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F F O O G G E E , , N N I I C C K K Y Y , , F F O O G G E E ! ! Nicky Cruz e Jamie Buckingham Título original em inglês: Run Baby Run Tradução de Adiel de Almeida Oliveira 6ª.edição, 1980 Editora Betânia Digitalizado, revisado e formatado por SusanaCap

Foge, nicky, foge167

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FFOOGGEE,, NNIICCKKYY,, FFOOGGEE!!

Nicky Cruz

e Jamie Buckingham

Título original em inglês: Run Baby Run Tradução de Adiel de Almeida Oliveira

6ª.edição, 1980 Editora Betânia

Digitalizado, revisado e formatado por SusanaCap

PP rree ff áá cc ii oo

QUANDO TOMEI A INICIATIVA de rea liza r es te p rojeto, Ca th er in e Ma rs h a ll com en tou qu e es crever u m livro des te t ipo é com o ter u m filh o. Eu ter ia de viver com ele, até que nascesse.

Nes te ca s o, n ã o fu i s ó eu qu em teve de viver com ele, m a s a m in h a fa m ília e ta m bém a Igreja Ba tis ta do Tabern á cu lo qu e eu es ta va pa s torea n do. Sofrera m com igo todos os a ta qu es de m a l-es ta r m a tu t in o, toda s a s dores de pa r to, e a té m es m o u n s dois a la rm es fa ls os . Ma s , ta n to m in h a fa m ília com o a igreja , com preen dera m qu e es te livro era con ceb ido pelo Es p ír ito Sa n to, es cr ito com ora çã o e lá gr im a s , e dever ia s er pu b lica do pa ra a glór ia de Deu s . A igreja p ra t ica m en te liber tou -m e de toda s a s ob r iga ções , a té term in á -lo; a lém d is s o, vá r ios dos membros ajudaram no trabalho de datilografia.

Con tu do, os pa d r in h os do livro fora m J oh n e Tibby Sh err il e os ed itores da revis ta Gu idepos ts . A recom en da çã o e a con fia n ça de J oh n dera m in ício a o p rojeto, e n o s eu térm in o, foi a cr ít ica do ca s a l Sh err il qu e n os deu a vis ã o fin a l da h is tór ia violen ta , m a s empolgante, da vida de Nicky Cruz.

Os m ér itos da m ovim en ta çã o da h is tór ia em s i ca bem , porém , a Pa ts y Higgin s , qu e ofereceu volu n -ta r ia m en te os s eu s s erviços pa ra a glór ia de Deu s . Ela viveu e s en t iu o m a n u s cr ito com o cr ít ica , ed itora e datilógrafa — revela n do u m ta len to pa ra cor ta r e reescrever, que só pode ter sido dado por Deus.

O livro em s i qu ebra u m a da s regra s bá s ica s da litera tu ra . Term in a a b ru p ta m en te. Nã o h á u m fin a l a poteót ico ou bem ela bora do. Ca da vez qu e eu en -

t revis ta va Nicky Cru z, ele rela ta va u m a exper iên cia n ova e fa n tá s t ica , m a ter ia l qu e da r ia pa ra ou tro livro — ta lvez para vários. Portanto, Foge, Nicky, Foge! é a história, tão exa ta , qu a n to pos s ível, dos p r im eiros vin te e n ove a n os da vida de u m m oço, cu jos d ia s m a is á u reos a in da es tã o no futuro.

Jamie Buckingham

Eau Gallie, Flórida

IInn tt rroo dd uu çç ãã oo

A HISTÓRIA DE NICKY CRUZ é notável. Tem todos os elem en tos de t ra géd ia , violên cia e in teres s e, a lém d o m a ior de todos os in gred ien tes , o poder do eva n gelh o de Jesus Cristo.

Os p r im eiros ca p ítu los form a m u m cen á r io obs -curo e ten ebros o pa ra o elet r iza n te des en la ce des ta h is tór ia . Por ta n to, n ã o des a n im e com a a tm os fera u m tanto sangrenta da primeira metade do livro.

Nicky é jovem , e es tá a tu a lm en te ca u s a n do u m grande impacto sobre um bom número de outros jovens, n os Es ta dos Un idos . A popu la çã o a du lta já n ã o pode m a is ign ora r a m ocida de, com os t rem en dos p rob lem a s do s écu lo vin te. A ju ven tu de bu s ca u m p ropós ito n a vida . Nã o es tá en a m ora da de n os s os es cleros a dos ta bu s s ocia is . Qu er s in cer ida de n a religiã o, h on es t ida de n a polít ica , e ju s t iça pa ra os des p r ivilegia dos da s ocieda de O a s pecto en cora ja -dor , n o qu e d iz res peito a es s es m ilh ões de “garotos” (qu e em 1 970 u lt ra pa s s a ra m o n ú m ero da popu la çã o a du lta ), é qu e eles es tã o des es pera da m en te p rocu ra n do s olu ções pa ra s eu s p rob lem a s . Em con ta tos com cen ten a s de es tu da n tes d e n os s a s u n ivers ida des , fiqu ei t rem en da m en te im pres s ion a do com a bu s ca qu e es tã o em preen den do,

procu ra n do a verda de, a rea lida de e s olu ções h on es ta s . Algu n s joven s de n os s a s fa vela s es tã o a n s ios os pa ra ter u m con ta to h on es to com a s ocieda de, e com ra zã o. Algu n s deles s ã o in flu en cia dos por defen s ores d a violência e da força bruta, e são facilmente atraídos para o redem oin h o dos d is tú rb ios de ru a , in cên d ios e p ilh a gem . Foge, Nicky, Foge! é u m exem plo n otá vel d e qu e es s a m ocida de in s a t is feita pode en con tra r u m s ign ifica do e u m propós ito pa ra a vida , n a pes s oa de Cristo.

Em n os s a s ca m pa n h a s , qu a s e a m eta de dos ou -vin tes tem m en os de vin te e cin co a n os . Nã o vã o à s ca m pa n h a s pa ra zom ba r , m a s pa ra u m a bu s ca s in cera da verda de e de ob jet ivos pa ra a vida . Cen ten a s deles atendem ao chamado de Cristo.

Foge, Nicky, Foge! é u m a h is tór ia em ocion a n te! Min h a es pera n ça é qu e ela s eja m u ito lida , e qu e m u itos leitores ven h a m a con h ecer o Cr is to qu e t ra n s form ou o cora çã o va zio e in s a t is feito de Nicky Cru z e fez dele u m a epopéia cristã de nossa era.

Billy Graham

PP rree ââ mm bb uu ll oo

A HISTÓRIA DE NICKY é, p os s ivelm en te, a m a is d ra m á t ica do m ovim en to Pen tecos ta l, m a s n ã o é a ú n ica . Nicky é u m vivido rep res en ta n te de va s to n ú m ero de pes s oa s qu e, n a s ú lt im a s déca da s , têm s id o liber ta da s do cr im e, do á lcool, dos n a rcót icos , da p ros t itu içã o, do h om os s exu a lis m o, e de qu a s e todo t ipo de pervers ã o e degen era çã o qu e o h om em con h ece. Tra ta m en to ps icológico, cu ida dos m éd icos e con s elh os espirituais n ã o con s egu ira m in flu en cia r es s a s p es s oa s . Ela s , porém , fora m liber ta s de s u a es cra vidã o de m odo

in es pera do e m a ra vilh os o, pelo poder do Es p ír ito Sa n to, e leva da s a u m a vida de s erviço ú t il, e, a lgu m a s vezes , de p rofu n da ora çã o. É m u ito n a tu ra l des con fia r -s e de t ra n s form a ções ra d ica is e repen t in a s . Porém n ã o h á ra zã o teológica pa ra s e s u s peita r dela s . A gra ça d e Deu s pode a possar-s e de u m h om em e t ra n s form á -lo, n u m abrir e fechar de olhos, de pecador em santo. “Porque eu vos afirmo que destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão.” (Lu ca s 3 :8 .) O es forço h u m a n o n ã o pode p rodu zir ta is t ra n s form a ções , n em n a p rópr ia pes s oa n em em ou trem , porqu e a n a tu reza exige tem po pa ra s e des en volver , gra du a lm en te; m a s Deu s pode fa zer em u m instante o que leva anos e anos para o homem realizar.

Con vers ões a s s im ocorrera m n a h is tór ia do cr is -t ia n is m o, des de o p r in cíp io. Za qu eu , Ma r ia Ma da len a (a pen iten te de Lu ca s 7 :37 ), o “bom la d rã o”, o a pós tolo Pa u lo, e m es m o Ma teu s , o d is cípu lo, s ã o os p r im eiros de u m a lon ga lis ta . Con tu do, o m a ior n ú m ero de ta is con vers ões es tá ten do lu ga r h oje em d ia , em rela çã o a o chamado “Movim en to Pen tecos ta l”, o qu e é, creio eu , s em p receden tes . Qu a l o s ign ifica do des te fa to extraordinário?

Ten h o m ed ita do m u ito s ob re is to, e o qu e m e vem à m en te com freqü ên cia é a pa rá bola da s boda s (Ma teu s 22:1-14). Qu a n do a s pes s oa s con vida da s n ã o a pa recera m , o s en h or d is s e a s eu s ervo: “Sa i depressa pa ra a s ru a s e becos da cida de e t ra ze pa ra a qu i os pobres , os a leija dos , os cegos e os coxos .” (Lu ca s 14:21.) Qu a n do n em a qu ilo foi s u ficien te, o s ervo foi en via do u m a vez m a is , des ta vez pa ra os ca m in h os e a ta lh os , com a ordem : “Obr iga a todos a en tra r , pa ra qu e fiqu e ch eia a m in h a ca s a .” Creio qu e is to é o qu e es ta m os ven do a con tecer h oje. Os “convidados” à m es a do Sen h or , is to é, os qu e “n a s cera m n o cr is t ia n is m o”, os ju s tos , os m em bros legít im os da s ocieda de, já dem on s tra ra m s obeja m en te qu e s ã o in d ign os . Eles “vão à igreja ”, m a s n a verda de n ã o têm pa r t icipa do d o

banquete propiciado pelo Rei. É por isto que a Igreja, em lu ga r de s er u m corpo vivo e u m a tes tem u n h a des a fia dora , m u ita s vezes s e a s s em elh a a u m in ú t il clube religioso.

Toda via , en qu a n to os dou tores da lei d is cu tem qu a l o n ovo voca bu lá r io qu e fa rá res s u s cita r Deu s (porqu e tu do o qu e con h ecem a res peito dele s ã o pa la vra s ), e qu e n ovos s ím bolos fa rã o com qu e a litu rgia ten h a m a is s ign ifica do (porqu e tu do o qu e en xerga m n a religiã o é a pa r te h u m a n a ), Deu s es tá reu n in do, em s ilên cio, n ovos con vida dos pa ra o s eu ba n qu ete. Recebe a legrem en te a qu eles qu e, s egu n do os pa d rões h u m a n os , s ã o es p ir itu a l e m ora lm en te pobres , a leija dos , cegos e coxos . Pelo poder do s eu Es p ír ito, es tá m es m o “forçando-os” a en tra r , a r ra n ca n do-os da s ru a s da degradação e dos atalhos da perversão.

Nicky Cru z e os m ilh a res qu e s e lh e a s s em elh a m n ã o s ã o a pen a s exem plos com oven tes do a m or fiel do Bom Pa s tor , m a s s ã o ta m bém s in a is dos tem pos , qu e fa r ía m os bem em d is cern ir . Sã o u m s in a l en cora ja dor de qu e Deu s es tá a gin do com u m poder n ovo em n os s a época , pa ra qu e n ã o ten h a m os m edo de proclamar ou s a da m en te o eva n gelh o a todos . Por ou tro la do, ta m bém s ã o u m s in a l de a dver tên cia a todos os qu e, pelos s eu s h á b itos religios os , pelo s eu m in is tér io s a gra do, ou por qu a lqu er ou tra ra zã o, s eja ela qu a l for , ju lga m ter u m lu ga r m a rca do à m es a do ba n qu ete. “Porqu e vos decla ro qu e n en h u m da qu eles h om en s qu e fora m con vida dos p rova rá a m in h a ceia .” (Lu ca s 14 :24 .) Porque “es tá p ron ta a fes ta , m a s os con vida dos n ã o eram dignos”. (Mateus 22:8.)

Prof. Edward D. O'Connor, C.S.C.

Universidade de Notre Dame

Estados Unidos

Capítulo 1

NNIINNGGUUÉÉ MM MMEE QQUUEE RR

“SEGUREM ESSE GAROTO MALUCO!” gr itou alguém.

A por ta do qu a dr im otor da Pa n Am erica n m a l a ca ba ra de s e a b r ir , e eu já m e p recip ita va es ca da a ba ixo, em d ireçã o a o p réd io do Aerop or to Id lewild , em Nova York . Es tá va m os a 4 de ja n eiro de 1955 , e o ven to frio fazia arder minhas faces.

Algu m a s h ora s a n tes , m eu pa i m e coloca ra n o a viã o em Sa n J u a n : u m ra pa zin h o por to-riquenho, rebelde e a m a rgu ra do. Fora en tregu e a os cu ida dos do p iloto; h a via m -m e recom en da do qu e perm a n ecess e n o a viã o a té a ch ega da de m eu irm ã o, Fra n k . Porém, qu a n do a por ta a b r iu , fu i o p r im eiro a s a ir , corren do selvagemente pela pista de concreto.

Três fu n cion á r ios do a eropor to s e a p roxim a ra m de m im , cerca n do-m e, em pu rra n do-m e con tra a cerca de correntes de a ço, a o la do do por tã o. O ven to cor ta n te zu n ia a t ra vés da m in h a rou pa t rop ica l e leve, en qu a n to eu p rocu ra va es ca pa r . Um policia l a ga rrou -m e pelo b ra ço, e os fu n cion á r ios volta ra m a o s eu t ra ba lh o. Pa ra m im a qu ilo era u m a b r in ca deira ; olh ei pa ra o gu a rda e sorri.

“Porto-r iqu en h o lou co! Qu e d ia bo você p reten de fazer?”

Meu s orr is o s u m iu qu a n do n otei ód io em s u a voz. Su a s boch ech a s gorda s es ta va m verm elh a s de fr io, e os olh os la cr im eja va m devido a o ven to. Um toco de ciga rro a pa ga do es ta va es qu ecido en tre s eu s lá b ios ba lofos .

Ódio! Sen t i-o circu la r por todo o m eu corpo. O m es m o ód io qu e eu t ivera con tra m eu pa i e m in h a m ã e, con tra m eu s p rofes s ores e os gu a rda s em Por to Rico. ód io! Ten tei lib er ta r -m e, m a s ele m e p ren deu com u m a fér rea chave de braço.

“Venh a , ga roto, va m os volta r a o a viã o.” Olh ei pa ra ele e dei uma cusparada.

“Porco!” ros n ou . “Porco s u jo!” Ele a frou xou a pressão sobre o meu braço e tentou segurar-me por trás, pela gola do ca s a co. Mergu lh a n do por ba ixo do s eu b ra ço, des lizei pelo por tã o a ber to qu e leva va p a ra o edifício do aeroporto.

Atrá s de m im , ou vi gr itos e p is a da s rá p ida s . Corr i pelo lon go corredor des via n do-m e, à es qu erda e à d ireita da s pes s oa s qu e s e d ir igia m a os a viões . De repen te, achei-m e em u m gra n de s a lã o. Des cobr in do u m a por ta de saída, zuni pelo salão e saí para a rua.

Um gra n de ôn ibu s es ta va pa ra do ju n to a o m eio-fio, com a por ta a ber ta e o m otor liga do. A fila es tava en tra n do. Com a lgu m a s em pu rra da s , con s egu i en tra r ta m bém . O m otor is ta m e a ga rrou pelo om bro e ped iu o dinheiro da pa s s a gem . En colh i os om bros e res pon d i-lhe em es pa n h ol. E le m e pôs pa ra fora r is p ida m en te, ocu pa do dem a is pa ra perder tem po com u m ra pa zin h o tolo qu e m a l com preen d ia in glês . Qu a n do ele d es viou a a ten çã o pa ra u m a s en h ora qu e es ta va rem exen do n a bolsa, ba ixei a ca beça e es gu eirei-m e por detrá s dela , a t ra ves s ei a por ta e pen etrei n o ôn ibu s lota do. Da n do u m a olh a dela por s ob re o om bro, pa ra ter a cer teza d e que ele não me vira, dirigi-me à parte traseira do ônibus, e sentei-me junto a uma janela.

Qu a n do o colet ivo deu a pa r t ida , vi o gu a rda gordu ch o e m a is dois s olda dos s a ir ofega n tes pela por ta la tera l do a eropor to, e olh a r em toda s a s d ireções . Nã o pude resistir à tentação de bater na vidraça, acenar para eles e sorrir através do vidro.

Afu n da n do n o ba n co, a poiei os joelh os n a s cos tas do a s s en to da fren te e a per tei o n a r iz con tra o vid ro fr io e sujo da janela.

O ôn ibu s a t ra ves s ou com d ificu lda de o t rá fego in ten s o de Nova York , em d ireçã o a o cen tro da cidade. Lá fora h a via n eve e la m a pela s ru a s e ca lça da s . Eu s em pre im a gin a ra qu e a n eve era b ra n ca e bon ita , com o n os con tos de fa da s . Ma s a qu ela era pa rda , com o m in ga u s u jo. Min h a res p ira çã o em ba çou a vid ra ça . Afastei-m e u m pou co e pa s s ei o dedo n ela . Era u m m u n do d iferen te, in teira m en te d iferen te do qu e eu acabara de abandonar.

Min h a m en te voltou a o d ia a n ter ior , qu a n do eu pa ra ra n o m orro d ia n te de m in h a ca s a . Lem brei-m e da gra m a verde qu e m eu s pés a m a s s a va m , s a lp ica da dos pon t in h os de cor cla ra , da s p equ en in a s flores ca m pes tres . O ca m po des cia n u m declive s u a ve, a té a vila , lá em ba ixo. Lem brei-m e da b r is a fres ca qu e s opra va con tra m in h a fa ce, e do ca lor do s ol em m inhas costas bronzeadas e nuas.

Por to Rico é u m a bela ter ra de s ol e de cr ia n ças des ca lça s . É u m a ter ra em qu e os h om en s n ã o u s a m camisa, e a s m u lh eres ca m in h a m pregu iços a m en te s ob u m s ol ca u s t ica n te. Os s on s dos ta m bores de a ço e da s gu ita r ra s ou vem -s e n oite e d ia . É u m a ter ra de ca n t iga s , flores, crianças sorridentes e água azul refulgente.

Mas é também uma terra de feitiçaria e macumba, de s u pers t içã o religios a e de m u ita ign orâ n cia . De n oite, os s on s dos ta m bores da m a cu m ba res s oa m n a s m on ta n h a s cober ta s de pa lm eira s , en qu a n to feit iceiros exercem o s eu ofício, oferecen do s a cr ifícios e da n ça n do com serpentes à luz de fogueiras bruxuleantes.

Meu s pa is era m es p ír ita s . Ga n h a va m a vida ex-pu ls a n do dem ôn ios e es ta belecen do u m s u pos to con tato com espíritos de mortos. Papai era um dos homens mais tem idos da ilh a . Com m a is de l,80m de a ltu ra , s eu s

en orm es om bros en cu rva dos h a via m leva do os ilh éu s a s e refer irem a ele com o “O Gra n de” Ele fora fer ido du ra n te a Segu n da Gu erra Mu n d ia l e receb ia u m a pen s ã o do govern o. Ma s , com o h a via dezes s ete m en in os e u m a m en in a n a fa m ília , depois da gu erra ele recorreu ao espiritismo para ganhar a vida.

Mam ã e t ra ba lh a va com pa pa i com o “médium”. Nos s a ca s a era s ede de toda s or te de reu n iões de m a cu m ba , s es s ões e feit iça r ia . Cen ten a s de pes s oa s vin h a m de toda a ilh a pa ra pa r t icipa r da s s es s ões espíritas.

Nos s a ca s a en orm e, n o a lto d a colin a , era liga d a por u m a t r ilh a s in u os a e es t reita à pequ en a vila m o-dorren ta de La s Pied ra s , es con d ida n o va le, lá em ba ixo. Os a ldeões s u b ia m pela t r ilh a a qu a lqu er h ora do d ia ou da n oite, pa ra ir à “Ca s a do Feit iceiro”. Eles ten ta va m fa la r com es p ír itos dos m or tos , tomavam pa r te em a tos de feit iça r ia , e ped ia m a pa pa i pa ra liber tá -los de demônios.

Pa pa i era o ch efe m a s h a via ou tros m éd iu n s qu e s e u t iliza va m de n os s a ca s a pa ra s ede de s u a s a t i-vida des . Algu n s perm a n ecia m a li s em a n a s s egu ida s , à s vezes in voca n do es p ír itos , à s vezes expu ls a n do demônios.

Ha via u m a m es a com prida n a s a la da fren te, a o redor da qu a l o povo s e a s s en ta va , qu a n do es ta va ten ta n do s e com u n ica r com os es p ír itos dos m or tos . Pa pa i era m u ito en ten d ido n o a s s u n to, e t in h a u m a b ib lioteca de m a gia e es p ir it is m o, s em igu a l, n a qu ela parte da ilha.

Cer ta m a n h ã , dois h om en s t rou xera m u m a s e-n h ora per tu rba da à n os s a ca s a . Eu e m eu irm ã o Gen e esgueiramo-n os da ca m a , olh a m os por u m a fres ta da por ta , e vim os qu a n do eles a es ten dera m s obre a m es a gra n de. O s eu corp o t rem ia e gem idos es ca pa va m de s eu s lá b ios ; os h om en s s e pos ta ra m u m de ca da la do da

m es a , s egu ra n do-a . Ma m ã e ficou a os pés dela , com os olh os ergu idos pa ra o teto, repet in do pa la vra s es t ra n h a s . Pa pa i foi à cozin h a e voltou com u m a pequ en a u rn a p reta ch eia de in cen s o a fu m ega r . Tra zia ta m bém u m gra n de s a po qu e colocou s obre o es tôm a go a gita do da m u lh er . Depois , s u s pen den do a u rn a s ob re a ca beça dela , a s pergiu pó de in cen s o s obre s eu corp o convulso.

Nós t rem ía m os de m edo; ele m a n dou qu e os es -p ír itos m a u s s a ís s em da m u lh er e en tra s s em n o s a po. De repen te, a m u lh er jogou a ca beça pa ra t rá s e s oltou u m gr ito a gu do. O s a po s a ltou do s eu es tôm a go e espatifou-s e con tra a s oleira da por ta . Im ed ia ta m en te, ela com eçou a da r pon ta pés e, s acudindo-s e, liber tou -se dos h om en s qu e a s egu ra va m , rolou da m es a e ca iu pes a da m en te n o ch ã o. Picou ba ba n do e m orden do a lín gu a e os lá b ios ; s a n gu e m is tu ra do com es pu m a escorria pelos cantos de sua boca.

Ma is ta rde a qu ietou -s e e ficou im óvel. Pa pa i de-cla rou qu e ela es ta va cu ra da e os h om en s lh e dera m d in h eiro. Eles pega ra m o corpo in con s cien te e s e fora m , a gra decen do a pa p a i e ch a m a n do-o repet ida m en te de “Grande Milagreiro”.

Min h a in fâ n cia foi ch eia de tem or e s ob res s a ltos. O fato de sermos uma família grande significava que mui pou ca a ten çã o era da da in d ividu a lm en te a ca da filh o. Eu t in h a ra iva de pa pa i e m a m ã e, e t in h a m edo da macumba que era realizada todas as noites.

No verão anterior à época que eu devia entrar para a es cola pa pa i t ra n cou -m e, u m d ia , n o pom ba l. J á era noite e ele m e a pa n h a ra rou ba n do d in h eiro da bols a de m a m ã e. Procu rei correr , m a s ele es t icou o b ra ço e m e a ga rrou pela n u ca : “Nã o a d ia n ta correr , m olequ e. Você roubou; agora vai me pagar.”

“Eu te odeio”, gritei.

Ele m e leva n tou do ch ã o, s a cu d in do m e d ia n te d e si “Vou en s in á -lo a fa la r a s s im com s eu pa i”, d is s e en tre den tes . Coloca n do-m e deba ixo do b ra ço com o s e eu fos s e u m s a co de fa r in h a , a t ra ves s ou o qu in ta l es cu ro, dirigindo-se ao pombal. Escutei o ruído de suas mãos ao abrir a porta. “Para dentro”, rosnou ele. “Você vai ficar aí com os pombos, até aprender.”

Atirou-m e por ta a den tro, e fech ou -a a t rá s de m im , deixando-m e em tota l es cu r idã o. Ou vi o t r in co s en d o colocado no lugar, e a voz de papai, abafada, através das fen da s da pa rede: “E n a da de ja n ta r .” Ou vi s eu s pa s s os se diminuindo na distância, de volta para casa.

Eu es ta va petr ifica do de ter ror . Ma r tela va a porta com os p u n h os . Ch u ta va -a fren et ica m en te, gr ita n do e chorando. De repente, a casinhola encheu-se do barulho de a s a s : os pá s s a ros , a s s u s ta dos , h a via m a corda do; repet ida s vezes , ch oca ra m -s e con tra o m eu corpo. Aper tei a s m ã os con tra o ros to e gr itei h is ter ica m en te, en qu a n to a s pom ba s s e a r rem et ia m con tra a s pa redes , e b ica va m ferozm en te m eu ros to e pes coço. Ca í a tu rd ido n o ch ã o im u n do, e en ter rei a ca beça n os b ra ços , ten ta n do p roteger os olh os e ta pa r os ou vidos pa ra n ã o ou vir o s om da s a s a s qu e voltea va m s obre m in h a cabeça.

Pa recia qu e u m a etern ida de s e pa s s a ra , qu a n do a por ta a b r iu , e pa pa i m e fez fica r de pé e a r ra s tou -me pa ra o qu in ta l. “Da p róxim a vez, você va i lem brar-s e de n ã o rou b a r e de n ã o res pon der com in s olên cia qu a n do for a pa n h a do”, d is s e ele a s pera m en te: “Agora , tom e u m banho e vá para a cama.”

Ch orei n a qu ela n oite a té dorm ir ; depois , s on h ei com pá s s a ros es voa ça n tes qu e s e ch oca va m con tra m eu corpo.

Meu s res s en t im en tos con tra pa pa i e m a m ã e rea -vivaram-s e n o a n o s egu in te, qu a n do en trei pa ra a es cola . Eu od ia va qu a lqu er a u tor ida de. Ma is ta rde,

qu a n do já t in h a oito a n os , rebelei-m e de u m a vez con tra m eu s pa is . Foi em u m a ta rde qu en te de verã o. Ma m ã e e vá r ios ou tros “médiuns” es ta va m s en ta dos à gra n de m es a da s a la , tom a n do ca fé. Eu m e ca n s a ra de b r in ca r com m eu irm ã o e en tra ra n a s a la , b r in ca n do com u m a pequ en a bola , ba ten do-a n o a s s oa lh o. Um dos m éd iu n s d is s e à m a m ã e: “O Nicky é u m m en in o bon ito. Pa rece com você. Deve orgulhar-se dele.”

Ma m ã e olh ou s ér ia pa ra m im e com eçou a b a -lançar-s e n a ca deira , pa ra a fren te e pa ra t rá s . Seu s olh os revira ra m , a pon to de a pa recer s om en te o b ra n co. Es ten deu os b ra ços pa ra a fren te, s ob re a m es a . Seu s dedos fica ra m du ros e t rem ia m e ela leva n tou va ga ros a m en te os b ra ços s ob re a ca beça e com eçou a fa la r em tom de ca n toch ã o: “Es te... n ã o... m eu ... filh o. Nã o, Nicky n ã o. Ele n u n ca foi m eu . Ele é filh o do m a ior de todos os b ru xos . Lú cifer . Nã o, m eu n ã o... n ã o, m eu não... Pilho de Satanás, filho do diabo.”

Larguei a bola, que rolou pela sala afora. Encostei-m e à pa rede, e m a m ã e con t in u ou em tra n s e; s u a voz s e leva n ta va e ba ixa va , en qu a n to ela fa la va com o em responso: “Nã o, m eu n ã o, n ã o, m eu , n ã o... a m ã o de Lú cifer s ob re a s u a vida ... o dedo de Sa ta n á s es tá n a s u a vida ... o dedo de Sa ta n á s toca n a s u a a lm a ... a m a rca da bes ta n o s eu cora çã o... Nã o, m eu n ã o, m eu não.”

