algum modo, caminhos percorridos em suas próprias

investigações pessoais. Textos, anotações, sonhos, reflexões e apontamentos de Clark

favorecem a compreensão dos lugares por onde ela transita. Sobre seus sonhos ela escreveu:

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Perco o sentido do tempo e percebo a Terra que continua o mesmo processo, se

fazendo e se desfazendo continuamente. (...) A Terra sempre no processo do fazer-

se a cada instante. (...) Como alguns calamares: é como se engolisse a paisagem, é

algo sensacional. (...) Pensamento mudo, o se calar, a consciência de outras

realidades, do meu egocentrismo que de tão grande me fez dar tudo ao outro, até a

autoria da obra. O silêncio, a interação no coletivo, a recomposição do meu eu, a

procura de um profundo sentido de vida no grande sentido social, o meu lugar no

mundo. (CLARK, 1980, p. 5)

No interior que é exterior, uma janela e eu. Quando acordo, a janela do quarto é a

do sonho, o de dentro que eu procurava é o espaço de fora. Deste sonho nasceu o

Bicho que denominei ―dentro-fora‖.‖ (CLARK, 1980, p. 23)

Artista e obra se tocam. Os trabalhos de Clark são desdobramentos de questionamentos

e inquietações suas. Trabalhos que geram questões, e questões que geram trabalhos. Há uma

ação contínua, uma exploração que não encontra um repouso. O repouso se dá em

movimento, e são muitos os lugares por onde a artista transita. Caminhos que convidam o

público, que solicitam a percepção, que transformam as rotas e que estão sempre em viagem.

Propostas nômades que não buscam o fim, mas o percurso. E, de acordo com Maria Alice

Milliet:

A atividade criadora de Lygia compreende obra e pensamento amalgamados por

uma vivência profunda do ―ser no mundo‖. Seu processo artístico é marcado por

constante busca, num encadeamento em que cada etapa prenuncia a seguinte,

surpreendendo ainda assim pela inventividade das soluções. O caráter não

preconceituoso do fazer artístico, a coragem de abandonar territórios já

conquistados, o lançar-se em novas propostas num permanente questionamento da

função da arte e do artista são qualidades definitivamente associadas à obra dessa

artista.‖ (MILLIET, 1992, p. 15)

Na década de 1950, Clark intitula-se não-artista e provoca assim a desmistificação da

figura do artista como o ser criador, como anuncia Allan Kaprow no texto ―A Educação do A-

Artista‖15

. Clark se anuncia fora de categorias e questiona seu lugar no mundo. A artista

pretende que o espectador seja ele mesmo responsável pela sua experiência, independente dos

estímulos sugeridos por ela. No trânsito entre práticas e atitudes de difícil classificação, a

artista anuncia: ―Não aceito coisa alguma de quem quiser me catalogar. Só aceito as críticas

de quem seja capaz de vivenciar comigo a sensibilidade e a experiência que me levaram a um

quadro ou a uma atitude.‖16

Integrante e uma das fundadoras do Grupo Frente em 1954, a artista dedica-se ao estudo

do espaço e apresenta as séries ―Superfícies Moduladas, 1952-57‖ e ―Planos em Superfície

Modulada, 1956-58‖. Ambas ampliando o campo de ação da obra para além dos limites da

15

Texto online: http://www.concinnitas.uerj.br/resumos6/kaprow.pdf Acesso: 04/06/2011 16

Dantas, ―Lygia Explica Sua Pintura: Todo Artista é um Suicida‖, Diário Carioca, Rio de Janeiro, 11 out.1959

apud MILLIET, 1992, p. 13

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moldura. Em 1959 assina o Manifesto Neoconcreto. Sua composição pictórica se confunde

com a moldura – a tela absorve a moldura – e a artista propõe deste modo novas

possibilidades de configuração do espaço. Tal assunto será discutido detalhadamente mais

adiante, no tópico destinado às transformações e às concepções do espaço nos procedimentos

de Lygia Clark.

O espaço da obra pretende coincidir com o espaço do mundo. Os planos são então

dobrados e a tridimensionalidade é explorada. São criados neste momento os Bichos,

esculturas em alumínio com dobradiças que permitem a articulação, feita pelo público, das

partes que formam o todo. A estrutura aberta da série Bichos torna a artista uma referência

mundial da arte participativa e promove o início de um período de exploração da

maleabilidade dos materiais. A madeira, matéria dura, é substituída pela matéria mole, como o

alumínio, metal flexível dos Bichos. As transformações na trajetória de Lygia Clark

demonstram que as mudanças de interesse tendem a ressaltar a figura do artista como o

propositor. As sugestões, por sua vez, procuram desligar-se das tradições e assumir novos

procedimentos e relações. A Obra Mole, de 1964, feita de borracha, e Caminhando, também

de 1964, ação de cortar a fita de Moebius, rompem heranças de conceitos tradicionais e

promovem novos paradigmas nas artes visuais brasileiras.

Caminhando, de 1964, é a proposta de Clark que rompe de modo radical com os limites

entre obra e espectador, recusando assim a noção de obra de arte. A força do ato se sobrepõe

ao objeto artístico, como se verá a seguir. De acordo com a autora Tania Rivera (2007),

―Clark desmaterializa de forma revolucionária a obra de arte, introduzindo uma sofisticada

reflexão artística acerca das relações entre sujeito e objeto.‖17

A partir dos apontamentos acima é possível afirmar que a participação e a interação em

Clark coincidem com o movimento de espacialização da obra, quando esta avança para além

dos limites da moldura, e a descoberta do corpo como espaço de trocas e trânsitos que é

ativado no processo de produção de arte.

17

Citação extraída do artigo de Tania Rivera ―Ensaio sobre o espaço e o sujeito. Lygia Clark e a Psicanálise.‖

Ano: 2007. Acessado em 17/05/2011. Localização: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1516-

14982008000200004&script=sci_arttext

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Movimento 2. O neoconcretismo e Lygia Clark

Na origem do movimento neoconcreto está o movimento concreto. O Concretismo, ou

movimento concreto, foi um movimento estético nascido na escola de Ulm, na Alemanha, e

teve como líder o artista Max Bill, que em 1949 expôs suas obras pela primeira vez no Brasil.

Em 1951, Bill foi premiado na I Bienal de São Paulo e sua influência no país tornou-se

decisiva.

O Concretismo (1954-1958) aposta na arte não-representativa como modo de

questionamento e superação de um sistema de representação pautado em conteúdos éticos e

políticos. As questões plástico-formais se sobrepõem e o abstracionismo desloca o olhar dos

modelos representacionais miméticos para elaborações geométricas baseadas no raciocínio,

no rigor e na demonstração ou aplicação de resultados da matemática e da física. O

rompimento com o espaço visual renascentista favorece investigações que renovarão a

linguagem plástica. Entretanto, neste contexto a arte começa a se limitar à expressão de

teorias mecanicistas e ―conceitos de forma, espaço, tempo, estrutura – que na linguagem das

artes estão ligados a uma significação existencial, emotiva, afetiva – são confundidos com a

aplicação teórica que deles faz a ciência.‖18

No Brasil, dois grupos se formaram em torno das questões e princípios do movimento

concreto, um em São Paulo e outro no Rio de Janeiro. O grupo de São Paulo era liderado por

Waldemar Cordeiro e apresentava uma visão mais racional dos processos e procedimentos

artísticos, enquanto que o grupo carioca liderado por Mário Pedrosa caracterizava-se por uma

abordagem mais livre e experimental da arte.

A grande diferença entre os grupos apareceu em 1956, na I Exposição Nacional de Arte

Concreta, em São Paulo. O contato entre os grupos tornou evidente divergências que deram

origem a polêmicas e a posterior ruptura do movimento, em 1957. A partir de então os grupos

se tornam independentes e desvinculados um do outro, cada um com trajetórias bastante

distintas.

O Neoconcretismo surge em 1959 como uma alternativa em relação ao impasse

concretista. O movimento neoconcreto era formado por pintores, escultores e escritores que

questionavam os limites de tais áreas e as supostas categorizações, revisando posições teóricas

e as estruturas de referenciais da arte concreta. Os excessos racionalistas, pautados em noções

18

Texto extraído do Manifesto Neoconcreto republicado em ―Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto

construtivo brasileiro‖, de Ronaldo Brito, de 1985.

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construtivistas, pontuavam procedimentos do Concretismo que serão criticados pelo

Neoconcretismo.

Para os neoconcretistas, como Lygia Clark, o foco do acontecimento artístico estava na

experimentação e na integração entre obra e espectador. E ainda sobre os fundamentos do

Neoconcretismo é possível afirmar que seu interesse concentrava-se no estiramento de

limites, na experimentação e no ―transbordamento da arte para a vida, atingindo o ‗singular

estado da arte sem arte‘19

‖, como anuncia Maria Alice Milliet (1992, p.15). Ferreira Gullar,

um dos principais articuladores do Neoconcretismo, anunciou mais tarde que ―o movimento

neoconcreto foi uma das mais originais contribuições da arte brasileira à história da arte

contemporânea.‖20

Com a morte do plano, o quadro como espaço semântico isolado é superado e aos

poucos é inserido à sala onde é exposto. Há uma continuidade, uma transferência do olhar da

figura para as linhas que percorrem um espaço que convencionalmente é destinado ao

espectador. Abalos na imagem reverberam criando movimentos que já não cabem mais no

espaço fechado da moldura. Clark ―desdobra gradualmente o plano em articulações

tridimensionais – ―casulos‖, ―bichos‖ e ―trepantes‖ – onde vai se insinuando a participação do

espectador.‖ (MILLIET, 1992, p. 21). E ainda sobre o plano:

O plano é um conceito criado pelo homem com fins práticos: para satisfazer sua

necessidade de equilíbrio. O quadrado, criação abstrata, é um produto do plano. O

plano, marcando arbitrariamente os limites do espaço, dá uma ideia inteiramente

falsa e racional de sua própria realidade. Daí surgem os conceitos antagônicos como

o alto e o baixo, o avesso e o direito – contribuindo para destruir no homem o

sentimento da totalidade. É também a razão pela qual o homem projetou sua parte

transcendente e lhe deu o nome de Deus. Assim colocou o problema de sua

existência – inventando o espelho de sua própria espiritualidade.

O quadrado se carregava de uma significação mágica quando o artista o considerava

como levando uma visão total do universo. Mas o plano está morto. (CLARK, 1980,

p.13)

Clark percorre uma trajetória que coincide com rupturas e investigações que promovem

a superação da materialidade da obra. E de acordo com o ―Manifesto Neoconcreto‖:

Não concebemos a obra de arte nem como ―máquina‖, nem como ―objeto‖, mas

como um quasi-corpus, isto é, um ser cuja realidade não se esgota nas relações

exteriores de seus elementos; um ser que, decomponível em partes pela análise, só

se dá planamente à abordagem direta, fenomenológica. Acreditamos que a obra de

19

Referência do termo: ―1965: Um Mito Moderno: A Colocação em Evidência do Instante como Nostalgia do

Cosmos‖, op.cit., p.29 apud MILLIET, 1992, p. 15 20

Texto ―Manifesto Neoconcreto‖ republicado no catálogo do evento ―Marginais - Heróis: 50 anos do Manifesto

Neoconcreto‖, que aconteceu nos dias 02, 05 e 16 de dezembro de 2009, no Centro Cultural do Banco do Brasil

do Rio de Janeiro. Pág.16.

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arte supera o mecanismo material sobre o qual repousa, não por alguma virtude

extraterrena: supera-o por transcender essas relações mecânicas (que a Gestalt

objetiva) e por criar para si uma significação tácita (M.Ponty) que emerge nela pela

primeira vez.21

Como integrante do movimento neoconcreto, Lygia Clark radicaliza seus

questionamentos sobre a obra como objeto e solicita a presença do público como eixo

fundamental de seus trabalhos. A obra de arte se transforma em propostas que pretendem

estimular o corpo em seus sentidos e relações com o ambiente.

Da investigação do objeto para o corpo, a artista questiona os limites entre sujeito,

objeto, arte e vida e aborda o fenômeno artístico como dinâmica e experiência.

As práticas de Clark são experiências multissensoriais que ultrapassam o âmbito do

olhar e pretendem mobilizar as capacidades de apreender a realidade e a alteridade do mundo.

Segundo Suely Rolnik (2007)22

, Lygia Clark buscou mobilizar nos receptores de suas

proposições a apreensão vibrátil do mundo. O corpo aparece como lugar que toca e que é

tocado.

Clark apresenta o corpo como o centro do acontecimento da arte. Um corpo que se

constitui em trânsito e em movimento. São as experiências vividas pelos sentidos que

mobilizarão as transformações de um corpo que se faz em ―processo contínuo de

diferenciação‖, utilizando as palavras de Sueli Rolnik (2007).

O Neoconcretismo apresenta o corpo como o novo suporte, como o lugar da experiência

artística, promovendo assim contatos entre vida e arte. E ainda sobre a atuação de Lygia junto

ao movimento neoconcreto, é possível apontar as seguintes considerações:

Lygia e Hélio estão à frente desse movimento, cujo engajamento diz respeito aos

limites da arte e do homem, do sujeito e do objeto em suas oposições, convergências

e imbricações. Isso significa o mais contundente questionamento do estatuto da arte

e do artista em nosso meio, abrindo flancos para a desmaterialização da obra, para a

dissolução da individualidade do artista no fazer coletivo, para a recuperação do

sensório através da estimulação do corpo. (MILLIET, 1992, p.27)

Do ponto de vista estético, a obra começa a interessar precisamente pelo que nela há

que transcende essas aproximações exteriores: pelo universo de significações

existenciais que ela a um tempo funda e revela.23

21

Texto extraído do Manifesto Neoconcreto republicado em ―Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto

construtivo brasileiro‖, de Ronaldo Brito, de 1985. 22

Texto ―A memória do corpo contamina o museu‖ publicado em: http://eipcp.net/

Localização: http://eipcp.net/transversal/0507/rolnik/pt. Ano: 2007 Acesso: 12/05/2011. 23

Manifesto Neoconcreto, texto republicado no livro ―Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo

brasileiro.‖ Ronaldo Brito, 1985.

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O evento da arte se abre em duração convocando o espectador num fluxo que integra

sujeito e objeto.

Movimento 3. Travessias de Lygia Clark

De que modo as travessias propostas por Lygia Clark favorecem a ação e a participação

do espectador?

O primeiro aspecto é apresentado no subcapítulo Travessia A, a partir da transferência

de interesse do quadro para o espaço como lugar de interação e movimento. A pintura

atravessa a moldura e a arte acontece em intervalos que aproximam arte e vida. No

subcapítulo Travessia B aparecem as propostas sensoriais da artista e a presença do

espectador como principal agente do fenômeno artístico. O corpo é aqui o principal alvo de

investigação em um campo que tradicionalmente esteve muito mais focado em questões

relativas à visualidade.

Travessia A: Crise da representação ou quando a pintura transborda.

Lygia Clark extravasa limites e localiza a obra na relação, em uma zona liminar. Aos

poucos a moldura é incluída ao espaço pictórico do quadro e as bordas sugerem novas

organizações espaciais. No percurso de abertura da área fechada do quadro, a moldura é um

dos principais focos orientadores desta expansão. Num primeiro momento as fronteiras entre

quadro e moldura são amenizadas por uma convenção cromática, na qual a área da moldura é

preta e a área da tela é verde, como menciona Ferreira Gullar (1980). No momento seguinte, o

preto da moldura é transferido para dentro da tela, ou do quadro, e a cor da tela aparece na

moldura, invertendo deste modo os acordos de limitações, áreas e fronteiras. ―O espaço

pictórico está agora fora da moldura, liberto dela.‖ (GULLAR, 1980, p.10).

Prestes a invadir o espaço, havia ainda uma questão que deveria ser superada nesta

trajetória: o retângulo dentro da superfície, que traz para si toda atenção e torna-se o centro de

referência do olhar, impede a articulação da obra com o entorno, ou com a arquitetura, e

deveria ser eliminado. É neste momento que a artista destrói esse ―centro‖ e restaura o

reencontro da superfície com um espaço livre de delimitações convencionais. Neste período,

há um esvaziamento do espaço pictórico e a atenção da artista se volta para o espaço

arquitetônico. ―É então para a parede, para a superfície das portas, para o espaço arquitetônico

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enfim, que a pintura de Lygia Clark, livre do quadro, quer agora se transferir.‖ (GULLAR,

1980, p.11).

Ferreira Gullar no texto ―Lygia Clark: uma experiência radical (1954-1958)‖24

alerta

para o fato de que os quadros da artista não têm moldura de qualquer espécie, ―não estão

separados do espaço, não são objetos fechados dentro do espaço: estão abertos para o espaço

que neles penetra e neles se dá incessante e recente: tempo.‖(GULLAR, 1980, p.7). O

ambiente penetra, participa e faz-se lugar de experiência e acontecimento da obra.

Gullar faz considerações sobre o ato de pintar nos procedimentos da artista:

Pintar para Lygia Clark não é mais resolver uma área dada, dividindo-a em planos e

pintando esses planos; não é tampouco inscrever uma ideia pictórica num espaço

preexistente, limitado ou ―ilimitado‖. Não existe mais para esta artista qualquer

separação entre espaço e obra, entre o espaço material – a tela – e o espaço virtual

futuro – a obra. Porque o ―quadro‖ (a tela) não preexiste ao ato de pintar, porque

Lygia Clark constrói simultaneamente o quadro como objeto e como expressão, ela

trabalha diretamente sobre o espaço real e o transforma sur le champ em pintura.

Daí porque os seus quadros são esses objetos vivos, ambíguos, acionados pelo

movimento constante de uma metamorfose espacial que, nem bem se faz, já se

refaz: absorve, transforma e devolve o espaço, incessantemente. (GULLAR, 1980,

p.7-8)

A superfície é explorada pela artista como lugar da realidade imediata, espaço percebido

sem o apoio de representações ou alusões a espaços outros. ―Trata-se de uma corajosa

tentativa de dar na própria experiência perceptiva a transcendência dessa experiência.‖

(CLARK, 1980, p.8). O quadro é então absorvido e a obra é criada pelo próprio ambiente.

―Da integração do quadro no espaço arquitetônico, passa à integração do quadro no espaço

mesmo, em pé de igualdade com a arquitetura.‖ (CLARK, 1980, p.8). A moldura, que

costuma separar o espaço real do ficcional, perde sua função à medida que o quadro, ou a

obra, se lança ao espaço e confunde os limites entre sujeito, objeto e espaço. Nas palavras de

Ferreira Gullar,

(...) liberto o espaço preso no quadro, liberto a minha visão, e como se abrisse a

garrafa que continha o Gênio da fábula, vejo-o encher o quadro, deslizar pelas

superfícies mais contraditórias, fugir pela janela para além dos edifícios e das

montanhas e ocupar o mundo. É a redescoberta do espaço. (GULLAR, PEDROSA,

CLARK, 1980, p.9)

Na trajetória de Lygia Clark é possível mapear dois importantes períodos que se

relacionam com suas abordagens do espaço pictórico tradicional e do espaço das espessuras

do real. Em seus primeiros trabalhos, o quadro foi utilizado como suporte para denunciar

24

Texto de 1958 publicado no livro ―Arte Brasileira Contemporânea: Lygia Clark, de 1980‖.