Obs ervei qu e lá gr im a s corr ia m pela s s u a s fa ces . De repen te, voltou -s e pa ra m im com os olh os a r -rega la dos e gr itou com voz es ga n iça da : “Sa i, DIABO! Pa ra lon ge de m im . Deixa -m e, DIABO! Lon ge! Lon ge! Longe!”

Eu es ta va petr ifica do de ter ror . Corr i p a ra o m eu qu a r to e jogu ei-m e s obre a ca m a . Pen s a m en tos pa s s a va m pela m in h a m en te com o r ios ca n a liza dos em u m a ga rga n ta es t reita . “Nã o s ou filh o dela ... filh o de Sa ta n á s ... ela n ã o m e a m a ... Nin gu ém m e qu er .

Ninguém me quer.”

En tã o a s lá gr im a s viera m , e eu com ecei a ch ora r e a s olu ça r . A dor qu e s en t ia n o peito era in s u por tá vel, e esmurrei a cama até ficar exausto.

O velh o ód io s e a gitou den tro de m im , a con s u mir m in h a a lm a , com o a on da da m a ré a va n ça s obre u m recife de cora l. Sen t i qu e od ia va m in h a m ã e. Pu xa , com o a od ia va ! Eu qu er ia fer i-la , tor tu rá -la , vin ga r-me. Empurrei a porta e saí correndo e gritando até a sala. Os m éd iu n s a in da es ta va m a li com m a m ã e. Es m u rrei a m es a e gr itei. Es ta va tã o fru s t ra do pelo ód io qu e gaguejava e as palavras não saíam direito: “Eu — eu... t-te o-o-odeio.” Apon ta va u m dedo t rêm u lo pa ra m in h a mãe e gritava: “Vo-vo-você me paga. Você me paga.”

Dois de m eu s irm ã os m a is n ovos es ta va m à porta olh a n do, cu r ios os . Em pu rrei-os pa ra o la do e cor r i pa ra os fu n dos da ca s a . Mergu lh a n do es ca da a ba ixo, virei-me e a r ra s tei-m e pa ra b a ixo da va ra n da e ch egu ei a o ca n to es cu ro e fr io on de eu s em pre m e es con d ia . Aba ixa do s ob a escada, no meio daquela poeira seca, ouvi as mulheres r in do e m a is a lta do qu e a s ou tra s , a voz de m in h a m ã e ecoa n do a t ra vés do a s s oa lh o ra ch a do: “Vira m , eu bem disse que ele é filho de Satanás.”

Com o s en t i ód io dela . Qu er ia des t ru í-la , m a s n ã o s a b ia com o. Es m u rra n do a poeira , gr itei de des espero, m eu corpo s a cu d in do-s e em s olu ços , con vu ls ivos. “Eu te odeio. Eu te odeio. Eu te odeio”, gr itei. Ma s n in gu ém m e ou viu . Nin gu ém s e im por tou . No m eu des es pero pega va mancheia s de pó e a t ira va fu r ios a m en te em toda s a s d ireções . A poeira a s s en ta va em m eu ros to transformando-s e em pequ en os r ia ch os s u jos a o misturar-se com as lágrimas.

Ma is ta rde o fren es i a ca lm ou -s e e fiqu ei em s i-lên cio. Ou vi a s cr ia n ça s b r in ca n do n o qu in ta l. Um ga roto es ta va ca n ta n do u m a m ú s ica qu e fa la va de pa s s a r in h os e borboleta s m a s eu m e s en t ia is ola do,

s olitá r io... Tor tu ra d o pelo ód io e pela pers egu içã o e obceca do pelo m edo. Ou vi a por ta do pom ba l fech a r-s e e a s ru idos a s pa s s a da s de pa pa i qu e vin h a dos fu n dos da ca s a ; ele com eçou a s u b ir os degra u s da es ca da . Pa ra n do, olh ou pa ra a s t reva s , por en tre a s ra ch a du ra s da s tá bu a s dos d egra u s . “O qu e es tá fa zen do a í em ba ixo, m en in o?” Fiqu ei em s ilên cio, com a es pera n ça d e qu e n ã o m e recon h eces s e. Ele en colh eu os om bros e con t in u ou s u b in do a es ca da , e en trou deixa n do a por ta bater atrás de si. Ninguém me quer, pensei.

Ou vi m a is r is a da s den tro da ca s a , qu a n do a voz de ba ixo p rofu n do de m eu pa i u n iu -s e à da s m u lh eres. Eu sabia que eles ainda estavam rindo de mim.

On da s de ód io m e in va d ira m ou tra vez. Lá gr imas rola ra m pelo m eu ros to, e com ecei a gr ita r de n ovo. “Eu te odeio, m a m ã e! Eu te odeio. Eu te odeio.” Min h a voz ecoou no vácuo sob a casa.

Ch ega n do a u m a u ge de em oçã o, ca í d e cos ta s n a poeira, e rolei de um lado para o outro — a poeira cobria m eu corpo. Exa u s to, fech ei os olh os e ch orei, a té ca ir num sono agitado.

O s ol já t in h a s e es con d ido n o m a r , qu a n do des -per tei e m e a r ra s tei pa ra fora , s a in do de ba ixo da va ra n da . A a reia a in da ra n gia em m eu s den tes , e o m eu corpo es ta va cober to de s u jeira . Os s a pos coa xa va m . Os gr ilos ca n ta va m . Eu s en t ia o orva lh o ú m ido e fr io s ob meus pés descalços.

Pa pa i a b r iu a por ta dos fu n dos , e u m ja to de lu z a m a rela p rojetou -s e on de m e a ch a va , a o pé da es ca da . “Porco!” gr itou ele. “O qu e você es ta va fa zen do ta n to tem po deba ixo da ca s a ? Veja com o es tá . Nã o qu erem os porcos por aqui. Vá se lavar e venha jantar.”

Obedeci. Porém , m ed ita n do en qu a n to m e la va va deba ixo da b ica , ch egu ei à con clu s ã o de qu e h a ver ia d e od ia r etern a m en te. Com preen d i qu e n u n ca m a is a m a r ia

de n ovo .. a n in gu ém . E n u n ca m a is ch ora r ia ... n u n ca . Medo, s u jeira e ód io pa ra o filh o de Sa ta n á s . Foi qu a n do comecei a fugir.

Mu ita s fa m ília s por to-r iqu en h a s têm o cos tu m e de m a n da r s eu s filh os pa ra Nova York , qu a n do es tes a lca n ça m ida de s u ficien te pa ra cu ida r de s i. Seis dos m eu s irm ã os m a is velh os já h a via m deixa do a ilh a , mudando-s e pa ra Nova York . Todos es ta va m ca s a dos e procurando construir vida nova.

Eu , porém , era m u ito n ovo pa ra ir . Nã o obs ta n te, n os cin co a n os s egu in tes m eu s pa is ch ega ra m à con clu s ã o de qu e n ã o era pos s ível qu e eu perm a n ecesse em Por to Rico. Torn a ra -m e rebelde n a es cola . Es ta va s em pre p rocu ra n do b r iga , p r in cipa lm en te com cr ia n ça s m en ores do qu e eu . Um d ia a t irei u m a pedra n a ca beça de u m a m en in a . Fiqu ei olh a n do, com u m s en t im en to d e p ra zer , o s a n gu e qu e goteja va a t ra vés de s eu ca belo. A menina estava gritando e chorando, e eu ali, rindo.

Meu pa i es bofeteou -m e a qu ela n oite a té m in h a boca sangrar. “Sangue por sangue”, gritou ele.

Com prei u m a es p ingarda “pica-pau” pa ra m a tar pa s s a r in h os . Ma s , pa ra m im , m a tá -los n ã o era o suficiente. Gostava de mutilar seus corpos. Meus irmãos se afastavam de mim, por causa do meu estranho desejo de ver sangue.

Qu a n do es ta va n o oita vo a n o, t ive u m a b r iga com o p rofes s or de a r tes m a n u a is . Era u m h om em a lto e m a gro qu e gos ta va de a s s ob ia r pa ra a s m oça s . Um d ia , na classe, eu o chamei de “negro”. A sala ficou silenciosa e os ou tros ra pa zes s e es gu eira ra m pa ra t rá s da s máquinas da oficina, sentindo a tensão no ar.

O p rofes s or ca m in h ou pela cla s s e, a té o lu ga r on de eu es ta va , a o la do de u m torn o. “Sa be o qu e m a is , rapaz? Você é pretensioso.”

Res pon d i com in s olên cia : “Des cu lpe, n egro, eu

acho que não sou.”

An tes qu e pu des s e s a fa r -m e, ele m e ba teu com o lon go b ra ço os s u do e s en t i a ca rn e dos m eu s lá b ios esmagar-s e con tra os den tes com a violên cia do golpe. Sen t i o gos to do s a n gu e qu e es corr ia pela m in h a boca e pelo meu queixo.

Ava n cei pa ra ele, b ra n d in do os b ra ços . O p ro-fes s or era u m h om em feito en qu a n to eu pes a va m enos de cin qü en ta qu ilos . Eu es ta va ch eio de ód io e a vis ta do sangue fez-me explodir. Esticando os braços e colocando a s m ã os con tra a m in h a tes ta ele m e con s ervou à distância, enquanto eu dava murros no ar.

Com preen den do a in u t ilida de dos m eu s es forços , fugi. “Você va i ver , n egro”, gr itei. “Vou à polícia . Es pera para ver.” Saí correndo da sala de aula.

Ele correu a t rá s d e m im , ch a m a n do-me: “Espere. Eu sinto muito.” Mas, não voltei.

Não fui à polícia. Em lugar disso, dirigi-me a papai e lh e d is s e qu e o p rofes s or ten ta ra m e m a ta r . E le ficou fu r ios o. Correu a o qu a r to e depois s a iu com s u a en orm e p is tola n o cin to. “Va m os ga roto. Vou m a ta r u m valentão.”

Volta m os à es cola . Eu t in h a d ificu lda de em a com pa n h a r os p a s s os lon gos de p a pa i e qu a s e p re-cis a va correr pa ra a lcançá-lo. Meu cora çã o s a lta va a o pen s a r n a s en s a çã o de ver a qu ele p rofes s or a lto encolher-se de medo sob a fúria de meu pai.

Ma s , o p rofes s or n ã o es ta va n a s a la de a u la . “Es pera a qu i, m en in o”, d is s e pa pa i. “Eu vou con versar com o diretor, e resolver isto.” Senti medo, mas esperei.

Pa pa i dem orou m u ito tem po n o es cr itór io do d iretor . Qu a n do s a iu , ca m in h ou depres s a em m in h a d ireçã o, e m e s a cu d iu pelo b ra ço. “Mu ito bem , rapaz, você tem algumas explicações a dar. Vamos para casa.”

Volta m os de n ovo a t ra vés da pequ en a vila , e pela t r ilh a s in u os a , a té em ca s a . Ele m e pu xa va a t rá s de s i, p res o pelo b ra ço. “Men t iros o s u jo”, d is s e-m e já defron te da ca s a . Leva n tou a m ã o pa ra es bofetea r -m e, m a s con s egu i s a ir fora d o s eu a lca n ce, e cor r i la deira a ba ixo. “Es tá cer to... Fu ja , m olequ e!” gr itou . “Você h á d e volta r para casa e quando voltar, eu vou lhe mostrar...”

Voltei para casa; mas só três dias depois. A polícia pegou-m e a n da n do n a beira de u m a es t ra da qu e leva va à s m on ta n h a s , n o in ter ior . Rogu ei-lh es qu e m e soltassem, m a s d evolvera m -m e a o m eu pa i. E ele cumpriu a sua promessa.

Eu s a b ia qu e p recis a va fu gir ou tra vez. E m a is ou tra . Fu gir ia pa ra tã o lon ge qu e n in gu ém s er ia capaz de m e t ra zer de volta . Nos dois a n os qu e s e s eguiram, fugi cinco vezes. Todas as vezes a polícia me encontrou e m e levou de volta pa ra ca s a . Fin a lm en te, s em m a is es pera n ça , pa pa i e m a m ã e es crevera m pa ra m eu irm ã o Fra n k , pergu n ta n do-lh e s e poder ia receber-m e pa ra m ora r em s u a com pa n h ia . Fra n k con cordou , e eles traçaram os planos para a minha ida.

Na m a n h ã em qu e via jei, a s cr ia n ça s s e en fileira ra m n a va ra n da à fren te da ca s a . Ma m ã e m e apertou a o peito. Ha via lá gr im a s em s eu s olh os qu a n d o ela ten tou fa la r , porém n ã o s a iu pa la vra n en h u m a . Eu n ã o t in h a por ela s en t im en to de qu a lqu er es pécie. Pegan do m in h a pequ en a m a la , virei a s cos ta s , ca r ra n cu do, e d ir igi-m e à velh a ca m in h on eta on de pa pa i me esperava. Não olhei para trás.

Leva m os qu a ren ta e cin co m in u tos pa ra ch ega r a o a eropor to de Sa n J u a n , on de pa pa i m e deu a pa ssagem e en fiou em m in h a m ã o u m a n ota de dez dólares dobrada. “Telefon e pa ra Fra n k logo qu e ch ega r a Nova York”, disse ele. “O p iloto va i tom a r con ta de você a té ele chegar.”

Ficou de pé olh a n do pa ra m im du ra n te lon go

tem po, bem m a is a lto do qu e eu , en qu a n to u m ca ch o do s eu ca belo gr is a lh o e on du la do era a gita do pela b r is a qu en te. É p rová vel qu e eu pa reces s e pequ en o e p a tét ico a s eu s olh os , pa ra do a li n a es t ra da , com a m a leta n a m ã o. Seu s lá b ios t rem era m qu a n do es ten deu a m ã o pa ra a per ta r a m in h a . En tã o, repen t in a m en te, en volveu -me em s eu s lon gos b ra ços e a per tou o m eu corpo m a gro contra o seu.

Escutei-o s olu ça r s ó u m a vez: “Hijo m io” (filho meu).

Soltando-m e, ele d is s e ra p ida m en te: “Seja u m bom m en in o, pa s s a r in h o.” Virei-m e, e s a í corren do; ga lgu ei a s es ca da s do en orm e a viã o, e s en tei-m e ju n to a uma janela.

Lá fora vi a figura magra e solitária de meu pai, “O Grande”, en cos ta do n a cerca . Ele leva n tou a m ã o u m a vez, com o s e fos s e a cen a r , m a s pa receu en vergonhar-se, e voltou , a n da n do depres s a , pa ra ju n to da velh a caminhoneta.

Por que será que ele me chamara de “passarinho”? Recordei o m om en to qu a n do, m u itos a n os a t rá s , s en ta do n os degra u s da gra n de va ra n da , pa pa i m e chamara daquela forma.

Es ta va s en ta do em u m a ca deira de ba la n ço, fu -m a n do o s eu ca ch im bo, qu a n do m e con tou a len da de u m pá s s a ro qu e n ã o t in h a pés , e por is s o voa va con t in u a m en te. Pa pa i olh ou -m e s om brio, e d is s e: “Esse pa s s a r in h o é você, Nicky. Você n ã o tem des ca n s o. Com o u m pa s s a r in h o, você es tá s em pre fu gindo.” Men eou a cabeça vagarosamente, e levantou os olhos para os céus, s opra n do fu m a ça n a s t repa deira s , qu e s u b ia m a té o telhado da varanda.

“Es s e pa s s a r in h o é pequ en in o e m u ito leve. Nã o pes a m a is do qu e u m a pen a . Ele é leva do p ela s cor-ren tes de a r , e dorm e a o ven to. Es tá s em pre fu gin do.

Fu gin do de ga viões , de á gu ia s , de coru ja s . Aves de ra p in a . Ele s e es con de coloca n do-s e en tre ela s e o s ol. Se ela s voa rem a cim a dele, poderã o vê-lo, em con tra s te com a ter ra es cu ra . Ma s a s s u a s p equ en a s a s a s s ã o t ra n s pa ren tes , com o a á gu a cla ra da la goa . En qu a n to ele perm a n ece n o a lto, ela s n ã o con s egu em vê-lo, e assim ele nunca descansa.”

Pa pa i recos tou -s e e s oltou u m a ba fora da de fu -maça azul. “Mas, como é que ele come?” perguntei.

“Ele com e a o ven to”, res pon deu pa pa i. Fa la va va ga ros a m en te, com o s e t ives s e vis to a a vezin h a . “Ele a pa n h a in s etos e borboleta s . Nã o tem pern a s ... n em pés... está sempre se movendo.”

Fiqu ei fa s cin a do com a es tór ia . “E n os d ia s ch u -vosos?” perguntei-lhe. “O qu e a con tece qu a n do o s ol n ã o b r ilh a ? Com o é, en tã o, qu e ele es ca pa dos s eu s inimigos?”

“Nos d ia s feios , Nicky”, d is s e pa pa i, “ele voa tã o a lto qu e n in gu ém pode vê-lo. A ú n ica h ora em qu e pá ra de voa r — o ú n ico m om en to em qu e pá ra de fu gir — a ú n ica vez qu e vem à ter ra — é qu a n do m orre. Pois , u m a vez que toca o solo, não pode mais fugir”

Pa pa i m e deu u m ta p in h a n o t ra s eiro e m e tocou de ca s a . “Vá a gora , pa s s a r in h o. Fu ja , voe. Seu pa i o chamará quando já não for hora de correr.”

Literalmente voei pelo campo gramado, batendo os b ra ços com o u m pá s s a ro qu e ten ta s s e a lça r vôo. Con tu do, por a lgu m a ra zã o, pa rece qu e n ã o con s eguia ganhar suficiente velocidade para subir.

Os m otores do a viã o tos s ira m , s olta ra m fu m a ça n egra , e en tra ra m em fu n cion a m en to. Fin a lm en te, eu ia voar. Estava a caminho...

O ôn ibu s pa rou . Lá fora , a s lu zes b r ilh a n tes e os a n ú n cios lu m in os os m u lt icolor idos a cen d ia m e

a pa ga va m n a pen u m bra fr ia . Um h om em qu e es ta va do ou tro la do leva n tou -s e pa ra d es cer . Segu i-o a té a por ta , e s a ím os . As por ta s s e fech a ra m a trá s de m im , e o ôn ibu s pa r t iu . Fiqu ei a li n a ca lça da ... s ozin h o n o m eio de oito milhões de pessoas.

Apa n h ei u m pu n h a do de n eve s u ja e t irei a cros ta qu e a cob r ia . Ali es ta va : n eve pu ra e b r ilh a n te. Des ejei colocá-la n a boca e com ê-la Porém , a o olh a r bem , pequ en a s m a n ch a s n egra s com eça ra m a a pa recer n a s u perfície. Com preen d i qu e o a r es ta va ch eio de fu ligem da s ch a m in és e qu e a n eve es ta va tom a n do o a s pecto de queijo fresco pulverizado com pimenta-do-reino.

J ogu ei a n eve pa ra o la do. Nã o fa zia d iferen ça . Eu estava livre.

Va gu eei pela cida de dois d ia s . En con trei u m ca -s a co velh o joga do em u m a la ta de lixo. As m a n ga s cobr ia m a s m in h a s m ã os , e a ba r ra va rr ia a ca lça da . Os botões t in h a m s ido a r ra n ca dos e os bols os ra s gados, m a s ele m e a qu ecia . Aqu ela n oite eu dorm i n o m etrô, encolhido em um banco.

No fim do s egu n do d ia , m eu en tu s ia s m o es friara . Eu es ta va com fom e... e com fr io. Em du a s oca s iões , ten tei fa la r com a lgu ém , ped in do a ju da . O pr im eiro h om em s im ples m en te ign orou -m e. Con t in u ou a n da n do, com o s e eu n ã o es t ives s e a li. O s egu n do em pu rrou -me con tra a pa rede: “Ca ia fora , s eu . Nã o pon h a es s a s m ã os gordu ren ta s em m im .” Piqu ei com m edo. Ten ta va im ped ir qu e o pâ n ico s u b is s e do es tôm a go pa ra a garganta.

Na qu ela n oite, percorr i de n ovo a s ru a s da cidade, o pa letó com prido va rren do a ca lça da e a pequ en a m a la s egu ra firm em en te em m in h a m ã o. Pes s oa s pa s s a va m por m im , e m e olh a va m , m a s n in gu ém pa recia im por ta r -se comigo. Apenas olhavam e continuavam andando.

Nes s a m es m a n oite ga s tei os dez dóla res qu e

pa pa i m e dera . En trei em u m pequ en o res ta u ra n te e ped i u m ca ch orro-qu en te, a pon ta n do pa ra a figu ra de u m , qu e es ta va depen du ra da a cim a do ba lcã o. En goli-o s ofrega m en te e in d iqu ei qu e des eja va ou tro. O h om em s a cu d iu a ca beça n ega t iva m en te e es ten deu a m ã o. En fiei a m ã o n o bols o e t irei a n ota a m a rfa n h a da . Lim pa n do a s m ã os em u m a toa lh a , ele a b r iu a n ota , alisou-a , e m eteu -a n o bols o do a ven ta l s u jo. Trou xe-me en tã o ou tro ca ch orro-qu en te e u m a ter r in a de feijã o com ca rn e. Qu a n do term in ei, p rocu rei-o, m a s ele h a via des a pa recido n a cozin h a . Pegu ei a m a la e voltei pa ra a ru a fr ia . Aca ba ra de ter m eu p r im eiro en con tro com a es per teza a m er ica n a . Com o ir ia s a ber qu e u m ca ch orro-quente americano não custa cinco dólares?

Des cen do a ru a , pa rei em fren te a u m a igreja . Um pes a do por tã o de fer ro, t ra n ca do com u m ca dea do, fora coloca do d ia n te da s por ta s . Pa rei d ia n te do gra n d e ed ifício de ped ra cin zen ta e obs ervei a tor re qu e a pon ta va pa ra o céu . As fr ia s pa redes de ped ra e os es cu ros vit ra is es ta va m fora do m eu a lca n ce, p rotegidos pela cerca de fer ro. A es tá tu a de u m h om em de ros to s im pá t ico e olh os t r is tes es p ia va a t ra vés do por tã o fech a do. Os s eu s b ra ços es ta va m es ten d idos e cober tos de n eve, m a s ele es ta va t ra n ca do lá den tro, e eu a qu i fora.

Arrastei-m e ru a a ba ixo... a n da n do... a n da n do s em parar.

O pâ n ico volta va fu r t iva m en te. Era qu a s e m eia -n oite, e eu t rem ia n ã o s ó de fr io, m a s ta m bém de m edo. Tin h a es pera n ça de qu e a lgu ém pa ra s s e e m e pergu n ta s s e em qu e poder ia m e a ju da r . Nem s ei o qu e ter ia d ito, s e a lgu ém pa ra s s e e ofereces s e a ju da . Ma s eu me sentia sozinho, com medo, e perdido...

A m u lt idã o a p res s a da foi em bora e m e deixou . Nu n ca pen s ei qu e u m a pes s oa pu des s e s en t ir s olidã o n o m eio de u m m ilh ã o de pes s oa s . Pa ra m im , s olidã o era

perder-s e n a flores ta ou em u m a ilh a des er ta . Porém , es s a era a p ior da s s olidões . Vi pes s oa s bem ves t ida s , volta n do do tea t ro pa ra s u a s ca s a s ... velh os ven den do jorn a is e fru ta s em pequ en a s ba n ca s qu e fica va m a ber ta s a n oite toda ... policia is pa tru lh a n do, a os pa res ... ca lça da s ch eia s de pes s oa s a p res s a da s . Ao olh a r pa ra s eu s ros tos , ela s ta m bém pa recia m s olitá r ia s . Nin guém ria. Ninguém de rosto alegre. Todos apressados.

Sentei-m e n a ca lça da e a b r i m in h a pequ en a m a la. En con trei u m peda ço de pa pel dobra do, com o n ú m ero do telefon e de Fra n k , es cr ito por m a m ã e. De repen te, s en t i a lgo em pu rra n do-m e por t rá s . Era u m ca ch orro velh o, felpu do qu e en cos ta va o focin h o n o en orm e ca s a co qu e cobr ia m eu corpo m a gro. Rodeei s eu pes coço com o b ra ço, e pu xei-o pa ra m im . Ele la m beu m eu ros to e eu enterrei a cabeça no seu pelo sarnento.

Nã o s ei qu a n to tem po fiqu ei a li s en ta do, t rem en do e a fa ga n do o cã o. Qu a n do olh ei pa ra cim a , vi os pés e pernas de dois policiais uniformizados. As suas galochas es ta va m m olh a da s e s u ja s . O ca ch orro s a rn en to p res s en t iu o per igo, e s a iu corren do, des a pa recendo num beco.

Um dos gu a rda s ba teu n o m eu om bro com a pon ta do ca s s etete. “O qu e é qu e você es tá fa zen do a qu i s en ta do, n o m eio da n oite?” pergu n tou ele. A s u a fa ce pa recia es ta r cem qu ilôm etros a cim a . Com d ificu lda de p rocu rei exp lica r , em m eu in glês de pé qu ebra do, qu e estava perdido.

Um deles m u rm u rou a lgo pa ra o ou tro, e s e foi. O qu e fica ra a joelh ou -s e a o m eu la do, n a ca lça da s u ja. “Posso ajudá-lo, garoto?”

Acen ei qu e s im e t irei o peda ço de pa pel com o n om e e n ú m ero do telefon e de Fra n k . “Irmão”, d is se-lhe, mostrando o papel.

Ele sacudiu a cabeça ao olhar para a escrita quase

ilegível. “É aí que você mora, garoto?”

Eu n ã o s a b ia res pon der e a pen a s d is s e: “Irmão”. Ele a cen ou qu e s im , leva n tou -m e pelo b ra ço, e d ir igim o-n os a u m a ca b in e telefôn ica a t rá s de u m a ba n ca de jorn a is . Pes cou u m n íqu el n o bols o e d is cou o n ú m ero. Qu a n do a voz s on olen ta de Fra n k res pon deu , ele m e en tregou o fon e. Em m en os de u m a h ora eu es ta va a salvo, no apartamento de meu irmão.

A s opa qu en te qu e tom ei já n a ca s a de Fra n k es ta va gos tos a , e a ca m a lim pa , delicios a . Na m a n h ã seguin te Fra n k m e con tou qu e eu dever ia fica r com ele, qu e ele cu ida r ia de m im e m e por ia n a es cola . Algo den tro de m im , porém , m e d izia qu e eu n ã o fica r ia a li. Começara a fugir, e agora nada me faria parar.

Capítulo 2

NNAA SS EE LLVVAA DD OO QQUUAADD RR OO--

NNEE GGRR OO

FIQUEI DOIS MESES COM FRANK, a p ren den do a m a n obra r o in glês . Porém n ã o era feliz, e a s ten s ões internas estavam me perturbando muito.

Fra n k , logo n a p r im eira s em a n a , m a tr icu lou -me n o gin á s io. A es cola era qu a s e in teira m en te de n egros e porto-r iqu en h os . Era d ir igida m a is com o u m reform a tór io do qu e com o es cola pú b lica . Os p rofessores e a dm in is t ra dores pa s s a va m a m a ior pa r te do tem po tentando manter a disciplina, de forma que pouco tempo res ta va pa ra o en s in o. Era u m lu ga r s elva gem , ch eio de b r iga s , de im ora lida de e de con s ta n te ba ta lh a con tra os

que tinham autoridade.

Toda s a s es cola s do Brook lin têm rep res en ta n tes de pelo m en os du a s ou t rês ga n gs . Es ta s ga n gs s ã o qu a dr ilh a s form a da s por ra pa zes e ga rota s qu e vivem em u m cer to ba ir ro. Algu m a s vezes a s ga n gs s ã o inimigas , o qu e in va r ia velm en te cr ia con flitos , qu a n do são colocadas na mesma sala de aula.

Aqu ilo era u m a exper iên cia n ova pa ra m im . Todo d ia n a es cola t in h a de h a ver u m a b r iga n os corredores ou em u m a da s s a la s de a u la . Eu m e en cos ta va à pa rede, com m edo de qu e a lgu m dos ra pa zes m a iores m e ba tes s e. Depois da a u la , s em pre h a via u m a br iga n o pátio, e alguém saía ferido e perdendo sangue.

Fra n k cos tu m a va a dver t ir -m e, pa ra n ã o a n da r pela s ru a s à n oite. “As qu a dr ilh a s , Nicky. As qu adrilhas podem te m a ta r . E les s a em com o m a t ilh a s de lobos , du ra n te a n oite, e m a ta m qu a lqu er pes s oa qu e n ã o conheçam.”

Ele m e recom en dou qu e vies s e d ireto da es cola pa ra ca s a , toda s a s ta rdes , e fica s s e n o a pa r ta m en to, e me conservasse à distância das gangs.

Logo fiqu ei s a ben do ta m bém qu e a s qu a dr ilh a s n ã o era m a ú n ica cois a qu e eu dever ia tem er . Ha via ta m bém os “pequenos”. Era m ter r íveis m olequ es de n ove e dez a n os qu e pera m bu la va m pela s ru a s à ta rde e à n oit in h a , ou qu e b r in ca va m d ia n te dos pa rd ieiros em que moravam.

Tive m eu p r im eiro en con tro com os “pequenos” qu a n do volta va da es cola p a ra ca s a cer to d ia , logo n a p r im eira s em a n a . Um a ga n g de cerca de dez m eninos en tre oito e dez a n os in ves t iu con tra m im , s a in do de u m portão.

“Ei, garotos, olhem por onde andam.”

Um dos meninos deu um rodopio e disse: “Vá para

o inferno!”

Ou tro veio por t rá s e a ba ixou -s e. An tes qu e m e desse conta do que estava acontecendo, vi-me estatelado de cos ta s n a ca lça da . Ten tei leva n ta r -m e, m a s u m dos ga rotos a ga rrou m eu pé e com eçou a pu xa r . Gr ita va m e riam o tempo todo.

Perd i a ca lm a e dei u m s oco n o qu e es ta va m a is p róxim o, joga n do-o n a ca lça da . Na qu ele m om en to, ou vi u m a m u lh er gr ita r . Olh ei p a ra cim a , e vi-a deb ru ça d a n u m a ja n ela n o qu a r to a n da r . “Afaste-s e de m eu filh o, porco nojento, ou eu te mato.”

Naquele m om en to, n ã o h a via n a da qu e eu des e-jasse mais do que afastar-me de seu filho. Mas os outros m en in os es ta va m a va n ça n do. Um deles a t irou u m a ga rra fa de refr igera n te n a m in h a d ireçã o. Ela a cer tou n a ca lça da , per to do m eu om bro, fa zen do ch over vid ro n o meu rosto.

A m u lh er es ta va gr ita n do a in da m a is : “Nã o s e m eta com os m eu s m en in os ! Socorro! Socorro! Ele es tá matando meu filho!”

De repente, outra mulher apareceu em uma porta, com u m a va s s ou ra n a m ã o. Era gorda e ba m bolea va a o correr ; t in h a a ca ra m a is feia qu e eu já vi. E la en trou n o m eio da qu a dr ilh a de ga rotos , com a va s s ou ra leva n ta da a cim a de s u a ca beça . Ten tei rola r n o ch ã o, fu gin do dela , m a s era ta rde — a va s s ou ra a cer tou em ch eio n a s minhas costas. Rolei de novo e ela me acertou no alto da ca beça . Ela es ta va gr ita n do. Perceb i en tã o qu e vá r ia s ou tra s m u lh eres es ta va m debru ça da s n a s ja n ela s , gr ita n do, e ch a m a n do a polícia . A m u lh er gorda m e golpeou pela terceira vez, a n tes qu e eu pu des s e pôr-me de pé e com eça r a correr . Ou vi-a d izer , a t rá s de m im : “Se você a pa recer por a qu i de n ovo, ju d ia n do de n os s a s crianças, nós te matamos.”

Na ta rde s egu in te, a o volta r da es cola pa ra casa,

escolhi um caminho diferente.

Um a s em a n a m a is ta rde t ive o p r im eiro en con tro com u m a ga n g. Volta va da es cola e pa ra ra em u ma pra ça pa ra ver u m h om em qu e t in h a u m pa pa ga io. Eu estava dançando ao redor dele, rindo e conversando com o pá s s a ro, qu a n do o h om em s u b ita m en te perdeu o in teres s e, a per tou o pa pa ga io con tra o p eito e foi s a in do. Olh ei a o redor , e vi cerca de qu in ze ra pa zes n u m s em icírcu lo em torn o de m im . Nã o era m “pequenos”. Ao con trá r io, era m bem “grandes”, n a m a ior ia , m a iores do que eu.

Ra p ida m en te form a ra m u m círcu lo pon do-m e n o m eio e u m dos ra pa zes d is s e: “Ei, m olequ e, de qu e é qu e você está rindo?”

Apon tei pa ra o h om em do pa pa ga io, qu e en tã o fu gia da p ra ça . “Pu xa , eu es ta va r in do d a qu ele pa pa gaio bacana.”

“Es cu te, você m ora a qu i por per to?” pergu n tou o rapaz, com olhar ameaçador.

Sen t i qu e a lgo es ta va er ra do, e com ecei a ga gu ejar u m pou co: “Eu-eu m oro com m eu irm ã o, n o fim des ta rua.”

“Você pen s a qu e s ó porqu e m ora n o fim des ta ru a , pode en tra r n a n os s a p ra ça e r ir com o u m a h ien a , h ein ? É o qu e você pen s a ? Nã o s a be qu e es tá n os dom ín ios dos Bis h ops , ra pa z? Nós n ã o perm it im os qu e es t ra n h os en trem em n os s os dom ín ios , p r in cipa lm en te pa s pa lh os que riem como hienas.”

Olh ei pa ra eles , e p erceb i qu e fa la va m s ér io. An tes qu e eu pu des s e res pon der , o ra pa z de olh a r du ro t irou u m a fa ca do bols o e, p res s ion a n do u m botã o, a b r iu -a, m os tra n do u m a lâ m in a relu zen te de dezes s ete centímetros.

“Sa be o qu e vou fa zer?” d is s e ele. “Vou cor ta r a

s u a ga rga n ta e deixa r você s a n gra r , com o o a n im a l qu e ri como você.”

“Ei, ra -ra-rapaz”, ga gu ejei. “O qu e é qu e h á de errado comigo? Por que é que você quer me esfaquear?”

“Porqu e n ã o gos to da s u a ca ra , s ó is s o”, d is s e ele. Apon tou a fa ca pa ra o m eu es tôm a go, e com eçou a andar em minha direção.

“Va m os , pa izin h o. Deixe-o. Es s e m en in o a ca ba de ch ega r de Por to Rico. Nã o con h ece a s regra s ”, fa lou outro membro da quadrilha, um moreninho espigado.

“Cer to, m a s u m d ia va i s a ber . E é m elh or qu e n ã o p is e n o dom ín io dos Bis h ops .” Com u m s orr is o de escárnio, ele recuou.

Viraram-s e e fora m em bora . Corr i pa ra o a pa r-tamento e passei o resto da tarde pensando.

No d ia s egu in te, n a es cola , a lgu n s m en in os ou -vira m fa la r do in ciden te da p ra ça . Des cobr i qu e o ra pa z qu e t ira ra a fa ca ch a m a va -s e Rober to. Na qu ela ta rde, du ra n te a a u la de edu ca çã o fís ica , es tá va m os joga n d o beis ebol. Rober to derru bou -m e de p ropós ito. Todos os outros meninos começaram a gritar:

“Dá nele, Nicky. Bate nele. Mostre que ele não é de n a da , qu a n do n ã o es tá com u m a fa ca n a m ã o. Va m os , Nicky, nós estamos com você. Dá nele!';

“Es tá bem ”, d is s e eu , “va m os ver s e você é bom de briga.” Levantei-me e limpei a roupa.

Tomamos posição um diante do outro, e os demais m en in os form a ra m u m gra n de círcu lo à n os s a volta . Ouvi-os gr ita r : “Lu tem ! Lu tem !” e perceb i qu e o círcu lo aumentava.

Rober to r iu , porqu e eu tom a ra a pos içã o t ra d i-cion a l de pu gilis ta , com a s m ã os d ia n te do ros to. El? encurvou-s e u m pou co e ta m bém leva n tou os pu n h os

fech a dos , des a jeita da m en te. Era óbvio qu e n ã o es ta va a cos tu m a do a lu ta r da qu ela form a . Da n cei em d ireçã o a ele, e a n tes qu e pu des s e m over-s e, a cer tei-lh e u m s oco de es qu erda . O s a n gu e es p ir rou de s eu n a r iz e ele deu u m pa s s o pa ra t rá s , olh a n do-m e s u rp res o. Ava n cei d e novo.

De repen te, ele ba ixou a ca beça e ca r regou con tra m im com o u m tou ro, a cer ta n do-m e n o es tôm a go e jogando-m e de cos ta s n o ch ã o. Ten tei leva n ta r -m e, m a s ele m e ch u tou com s eu s s a pa tos pon tu dos . Rolei pa ra o la do, e ele pu lou s obre m in h a s cos ta s e pu xou -m e a ca beça pa ra t rá s , en ter ra n do delibera da -m en te os dedos nos meus olhos.

Fiqu ei pen s a n do qu e os ou tros m en in os ir ia m m e a ju da r , ou pelo m en os a pa r ta r a b r iga , m a s s e lim ita ra m a ficar ali, torcendo.

Eu n ã o s a b ia b r iga r da qu ela form a . Toda s a s m in h a s b r iga s h a via m s ido s egu n do a s regra s do boxe, m a s pen s ei qu e a qu ele ra pa z ir ia m e m a ta r , s e n ã o fizes s e a lgo. Aga rrei a s s u a s m ã os e t irei-a s dos m eu s olh os , en ter ra n do os m eu s den tes n o s eu dedo. Ele gritou de dor e saiu de cima de mim.

De u m pu lo fiqu ei de pé e tom ei n ova m en te po-s içã o de pu gilis ta . E le leva n tou -s e va ga ros a m en te, s egu ra n do a m ã o fer ida . Da n cei em s u a d ireçã o e acertei-lh e dois s ocos de es qu erda n o ros to. Eu o fer ira , e a va n cei pa ra s ocá -lo de n ovo, qu a n do ele m e a ga rrou pela cin tu ra , p ren den do m eu s b ra ços a o la do d o corpo. Us a n do a ca beça com o u m ba te-es ta ca s , ele com eçou a dar-m e ca beça da s n o ros to. Meu n a r iz com eçou a s a n gra r e fiqu ei cego de dor . Fin a lm en te ele m e s oltou e m e deu dois s ocos , e eu ca í n o pó do pá t io da es cola . Sen t i qu e ele m e d eu u m pon ta pé, qu a n do ch egou u m professor que o afastou de mim.

Na qu ela n oite qu a n do fu i pa ra ca s a , Fra n k gr itou comigo. “Eles vã o m a ta r você, Nicky. Eu lh e d is s e pa ra

fica r lon ge da s qu a dr ilh a s . Eles vã o m a ta r você.” Min h a fa ce es ta va m u ito fer ida e m eu n a r iz pa recia es ta r quebrado. Eu sabia, porém, que daí para frente ninguém m a is leva r ia va n ta gem s obre m im . Eu era ca pa z de lu ta r tã o des lea lm en te com o eles — e a té m a is . Da p róxim a vez estaria preparado .

A “p róxim a vez” foi vá r ia s s em a n a s m a is ta rde. As a u la s t in h a m term in a do, e eu ia des cen do pelo corredor , em d ireçã o à por ta . Perceb i qu e a lgu n s a lu n os es ta va m m e s egu in do. Dei u m a olh a da por s ob re o om bro. Atrá s de m im h a via cin co ga rotos n egros e u m a m en in a . Sa b ia qu e era com u m h a ver b r iga s feia s en t re ra pa zes por to-r iqu en h os e n egros . Com ecei a a n da r m a is dep res s a , mas percebi que eles também apressavam o passo.

Sa in do pela por ta , eu des cia u m corredor qu e da va pa ra a ru a . Os ga rotos de cor m e cerca ra m , e u m deles , u m gra n dã o, m e em pu rrou con tra a pa rede. Derru bei os livros , e ou tro ra pa z ch u tou -os corredor abaixo, e eles caíram numa vala cheia de água suja.

Olh ei a o redor , porém n ã o vi n in gu ém qu e p u -des s e ch a m a r em m eu s ocorro. “O qu e você es tá fa zen do n es tes dom ín ios , ra pa z?” pergu n tou o gra n da lhão. “Você não sabe que isto aqui é nosso?”

“Es s a n ã o! Is to é dom ín io da es cola . Nã o pertence a quadrilha alguma”, disse eu.

“Nã o ba n qu e o es per t in h o com igo, m en in o, n ã o gosto de você.”

Colocou a m ã o con tra o m eu peito e m e a per tou con tra a pa rede. Na qu ele m om en to ou vi u m cliqu e e percebi que era o ruído de um canivete automático.

Qu a s e todos os ra pa zes a n da va m com u m desses. Eles p refer ia m u s a r u m t ipo de ca n ivete de p res s ã o, qu e é opera do com o a u xílio de u m a m ola . Qu a n do u m pequ en o botã o de la do é a per ta do, a m ola s olta -s e e a lâmina se abre.

O ra pa gã o colocou a a rm a con tra m eu peito, p ica n do os botões d a m in h a ca m is a com a pon ta a fia da e fina.

“Olha o que vou fazer, espertinho”, disse ele. “Você é n ovo n es ta es cola , e n ós fa zem os todos os n ova tos n os pa ga rem pa ra receber p roteçã o de n ós . É u m bom n egócio. Você n os pa ga vin te e cin co cen ta vos por d ia e nós garantimos que ninguém te amola.”

Um dos outros rapazes deu uma risadinha forçada e d is se: “Sim , m eu ch a pa ; da m es m a form a , n ós garantimos que não amolamos você, também.”

Todos os outros rapazes riram.

En tã o eu d is s e: “Ah , é? E qu em m e p rova qu e m es m o qu e eu dê vin te e cin co cen ta vos pa ra vocês todos os dias, vocês não judiarão de mim?”

“Ningu ém prova , m en in o in teligen te. Você a penas nos dá o dinheiro, de qualquer forma. Se não dá, morre”, respondeu ele.

“Es tá bem . En tã o é m elh or qu e vocês m e m a tem a gora m es m o. Porqu e s e vocês n ã o m a ta rem , eu volta rei m a is ta rde e m a ta rei vocês u m por u m .” Pu de perceber qu e os ou tros fica ra m u m pou co a m edron ta dos . O ra pa gã o qu e t in h a a fa ca con tra o m eu peito, n a tu ra lm en te, pen s a va qu e eu era des t ro. Por is s o, n ã o es pera va qu e fos s e a ga rrá -lo com a m ã o es qu erda . Torci a s u a m ã o, a fa s ta n do-a do m eu peito, o fiz gira r s ob re s i mesmo e dobrei-lhe o braço por detrás das costas.

Ele deixou ca ir a fa ca e eu a pa n h ei-a do ch ã o. Senti-me bem como ela na mão. Coloquei-a contra a sua ga rga n ta , p res s ion a n do-a a pon to de m a rca r a pele, s em furá-la.

Em pu rrei o s eu ros to con tra a pa rede com a fa ca n o la do da s u a ga rga n ta , logo a ba ixo da orelh a . A m ocin h a com eçou a gr ita r , com receio de qu e eu fos s e

matá-lo.

Virei-m e pa ra ela e d is s e: “Ei, bon eca , eu con h eço você. Sei on de é a s u a ca s a . Hoje à n oite vou a té lá e te mato; quer?”

Ela gr itou m a is a lto e a ga rrou o b ra ço de u m dos ou tros ra pa zes , com eça n do a pu xá -lo pa ra lon ge: “Foge! Foge!” gritava ela. “Esse cara é louco. Foge!”

Eles fu gira m , in clu s ive o ra pa gã o qu e es t ivera p res o con tra a pa rede. Deixei qu e s e fos s e, s a ben do qu e eles poderiam ter-me matado, se tivessem tentado.

Des ci pela ca lça da a té on de os livros es ta va m jo-ga dos n a á gu a . Apa n h ei-os e s a cu d i-os . Ain da t in h a o pu n h a l n a m ã o. Fiqu ei pa ra do m u ito tem po, a b r in do e fech a n do a lâ m in a . Era o p r im eiro “canivete de p res s ã o” qu e s egu ra va em m in h a m ã o. Ach ei delicios o m a n ejá -lo. Deixei-o ca ir n o bols o do pa letó e fu i pa ra ca s a . “Da qu ela h ora em d ia n te, s er ia m elh or qu e eles pen s a s s em du a s vezes a n tes de s e en ros ca rem com o Nicky”, pensei.

Logo es pa lh ou -s e o boa to de qu e eu era ter r ível. Aqu ilo fez de m im u m a is ca a t ra en te pa ra qu a lqu er ra pa z qu e qu is es s e b r iga r . Ch egu ei à con clu s ã o de qu e a lgo d rá s t ico a con tecer ia : era a pen a s u m a qu es tã o d e tempo. Mas, estava preparado.

A exp los ã o fin a l veio dois m es es depois de eu ter com eça do a es tu da r . A p rofes s ora a ca ba ra de es ta belecer a ordem n a cla s s e e es ta va fa zen do a ch a m a da . Um ra p a z de cor ch egou a t ra s a do. Veio gin ga n do e t in h a u m s orr is o cín ico n os lá b ios . Ha via u m a lin da ga rota por to-r iqu en h a s en ta da n a ú lt im a fileira. Ele curvou-se e beijou-a no pescoço.

Ela a fa s tou -s e dele e s en tou -s e ereta n a ca r teira . E le deu a volta e beijou -a n a boca ; a o m es m o tem po ten ta n do a ca r iciá -la . E la pu lou do lu ga r e com eçou a gritar.

Os ou tros a lu n os es ta va m r in do e gr ita n do: “Va-mos, rapaz, larga brasa!”

Dei u m a olh a dela pa ra a p rofes s ora . Ela pôs -s e a des cer en tre a s fileira s , m a s u m la ta gã o leva n tou -se d ia n te dela e d is s e: “Ora , p rofes s ora , a s en h ora n ã o va i qu erer es t ra ga r a fes ta , va i?” A p rofes s ora en ca rou o ra pa z qu e era m a is a lto do qu e ela , e recu ou pa ra a s u a mesa, enquanto a classe urrava, divertindo-se.

A es ta a ltu ra , o ra pa z t in h a a ga rota p res a con tra a pa rede, e ten ta va beija r lh e a boca . Ela gr ita va e tentava afastá-lo.

Ele fin a lm en te des is t iu e deixou -s e ca ir pes a da -m ente no seu lugar.

A professora limpou a garganta e começou de novo a fazer a chamada.

Algo es ta la ra den tro de m im . Leva n tei-m e da ca r teira e d ir igi-m e a os fu n dos da cla s s e. A ga rota s en ta ra de n ovo e s olu ça va , en qu a n to a p rofes s ora fa zia a chamada.

Cheguei por t rá s do ra pa z, qu e a gora es ta va s en ta do n a ca r teira , lim pa n do a s u n h a s . Pegu ei u m a pes a da ca deira de m a deira qu e es ta va n o fim do cor-redor e d is s e: “Ei, olh e, ga rotã o, eu ten h o u m a coisa para você.”

Qu a n do ele virou -s e pa ra olh a r , dei-lh e u m a cadeira da n o a lto da ca beça . Ele a fu n dou n a ca r teira , en qu a n to o s a n gu e es corr ia de u m p rofu n do cor te n a cabeça.

A p rofes s ora s a iu corren do d a cla s s e e voltou em u m s egu n do com o d iretor . E le a ga rrou -m e pelo b ra ço e m e em pu rrou corredor a fora , pa ra s eu escritór io. Fiqu ei s en ta do lá en qu a n to ele ch a m a va u m a a m bu lâ n cia , e tom a va p rovidên cia s pa ra qu e a lgu ém cu ida s s e do ra pa z ferido.

Virou-s e pa ra m im . Depois de d izer tu do o qu e ou vira a m eu res peito, n os ú lt im os dois m es es , is to é, a s con fu s ões em qu e eu es t ivera m et ido, ped iu -m e u m a exp lica çã o do qu e a con tecera n a cla s s e. Con tei-lhe exa ta m en te o qu e h ou vera . Dis s e-lh e qu e o ra pa z es ta va s e a p roveita n do da ga rota por to-riqu en h a , e qu e a p rofes s ora n a da fizera pa ra im ped i-lo. Por is s o eu m e colocara a seu lado.

En qu a n to fa la va , p u de ver o s eu ros to s e a ver -m elh a r . Fin a lm en te, ele s e leva n tou e d is s e: “Está bom , já a gü en tei es s a s b r iga s a té on de pu d e. Vocês vêm a qu i e pen s a m qu e podem a gir da m es m a form a qu e a gem n a s ru a s . Pen s o qu e já é h ora de da r u m exem plo, e qu em s a be s e a a u tor ida de s erá m a is res peita da a qu i den tro. Nã o es tou pa ra m e s en ta r a qu i todos os d ia s e ver vocês s e m a ta n do e m en t in do depois , pa ra exp lica r o que não tem explicação. Vou chamar a polícia.”

Pus-m e de pé: “Sen h or , a polícia va i m e pôr n a cadeia.”

“Es pero qu e s im ”, d is s e o d iretor . “Pelo m en os o res to des s es m on s tros qu e h á a qu i a p ren derã o a respeitar a autoridade.”

“Ch a m e a polícia ”, d is s e eu ; a o m es m o tem po, en cos tei n a por ta t rem en do de m edo e de ra iva , “e qu a n do eu s a ir da ca deia , volta rei, e u m d ia pego o senhor sozinho e o mato.”

Meus dentes rangiam enquanto falava.

O d iretor ficou b ra n co. Su a fa ce em pa lideceu e ele pensou durante um momento.

“Está bem, Cruz. Vou deixar você ir desta vez. Mas n u n ca m a is qu ero vê-lo n es ta es cola . Nã o m e im por ta on de você va i; pa ra m im , pode ir pa ra o in fern o; m a s n u n ca m a is deixe qu e eu veja a s u a ca ra a qu i por per to. Qu ero qu e s a ia da qu i corren do, e n ã o pa re en qu a n to não estiver fora das minhas vistas. Compreendeu?”

Eu compreendi. E saí... correndo.

Capítulo 3

SS OOZZIINNHH OO

UMA VIDA MOTIVADA pelo ód io e pelo tem or n ã o tem lu ga r pa ra m a is n a da a n ã o s er o p rópr io ego. Eu od ia va a todo m u n do, in clu s ive Fra n k . Ele rep res en ta va a a u tor ida de, e qu a n do com eçou a recla m a r porqu e eu n ã o ia m a is à es cola e fica va fora a té ta rde da n oite, resolvi deixá-lo.

“Nicky”, d is s e ele, “Nova York é u m a s elva . O povo qu e vive a qu i, vive pela lei da s elva . Só os fortes sobrevivem. Na verdade, você ainda não viu nada, Nicky. Moro a qu i h á cin co a n os e s ei. Es te lu ga r es tá ch eio d e p ros t itu ta s , vicia dos em n a rcót icos , éb r ios e a s s a s s in os . Es s es in d ivídu os podem m a ta r você, n in gu ém va i s a ber qu e es tá m or to, a té qu e a lgu m m a la n dro t ropece n o s eu corpo em decomposição, sob um monte de lixo.”

Fra n k t in h a ra zã o. Ma s eu n ã o pod ia m a is fica r a li. Es ta va in s is t in do pa ra qu e eu volta s s e à es cola , e eu s a b ia qu e t in h a de ten ta r viver p or m in h a con ta, sozinho.

“Nicky, n ã o pos s o força r você a volta r pa ra a escola. Mas se você não fizer isso, está perdido.”

“Ma s o d iretor m e expu ls ou . Ele d is s e pa ra eu n ã o voltar nunca mais.”

“Nã o ten h o n a da a ver com is s o. Se qu is er viver aqui, tem de voltar. Você precisa estudar.”

“Se pen s a qu e vou volta r , es tá lou co, Fra n k .”

Res pon d i com m a u s m odos . “Se ten ta r m e obr iga r , eu te mato.”

“Nicky, você é meu irm ã o. Is to n ã o é cois a qu e s e fa le. Ma m ã e e pa pa i m e d is s era m pa ra tom a r con ta de você e n ã o vou deixa r qu e fa le a s s im . Ou você va i pa ra a es cola , ou s a i da qu i. Vá em bora , s e qu is er . Ma s você volta rá , porqu e n ã o tem on de ir . Ma s s e fica r , va i pa ra a escola e é só.”

Is s o foi n a s exta -feira de m a n h ã , a n tes de Fra n k s a ir pa ra o t ra ba lh o. Na qu ela ta rde deixei u m b ilhete s obre a m es a da cozin h a , d izen do-lh e qu e fora con vida do por a lgu n s a m igos pa ra fica r com eles du -ra n te u m a s em a n a . Eu n ã o t in h a a m igos , toda via n ã o podia ficar mais com Frank.

Na qu ela n oite, va gu eei por Bedford -Stuyvesant, u m ba ir ro de Brook lin , p rocu ra n do lu ga r pa ra fica r . Dirigi-m e a a lgu n s ra pa zes qu e es ta va m pa ra dos n u ma esquina. “Algu ém s a be on de eu pos s o en con tra r u m quarto para morar?”

Um deles virou s e e olh ou pa ra m im , t ira n do ba fora da s de u m ciga rro. “Sim”, d is s e ele, a pon ta n do com o polega r s ob re o om bro, n a d ireçã o da Es cola d e Brooklin. “O m eu velh o é zela dor da qu eles a pa r ta m en tos , do ou tro la do da ru a . Fa le com ele, qu e encontra rá u m lu ga r pa ra você. Lá es tá ele s en ta do n a es ca da , joga n do ba ra lh o com a qu eles ou tros ca ra s . Ele é o que está bêbado.” Todos os outros rapazes riram.

O p réd io a qu e o ra pa z s e refer ira per ten cia a o p rojeto For t Green e, n o cora çã o de u m dos m a iores conju n tos res iden cia is do m u n do. Ma is de t r in ta m il pes s oa s vivia m n os a ltos ed ifícios , s en do qu e a m a ior ia era de n egros e por to-r iqu en h os . O Con ju n to Ha b ita cion a l de For t Green e va i des de a Av. Pa rk a té a Av. Lafayette, e a Praça Washington fica no centro.

Encaminhei-m e pa ra o gru p o de h om en s e per -

gu n tei a o zela dor s e h a via u m qu a r to pa ra a lu ga r . E le t irou os olh os da s ca r ta s e gru n h iu : “Sim , tem u m . Por quê?”

Hes itei e ga gu ejei: “Bem , porqu e eu p recis o de u m lugar para morar.”

“Tem qu in ze pa cotes a í?” pergu n tou , cu s p in do fumo na direção de meus pés.

“Bem, não, agora não, mas...”

“En tã o n ã o tem qu a r to”, d is s e ele, e voltou a o ba ra lh o. Os ou tros h om en s n em s e d ign a ra m a levantar os olhos.

“Mas posso conseguir o dinheiro”, argumentei.

“Olh e, ga roto, qu a n do você pu der m os tra r -me qu in ze pa cotes a d ia n ta dos , o qu a r to é s eu . Nã o m e im por ta com o va i con s egu i-los . Rou be de a lgu m a velh a , n ã o m e im por to. Ma s a té qu e você ten h a o d in h eiro, n ã o meta mais o nariz aqui, você está me enchendo.”

Voltei pa ra a Av. La fa yet te: pa s s ei por Pa pa J oh n 's , Ca s a de Ca rn e Ha rry, Ba r Pa ra d is e, Sh ery's , Th e Es qu ire, Ba r Va lh a l, e Ren dezvou s do Lin coln . Pa ra n do a o la do do ú lt im o, en trei em u m beco, p rocurando descobrir como conseguir dinheiro.