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problemáticas referentes à representação, às divisões e criações metafóricas confinadas em

um lugar que não se relaciona diretamente com o entorno. ―A sucessão de relações que Lygia

Clark vai estabelecendo entre tela e moldura, cor e espaço, é como a tateante decifração de

um enigma, a procura do suporte essencial do quadro – núcleo puro da pintura.‖ (CLARK,

1980, p.9). A procura pelo núcleo orientador que fomenta a existência do quadro leva à

revelação do impulso criador que está no ato de pintar. Os elementos pictóricos vão sendo

eliminados e a superfície avança pelo espaço. Real, ficcional, sujeito, objeto e espaço se

misturam. A residência da obra amplia-se para o mundo e para os possíveis vínculos com a

arquitetura e os elementos que configuram diferentes ambientes.

É neste momento que a artista descobre a linha orgânica ou a linha de encontro – que

permite junções entre espaços que são ditos como separados, como a linha entre a tela e a

moldura, entre duas tábuas, no assoalho, e entre um móvel embutido e a parede, conforme

exemplos de Ferreira Gullar (CLARK, 1980, p. 11). E deste ponto em diante, Clark abandona

a tela e experimenta novas possibilidades para o quadro, como a conjugação de placas ou

pedaços de madeira cortados. Quando as placas apresentam cores iguais e se tocam a linha de

encontro é absorvida pelas cores. Porém, quando as cores são diferentes a linha aparece como

elemento da estrutura do quadro.

Lygia Clark se interessa pela arquitetura e pelos encontros possíveis entre o quadro e o

ambiente. A pintura que antes repousava sobre o quadro, se movimenta percorrendo novos

caminhos. Surge um lugar de tensão entre o quadro e o mundo.

Clark se inspira em Piet Mondrian (1872-1944), artista que se preocupou com a

integração da arte no cotidiano, e experimenta relações com um quadro que aparece livre de

representações e significações. Este isolamento semântico esvazia o espaço pictórico e o

quadro como objeto material tenderá a ser integrado ao entorno.

O quadro de Clark está deserto e é pela linha orgânica, pelas brechas e espaços abertos

que ele ganhará vida. Linha-espaço. Vitalidade orgânica. Até chegar à superfície toda branca,

onde as ―linhas penetram profundamente‖ (CLARK, 1980, p.12). ―Diante daquela área viva, a

percepção atinge um limite de ambigüidade e precisão: o espaço se faz veículo do tempo e o

tempo se revela.‖ (CLARK, 1980, p.12).

E ainda sobre a linha orgânica é possível dizer que ela foi a primeira tridimensionalidade

descoberta pela artista. Esta linha recebe diferentes nomes, como linha espaço, nas Superfícies

Moduladas e Planos em Superfícies Moduladas; linha luz, em Espaços Modulados e

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Unidades; linha de sobreposição, em Contra-Revelos; linha dobra, em Casulos; dobradiças,

em Bichos e torção, em Trepantes e Obras-Moles. (Dirce)

No momento seguinte, a artista passa a se interessar mais pelo próprio tempo da obra do

que pela revelação do tempo através da obra. ―Atualidade plena que identifica o trabalho

criador com a obra criada, que faz da obra a presença integral, sem resíduo, de um fato que

não acaba nunca de acontecer.‖ (CLARK, 1980, p.12). Enquanto o quadro deixa de ser

suporte de uma representação e perde um sentido que a ele foi dado, o movimento, a ação e a

interação passam a mobilizar o fenômeno da arte. A relação do artista com a sua produção e o

vínculo do espectador com o acontecimento artístico ganham sentido à medida que o quadro,

como lugar fechado de representação, perde sentido.

A abordagem do espaço investigada por Lygia Clark pretende alterar perspectivas de um

lugar determinado e estável e anunciar interações entre espectador e elementos do meio

ambiente. Seus lugares são vias de ação e interação - espaço configurado por movimentos. A

obra ganha espaço, se faz espaço, e se torna, ela mesma, ambiente ou lugar de experiência e

interação. Espaço que inclui o espectador ao acionar seu corpo em sensações, forças e

percepções. Movimentos que desenham redes, conexões e que mobilizam assim o fenômeno

artístico.

Das incursões dos trabalhos de Clark pelo espaço antes destinado ao público, nascem as

proposições sensoriais que serão responsáveis pela grande notoriedade da artista. É quando as

linhas fogem para o espaço que novas experiências são investigadas e inaugura-se a fase

sensorial da artista.

Travessia B. um corpo, um espaço ou o corpo como lugar de experiência.

Na trajetória de Lygia Clark é possível observar que seus trabalhos seguem uma direção

que coincide com a perda de identidade da obra de arte como unidade ou objeto. O que vale

dizer que suas propostas caminham em uma direção que irá desmistificar a ideia do objeto de

arte como elemento dissociado do espaço onde ele aparece. Clark segue então um movimento

de integração e fusão entre arte, vida, sujeito, objeto e espaço. Tal impulso parece ter início no

momento em que seu quadro absorve a moldura para integrar-se no mundo. Nas etapas

seguintes a inserção do corpo, como espaço de experiências, é o foco central das propostas da

artista.

O primeiro trabalho de Clark pautado no ato do espectador e em sua corporeidade é

Caminhando, de 1964. A partir deste trabalho o corpo aparece como o centro de discussão e

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reverberação do acontecimento da arte. O objeto artístico não está mais fora do corpo, mas

passa a ser o próprio corpo em movimento e em experiência.

―Caminhando‖ é o nome que dei à minha última proposição. Daqui em diante

atribuo uma importância absoluta ao ato imanente realizado pelo participante. O

―Caminhando‖ leva todas as possibilidades que se ligam à ação em si mesma: ele

permite a escolha, o imprevisível, a transformação de uma virtualidade em um

empreendimento concreto. (CLARK, 1980, p.25)

De acordo com Lygia Clark (1980), a proposição se dá do seguinte modo: pegar uma

dessas tiras que envolvem um livro, cortá-la em sua largura, torcer e colar de modo que se

obtenha uma fita de Moebius. Pegar uma tesoura, cravar uma ponta na superfície e cortar

continuamente no sentido do comprimento. O caminhante, ou aquele que executa a proposta,

deve prestar atenção para não recair no corte já feito, o que dividiria a faixa em dois pedaços.

Após a primeira volta na fita de Moebius, o caminhante deve cortar à direita e cortar à

esquerda do corte já feito. O sentido encontra-se no ato de fazer. O ato surge como processo e

produção de arte.

Nesta proposição não há um objeto à priori, mas sim uma proposta, uma potencialidade

que favorece a criação de um percurso particular para cada participante, onde a noção de

escolha é decisiva; o modo que cada pessoa encontrará para cortar a fita de papel, os

caminhos escolhidos enquanto cortam o papel. Sujeito e objeto formam-se mutuamente.

Espectador e obra tornam-se indissociáveis, superando referenciais dualistas comuns no

contexto da arte como objeto ou coisa exposta à apreciação do público.

Quando o público é convidado a cortar uma tira de papel, a obra é o próprio ato de

cortar, a ação e o foco no instante presente, enquanto o movimento se desenvolve. Não há

uma obra a priori, mas um percurso, um deslocamento e a criação de um espaço de

intensidades na relação do corpo com os materiais, neste caso papel e tesoura. O participante é

engajado numa atividade que solicita sua presença e atenção. Seu corpo afeta e é afetado. A

sequência de ações, desde pegar a tesoura até cortar as tiras de papel, são gestos que engajarão

o participante ao instante presente de desenvolvimento e produção do evento artístico. Os

percursos e os desdobramentos possíveis desta ação são os principais focos de interesse desta

proposição. E de acordo com a artista: ―Se utilizo uma fita de Moebius para esta experiência,

é porque ela contrasta com nossos hábitos espaciais: direita/esquerda; avesso/direito etc. Ela

nos faz viver a experiência de um tempo sem limite e de um espaço contínuo.‖ (CLARK,

1980, p.26)

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Clark pontua ainda que não há nada antes e nem depois de Caminhando. Apenas o ato é

capaz de revelar a sua existência e transitoriedade. Para a artista, o sentido de caminhando se

deu na seguinte experiência:

(...) atravessando o campo de trem, senti cada fragmento da paisagem como uma

totalidade no tempo, uma totalidade do ser, de se fazer sob meus olhos, na

imanência do momento. O momento era a coisa decisiva. Uma vez também,

contemplando a fumaça de meu cigarro: era como se o próprio tempo fizesse seu

caminho, sem cessar, se aniquilava, se refazia continuamente... Eu já provei isso no

amor, nos meus gestos. E cada vez que a expressão ―Caminhando‖ surge na

conversa, ela suscita um verdadeiro espaço e me integra no mundo. Eu me sinto

salva. (CLARK, 1980, p.26)

Caminhando, 1964

Sobre o ato ou o instante que marcam a proposição Caminhando, a artista faz as

seguintes considerações:

O instante do ato não é renovável. Ele existe por si próprio: o repetir é lhe dar uma

outra significação. Ele não contém nenhum traço da percepção passada. É um outro

momento. No momento mesmo em que ele se desenrola, ele já é uma coisa em si. Só

o instante do ato é vida. Por natureza, o ato contém em si mesmo seu próprio

excesso, seu próprio vir-a-ser. O instante do ato é a única realidade viva em nós

mesmos. (CLARK, 1980, p.27)

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Caminhando não é um objeto, mas a proposta de uma ação. Ação esta que pode alterar a

relação que o participante tem com o mundo. A própria artista lança esta reflexão: ―Eu me

pergunto se após a experiência do Caminhando não se toma melhor consciência de cada um

dos gestos que fazemos – mesmo os mais habituais.‖ (CLARK, 1980, p.27).

Clark (1980) diz ainda que viveu um ritual muito significativo na primeira vez em que

cortou Caminhando. Em suas próprias palavras:

E eu desejo que esta mesma ação seja vivida com a máxima intensidade pelos

participantes futuros. É preciso que ela seja puramente gratuita e que ninguém

procure saber – quando estiver cortando – o que vai ser cortado a seguir ou o que já

foi talhado antes. Aí é preciso concentração e, talvez uma vontade ingênua de

apreender o absoluto de fazer o ―Caminhando‖, conservando a gratuidade do gesto.

(CLARK, 1980, p.27)

A artista dá ênfase ao instante presente, ao ato, ao momento de ação e interação do

corpo. Momento no qual o pensamento se dá na ação. Pensamento e corpo acontecendo ao

mesmo tempo. O ato surge como um percurso criado pelo participante. Percurso este definido

pela sua ação, pelo engajamento e interação de seu corpo no evento. Sua ação se manifesta

como pensamento que só pode pensar enquanto corpo e relação. De acordo com Lygia Clark:

Com Nietzsche todas as projeções religiosas do homem em direção ao exterior são

rejeitadas, o sentimento religioso se introverteu: o homem é divino. O mesmo

acontece na arte: a proposição, antigamente percebida pelo espectador como exterior

a ele, encerrada em um objeto estranho, é agora vivida como parte dele mesmo,

como fusão. Todo homem é criador. (CLARK, 1980, p. 29)

Sob esta perspectiva, a obra surge como potencialidade de interação que aciona e

vincula o espectador, ou o participante. Não existem diferentes planos ou mediações, tudo se

dá na ação e no movimento. A obra não está limitada a um espaço fechado cumprindo regras

e se apresentando ao público, ela acontece no espaço compartilhado no qual o espectador

transita livremente enquanto cria percursos e sentidos. O sujeito é o grande responsável pelos

seus atos, pelas suas transformações e experiências. E segundo Clark: ―O homem deve tomar

posição em face dele mesmo, com toda independência que adquiriu em sua terrível solidão.‖

(CLARK, 1980, p.29)

Sob esta perspectiva, o corpo como matéria flexível torna-se o lugar da experiência e

interessa cada vez mais a artista. O lugar das experiências de Clark coincide com os

movimentos do corpo, com trajetórias particulares que levam a instâncias que não podem ser

classificados ou delimitados em categorias. De acordo com Maria Alice Milliet, Lygia Clark:

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Recusa a classificação em categorias estéticas ou estilísticas, porque incompatíveis

com a sua poética de desrepresentação, de superação dos suportes, de deslocamento

do privilégio do olhar para uma ampla percepção sensorial, de integração do corpo

na arte e da arte no corpo coletivo. ( MILLIET, 1992, p.14)

As interações da obra no espaço aproximam elementos que pareciam distantes e

dissociados e promovem o início da fase sensorial da artista. Para discorrer sobre esta fase

focarei em dois momentos, assim denominados pela artista: Nostalgia do Corpo, quando o

sujeito entra em contato com o seu próprio corpo a partir de objetos para a sensibilização; e

Corpo Coletivo, quando os elementos ou ambientes sugeridos atuam como meio para as

experiências em grupo. É possível dizer que nos procedimentos de Clark o corpo parte da

fragmentação e do trabalho analítico para um corpo integrado. Apenas no final da sua

trajetória Lygia voltará a explorar o corpo individualmente, em sessões que ela denominará A

estruturação do self25

.

Entre as proposições que solicitam a presença de espectador e consequentemente de seu

corpo como elemento fundamental da experiência artística, é possível trazer dois exemplos

que podem ilustrar aspectos da discussão aqui proposta.

O primeiro exemplo é da fase Nostalgia do Corpo, de 1966. Clark pretende despertar a

consciência do corpo a partir da redescoberta dos sentidos. Nostalgia indica saudade e um

possível resgate do corpo perdido. O reencontro com este corpo esquecido acontece por meio

de objetos que agem como intermediários dentro do processo de despertar as sensações

corporais. Os objetos utilizados são elementos do cotidiano, como água, sementes, conchas e

borrachas, por exemplo.

Nesta fase em que as propostas consistem na manipulação de objetos que poderão

sensibilizar o corpo, Clark propõe ainda luvas, óculos e cintos, e sugere ambientes e roupas

que tendem a estimular a percepção. Como exemplo, tem-se Luvas Sensoriais, que coincide

com a redescoberta do tato, e Ar e Pedra, sensação de um organismo vivo em uma cópula da

qual se participa. Nestes trabalhos, as experiências são vividas individualmente. O

participante está ainda sozinho. Ele manipula objetos e atualiza memórias esquecidas. Nesta

fase a artista foca seu interesse nas reverberações possíveis no decorrer da ação do

participante. A ativação de sensações, memórias e impressões são as bases por onde transitam

25

O método, considerado terapêutico pela própria artista, admite inúmeras considerações e não será abordado

nesta pesquisa. O foco aqui está nos procedimentos de espacialização da obra, instante em que o objeto se

dissolve e estimula a ação do espectador a partir da mobilização do seu corpo, e não nos processos e

conseqüências psicológicas das práticas propostas nesta fase final da artista.

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as proposições de Lygia Clark neste momento. A artista pretende acessar forças, tocar em

registros adormecidos, acordar e atualizar sentidos.

Entre os trabalhos desta fase destinada às manipulações individuais, destaco Luvas

Sensoriais, de 1968. O participante deve vestir luvas de diferentes materiais para pegar bolas

de tamanhos, texturas e pesos diferentes, como aponta Milliet (1992). Após tocar as bolas

com as luvas, o participante deve experimentar a mesma ação, porém, desta vez sem as luvas.

Há nesta proposta uma redescoberta do tato. O peso e os aspectos materiais das bolas em

contato direto com a pele e com o corpo estimulam a sensação do toque. O corpo reage ao

tocar e ser tocado pelas bolas. Tocar o objeto diretamente e ser por ele tocado ganha uma

nova perspectiva após a experiência de toque com a luva. Enquanto a mão toca a partir de um

mediador, neste caso a luva, o corpo recebe diferentes informações sobre as propriedades do

objeto que está sendo tocado. Há uma alteração na sensação e memória do objeto, e tal

transformação interfere na relação posterior que o corpo estabelece com o mesmo.

Luvas sensoriais, 1968

A experiência dos participantes é fundamentalmente sensorial, o que permite a

redescoberta daquilo que não cabe num discurso verbal. O que se pode relatar, verbalmente,

do contato com um objeto, é a redução de um ato que envolve ativações, movimentações e

deslocamento de forças que só ganham corpo e sentido na reverberação do próprio corpo. Um

discurso que não está dissociado daquilo que o corpo experimenta.

As proposições seguintes se destinarão a duplas e por fim a grupos. E ainda sobre a fase

das práticas individuais é possível trazer as palavras de Lygia Clark:

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(...) o homem encontra seu próprio corpo através de sensações táteis realizadas em

objetos exteriores a si. (...) Entretanto, é o homem que assegura seu próprio

erotismo. Ele torna-se o objeto de sua própria sensação, afirma Lygia em 1969.

(MILLIET, 1992, p.110)

Posterior à fase dos trabalhos que enfatizam a sensibilização individual, seguem as

propostas de redescoberta do eu e do outro. A ênfase dos trabalhos neste período reside na

superação de dualidades presentes nas divisões entre masculino e feminino e que podem se

relacionar com a metáfora do corpo aprisionado, dividido e pertencente a categorias. Como

exemplo desta fase é possível citar o trabalho roupa-corpo-roupa, no qual o corpo é

―encoberto por pesados uniformes de tecido plastificado que ocultam a identidade sexual e

eliminam o contato da pele‖, conforme descrição de Milliet (1992, p.111). O homem veste o

macacão da mulher e a mulher veste o do homem. Nestas ―roupas‖, as aberturas incentivam o

encontro, o reconhecimento do corpo do outro, a exploração tátil e o toque. Um corpo livre

das separações e limitações de gênero surge na relação e reconhecimento entre os corpos.

A partir de 1969 destacam-se as experiências em grupo, e ainda de acordo com Milliet:

―Esse corpo revisitado adquire dimensão social e, entrelaçado a outros, forma uma trama de

comunicação coletiva.‖ (MILLIET, 1992, p. 30). As práticas deste período são conhecidas

como Corpo Coletivo.

Um dos trabalhos desta fase, Mandala (1969), tem como proposta a aproximação, a

relação e a ligação entre indivíduos. Elásticos ligam os participantes pelos pulsos e tornozelos.

Há aqui um modelo existencial que coincide com a superação das dicotomias, quando a ação

de um repercute no todo. A ação de um participante interfere na ação dos demais, pois estão

interligados. Toda ação provoca uma reação. A sensação é a de não estar só, de fazer parte de

um complexo emaranhado onde as partes formam um todo pulsante e dinâmico. Forças se

cruzam e provocam o desejo do corpo de se libertar das amarras. Há a percepção de uma

situação limite na qual a interferência e a presença do outro mobilizam os demais

participantes.

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Mandala, 1969

A possibilidade de desdobramentos do sujeito surge enquanto registros, memórias e

afetos se movem, transitam e se transformam no contato com o entorno. Neste contexto, Clark

pretende ativar ou estimular o corpo a partir de toques, contatos e ações coletivas que

incentivam o imaginário e a experiência do movimento em um evento livre de padrões,

modelos e regras. Pretende-se reativar a criação no contexto da ação artística e na superação

dos limites entre espectador e obra.

A partir de 1970 Lygia se muda para Paris e atua como professora, ou propositora, na

Universidade de Sorbonne.

Deste período é possível citar Túnel, de 1973. Neste trabalho as pessoas entram em um

tubo de 50 metros de comprimento feito de pano no qual a propositora faz incisões com a

tesoura, criando aberturas por onde os participantes ―nascerão‖. As sensações fazem reviver

os esforços de uma criança para nascer.