Sa b ia qu e s e ten ta s s e a s s a lta r a lgu ém e fos s e a pa n h a do, ir ia pa ra a ca deia , m a s es ta va des es perado. Dis s era a Fra n k qu e s ó volta r ia depois de u m a s em a n a . Um quarto custava dinheiro, e eu não tinha um centavo. Era m qu a s e dez h ora s da n oite, e o ven to de in vern o es ta va fr io de ra ch a r . Recu ei pa ra a es cu r idã o do beco, e vi pes s oa s pa s s a n do n a ca lça da . Tirei o pu n h a l do bols o e a per tei o botã o. A lâ m in a a b r iu -s e com u m es ta lido. En cos tei a pon ta con tra a pa lm a da m ã o. Min h a m ã o t rem ia a o pen s a r com o ir ia p ra t ica r o rou bo. Ser ia m elh or em pu rrá -los pa ra o beco? Eu dever ia es fa qu eá -los, ou apenas amedrontá-los? E se gritassem?...

Meu s pen s a m en tos fora m in ter rom pidos por du a s pes s oa s qu e con vers a va m n a en tra da do beco. Um velh o bêbedo fez pa ra r u m ra pa z de u n s dezen ove a n os , qu e leva va u m en orm e s a co de m antim en tos . O velh o ped ia -lh e u n s t roca dos pa ra tom a r ca fé. Ou vi o ra pa z, ten ta n do es ca pa r , d izer a o bêbedo qu e n ã o t in h a dinheiro.

Atravessou-m e a m en te o pen s a m en to de qu e o velh o, p rova velm en te, es ta va com o bols o ch eio de d in h eiro m en d iga do e rou ba do. Nã o ou s a r ia gr ita r ped in do s ocorro, s e eu o rou ba s s e. Logo qu e o ra pa z s e fosse eu o puxaria para o beco e tiraria o dinheiro dele.

O ra pa z es ta va pou s a n do o s a co de m a n t im en tos n o ch ã o. En fiou a m ã o n o bols o e en con trou u m a m oeda . O velh o res m u n gou u m a gra decim en to e foi embora.

“Diacho”, pensei comigo. “Que faço agora?”

Na qu ele in s ta n te o ra pa z derru bou o s a co d e m a n t im en tos . Du a s m a çã s rola ra m pela ca lça da . Ele curvou-s e pa ra a pa n h á -la s , e eu o pu xei pa ra o beco, apertando-o con tra o m u ro. Am bos es tá va m os m orren do de m edo, m a s eu t in h a a va n ta gem da s u rp res a . Ele ficou petr ifica do qu a n do eu leva n tei a fa ca d ia n te do s eu nariz.

“Nã o qu ero m a ch u ca r você, m a s p recis o de d i-n h eiro. Es tou des es pera do. Dê-m e d in h eiro. J á ! De-pressa! Tudo o que tem, antes que o mate.”

Min h a m ã o t rem ia ta n to qu e eu t ive m edo de deixar cair a faca.

“Por fa vor , por fa vor . Leve tu do, m a s n ã o m e mate”, rogou o ra pa z. Tirou a ca r teira do bols o e ten tou passá-la pa ra m im , m a s derru bou -a . Ele t rem ia m a is d o qu e eu . Ch u tei a ca r teira a in da m a is pa ra o fu n do do beco. “Ca ia fora ”, d is s e eu . “Corra , h om em , corra ! E s e pa ra r de correr a n tes do s egu n do qu a r teirã o, é u m

homem morto.”

Olh ou pa ra m im , com os olh os a r rega la dos de ter ror , e com eçou a cor rer . Tropeçou n os m a n t im en tos e es ta telou -s e n a ca lça da , n a en tra da do beco. Ca m ba lea n do, leva n tou -s e ou tra vez, e m eio de ga t in h a s , m eio em pé, s a iu corren do ru a a ba ixo. Logo qu e virou a es qu in a , pegu ei a ca r teira e corr i com toda s a s força s n a d ireçã o opos ta . Em ergin do da es cu r idã o em De Ka lb , s a ltei a cerca de corren te qu e cerca o pa rqu e, e corr i pela gra m a a lta , em d ireçã o à s á rvores . Escondendo-m e por t rá s de u m a ter ro, pa rei pa ra tom a r fôlego e perm it ir qu e o m eu cora çã o a celera do s e a ca lm a s s e. Abr in do a ca r teira , con tei dezen ove dólares. Era u m a s en s a çã o a gra dá vel ter a s n ota s n a m ã o. At irei a ca r teira n o m eio da gra m a a lta , e con tei o d in h eiro outra vez, antes de dobrá-lo e colocá-lo no bolso.

Na da m a l, pen s ei. As qu a dr ilh a s es tã o m a ta n do va ga bu n dos por m en os de u m dóla r , e eu conseguira dezen ove n a p r im eira ten ta t iva . Afin a l de con ta s , a s coisas não iam assim tão mal.

Ma s o s en t im en to de a u tocon fia n ça n ã o rem oveu todo o medo e permaneci escondido detrás dos arbustos, a té depois da m eia -n oite. A es s a a ltu ra , já era ta rde demais pa ra ir p rocu ra r o qu a r to; voltei en tã o a o lu ga r on de h a via com etido o rou bo. Algu ém já ju n ta ra todos os m a n t im en tos qu e h a via m ca ído, com exceçã o de u m a caixa de bolachas, que estava toda amassada. Apanhei a ca ixa e s a cu d i-a , fa zen do com qu e os peda ços e o fa relo ca ís s em n a ca lça da . Recon s t itu í o a con tecido em m eu s pen s a m en tos , e s or r i. Eu devia tê-lo cor ta do, s ó p a ra ver como era, pensei. Da próxima vez, vou fazer isto.

Dirigi-m e pa ra a en tra da do m etrô, per to de Papa J oh n , e pegu ei o p r im eiro t rem qu e ch egou . Pa s s ei a n oite n o m etrô, e n o d ia s egu in te, logo cedo, es ta va d e volta à Rua Fort Greene para alugar o quarto.

O zelador subiu comigo três lances de escadas. O quarto

t in h a ja n ela s pa ra a ru a qu e fica va defron te à Es cola Técn ica d e Brook lin . Era pequ en o, com ra ch a du ra s n o forro. O zelador disse-me que havia um banheiro comum n o s egu n do a n da r , e qu e eu pod ia regu la r o s is tem a de a qu ecim en to com a m a ça n eta do ra d ia dor de a ço. Entregou-m e a ch a ve, e d is s e-m e qu e o a lu gu el ven cia todo s á ba do, u m a s em a n a a d ia n ta do. A por ta fech ou -se a trá s dele. Es cu tei s eu s pa s s os s oa n do pes a da m en te escada abaixo.

Voltei-m e e olh ei o qu a r to. Ha via du a s ca m a s de s olteiro, u m a ca deira , u m a m es in h a , u m la va tór io e u m pequ en o gu a rda -rou pa . In do à ja n ela , olh ei a ru a , lá em ba ixo. O t râ n s ito, logo ced in h o, m ovia -s e com u m zu m bido n a Av. La fa yet te, n o fim do qu a r teirã o. Do ou tro la do da ru a ergu ia -s e a Es cola Técn ica de Brook lin . Ocu pa va todo o qu a r teirã o e im ped ia a vis ã o de qu a lqu er ou tro pa n ora m a , m a s n ã o fa zia m u ita d iferença. Pelo menos, eu estava por conta própria.

Na qu ela m a n h ã , dei a p r im eira volta pela vizi-n h a n ça . Des cen do a s es ca da s do pa rd ieiro, vi u m ra pa z s a ir ca m ba lea n do de deba ixo da es ca da . Su a fa ce es ta va pá lida com o u m len çol, e s eu s olh os p rofundamente en cova dos . O pa letó s u jo e es fa r ra pa do ca ía de u m dos om bros , e a s s u a s ca lça s fica ra m com a b ra gu ilh a a ber ta , depois dele ter u r in a do a t rá s do ra d ia dor . Nã o s a b ia d izer s e es ta va bêbedo ou dopa do. Pa rei n o patamar e fiquei a observá-lo, enquanto saía pela porta e des cia os degra u s extern os . Debru çou -s e s ob re o corrimão e vomitou na calçada. Um grupo de “pequenos” ir rom peu por u m a por ta la tera l do p r im eiro a n da r e correu pa ra fora , ign ora n do com pleta m en te s u a p res en ça . O ca ra pa rou de vom ita r e deixou -se ca ir n o último degrau, olhando inexpressivamente para a rua.

Pa s s ei por ele e des ci pa ra a ca lça da . Sobre a minha cabeça ouvi uma janela abrir-se e olhei para cima exa ta m en te a tem p o de des via r -m e ra p ida m en te de u m a

a va la n ch e de lixo qu e era joga da do terceiro a n da r . Em ou tra por ta , logo a d ia n te, u m dos “pequenos” es ta va a ga ch a do n a pen u m bra , deba ixo da es ca da , u s a n do u m a en tra da de porã o com o la t r in a . Es t rem eci, m a s d is s e a m im m es m o qu e a ca b a r ia m e a cos tu m a n do com aquilo.

Por t rá s do ed ifício de a pa r ta m en tos h a via u m ter ren o ba ld io, ch eio de es p in h eiros e m a to qu e ch e-gavam à altura da cintura. Algumas árvores esqueléticas es t ica va m s eu s ga lh os des n u dos pa ra o céu cin zen to. A p r im a vera com eça ra , m a s a s á rvores pa reciam relu ta n tes em fa zer b rota r n ovos reben tos e en fren ta r ou tro verã o do gu eto (Gu eto: Nom e da do a u m a á rea pobre de cida de gra n de, em qu e h a b ita m pes s oa s d e u m a m es m a ra ça ou cor . N. dos E .). Ch u tei u m a la ta de cerveja va zia — o ter ren o es ta va ch eio dela s . Ca ixa s velh a s de pa pelã o, jorn a is e ca ixa s qu ebra da s es ta va m es pa lh a dos n o m eio do m a to cres cido. Um a cerca de a ra m e toda es t ra ga da , es ten d ia -s e a t ra vés do lote, a té ou tro ed ifício de a pa r ta m en tos qu e fa zia fren te com a Ru a St . Edwa rd . Olh a n do pa ra t rá s , vi o m eu p réd io, e a lgu m a s da s ja n ela s do p r im eiro a n da r ta pa da s com tá bu a s ou com folh a s de zin co, pa ra res gu a rda r os a pa r ta m en tos do ven to fr io. Dois p réd ios a lém , eu vi a s fa ces redon da s de u n s n egr in h os pequ en os , com s eu s n a r izes a per ta dos con tra a vid ra ça s u ja , obs erva n do-me chutar o lixo. Eles m e fizera m pen s a r em a n im a izin h os en ga iola dos , a n s ia n do pela liberda de, m a s com m edo de aventurar-s e fora da ga iola , tem eros os de s erem fer idos ou m or tos . Pa r te da ja n ela es ta va qu ebra da e em s eu lugar haviam posto folhas de papelão manchado de umi-da de. Con tei cin co fa ces a m edron ta da s . Pos s ivelm en te h a via m a is cin co n o pequ en o a pa r ta m en to de t rês cômodos.

Dei a volta , e retorn ei à fren te do a pa r ta m en to. O a pa r ta m en to do porã o, deba ixo do n ú m ero 54 , es tava va go. O por tã o de fer ro es ta va a ber to. Ch u tei-o e en trei

O ch eiro de u r in a , excrem en tos , vin h o, fu m o e gra xa era maior do que eu podia suportar. Saí depressa prendendo a res p ira çã o. Pelo m en os eu t in h a u m qu a r to n o terceiro andar.

Com ecei a des cer pela ca lça da . As p ros t itu ta s constituíam u m a cen a pa tét ica . As m u lh eres b ra n cas exercia m o s eu com ércio do la do d ireito da ru a e ocu pa va m u m préd io de a pa r ta m en tos a u m qu a rteirão do meu. As mulheres de cor “trabalhavam” do outro lado da ru a , e vivia m per to da en tra da do m etrô. Era m toda s vicia da s em n a rcót icos . Pica va m por a li, ves t ida s com ca s a cos s u jos , em gru pos . Algu m a s boceja va m ou porqu e es ta va m doen tes , ou porqu e p recis a va m de u m “estimulante”, u m a p ica da de h eroín a , logo de m a n h ã , para animá-las.

Dois m es es s e pa s s a ra m e eu a in da n ã o m e a cos -tu m a ra com Nova York . Lá em Por to Rico vira gra vu ra s da estátua da Liberdade e do edifício das Nações Unidas, m a s a qu i, n es ta á rea pob re, s ó h a via ed ifícios de a pa r ta m en tos a té perder de vis ta , ch eios de ca rn e h u m a n a . Ca da ja n ela s im boliza va u m a família, a m on toa da em qu a r tos m in ú s cu los , leva n do u m a vida m is erá vel. Pen s ei n o ja rd im zoológico de Sa n J u a n , on de os u rs os a n da va m len ta m en te, e os m a ca cos ta ga rela va m detrá s da s gra des . Eles s e es poja va m n a s u a p rópr ia im u n d ície. Com ia m ca rn e es t ra ga da ou a lfa ce m u rch a . Lu ta va m u n s con tra os ou tros , e a ú n ica vez em qu e con corda va m era qu a n do s e reu n ia m pa ra rech a ça r u m in tru s o. Os a n im a is n ã o fora m feitos pa ra viver des ta form a , s ó com u m a flores ta p in ta da n a pa rede de t rá s da ja u la , a recorda r-lhes o lu ga r on de dever ia m es ta r . Nem a s pes s oa s . Ma s a qu i, n os gu etos , elas vivem assim.

Pa rei n o m eio-fio, n a es qu in a da Av. Myrt le, es -pera n do o s in a l a b r ir . Sobre m in h a ca beça u m trem ru giu e m a tra qu eou , cobr in do os qu e es ta va m em baixo

com u m a ca m a da fin a de fu ligem e poeira . As ru a s es ta va m cober ta s com u m a m is tu ra la m a cen ta de n eve, s u jeira e s a l, qu e o povo a t ra ves s a va qu a n do o s in a l abria.

Nos fu n dos dos p réd ios de a p a r ta m en tos os va rais ia m de u m a s a ca da a ou tra , de u m a ch a m in é a ou tra . As ca m is a s a zu is e ca lça s cá qu i d ra peja va m a o ven to gélido. Rou pa s de ba ixo qu e u m a vez h a via m s ido b ra n ca s a gora era m de u m cin zen to en ca rd ido, devido à con s ta n te expos içã o a o a r polu ído. O s á ba do a m a n h ecera . Os lojis ta s a b r ia m a s pes a da s gra des de fer ro defron te à s loja s . Em m u itos qu a r teirões n ã o h a via loja que não tivesse uma grade de ferro em forma de tela ou ba rra s de fer ro, pa ra p rotegê-la da s qu a dr ilh a s qu e por ali vagueavam à noite.

Os a pa r ta m en tos era m , porém , o qu e m a is m e depr im ia . Ha via evidên cia s de ten ta t iva s a n êm ica s dos ocu pa n tes , p rocu ra n do a lgu m a form a de iden t idade, a cim a da s elva de con creto e dos p recip ícios de t ijolos . Ma s era u m es forço des es pera do à s em elh a n ça de u m h om em qu e es tá s e en ter ra n do em a reia m oved iça , qu e ta teia à s borda s do loda ça l com dedos frem en tes , p rocu ra n do u m a ra iz qu e s eja , a ga rra n do-s e a ela des es pera da m en te, en qu a n to é a r ra s ta do pa ra o fu n do, com a ra iz qu a s e es m a ga da n a s m ã os a per ta da s em desespero.

Um va s o de cerâ m ica , s u jo, com flores , en feita va o ba ten te de u m a ja n ela cober ta de fu ligem . Um gerâ n io mal cuidado apoiava-se contra o vidro.

Oca s ion a lm en te, via u m a pa r ta m en to com es ca -da s p in ta da s de cores viva s , e à s vezes os u m bra is d e u m a ja n ela es ta va m p in ta dos , a pa recen do a s s im em fla gra n te con tra s te com a s ped ra s es cu ra s . Em ou tro loca l u m a ja rd in eira im provis a da , feita com a m a deira rústica de um engradado, aparecia dependurada de uma ja n ela im u n da . Nela , a lgu m a s flores a r t ificia is

des a fia va m o ven to de in vern o, cober ta s da fu ligem qu e s a ía de m ilh a res de ch a m in és ergu ida s por toda a cidade.

Eu ch ega ra à Ru a St . Edwa rd , e pa ra ra defron te à b ib lioteca Wa lt Wh itm a n , per to do Dis t r ito Policia l. Do ou tro la do da ru a h a via u m en orm e ed ifício d e a pa r ta m en tos de doze a n da res , qu e cobr ia u m quarteirão inteiro. Suas seiscentas janelas davam para a ru a , ca da u m a rep res en ta n do u m es ta do m is erá vel de h u m a n ida de, t rem en do por t rá s da s vid ra ça s De u m a da s ja n ela s pen d ia u m tra p o es fa r ra pa do, ou trora d e cores b r ilh a n tes , a gora des bota do devido à s in tem pér ies . A m a ior pa r te da s ja n ela s ' n ã o t in h a ven ezia n a s ou cortinas — es ta va m a li, a r rega la da s com o os olh os de um cadáver congelado, deitado na rua.

Voltei s ob re os m eu s pa s s os , em d ireçã o à Praça Wa s h in gton . O qu e h á de er ra do com es te povo, a qu i n es te lu ga r im u n do? pen s ei. Por qu e vive a s s im ? Nã o h á qu in ta is . Nem gra m a . Nem es pa ços a ber tos . Nem á rvores . Eu n ã o s a b ia qu e u m a vez qu e a lgu ém m u da pa ra u m a da qu ela s ga iola s de con creto, fica p r is ion eiro dela. Não há escapatória na selva de asfalto.

Na qu ela ta rde, des ci ru a a ba ixo de n ovo. Eu n ota ra qu e h a via u m a es pécie de pa rqu e de d ivers ões e es petá cu los , n o pá t io qu e h a via a t rá s da Igreja Ca tólica de St . Mich a el e St . Edwa rd n a es qu in a da s ru a s Au bu rn e St . Edwa rd . Era u m a qu erm es s e. Ch egu ei à s qu a tro h ora s . A m ú s ica do a lto-fala n te res s oa va n o volu m e m á xim o. Ain da t in h a u m pou co de d in h eiro qu e res ta ra do fu r to, e o pen s a m en to de u m a qu erm es s e fa zia m eu s a n gu e form iga r . Na por ta , n otei u m gru po de ra pa zes em volta de u m toca dor de rea lejo. Ves t ia m b lu s ões n egros , com dois M verm elh os cos tu ra dos n a s cos ta s . A m ú s ica do rea lejo era qu a s e s u foca da pelo ba ru lh o qu e os ra pa zes es ta va m fa zen do, ba ten do palmas e dançando no meio da calçada.

No cen tro do gru po es ta va u m ra pa z de ca belos negros, bem magro, mais ou menos da minha idade. Seu ros to bon ito a b r ia -s e n u m s orr is o, en qu a n to ele sapateava, em ritmo acelerado. Com as mãos na cintura, ele gira va a o r itm o da m ú s ica . Repen t in a m en te s eu s olhos negros encontraram os meus. Parou de repente e o s orr is o foi in s ta n ta n ea m en te s u bs t itu ído por u m olh a r duro e frio.

“Ei, ca ra , o qu e é qu e você es tá fa zen do n es te ter r itór io? Aqu i é dom ín io dos Ma u -Ma u s . Nós n ã o queremos nenhum quadrado rondando por aqui.”

Devolvi-lh e o olh a r du ro, e p erceb i qu e os ou tros ra pa zes de b lu s ã o p reto h a via m , s ilen cios a m en te, for -m a do u m pequ en o círcu lo a o n os s o redor . O ra pa z bon ito, de olh os fr ios com o o a ço, en ca m in h ou -s e pa ra m im e m e em pu rrou com o peito, r in do: “Qu a l a s u a “turma”, moleque?”

“Nã o ten h o tu rm a ”, res pon d i. “Vim a qu i pa ra entrar na quermesse. É crime?”

Um rapaz do grupo avançou para mim.

“Ei, m eu ch a pa , você s a be o qu e é is to?” d is s e ele, b ra n d in do u m a fa ca a ber ta . “Is to é u m pu n h a l, ca ra . Is s o va i cor ta r s u a ba rr iga . Qu ero ver você a ba n ca r o espertinho comigo! Eu não sou mole como o Israel.”

O ra pa z a qu em ele ch a m a ra de Is ra el fez s in a l pa ra o ou tro a fa s ta r -s e, e con t in u ou : “Sa be, u m qu a -d ra do pode s er m orto n u m in s ta n te. Pode s er qu e eu o mate. Agora, se você quer viver, é melhor pinicar .”

Eu es ta va com ra iva , e pu s a m ã o n o bols o, p ro-cu ra n do m in h a fa ca , m a s ch egu ei à con clu s ã o de qu e a m in h a des va n ta gem era m u ito gra n de. Nã o qu er ia portar-m e com o cova rde, m a s s a b ia qu e h a ver ia ou tra opor tu n ida de pa ra dem on s tra r m in h a cora gem . As s en t i com a ca beça e voltei ru a a cim a , em d ireçã o à Pra ça Wa s h in gton , e a o m eu qu a r to. Atrá s de m im pu de ou vir

a qu a dr ilh a r in do e a pu pa n do: “Is to é qu e é fa la r , Is ra el. Aquele pirralho aprendeu a lição, desta vez. Vai fazer frio no inferno antes que ele ponha o nariz aqui de novo.”

Eu es ta va za n ga do e fru s tra do. Pa s s a n do por ba ixo do pon t ilh ã o do t rem n a Av. Myrt le, en trei n a p ra ça e s en tei-m e em u m b a n co. Nã o n otei qu e u m ga roto de cerca de t reze a n os m e s egu ira . Virei-m e e olh ei pa ra ele, qu e r iu e s en tou -s e n o ba n co, a o m eu lado.

“Eles lh e fizera m pa s s a r u m a per to, n ã o?” d is s e ele.

“O qu e você es tá pen s a n do?” pergu n tei. “Eu dou em todos eles , m a s s er ia u m bobo s e tos s e lu ta r con tra todos de uma só vez.”

“Ra pa z, a s qu a dr ilh a s a qu i s ã o du ron a s ”, d is s e o m en in o, t ira n do do bols o da ca m is a u m ciga rro feito em casa. “Matam a gente se não concordar com eles.”

Acendeu o cigarro e notou que eu o observava.

“Você fu m a m a con h a ?” pergu n tou . Men eei a cabeça, embora soubesse do que estava falando.

“Qu er exper im en ta r? Ten h o m a is u m . É bá rba ro, bicho.”

“Claro”, res pon d i. Recu a ra u m a vez n a qu ela ta rde, e não queria recuar de novo.

Ele en fiou a m ã o n o bols o d a ca m is a e t irou u m ciga rro dobra do e a m a rfa n h a do. Es ta va dobra do em a m ba s a s pon ta s , e m a n ch a do la tera lm en te, on de ele lambera o papel para colá-lo.

“É p recis o t ra ga r”, d is s e o ra pa z. “Se n ã o, ele s e apaga.”

Ele a cen d eu o ciga rro e com ecei a fu m a r cu ida -dosamente .

“Não”, riu o menino, “é assim.”

Deu u m tra go p rofu n do n o ciga rro e in a lou va -garosamente a fumaça para os pulmões.

“Pu xa , com o is to é bom ! Se você der baforadas, ele s e qu eim a e você n ã o a p roveita . Você p recis a t ra ga r , meu chapa!”

Eu traguei. Tinha um gosto estranhamente doce, e um cheiro forte.

“O qu e a con tece?” pergu n tei, com eça n do a s en tir os efeitos atordoantes da erva.

“Meu ch a pa , is to fa z a gen te voa r”, res pon deu o rapaz. “Fa z a gen te r ir u m boca do. Fa z a gen te a ch a r qu e é o m elh or da n ça r in o, m elh or n a m ora dor , m elhor lutador. Todos aqueles rapazes lá na quermesse estavam fumando a erva. Você não viu como os

olh os deles es ta va m verm elh os ? A gen te pode s a ber s e eles es tã o “altos”, obs erva n do o b r ilh o dos olhos.”

“Onde é que você consegue isto?”

“Ah, é fácil. Tem umas cem bocas de fumo aqui na vizin h a n ça . A m a ior pa r te dos ra pa zes pode con s egu i-la pa ra você. Eles con s egu em de con ta tos m a is im por ta n tes . Cu ba , México. Eu ? Meu velh o tem u m a p la n ta çã o de m a con h a n o fu n do do qu in ta l. Nos s o qu in ta l es tá ch eio de m a to. Nin gu ém va i lá , e o m eu velh o p la n tou a lgu m a s s em en tes n o m eio do m a to. Nós tem os u m a s m u da s , pa ra o ga s to. Nã o é tã o boa com o outros tipos de mercadoria, mas é de graça.”

“Qu a n to cu s ta , a gen te com pra n do n u m a boca de fumo?” pergu n tei, p rocu ra n do a p ren der o voca bu lá r io e u m pou co em ba ra ça do pelo fa to de u m m en in o de t reze anos saber mais do que eu.

“Alguns “pacaus” custam um dólar. Algumas vezes a gen te en con tra a s eten ta e cin co cen ta vos , m a s é m elh or com pra r u m a la ta . É com o u m a pequ en a la ta de

fu m o. Des s a form a a gen te pode fa zer os p rópr ios “pacaus” por qu a ren ta cen ta vos , m a is ou m en os . Ma s , p recis a ter cu ida do. Algu n s ca ra s podem qu erer ta pea r você. Eles m is tu ra m oréga n o com a m a con h a , e a s s im a gen te n ã o com pra a erva pu ra . Sem pre é bom p rova r antes de pagar, pois certamente eles quererão tapear.”

Eu term in a ra de fu m a r o m eu “pacau”, e es t icara a s pern a s pa ra a fren te, des ca n s a n do a ca beça n a s cos ta s do ba n co. Nã o pa recia es ta r s en t in do o ven to fr io, e a ton tu ra des a pa recera , deixa n do-m e u m a s en s a çã o de estar flutuando em uma nuvem de sonho.

Voltei-m e pa ra olh a r o ga roto. Ele es ta va s en tado no banco, com a cabeça nas mãos.

“Pensei que esta droga devia fazer a gente feliz. Por que você não está rindo?”

“Ra pa z, por qu e é qu e eu vou r ir?” d is s e ele. “Meu velh o é u m beberrã o. Só qu e ele n ã o é m eu verda deiro pa i. E le veio m ora r com m in h a m ã e n o a n o pa s s a do. Pra te con ta r a verda de, eu n em s ei qu em é o m eu velh o. Es s e h om em ba te n a m in h a m ã e o tem po todo. Na s em a n a pa s s a da ten tei t irá -lo de cim a dela e ele deu u m a ga rra fa da n a m in h a ca ra , qu ebra n do-m e dois dentes. Joguei um despertador nele, que pegou nas suas costas. Então minha mãe, minha própria mãe me xingou e disse para eu me mandar... que eu não tinha direito de m a ch u ca r o s eu h om em . Agora eu es tou m ora n do n a ru a , es pera n do a h ora de poder m a tá -lo. Nã o fa ço pa r te de n en h u m a qu a dr ilh a . Nã o es tou u n ido a n in gu ém . Es tou s ó es pera n do pega r a qu ele va ga bu n do s ozin h o, pa ra m a tá -lo. Ta m bém n ã o gos to m a is de m in h a m ã e. Que motivo tenho para sorrir?”

Nenhuma vez levantou a cabeça enquanto falava.

“Es s e é o m es m o h om em qu e p la n tou a m a con h a no fundo do quintal?” perguntei.

“É. Ele também é traficante. Meu chapa, espera só

eu o pegar sozinho. Vou furá-lo — atravessá-lo com uma faca.” Ele olhou para cima, o rosto contorcido e cansado. Pa recia m a is a fa ce de u m m a ca co velh o, do qu e a de um rapazinho de treze anos.

“E o s eu velh o, ele ta m bém é u m pa u dá gu a ?” “Nã o, eu s ou de s or te. Eu n em m es m o ten h o u m velh o ou uma velha”, menti. “Sou sozinho.”

O m en in o leva n tou a ca beça : “É, a gora eu ta m -bém; espero.”

Depois , a n im a n do-s e, a cres cen tou : “Bem, “ciao”. Tom e cu ida do com a s qu a dr ilh a s . Eles te m a ta m , s e te pegarem na rua durante a noite!”

“Ei, e o qu e você m e d iz des s a s qu a dr ilh a s ? Quantas são?”

“Centenas”, d is s e ele. “Ra pa z, h á ta n ta s qu e a gente nem pode contar.”

“O que é que eles fazem?”

“Briga m , m eu ch a pa ; o qu e m a is ? Es tã o s em pre saindo pa ra lu ta r con tra ou tra ga n g, ou en tã o fica m per to de ca s a pa ra defen der s eu s dom ín ios con tra a l-guma gang invasora. Quando não estão combatendo uns com os ou tros , es tã o com ba ten do com a polícia . Us a m tudo o que podem para brigar. Carregam facas, porretes, p is tola s , revólveres , s oqu eira s de b ron ze, r ifles , es p in ga rda s de ca n o s er ra do, ba ion eta s , ta cos de beis ebol, ga r ra fa s qu ebra da s , t ijolos , ped ra s , corren tes de b icicleta ... ra pa z, qu a lqu er cois a qu e você pen s a r , eles u s a m pa ra m a ta r . Ch ega m a a fia r a pon ta d o guarda-ch u va , pôr p regos n os s a pa tos , e a lgu m a s da s qu a dr ilh a s dos ita lia n os ca r rega m n a va lh a s , e coloca m lâ m in a s de ba rbea r en tre os dedos , qu a n do vã o da r s ocos . Fiqu e por a qu i, e você va i ver . É por is to qu e n ã o m e u n o a eles . Eu s ó a n do pelos becos e ru a s es cu ra s , e fico lon ge deles . Ma s você va i a p ren der ; fica por a í, qu e você aprende.”

Ele s e leva n tou e foi a n da n do s em des t in o pela p ra ça , des a pa recen do n o crepú s cu lo. Voltei a o n ú mero 54 da Fort Greene. Já estava ficando escuro.

Capítulo 4

BB AATTIISS MMOO DD EE SS AANNGGUUEE

VÁRIAS SEMANAS MAIS TARDE, s a í de m eu a pa r ta m en to por volta de oito da n oite, e fu i a té Pa pa J oh n 's , n u m a es qu in a da Av. La fa yet te. Um m oço por to-r iqu en h o ch a m a do Tico es ta va en cos ta do n a pa rede do ed ifício, fu m a n do. Eu já m e en con tra ra com ele u m a ou duas vezes, e sabia que era perito na faca.

Ele olh ou pa ra m im e d is s e: “Ei, Nicky, você gos ta r ia de ir a u m a “festinha”? Vou a p res en tá -lo a o Carlos, presidente da gang.”

Eu t in h a ou vido fa la r des s a s “festinhas”, m a s n u n ca fora con vida do, por is s o a ceitei p res s u ros o o s eu con vite, e a com pa n h ei-o por u m a ru a t ra n sversal; en tra m os em u m porã o deba ixo de u m la n ce de es ca da s de um edifício de apartamentos.

Tive d ificu lda de em a cos tu m a r os olh os com a pen u m bra . Um qu ebra -lu z es ta va a ces o a u m ca n to. Um pou co de cla r ida de en tra va pela s ja n ela s , e u m pouquinho, pela porta, vinda das luzes da rua, lá fora.

Qu a n do en trei n o s a lã o, pu de ver figu ra s a ga r-ra da s u m a s à s ou tra s , da n ça n do a o s om de m ú s ica s u a ve. Su a s ca beça s ca ía m n o om bro u m a da ou tra , enqua n to os pés m ovia m -s e em com pa s s o com a m ú sica lenta. Um dos rapazes agarrou uma garrafa de vinho por t rá s da s cos ta s do s eu pa r , e ca m ba leou a o m es m o

tem po qu e rodea va o pes coço da m oça com o b ra ço e tomava um longo trago da garrafa.

Vá r ios ra pa zes s e a ch a va m s en ta dos d ia n te de u m a pequ en a m es a , joga n do ba ra lh o e fu m a n do m a -con h a , com o vim a s a ber m a is ta rde. Um a ga rra fa de vinho fora colocada no meio da mesa.

Bem a o fu n do do s a lã o, lon ge da lâ m pa da , dois ca s a is es ta va m deita dos n u m a es teira . Um ca s a l es tava a pa ren tem en te dorm in do, u m n os b ra ços do ou tro. En qu a n to eu a in da os obs erva va , leva n ta ra m , e s a íra m tropeçando por uma porta lateral.

Tico olh ou pa ra m im e p is cou . “Há u m a ca m a a li. Eles podem fazer amor quando quiserem.”

Um m on te de revis ta s com figu ra s de m u lh eres nuas e semi-nuas estava no chão, aos meus pés.

“Então, isto é uma “festinha”, pensei.

Tico a ga r rou m eu b ra ço e em pu rrou -m e s a lã o adentro. “Ei, tu rm a , es te é u m a m igo m eu . Va m os fa zê-lo sentir-se em casa.”

Um a ga rota lou ra s u rgiu da s t reva s per to da por-ta, e me agarrou pelo braço. Estava com um suéter preto a per ta do, u m a s a ia verm elh a , e des ca lça . Coloqu ei a m ã o a o redor da s u a cin tu ra e d is s e: “Ei, bon eca , qu er dançar comigo?”

“Com o s e ch a m a ?” pergu n tou . An tes qu e eu pu des s e res pon der , Tico fa lou : “Seu n om e é Nicky. Ele é m eu a m igo e é u m ca ra m u ito bom de b r iga . Pode s er que entre na nossa turma.”

A ga rota d es lizou à m in h a fren te e ficou bem per to de mim.

“Tá bom , Nicky, s e você é tã o bom de b r iga , va m os ver se é bom também para dançar.”

Da n ça m os u m pou co e depois pa ra m os pa ra ver

dois rapazes fazer o jogo da “galinha” com uma faca. Um dos ra pa zes es ta va de pé con tra a p a rede, e o ou tro atirava uma faca em direção aos seus pés. O objetivo era espetar a faca tão perto quanto possível, sem acertar nos pés. Se o rapaz recuasse, ele era um “galinha”.

Surpreendi-m e des eja n do qu e ele fer is s e o ra pa z. A idéia de ver s a n gu e m e excita va . Ali de pé, com ecei a r ir in ter iorm en te, es pera n do qu e ele erra s s e, e machucasse o outro.

A lou ra de s u éter n egro m e pu xou pelo b ra ço: “Ven h a com igo. Qu ero qu e você con h eça u m ca ra qu e é muito importante.”

Segui-a a té u m a s a la a o la do. Um por to-riquenho a lto e es belto es ta va es t ira do n u m a ca deira , com a s pern a s s ob re u m a m es in h a à s u a fren te. Um a ga rota es ta va s en ta da a ca va lo em s eu colo, en cos ta da n ele, e ele soprava fumaça através do cabelo dela e sorria.

“Ei!” gr itou pa ra n ós . “Vocês n ã o têm edu cação? Nã o s a bem qu e n ã o podem en tra r a qu i s em ped ir licen ça ? Vocês podem m e pega r fa zen do a lgu m a cois a qu e n ã o qu ero qu e n in gu ém veja .” Riu , virou -s e de la do, e deu ta p in h a s n os qu a dr is da ga rota com a m ba s a s mãos.

Olh a n do pa ra m im , ele pergu n tou : “Qu em é es s e cara?”

A lou ra res pon deu : “É m eu a m igo Nicky. Veio com Tico. Tico disse que ele é bom de briga.”

O ra pa z a lto t irou a ga rota do colo e olh ou ca r ra n cu do pa ra m im . Depois a r rega n h ou os den tes num sorriso e estendeu a mão.

“Toca a qu i, Nicky. Meu n om e é Ca r los . Pres idente dos Mau-Maus.”

Cu ida dos a m en te en cos tei m in h a m ã o a ber ta n a s u a e pu xei-a pa ra t rá s , es correga n do a pa lm a con tra a

dele. Esta é a maneira de cumprimentar das quadrilhas.

Ou vira fa la r dos Ma u -Ma u s . Eles tom a ra m es s e n om e em pres ta do dos s a n gu in á r ios s elva gen s da Áfr ica . Já os vira nas ruas, com seus blusões de couro com dois M verm elh os cos tu ra dos à s cos ta s . Us a va m ch a péu s a lp in os extra va ga n tes , m u itos dos qu a is en feita dos com fós foros de m a deira . Qu a s e todos ca r rega va m ben ga la s e u s a va m s a pa tos pon tu dos e pod ia m m a ta r u m h om em a pontapés em questão de segundos.

Ca r los a cen ou com a ca beça pa ra o ca n to da s a la e eu recon h eci o ra pa z qu e vira n a qu erm es s e. “Aqu ele é Israel, vice-presidente dos Mau-Maus.” O rosto de Israel, a o olh a r pa ra m im , es ta va in expres s ivo. Seu s p rofu n dos olh os n egros pa recia m qu erer pers cru ta r m in h a a lm a , deixando-me embaraçado.

Des cobr i m a is ta rde qu e o p res iden te e o vice-p res iden te es tã o qu a s e s em pre ju n tos . Protegem -s e u m ao outro no caso de um dos dois ser atacado.

“Quantos anos, Nicky?” perguntou Carlos.

“Dezesseis”, respondi.

“Sabe brigar?”

“Claro.”

“Es tá d is pos to a b r iga r com qu a lqu er u m , a té com a polícia?”

“Claro”, respondi outra vez.

“Ei, você já “furou” alguém ?”

“Não”, repliquei pesaroso, mas falando a verdade.

“Alguém já tentou “furá-lo” ?”

“Já”, respondi.

“É ?”, d is s e Ca r los , dem on s tra n do ren ova do in -teresse. “E o que foi que você fez com o cara?”

“Nada”, d is s e eu , “m a s vou fa zer . Só es tou es -pera n do pegá -lo de n ovo, e qu a n do is s o a con tecer , vou matá-lo.”

Is ra el in ter rom peu -nos: “Es cu te, m eu ch a pa , s e você qu er en tra r pa ra a n os s a ga n g, p recis a s er como n ós . Som os os m a is du rões . Até a polícia tem m edo da gen te. Ma s n ã o qu erem os “bolhas”. Pa ra en tra r pa ra a nossa quadrilha, não pode ser “bolha”. Tá cer to? Se você bancar o “galinha”, nós cortamos e matamos você.”

Eu s a b ia qu e Is ra el es ta va fa la n do a verda de, pois já ou vira con ta r de ra pa zes qu e t in h a m s ido m or tos por s u a s p rópr ia s qu a dr ilh a s , por terem den u n cia do u m colega de gang.

Ca r los , en tã o fa lou : “Du a s cois a s , ra pa z: s e você en tra r pa ra os Ma u -Ma u s , é pa ra toda a vida . Nin guém pede dem is s ã o. Segu n do, s e a polícia te pega r e você der o s erviço, n ós a cer ta m os você qu a n do s a ir da ca deia , ou en tra m os n a ca deia e a cer ta m os você lá . O fa to é qu e acertamos.”

Is ra el m os trou u m s orr is o es ca rn in h o n o ros to simpático: “Qu e ta l, m en in o, você a in da qu er en tra r n a turma?”

“Dêem-m e t rês d ia s ”, d is s e eu . “Se eu en tra r pa ra a sua gang quero ir até o fim.”

“Tá bom , m eu ch a pa ”, d is s e Ca r los , “tem t rês d ia s para pensar. No fim desse prazo, volte aqui. Quero saber s u a decis ã o.” Ele a in da es ta va m eio deita do n a ca deira com a s pern a s s ob re a m es a . Atra íra a ga rota pa ra s i, ou tra vez, e es ta va com a m ã o es qu erda s ob a s u a s a ia , ao redor dos quadris.

Virei-m e pa ra s a ir , e Ca r los d is s e: “Ei, Nicky, eu m e es qu eci de lh e d izer : s e você con ta r a a lgu ém ... a qu a lqu er pes s oa ... on de es ta m os , eu o m a to a n tes de você dizer “ai”. Morou?”

“Morei”, respondi. E eu sabia que ele falava sério.

Lá fora , n a ru a , in ter rogu ei Tico: “O qu e é qu e você a ch a , Tico? Ach a qu e eu devo en tra r pa ra os Ma u -Maus?”

Tico apenas encolheu os ombros.

“É u m n egócio bom , ca ra . Se en tra r , eles tom a m con ta de você. Se n ã o en tra r , eles s ã o ca pa zes de m a tá -lo por n ã o ter en tra do. Você n ã o tem m u ita es colh a a gora . Além d is to, você va i ter qu e en tra r pa ra u m a quadrilha, para continuar vivo por aqui.”

“Qu e é qu e você a ch a de Ca r los ?” pergu n tei, “que tipo de sujeito é ele?”

“É cem por cen to. Nã o fa la m u ito, m a s qu a n do fa la , todo m u n do es cu ta . Ele é o ch efe, e todos s a bem disso.”

“É verda de qu e o p res iden te es colh e a ga rota qu e quiser?” perguntei.

“É”, d is s e Tico. “Tem u m a s s eten ta e cin co ga rotas em n os s a ga n g e o p res iden te es colh e qu a lqu er u m a dela s . Ca da d ia é u m a d iferen te, s e qu is er . Ra pa z, ela s gos ta m d is s o. Você s a be, n a m ora r o p res iden te é s er im por ta n te. Ela s b r iga m pa ra ver qu em va i d iver t ir -se com ele. E is to n ã o é tu do. A qu a dr ilh a cu ida do p res iden te. Ele tem a pa r te do leã o em tu do o qu e roubamos — o qu e gera lm en te dá pa ra ele pa ga r o a lu gu el, a com ida e a s rou pa s . Ser p res iden te é u m a lto negócio.”

“Ei, Tico, s e você é tã o bom de fa ca , por qu e você não é o presidente ?”

“Eu n ã o, m eu ch a pa . O p res iden te n ã o b r iga m u i-to. Ele tem de fica r pa ra t rá s e fa zer os p la n os . Eu gos to é de brigar. Não quero ser presidente.”

“É d is s o ta m bém qu e eu gos to”, pen s ei. “Prefiro

brigar... brigar.”

Tico foi p a ra o Pa p a J oh n 's ou tra vez, e eu voltei pa ra o n .° 54 de For t Green e. Sen t ia o s a n gu e ferver n a s veia s a o im a gin a r o qu e m e es pera va . As “festinhas”, a s ga rota s ... Porém , a cim a de tu do, a s b r iga s . Eu n ã o ter ia m a is de b r iga r s ozin h o. Poder ia fer ir ta n to qu a n to qu is es s e, s em s er fer ido. Meu cora çã o com eçou a ba ter m a is dep res s a . Ta lvez eu t ives s e a ch a n ce de es fa qu ea r a lgu ém . Qu a s e qu e já pod ia en xerga r o s a n gu e es corren do pela s m in h a s m ã os e p in ga n do n a ru a . Fiz m ovim en tos com a s m ã os , golpea n do o a r , en qu a n to a n da va , com o s e es t ives s e com u m a fa ca a ta ca n do e fer in do figu ra s im a gin á r ia s n a es cu r idã o. Dis s era a Ca r los qu e res olver ia em t rês d ia s , m a s já m e decid ira . Tu do o qu e qu er ia era qu e a lgu ém m e des s e u m pu n h a l e um revólver.

Duas noites mais tarde, voltei à sede da quadrilha. Entrei, e Carlos veio me encontrar na porta.

“Ei, Nicky, você ch egou bem n a h ora . Há ou tro ra pa z qu e des eja en tra r pa ra os Ma u -Ma u s . Qu er ver o ritual de iniciação ?”

Eu n ã o t in h a idéia do qu e fos s e u m a in icia çã o, m a s qu er ia a s s is t ir . Ca r los con t in u ou: “Ma s qu em s a b e s e você veio pa ra d izer qu e n ã o qu er en tra r pa ra a ga n g, hein?”

“Não”, rep liqu ei. “Vim pa ra d izer qu e qu ero en trar. Qu ero b r iga r . Ach o qu e s ou tã o du rã o com o qu a lqu er de vocês, e luto melhor do que a maioria dos outros.”

“Bom”, d is s e Ca rlos, “você p ode a s s is t ir , e depois s erá a s u a vez. Tem os du a s m a n eira s de s a ber s e o ca ra é cova rde. Ou ele fica im óvel en qu a n to cin co dos n os s os ra pa zes m a is for tes o s u rra m , ou en cos ta n a pa rede es pera n do a fa ca . Se fu gir de qu a lqu er u m a da s p rova s , n ã o pode en tra r pa ra a qu a dr ilh a . Es te ra pa z d iz qu e é du rã o. Va m os ver s e é m es m o. E depois verem os s e você

também é.”

Olh ei pa ra o ou tro la do do s a lã o e vi o ou tro ga roto. Tin h a cerca de t reze a n os , es p in h a s por todo o ros to, e lon gos ca belos n egros qu e ca ía m s obre os olh os . Era pequ en o e m a gro, e s eu s b ra ços ca ía m du ros a o lon go do corpo. Es ta va ves t ido com u m a ca m is a b ra n ca de m a n ga s com prida s , m a n ch a da n a fren te e repu xa d a s obre o cin to. Pen s ei já ter vis to a qu ele ros to es p in h en to n a es cola , m a s n ã o t in h a cer teza , pois ele era m a is n ovo do que eu.

Ha via cerca de qu a ren ta ra pa zes e ga rota s es -pera n do a n s ios a m en te o es petá cu lo. Ca r los es ta va n a d ireçã o. Ma n dou qu e a b r is s em es pa ço, e tod o m u n d o en cos tou n a s pa red es . Ca r los m a n dou qu e o m en in o s e encostasse n a pa rede n u a , e ficou à s u a fren te, com u m pu n h a l a ber to n a m ã o. A lâ m in a de a ço b r ilh a va m es m o na luz fraca.

“Vou da r a s cos ta s pa ra você e da r vin te pa s s os em d ireçã o à ou tra pa rede”, d is s e ele. “Você fica on de es tá . Você d iz qu e é du rã o. Bem , va m os ver s e é. Quando eu acabar de contar vinte, vou virar e atirar esta fa ca . Se você s e en colh er ou t ira r o corpo fora , é “galinha”. Se n ã o, m es m o qu e a fa ca a cer te em você, é durão, e pode entrar para os Mau-Maus. Morou?”

O menino fez que sim.

“Agora , ou tra coisa”, d is s e Ca r los , leva n ta n do a fa ca d ia n te do n a r iz do m en in o. “Se fica r com m edo enquanto eu estiver contando os passos, é só gritar, mas então é m elh or n u n ca m a is m os tra r o n a r iz por a qu i. Se a pa recer , n ós va m os cor ta r es s a s orelh on a s , fa zer você comer , e depois a r ra n ca r o s eu u m bigo com u m a br idor de latas e deixar você sangrar até morrer “

Os ra pa zes e ga rota s com eça ra m a r ir e a a p la u -dir. “Vamos, cara, vamos!” gritavam para Carlos.

Ca r los deu a s cos ta s pa ra o m en in o e

com pa s s a da m en te cru zou a s a la . Segu ra va a lon ga fa ca relu zen te pela pon ta da lâ m in a e cru zou os b ra ços , com a faca diante dos olhos.

“Um... dois. . . três. . .” A turma começou a gritar e a zombar : “Acerta nele, Carlos ! Atravessa os olhos dele! Mostra a cor do sangue dele; rapaz, faz um furo nele.”

O ra pa zin h o es ta va petr ifica do de m edo, en cos -ta do à pa rede, pa recen do u m ra t in h o qu e t ives s e s ido pego por u m t igre. Es ta va ten ta n do des es pera damente s er va len te. Seu s b ra ços r ígidos a o lon go do corp o, s u a s m ã os a per ta da s em pu n h os m in ú s cu los , a s u n h a s enterrando-s e n a p a lm a da m ã o. Seu ros to perdera todo o sangue, e os seus olhos estavam arregalados de terror.

“On ze... doze... t reze...” Ca r los con ta va em voz a lta . en qu a n to m ed ia a s pa s s a da s . A ten s ã o ch egou a o a u ge, à m ed ida qu e ra pa zes e ga rota s va ia va m e clamavam por sangue.

“Dezen ove.. . vin te. “ Va ga ros a m en te Ca r los virou-s e e leva n tou a m ã o, à a ltu ra da orelh a , s egu ra n do a faca pela ponta da lâmina, pontuda como uma agulha. A tu rba de a doles cen tes m os tra va -s e s elva gem n o s eu fu ror , ped in do s a n gu e. No in s ta n te em qu e ele la n çou o pu n h a l p a ra a fren te, o m en in o dobrou -s e, cru za n do a s m ã os por t rá s da ca beça , e gr ita n do : “Nã o ! Nã o !” A fa ca ch ocou -s e s u rda m en te con tra a pa rede, a pou cos centímetros de onde estivera a sua cabeça.

“Galinha !... galinha !... galinha !...” rugiu a turba.

Ca r los ficou com ra iva . Os ca n tos de s u a boca apertaram-se e os seus olhos se franziram. “Peguem-no”, s ilvou ele. Dois ra pa zes a va n ça ra m de ca da la do da s a la e a ga rra ra m o ga roto en colh ido de m edo, pelos b ra ços , empurrando-o contra a parede.

Ca r los a t ra ves s ou o s a lã o e pa rou d ia n te do m e-n in o qu e t rem ia . “Galinha”, fa lou ele en tre den tes . “Ga lin h a ! eu s a b ia qu e era cova rde des de a p r im eira,

vez que te vi. Devia te matar.”

Os ra pa zes por toda a s a la a p roveita ra m -s e do tema : “Mate ! Mate esse sujo !”

“Sa be o qu e fa zem os com os cova rdes ?” pergu n -tou Ca r los . O m en in o olh ou pa ra ele ten ta n do m over os lábios, mas nenhum som saía.

«Eu vou lh e con ta r o qu e fa zem os com “galinhas”, disse Carlos. “Cortamos as asas, para não voarem mais.”

Arra n cou a fa ca qu e es ta va es peta da n a pa rede de madeira. “Estiquem o bicho!” disse ele.

An tes qu e o m en in o pu des s e m over-s e, os dois ra pa zes , com u m repelã o, a b r ira m -lh e os b ra ços , afastando-os do corpo. Moven do-s e tã o ra p ida m en te qu e com d ificu lda de pod ia -s e a com pa n h a r o m ovim en to da s u a m ã o. Ca r los leva n tou a fa ca em u m golpe rá p ido, com toda a força, e enfiou-a quase até o cabo na axila do garoto. O menino contorceu-se e gritou de dor. O sangue s a iu a os borbotões , e em pou cos in s ta n tes m a n ch ou d e vermelho sua camisa branca.

Arra n ca n do o pu n h a l da ca rn e do ga roto, pa ssou-o ra p ida m en te pa ra a ou tra m ã o. “Veja , ca ra ”, ja ctou -se ele, leva n ta n do-o a m ea ça dora m en te e en ter ra n do-o n a outra axila, “sou canhoto também.”

Os dois ra pa zes la rga ra m o m en in o e ele ca iu n o ch ã o, com os b ra ços cru za dos s ob re o peito e a s m ã os a per ta n do la m en tos a m en te a ca rn e d ila cera da . Ele gr ita va e gem ia , rola n do pelo ch ã o. A ca m is a es ta va qu a s e qu e com pleta m en te en s opa da de s a n gu e, de u m vermelho vivo.

“Tirem is s o da qu i”, orden ou Ca r los r is p ida m en te. Dois ra pa zes a va n ça ra m e, a ga rra n do-o pelos b raços, puseram-no de pé. Ele atirou a cabeça para trás e gritou em agonia, quando eles lhe levantaram os braços. Carlos tapou-lh e a boca e o gr ito ces s ou . Os olh os do ga roto,

a rrega la dos de ter ror , olh a va m -n os por s ob re a m ã o de Carlos.

“Va i pa ra ca s a , “galinha”! Se eu ou vir você gr ita r m a is u m a vez, ou s e você n os dela ta r , vou cor ta r s u a lín gu a ta m bém , tá ?” En qu a n to fa la va , leva n tou o pu n h a l, de cu ja lâ m in a o s a n gu e a in da corr ia s ob re o cabo de madrepérola. “Morou?” repetiu Carlos.

O garoto fez que sim com a cabeça.

Os ra pa zes leva ra m -n o m eio a r ra s ta do pelo ch ã o a té a ca lça da . A qu a dr ilh a de a doles cen tes n o s a lã o gritou quando ele saiu: “Vai para casa, “galinha!”

Ca r los voltou -se. “Qu em é o s egu in te ?” pergu n -tou... olhando bem nos meus olhos. A turba silenciou.

Perceb i en tã o qu e eu n ã o es ta va a m edron ta do. De fa to, eu t in h a fica do tã o en volvido com a s fa ca da s e a dor qu e es ta va gos ta n do do es petá cu lo. A vis ta d e todo a qu ele s a n gu e m e da va u m a s en s a çã o s elva gem en te deliciosa. Eu estava com inveja de Carlos. Mas agora era a minha vez.

Lembrei-m e da decla ra çã o de Ca r los qu e eu podia es colh er a form a da m in h a in icia çã o. O bom s en s o m e d izia qu e Ca r los a in da es ta va en ra ivecido. Se eu perm it is s e qu e ele a t ira s s e o pu n h a l em m im , ir ia ten ta r acertar-m e de p rop ós ito. Den tre a s du a s p rova s , pa recia mais sábio escolher a outra.

“Tem outro covarde aqui?” pilheriou Carlos.

Ava n cei pa ra o m eio da s a la e olh ei à m in h a volta . Um a da s ga rota s , es belta e a lta , com ca lça s com prida s bem ju s ta s , gr itou : “O qu e é qu e h á , m en in ã o, você es tá com m edo, ou o qu e é? Sob rou a lgu m s a n gu e, s e você n ã o tem .” A tu rba va iou e gr itou r in do. Ela t in h a ra zã o. O a s s oa lh o, per to da pa rede on de o m en in o es t ivera , estava coberto com uma camada grossa de sangue.

Respondi: “Eu n ã o. Nã o ten h o m edo. Pode m e

exper im en ta r , m en in a . On de es tã o os ra pa zes qu e querem me surrar?”

Eu es ta va ten ta n do a pa ren ta r ca lm a , m a s por den tro es ta va com m edo. Tin h a cer teza de qu e ia a ca ba r m a ch u ca do. Com preen d i qu e a qu ela gen te n ã o era d e b r in ca deira . Ma s eu p refer ia m orrer do qu e s er “galinha”. Por isso disse: “Estou pronto”.

Ca r los gr itou cin co n om es . “ J oh n n y!” Um ra pa z t ron cu do s a iu do gru po e pa rou à m in h a fren te. Tin h a o dobro do m eu corpo, u m a tes ta p rofu n da m en te vin ca da e qu a s e n ã o t in h a pes coço. Su a ca beça pa recia des ca n s a r d ireta m en te s ob re os om bros . Foi a té o cen tro da sala e estalou os dedos, com um ruído seco e forte.

Procu rei im a gin a r m eu s cin qü en ta qu ilos con tra os s eu s qu a s e cem qu ilos . Ele a pen a s olh ou -me in expres s iva m en te, com o u m s ím io, es pera n do a ordem de ataque.

“Ma tt ie !” Ou tro ra pa z a p res en tou -s e. Era pou co m a ior do qu e eu , m a s os s eu s b ra ços era m com pridos, m u ito m a is lon gos do qu e os m eu s . Ele da n çou n o cen tro da s a la , da n do s ocos n o a r , com o u m pu gilis ta . Con s erva va o qu eixo bem ju n to a o peito, olh a n do por en tre a s s ob ra n celh a s . Deu u m a volta n o s a lã o, es m u rra n do o a r com a velocida de do relâ m pa go. As ga rota s a s s ob ia ra m e s u s p ira ra m en qu a n to ele con t in u a va s u a lu ta fa n ta s m a , bu fa n do pelo n a r iz enquanto se esquivava e dava pequenos golpes.

“J os é !” Um terceiro ra pa z ju n tou s e a o gru po. Tin h a u m a cica tr iz p rofu n da n a fa ce es qu erda , qu e ia des de s ob o olh o a té a pon ta do qu eixo. Com eçou a t ira r a ca m is a e flexion a r os m ú s cu los . Tin h a a con s t itu içã o fís ica de u m h a lterofilis ta . Rodeou -m e, olh a n do-m e de todos os ângulos.