Ainda como práticas deste período é possível citar: Rede de Elásticos (1974), que

retorna a ideia de organicidade já presente em Mandala; Canibalismo (1973), na qual uma

pessoa deitada é cercada por outras com olhos vendados que devoram as frutas que lhes

cobrem o corpo; e Baba Antropofágica (1973), quando várias pessoas derramam sobre

alguém deitado fios que saem de suas bocas. Nestes dois últimos trabalhos mencionados há

uma aproximação da ideia de psiquismo arcaico. Como anuncia Clark: ―O corpo

dessublimado e liberto do princípio de desempenho, em sua potencialidade espaço-temporal, é

o lugar irredutível dessa aventura.‖ (MILLIET, 1992, p.147)

Diante das etapas e propostas mencionadas acima é possível perceber que uma das

principais preocupações da artista, sobretudo a partir do final da década de 1960, é a

sensibilização e a inserção do elemento humano como constituinte da obra, como aponta

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Milliet (1992). Obra e espectador se conjugam, se aproximam e se movimentam juntos. O

espaço da obra e o espaço do espectador se confundem, e é na reverberação do espectador

enquanto corpo em experiência que o evento da arte acontece.

Entretanto, mesmo apresentando aberturas e atos de interação como foco de seus

trabalhos, as elaborações estéticas e o tratamento plástico de Clark não deixam de ser

cuidadosamente estudados dentro das suas propostas.

Em seus últimos trabalhos, os fins terapêuticos das suas práticas ganham destaque e

aparecem em proposições que resgatam os objetos relacionais presentes em seus trabalhos

anteriores. Desta fase de Clark é possível destacar o seguinte comentário de Milliet sobre os

procedimentos explorados pela artista:

Trabalha a recuperação da memória do corpo através desses objetos capazes de

reviver sensações adormecidas, trazendo à consciência experiências difíceis de

verbalizar. (...) O processo e não a obra, torna-se definitivamente o centro de sua

atenção. (MILLIET, 1992, p. 30)

Lygia Clark no final de sua trajetória passa a trabalhar com sessões particulares nas

quais seus pacientes são estimulados a experiências sensoriais através de objetos manipulados

pela artista. São conchas, sacos plásticos cheios de ar, areia ou água e folhas secas, por

exemplo.

Em Clark, o espectador ou o participante é estimulado em suas relações subjetivas.

Relações estas que superam as interpretações e os sentidos prévios que costumam orientar o

olhar e que coincidem com alterações no modo de perceber e experienciar o mundo.

Movimento 4. Percurso de Pina Bausch

Philippine Bausch nasceu no ano de 1940 em Soligen, uma pequena cidade alemã. Aos

15 anos, Pina Bausch, como ficou conhecida, iniciou seus estudos de dança na Escola

Folkwang, em Essen, cidade industrial alemã, e teve aulas com o diretor e coreógrafo Kurt

Jooss (1901-1979) que, por sua vez, foi aluno e assistente de Rudolf Von Laban (1879–1958).

Artista da primeira geração do pós-guerra, Bausch graduou-se em Dança e Pedagogia da

Dança em 1958, na mesma escola onde deu seus primeiros passos como dançarina. Recebeu

uma bolsa para estudar em Nova York entre 1959 e 1962, onde dançou na Juilliard School e

na Metropolitan Opera House. A experiência nos Estados Unidos lhe rendeu influências que

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marcaram seu trabalho, sobretudo como coreógrafa. Ciane Fernandes destaca pontos da

trajetória da artista:

O trabalho de Bausch combina seu treinamento com Jooss na Escola Folkwang e

como solista na companhia dirigida por ele, a Folkwangballet, com sua

experiência das artes e dança em New York nos anos 60 e 70. Muitos

dançarinos e coreógrafos norte-americanos reagiam então as técnicas de dança

moderna, e juntavam-se a artistas plásticos e músicos na produção de trabalhos

colaborativos, expressando preocupações sócio-políticas sobre direitos humanos,

meio ambiente, feminismo, e questionando o conceito de arte. Artistas

pretendiam derrubar a separação entre arte e vida cotidiana, dançarinos/atores e

platéia. As peças colaborativas envolviam movimentos e trajes da vida cotidiana,

contra uma representação teatral formal e artificial.‖ (FERNANDES, Ciane,

2009).26

De volta à Alemanha em 1962, Bausch trabalhou com Kurt Jooss e em 1973, aos 33

anos, foi contratada como diretora do Teatro de Wuppertal, na cidade de Wuppertal. Pina

Bausch troca o nome do Teatro para Wuppertal Tanztheater. Neste ano e após ―quase 40 anos

depois de o mestre Jooss ter cunhado o termo Tanztheater, Bausch retoma com força uma

ideologia de expressão cênica‖, e ainda conforme Lícia Maria Morais Sanchéz, ―o teatro-

dança mantém-se e renova-se, revolucionando o mundo da cena contemporânea dessa forma

de arte.‖ (SANCHÉZ, 2009, p.46).

A partir daí a artista passa a desenvolver trabalhos com uma particularidade que ficará

conhecida em todo o mundo. Seus bailarinos-atores, também chamados ―performers‖27

, são

de diferentes culturas e nacionalidades. Corpos de diferentes lugares se encontram nas

propostas de Bausch.

Suas ―peças dançadas‖ apresentam elementos encontrados tanto no teatro quanto na

dança. Tanto no que se refere aos processos de criação quanto às produções levadas a público

há uma fusão de procedimentos – geralmente associados ao campo do teatro ou da dança. Este

deslocamento favorece movimentos nos quais as coisas não repousam numa categoria e por

isso incentivam diferentes experiências.

Os bailarinos-atores participam dos processos de preparação dos espetáculos, nos quais

trazem como principal material de trabalho registros e memórias pessoais. Apresentam-se em

suas aparências, conflitos, medos, alegrias e desesperos. Neste estágio da criação, os

26

Artigo: A dança teatro de Pina Bausch: redançando a história corporal. In O Percevejo online ano VII –n7–

1999. Texto online: http://nucleoatmosfera.blogspot.com/2009/09/danca-teatro-de-pina-bausch-redancando.html.

(2007) Acesso: 21.11.2010. 27

Termo usado por Luke Jennings no texto Tanztheater Wuppertal Pina Bausch em publicação online no link

seguinte : http://www.guardian.co.uk/stage/2010/mar/28/tanztheater-wuppertal-pina-bausch, 2010. Acesso:

04/03/2011

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dançarinos são provocados de modo a tocar em registros e rastros particulares e assim trazer à

tona conteúdos escondidos, adormecidos ou esquecidos em algum lugar de seus corpos.

Relembram a infância, fantasias, eventos e sensações. Todo o material é cuidadosamente

analisado por Pina Bausch e posteriormente organizado em sequências. O processo de

preparação da Wuppertal Tanztheater será aprofundado a seguir no desdobramento dos

tópicos relacionados aos procedimentos de trabalho de Bausch.

É interessante frisar ainda que a vasta produção de Pina Bausch apresenta diferentes

tendências e procedimentos ao longo dos anos. Se compararmos A Sagração da Primavera,

de 1975, e Ten Chi, de 2004, é possível perceber uma diferença enorme tanto nas

composições – que já não se concentram tanto na repetição de gestos e movimentos – quanto

nas interações com o espectador – que acontecem com mais frequência favorecendo um

diálogo ainda mais íntimo entre a obra e o público.

Sobretudo em sua fase inicial, Pina Bausch trata da crise da representação intensificando

ou ressaltando a forma. A artista destaca os efeitos visuais e do universo da alegoria para

denunciar o campo das representações no qual estamos mergulhados.

Mulheres e homens transitam pelo palco usando trajes elegantes como ternos, vestidos

coloridos, sapatos de salto alto e maquiagem. Suas posturas e movimentações em cena

indicam fortes críticas aos comportamentos e aos eventos sociais. Segundo Ciane Fernandes,

a intenção é mostrar a artificialidade que há na própria vida. Esse universo grandioso e

mantido por regras e modelos sofre fissuras quando, por exemplo, os dançarinos exaustos

depois de uma longa série de repetição de um mesmo movimento se apresentam diretamente

para o espectador, sem a proteção dos limites comuns da representação. Quando se

apresentam em suas fragilidades e contradições, eles revelam movimentos que se escondem

por detrás de formas convencionadas e já conhecidas. Como menciona Lícia Sanchéz, uma

nova percepção é solicitada:

As rupturas introduzidas na dança pela coreógrafa acordam nos espectadores uma

nova percepção que subverte a constância ocidental da linearidade da cena herdada

do século XIX. Não surpreende, então, que Bausch se distancie da dança ―pura‖. E

ela mesma declara, ao assumir a direção do Tanztheater, que não lhe interessava

como se moviam as pessoas – buscava o que as movia, comovia, o plano das

emoções mais que o das formas.‖ (SANCHÉZ, 2009, p.46)

No palco, os dançarinos dançam, cantam e falam envolvendo o espectador. As

composições se assemelham à técnica de colagens, muito comum nas práticas artísticas dos

anos 1960.

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Gestos, movimentos e palavras aparecem em um contexto que permite à plateia trafegar

livremente entre os estímulos da cena, criando sentidos e relações particulares com o evento

artístico. Neste contexto de interação e ativação do espectador, o processo de preparação dos

artistas está diretamente ligado com as aberturas sugeridas nas propostas de Pina Bausch.

Atos, movimentos e ações que transbordam, que reverberam, que tendem a acionar e integrar

o espectador a partir de alterações e deslocamentos.

Movimento 6. Tanztheater e Pina Bausch

Para iniciar este movimento é importante fazer aqui uma pergunta inicial que poderá

orientar conexões entre a prática de Pina Bausch e o Tanztheater. Como o Tanztheater se

desenvolve e como que Bauch atravessa limites da dança, no que concerne a padrões e

formalidades, para trazer novos parâmetros para aquilo que era conhecido como dança e,

consequentemente, para aquilo que era conhecido como teatro?

Existe hoje uma polêmica relativa às definições e aos limites tanto do teatro quanto da

dança. Inquietações que procuram resolver o indeterminado a partir de conceitos estáveis e

definidos. Contudo, vale à pena ressaltar que ―teatro e dança já apresentam simbiose desde os

cultos báquicos‖ (SANCHÉZ, 2010, p. XVI – introdução ), como afirma Lícia Sanchéz. O

comentário de Sanchéz de algum modo considera a aproximação efetuada pela dança-teatro

como fruto de uma experiência cuja gênese é cênica.

Levando-se em conta que teatro e dança são manifestações que se apresentam

entrelaçadas em suas origens, é interessante ressaltar aqui o momento em que uma corrente

conhecida como teatro-dança ou dança-teatro tentou unir, através de um hífen, aquilo que

acontecimentos históricos trataram de separar.

Após divisões entre o campo de ação do teatro e o campo de ação da dança, houve o

questionamento. Das questões surgiram os movimentos e os lugares se afetaram. A dança

escapou da dança e o teatro escapou do teatro. Houve então um toque. Um tocou no outro. Foi

a dança que se aproximou do teatro ou foi o teatro que se aproximou da dança? Não há como

saber ao certo quem caminhou em direção a quem. Contudo, houve uma aproximação e é

deste lugar que pretendo tratar agora – a zona de contato criada entre eles.

Uma das principais figuras responsáveis pela corrente alemã desta manifestação cênica

foi Rudolf Von Laban (1879-1958), também fundador de uma escola expressionista na

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Alemanha, conforme informação de Sanchéz (2010). Importantes figuras como Mary

Wigman, Kurt Jooss e Pina Bausch foram influenciados por ideias e práticas de Laban.

Durante o nazismo, Laban fugiu da Alemanha e instalou-se na Inglaterra, onde trocou o

nome para Rudolf Laban e renovou a dança a partir de um enfoque teatral. Neste contexto, é

importante considerar ainda a seguinte anotação:

Por não aceitar o vazio existente nas peças de teatro e dança dessa época, trouxe

para o seu trabalho o resultado das próprias paixões e lutas interiores e sociais,

representadas por personagens simbólicas ou estados de espírito puros, vividos

através do movimento utilizado de maneira mais espontânea e sempre como

resultado consciente da união corpo-espírito. (LABAN, 1978 , p.9)

Laban promove uma aproximação do movimento e do gesto com as forças da vida.

Uma coisa não está separada da outra. A matéria de seu trabalho é basicamente o corpo, os

movimentos da vida e os comportamentos cotidianos. Seu intuito é libertar o movimento,

mesmo conservando elementos do balé clássico em seus procedimentos de trabalho, como

indica Sanchéz (2010). Em uma de suas análises, Laban aponta o estudo dos movimentos

emocionais e mentais na relação com o espaço – a ―corêutica‖. Tal estudo parece favorecer

breves contatos de seus métodos de trabalho com princípios desenvolvidos por Bausch. O

corpo, em seus aspectos perceptivos, sensoriais e vitais, está implicado na ação e movimenta-

se em várias direções – não mais guiado por padrões impostos por normas ou modelos

exteriores. Ato e dança se tornam sinônimos, à medida que a dança foge aos modelos de

representação. Sanchéz aponta ainda que em Laban o ser humano é privilegiado ―como ser

infinito na inter-relação corpo-espírito-emoção-vida-movimento, e sua filosofia tem como

meta trabalhar para que as emoções sejam expressadas pelo corpo humano por meio de ações

corporais reais.‖ (SANCHÉZ, 2010, p.4)

E neste ponto é possível estabelecer um vínculo entre os procedimentos propostos por

Laban e adotados por Bausch. Ambos se interessam pelo movimento humano que move o

ator-bailarino à experiência no evento da arte. Tanto para um quanto para o outro a dança está

intimamente ligada à vida e à ação humana. Movimentos são interações com o ambiente.

A partir daí é possível apontar a memória, ou a dramaturgia da memória28

, e o afeto

como elementos fundamentais nos processos sugeridos pela dança-teatro. Ao promover

interações com conteúdos íntimos e particulares, o movimento favorece a ativação e a

28

Termo utilizado por Lícia Maria Morais Sanchéz em seu livro ―A dramaturgia da memória na dança-teatro‖,

para tratar de procedimentos da dança-teatro que dão ênfase à memória e aos registros inconscientes como

caminhos pessoais na construção do processo da cada artista.

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interação do artista no evento da arte. Sua participação, seu gesto e sua fala vêm

acompanhados de resíduos seus, de excessos que se encontram em vivências suas e que

favorecem a aproximação com o espectador. Ao falar de si, ao se revelar diante do outro, o

artista estabelece uma comunicação direta com o público e promove cruzamentos entre

espaços que estão visualmente separados, como o lugar do espectador e o lugar da obra.

A observação e a apropriação de movimentos do cotidiano são também práticas comuns

na dança-teatro. No acontecimento mais corriqueiro, é possível perceber modos

completamente distintos de abordagem e execução. Há uma carga de afetos, de registros e

marcas que encaminham as atividades mais simples dos modos mais diversos. E é nesse

particular que repousa o maior interesse de muitas propostas desta linguagem em trânsito

denominada dança-teatro. E em considerações sobre Laban:

Para Laban, a dança é o meio de dizer o indizível, da mesma forma que a

característica da poesia é ultrapassar o sentido estrito das palavras. Acredita que a

dança seja um meio de introspecção profunda: revela ao homem suas tendências

fundamentais; a partir deste ponto, projeta-o para o futuro, fazendo-o pressentir sua

personalidade virtual, que poderia realizar indo até o fim de suas pulsões.

(LABAN, 1978, p.9)

Desejos, pulsões e impressões particulares agem como faíscas que impulsionam as

formas e as relações. O gesto que escapa do gesto, a palavra que escapa da palavra e o

movimento que escapa do movimento anunciam vestígios de uma obra que extravasa suas

bordas e acontece no meio, na relação com os elementos circundantes e com o espectador.

Levando-se em consideração os apontamentos acima, é importante salientar que para

Laban há na ação dramática e no teatro um insight, ou um potencial gerador de reflexão e de

ação do homem, como aponta Sanchéz (2010). Este insight ―oferece a experiência inspiradora

de uma realidade que transcende a nossa.‖ (SANCHÉZ, 2010, p.5).

E é deste modo que Laban aproxima teatro e dança – pela experiência do corpo – e em

1920 é considerado como o precursor da dança-teatro, dada a união dos termos e práticas.

Ao unir a dança e o teatro, o coreógrafo e pesquisador enfatiza o movimento humano e a

capacidade de se movimentar em diferentes situações – a partir de diferentes estímulos e

condições que a vida apresenta. Os movimentos e seus desdobramentos aparecem, deste

modo, como um denominador comum entre as artes cênicas.

Na tentativa de aproximar campos, entre 1913 e 1914, Laban ―promoveu cursos na sua

escola, no Monte Veritá, em Ascona, na Suíça, às margens do lago Maggiore‖ (PEREIRA,

2010, p.28), e lá se reuniram escritores, como Hermann Hesse (1877-1962), James Joyce

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(1882-1941), Rainer Maria Rilke (1875-1926); pintores, como Paul Klee (1879-1940) e o

psicanalista Otto Gross (1877-1920) com o objetivo de formarem uma comunidade artística,

como aponta Sayonara Pereira (2010). Artistas de diferentes campos se concentravam em

torno de investigações em comum. E é nesse ambiente que são criados fundamentos que

fomentarão o Tanztheatre.

De acordo com as autoras Ciane Fernandes e Melina Scialom (2010), há ainda na base

do Tanztheater princípios orientais que justificam aproximações entre vida e arte e a

compreensão do ser humano como presença integrada ao meio.

A dança-teatro contemporânea tem suas origens na obra do pioneiro Rudolf Laban,

no início do século XX, que por sua vez buscou inspiração no oriente, especialmente

nas artes marciais e danças dos dervishes, na compreensão do ser humano como um

todo e integrado ao ambiente. Leis do movimento, como espaço (Corêutica) e

qualidades dinâmicas (Eucinética), ao invés de um estilo de dança ou de uma forma

padronizada e ideal, marcaram um trabalho de amplitude simultaneamente artística e

científica. (FERNANDES; SCIALOM, 2010)29

Outra importante figura no contexto da dança-teatro foi Kurt Jooss, que apresentou a

expressão Tanztheater, já utilizada anteriormente por Laban, sob outra perspectiva. Para

Jooss, Tanztheater era uma forma de arte que poderia dar conta de todas as exigências do

teatro, contudo deveria ser dançada, como afirma Sayonara Pereira (2010).

O termo dança-teatro ou teatro-dança sofre alterações e recebe diferentes definições.

Entretanto, pelo fato do termo Tanztheater ser utilizado em diferentes propostas que estão

longe daquelas indicadas por Jooss ou por Laban, Richard Silkes, em indicação de Sanchéz,

apresenta a seguinte definição para problemáticas relativas ao termo e às práticas: ―O

Tanztheater é um processo, não uma resultante, muda o tempo todo.‖30

Outro aspecto importante do Tanztheater é mencionado por Solange Caldeira (2009) no

livro ―O Lamento da Imperatriz‖, onde a autora afirma que tal prática pode ser compreendida

como um processo intersemiótico entre dança, teatro, pintura, circo, cinema e tecnologia.

No contexto da dança-teatro há uma atenção sobre o efêmero, sobre o ―processo de

criação coletiva fundamentado no encontro e na troca‖, onde ―o renascimento dos corpos

orgânico e biográfico do artista são mostrados pelo imediatismo do ato criador e de sua

produção no espaço.‖ (CALDEIRA, 2009, p.21).

29

Referência: Texto Caminhos, Corpo e Confluências, de Ciane Fernades e Melina Scialom. Localização:

http://idanca.net/lang/pt-br/2010/05/20/caminhos-corpos-e-confluencias/15135. Acesso: 03/01/2011. 30

R.Silkes, But is it dance?, Dance Magazine, p.52 apud SANCHÉZ, 2010.