“Coruja!” Um a a cla m a çã o fez-s e ou vir dos ou tros ra pa zes qu e es ta va m n a s a la . Coru ja , s em dú vida , era

u m dos fa vor itos . Ma is ta rde fiqu ei s a ben do qu e eles o ch a m a va m Coru ja porqu e era ca pa z de ver tã o bem de n oite com o de d ia . Lu ta va n a lin h a de fren te, du ra n te os “quebra-paus”, pa ra qu e ele a vis a s s e os ou t ros da p res en ça de qu a dr ilh a s in im iga s , qu a n do ela s s e aproxima s s em . Tin h a olh os gra n des e ra s ga dos , e u m n a r iz recu rva do qu e cer ta m en te fora qu ebra do d ivers a s vezes . Perdera m eta de de u m a orelh a a o s er a t in gido por u m a tá bu a com u m prego com prido. Is s o a con tecera du ra n te u m tu m u lto n o pá t io da es cola , e o p rego rasga ra s u a orelh a , a r ra n ca n do m a is da m eta de. Coru ja era um garotão baixo e gordo, e tinha um olhar maldoso, o pior que eu já vira.

“Paco!” Não cheguei a ver Paco. Ouvi-o dizer o meu nome, às minhas costas: “Ei, Nicky”. Virei-me para olhar e ele m e deu u m m u rro n a s cos ta s , pou co a cim a da cin tu ra . A dor foi excru cia n te. Pa recia qu e ele m e rom pera o r im . Procu rei tom a r fôlego, m a s ele m e golpeou de n ovo. Qu a n do eu m e en d ireitei e coloqu ei a s m ã os à s cos ta s pa ra a per ta r o lu ga r dolor ido, u m dos ou tros ra pa zes m e es m u rrou n o es tôm a go com ta n ta força qu e perd i o fôlego. Sen t i qu e com eça va a des m a ia r de dor , qu a n do a lgu ém m e deu u m s oco n o ros to, e eu ouvi o osso do nariz quebrar-se sob o impacto.

Nã o t ive opor tu n ida de de revida r . Sen t i-m e ca ir . Perceb i qu e a lgu ém m e a ga rrou pelo m eu ca belo com prido. Meu corpo des pen cou n o ch ã o, m a s m in h a ca beça con t in u a va s u s pen s a pelo ca belo. Um deles chutou-m e o ros to com u m s a pa to s u jo, e pu de s en t ir a a reia em m eu s lá b ios e ros to. Eu es ta va leva n do ch u tes em toda s a s pa r tes do corpo e, o qu e es ta va m e agarrando pelo cabelo, golpeava-me na têmpora.

As lu zes en tã o s e a pa ga ra m e eu n ã o m e lem bro de mais nada.

Algu m tem po depois perceb i qu e a lgu ém es ta va m e s a cu d in do e es ta pea n do-m e a s fa ces . Ou vi a lgu ém

dizer: “Ei, acorda, Nicky.”

Procu rei foca liza r os olh os , m a s n ã o era ca pa z d e ver n a da a lém do for ro. Pa s s ei a m ã o pelo ros to, e pu de s en t ir s a n gu e n a pele. Es ta va cober to de s a n gu e. Olh ei pa ra cim a e vi o ros to do ra pa z a qu em ch a m a va m de Coru ja . O s a n gu e m e fez fica r lou co. Com u m m ovim en to rá p ido a cer tei-o n a boca . Repen tinamente, toda a m in h a en ergia retorn ou . Eu es ta va deita do de cos ta s n a qu ela gra n de poça de s a n gu e en du recido, e com ecei a voltea r , m es m o deita do, ch u ta n do todos os qu e es t ives s em a o m eu a lca n ce, xin gando, gritando, batendo com as mãos e com os pés.

Algu ém a ga rrou m eu s pés e im ob ilizou -m e con tra o s olo, a té pa s s a r a fú r ia . Is ra el cu rvou -s e s ob re m im , rindo.

“Você é u m dos n os s os , Nicky. Ra pa z, você pod e nos ajudar. Você pode ser um monte de coisa, mas não é covarde. No duro. Toque aqui.” Ele apertou algo contra a minha mão.

Era u m revólver t r in ta e dois . “Você é Ma u -Mau agora, Nicky. Mau-Mau.”

Capítulo 5

TTUUMMUULLTTOO NNAASS RR UUAASS

DESDE O PRINCÍPIO, eu e Is ra el n os torn a m os qu a s e in s epa rá veis . Três n oites depois , ele pa s s ou pelo m eu a pa r ta m en to pa ra d izer qu e ia h a ver u m “quebra-pau” com os Bis h ops . “Por fim ”, pen s ei, “uma opor tu n ida de pa ra u s a r m eu revólver — u m a opor tu -n ida de pa ra lu ta r .” En qu a n to Is ra el des crevia o p lano

senti-me arrepiar.

Os Ma u -Ma u s dever ia m reu n ir-s e n a Pra ça Wa s h in gton per to de De Ka lb . Dever ía m os es ta r lá , por volta das nove da noite. O nosso conselheiro de guerra já h a via s e en con tra do com o con s elh eiro de gu erra dos Bis h ops , u m a qu a dr ilh a de ra pa zes de cor , pa ra m a rca r a h ora e o lu ga r . Dez da n oite n o pa rqu e a t rá s do 67 .° Distrito.

Is ra el d is s e: “Leva s eu revólver . Todos os ou tros ra pa zes têm a rm a s . Algu n s fizera m s u a s p róprias es p in ga rda s , e Heitor tem u m r ifle s er ra do. Va m os da r u m a liçã o n os Bis h ops . Se t iverm os de m a ta r , m a ta rem os . Ma s s e ca irm os , ca irem os lu ta n do. Som os os Ma u -Ma u s . Os ta is . Os Ma u -Ma u s a fr ica n os bebem sangue, cara, e nós somos iguais a eles.”

A ga n g já es ta va reu n ida , qu a n do eu ch egu ei à p ra ça à s oito e m eia . Ha via m es con d ido s u a s a rm a s n a s á rvores e n a gra m a a lta , com m edo qu e a polícia ch ega s s e. Ma s n a qu ela n oite n ã o h a via polícia , e Is ra el e Ca r los es ta va m da n do orden s . Às dez h ora s h a via m a is de cem ra pa zes va gu ea n do pela p ra ça . Algu n s deles t in h a m revólveres . A m a ior ia t in h a fa ca s . Un s pou cos , ta cos de beis ebol, porretes com p regos n a s pon ta s , ou cla va s feita s em ca s a . Ou tros t in h a m corren tes de b icicleta , qu e era m a rm a per igos a qu a n do ba t ia m n a ca beça de a lgu ém . Ca r los t in h a u m a ba ion eta de cerca de s es s en ta cen t ím etros , e Heitor , a s u a es p in ga rda s er ra da . Algu n s ra pa zes dever ia m ir dois qu a r teirões a ba ixo, pa s s a r por t rá s do pá t io da es cola , n a Av. Pa rk , para cortar a retirada dos Bishops. Deveriam esperar até ou vir o ba ru lh o da lu ta e en tã o a ta ca r pela reta gu a rda . O res ta n te a va n ça r ia da R. St . Edwa rd , a o la do da es cola , ten ta n do força r os Bis h ops a recu a rem pa ra on de o n os s o pelotã o de reta gu a rda cor ta r ia s u a retirada.

Movemo-n os s ilen cios a m en te, a pa n h a n do n os s a s

a rm a s n os es con der ijos a o s a irm os . Tico es ta va a o m eu lado, rindo. “Que tal, Nicky, está com medo ?”

“Ra pa z, eu n ã o ! É is to qu e eu es ta va es pera n do”, d is s e, a b r in do o b lu s ã o pa ra qu e ele pu des s e ver o m eu revólver.

“Qu a n ta s ba la s tem a í?” pergu n tou . “Es tá ch eio, m en in o. Cin co ba la s .” “Puxa”, d is s e Tico, a s s ob ia n do baixo, “não está nada mal. Você deve pegar um daqueles ba s ta rdos p retos es ta n oite, s em dú vida . Eu ? Fico com a minha faca.”

Dividimo-n os em gru pos pequ en os , a fim de pa s -s a rm os des perceb idos pela delega cia qu e h a via n a es -qu in a da s ru a s Au bu rn e St . Edwa rd . Reu n im o-nos defronte da escola, e Carlos deu o sinal de ataque.

Correm os a o redor do ed ifício, e en tra m os n o pá t io. Os Bis h ops es ta va m n os es p era n do. “Eia ! eia ! m a tem ! pegu em !” gr itá va m os , en qu a n to en xa m eá va m os em d ireçã o a o pá t io, e corr ía m os pelo es pa ço a ber to qu e separava as duas quadrilhas.

Arrem et i à fren te do gru po, t ira n do o revólver do cinto. Israel desviou-se para um lado, girando o seu taco de beis ebol. Ra pa zes voltea va m a o m eu redor , gr ita n do, xin ga n do e a ta ca n do u n s a os ou tros . Devia h a ver du zen tos ra pa zes n o pá t io, m a s es ta va es cu ro, e era d ifícil d is t in gu ir -s e a s qu a dr ilh a s . Vi Heitor correr por u m a qu a dra de b a s qu ete, e vi a lgu ém corren do em d ireçã o a ele com u m a ta m pa de la ta d e lixo. Heitor ca iu pa ra t rá s , d is pa ra n do a es p in ga rda a o m es m o tem po, com um barulho ensurdecedor.

Per to dele u m ra pa z n egro ca iu pa ra a fren te, com s a n gu e es corren do de u m fer im en to n a ca beça . Pa s s ei corren do per to dele e ch u tei s eu corpo. Pa recia u m s a co de milho.

De repen te, fu i em pu rra do por t rá s , e m e es pa r-ramei no cimento duro da quadra. Estendi as mãos para

d im in u ir o im pa cto da qu ed a , e s en t i a pele d a pa lm a da s m in h a s m ã os es fola r -s e. Olh ei pa ra ver qu em m e em pu rra ra , e des viei ra p ida m en te a ca beça exa ta m en te n o in s ta n te em qu e u m ta co de beis ebol es pa t ifa va -se contra o pavimento, ao meu lado. Ouvi o taco estilhaçar-se ao bater. Um golpe direto teria me matado.

Um gra n de gr ito leva n tou -s e dos Ma u -Maus, quando o res to da n os s a qu a dr ilh a a ta cou pela retaguarda. “Aca bem com eles , tu rm a , a ca bem com eles !” Leva n tei-m e ca m ba lea n do, en qu a n to os Bis h ops , a go-ra em con fu s ã o, com eça va m a fu gir pela s ru ela s qu e da va m pa ra a Ru a St . Edwa rd . Is ra el es ta va a m eu la do, gritando: “Atira naquele lá, Nicky, atira nele.”

Ele a pon ta va pa ra u m m en in o qu e ten ta va fu gir mas fora ferido e estava tentando correr, meio coxeando, ficando cada vez mais para trás dos Bishops que fugiam. Fiz m ira com o revólver n a d ireçã o da figu ra ca m ba lea n te, e pu xei o ga t ilh o. A ba la d is pa rou , m a s ele a in da corr ia . Aga rrei o revólver com a m ba s a s m ã os , e puxei o gatilho outra vez.

“Você a cer tou , ca ra , você a cer tou .” Vi o ra pa z ca ir pa ra a fren te, a o im pa cto da ba la n a coxa . Ele a in da ra s teja va , qu a n do Is ra el a ga rrou o m eu b ra ço e gr itou : “Vamos nos mandar, rapaz; aí vêm os tiras.” Ouvimos os a p itos e gr itos dos gu a rda s d ia n te da es cola , e a polícia rodea n do, cerca n do os Bis h ops qu e fu gia m pelo beco, ten ta n do es ca pa r . Correm os n a d ireçã o opos ta , espalhando-n os pelo fu n do do pá t io da es cola . Olh ei pa ra t rá s , a o p u la r u m a cerca de corren te. Na penumbra, pude ver ainda três rapazes caídos no pátio e vá r ios ou tros s en ta dos , a per ta n do os fer im en tos . A batalha não durara mais de dez minutos.

Correm os s eis ou s ete qu a r teirões , a té fica rm os exa u s tos . Ca r los e m a is dois ra pa zes u n ira m -s e a n ós , e pu la m os n u m a va leta de es goto, qu e h a via a t rá s de u m posto de gasolina.

Is ra el es ta va s em fôlego, m a s r ia ta n to qu e qu ase n ã o a gü en ta va . “Você viu es s e Nicky m a lu co ?” a rqu ejou ele en tre ga rga lh a da s . “Ra pa z, ele pen s ou qu e era u m filme de mocinho e ficou dando tiros para o ar.”

Os ou tros es ta va m retom a n do o fôlego e r in do ta m bém . Pa r t icipei da a legr ia gera l. Es tá va m os deitados de cos ta s n a va leta , r in do. Até pen s a m os qu e n os s os pu lm ões ir ia m es tou ra r . Is ra el tom ou fôlego e, com o dedo es t ica do, fez: “Ba n g! Ba n g! Ba n g!” ca in do ou tra vez n a r is a da . Nós a per tá va m os a ba rr iga e rolá va m os n a valeta, rindo a mais não poder.

Sentia-m e bem . Tin h a vis to s a n gu e correr . Ha via a t ira do em a lgu ém , e ta lvez o h ou ves s e m a ta do, e h a vía m os con s egu ido es ca pa r . Eu ja m a is t ivera a qu ela s en s a çã o de per ten cer a u m gru po com o a qu e s en t ia a li den tro da qu ele fos s o, com a qu eles ra pa zes . Era qu a s e com o s e fôs s em os u m a fa m ília , e pela p r im eira vez n a vida senti que era aceito e querido.

Is ra el es ten deu o b ra ço e colocou -o a o redor dos m eu s om bros . “Você é dos bon s , Nicky. Es ta va es -pera n do a lgu ém com o você h á m u ito tem po. Som os do mesmo tipo — nós dois somos doidos.”

Ca ím os n a r is a da ou tra vez, m a s den tro de m im pen s ei qu e era m elh or s er lou co e des eja do, do qu e s er normal e viver sozinho.

“Ei, tu rm a , qu e ta l a gen te beber?” d is s e Ca r los , ainda empolgado pelo êxito. “Quem tem grana?”

Estávamos todos “duros”.

“Vou arrumar dinheiro”, disse eu.

“O qu e é qu e você va i fa zer? a s s a lta r a lgu ém ?” perguntou Israel.

“Cer to, m eu ch a pa . Qu er ir ta m bém ?” Is ra el deu u m s oco n o m eu b ra ço: “Você é lega l, Nicky. Ra pa z, você n ã o tem cora çã o, n em s en t im en tos . Tu do o qu e você

quer é brigar. Vamos, cara, nós estamos com você.”

Olh ei pa ra Ca r los , qu e devia s er o líder . J á es tava de pé, p ron to pa ra s a ir . Foi a m in h a p r im eira in d ica çã o de qu e os ou tros ra pa zes s egu ir ia m o qu e fos s e o m a is cruel, o mais sedento de sangue, o mais corajoso.

Levantamo-n os do fos s o, e a t ra ves s a m os a ru a , corren do pa ra u m a ru ela es cu ra . Na es qu in a , b r ilh avam luzes em um bar que ficava aberto a noite inteira. Dirigi-me para lá.

Ha via t rês pes s oa s n a la n ch on ete. Du a s dela s , u m h om em e u m a s en h ora , es ta va m por t rá s do ba lcã o. Um velh o a ca ba ra de leva n ta r -s e du m ba n qu in h o, d ia n te do ba lcã o, e es ta va pa ga n do a con ta . Ch egu ei per to dele e empurrei-o con tra o ba lcã o. E le virou -s e com s u rp res a e m edo, lá b ios t rêm u los , a o ver-m e a per ta r o botã o da m in h a fa ca , a b r i-la , e en cos tá -la de leve n o s eu estômago.

“Va m os , velh o. Dá a qu i”, d is s e eu , fa zen do s in a l com a cabeça para as notas em sua mão.

O h om em qu e es ta va a t rá s do ba lcã o com eçou a mover-se em direção ao telefone público, na parede.

Is ra el a b r iu o pu n h a l e a ga rrou o h om em pela pa r te s u per ior do a ven ta l. Em pu rra n do-o com força con -t ra o ba lcã o, ele d is s e: “Ei, ca ra , você qu er m orrer , hein?” Ou vi a m u lh er en ga s ga r-s e e coloca r a m ã o n a boca pa ra s u foca r u m gr ito. Is ra el em pu rrou o h omem pa ra t rá s , s ob re a ca ixa e t irou o fon e do ga n cho. “Você qu er ch a m a r os t ira s , gra n dã o ?” zom bou ele. “Pronto, aqui está!” Deu um sorriso de mofa, enquanto arrancava o recep tor da pa rede e a t ira va pa ra o h om em . “Pode ch a m a r !” O h om em , es ton tea do, a pa n h ou o fon e e ficou a s egu rá -lo pelo fio, qu e os cila va com o o fio de u m pêndulo.

“Vamos depressa, velho. Não posso esperar a noite toda”, ros n ei. E le es ten deu a m ã o t rêm u la à m in h a

frente, e eu a r reba tei a s n ota s de en tre os s eu s dedos . “Is to é tu do?” pergu n tei. E le ten tou res pon der , m a s n en h u m s om s a iu dos s eu s lá b ios t rêm u los . Os olh os com eça ra m a gira r pa ra t rá s n a s órb ita s , a s a liva a correr dos ca n tos da boca , en qu a n to da va gru n h idos esquisitos.

“Vamos nos mandar daqui”, disse um dos rapazes. Ca r los a per tou u m botã o da ca ixa regis t ra dora , e ra pou toda s a s n ota s , en qu a n to n os a fa s tá va m os pa ra a por ta . O velh o d es pen cou por ter ra , a per ta n do o peito com a s mãos, produzindo ruídos, como de cacarejo.

“Ei, es pera ”, d is s e Is ra el, en qu a n to a ga rra va u m pu n h a do de t roco da ca ixa regis t ra dora . Moeda s de todos os ta m a n h os t ilin ta ra m n o ch ã o du ro. Is ra el es ta va r in do. “Nu n ca s a ia de u m a es pelu n ca s em deixa r u m a gor jeta ”, ga rga lh ou . Todos r im os . O hom em e a m u lh er a in da es ta va m p res os à pon ta do ba lcã o, e o velho estava ajoelhado no chão, todo curvado.

Apanhei um pesado açucareiro e espatifei-o contra o vidro da vitrine.

“Ra pa z, você é lou co”, gr itou Ca r los e com eçamos a correr ru a a ba ixo. “Isto va i a t ra ir todos os t ira s d e Brook lin . Va m os n os m a n da r da qu i.” O velh o ca iu pa ra fren te, de ros to n o ch ã o. Correm os pela ru a es cu ra até em casa, rindo e gritando.

Dois m es es depois Ca r los foi a pa n h a do pela p o-lícia , e con den a do a s eis m es es de ca deia . Na qu ela n oite t ivem os u m a gra n de reu n iã o da qu a dr ilh a n o a u d itór io da es cola per to do 67 .° Dis t r ito. Nin gu ém pod ia en tra r n a es cola fora do exped ien te, m a s fizem os u m tra to com Firpo, vice-p res iden te dos Ch a p la in s , cu jo p a i era zela dor da es cola . Ele deixa va a s qu a dr ilh a s u s a rem o a u d itór io do p réd io, de n oite, pa ra reu n iões , porqu e t in h a m edo do filh o. Na qu ela n oite p rom ovem os Is ra el à p res idên cia , e eu fu i es colh ido com o vice-p res iden te por unanimidade.

Depois da reu n iã o da qu a dr ilh a , t ivem os u m a “festinha” n o porã o da es cola . Ha via u m gra n de n ú mero de “bonecas”, e u m dos ra pa zes m e a p res en tou s u a irm ã , Líd ia , qu e m ora va defron te à es cola . Pica m os m u ito tem po n a es cola , n a qu ela n oite, fu mando m a con h a , beben do vin h o ba ra to, e s en ta dos n a es ca da r ia in ter ior , n a m ora n do, en qu a n to ou tros da n ça va m a o s om de u m fon ógra fo. A es ca da es ta va fechada por um gradil que vários casais abriam, a fim de subir ao primeiro andar, para fazer amor, no escuro.

Pu xei Líd ia pela m ã o: “Va m os ca ir fora .” Qu a n do s a ím os pela por ta , ela ch egou -s e a m im : “Sou s u a pa ra sempre, Nicky. Sempre que você me quiser, eu sou sua.”

Nos qu a tro m es es s egu in tes h ou ve b r iga s , rou bos, e ou tra s a t ivida des da qu a d r ilh a . Fu i a ga rra do pela polícia qu a tro vezes , m a s em n en h u m a dela s pu dera m provar cois a a lgu m a con tra m im . Tod a s a s vezes s a í livre, recebendo apenas uma advertência.

Os m em bros da qu a dr ilh a gos ta va m de m im e m e res peita va m . Eu n ã o t in h a m edo de cois a a lgu m a , e es ta va d is pos to a b r iga r ta n to à p len a lu z do d ia , com o sob o manto das trevas.

Cer ta ta rde u m dos Ma u -Ma u s con tou qu e Líd ia h a via m e dela ta do a u m Apa ch e. Meu s a n gu e ferveu e eu d is s e qu e ia m a ta r Líd ia . Voltei a o m eu a pa r tamento pa ra pega r o revólver . Um dos ra pa zes con tou a o irm ã o dela e ele correu a a vis á -la . Qu a n do ch egu ei a o a pa r ta m en to dela , con vers ei com Lu ís , s eu irm ã o m a is velh o. Ele m e d is s e qu e u m dos Apa ch es en con tra ra Líd ia n a ru a , n a n oite a n ter ior , e ba tera n ela , pa ra s a ber onde eu morava, pois queria me matar.

Sa í de lá e s egu i pa ra o a p a r ta m en to de Is ra el. Saím os p rocu ra n do o Apa ch e de qu em Lu ís n os fa lara. Encontramo-lo n a es qu in a da s ru a s La fa yet te e For t Green e, defron te à Ca s a de Ca rn es Ha rry. Ma is s eis Mau-Ma u s reu n ira m -s e a n ós form a n do u m pequeno

círcu lo. Dei u m s oco n o ra pa z, der ru ba n do-o, e ba t i n ele com u m ca n o de m eta l. E le rogou -m e qu e n ã o o m a ta s s e. A tu rm a es ta va r in do; con t in u ei golpea n do-o; acertei-o repet ida s vezes , e ele ficou cober to de s a n gu e. Os es pecta dores correra m , en qu a n to a s u r ra con t in u a va . Fin a lm en te, qu a n do ele n ã o pod ia m a is leva n ta r os b ra ços p a ra p roteger-s e con tra os golp es , eu , maldosamente, amassei o cano contra os seus ombros, e con t in u ei ba ten do n ele a té qu e ca iu , in con s cien te, em uma poça de sangue.

“Es tú p ido, s eben to ! Is to te en s in a rá a n ã o ba ter n a m in h a ga rota .” Sa ím os corren do. Eu es ta va a n sioso pa ra d izer a Líd ia o qu e fizera pa ra defen der s u a h on ra , embora uma hora antes estivesse disposto a matá-la.

À m ed ida qu e o verã o a va n ça va , a s b r iga s de ru a tornavam-s e p iores . O ca lor n os a pa r ta m en tos era in s u por tá vel, e n ós ficá va m os n a ru a a m a ior pa r te da n oite. Dificilm en te u m a n oite s e pa s s a va s em a t ivida de das quadrilhas.

Nin gu ém de n os s a ga n g t in h a ca r ro. Se qu er íamos ir a a lgu m lu ga r , tom á va m os o m etrô, ou rou bávamos u m ca rro. Eu n ã o s a b ia gu ia r , m a s u m a n oite Ma n nie Du ra n go ch egou p a ra m im e d is s e: “Va m os rou ba r u m carro e dar uma volta.”

“Você sabe de algum ?” perguntei.

“Sim , m eu ch a pa , logo a li vira n do a es qu in a . É u m a beleza , e o bobo do don o deixou a s ch a ves n o contato.”

Fu i com ele e vi o ca r ro, defron te a u m p réd io de a pa r ta m en tos . Ma n n ie t in h a ra zã o, era u m a beleza . Era u m Ch evrolet con vers ível com a ca pota a ba ixada. Pu la m os pa ra den tro e Ma n n ie s en tou -s e a t rá s d o vola n te. Reclin ei-m e n o ba n co a o s eu la do, e fu m a va u m cigarro, sacudindo as cinzas por sobre a porta, como um grã-fin o s ofis t ica do. Ma n n ie vira va a d ireçã o pa ra u m

la do e pa ra ou tro, fa zen do ru ídos com a boca , im ita n do pneus derrapando e motor de carro de corrida.

“Rrru u u u u m m m m m m m ! Rru u u u m m m m m m m ! Rroooouurrrrr!” Comecei a rir.

“Ei, Mannie, você sabe mesmo guiar este carro?”

“Claro, rapaz, olhe só.”

Ele girou a ch a ve qu e es ta va pen du ra da n o con -ta to e o ca r ro ru giu . En ga tou em m a rch a -ré e ca lcou o pé n o a celera dor , t rom ba n do com u m ca m in h ã o qu e es ta va es ta cion a do a t rá s . Ou vim os ba ru lh o de vid ro quebrado.

“Ei, m eu ch a pa ”, fa lei, r in do, “você é u m m otorista ba ca n a . Pu xa , você s a be m es m o m exer com es s e t roço. Quero ver agora se sabe andar para a frente.”

Ma n n ie en ga tou a m a rch a , eu m e retes ei n o ba n -co, e o ca r ro ch is pou pa ra a fren te, ba ten do n a t ra seira de ou tro ca r ro. De n ovo h ou ve u m es t ron do for te de vidro quebrado e de lata amassada.

Nós dois r ía m os ta n to qu e n ã o vim os u m h omem s a ir corren do do a pa r ta m en to, e gr ita r con osco. “Saiam do m eu ca r ro, s eu s ca ch orros !” gr ita va ele, ten ta n do tirar-m e do a s s en to. Ma n n ie a r ra n cou pa ra ré e fez o h om em perder o equ ilíb r io, joga n do-o pa ra t rá s . Pegu ei u m a ga rra fa de refr igera n te qu e es ta va n o ba n co do ca r ro e dei-lh e u m a for te pa n ca da n a m ã o, qu e s e agarrava desesperadamente

à por ta . E le gr itou de dor . Ma n n ie en ga tou a primeira e n ós n os a r rem es s a m os pa ra a ru a . Eu a in da esta va recos ta do n o a s s en to, r in do d es b ra ga da m en te. J ogu ei a ga r ra fa n a ca lça da , e ou via qu ebra r -s e, en -quanto saíamos à toda.

Ma n n ie n ã o s a b ia gu ia r . E le virou a es qu in a , com os pn eu s ca n ta n do, e en trou n o la do er ra do da Av. Pa rk . Por pou co n ã o colid im os com dois ca r ros , e ou tro,

bu zin a n do in s is ten tem en te, s u b iu n a ca lça da , pa ra evita r u m a colis ã o. Nós dois es tá va m os r in do e gr ita n do. Ma n n ie a t ra ves s ou u m pos to de ga s olin a e s a iu por uma rua lateral.

“Va m os pôr fogo n es te ca r ro”, d is s e Ma n n ie. “Não, ca ra ! Es te ca r ro é u m a beleza . Va m os fica r com ele. Vamos mostrá-lo as garotas.”

Porém Ma n n ie n ã o foi ca pa z de fa zer a volta e fin a lm en te en fiou -o n a t ra s eira de u m ca m in h ã o qu e parara d ia n te de u m s in a l verm elh o. Pu la m os pa ra fora e correm os ru a a ba ixo, deixa n do o ca r ro s er iamente danificado enfiado sob a carroceria do caminhão.

Mannie era o tipo ideal de companheiro para mim. Mal sabia eu o horror que estava reservado para ele.

Todos os d ia s n os dá va m os a m u ita s a t ivida des cr im in os a s . As n oites era m a in da p iores . Um a n oite, Ton y e m a is qu a tro ra pa zes a ta ca ra m u m a s en h ora qu e volta va do s erviço pa ra ca s a , a r ra s ta ra m -n a pa ra u m ja rd im , on de os cin co a bu s a ra m dela , du a s vezes ca da um. Ton y ten tou m a tá -la por a s fixia , com o s eu cin tu rã o. Ma is ta rde ela o iden tificou , e ele foi condenado a doze anos de prisão.

Du a s s em a n a s depois , eu e m a is qu in ze pegamos u m ra pa z ita lia n o a n da n do n os dom ín ios dos Ma u -Ma u s . Rodea m o-lo e joga m o-lo a o s olo. Coloquei-me s obre ele, b r in ca n do com a fa ca , es peta n do de leve o s eu pom o de Adã o, e cu tu ca n do os botões da s u a ca m is a . Xingando-m e, ele deu u m ta pa n a fa ca , a r reba ta n do-a da m in h a m ã o, e a n tes qu e eu pu des s e m over-m e, Tico pegou-a e r is cou o ros to dele. O ra pa z gr itou qu a n do Tico cor tou s u a ca m is a e r is cou u m en orm e “M” n a s s u a s cos ta s . “Olh e a qu i, ca ra , is to é pa ra en s in a r você a n ã o p is a r n os dom ín ios dos Ma u -Maus”, d is s e ele. Sa ím os corren do, deixa n do-o en s a n gü en ta do n a calçada.

Todos os d ia s os jorn a is es ta m pa va m repor tagens de a s s a s s in a to n os ja rd in s , n os m etrôs , n a s t ravessas, n os s a gu ões dos p réd ios de a pa r ta m en tos , n os becos . Todas as noites havia “quebra-pau”.

Os d iretores da Es cola Técn ica de Brook lin m a n -da ra m coloca r tela s de a ra m e gros s o s obre a s por ta s e ja n ela s da es cola . Toda s a s ja n ela s , m es m o a s do qu in to andar, estavam cobertas de tela metálica.

Mu itos p ropr ietá r ios de loja s es ta va m com pra n do cã es policia is , e deixa va m -n os p res os den tro da s loja s , durante a noite.

As ga n gs es ta va m fica n do m a is orga n iza da s , e n ova s qu a dr ilh a s es ta va m s e form a n do. Três ga n gs n ova s h a via m s u rgido em n os s o ba ir ro: a Scorp ion s , a Viceroys e a Quentos.

Des cobr im os pou co depois qu e a lei da cida de de Nova York p roib ia os policia is de revis ta rem m u lh eres. Por is s o, deixá va m os a s ga rota s ca r rega r n os s os revólveres e fa ca s , a té n a h ora em qu e p recisássemos deles . Se u m gu a rda pa ra s s e pa ra n os revis ta r , a s ga rota s fica va m pa ra t rá s e gr ita va m : “Ei, t ira s u jo! La rgu e dele. Ele n ã o tem n a da , es tá lim po. Por qu e você n ã o vem m e revis ta r? depois eu te pon h o n a ca deia . Ei, tira, você não quer pôr as mãos em mim? Venha!”

Apren dem os a fa zer revólveres pa ra ba la s ca libre vin te e cin co, u s a n do a n ten a de ca r ro e peça s de fech a du ra . Oca s ion a lm en te u m des s es revólveres exp lod ia n a m ã o de a lgu ém , ou a t ira va pa ra t rá s cegando-o. Ma s n ós con s egu im os fa b r ica r gra n de n ú m ero deles e ven dê-los pa ra m em bros de ou tra s quadrilhas — s a ben do qu e eles os u s a r ia m con tra n ós , se tivessem oportunidade.

Na qu ele verã o, n o d ia qu a tro de ju lh o, toda s a s ga n gs reu n ira m -s e n o pa rqu e de d ivers ões de Con ey Is la n d . Os jorn a is ca lcu la ra m qu e m a is de oito m il

joven s , m em bros de qu a dr ilh a s , con vergia m pa ra Coney Is la n d . Nin gu ém pa gou . Eles a pen a s en tra ra m em pu rra n do o por tã o, e n in gu ém ou s ou d izer cois a alguma. O mesmo aconteceu no metrô.

No dia primeiro de agosto, Israel foi apanhado pela polícia . Qu a n do s a iu da ca deia , d is s e-n os qu e a s cois a s es ta va m m es m o p reta s pa ra ele, e qu e qu er ia a s s u m ir u m a pos içã o s ecu n dá r ia , a té qu e a s itu a çã o es fr ia sse. Con corda m os , e a qu a dr ilh a m e elegeu p res iden te, des ign a n do Is ra el p a ra s ervir com o vice-p res iden te a té qu e tu do es fr ia s s e. Eu fa zia pa r te da qu a dr ilh a h á s eis meses, quando passei a ser chefe.

Nã o levei m u ito tem po pa ra p erceber qu e os Ma u -Ma u s era m m u ito tem idos , e qu e eu h a via ganhado repu ta çã o de s er u m va len tã o s a n gu in á r io. Eu m e gloriava dessa reputação.

Cer ta n oite, fom os todos a u m gra n de ba ile qu e era p rom ovido pelo cen tro s ocia l da igreja de St . Edwa rd — St . Mich a el. A igreja es ta va fa zen d o u m a ten ta t iva pa ra a fa s ta r os ra pa zes da s ru a s , e h a via a ber to u m a ca n t in a logo a ba ixo da delega cia de polícia , pa ra rea liza r ba iles n os fin s de s em a n a . Toda s exta -feira h a via a li u m con ju n to de da n ça e todos os m em bros da s qu a dr ilh a s ia m a o cen tro pa ra da n ça r . Fica va m n a ru a ta m bém , defron te a o cen tro, e beb ia m cerveja e vin h o ba ra to. Na s em a n a a n ter ior n ós h a vía m os n os em bebeda do, e qu a n do os pa d res ten ta ra m fa zer-n os fica r qu ietos , ba tem os e cu s p im os n eles . A polícia veio e n os pôs a correr. Raramente passava-se uma sexta-feira sem que o baile da cantina não se transformasse em tumulto.

Na qu ela n oite, eu fora com Ma n n ie e Pa co. Es -tá va m os beben do m u ito e fu m a n do m a con h a . Ma rquei u m a bon ita ga rota lou ra e d a n cei vá r ia s vezes com ela . Ela m e d is s e qu e o irm ã o es ta va com plica do com a ga n g Phantom Lords. Eles iam matá-lo.

“On de es tá s eu irm ã o?” pergu n tei. “Nin gu ém va i

machucá-lo sem minha ordem. Vamos falar com ele.”

Levou-m e a u m ca n to da s a la , e a p res en tou -me ao irm ã o. Ele d is s e qu e a tu rm a Ph a n tom Lords da Av. Bedford qu er ia m a tá -lo porqu e ele n a m ora va u m a da s suas “bonecas”. O ra pa z es ta va com pleta m en te bêbedo e muito amedrontado.

“Olhe”, d is s e eu “s u a irm ã é u m a m en in a ba cana. Ach o qu e vou qu erer s a ir com ela m a is vezes , e com o gosto dela, vou tomar conta de você também.”

Eu já m a rca ra en con tro com a ga rota , pa ra levá-la a o cin em a . Dis s e-lh e qu e ter ia de fa zer tu do o qu e eu quisesse, porque eu era o presidente dos Mau-Maus. Ela ficou a m edron ta da , e d is s e qu e ir ia com igo, m a s n ã o qu er ia qu e n en h u m dos ou tros ra pa zes toca s s e n ela . Nós n os b eija m os e eu d is s e qu e en qu a n to ela es t ives s e comigo eu cuidaria dela.

Leva n ta m os os olh os exa ta m en te n o in s ta n te em qu e t rês Ph a n tom Lords en tra va m pela por ta . Es tavam ves t idos com pa letós es pa lh a fa tos os e ca lça s xa d rez, e t in h a m ch a veiro com corren te lon ga . Um dos ra pa zes pa s s ou per to de n ós gira n do a corren te e p is cou pa ra a m in h a ga rota . Ela deu -lh e a s cos ta s e eu pu s o b ra ço a o seu redor.

“Ei, m en in a ”, zom bou ele, “qu e ta l s a ir com igo? Meu irm ã o es tá com o ca r ro a í fora , e o ba n co de t rá s fica res erva do s ó pa ra n ós ...” “Es tá qu eren do m orrer”, rosnei. “Bruto”, r iu o ra pa z, “n ós já es ta m os p la n eja n do m a ta r o s eu a m igo bêbedo, e bem podem os m a ta r você também, vagabundo.”

Ma n n ie deu u m a ga rga lh a da zom beteira . O rapaz virou-se rápido: “Quem foi?”

Ma n n ie com eçou a r ir , m a s eu s en t i a tem pes tade n o a r , e res pon d i: “Ninguém.” Com ecei a m e a fa s ta r , m a s o ra p a z voou p a ra o la do de Ma n n ie, e deu -lh e u m s oco, der ru ba n do-o. Depois d e Is ra el, Ma n n ie era o m eu

m elh or a m igo. Nin gu ém ir ia fer i-lo n a m in h a p res en ça , s em receber o t roco. Voltei e dei n o ra pa z u m golpe ter r ível n a s cos ta s , bem a cim a dos r in s . E le a per tou os rins com as mãos, e gritou de dor.

Ma n n ie leva n tou -s e a os t ropeções e pu xou da fa ca . Eu pegu ei a m in h a ta m bém e os ou tros ra pazes form a ra m u m s em icírcu lo e a va n ça ra m con tra n ós . Nã o h a via m u itos de n os s o gru po pa ra b r iga r , por is s o recu a m os pa ra a por ta . Qu a n do ch ega m os à es ca da , u m ra pa gã o a r rem eteu con tra m im com u m a fa ca . Ele er rou o golpe, m a s a fa ca cor tou m eu pa letó. Qu a n do ele t ropeçou devido à violên cia do golpe fru s t ra do, a t in gi-o n a n u ca e ch u tei-o pelos degra u s de con creto a ba ixo. Dois ou tros pu la ra m s obre m im . Ma n n ie pu xou o m eu pa letó e n ós com eça m os a correr . “Vamos”, gr itei. “Vou procurar os Ma u -Ma u s , e volta m os pa ra in cen d ia r es te lugar.”

Os ra pa zes olh a ra m u m pa ra o ou tro. Nã o s abiam qu e eu era Ma u -Ma u , pois es ta va ves t ido de pa letó e gravata, naquela noite. Começaram a recuar para a sala, e Mannie e eu viramo-nos e saímos.

No dia seguinte chamei Mannie e Paco. Estávamos a trá s de Sa n to, o Ph a n tom Lord qu e h a via a m ea ça do o irm ã o da lou ra . Ma n n ie e eu h a vía m os beb ido, e estávamos quase bêbedos. Fomos até a Loja de Doces da Ru a Três , e vi a lgu n s Ph a n tom Lords . “Qu a l de vocês é Santo?” perguntei. Um dos rapazes deu uma olhadela na d ireçã o de u m ra pa z a lto de ca belo a n ela do. Eu d is s e: “Ei, garotão, qual é o seu nome? Santo do Dia?”

Mannie riu, e o rapaz olhou para mim e me xingou de um palavrão.

“Olh e, m en in o”, d is s e eu , “es tá s en do bobo. Sa be quem são os Mau-Maus?”

“Sim , ou vi fa la r deles . E les s ã o s a b idos dem a is para ficar vadiando por aqui.”

“Hoje eles es tã o a qu i, ca ra . Aqu i es tã o os Ma u -Ma u s . Meu n om e é Nicky. Sou o p res iden te. Você va i lembrar este nome o resto da vida, moleque.”

O don o da loja es ten deu a m ã o pa ra o telefon e. Pus a mão no bolso e espetei o dedo contra o forro, como s e t ives s e u m revólver n o bols o. “Você a í!” gr itei, “largue isso!”

Os ou tros fica ra m com m edo e recu a ra m . En -caminhei-m e pa ra Sa n to e dei-lh e dois ta pa s n o ros to. Con s erva va a in da a ou tra m ã o n o bols o: “Qu em s a be s e você agora vai lembrar de mim, cara.” Ele vacilou, e eu o golpeei n o es tôm a go. “Vamos”, d is s e eu a Pa co, “vamos s a ir da qu i. Es s es ca ra s es tã o com m edo.” Vira m o-n os e começa m os a s a ir ; cu s p i por s ob re o om bro. “Da p róxi-ma vez, diga à sua mamãe para não se esquecer de pôr a fra lda em vocês , a n tes de deixá -los sair. Vocês ainda são nenês.” Rim os u m pa ra o ou tro e s a ím os . Qu a n d o ch ega m os à ru a , Ma n n ie colocou a m ã o n o bols o do pa letó e a pon tou o dedo a t ra vés do tecido: “Ba n g! ba n g! ba n g! Você es tá m or to!” gr itou ele. Rim os e des cem os bamboleando rua abaixo.

Na qu ela n oite Is ra el foi à m in h a ca s a e d is s e qu e os Ph a n tom Lords es ta va m s e p repa ra n do pa ra u m grande “quebra-pau”. por ca u s a da b r iga da con feitaria. Israel e eu passamos na casa de Mannie para apanhá-lo, e d ir igim o-n os pa ra os dom ín ios dos Ph a n tom Lords , a fim de s u rp reen dê-los a n tecipa da m en te. Qu a n do ch ega m os per to da pon te de Brook lin , s epa ra m o-nos. Is ra el e Ma n n ie rodea ra m o qu a rteirão, e eu des ci d ireta m en te pela ru a . Pou cos in s ta n tes depois , ou vi Is ra el gr ita r e s a í corren do a toda , rod ea n do o ed ifício. Eles h a via m s u rp reen d ido u m Ph a n tom Lord s ozin h o, e tinham-no deitado na calçada, pedindo misericórdia.

“Tira a ca lça dele”, orden ei. Os ra pa zes des a fi-vela ra m o cin to e t ira ra m -lh e a ca lça . J oga ra m -n a n a sarjeta de água suja, e depois rasgaram sua cueca.

“De pé, a bor to, e com ece a correr .” Obs erva m o-lo en qu a n to ele corr ia a ter ror iza do, ru a a ba ixo. Ficamos rindo e gritando nomes.

“Vamos”, d is s e Is ra el, “n en h u m da qu eles m a lo-qu eiros es tá por a qu i. Va m os volta r pa ra ca s a .” Co-m eça m os a volta r , qu a n do repen t in a m en te fom os rodea dos por u m a tu rm a de doze ou qu in ze Ph a n tom Lords . Era u m a em bos ca da . Recon h eci a lgu n s m em bros de u m a ga n g de ju deu s com eles . Um ra pa z a va n çou pa ra m im com u m a fa ca , e eu o fer i com u m ca n o de fer ro. Ou tro a r rem eteu com ím peto con tra m im ; dei u m a guinada e golpeei-o no lado da cabeça com o cano.

Foi en tã o qu e eu s en t i u m a exp los ã o n a n u ca , e ca í n a ca lça da . Min h a ca beça pa recia qu e ia es tou rar. Ten tei olh a r pa ra cim a , porém u m deles ch u tou-m e o ros to com u m s a pa to de ch a p in h a . Ou tro ch u tou -me n a s cos ta s , à a ltu ra da cin tu ra . Ten tei leva n ta r -m e, m a s fu i a t in gido a cim a dos olh os , com u m ca n o. Eu s a b ia qu e eles ir ia m m a ta r -m e, s e eu n ã o fu gis s e, m a s n ã o con s egu ia leva n ta r -m e. Ca í de volta n a ca lça da , de b ru ços , e s en t i qu e o ra pa z qu e t in h a ch a p in h a s n o s a pa to pu lou n a s m in h a s pern a s e depois s a pa teou s obre a s m in h a s cos ta s . As ch a p in h a s era m a fia da s com o giletes . Sen t i o a ço a fia do ra s ga n do m in h a ca lça e afundando-s e n a ca rn e de m in h a s coxa s e n á dega s . Desmaiei de dor

A p r im eira cois a de qu e m e lem bro a s egu ir , é de Is ra el e Ma n n ie a r ra s ta n do-m e por u m beco. Eu s a b ia qu e es ta va m u ito fer ido, porqu e n ã o era capaz de firm a r a s pern a s . “Va m os , corra !” con t in u a va m a d izer . “Aqu eles ba s ta rdos vã o es ta r de volta n u m m in u to. Precisamos nos raspar “

Des m a iei de dor ou tra vez, e, qu a n do recu perei os s en t idos , es ta va n o ch ã o de m eu a pa r ta m en to. Eles haviam-m e a r ra s ta do o ca m in h o todo, a té em ca s a , e s u b ido os t rês la n ces de es ca da , leva n do-m e a té m eu

qu a r to. Ha via m -m e a ju da do a deita r n a ca m a , on de eu des m a ia ra de n ovo. O s ol for te jor ra va a tra vés da ja n ela , qu a n do a cordei e a r ra s tei-m e pa ra fora da ca m a . Es ta va tão dolorido que mal podia mover-me. A parte inferior do m eu corpo es ta va cober ta de s a n gu e coa gu la do. Ten tei t ira r a s ca lça s , m a s o s a n gu e cola ra o tecido à m in h a ca rn e, e eu s en t i qu e es ta va ra s ga n do a pele, a o t irá -la. Des ci ca m ba lea n te u m la n ce de es ca da s , a té o ba n h eiro e fiqu ei deba ixo do ch u veiro, de rou pa e tu do, a té qu e o s a n gu e a m oleceu e pu de a fa s ta r a rou pa da s fer ida s . Min h a s cos ta s e qu a dr is era m u m a verda deira m a s s a d e cor tes p rofu n dos e ch a ga s h orr íveis . Voltei ca m ba lea n te, s u b i n u a s es ca da s , lembrando-m e do ra pa z qu e correra de nós, sem calças.

“Puxa”, pen s ei, “s e ele pu des s e m e ver a gora ...” Arrastei-m e a té o qu a r to e pa s s ei o res to do d ia fa zen do cu ra t ivos n os m eu s cor tes . Ser p res iden te dos Ma u -Ma u s era bom , m a s h a via cer ta s h ora s em qu e pod ia significar a morte. Desta vez ela chegara bem perto.

Capítulo 6

OO IINNFF EE RR NNOO

NAQUELE OUTONO, LUÍS, m eu irm ã o qu e vivia em Bron x, foi a o m eu a pa r ta m en to ped ir -m e pa ra ir m ora r com ele. Ele lera n os jorn a is de Nova York qu e eu es t ivera en volvido com a polícia. “Nicky, você es tá corren do r is co de vida . Es tá fa zen do u m jogo per igos o. Va i a ca ba r s en do a s s a s s inado.” Dis s e qu e t in h a con vers a do s obre m im com a es pos a , e a m bos des eja va m qu e eu fos s e pa ra o a p a r ta m en to deles . Minha resposta foi uma risada.

“Por qu e vocês qu erem qu e eu m u de pa ra lá ?” perguntei. “Nin gu ém m a is m e qu er , com o vocês de-cidiram que me querem?”

“Es tá er ra do, Nicky”, res pon deu Lu ís , “todos qu erem os você. Fra n k , Gen e, todos n ós qu erem os você. Mas é preciso que sossegue.”

“Escute”, d is s e eu , “n in gu ém m e qu er . Você é m es m o u m ta pea dor . Nem você, n em Fra n k , n em Gen e, nem papai, nem mamãe...”

“Es pere a í”, in ter rom peu Lu ís , “pa pa i e m a m ã e amam você.”

“Ah , é? En tã o por qu e foi qu e eles m e m a n da ram embora de casa? Como explica isso, espertalhão?”

“Eles m a n da ra m você pa ra cá porqu e n ã o podiam com a s u a vida . Você é com o u m s elva gem ... com o s e estivesse fugindo de alguma coisa, o tempo todo.”

“Você a ch a ? Ta lvez eu es tou m es m o fu gin do de vocês , s eu s va ga bu n dos . Es cu te, s a be qu a n ta s vezes n a vida pa pa i con vers ou com igo? Um a . Só u m a vez n a vida ele s en tou e t ivem os u m a con vers a . Con tou -m e en tã o u m a es tór ia s ob re u m pa s s a r in h o es tú p ido. Um a vez s ó! Na da m a is . Ra pa z, n ã o vem m e d izer qu e ele m e a m a . Ele n ã o t in h a tem po pa ra ga s ta r com n in gu ém , a n ã o ser consigo mesmo.”

Luís levantou-se e começou a andar pelo quarto.

“Nicky, s erá qu e você n ã o pode ou vir a voz da razão?”

“Por qu e ten h o de ir pa ra s u a ca s a ? Você qu er m e mandar de novo para a escola, como Frank queria . Aqui eu m e rea lizei. Ten h o du zen tos a m igos qu e fa zem o qu e eu m a n do, e s eten ta e cin co ga rota s qu e es tã o com igo s em pre qu e eu peço. Eles m e dã o todo o d in h eiro qu e p recis o. Aju da m -m e a pa ga r o a lu gu el. Até a polícia tem m edo de m im . Por qu e eu h a ver ia de ir pa ra a s u a ca s a ,

m ora r com você? A ga n g é a m in h a fa m ília . É s ó o qu e preciso.”

Luís ficou sentado à beira da cama, durante muito tem po, n oite a den tro, ten ta n do m e con ven cer qu e u m d ia tu do a qu ilo ir ia m u da r . Dis s e qu e, s e eu n ã o fos s e m or to ou joga do n o cá rcere, u m d ia eu p recisaria arra n ja r u m em prego e ter ia n eces s ida de de in s t ru çã o. Eu lh e d is s e qu e n ã o pen s a s s e m a is n o a s s u n to. Tu d o m e corr ia bem , e eu n ã o es ta va d is pos to a a ba n don a r aquela posição cômoda.

Sozinho no quarto, na tarde seguinte, o medo, que tã o bem con s egu ira d is s im u la r , tom ou con ta de m im . Recos tei n a ca m a , e beb i vin h o a té fica r tã o em bria ga d o e ton to qu e n ã o con s egu ia fica r s en ta do. Aqu ela n oite dorm i de rou pa , porém n ã o es ta va p repa ra do pa ra a exper iên cia qu e pa s s ei — pes a delos ! pes a delos h orr íveis , de gela r o s a n gu e! Son h ei com pa pa i. Son h ei qu e ele es ta va a corren ta do em u m a ca vern a . Seu s den tes era m com o os de u m lobo, e o s eu corpo es ta va cober to por u m pelo s a rn en to Ele es ta va la t in do qu e da va dó, e eu qu er ia a p roxim a r m e dele e a fa gá -lo, m a s t in h a m edo de que me abocanhasse.

Viera m en tã o os pá s s a ros . A fa ce de Lu ís ia e vin h a à m in h a fren te, pois s e a ch a va m on ta do em u m pá s s a ro, qu e voa va livrem en te pelo céu . Fu i depois rodeado por milhões de pássaros que dilaceravam minha ca rn e e b ica va m -m e os olh os . Ca da vez qu e eu con s egu ia livra r -m e deles , via Lu ís voa n do com o u m a pequ en a m a n ch a n o céu , ca va lga n do u m pá s s a ro qu e voava para uma liberdade desconhecida.

Levantei-m e gr ita n do: “Nã o ten h o m edo. Nã o ten h o m edo “ Ma s qu a n do ca í n o s on o ou tra vez, vi pa pa i a corren ta do n a s t reva s , e os pá s s a ros qu e s e ajuntavam ao meu redor, para me atacar.

O efeito con t in u ou . Por m a is de dois a n os eu t ive m edo de dorm ir . Ca da vez qu e pega va n o s on o, os

s on h os h orr íveis volta va m . Lem bra va -m e de p a pa i e des eja va qu e ele vies s e a Nova York , a fim de a fa s ta r a qu eles dem ôn ios de m im . Eu es ta va pos s u ído de u m s en t im en to de cu lpa e de m edo, e de n oite fica va deita do n a ca m a , lu ta n do con tra o s on o e repet in do indefinidamente: “Va i m a l. Va i m a l. Nã o ten h o s a ída . Nã o ten h o s a ída .” Só a s a t ivida des da qu a dr ilh a m e impediam de enlouquecer completamente .

Os Ma u -Ma u s t in h a m -s e torn a do pa r te da m inha vida . Em bora fôs s em os s u ficien tem en te for tes pa ra s ob reviver s ozin h os , oca s ion a lm en te form á vamos aliança com outra quadrilha. No inverno de 1955 os Hell Bu rn ers , de Willia m s bu rg, p rocu ra ra m -n os pa ra form a r aliança conosco.

A n oite vin h a per to e a lgu n s de n ós es tá va m os reu n idos n o pa rqu e in fa n t il, per to do 67 .° Dis t r ito, pa ra d is cu t ir u m a “guerra” qu e ter ía m os con tra os Bis h ops . Leva n tei os olh os e vi t rês ra pa zes s a in do da s t reva s , encaminhando-s e pa ra n ós . Im ed ia ta m en te coloca m o-n os em gu a rda . Um dos Ma u -Ma u s es gu eirou -s e pela s s om bra s e colocou -s e por t rá s dos t rês qu e já es ta va m quase nos alcançando.

“Ei, o que é que estão querendo?” gritei.

“Es ta m os p rocu ra n do Nicky, o líder dos Ma u -Maus.” Um deles falou pelos outros.

“Bem, o que é que querem com o Nicky?” Eu sabia que podia ser um truque.

“Es cu te, ca ra , n ã o qu erem os ta pea r n in gu ém . Estamos atrapalhados, e precisamos falar com o Nicky.”

Eu con t in u a va des con fia do. “Qu e a t ra pa lh a çã o é essa?” perguntei.

“Meu n om e é Willie Açou gu eiro”, d is s e o ra pa z, s u ficien tem en te per to a gora , pa ra qu e eu pu des s e vê-lo. “Sou o líder dos Hell Burners. Precisamos de ajuda.”

Eu a gora es ta va cer to de qu em s e t ra tava: “Que tipo de ajuda?”

“Vocês ou vira m fa la r do qu e os Ph a n tom Lords fizeram com o Ike?” apontou com a cabeça o rapaz à sua direita.

Eu t in h a ou vido. Toda a h is tór ia t in h a s ido pu -b lica da n os jorn a is . Ike t in h a qu a torze a n os , e m orava n a Ru a Kea p . Es ta va b r in ca n do com dois m eninos, qu a n do u m a tu rm a de Ph a n tom Lords os a ta ca ra . Os ou tros con s egu ira m fu gir , m a s Ike foi cerca do e empurrado contra uma cerca. Quando ele tentou reagir, foi dom in a do e a r ra s ta do pa ra u m porã o, do ou tro la do da ru a . Ali, de a cordo com a repor ta gem dos jorn a is , a m a rra ra m -n o com a s m ã os pa ra a fren te, e lh e dera m s ocos e ch u tes a té qu e perdeu os s en t idos . Depois , der ra m a ra m flu ido pa ra is qu eiro s ob re a s s u a s m ã os , e p u s era m fogo. Ele ca m ba leou a té a ru a , on de ca iu e foi en con tra do por u m a ra d iopa tru lh a qu e passava.

Dei u m a rá p ida olh a dela n o ra pa z qu e Willie Açou gu eiro a p res en ta ra com o Ike. As m ã os e os b ra ços es ta va m cober tos de a ta du ra s , e o s eu ros to es ta va muito ferido.

“Vocês s ã o os ú n icos qu e podem a ju da r . Qu e-rem os s er clu bes irm ã os . Todo m u n do tem m edo dos Mau-Ma u s , e n ós p recis a m os da s u a a ju da pa ra b r iga r com Ph a n tom Lords . Se n ã o vin ga rm os Ike, s om os covardes”, continuou Willie.

As ou tra s qu a dr ilh a s con h ecia m a m in h a repu -ta çã o e a repu ta çã o da ga n g dos Ma u -Ma u s . Nã o era a p r im eira vez qu e a lgu ém n os p rocu ra va , ped in do a ju da . E n ós gos tá va m os , pois is s o n os da va u m a des cu lpa para brigar.

“E se nós não ajudarmos?”

“Va m os perder o n os s o ter r itór io pa ra os Ph a n tom

Lords . On tem à n oite eles já en tra ra m lá e pu s era m fogo em nossa confeitaria.”