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As vanguardas, sobretudo do pós-guerra em meados do século XX, investigam a

revelação de um tempo-espaço que se apresenta na desarticulação da ordem representacional

estabelecida. O tempo real favorece relações que incitam a presença do artista e do espectador

como próprio núcleo do evento artístico. É a movimentação e a interação que favorecerá a

experiência artística. Forças, desejos e impressões que pedem passagem e se fazem presentes

nos procedimentos e práticas de arte.

Seguindo esta tendência, muitas práticas como no caso da dança-teatro se utilizam de

métodos como a colagem. Ações e elementos são agrupados em composições que transitam

entre uma e outra linguagem. Outro dado importante neste contexto de transformações e

hibridismos investigados pelas vanguardas e pela dança-teatro é o deslocamento de princípios

da arte pictórica em direção a atos teatrais e a utilização de espaços pouco convencionais,

como afirma Solange Caldeira (2009):

Todas as combinações são exploradas: música, vídeo, slides, poesia, dança e rádio;

o único denominador comum é a existência desses mesmos elementos num mesmo

local. Há a circulação espontânea entre o artista e a sua arte, que se faz mostrar nas

garagens, nos apartamentos ou em locais incomuns. (CALDEIRA, 2009, p. 22)

E ainda sobre aspectos da dança-teatro, é possível apontar o seguinte:

Definida como consciência corporal e a maneira na qual formamos as coisas, a

natureza simbólica da dança-teatro é associada ao desenvolvimento humano físico e

psíquico. De fato, como colocado por Jacques Lacan, é através da linguagem

simbólica que o ego não apenas interage com o mundo, mas é em si mesmo

construído física e psiquicamente, em sua imagem corporal. (FERNANDES, 2009)

Em uma última consideração sobre a dança-teatro é possível dizer que:

A dança-teatro desenvolveu-se numa arqueologia das maneiras de vida. Gesto,

movimento e espaço são elementos de uma estética de atravessar fronteiras, que

busca desenvolver uma nova maneira de perceber, em oposição a mundos prontos de

imagens que adulteram nossas formas de ver.31

Em relação à dança-teatro proposta por Pina Bausch, Helena Katz faz o seguinte

comentário:

(...) já não se trata de uma maneira nova de representar os mesmos conteúdos pré-

existentes como dança ou como teatro. Pina Bausch cria novas formas-conteúdos.

Inventar formas estéticas é colocar no mundo aquilo que o mundo não conhecia,

parafraseando livremente Pierce. Transitar por singularidades. (KATZ, 1989, p.10)

31

Inge Baxmann, ―Dance Theatre: Rebellion of the Body, Theatre of Images and na Inquiry into the ―Sense of

the Senses‖, in Ballet Internacional, v.13, n.1 (January, 1990), 60, apud FERNANDES, 2007.

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Movimento 7: Travessias de Pina Bausch

Neste ponto, os procedimentos trabalhados pela artista serão aqui localizados nos ítens

denominados como Travessia A e Travessia B. Tais travessias são indicações de forças que

atuam em todas as direções e sentidos e que somadas, subtraídas, multiplicadas e divididas

poderão sugerir algum resultado de um cálculo que nunca será exato, haja vista a

complexidade dos caminhos percorridos. Entretanto, o interesse nessas travessias reside nas

possíveis conexões entre obra e espectador. De que modo os procedimentos trabalhados com

os atores-bailarinos favorecem estímulos para a ativação e participação da plateia? De onde

vêm as forças que atravessam os limites do palco e invadem o espaço criando um ambiente

onde obra e espectador se tocam?

Entre tantos escolho dois possíveis caminhos de acesso a um trabalho complexo de uma

artista que dirige sua atenção às possibilidades de desvelamento e movimentação da vida entre

formas que oscilam, se fazem e se desfazem em acontecimentos que nunca se repetem.

É simplesmente a vida, em última instância, o material fundamental das criações de

Bausch. Outro dado importante, no que concerne à dificuldade de localização das práticas de

Pina Bausch, diz respeito à variedade de referências e elementos presentes em seus trabalhos.

Conforme informações de Solange Caldeira:

Na sua dança está também o cinema de Walter Murnau (Fausto), Fritz Lang (O

Vampiro de Düsseldorf, Metrópolis) e Robert Wiene (O Gabinete do Dr. Caligari).

Podemos encontrar ainda influências do Dadaísmo do Cabaret Voltaire.

(CALDEIRA, 2009, p. 27)

Travessia A: Quebra de representação e zonas de intensidade

Para responder as questões levantadas acima faz-se importante abordar o interesse de

Pina Bausch em provocar questionamentos sobre a figura do bailarino como eixo de uma

representação pautada em padrões e formas já conhecidas. A crítica à dança como

procedimento que exige movimentos espetaculares aparece em diferentes trabalhos de

Bausch. As formatações previsíveis e a execução de movimentos que reproduzem a técnica do

balé clássico cedem lugar à revelação do artista, do ser humano, daquele que executa as

formas e que foge dos limites impostos por modelos e regras. A partir desta ruptura, ou

crítica, serão discutidos aspectos referentes à criação de espaços potenciais ou de interação.

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69

Intensidades que do palco invadem a plateia, experiências de contato e afeto que surgem na

intersecção entre obra e espectador.

Nesta primeira travessia de Pina Bausch saliento a quebra de imagem do bailarino como

um corpo-lugar de técnicas e execução de movimentos formatados e previsíveis.

Tal questão aparece em espetáculos como Nelken, de 1982, quando o ator-bailarino

Dominique Mercy se apresenta para a avaliação do espectador. O solo de Dominique é uma

forte crítica aos movimentos padronizados e aos corpos condicionados pelas regras do balé.

No decorrer das demonstrações de passos virtuosos, o intérprete se dirige ao público e

pergunta: ―É isto que vocês querem? O que você quer?‖

Em Bandoneon, peça criada no final dos anos 1980, os passos virtuosos do balé clássico

são questionados. Bausch critica o universo da dança como um campo orientado por regras e

padrões rígidos. O bailarino Dominique entra em cena vestindo um tutu e executando passos

de balé de forma irônica.

Dominique Mercy em Bandoneon

A partir de tais exemplos é possível perceber que Bausch explora possibilidades de

quebra da imagem do bailarino como um ser pertencente a uma realidade paralela e

espontânea. São colocados em pauta desejos e frustrações que se escondem por detrás de

representações e formas padronizadas. Aparecem lacunas entre a dança, o teatro, a

espontaneidade, a vida e a representação.

A figura do bailarino como representação que se apresenta à apreciação do espectador

sofre alterações, e os gestos que antes cabiam em modelos conhecidos revelam-se em suas

complexidades e contradições. Os gestos se prolongam, atravessam limites e revelam forças

que transitam entre formas.

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As questões formais da dança, exploradas dentro dos limites do palco, já não são

suficientes para o acontecimento da obra. Como a superação do plano de Lygia Clark anuncia

novos espaços para o acontecimento da arte, a apresentação dos bailarinos, livres de padrões e

fórmulas conhecidas, expande a zona de ação do fenômeno artístico. Já não interessa o que

acontece dentro dos limites de uma área, mas aquilo que escapa e que promove novas

possibilidades de experiência no espectador.

A partir do exemplo acima, é possível analisar as peças de Bausch da perspectiva de um

quadro cênico – utilizando a metáfora do quadro como espaço pictórico que vai sofrendo

rachaduras ao longo das apresentações. Os quadros cênicos de Pina Bausch sofrem abalos e

deslizes, atravessam os limites do palco. O espectador se depara com a revelação de forças

antagônicas que habitam um corpo condicionado por regras e formatações. O corpo que se

apresenta não cabe em formas e não está preso aos limites da cena. Há uma reverberação que

aproxima vida e representação. O visível é apenas uma parcela daquilo que observamos. O

olho perde os referenciais seguros, os lugares já conhecidos e as zonas de conforto para o

olhar. O olhar transita, se move e experiencia novos espaços. Entre obra e espectador surge

uma área instável que comprova que a forma já não cabe mais em si, e que aquilo que se vê

não está separado de quem vê.

O palco surge como um local de transição, como um atrator, como espaço indefinido,

móvel, inclassificável e em vias de ser habitado. ―Pina Bausch sempre subtrai de seus

personagens – e dos seus espectadores – o chão firme de seus hábitos, enviando-os a paragens

distantes nas quais eles se vêem obrigados a encontrar a si mesmos, uma vez que todas as

perspectivas foram invertidas.‖ (SERVOS apud CYPRIANO, 2005, p.36)32

E ainda sobre as aproximações entre obra e espectador em Bausch é possível trazer o

seguinte exemplo que trata da expansão do espaço de ação do palco, a partir da peça Árias:

(...) um dos bailarinos surge no balcão do teatro, portanto, na plateia, e grita para os

que estão no palco que quer se jogar lá de cima. A cena é dramática, um jogo de

encenação entre ficção e realidade. Todo elenco implora para que ele não pule. É

comum que os bailarinos caminhem pela plateia e utilizem as portas laterais como

entrada e saída. Os limites físicos do teatro não são intocáveis para Bausch,

rompendo os limites da representação, como também propunha Brecht.‖

(CYPRIANO, 2005, p.36)

As investigações de Bausch anunciam crises na forma e na área de ação do evento

cênico, como demonstram os exemplos acima, e promovem ainda mais expansões da cena

32

Norbert Servos, ―As muitas faces de Pina‖. Bravo! Número 40. São Paulo, 2000, p.68

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através da utilização e incorporação de elementos que potencializam a presença dos bailarinos

diante dos espectadores.

É recorrente nos trabalhos de Bausch a presença de elementos orgânicos, como terra,

água, flores, folhas, pedras e objetos que potencializam a experiência do corpo no espaço.

Quando o palco é coberto de terra em A sagração da primavera (1975) ou de água em Árias

(1979), eles aparecem como meios através dos quais os corpos experimentam, agem e reagem

criando atos sempre novos, mesmo que os percursos traçados ou as coreografias sejam as

mesmas. Em contato com tais elementos o corpo interage, reverbera e cria zonas de

intensidades. O ambiente aparece como um potencializador de instabilidades que promoverão

desafios e escolhas durante a atuação dos bailarinos. O meio favorece a presença de um corpo

que pensa em ação.

Nas cenas de Bausch os atores-bailarinos constroem o espaço a partir das suas relações

com os elementos e parceiros de cena, o que estimula a percepção do público em várias

direções enquanto a própria percepção dos artistas é alterada.

O visual e a intensidade que surgem da interação dos bailarinos com os elementos que

compõem a zona de ação do espetáculo reverberam no espectador. O palco é uma zona

provocativa que estimula o risco e desafia o ator-bailarino em suas ações. Aquilo que vemos

sofre constantes transformações já que as relações dos bailarinos com seu espaço de atuação

fazem reverberar um lugar sempre novo. Algo nasce no instante da apresentação e ao

acompanhar este nascimento o espectador participa de uma ação que não está fechada em si,

mas em diálogo com os estímulos e com alterações do ambiente. Lidar com terra, água e

flores, por exemplo, é sempre uma situação que não pode ser mensurada e repetida sem que o

corpo experimente o desafio de encontrar mecanismos de defesa e libertação nesses cenários.

Os elementos alteram as movimentações e agem como estímulos que dificultam a mera

execução de uma sequência. Há um fator do acaso que se faz presente a cada apresentação nos

vínculos que nascem entre o artista e os elementos que compõem o cenário. Cenário este que

pode ser comparado a um ambiente vivo e pulsante que estimula a habitação do artista e do

espectador.

Ainda em relação aos elementos acima mencionados, e que aparecem nas cenas de

Bausch, é possível afirmar que eles compõem uma textura viva que provocará os sentidos da

plateia.

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Em Nelken (―cravos‖, em português) o cenário é repleto de flores de plástico coloridas

espalhadas pelo palco, homens em trajes elegantes se movimentam entre as flores, rindo e

pulando, uma mulher seminua cruza o palco com um acordeon.

Nelken,1982

O palco de Bausch surge como um ambiente ou cenário sensorial que tende a acionar o

corpo do espectador. Fluxos de prazer e desejo se movimentam ativando vínculos entre obra e

plateia. De acordo com Patrice Pavis é possível dizer que:

(...) fica-se sensível ao espetáculo sobretudo como ação real e material (e não como

produção de imagens, signos e metáforas). O corpo do ator, assim como o do

espectador, é o corpo de um ser real e incarnado e não de um espectador-modelo

abstrato. Interessa aqui as modificações tônico-posturais do espectador, reabilita-se

sua visão ávida, seu toque, seu olfato, sua cinestesia: sentidos muitas vezes

esterilizados ou anestesiados. (PAVIS, 2003, p.216)

Bausch provoca diferentes experiências do espaço na relação entre obra e espectador. Os

elementos que potencializam a ação dos bailarinos estimulam também as reações do

espectador.

Na dança-teatro, observamos a superabundância espacial na utilização cada vez

mais freqüente de diferentes espaços. Pina Bausch, ao levar para o palco água e

terra, troncos de árvores e folhas secas, milhares de cravos ou dezenas de

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cadeiras, instaura um novo modelo espacial para a dança, até então inédito.

(CALDEIRA, 2009, p.18)

Como se observa na reação do cineasta Federico Fellini33

(1920-1993), em citação de

Fabio Cypriano (2005):

O que Pina Bausch conta no palco e na plateia é um teatro que liberta todas as

inibições, é festa, jogo, sonho, símbolo, recordação, antecipação, cerimônia. É

confronto que se destroi doce e insidiosamente, porque o que a gente quer é que

toda essa harmonia, toda essa leveza, todo esse encantamento não acabe jamais e

que a vida seja assim...‖

A partir daí é possível afirmar que tal evento cênico em suas proposições sensoriais

intensifica o espaço e favorece o transporte do espectador para o centro do fenômeno artístico.

Isto indica que a separação entre espectador e espetáculo, constatada visualmente, não dá

conta da complexidade das relações que se interpõem entre palco e plateia. E ainda sobre a

interação, neste contexto, é possível dizer que a ―neutralização do sistema motor (...) é apenas

aparente: na realidade, o observador age e reage fisicamente com aquilo que percebe.‖

(PAVIS, 2003, p. 226).

Pina Bausch faz apelo a várias percepções sensoriais em suas criações. Essa

multiplicidade torna difícil qualquer tentativa de organização de suas ideias como

um sistema de aprendizado de técnicas ou como código. Artes plásticas, ópera,

teatro, cinema partilham de seu universo em harmonia. Seu interesse está não no

movimento corporal dançante em si, mas no impulso, na vontade interna que dá

origem à ação. (CALDEIRA, 2009, p.56)

Bausch faz assim um ―teatro da experiência‖, de acordo com a definição do crítico

Norbert Servos34

, e o que a artista apresenta é ―um teatro que, através de recursos de

confrontação direta, constrói uma realidade, comunica de forma estética, tangível como uma

realidade física.‖ (SERVOS apud CYPRIANO, 2005, p. 28)

Travessia B: Memórias, registros, perguntas, respostas e desdobramentos ou o sensível

do método Bausch

Nesta travessia localizo os procedimentos de Pina Bausch que têm como intuito acessar

memórias e registros particulares dos artistas como forma de tocar em conteúdos e marcas

33

Frederico Fellini apud Fábio Cypriano, 2005, p.18. Fellini convidou Bausch para participar de seu filme E la

nave va, de 1983. O convite aconteceu após o diretor ter assistido à sua peça no Teatro Argentina, em Roma. 34

Norbert Servos, ―Pina Bausch Wuppertal Dance Theater or the art of training goldfish. Colônia: Rolf Garske,

1984, p.20 apud Fabio Cypriano, 2005, p. 28.

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escondidas nos corpos que constituem a sua companhia. Deste procedimento, interessa-me o

material humano e vivo que dará conta da revelação de forças que superam modelos

representacionais e anunciam o ator-bailarino como núcleo pontencializador do fenômeno

artístico.

A preparação do bailarino pela coreógrafa coincide com o exercício de um corpo

sensível, que se abre às interferências do ambiente e se coloca diante do outro no instante em

que cruza os limites de modelos e formas padronizadas. O corpo sensível escuta, age e reage.

É um corpo que não termina ou começa nos limites da pele, mas que se apresenta como

trânsito e movimento.

Como método ou legado de Bausch é possível mencionar a imensa lista de perguntas

que estimulam respostas pessoais e íntimas dos artistas. Tais respostas são posteriormente

utilizadas na composição de cada peça (Stück). Os espetáculos nascem de respostas às

perguntas de Bausch. No início das práticas de perguntas-respostas o clima é de inquietação e

resistências, segundo Leonetta Benivoglio35

, e só mais tarde acontece o ―levantar vôo‖,

quando os artistas começam a compreender aquilo de que se trata. Cada artista responde às

perguntas como as entende, não há indicações ou induções neste processo. Particularidades

são reveladas verbalmente ou através de movimentos e ações. Respostas aparecem como

palavras, gestos, imagens, narrativas e sequências improvisadas de dança. Independentemente

da resposta, cada artista deve anotá-la para não se esquecer e para poder repeti-la

posteriormente. Neste estágio da criação Bausch anota todas as respostas pacientemente e

estrutura assim a base fundamental do seu trabalho.

De acordo com Fabio Cypriano, nesta etapa do trabalho ―não há, obviamente, qualquer

forma de controle sobre as respostas apresentadas‖ (CYPRIANO, 2005, p. 33).

(...) o bailarino é livre para colocar-se no plano que achar mais adequado. Ele pode

inventar histórias, mas, mesmo assim, parte de um imaginário concreto que expressa

algum desejo pessoal. Muitas vezes não são perguntas, mas apenas palavras.

(CYPRIANO, 2005, p.33)

Como exemplo de tais práticas é possível citar as provocações de Bausch na preparação

para a peça Valsas, de 1982:

Fazer uma armadilha a alguém/ consolar/ um jogo com o próprio corpo/ o que

receberam dos seus pais/ renunciar / verão/ preconceitos que nos fazem sentir

35

Leonetta Bentivoglio, ―O método Bausch‖ in L. Bentivoglio, O Teatro de Pina Bausch, fundação Calouste

Gulbenkian, trad. Portuguesa, Lisboa, 1994, p.25 apud GIL, 1994, p.216.

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marginalizados / qualquer coisa de puro / hinos / uma poesia de amor / atenção, o

programa mudou. (CYPRIANO, 2005, p.33)

As sessões com o grupo de artistas parecem coincidir com um fenômeno que promove

experiências de ―verdade‖ e de ―identidade‖ profundas e pessoais, segundo depoimentos dos

integrantes da Cia. de Wuppertal e de acordo com José Gil (2001, p.216). Sobre tais

características o autor considera ainda que o ―método Bausch parece fazer vir à superfície

camadas soterradas de emoções e sentimentos‖ (GIL, 2001, p.216). E de acordo com Fabio

Cypriano: ―Seus bailarinos representam no palco a si próprios. Nos espetáculos são chamados

pelo nome, mostram fotos antigas, contam experiências vividas. Cria-se assim uma

cumplicidade entre público e bailarino, um jogo entre realidade e representação.‖

(CYPRIANO, 2005, P.29)

Mas quanto às aproximações do seu método com procedimentos terapêuticos, a artista

faz questão de salientar que seu intuito não é fazer terapia. Muito embora, integrantes da sua

companhia afirmem que as práticas tendem a engajá-los de uma maneira bastante particular

nas ações propostas pela artista.

A partir deste ―método‖, é possível se observar uma intensa simbiose produzindo-se

entre o palco e a plateia, encadeando a comunicação entre o bailarino e o espectador. O

fenômeno pode se dar sem mediações – como uma extensão empática direta – ou através das

reverberações imaginárias então produzidas, quando falas e gestos tornam-se elementos

desencadeadores fundamentais. Eles trazem ressonâncias do corpo, daquilo que o corpo

queria falar e não fala. A relação com o público tende a se dar em um estágio não-verbal no

qual as palavras e as frases trazem consigo registros e memórias que se encontram no corpo

como materiais ou fluxos arcaicos e infantis que sofrem atualizações ao serem agitados, de

acordo com José Gil (2001).

Destas relações, um espaço potencial parece ser criado tanto pelo olhar do público, que é

estimulado às alterações de percepções, quanto pelas ações dos atores-dançarinos, ao

interagirem entre si e com os elementos de cena criando reverberações que transformam o

evento cênico em ambiente de experiências compartilhadas. As qualidades do evento, deste

modo, só podem ser compreendidas e assimiladas enquanto processo e relação.

Nas peças de Bausch, uma palavra, um movimento ou um gesto aparecem sempre

acompanhados de informações não definidas, de pistas de afetos, de esboços e vibrações de

movimentos. Constituem manifestações do invisível habitando o visível da cena, tornando-a

densa e porosa.

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Qualquer coisa que passa entre e a fala e o silêncio e é o murmúrio do corpo que

compõe o seu sentido irradiante. Não o seu contexto, mas aquilo que toda a fala

produz sobre as camadas não-verbais corporais ou psíquicas, ressonâncias,

sensações, afetos e movimentos de pensamento que não pensam em nada.‖ (GIL,

2001, p.218)

O que parece fundamentar as ações dos bailarinos em cena são as práticas anteriores de

acesso a registros pessoais. Tais registros aparecem como um ―corpo de pensamento‖, para

utilizar as palavras de José Gil. Este corpo de pensamento se aproxima da ideia de ação, de

um pensamento que não pode ser pensado, mas apenas vivido pelo corpo. Um pensamento

que se desenvolve em um tempo-espaço que solicita a presença deste mesmo corpo. O corpo

de pensamento se distingue da noção de pensamento como imagem ou representação de

fantasmas e prospectos que habitam o corpo. Um corpo de pensamento é então um corpo em

experiência.

Em uma das cenas de Kontakhof, de 1978, vários bailarinos se aproximam de uma das

bailarinas e a tocam de várias maneiras. Apertam seu nariz, sua face, esfregam-se em seus

braços, pernas, puxam seus cabelos, coçam sua pele e tudo isso acontece sem a

intencionalidade de uma representação ou simulação. As ações e os gestos são verdadeiros,

acontecem de fato e se desenvolvem diante do espectador. Para esclarecer tal exemplo,

seguirei com as reflexões de José Gil:

Coçar o pescoço dessa mulher não é o que eu queria fazer (e não posso), mas o que

acompanha, no plano dos gestos emocionais, a minha atitude e o meu pensamento

quando estou diante dela. Digo então: o meu pensamento acaricia-a (porque há

pensamentos acariciantes, com um ritmo e um movimento acariciantes); ou ainda: o

meu pensamento afasta-se violentamente dela; ou: pensar nela é coçar-lhe o pescoço

(como só as crianças podem fazer). A minha resposta a um ―amo-te‖ apaixonado

exprimi-se melhor no gesto de deixar cair por terra a mulher que me diz do que em

qualquer réplica verbal que seja. (GIL, 2001, p. 219)

Kontakthof, 1978

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Tais falas-movimentos não ilustram alusões a movimentos. São ações que se fazem

presentes no instante presente. Pensamento e ação acontecem ao mesmo tempo. Pensamentos

que não poderiam existir sem a presença do corpo.

O impensável do pensamento e o inatuável do gesto reverberam no corpo e convocam

múltiplas vozes, palavras e movimentos silenciosos que comunicam no nível das pequenas

percepções. São prolongamentos e forças invisíveis que, como as emoções e todo o tipo de

afeto, compõem o complexo universo daquilo que se manifesta a partir de oscilações e

intervalos da forma. O invisível ressoa no material concreto – neste caso, o corpo, como

aponta José Gil (2001).

José Gil conclui seu pensamento dizendo: ―Toda a fala se prolonga em gestos virtuais.

Quer dizer, toda a fala comporta múltiplos gestos.‖ (GIL, 2001, p.220). É possível afirmar que

Pina Bausch trabalha nesta zona de interesse. Movimentos e falas que se multiplicam, se

proliferam e não comunicam apenas o já conhecido. E de acordo com Helena Katz (1989,

p.9): ―Dança-ato; palavra-ato. Fatos e coisas explicitando a impossibilidade do em-si, pois

plasmados como linguagem conhecida, tramam eventos inéditos.‖

Ainda no que se refere aos processos de preparação dos artistas e as possíveis

reverberações nos vínculos entre obra e espectador é possível apontar os processos de criação

nas residências da Cia. de Wuppertal por diferentes cidades.

Algumas produções de Pina Bausch são pautadas em experiências de lugares ou

passagens por cidades e países. Nestes trabalhos, a companhia se desloca para uma cidade e

das vivências dos atores-bailarinos nesses lugares são recolhidos e produzidos os materiais

que servem de base para a criação dos espetáculos assinados pela coreógrafa. Entre os

espetáculos que se inserem neste contexto de produção é possível citar Nur Du, que foi

inspirado em suas visitas ao oeste norte-americano; Der Fenster Putzer, em Hong Kong;

Água, no Brasil; Masurca Fogo, em Lisboa; Nefés, em Istambul e outros criados em cidades

como Roma, Palermo e Budapeste.

Nestes espetáculos, a artista investiga possibilidades de afetos com as cidades. Afetos

que aparecem como interações, experiências, impressões, gestos que falam sobre lugares

desconhecidos do mapa e que reverberam no contato com o espectador. Nas palavras de

Bianca Scliar36

, ―a maior realização de Bausch é ter conseguido guiar-nos por espaços que

36

Texto de referência: Textos Dançar afetos com a cidade: Pina Bausch, Tanztheater Wuppertal e Istambul por

Bianca Scliar Mancini • 02/04/2009. Site: http://idanca.net

Localização:http://idanca.net/lang/pt-br/2009/04/02/dancar-afetos-com-a-cidade-pina-bausch-tanztheater-

wuppertal-e-istambul/10130. site acessado em 05.12.2010.

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não são mapeáveis, que não são tombáveis e que são inexistentes geograficamente.‖

(SCLIAR, 2009).

Movimento 7. Breves considerações sobre o corpo neste contexto

O corpo aqui discutido, nas entrelinhas das práticas de Lygia Clark e Pina Bausch,

coincide com a noção de um corpo de pensamento, um corpo vibrátil37

ou um corpo real. O

conceito de corpo real, também criado por Deleuze e Guattari, ―comporta todo o virtual do

seu desejo, ultrapassando o corpo anatômico da medicina e o corpo-fantasma da psicanálise.‖

(GIL, 1997, p. 184).

A ação deste corpo acontece no espaço e nas múltiplas relações com objetos e estímulos.

Corpo este que não está separado dos caminhos que percorre. Corpo que coincide com seus

trajetos e movimentos. E é neste ponto de intersecção, quando as coisas todas se cruzam

através de toques físicos ou virtuais, que as interações acontecem.

O corpo, seja ele do espectador ou do dançarino, surge como lugar onde ressonâncias

anunciam transformações e implicações de toques e aproximações entre coisas que pareciam

distintas. Sob esta perspectiva, o corpo é o espaço que possibilita a visualização do invisível, a

experiência daquilo que não pode ser explicado e a compreensão que não cabe em discursos

intelectuais. Quando a pele deixa de ser um limite do corpo e é entendida como conexão e

espaço de interação e criação de novos lugares.

Entretanto, no âmbito desta pesquisa o corpo do espectador é o principal alvo de

investigação no que se refere aos vínculos entre obra e espectador. E é na vibração deste

corpo que um campo de partilha do sensível é inaugurado. Lugar que não separa obra e

plateia.

37

“Corpo vibrátil” é uma noção que a autora Sueli Rolnik vem trabalhando desde 1987, quando propôs pela

primeira vez em sua tese de doutorado, publicada em livro em 1989 (Cartografia Sentimental. Transformações

contemporâneas do desejo. Reedição: Porto Alegre: Sulina, 2006, 3a edição 2007). Tal noção designa a

capacidade de todos os órgãos dos sentidos de deixar-se afetar pela alteridade. Ela indica que é todo o corpo que

tem tal poder de vibração às forças do mundo.

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ATO 3 – Ao espacializar

O conceito de espacialização aqui sugerido coincide com a superação do espaço

ilusório, do espaço da representação, e apresenta a obra como movimento que cria lugares,

que inclui o espectador e que acontece como dinâmica em constante atualização.

O intervalo entre obra e espectador em um contexto que localiza a ação artística como

experiência prevê interações e reverberações que solicitam a presença do corpo – do

espectador, no contexto desta dissertação – como lugar instável e que necessita de

perturbações constantes.

Espaço e corpo se constroem mutuamente como lugares em trânsito que se moldam a

partir de relações, percepções e sensações. Caminhos com muitos acessos. Espaço e corpo

como potências de interação.

Movimento 1. Quando o espaço se molda

É importante destacar que o mundo – lugar de passagem e trânsito – costuma ser

estudado, analisado e classificado de acordo com medidas abstratas que se prestam ao

objetivo que fixar e definir uma ideia e um conceito sobre um território incomensurável. O

mundo real é um mundo descrito a partir de abstrações, como medidas de tempo e espaço, que

projetam experiências quantitativas e explicações que procuram reter um lugar que está em

constante movimento. Há uma tendência que visa medir a qualidade e transformá-la em

quantidade como modo de assegurar uma área limitada e controlável. E sobre este aspecto, é

interessante notar:

Quando um cozinheiro, preparando um ensopado, acrescenta sal, acrescenta sal,

prova o sabor, põe um pouco mais de sal, prova de novo e então diz: ―Agora está

perfeito‖, podemos ter alguém atrás dele registrando a afetiva quantidade de sal

acrescentada. E isso seria a abstração quantitativa que corresponde a uma

experiência de sabor que não foi absolutamente uma abstração. Entretanto, para

trazer as pessoas de volta ao mundo real, você precisa suspender temporariamente o

pensamento abstrato delas, porque é através da abstração que se divide tudo em

diferenças. É através da abstração que você chega à noção de que você é uma coisa

e eu sou uma outra e de que os acontecimentos são separados uns dos outros do

mesmo modo como os minutos são separados. (WATTS, 2002, P.61)

Então o mundo como compreensão intelectual é uma abstração e não algo concreto. O

conhecimento do mundo, neste caso, parece coincidir com o conhecimento de medidas

abstratas e não com a experiência do espaço. Neste contexto, vale à pena pontuar tal questão a

partir da seguinte reflexão:

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Como um cientista trata o que ele chama de mundo material? Resposta: através de

métodos quantitativos. Como se estabelece a quantidade? Pela medição, pelo

número, isto é, representando a natureza em termos de categorias abstratas –

metros, centímetros, segundos, graus e assim por diante -, todas elas exatamente tão

abstratas quanto as linhas de latitude e longitude em um globo. (WATTS, 2002,

p.60)

Entretanto, a experiência do mundo e do espaço é algo que ultrapassa os entendimentos

abstratos e acontece diretamente na interação do sujeito com o entorno. Considerando os

apontamentos de Alan Watts:

O mundo que pode ser visto e sentido sem abstrações é o mundo no qual

você está ligado a tudo que existe, ao Tao e a todo o curso da natureza. No

entanto, você tem sido ensinado de modo diferente porque tem sido logrado

e manobrado por pessoas que tagarelam e explicam, e que já hipnotizaram a

si mesmas com uma visão do mundo que é bastante abstrata, bastante

arbitrária e não necessariamente do modo como as coisas são. (WATTS,

2002, p.62)

A partir desta abordagem de espaço é possível trazer a noção de espaço potencial de

Donald Woods Winnicott (1896-1971), que deriva do seu conceito de espaço transacional.

Para o psicanalista inglês, o espaço transacional está relacionado com as maneiras de captar e

apreender o mundo. Tal espaço pode ser compreendido a partir das relações que as crianças

estabelecem com objetos por elas escolhidos, como bonecas, fraldas de pano, chupetas etc.

Depois de alguns meses de vida a criança começa a perceber a separação entre o seu

corpo e o da sua mãe. E é desta experiência que a criança sentirá a necessidade de encontrar

meios e elementos que a auxiliem em sua relação com o mundo. Surgem então os objetos

transacionais e com eles o espaço transacional. E é deste lugar que a criança parece lidar

melhor com as suas angústias e dialogar com o entorno. Acontece um jogo particular que

permite à criança interagir com o meio.

Segundo Josette Féral (2003), o espaço transacional é potencial e virtual, podendo ser

físico ou mental. Ainda de acordo com a autora ―Winnicott toma esta ideia como base de sua

análise e mostra que a cultura cria seu espaço potencial através da arte. Para que a arte exista

deve haver o espaço potencial.‖ (FÉRAL, 2003, p.42).

O espaço potencial, na concepção de Winnicott, não se limita aos aspectos reconhecidos

visualmente, da esfera das propriedades físicas, mas também aos princípios e às dinâmicas

mentais. De modo que este espaço pode estar nos olhos daquele que vê, como nos olhos do

espectador, como afirma Féral.

Ao tomar então como base o espaço potencial, que não é aquele onde coisas são

dispostas, mas sim aquele que surge da relação, é possível seguir com o movimento seguinte.

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Movimento 2. Espaço e corpo, instâncias entre a obra e o espectador

Os procedimentos de Pina Bausch e Lygia Clark mencionados no ato anterior sugerem

possíveis diálogos com a noção de espaço investigada no contexto da arte contemporânea no

que se refere ao lugar como campo potencial. Tal noção se interessa pela transformação do

espaço ordinário, favorecendo alterações na percepção e na experiência do acontecimento

artístico.

Um espaço de relação surge entre obra e espectador. O corpo e o espaço aparecem como

instâncias, dinâmicas, interações e movimentos. O corpo aparece como suporte da experiência

artística e uma nova perspectiva quanto à configuração de espaço é apresentada. As relações

preveem o deslocamento do corpo em suas interações e reverberações.

Corpo

No âmbito desta pesquisa destaco a presença do corpo do espectador, muito embora a

preparação e o modo como os corpos dos bailarinos-atores da Cia. de Pina Bausch se colocam

diante da plateia sejam um dos principais fatores desta ativação.

A noção de corpo aqui adotada coincide com a ideia de um ―corpo à espera de‖, como

sugere José Gil em seu livro ―O Movimento Total‖; ou como ―becoming-body‖, (―tornando-se

corpo‖, em português) como indica Erin Manning38

. Ambas as noções favorecem a

compreensão de um corpo que está em constante mobilidade e transformação. Seus

movimentos são atravessados por pequenas interferências que provocam contrastes,

diferenças e a ativação da memória.

Enquanto a função da arte é questionada, o corpo do espectador em sua presença ativa

no espaço é alvo de especulações e propostas que compreendem a arte como experiência. Tal

experiência implica na ativação de forças que impulsionam o corpo em direção à construção

de novos sentidos. Há então uma ação de mão dupla. O ambiente estimula – muitas vezes em

sua própria presença – e o corpo ao interagir com o ambiente aciona conexões, trajetos e redes

que se atualizam no espaço onde ele transita. O corpo se altera e altera o ambiente. O ato

acontece em curvas. As interferências do meio afetam os movimentos através de pequenos

desvios que alteram os trajetos lineares previstos. A linha reta se desestabiliza e percorre

38

MANNING, Erin, no artigo ―Prepositions for the Vergue – William Forsythe´s Choreographic Objects‖.

Inflexions No.2 ―Nexus‖ (December 2008) www.inflexions.org

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caminhos que sugerem diferentes direções. Na mudança do sentido do movimento acontece a

curva, o instante em que a trajetória surpreende. Um novo direcionamento é apontado e novos

caminhos podem ser percorridos – no âmbito artístico ou cotidiano.

No contexto abordado acima, o corpo aparece como ―poder de transformação e devir‖,

conforme síntese criada por José Gil (2007) em suas reflexões sobre Deleuze e Guattari.

A redescoberta do corpo sugerida e proposta por ações de vanguarda coincide, de algum

modo, com a descoberta do espaço (ou vice-versa) como lugar que não está dissociado das

coisas e dos acontecimentos, e favorece uma renúncia à representação. Análises e julgamentos

são reconsiderados em prol de uma ―percepção total‖ que prevê a premência da subjetividade

e da experiência estética em relação aos códigos conceituais que delimitam zonas de ação

para o evento da arte.

Ao discorrer sobre a presença do corpo nas vanguardas artísticas, Renato Cohen (1989)

aponta:

Jackson Pollock lança a idéia de que o artista deve ser o sujeito e o objeto de sua

obra. Há uma transferência da pintura para o ato de pintar enquanto objeto artístico.

A partir desse novo conceito, vai ganhar importância a movimentação física do

artista durante sua ‗encenação‘. O caminho das artes cênicas será percorrido então

pelo approach das artes plásticas: o artista irá prestar atenção à forma de utilização

de seu corpo-instrumento, a sua interação com a relação espaço-tempo e a sua

ligação com o público. (COHEN, 1989, p.44)

No contexto dos processos artísticos que se concentram nas interações e na presença do

corpo, os aspectos visíveis e invisíveis deste mesmo corpo desencadeiam análises, estudos,

práticas e reflexões que pretendem promover o acontecimento da obra na ação, na interação

do sujeito com o ambiente. O corpo é descoberto pelas vanguardas como possibilidade de

suporte, em uma concepção que o anuncia como espaço móvel, maleável, vulnerável e sujeito

a interferências em distintos campos da arte. Para elucidar tal condição do corpo é possível

mencioná-lo como órgão que capta as mais sutis vibrações do mundo, como anuncia José Gil

(2004).

Espaço

Para tratar do espaço, inicio com a seguinte citação de Didi-Huberman, estudioso de

psicanálise, crítico e teórico da arte:

Portamos o espaço diretamente na carne. Espaço que não é uma categoria ideal

do entendimento, mas o elemento despercebido, fundamental, de todas as nossas

experiências sensoriais ou fantasmáticas. (...) As imagens — as coisas visuais —

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são sempre já lugares: elas só aparecem como paradoxos em ato nos quais as

coordenadas espaciais se rompem, se abrem a nós e acabam por se abrir em nós,

para nos abrir e com isso nos incorporar (DIDI-HURBERMAN, 1998, p.246-

247, apud Tania Rivera39

)

O espaço concebido no Ocidente como lugar dentro e fora constitui o interior no sujeito

ou no objeto e o exterior na realidade que o cerca. Assim, sujeito e ambiente aparecem

separados na sua origem, mobilidade e apresentação no mundo. E é pautada nesta cisão que a

arte ocidental se desenvolve, até que sejam lançadas as interrogações anunciadas pelas

vanguardas no final do século XIX e início do século XX na Europa. Neste momento

concepções menos dualistas, muitas vezes fundamentadas em princípios de procedimentos

orientais sobre a concepção do espaço, do objeto e do sujeito, tratam de reformular o lugar do

acontecimento da arte. Os planos se tocam e uma plataforma móvel e comunicante assegura o

trânsito entre objeto, sujeito e espaço.

Sobre tais transformações afirma Mario Pedrosa:

Não se trata mais de um espaço contemplativo, mas de um espaço circundante. Já

em 1922, Maholy-Nagy, com Alfredo Kemeny, lançavam, nas pegadas de Gabo-

Pevsner, um manifesto sobre o sistema de forças dinâmico-construtivo que,

―ativando o espaço‖, permitiria ao homem, ―até aqui meramente receptivo em sua

observação das obras de arte, experimentar uma intensificação de suas próprias

faculdades, tornando-se ele mesmo um parceiro ativo das forças que por si mesmas

desabrochavam. (CLARK, 1980, p. 17)

Este novo espaço que surge após rupturas e alterações em estruturas pautadas em

normas e referenciais fixos revisa princípios fundamentais para os processos artísticos. O ato,

ou a ação desencadeada, é um dos principais alvos de interesse nos procedimentos no início

do século XX e, sobretudo, na década de 1960. Neste ato está implicado o espaço, o sujeito e

o objeto. A interação entre eles provocará transformações na concepção do evento artístico,

assim como em outras áreas do conhecimento.

As vanguardas do início do século XX experimentaram na performance, no happening,

na live art e em movimentos outros, rupturas que provocaram expansões de limites entre um e

outro campo artístico e questionamentos sobre a função e o espaço da arte. O espaço das

representações foi transformado em tempo-espaço ―vivo‖. As influências de práticas orientais

são percebidas principalmente nas orientações de aqui-agora e arte e vida. Aproximações

39

Localização, http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S151614982008000200004&script=sci_arttext.

Acesso dia 17.05.2011

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entre o cotidiano e o fenômeno artístico transportam a arte de uma posição sacra e inatingível

para os movimentos do cotidiano.

Sobre investigações das vanguardas artísticas, Jorge Glusberg aponta que havia:

(...) uma busca de envolvimento do público na atividade artística. Poetas, pintores,

dramaturgos e músicos denunciavam a estagnação e o isolamento da arte de então. O

que se buscava era uma vasta abertura entre as formas de expressão artística,

diminuindo de um lado a distância entre vida e arte e, por outro lado, que os artistas

se convertessem em mediadores de um processo social (estético-social).

(GLUSBERG, 2009, p.12)

No livro ―Performance como Linguagem‖, Renato Cohen utiliza as palavras de John

Cage: ―Gostaria que se pudesse considerar a vida cotidiana como um teatro‖. (1989, p.38).

O lugar que surge, da revisão de conceitos apontada acima e das aproximações entre arte

e vida exploradas pelos movimentos de vanguarda é um espaço de interações ou conforme

considerações de Beatriz Scigliano Carneiro40

: ―espaços onde se reuniram resquícios de vários

outros espaços e tempos formando um conjunto que se deslocaria do cotidiano, permitindo

experiências paralelas diversas‖ (CARNEIRO, 2004, p.40). Foucault, em considerações de

Carneiro (2004), afirma ainda que no século XIX o foco era o tempo e que ―nossa época atual

será talvez a época do espaço.‖41

Sob este enfoque, o tempo não aparece de modo independente ou deslocado do evento,

mas como agente e distribuidor de elementos no espaço, como indica Carneiro (2004).

Inaugura-se então um espaço compreendido como sistema de relações e não como lugar vazio

que abriga coisas e pessoas. Lugar é espaço vivenciado, descrevê-lo é descrever as relações

que o configuram.

Movimento 3: A obra como lugar de habitação

Ambientes de interação são lugares que pressupõem a habitação, espaço por onde

transitam desejos, afetos e forças que transformarão o lugar. O espaço se move, afeta e é

afetado. Sujeito, objeto e espaço se tocam. Este toque pode ser tanto físico quanto virtual.

Virtual como aquilo que escapa aos contornos visíveis e se prolonga pelo espaço provocando

ressonâncias e deslocamentos.

40

Artigo de Michel Foucault (1926-1984) ―Dos espaços outros‖ apresentado na conferência de 1967 e liberado

para publicação em 1984. 41

Des espaces autres, Dits et Ecrits IV, p. 752 apud CARNEIRO, 2004, p.41

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A criação de ambientes, lugares, vias, trajetos e passagens coincide com a presença e a

experiência do espectador quando sua presença é fundamental para o acontecimento artístico.

Para abordar tal temática farei referências a Hélio Oiticica que podem auxiliar na

visualização do ambiente de interação que aparece em traços das artistas Lygia Clark e Pina

Bausch.

Originário das artes visuais, o artista Hélio Oiticica é um dos nomes mais importantes

no que diz respeito às propostas de interação. Seus interesses se centralizam na criação de

trabalhos que estimulam a ação do espectador em suas relações como o entorno, sugerindo as

obras ambientais.

Um de seus trabalhos é um labirinto penetrável criado ―para estimular o espectador

dentro de uma rede de relações com coisas a serem apreendidas fisicamente (pisar na areia,

por exemplo)‖, como descreve a curadora e crítica de arte Lisette Lagnado42

. Este trabalho,

intitulado Tropicália, dá nome a um dos maiores movimentos artísticos e culturais do Brasil

no final da década de 1960 – a Tropicália – e contribui para o aparecimento de clichês

referentes às particularidades brasileiras (brasilidades) na relação que seu povo mantém como

o corpo. Entretanto, ainda de acordo com apontamentos de Lagnado,

(...) essa cena obviamente tropical, que trazia plantas, araras e seixos, entre outros

elementos, contribuiu para louvar uma espécie de folclore nacional (contra o qual

Oiticica dedica em vão fartas críticas) quando se deveria prestar mais atenção para

a vontade do artista de ―criar ambientes para o comportamento‖. (LAGNADO,

2004)

Nestes movimentos que pretendem acontecer na fusão da pele com o ambiente existe

uma intenção de articular aberturas no corpo para aquilo que está por vir, o desconhecido e o

indeterminado, segundo Lagnado. E é neste sentido que as produções de Hélio Oiticica

inauguram, no momento seguinte, as ―ordens de manifestações ambientais‖, com a criação de

Núcleos e Penetráveis, conforme indica Luciana Figueiredo na introdução do livro ―Aspiro ao

Grande Labirinto‖ (1986). Oiticica transita da teoria do Não Objeto, de Ferreira Gullar, que

questiona a dissolução do objeto de arte para a criação em um espaço coletivo que integra e

solicita a participação. O artista radicaliza e pensa a ―obra‖ como o ―mundo‖.

42

O artigo de referência "Longing for the body", ontem e hoje‖ foi escrito para a mostra "Brasil - Body

nostalgia", com curadoria de Katsuo Suzuki. A mostra foi realizada em 2004 para duas instituições:

The National Museum of Modern Art de Tokyo e The National Museum of Modern Art de Kyoto. Os

artistas convidados foram: Tarsila do Amaral, Miguel Rio Branco, Adriana Varejão, Dias & Riedweg,

Lygia Clark, Ernesto Neto, Mira Schendel, Brígida Baltar e Rivane Neuenschwander. Agradeço ao

curador Katsuo Suzuki a autorização para republicar este ensaio, sem a qual ele permaneceria inédito

no Brasil.

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Movimento 4: Uma obra, do objeto ao quase-corpus

Primeiramente, para tratar do conceito de objeto é importante contextualizá-lo no campo

dessa investigação – a arte. Vinculada à ideia de ―obra de arte‖, a palavra ―objeto‖ esteve

condicionada por muitos séculos, sobretudo no âmbito ocidental, a um sistema organizador de

códigos vigentes que se configuram de modo a apresentar-se diante de um sujeito. Em um

momento anterior aos questionamentos lançados pelos movimentos e ações da vanguarda

histórica, a ―obra de arte‖ é uma possível analogia de um objeto que se lança à apreciação.

Sujeito e objeto se confrontam a partir de espaços distintos. O objeto é uma área de

representação, de ficção, e uma construção que se apresenta ao sujeito. Nesta configuração

que trata de separar sujeito e objeto, a análise e a observação tornam-se os principais elos

entre os lugares do sujeito e os do objeto.

Neste movimento e na superação da noção acima apresentada, proponho a partir da

leitura do ―Manifesto Neoconcreto― a visualização da obra de arte como um corpo ou um

organismo em constante transformação, como um sistema que se abre à medida que permite o

trânsito dentro e fora e a relação com o entorno. O ―Manifesto Neoconcreto‖ questiona o

conceito de obra de arte e critica concepções que fazem analogias à obra como máquina ou

objeto. É possível perceber que a obra é compreendida como um quase-corpus, isto é, um ser

cuja realidade não se esgota nas relações exteriores de seus elementos; um ser que,

decomponível em partes pela análise, só se dá plenamente à abordagem direta,

fenomenológica.‖43

O que o ―Movimento Neoconcreto‖ pretende é reacender a experiência

primeira do real, conforme indicações nele contidas:

A obra como organismo, como organismo estético, que não se encerra em si, mas

que se abre para o entorno, que se faz na relação e que não solicita ―de si e do

espectador apenas uma relação de estímulo e reflexo, mas que fala ao olho como

um modo humano de ter o mundo e se dar a ele, fala ao olho-corpo e não ao olho-

máquina.‖

Pensar a obra como organismo, como sistema aberto e em comunicação com o

ambiente, eis o que defende o ―Manifesto Neoconcreto‖. Abordar a obra como organismo

implica ainda refletir sobre a espacialização da obra abordada no Manifesto, e que trata do

43

Manifesto Neoconcreto, texto republicado em ―Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo

brasileiro‖, de Ronaldo Brito.

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fato de que ela está sempre se fazendo presente, ―está sempre recomeçando o impulso que a

gerou e que ela era já a origem.‖44

.

Movimento 5: Aproximações de pontos visuais e cênicos ou a liberação da arte

Nas artes visuais, o declínio da pintura figurativa associa-se à transferência da

objetivação para a impressão – Impressionismo. Neste momento é possível observar a

dissolução dos objetos em manchas de cor e a representação usual das coisas se confundir

entre reflexos luminosos.

A partir daí, o objeto representado vai perdendo cada vez mais a significação, e como

consequência, o quadro, como objeto, ganha importância. Como exemplo é possível ressaltar

o momento em que Piet Mondrian retira da tela todos os vestígios do objeto, não apenas a

figura, mas também a cor, e sobra-lhe então a tela em branco que ressaltará a presença

material da tela e a transformará no novo objeto da pintura.

Se para um pintor tradicional a tela em branco representava o suporte material sobre o

qual ele representava espaços, para Mondrian a tela em branco é uma alternativa que tem

como principal função a transcendência e a realização da obra no espaço real. Vinculada a

esta ideia aparece a problemática da moldura, que no primeiro momento atua como um meio-

termo entre a ficção e a realidade, e em Modrian esta mesma moldura perde o sentido já que

não se trata mais de criar um espaço metafórico protegido do mundo, e sim de utilizar-se do

espaço real para criar uma nova significação.

Enquanto os europeus investigavam problemáticas estéticas da pintura no próprio

quadro, os artistas americanos (Brasil, México, Estados Unidos etc.) expandem suas

experiências para outros domínios ou gêneros. Se a pintura moderna não alcançou nas

Américas a profundeza ou a transcendência puramente estética, em termos visuais e formais,

como na Europa, conforme Mário Pedrosa (1981), é nos países americanos onde foram feitas

as tentativas mais audaciosas de restaurar uma dignidade que insere o homem e o humano nos

processos artísticos dos quais ele havia sido excluído.

Os artistas mexicanos ao constatarem as limitações da pintura de cavalete foram os

primeiros a experimentar alargamentos no campo pictórico quando dirigiram sua atenção ao

afresco, como anuncia Mário Pedrosa (1981). Na tentativa de resgatar a participação da

44

Manifesto Neoconcreto, texto republicado em: ―Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo

brasileiro, de Ronaldo Brito.

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sociedade no evento da arte, o muralismo mexicano, pintura realista e monumental, liga-se ao

contexto social e político do país. O movimento muralista mexicano, baseado nos ideais da

Revolução Mexicana (1910-1920), agitou o interesse dos artistas e despertou a necessidade de

ir para a rua. Os ateliês são abandonados e os artistas saem às praças públicas em busca de

muros para pintar. O programa de pinturas de murais, narrando a história do país e exaltando

o fervor revolucionário do povo, adquire lugar de destaque no projeto educativo e cultural do

período, conforme informação da ―Enciclopédia de Artes Visuais‖ do Itaú Cultural45

. A arte

passa a ocupar espaços públicos, sai dos museus e das galerias para resgatar um espaço mais

próximo do cotidiano. Lugares de trânsito onde a arte torna-se coletiva ao romper com o

individualismo da pintura de cavalete. Os principais muralistas foram Diego Rivera, José

Clemente Orozco e Davi Alfaro Siqueiros que pintaram murais em vários e diferentes lugares

da cidade, como escolas, palácios e igrejas. Vinculados à arquitetura e criando o efeito de um

novo espaço em um mesmo lugar, os murais – presentes também em civilizações como a

grega, a romana e as pré–colombianas – surgem neste período com um caráter social e

político que anunciava uma arte nacional popular. O intuito era que a arte tivesse um alcance

social e fosse acessível a todos.

Deste modo, a revolução estética explorada no quadro é extravasada pelos artistas

americanos que expandem suas ações e rompem com a unidade de superfície da pintura-

quadro em um regresso que Pedrosa (1981) aproxima da maneira como os primitivos tratavam

a pintura.

Levando-se em conta que os principais interesses do muralismo mexicano são as

questões ideológicas e políticas que preveem a mobilização social, interessa-me aqui destacar

o impulso fundamental que desloca a arte dos espaços fechados e propõe um encontro com o

espaço cotidiano e de circulação das pessoas, favorecendo o contato com o espectador em um

lugar que não é aquele da instituição.

Após esse breve comentário sobre a ação dos artistas mexicanos, que influenciaram

diretamente os movimentos artísticos brasileiros em suas investidas de criação em espaços

que ultrapassam as bordas das molduras, como o Neoconcretismo, é importante destacar que a

questão de romper com a moldura na pintura não é uma preocupação meramente técnica ou

física. O que se pretende é libertar-se de convenções, libertar-se para reencontrar o instante

45

Site: www.itaucultural.org.br

http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3

190. Acessado em 20.10.2010

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em que a ―(...) obra aparece pela primeira vez livre de qualquer significação que não seja seu

próprio aparecimento‖. (Gullar, 1959).

A partir das considerações acima é possível apresentar um panorama de mudanças

ocorridas no teatro que coincidem com a ruptura de limites, regras e padrões. Pretende-se

liberar a arte e provocar encontros com o espectador. Assim como no retrospecto anterior

referente às artes visuais, é possível de modo bastante sintético e geral destacar pontos de

transformação a partir do final do século XIX, quando a doutrina naturalista libera a

dramaturgia de regras baseadas na ―Poética‖ de Aristóteles provocando alterações

significativas na representação e direção cênica.

Inspirado no ideal naturalista, Constantin Stanislavski (1863-1938), ator e diretor teatral

russo, investiga e sistematiza um ―método‖ para a preparação dos atores que revoluciona as

técnicas de interpretação e as investigações sobre a arte do ator. Para o diretor, em primeiro

lugar o ator precisa aprender a dominar-se, isto é, a localizar as suas tensões e controlá-las

para que não haja a perda da sensibilidade. Após as sistematizações e técnicas referentes à

preparação dos atores sugeridas por Stanislavski no Teatro de Moscou, novas

experimentações práticas e teóricas aparecem, de um modo geral, enquanto afirmação ou

negação das propostas deste diretor.

A evolução do naturalismo/realismo proposto por Stanislavski tem como consequência

o aparecimento de novas tendências que modificaram substancialmente as práticas teatrais,

que já não se interessavam em esconder o jogo que se estabelecia em cena. Ao público são

revelados os ―segredos‖ da estrutura teatral, e este é então convidado e a se aproximar deste

pacto sem a proteção de uma ―quarta parede‖, que exercia a função de incentivar a ideia da

cena enquanto realidade paralela e separada do público.

O teatro passa a se interessar por movimentos que conduzem a cena teatral como

acontecimento capaz de estabelecer uma comunicação direta e viva. Traços da obra antes

fechada e focada em si escapam favorecendo contatos entre realidade e ficção, entre arte e

vida, sujeito e objeto etc. Artistas e público se tocam. Toques visíveis e invisíveis que

proporcionam o encontro, como pretendia o ator e diretor francês Antonin Artaud.

Tais mudanças alteram eixos e áreas, e fazem oscilar os campos. A arte não está mais

presa a algum suporte definitivo e delimitado, ela percorre caminhos, aciona o espectador e

propõe novas experiências.

Levando-se em consideração que no panorama da arte hoje o teatral escapa ao teatral,

que a dança escapa à dança e que as artes visuais escapam às artes visuais, é possível afirmar

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no foco de interesse desta dissertação que há uma revisão de conceitos e estruturas. As

verdades absolutas e inflexíveis são transformadas em condições que estão sempre em diálogo

com diferentes contextos. As áreas, os campos e as linguagens se influenciam mutuamente. O

que acontece no teatro reverbera na dança, o que acontece nas artes visuais reverbera no

teatro, por exemplo. E assim a arte se movimenta, transita e não se limita a um suporte

específico. As questões subjacentes ao universo artístico tocam na vida e em problemáticas

que não se restringem aos aspectos visíveis. Os lugares investigados pelas artes são muito

mais zonas que preveem movimentos, percepções, deslocamentos, deslizamentos e trânsitos

do que espaços que se configuram em plataformas fixas, estáveis e reconhecíveis logo à

primeira vista. Não é o formato que assegura a experiência, mas a ruptura com relações

previsíveis que impulsiona o sujeito para novas conexões e experiências.

Neste ponto é possível aproximar o Neoconcretismo do Tanztheater. Embora tais

tendências se manifestem em diferentes lugares, o Neoconcretismo nas artes visuais e o

Tanztheater nas artes cênicas, existe uma raiz que parece comum a ambos – a arte muito mais

como processo e experiência do que como forma e compreensão intelectual. O caráter

processual destas práticas, ou movimentos, acompanha as mudanças que marcam as ações de

vanguarda do início e meados do século XX.

No Neoconcretismo e no Tanztheater a força propulsora do fenômeno da arte é o

principal foco de interesse das investigações que questionam padrões tradicionais e pautados

em normas definidas.

Pretende-se resgatar o instante primeiro do ato. O momento em que as coisas não estão

separadas umas das outras, mas em constante comunicação possibilitando uma variedade

enorme de combinações, entendimentos e sentidos. Aliás, o sentido não está mais separado da

experiência direta, do momento em que o espectador é inserido em uma ação. A participação

direta ou indireta do espectador em um evento artístico prevê a produção de um sentido

particular que nasce da sua relação com os elementos sugeridos. O intuito da arte, neste

contexto, não é o de transmitir uma mensagem, mas provocar diferentes relações no espaço

concebido como ambiente de produção artística. O espaço da metáfora simbólica se expande e

se transforma no espaço da criação e das afecções, como sugere Deleuze.

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ATO 4 – Trajetos do espectador nas travessias de Lygia Clark e Pina Bausch

O trabalho não mais se interromperia na finitude da espacialidade do objeto;

realizava-se agora como temporalidade numa experiência na qual o objeto se

descoisifica para voltar a ser um campo de forças vivas que afetam o mundo e são

por ele afetadas, promovendo um processo contínuo de diferenciação. (ROLNIK,

2007)

A partir das considerações e colocações dos atos anteriores sigo com apontamentos e

investigações sobre possíveis trajetos do espectador em percursos e práticas de Pina Bausch e

Lygia Clark.

A compreensão da obra como um ambiente ou paisagem que pressupõe a habitação do

espectador através de forças que se cruzam e apagam as bordas que separam objeto e sujeito,

é o principal ponto de contato entre as práticas de Lygia Clark e Pina Bausch, na perspectiva

desta pesquisa. Propostas que rompem com paradigmas da representação e promovem

movimentos e tensões entre obra e espectador.

Promover o acontecimento da obra na expansão de um plano que reverbera em todas as

direções e que convida o espectador a uma experiência particular de movimento é o eixo

fundamental que sustenta esta dissertação. Tal eixo pode ser observado nos diferentes

vínculos entre obra e espectador e nas movimentações sugeridas neste encontro. Trafegar pela

quarta dimensão pode ser, um última instância, o efeito provocado pelo toque entre sujeito e

objeto.

Movimento 1: Considerações sobre a interação em Pina Bausch

Os espetáculos de Pina Bausch se apresentam como um acúmulo de experiências. Os

bailarinos levam para a cena gestos que nasceram em investigações, trajetórias particulares,

depoimentos pessoais e alteram assim a perspectiva restrita da obra de arte como a aplicação e

a execução de formas já conhecidas e decodificadas.

Informações, memórias, traços, gestos e silêncios se tocam desencadeando processos

particulares e íntimos, tanto no ator-bailarino quanto no espectador que mesmo por poucos

minutos perde seu referencial de separação da cena. Em alguns momentos da apresentação,

tempo e espaço são compartilhados em encontros nos quais os limites entre o real e o

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ficcional se confundem. Nestes momentos, os dançarinos falam de si próprios, se dirigem

diretamente à plateia e provocam movimentos que alteram as bordas entre a cena e a vida. Um

encosta no outro, o evento se amplia e pequenos transbordamentos favorecem a criação de um

lugar propício ao compartilhamento de ações. Segundo Ciane Fernandes:

Suas peças apresentam um caos grupal generalizado, com uma ordem inerente,

favorecendo processo sobre produto. Além disso, as peças provocam experiências

inesperadas em ambos dançarinos e plateia. Mas as obras de Bausch atingem tais

qualidades seguindo um caminho distinto daquele dos anos 60. Suas peças

apresentam a interação entre as artes sem rejeitar a grandiosidade teatral.

(FERNANDES, 2009)

A inclusão do espectador ao evento cênico acontece de diferentes maneiras. Em alguns

momentos é a ampliação do gesto do bailarino que se prolonga e toca na plateia, em outros, é

a interação direta que convida o espectador a participar da dança proposta por Pina Bausch.

Como exemplo desta interação direta trarei a descrição de uma cena da peça 1980 conforme

Ciane Fernandes:

Nazareth Panadero bebe uma xícara de chá, servida por outro dançarino na frente

do palco, enquanto outros dois dançarinos servem a mesma bebida aos

espectadores no auditório. Dançarinos e público são igualmente incluídos na

experiência física desta dança, inspirada num ato social. (FERNANDES, 2007,

p.66)

Pina Bausch transita entre dança, teatro e incursões pelo cinema, como no trabalho

Lamento da Imperatriz, para investigar as forças que movimentam os corpos. Seu lugar não é

nem o teatro nem a dança, mas a vida em suas variações, multiplicidades, acasos e

aleatoriedades.

É possível visualizar princípios de interação em procedimentos de Pina Bausch a partir

de comentários do autor Hubert Godard (1996) sobre dinâmicas presentes no trabalho de

Trisha Brown. Godard aponta que o dançarino de Brown é menos fiel ao desenho espacial,

―porém mais atento a uma dinâmica particular do movimento, que necessita uma escuta e uma

sensação da frase vivida, do mais ínfimo rastro de sua origem: no pré-movimento.‖

(GODARD, 2006, p.29). Ainda de acordo com o autor, Trisha Brown considera ―que a

presença do espectador e do meio podem influenciar e modificar a representação.‖

(GODARD, 2006, p.29). É a partir destas oscilações e reverberações que ―dançarino e

espectador embarcam na direção da terra incognita de espaços sensíveis a serem

descobertos.‖ (GODARD, 2006, p.29).

Utilizando ainda as palavras de Godard sobre possíveis interações entre obra e

espectador é possível trazer sua noção de ―transporte‖ - instante em que ao perder a certeza do

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―seu próprio peso o espectador se torna, em parte, o peso do outro‖ – para o contexto de Pina

Bausch. Ao promoverem uma espécie de partilha de território enquanto ocupam o palco, os

atores-bailarinos incitam um deslocamento particular do espectador. Acontece o que Godard

chama de empatia cinestésica – ―sensações internas dos movimentos de seu próprio corpo‖

(GODARD, 2006, p.24) – ou contágio gravitacional. E ainda de acordo com Godard:

Temos aqui um ponto essencial: no corpo do dançarino, em sua relação com

outros dançarinos, ocorre uma aventura política, a partilha de territórios. Uma

nova organização do espaço e das tensões que o habitam vão interrogar os

espaços e as tensões próprias do espectador. É a natureza desse ―transporte‖ que

organiza a percepção do espectador. É então impossível falar de dança ou do

movimento do outro sem lembrar que falamos de uma percepção particular, e

que a significação do movimento ocorre tanto no corpo do dançarino, como no

corpo do espectador. (GODARD, 2006, p.25)

Os caminhos que o espectador percorre nos ambientes cênicos de Pina Bausch são

influenciados pelos procedimentos da preparação dos artistas que alteram o modo pelo qual

estes se colocam diante daquele, e pela sugestão de elementos que potencializam a

experiência de um espaço potencial no qual os sentidos todos da plateia são solicitados. Os

espaços, as aberturas, as zonas de tensão e os estímulos que convocam o olfato, a visão e a

experiência de diferentes texturas presentes na cena convidam o espectador para uma aventura

que o permite atravessar o palco sem sair de sua poltrona. O campo imagético proposto por

Pina Bausch permite ao espectador dançar enquanto habita a obra.

Despertar sensações adormecidas, ativar memórias, estimular o corpo a novas

interações e libertá-lo de padrões é uma de suas principais metas. E é deste interesse que

nascem as suas aproximações da arte com a vida, assunto e condição abordada também por

Lygia Clark.

Visitar o avesso da obra, percorrer caminhos por onde o corpo reverbera em sensações,

trafegar, ir e voltar, perceber de longe e de perto e ser transportado para o centro do

acontecimento, eis os estímulos de Clark e Bausch. Utilizando-me das palavras de Patrice

Pavis (2003, p. 213): ―Imagina-se tal espectador no epicentro de um tremor de cena.‖

As práticas de Lygia Clark e de Pina Bausch podem ser aproximadas a partir de

conceitos e noções que pretendem superar fronteiras entre obra e espectador. Tais

aproximações favorecem ainda o diálogo entre distintos campos da arte que impulsionados

por uma crise em comum se lançam em um terreno no qual uma das principais motivações se

encontra na sugestão de uma espacialização da obra – o que coincide com a criação de

ambientes para a experiência do espectador.

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O teatral, discutido dentro e fora do teatro, pode ser compreendido então como um

lugar de contato, como estímulo a novas compreensões, alteração de sentidos e experiência

estética.

Para direcionar a discussão aqui proposta para o campo do teatro como área ou espaço

expandido faz-se necessário tocar em noções como: teatralidade, performatividade e teatro

pós-dramático. Neste contexto, as ações tendem a se desenvolver como atos concretos e não

como representações presas a um espaço preso a convenções.

Movimento 2 : Espaços móveis contemporâneos ou as relações entre obra e espectador

No intervalo entre obra e espectador, se localizam noções que apresentam a obra como

movimento que prevê a superação de limites e a assimilação do entorno. Uma obra ambiental,

como desejava Hélio Oiticica, ou um teatro ambiental, como apontou Richard Schechner.

Tais propostas sugerem um novo espaço, ou um lugar de inter-relações que confunde

limites, promove a ação do espectador e amplia a compreensão da arte. O fenômeno artístico

se aproxima de uma prática social alternativa ou de um projeto político, e favorece uma troca

distinta nas ―zonas de comunicação‖ que nos são impostas, conforme Caballero (2007).

Breves noções sobre performatividade, teatralidade e um teatro pós-dramático, serão

apresentadas como alternativas para a reflexão sobre os espaços móveis que configuram o

ambiente cênico. A compreensão do teatro como relação, como movimento, justifica a

abordagem dos conceitos que aparecem a seguir.

A condição do teatro como espaço cambiante pode ser melhor visualizada a partir da

seguinte anotação proposta por Deleuze:

Ora, o que está em questão em toda a sua obra é o movimento. O que eles

criticam em Hegel é a permanência no falso movimento, no movimento lógico

abstrato, isto é, na ―mediação‖.‖ (...) Não lhes basta, pois, propor uma nova

representação do movimento; a representação já é mediação. Ao contrário, trata-

se de produzir, na obra, um movimento capaz de comover o espírito fora de toda

representação; trata-se de fazer do próprio movimento uma obra, sem

interposição; (...) de inventar vibrações, rotações, giros, gravitações, danças ou

saltos que atinjam diretamente o espírito. Esta é uma ideia de homem de teatro,

uma ideia de encenador – avançado para seu tempo. É nesse sentido que alguma

coisa de completamente nova começa com Kierkegaard e Nietzsche. Eles já não

refletem sobre o teatro à maneira hegeliana. Nem mesmo fazem um teatro

filosófico. Eles inventam na Filosofia, um incrível equivalente do teatro,

fundando, desta maneira, um teatro do futuro e, ao mesmo tempo, uma nova

Filosofia. (DELEUZE, 2006, p.29)

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Performatividade, teatralidade e um teatro pós-dramático são noções que procuram dar

conta de procedimentos e ambientes que escapam dos limites daquilo que se convencionou

classificar ou conceitualizar como arte. Fronteiras são questionadas. O espaço se expande. O

evento artístico encontra outros espaços, zonas indeterminadas. Áreas são afetadas. O

acontecimento da arte não está preso, mas em desenvolvimento no espaço. Um lugar que não

separa. Espaço de encontro no qual acontecem toques, interações e movimentos. Há nesta

orientação sobre os termos mencionados acima uma indicação que parece atravessar os três

termos e que pode ser compreendida como espaço potencial. É neste lugar que os termos

performatividade, teatralidade e teatro pós-dramático, na abordagem desta pesquisa, se

cruzam.

Sobre a performatividade

Inicio com noções sobre a performance para então chegar à performatividade. Aponto,

a seguir, breves considerações sobre a performance no contexto da arte e me aproximo assim

de importantes transformações ocorridas em práticas e procedimentos artísticos. É importante

destacar ainda que são muitos e complexos os estudos, os conceitos e os pressupostos

referentes à performance. Certamente, uma dissertação inteira sobre tal temática não seria o

suficiente para dar conta desta noção que se multiplica em diferentes contextos, áreas e

situações. Entretanto, é preciso começar de algum lugar.

Josette Féral(2009) apresenta o livro ―Performance studies: an introduction‖, de

Richard Schechner, como uma das mais completas investigações sobre as múltiplas noções e

leituras que o conceito de performance pode adquirir.

Schechner (2007) pontua que nas bases de uma nova perspectiva de abordagem dos

eventos artísticos – ou nas bases da performance – estão o pós-modernismo e o pós-

estruturalismo. Princípios e teorias sobre o pós-modernismo ganham força, principalmente, na

década de 1960 e encontram ecos em diferentes campos do conhecimento. Uma das principais

preocupações do movimento pós-moderno é a superação de modelos binários, de uma verdade

universal aplicável a qualquer fenômeno. E este é o ponto decisivo na fundamentação de

princípios que orientam novas premissas, reflexões e procedimentos no contexto da arte

contemporânea. É possível afirmar ainda que como resposta teórica e acadêmica aos ideiais e

às questões trazidas pelo pós-modernismo, aparece o pós-estruturalismo.

Uma das qualidades decisivas, no âmbito da pós-modernidade, e consequentemente, do

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pós-estuturalismo, é a aplicação de princípios da performance a todos os aspectos da vida

social e política, como aponta Schechner (2007). A performance aparece então como ato que

não se restringe a um espaço específico, mas que transita por diferentes campos ao investigar

distintos modos de ação.

Neste novo ambiente, a relação e a interação surgem como novas concepções que

guiam a compreensão sobre a arte numa perspectiva interdisciplinar. As disciplinas, os

campos e as áreas se aproximam a partir de uma perspectiva que agrega, trama e conjuga

espaços que pareciam distantes. Uma coisa intervém na outra. Uma coisa toca na outra. E são

todos os toques que constituem a estrutura móvel dos eventos.

Outro ponto importante que está na ressonância do contexto acima mencionado é o

questionamento da autoridade do objeto que, segundo Scherchner (2007), provocou a

desmistificação da arte e a transferência da força das elites para as massas. A arte deixa de ser

assunto e prática de uma minoria – e de lugares específicos – e passa a acontecer também em

espaços que provocam interações e partilhas de experiências.

Deste modo, é possível afirmar que a performance, no campo das artes, está ligada a

um movimento de desmistificação do objeto, do material e do visível como medidas que

determinam suportes e espaços para aquilo que será classificado como pertencente ao âmbito

artístico. O espaço, de acordo com premissas da performance, assume a relação, os vínculos e

as experiências que acontecem nos eventos artísticos. O espaço potencial, as movimentações e

os deslocamentos passam a ser considerados como os principais fundamentos do fenômeno

artístico.

O conceito de performance se espalha por diferentes áreas e traz em sua noção

fundamental a ideia de ação, de movimento imprevisto, de abordagem segundo diferentes

mecanismos e estruturas, de encaminhamento que provoca alterações na percepção, entre

outras características. A performance pode ser compreendida como ação que pretende

encontrar modos de discurso que possam incorporar múltiplas e distintas vozes.

De acordo com o autor Jorge Glusberg (2009), a performance é um evento-ação de

caráter híbrido, de condição cênico-teatral e que tem a sua origem na dinamização das artes

plásticas. Conforme Glusberg, na performance o corpo aparece como sujeito e força motriz do

acontecimento artístico.

O processo performativo age diretamente no coração e no corpo da identidade do

performer, questionando, destruindo, reconstruindo seu eu (moi), sua subjetividade

sem a passagem obrigatória por uma personagem. A performance toca o sujeito que

vai para a cena, que se produz, que executa. Se o ator performa ele realmente age

com o seu corpo e sua voz em cena. Seu corpo efetivamente age. (FÉRAL, 2009,

p.83)

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Edélcio Mostaço, no texto ―Fazendo cena, a performatividade‖ indica ainda que:

Ela está interessada, sobretudo, na originalidade da experiência corporal, na natureza

indivisa e voluntária do gesto, na atitude e na conduta do artista numa situação

extra-cotidiana que visa, primordialmente, desestabilizar tudo que é repetitivo ou

corriqueiro, perpetrando um ato inaugural. Inscrita na ordem das percepções, sua

ação poética busca a transgressão, a ruptura, o corte. (MOSTAÇO, 2009, p.21)

Conforme Mostaço (2009) a performance está, de algum modo, vinculada à

mobilização de procedimentos estéticos que visam estreitar as relações entre a vida e a arte.

A performatividade é inerente a qualquer performance, uma vez que constitui o seu ―como‖.

Ou seja, seu gesto, sua ação, sua concretização enquanto ato.

A performatividade, de acordo com Féral, ―acompanha necessariamente o surgimento

de significados múltiplos e oscila entre o reconhecimento e a ambiguidade dos significados.

Ela aparece como sinônimo de fluidez, instabilidade e abertura do campo de possibilidades‖

(FÉRAL, 2009, p.74). A partir de tal consideração, é possível afirmar que a performatividade

aparece como processo de concretização que admite múltiplos olhares e perspectivas. Como

exemplo é possível trazer a fragmentação e os paradoxos presentes em produções cênicas,

especialmente. Tais recursos tendem a induzir à livre associação de ideias em detrimento do

pensamento analítico e racional. E é deste modo que os sentidos se multiplicam.

A noção de performatividade admite ainda uma quebra no paralelismo entre sentido e

representação e aparece como um processo que é privilegiado em detrimento do produto final

acabado em si.

A partir das noções e conceitos apresentados acima, é possível dizer que um campo de

caráter efêmero e processual é inaugurado. O espaço artístico se transforma em zona que

pretende alterar dispositivos que costumam regular a percepção e as relações entre obra e

espectador.

Féral (2009) afirma ainda que a performatividade é aquilo que faz escapar em uma obra

as fragilidades do pensamento linear e unívoco, fazendo emergir o plural.

Um dos principais focos das propostas artísticas no contexto mencionado acima passa a

ser a criação de ambientes para a inserção do espectador, para a experiência na relação com

elementos e estímulos. O foco não está naquilo que os olhos vêem de imediato, mas na

presença que se esconde e se revela no decorrer do evento artístico.

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Sobre a teatralidade

De acordo com Edélcio Mostaço, ―teatralidade e performatividade são irmãs siamesas,

nascidas do mesmo influxo fenomenológico que fundamenta a mais elementar experiência de

um sujeito: olhar‖ (2009, p. 39). Olhar este que enxerga com o corpo todo.

Para discorrer sobre a teatralidade tomarei como principal referência a noção de

liminaridade, indicada pela autora Ileana Diéguez Caballero. A investigação da teatralidade

proposta por Caballero não se limita ao âmbito do fazer considerado e configurado como

teatral. Aquilo que escapa ao já conhecido, as experiências incompreensíveis e as pulsões que

se movimentam entre a vida e a arte nos fenômenos e processos cênicos instigam a autora

como pesquisadora e espectadora. Tais movimentos mobilizam reflexões sobre a teatralidade

como um adjetivo ou qualidade do teatro, mas que não se limita ao campo teatral. Ao abordar

a teatralidade a partir de uma perspectiva liminar, conceito que Caballero (2007) toma da

antropologia social de Victor Turner e que busca transferir para a arte, há a intenção de

abordar o teatral como um corpus efêmero e performativo, já que a vida do evento depende da

rede de relações em que o fenômeno cênico acontece e se transforma.

O caráter processual sob este enfoque tende a se destacar e as composições cênicas

admitem variações que são, muitas vezes, estratégias conhecidas em outros campos, como o

das artes visuais. As investigações ultrapassam as bordas do considerado teatral e encontram

referenciais e estruturas outras para o seu acontecimento. Ações problematizadas na dança,

nas artes visuais, na música, na filosofia e em campos outros do conhecimento tomam conta

de um espaço considerado teatral e provocam encontros mobilizadores de uma teatralidade

cambiante que vai e vem ao teatro.

A noção de liminaridade – como lugar fronteiriço, zona transdisciplinar e de

hibridização – proposta por Ileana Caballero pode ser considerada como uma situação em

movimento que é redefinida pelo devir das práticas artísticas e humanas. Na fronteira entre

espaço real e de criação acontecem os cruzamentos que se manifestam em condições

liminares – dinâmicas que provocam a assimilação do imprevisto e a contaminação que afeta

os processos de produção artísticos. Há um canal por onde o evento da arte troca com o

entorno. O formato pode ser repetir, contudo as interferências do ambiente não são ignoradas,

mas antes fontes mobilizadoras das ações.

Ainda sobre a teatralidade é possível acrescentar a noção defendida pela autora Josette

Ferál (2003) que anuncia, assim como Caballero, a verificação deste fenômeno em situações

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outras que não apenas aquelas vinculadas ao teatro. A teatralidade, para Ferál, está

diretamente associada ao espaço potencial, no qual a percepção sobre as coisas é alterada. A

criação da teatralidade depende, em grande medida, do olhar do espectador. Daquilo que está

entre a ―obra‖ e o ―público‖, ou do espaço que se expande e supera limites entre obra e

espectador através da criação de um ambiente de ressonância, que surge da aproximação ou

do toque. Em uma possível definição do termo teatralidade, a autora faz a seguinte

consideração:

Não é uma qualidade (no sentido kantiano) que pertence ao objeto, ao corpo, a um

espaço ou a um sujeito. Não é uma propriedade pré-existente das coisas, não está à

espera de ser descoberta e não tem uma existência autônoma, só é possível entendê-

la ou a captá-la como processo. (FERÁL, 2003, p. 44)

A teatralidade coincide com o modo de perceber. A percepção é alterada e tal

movimento confirma um pressuposto de Féral no que diz respeito à noção de teatralidade

como criação do espectador, como espaço construído na relação dada pela visualidade, e não

como qualidade de um objeto.

Sobre o teatro pós-dramático

No que se refere ao pós-dramático e levando-se em conta os inúmeros questionamentos

e ressalvas inauguradas quando Hans-Thies Lehmann sugeriu o termo ―teatro pós-dramático‖,

farei aqui um pequeno recorte em relação ao amplo conceito do autor. No centro do diálogo

aqui proposto está o espaço metonímico abordado por Lehmann. Tal espaço apresenta uma

concepção de lugar do pós-dramático que se opõe ao espaço dramático.

O espaço do drama costuma ser compreendido como um quadro cênico, um lugar

metafórico-simbólico e com linhas divisórias claras. A ―obra‖ é separada do público. ―Obra‖ e

público encontram-se em espaços distintos. O espaço metonímico do teatro pós-dramático é

um espaço cênico que sugere continuações do espaço real. As bordas entre obra e público não

são tão claras ou se transformam ao longo do acontecimento teatral. Há mais flexibilidade e

deslocamentos nas relações que configuram o evento teatral. Enquanto o espaço dramático

atua como janela que apresenta uma realidade, o espaço metonímico absorve a realidade e

joga com o indeterminado e o imprevisível. Um terreno móvel e em constante movimento

parece se aproximar do conceito de espaço metonímico.

Sob este ponto de vista, e apresentando como pano de fundo a crise da representação, o

espaço do teatro na contemporaneidade admite um paralelo com os espaços investigados nas

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artes visuais. Estes, sobretudo a partir de fins do século XIX, podem fornecer metáforas para a

compreensão das áreas de ação do teatro atual. Ambos os territórios questionam o lugar do

sujeito e do objeto e preveem a superação da moldura e da quarta-parede, promovendo

aberturas que superam modelos de representação daquilo que se entende e que se conhece

como arte.

Sobre Lygia e Pina

No que se refere às práticas de Lygia Clark e Pina Bausch é possível lançar a seguinte

reflexão: é possível afirmar que as experiências propostas por Lygia Clark e Pina Bausch

apresentam aspectos teatrais? Sob quais pontos de vista? Para tanto, é interessante retornar ao

evento anunciado logo no início desta dissertação sobre a experiência de Marcel Duchamp em

um cabaré dadaísta, quando o artista assistiu a uma encenação teatral que rompia estruturas e

cânones que delimitavam conceitos e práticas. A peça assistida por Duchamp fugia às regras,

desestabilizava padrões e promovia movimentos que não encontravam pontos de apoio que

pudessem afirmar ou negar o campo ao qual tal apresentação deveria pertencer. Um

acontecimento que escapava ao teatro e que de algum modo reconfigurava o terreno daquilo

que é conhecido como teatral. Sob esta perspectiva, que prevê o evento artístico como

experiência, como trânsito e lugar que não se limita, mas que se move, Clark e Bausch trazem

apontamentos e procedimentos importantes. Elas rompem com modelos através de seus

procedimentos e permitem aproximações de diferentes campos e linguagens vindos de noções

e conceitos hoje desenvolvidos a partir de reflexões práticas e teóricas sobre o fenômeno da

arte.

Ao observar as práticas e procedimentos das artistas, a partir das noções apontadas

acima, é possível verificar tanto vestígios de teatralidade quanto de performatividade em seus

trabalhos.

Entretanto, faço agora um breve recorte para a análise de movimentos presentes nas

suas produções como modo de propor a visualização das noções de teatralidade e

performatividade em diálogo com as práticas de Clark e Bausch.

No recorte aqui proposto, escolho a teatralidade para a referência de Pina Bauch e a

performatividade para a referência de Lygia Clark, mesmo sabendo que o inverso também é

possível. Um teatro pós-dramático, tomando como ponto de referência o espaço metonímico,

surge como conceito que aproxima os exemplos selecionados a seguir.

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Pina Bausch, a descrição:

Uma pessoa, duas pessoas, três pessoas. Várias pessoas se aproximam de uma pessoa e a

tocam de várias maneiras. Alguém aperta o seu nariz e toca o seu rosto. Os corpos se

aproximam, se tocam. A pele, o contato. Algo acontece. Há uma ação e uma reação. O corpo

afeta e é afetado. A redescoberta do tato.

Lygia Clark, a descrição:

Alguém entra e coloca uma luva. Com a luva toca uma pedra. Tira a luva e toca a pedra com

as mãos. As mãos tocam a pedra e são por ela tocadas. O peso, a textura. O corpo reage.

Algo acontece. A redescoberta do tato.

A performatividade presente no trabalho de Lygia Clark aparece, por exemplo, em

procedimentos pautados em ações, gestos e movimentos que solicitam a presença do

espectador. Neste contexto, o corpo é o lugar fundamental do acontecimento artístico. Atos

que executados automaticamente são retomados em proposições que visam mobilizar a

percepção e os sentidos. Há uma tentativa de estimular a percepção para uma relação primeira

com as coisas, com o outro e com o mundo. Como acontece a ação e a reação? Como a

percepção é reativada? Como me coloco naquilo que faço?

A teatralidade em Pina Bausch está principalmente no modo como o espectador vê e

percebe o evento cênico. Seu olhar se vincula aos acontecimentos e movimentos que

acontecem no palco. O espectador presencia atos que nascem diante dos seus olhos. Há nesses

momentos o compartilhamento de um espaço-tempo que altera a sua percepção. O espectador

é estimulado a perceber sob diferentes perspectivas. Estímulos sensoriais, revelações de

histórias íntimas e depoimentos pessoais atuam na alteração dos ângulos de observação da

plateia. Surgem assim, diferentes perspectivas nas relações do espectador com o fenômeno

cênico.

Em Bausch, o que é apresentado é um ato que se desenvolve diante dos olhos daquele

que observa. De tal modo que é possível a seguinte analogia: o espectador de Bausch vê um

bailarino como um participante do trabalho Caminhando, de Lygia Clark. O que ele faz é uma

ação concreta e não a representação de um personagem isolado num campo de representação.

O bailarino estimula assim o compartilhamento de uma ação. O espectador é convidado a

atravessar o palco e a dançar livremente sem que precise abandonar a poltrona.

A noção do teatro pós-dramático, a partir da perspectiva do espaço como lugar de

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partilha, aparece em procedimentos de Clark e Bausch como um terreno móvel que absorve o

espectador. A desterritorialização surge, em última instância, como o plano em comum

investigado nas artes visuais e nas artes cênicas a partir do diálogo aqui proposto.

Movimento 3 : A situação do espectador neste novo lugar: notas de Susan Sontag

De acordo com a concepção de espaço sugerida neste capítulo e que coincide com

práticas e procedimentos artísticos contemporâneos, sobretudo, o espectador surge em um

novo lugar. Susan Sontag levanta reflexões sobre esta questão:

Nietzsche observou em ―O Nascimento da Tragédia‖, que um público de

espectadores como o conhecemos, aquelas pessoas presentes que os atores ignoram,

era desconhecido entre os gregos, uma boa parcela da arte contemporânea parecia

movida pelo desejo de eliminar a público da arte, uma empresa que com freqüência,

se apresenta como uma tentativa de eliminar a própria Arte. (Em benefício da

―vida‖?) (SONTAG, 1987, p.15)

Em direção à eliminação do espectador passivo e dispensável ao evento da arte surgem

estratégias que visam o aprimoramento das suas experiências, como o aparecimento da área

central da obra em branco, como indica Sontag (1987). A área central em branco estimula o

surgimento de zonas de trânsito para o espectador, espaços que este construirá ao percorrer

um lugar que estava antes restrito à disposição de elementos constituintes do objeto artístico.

Inauguram-se novas áreas na relação do espectador com a obra. Áreas de trânsito, de

discursos sensoriais, de compreensões e de experiências diretamente associadas à presença do

corpo, já que livre do corpo o discurso se desfaz.

Os novos recursos e proposições são tentativas de provocar diferentes vínculos entre

obra e espectador. Surgem novos modos de olhar, ouvir, tocar e agir. O espectador já não está

isolado, mas em uma zona de tensão que promove aproximações e experiências mais

imediatas e sensíveis. De acordo com Sontag, este enfrentamento entre obra e espectador

favorece uma relação mais consciente ou mais conceitual.

A situação de voyeurista do espectador, daquele que observa, mas que é dispensável no

contexto do evento da arte é transformada na solicitação de uma presença ativa.

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Movimento 4. O sensível

Os trabalhos de Lygia Clark e Pina Bausch expandem a área de alcance daquilo que é

visto e sugerem oscilações, interferências e instabilidades que instigam novas experiências

temporais.

A condição transitiva e processual encontrada nas propostas de Clark e Bausch pode ser

verificada nas indagações e especulações que justificam as produções das artistas. Tanto Clark

quanto Bausch se interessam pelas forças e motivações que acionam o evento artístico. Para

tanto, utilizam-se de procedimentos que favorecem descobertas sensoriais, a ativação da

percepção e a participação do espectador. Impulsos e vínculos se cruzam e desenham

percursos particulares em um espaço que surge no instante do acontecimento artístico e que

estimula o aparecimento do sensível como condição de interação.

Clark e Bausch inauguram regimes de visibilidade que superam modelos de

representação e apresentam o sensível como ponto de partida e zona de trânsito em suas

produções. Trata-se de uma partilha, assim descrita por Jacques Rancière:

Esse sensível, subtraído às suas conexões ordinárias, é habitado por uma potência

heterogênea, a potência de um pensamento que se tornou ele próprio estranho a si

mesmo: produto idêntico ao não-produto, saber transformado em não-saber, logos

idêntico a um phatos, intenção do inintencional etc. (RANCIÈRE, 2005, p. 31-32)

O sensível aqui invocado coincide com a noção de estética abordada nesta dissertação,

e tal noção aparece na seguinte consideração de Rancière:

(...) O regime estético das artes é aquele que propriamente identifica a arte no

singular e desobriga essa arte de toda e qualquer regra específica, de toda hierarquia

de temas, gêneros e arte. Ele afirma a absoluta singularidade da arte e destroi ao

mesmo tempo todo critério pragmático dessa singularidade. Funda, a uma só vez, a

autonomia e a identidade de suas formas com as formas pelas quais a vida se forma

a si mesma. O estado estético é pura suspensão, momento em que a forma é

experimentada por si mesma. O momento de formação de uma humanidade

específica. (RANCIÈRE, 2005, p. 33-34)

Uma das questões centrais investigadas nos procedimentos de Clark é a reativação nos

participantes de suas criações da qualidade de experiência estética. E de acordo com Rolnik:

―Refiro-me à capacidade dos mesmos de deixar-se afetar pelas forças dos objetos criados pela

artista e do ambiente onde estes eram vividos; mas também e sobretudo, de deixar-se afetar,

por extensão, pelas forças dos ambientes de sua existência cotidiana.‖ (ROLNIK, 2007)

Tal consideração de Rolnik sobre as propostas de Lygia Clark pode ser estendida para

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os procedimentos de Pina Bausch, já que a experiência do espectador em suas produções está

vinculada ao consentimento deste em mobilizar afetos e ―participar das coisas do mundo sem

engessá-las numa interpretação‖, como aponta Hubert Godard (2004)46

. Ainda de acordo com

Rolnik, sobre as propostas de Clark: ―A obra se realizava na tomada de consciência desta

qualidade de relação com a alteridade na subjetividade de seus receptores.‖

O espectador é convidado a sair de um estado de anestesia sensível, nas palavras de

Rolnik, e há uma liberação de movimentos.

A ação artística intervém na dinâmica paradoxal entre, de um lado, a cartografia

dominante com sua relativa estabilidade e, de outro, a realidade sensível em

constante mudança, efeito da presença viva da alteridade que não para de afetar

nossos corpos.‖(ROLNIK, 2007)

Neste contexto o evento da arte aparece como ato, como ação e reverberação, como

anuncia Dani Lima:

Este ato endossa a importância do espectador dentro do dispositivo espetacular, que

não existe sem ele. Uma vez que o público testemunha e recebe a obra, ela se

dispersa. Esta fragilidade e efemeridade do espetáculo têm força política. Ela

recoloca a questão da comunidade que se constitui a cada espetáculo, neste encontro

entre bailarinos e público, para desfrutar uma experiência de partilha do sensível.

(LIMA, 2005)

E sobre a força que emerge do encontro entre bailarinos e público em Pina Bausch é

possível trazer as seguintes palavras de Helena Katz, presentes na introdução do livro

―Bandoneon‖:

O poder está lá, no encenado, cena onde o logos autoritário foi pulverizado, reino de

sujeitos evanescentes e oralidades disseminadas. Acordo nascido de desacordos.

Confluências de vozes históricas com as virtudes metafóricas que dão presença ao

outro que escuta o que digo a mim, e ao eu que ouve o que falo com os outros. Seres

que são espaços vazios carregados de iminências.‖ (KATZ, 1989, p.10)

Katz (1989, p.10) pontua ainda que ―no trânsito dos sentidos que promove, Pina Bausch

encapsula na sua escrita singular o saber sensível das formas.‖

Sobre um dos objetivos das investigações artísticas de Lygia Clark que podem ser

observados também em procedimentos de Pina Bausch é importante trazer a seguinte

consideração de Sueli Rolnik:

(...) reativar nos receptores de suas criações esta qualidade de experiência

estética. Refiro-me à capacidade dos mesmos de deixar-se afetar pelas forças dos

46

Entrevista com Hubert Godard. Abordagem terapêutica do corpo. ―Olhar Cego‖. Por Suely Rolnik. 2004.

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objetos criados pelas artistas e do ambiente onde estes eram vividos; mas

também e sobretudo, de deixar-se afetar, por extensão, pelas forças dos

ambientes de sua existência cotidiana.

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Considerações finais ou linhas finais que se iniciam

Apontadas as entradas, trilhados os caminhos, desenhadas e previstas as conclusões e

finalizações de um trajeto, encontro o inesperado. Saídas que apontam novas entradas,

questões que se respondem enquanto respostas sugerem novas perguntas. Quando fecho este

último ato, outros se abrem. O final desta trajetória me anuncia que o fim é apenas mais uma

convenção. É preciso então parar para que os movimentos continuem.

Sob este ponto de vista que prevê o evento artístico como experiência, como trânsito e

lugar que não se limita, mas que se move, Lygia Clark e Pina Bausch trazem apontamentos e

procedimentos importantes. Eles rompem modelos e permitem aproximações e trânsitos entre

diferentes campos. A ação teatral como movimento subjacente às práticas das artistas aparece

como relação que inclui sob um mesmo teto obra e espectador.

A partir da verificação de procedimentos presentes nas práticas por elas desenvolvidas é

possível afirmar que seus trabalhos acontecem em terrenos móveis, em zonas fronteiriças

onde arte e vida se tocam. O conhecido é percebido sob novas perspectivas. Perceber é

exercitar um olhar que entende com o corpo todo, acionar mecanismos que integram,

interligam e desenham novos ambientes em lugares comuns.

Sob esta perspectiva é possível afirmar que em Pina Bausch a obra apresenta-se como

potencialidade de movimento e interação, o que acontece no palco reverbera diretamente no

corpo do espectador com a utilização de estímulos sensoriais e mecanismos que favorecem o

cruzamento do espaço cênico com o espaço do público. A obra em Lygia Clark acontece no

contexto de propostas que incentivam o movimento, a participação e a presença corporal e

física do espectador.

As interações que acontecem são diretas ou indiretas, como aquelas que solicitam a

alteração da posição do espectador, como em propostas em que o público é convidado a

participar de ações e a colocar-se diante de outras pessoas, ou como em procedimentos que

mantém o espectador numa posição de suposto observador e que nesta disposição solicitam

sua participação ativa através de processos e procedimentos que diminuem os limites entre o

espaço da obra e o espaço do público e criam um espaço comum de experiência. Em ambos os

procedimentos o corpo do espectador surge como um suporte do evento artístico. Um suporte

que entra em diálogo com os estímulos oferecidos no contexto do acontecimento da arte. Um

corpo que ativando o evento diretamente ou não é por ele ativado.

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A reverberação de um corpo sutil ou de um corpo vibrátil é o principal ponto dinâmico

e instável entre a obra e o espectador apontado neste percurso. Ponto este que confunde

limites entre uma coisa e outra e que solicita a agitação e o deslocamento de pensamentos que

só acontecem na experiência e ação do corpo. A obra, neste contexto, surge como estímulo de

devires múltiplos e singulares.

Há uma experiência que favorece a compreensão que escapa à palavra, que escapa ao

gesto e que transita nas interações do corpo com o espaço. A oscilação permanente

desencadeada pelas propostas de Bausch e Clark permitem ao espectador percorrer caminhos

desconhecidos, acessar registros, silenciar, parar e atravessar limites entre obra e espectador e

arte e vida. O espetáculo se molda, se abre, ecoa, pulsa e não cabe nos limites do palco ou do

quadro. Há vida em demasiado. E toda vida em seu limite transborda. Vetores, forças e

desejos se espalham e atravessam um lugar que era antes exclusivo da plateia. Um

pensamento que só existe quando o corpo se move. Um corpo de pensamento, um corpo

vibrátil.

Em última instância é possível dizer que tanto Lygia quando Pina, por caminhos

bastante distintos, se interessam por este instante em que o corpo vibra, ressoa, rodopia e

descobre trajetos desconhecidos. O espaço se expande, a obra devora o espectador e o

acontecimento artístico repercute criando uma dimensão que consolida a experiência estética.

Tal movimento coincide com um passeio pela quarta dimensão, quando o espectador é

participante do evento, se desloca com ele, desliza, recorda, se move e percorre caminhos

desconhecidos. Um instante em que ele como corpo, pensamento ou matéria física transita,

caminha, flutua, pisa, olha, observa, escuta, expande, contrai, acelera e desacelera fazendo-se

sempre novo. O contato do particular com o coletivo. Os toques que o corpo provoca e

aqueles que provocam o corpo. Um ambiente, qualquer lugar, espaço onde estímulos

trafegam, encontram e desencontram corpos. O ambiente é ativo assim como o corpo que

guarda e devolve impressões, sensações, afetos e memórias.

Esta dissertação coincide com a investigação de espaços que se fundamentam em

aberturas e trânsitos. Espaços que absorvem, metabolizam e se transformam continuamente.

Espaços que não cabem em si mesmos e que por isso se alargam, expandem, hibridizam,

contraem, movem e pausam.

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Revistas de Pós-graduação:

Lições de Dança 3.

UniverCidade

Artigo: Gesto e Percepção, Hubert Godard

Nota sobre o uso das imagens:

A autora envidou-se em localizar todos os detentores dos direitos das imagens reproduzidas

nesta dissertação e agradece qualquer informação que venha a completar e/ou corrigir os

créditos. Todo o esforço foi empenhado para obter o melhor resultado na reprodução das

imagens. Algumas delas, no entanto, não foram localizadas e tiveram de ser escaneadas de

fontes diversas, o que explica a apresentação de imagens sem os devidos créditos.