“Eles qu eim a ra m a s u a con feita r ia ? Bem , rapaz, eu vou qu eim á -los . Todos eles . Am a n h ã à n oite eu es ta rei n o ter r itór io dos Hell Bu rn ers , e fa rem os p la n os para matar aqueles esnobes.”

No dia seguinte, saí do meu apartamento, logo que es cu receu , e d ir igi-m e pa ra Willia m s bu rg. No ca m in h o, con videi dez m em bros da m in h a qu a dr ilh a . Ao en tra rm os n o ter r itór io dos Hells , s en t im os a ten s ã o n o a r . E les es ta va m com m edo e t in h a m s u b ido a os telh a dos . De repen te, fom os bom ba rdea dos com pedra s e ga r ra fa s . Felizm en te a pon ta r ia deles era pés s im a , e n ós n os en fia m os pela por ta de u m p réd io de a pa r ta m en tos , pa ra es ca pa r à a va la n ch e de ped ra s e vidro que despencava do alto.

Dis s e a os ou tros ra pa zes qu e con t in u a s s em es -con d idos , en qu a n to eu s u b ia pelo p réd io de a pa r ta -mentos, até o último andar. Ali descobri uma escada que subia até o teto, com um alçapão dando para o telhado.

Leva n ta n do u m pou co a ta m pa do a lça pã o, pu de ver os rapazes na parte da frente do telhado, debruçados n a beira da , olh a n do a ru a , lá em ba ixo. Es gu eirei-me s ilen cios a m en te pelo a lça pã o, e m e es con d i a t rá s do tubo de ar.

Deva ga r in h o, a p roxim ei-m e de dois deles , e dei-lh es u m ta pa n o om bro. “Aiiiiii!” gr ita ra m . Os dois qu a s e ca íra m do telh a do. Olh a ra m pa ra t rá s , com os olh os arrega la dos , m ã os a ga rra da s n ervos a m en te a o parapeito, bocas abertas de medo.

“Q-q-q-quem é-é-é- vo-você?” gaguejaram.

“Ei, m eu ch a pa , eu s ou Nick y. Qu em é você? Um a coruja, ou o quê?” Não pude deixar de rir.

“Q-q-quem é Nicky?” gaguejou um deles.

“Va m os , m olequ e, eu s ou o líder dos Ma u -Maus. Es ta m os a qu i pa r .a a ju da r , a m en os qu e n os m a tem p r im eiro. On de es tá o s eu líder? On de es tá Willie Açougueiro?”

Ele es ta va em ou tro telh a do. Leva ra m -m e a té lá . Cerca de qu in ze Hell Bu rn ers a glom era ra m -s e a o n os s o redor, e o resto dos Mau-Maus subiu e juntou-se a nós.

Willie n os con tou com o es ta va m ten ta n do fru s trar a in va s ã o dos Ph a n tom Lords , m a s com o a té en tã o n ã o t in h a m con s egu ido n a da . Na qu ela n oite, tu do es ta va qu ieto, m a s n u n ca s e s a b ia qu a n do a qu a dr ilh a s u rgir ia n a s ru a s , pa ra p icá -los em peda cin h os . A polícia s a b ia qu e es ta va h a ven do u m a gu erra de qu a dr ilh a s , m a s nada podia fazer para impedi-la.

Willie t in h a u m revólver , m a s pelo qu e pu de com preen der , n en h u m dos ou tros ra pa zes t in h a a rma de fogo.

Es cu tei o qu e t in h a m a d izer e depois com ecei a t ra ça r os p la n os pa ra a ba ta lh a . A tu rm a ficou qu ieta enquanto eu falava.

“Vocês es tã o perden do porqu e es tã o n a defen s iva. Es tã o deixa n do qu e eles ven h a m a qu i, e a s s im têm de defen der o s eu p rópr io ter r itór io. A m a n eira de ven cer é ir atrás deles.”

Fiz u m a pa u s a pa ra ca u s a r efeito, e depois con -tinuei: “E nada de armas de fogo.”

“Na da de a rm a s d e fogo? Com o é qu e s e pod e brigar sem revólver?” Houve um movimento entre eles.

“Va m os u s a r a rm a s s ilen cios a s .” Abr i o pa letó e t irei u m a ba ion eta de u n s s es s en ta cen t ím etros , com pleta , com ba in h a . Tirei-a da ba in h a , b ra n d in do-a n o a r . Pu de ou vir a s s ob ios ba ixos dos ra pa zes qu e n os rodeavam.

Eu ga n h a ra s eu res peito e a p rova çã o. Agora ou -

viam-me, ansiosos para ver como é que eu ia liderá-los.

Virei pa ra Willie: “Qu ero cin co dos ra pa zes m a is for tes . Nós va m os es colh er cin co dos n os s os . Am a n h ã à n oite va m os en tra r n o ter r itór io dos Ph a n tom Lords , e con vers a r com os ch efes . Eles n ã o qu erem in im iza de com os Mau-Maus. Digo que agora somos clubes irmãos, e s e eles n ã o deixa rem vocês em pa z, terã o de lu ta r ta m bém com a gen te. Se n ã o qu is erem a cordo, va m os bota r fogo n a con feita r ia deles , s ó pa ra eles fica rem s a ben do qu e es ta m os fa la n do s ér io. O qu e é qu e acham?”

“Sim , s im , m eu ch a pa ”, com eçou a gr ita r a ga n g. “Va m os toca r fogo n a qu eles ba s ta rdos . Va m os a cabar com eles. Vamos mostrar a eles.”

Na ta rde s egu in te fu i com cin co de n os s os ra -pa zes , e n os reu n im os n a con feita r ia da Ru a Wh ite, n o ter r itór io dos Hell Bu rn ers . A con feita r ia fora fech a da des de a b r iga da s qu a dr ilh a s , a lgu n s d ia s a n tes . Cin co dos Hells , in clu s ive Willie, n os en con tra ra m lá . Con vers ei com o geren te, e d is s e qu e s en t ía m os m u ito qu e os Ph a n tom Lords t ives s em depreda do a ca s a , e qu e ir ía m os p roviden cia r pa ra qu e a qu ilo ja m a is a con teces s e de n ovo. Ped i-lh e en tã o pa ra gu a rda r a minha baioneta até que voltássemos

Era m cerca de cin co da ta rde, e u m a ch u va fin a es ta va ca in do n o crepú s cu lo fr io. Sa ím os da li e a t ra ves s a m os a cida de, em d ireçã o à Ru a Três , n o território dos Ph a n tom Lords . Ha via cin co deles n a con feita r ia . E les n os vira m ch ega n do, m a s n ã o pu deram escapar porque tínhamos bloqueado a porta.

Todos en t ra m os de m ã os n o bols o do pa letó, com o s e por tá s s em os revólveres . Dir igi-m e a os ra pa zes qu e t in h a m fica do de pé, por t rá s da m es a . Pergu n tei praguejando: “Quedê o chefe?”

“Freddy é o n os s o líder”, d is s e u m ra pa z de ex-

pressão maldosa, que usava óculos escuros.

“Qual de vocês é Freddy?”

“Eu sou Freddy; que diacho são vocês?” perguntou u m ra pa z de cerca de dezoito a n os , de feições abrutalhadas e cabelo negro e crespo, que deu um passo à frente.

Eu m a n t in h a a in da a m ã o n o bols o, e a gola da capa de chuva levantada atrás.

“Sou Nicky, Pres iden te dos Ma u -Ma u s . J á ou viu fa la r de n ós ? Es te é Willie Açou gu eiro, ch efe dos Hell Bu rn ers . Agora n ós s om os clu bes irm ã os . Qu eremos acabar com a briga.”

“Tá certo, meu chapa”, disse Freddy. “Vamos bater um papo. “

Reunimo-n os a u m ca n to pa ra con vers a r , m a s u m dos Ph a n tom Lords xin gou Willie com u m pa lavrão An tes qu e eu pu des s e m over-m e, Willie t irou a m ã o do bols o e a b r iu u m pu n h a l. Em vez de recu a r , o ra pa z es ten deu o gu a rda -ch u va n a d ireçã o dele. A p on ta de m eta l, a fia da com o u m a a gu lh a , ra s gou a ca pa de ch u va de Willie, es fola n do-lh e o la do, per to da s cos tela s . Imediatamente, u m dos Hell Bu rn ers a ga rrou u m pes a do a çu ca reiro, e a t irou-o n o ra pa z qu e em pu n h a va o gu a rda -ch u va , a t in gindo-o n o om bro e derru ba n do-o por terra.

“Ei ca lm a !” gr itou Freddy, m a s n in gu ém lh e deu a ten çã o. Os ra pa zes la n ça ra m -s e u n s con tra os ou tros . Freddy virou-se para mim: “Manda parar.”

“Ora, manda você. Foi sua turma que começou.”

Foi en tã o qu e a lgo m e a t in giu n a n u ca . Ou vi u m tinido de vidro quebrado, quando uma garrafa espatifou-se contra um espelho por trás do balcão.

Lá fora , u m ca rro da ra d iopa tru lh a pa rou n o m eio

da ru a , com u m ra n gido de freios , lu zes vermelhas p is ca n do. Dois policia is u n iform iza dos s a ltaram, deixa n do a s por ta s do ca r ro a ber ta s , e corren do pa ra a confeitaria, com os cassetetes na mão.

Os ou tros ra pa zes ta m bém os vira m . Com o por u m s in a l, todos voa m os pa ra a por ta e n os es pa lh amos por en tre os ca r ros . Um gu a rda es ta va bem a trá s de m im , m a s eu virei u m a gra n de la ta de lixo n o m eio da ca lça da , reta rda n do-o o s u ficien te pa ra es ca pa r por u m a travessa.

O palco estava montado para um “quebra-pau” em grande escala.

Na n oite s egu in te, m a is de cem Ma u -Ma u s s e reu n ira m n a con feita r ia , n o ter r itór io dos Hells . Willie Açou gu eiro es ta va lá com m a is de cin qü en ta dos s eu s ra pa zes . Ma rch a m os ju n tos pelo m eio da ru a , em direção à confeitaria na zona dos Phantom Lords.

Cor tez, u m dos Ma u -Ma u s , t in h a pa s s a do a s e-m a n a toda “alto” com h eroín a , e n a qu ela n oite es tava lou co pa ra b r iga r . Qu a n do ch ega m os à con feita r ia , ele em pu rrou a por ta e a ga rrou u m Ph a n tom Lord qu e ten tou es ca pa r . Cor tez ten tou golpeá -lo com u m a fa ca , mas errou, e empurrou-o para mim, que vinha atrás.

Eu es ta va r in do. Era a qu ela a p roporçã o em qu e eu gos ta va de b r iga r — cerca de cen to e cin qüenta con tra qu in ze. Com u m peda ço de ca n o de ch u m bo qu e leva va n a m ã o ba t i n o ra pa z qu e ca m ba lea va . Ele gr itou de dor qu a n do o pes a do ca n o o a cer tou n o om bro. En qu a n to ele ca ía n a ca lça da , golpeei-o de n ovo, des ta vez n a n u ca . Ele des pen cou pes a da m en te n o con creto, e o sangue escorreu por um ferimento profundo.

“Va m os gen te”, gr itou a lgu ém, “va m os qu eim a r todo o ter r itór io.” Os ra pa zes es pa lh a ra m -s e. Algu n s en tra ra m n a con feita r ia e ou tros a r rem etera m con tra um salão de bilhar que ficava ao lado. Eu fui levado pela

on da , e vi-m e n a con feita r ia . Ain da es ta va com o ca n o n a m ã o, e ia ba ten do em tu do qu e en con tra va . As ja n ela s já t in h a m s ido qu ebra da s , e p u de ver o geren te en colh ido deba ixo do ba lcã o, p rocu ra n do p roteger-s e. O pes s oa l es ta va com o lou co, qu ebra n do tu do. Algu ém fez tom ba r a vit rola , e eu m e vi s ob re ela , a r reben ta n do-a com o ca n o. Ou tros t in h a m en tra do a t rá s do ba lcã o, e es ta va m a rra n ca n do a s p ra teleira s da pa rede, e qu ebra n do ga rra fa s e p ra tos . Algu ém “limpou” a ca ixa regis t ra dora , e en tã o dois ra pa zes a t ira ra m -n a a t ra vés da vidraça quebrada.

Corr i pa ra a ru a , com o ros to cober to de s a n gue, fer ido por u m es t ilh a ço de vid ro. Corr ia pa ra ba ixo e pa ra cim a , qu ebra n do os pá ra -b r is a s dos ca r ros com o cano.

Cerca de cin qü en ta ra pa zes es ta va m den tro do s a lã o de b ilh a r . Tin h a m vira do toda s a s m es a s de b ilh a r de pern a s pa ra o a r , e qu ebra do todos os ta cos . Agora tinham voltado para a rua e atiravam bolas de bilhar em todas as lojas.

Uma turma de rapazes fez parar um carro no meio da ru a , e s u b ia n ele, pu la n do s obre o teto e o cofre do m otor , a té qu e o ca r ro ficou d is form e. Todos es tavam rindo, gritando e destruindo.

Siren es gem era m qu a n do ca r ros da p olícia con -vergira m de a m ba s a s extrem ida des da ru a . Norm a l-m en te, a qu ilo s er ia u m s in a l pa ra os ra pa zes pa ra rem e fu girem , m a s a feb re de des t ru içã o a s s u m ira o con trole, e já não ligávamos mais.

Um ca rro da ra d iopa tru lh a con s egu iu ch ega r a té o m eio do qu a r teirã o, m a s os t ira s n ã o pu dera m a b r ir a s por ta s do ca r ro, pois os ra pa zes a r rem etera m de todos os la dos , ba ten do n eles com ga rra fa s qu ebra da s , t ijolos e porretes , qu ebra n do os fa róis e des peda ça n do a s ja n ela s . Os policia is , en ja u la dos den tro do veícu lo, ten ta ra m ch a m a r a cen tra l de polícia ped in do a ju da ,

m a s n ós s u b im os em cim a do ca r ro e a r ra n ca m os a a n ten a . Um dos ra pa zes com eçou a da r pon ta pés n a sirene, e ela soltou-se e caiu na rua.

Ma is ca r ros da polícia b reca ra m , os freios ra n -gen do, n o fim do qu a r teirã o. Era a ba dern a . Ma is de cen to e cin qü en ta ra pa zes es ta va m lu ta n do, gr itando, vira n do ca r ros , qu ebra n do vid ros . Policia is aventuraram-s e n o m eio da qu ela m u lt idã o efervescente e ru idos a , b ra n d in do os ca s s etetes . Vi Cor tez lu ta n do contra dois guardas no meio da rua. Corri para ajudá-lo, m a s ou vi es ta m pidos de t iros , e perceb i qu e era h ora de dar o fora.

Espalhamo-n os em toda s a s d ireções . Algu n s dos ra pa zes correra m ru a a ba ixo e en vereda ra m pelas travessas. Outros entraram nos prédios de apartamento, s u b ira m a s es ca da s e es con dera m -s e n os telh a dos . Em qu es tã o de m in u tos a cen a es ta va va zia , e n a da m a is res ta va a lém de todo u m qu a r teirã o des t ru ído. Nen h u m ca rro fica ra in ta cto. A con feita r ia fora com pleta m en te dem olida . O s a lã o de b ilh a r ta m bém . Toda s a s vid ra ça s h a via m s ido qu ebra da s n o ba r do ou tro la do da ru a , e qu a s e todo o u ís qu e fora rou ba do da s p ra teleira s . Algu ém a br ira a por ta de u m ca rro, cor ta ra os a s s en tos , e depois pu s era fogo n o es tofa m en to. Os policia is es ta va m ten ta n do a pa ga r o fogo, m a s o fogo a in da a rd ia , quando fomos embora.

Todos es ca pa ra m , m en os Cor tez e t rês Hells . A lei da s qu a dr ilh a s decla ra va qu e s e o ca ra fos s e p res o, ter ia que “s e vira r s ozin h o”. Se com eça s s e a “cantar” ou a “da r o s erviço”, s er ia pu n ido pela qu a dr ilh a . Ou , s e es t ives s e n a ca deia , a ga n g s e vin ga va n a fa m ília dele. Cor tez foi s en ten cia do a t rês a n os , e os ou tros ta m bém receberam condenação.

Ma s os Ph a n tom Lords n u n ca m a is volta ra m a o território dos Hells.

Capítulo 7

FF IILLHH OO DD EE LLÚÚCCIIFF EE RR

QUANDO O SEGUNDO VERÃO s e a p roxim ou , parecia que o gueto inteiro estava pegando fogo, cheio de ód io e violên cia . As qu a dr ilh a s h a via m d im in u ído a s a t ivida des du ra n te o in vern o, s u rgin do n a p r im a vera com força s m u ito bem orga n iza da s . Du ra n te todo a qu ele in vern o n ós n os ocu pá ra m os , fa zen do revólveres caseiros, roubando armas de fogo, e estocando munição. Eu ga n h ei a repu ta çã o de s er o ch efe de qu a dr ilh a m a is tem ido do Brook lin . Fu i p res o dezoito vezes , e u m a vez n a qu ele in vern o, pa s s ei t r in ta d ia s n a ca deia , a gu a rda n do ju lga m en to. J a m a is , porém , pu dera m provar qualquer acusação.

Com a ch ega da do ca lor , com eça m os a a gir como lou cos ou s elva gen s . Os Dra gon s es ta va m em penhados em ba ta lh a con t ín u a con tra os Viceroys . No d ia p r im eiro de m a io, Min go, p res iden te dos Ch a -p la in s , en trou em u m a con feita r ia , ten do n o b ra ço u m a es p in ga rda de cano serrado.

“Ei ga roto”, d is s e ele, a pon ta n do a es p in ga rda por s ob re o b ra ço, pa ra u m ra pa z s en ta do em u m res erva do. “Você é o Sawgrass?”

“Sou eu, sim. O que é que há?”

Min go n ã o res pon deu . Fez m ira com a es p in garda e apontou para a cabeça dele.

“Ei, ca ra ” d is s e Sa wgra s s r in do a m a relo, en quanto s e pu n h a de pé e recu a va . “Nã o a pon te es s e n egócio para mim. Pode disparar.”

Min go estava “alto” de h eroín a , e con ten ta va -se

em olh á -lo s em qu a lqu er expres s ã o, a o pu xa r o ga tilho. O d is pa ro a t in giu o ra pa z pou co a cim a do n a r iz, e a r ra n cou o a lto da s u a ca beça . O res to do corpo ca iu debatendo-se no chão. Sangue, ossos e grãos de chumbo fora m ch oca r-s e con tra a pa rede qu e lh e fica va por detrás.

Min go virou -s e e s a iu da con feita r ia . Qu a n do a polícia o en con trou , ele des cia a ru a , s egu ra n do a es p in ga rda in dolen tem en te. Gr ita ra m -lh e pa ra qu e pa ra s s e. Em lu ga r de obedecer , virou -s e e a pon tou a a rm a pa ra os gu a rda s . Eles a b r ira m fogo e Min go ca iu na rua crivado de balas.

Con tu do, den tro d e ca da u m de n ós h a via u m Mingo. Era como se toda a cidade tivesse enlouquecido.

Na qu ele verã o decla ra m os gu erra à polícia . Es -crevem os u m a ca r ta pa ra os gu a rda s do 88 º . Dis t r ito e pa ra a Cen tra l de Polícia , a vis a n do qu e es tá va m os em gu erra con tra eles e qu e da qu ela h ora em d ia n te qu a lqu er gu a rda qu e en tra s s e em n os s o ter r itór io era um homem morto.

A polícia dobrou as patrulhas, e geralmente faziam a ron da em gru po de t rês . Is to n ã o n os in t imidava. Su b ía m os n os telh a dos , e a t irá va m os t ijolos , ga r ra fa s e la ta s de lixo n eles . Qu a n do s a ía m pa ra ver qu em es ta va a t ira n do a qu ela s cois a s , n ós a b r ía m os fogo. Nos s a pon ta r ia era pés s im a , e n os s os revólveres de fa b r icação ca s eira era m m u ito im precis os , exceto em d is pa ros à queima-rou pa . Nos s o m a ior s on h o era m a ta r u m guarda.

Um dos n os s os golpes fa vor itos era a t ira r bom bas de ga s olin a , ch a m a da s “coqu etéis Molotov”. Rou -bá va m os ga s olin a de ca r ros qu e fica va m es ta cion ados du ra n te a n oite, e a colocá va m os em ga rra fa s de refr igera n te e de vin h o. Fa zía m os u m pa vio com u m tra po, pú n h a m os fogo e a t irá va m os a ga rra fa n a pa red e de u m ed ifício ou em u m ca rro da polícia . E la exp lod ia

em chamas.

Algu m a s vezes o feit iço vira va -se con tra o feit i-ceiro. Certa tarde Dan Brunson, membro da nossa gang, a cen deu u m “coqu etel Molotov” pa ra a t ira r n a delega cia . O pa vio qu eim ou depres s a dem a is , e a bom ba exp lod iu n a m ã o dele. An tes qu e a lgu ém pu des s e ch ega r a té ele, todo o s eu corpo já es ta va cober to de ga s olin a em ch a m a s . Os gu a rda s correra m e a pa ga ra m a s ch a m a s com a s p rópr ia s m ã os . Um deles ficou gra vem en te qu eim a do a o a ba fa r o fogo. Leva ra m depres s a Da n pa ra o hospital, mas os médicos disseram que só após muitos anos é que ele voltaria ao normal.

Na s em a n a s egu in te, d im in u ím os o r itm o d a s b r iga s , porém , ela s fora m logo rein icia da s com fe-rocidade ainda maior.

Os fer ia dos era m oca s iões excelen tes pa ra os “quebra-paus” da s qu a dr ilh a s . Na Pá s coa , n o Dia d o Tra ba lh o e n o Dia da In depen dên cia gra n de pa r te d a s du zen ta s e oiten ta e cin co ga n gs da cida de reu niam-se em Con ey Is la n d . Todos ia m ves t idos com a s s u a s m elh ores rou pa s , e p rocu ra va m exib ir -s e, o qu e res u lta va em lu ta s ter r íveis , e m u ita s vezes fa tais. Na qu ele 4 de ju lh o — Dia da In depen dên cia dos EUA — os Bis h ops m a ta ra m La rry Stein , u m de n os s os ra pa zes . Ele t in h a s ó t reze a n os de ida de. Cin co deles s u r ra ra m -n o com corren tes de b icicleta a té m a tá -lo; depois , en ter ra ra m s eu corpo n a a reia , deba ixo de u m a pa s s a gem de tá bu a s . Ele s ó foi en con tra do u m a s em a n a mais tarde.

Qu a n do fica m os s a ben do d is s o, n os reu n im os n o porã o da es cola — éra m os qu a s e du zen tos — pa ra u m a assembléia de vingança. A sala estava carregada de ódio. Meta de dos ra pa zes es ta va em bria ga da , e qu er ia s a ir naquela noite e queimar os prédios de apartamentos dos Bis h ops , e pôr fogo n a pa r te da Av. Bedford qu e fica va n o ba ir ro de Brook lin . Con tu do, eu con s egu i m a n ter a

ordem , e con corda m os em a s s is t ir a o en ter ro de La rry, n a ta rde s egu in te, e depois reu n irm o-n os ou tra vez, à noite, para traçar os planos de batalha.

Na ta rde s egu in te reu n im o-n os n o cem itér io pa ra o en ter ro. Dois ca r ros pa ra ra m e u m p equ en o gru po d e pes s oa s qu e ch ora va m s a iu deles . Recon h eci a m ã e de La rry, s eu pa i e s eu s qu a tro irm ã os . Os Ma u -Maus estavam va gu ea n do pelo cem itér io, e qu a n do o fu n era l ch egou , todos a va n ça m os — m a is de d u zen tos ra pa zes e ga rota s , a m a ior ia ves t ida de b lu s ões n egros com u m duplo M escarlate nas costas.

Dirigi-m e à Sen h ora Stein pa ra fa la r com ela . Ela m e viu ch ega n do e gr itou : “Tirem es s es m on s tros da qu i! Levem es s es d ia bos !” Ela voltou -s e e com eçou a a n da r em direção ao carro, cambaleando, mas desmaiou e caiu n a gra m a . O m a r ido cu rvou -s e s ob re ela , e os filh os ficaram estáticos de terror, olhando nossa quadrilha que s e es gu eira va por en tre os tú m u los , a p roxim a n do-s e da cova.

O pa i de La rry olh ou pa ra m im e a m a ld içoou -me: “Você é o culpado. Se não fosse você e sua gang imunda, La rry es ta r ia vivo h oje.” Com eçou a a p roxim a r-s e de m im , d is pa ra n do ch is pa s de ód io pelos olh os , m a s o a dm in is t ra dor do cem itér io a ga rrou-o pelo b ra ço, puxando-o para trás.

“Por favor, espere do outro lado da cova”, disse-me o administrador. “Colabore conosco, certo?”

Fiz o qu e ped ia e a fa s ta m o-n os do tú m u lo, en -qu a n to eles rea n im a va m a Sra . Stein e con t in u a va m a cerimônia fúnebre.

Na qu ela n oite t ivem os a s egu n da reu n iã o. Des ta vez n a da h a ver ia de n os s egu ra r . Fica m os s a ben do n a ta rde do m es m o d ia , qu e os GGI h a via m m a ta do u m dos Bis h ops , e qu e o fu n era l s er ia rea liza do n o d ia s egu in te. Os ra pa zes qu er ia m a ca ba r com o fu n era l a t ira n do

bom ba s dos ed ifícios A in ten s a lea lda de da qu a dr ilh a , em vin ga r o s eu pa rceiro m or to, era es pa n tos a . Todos fervia m de ód io, e fin a lm en te n ã o pod ia m m a is con tê-lo. Ma n n ie foi qu em gr itou qu e já ia pa ra a a gên cia funerária , on de o corpo do ra pa z dos Bis h ops a gu a rda va a h ora do en ter ro. “Va m os pôr fogo n a qu ela ba iú ca ”, gr itou ele. “Se es pera rm os a té a m a n h ã , s erá ta rd e demais. Vamos agora.”

“Sim , s im , va m os ”, gr ita ra m em coro. Ma is de qu in ze deles con vergira m em d ireçã o a o pequ en o s a lão da em pres a fu n erá r ia , res erva do a os n egros ; tom ba ra m caixões e rasgaram as cortinas com facas.

O en ter ro foi rea liza do n o d ia s egu in te s ob for te escolta policial, mas nós nos sentimos vingados.

Os tu m u ltos n a s ru a s era m s u pera dos a pen a s pelos pes a delos de violên cia qu e fervilh a va m em m eu cora çã o. Eu era u m a n im a l s em con s ciên cia , m ora l, ra zã o, e s em qu a lqu er s en s o do qu e era cer to ou errado. A qu a dr ilh a m e s u s ten ta va com o p rodu to dos s eu s rou bos n otu rn os , e Fra n k m e a ju da va u m pou co. Ma s eu p refer ia ob ter o de qu e p recis a va por m eu s p rópr ios meios.

Na p r im a vera de 1 957 , Fra n k veio ver -m e e d is se qu e m a m ã e e pa pa i vin h a m de Por to Rico pa ra vis ita r -n os . Ele qu er ia qu e eu fos s e a o s eu a pa r ta m en to n a n oite s egu in te, pa ra vê-los . Recu s ei-m e. Eu n ã o p recis a va deles . E les m e h a via m rejeita do, e eu a gora não queria qualquer contato com eles.

Na n oite s egu in te, Fra n k t rou xe pa pa i a o m eu qu a r to. Ma m ã e n ã o a pa receu , já qu e eu n ã o qu is era vê-la.

Pa pa i ficou de pé à por ta , por m u ito tem po, olhando para mim, que estava sentado à beira da cama

“Fra n k m e con tou tu do s obre você”, d is s e ele, leva n ta n do a voz, a té fa la r qu a s e a os gr itos qu a n do

terminou. “Ele d is s e qu e você é a gora ch efe de u m a quadrilha e que a polícia está procurando-o. É verdade?”

Nã o res pon d i, m a s virei-m e pa ra Fra n k , qu e es -ta va de pé a o la do d o velh o, e ros n ei: “Qu e d ia bo a n dou fa la n do pa ra ele? Eu te d is s e pa ra n ã o vir a qu i com eles.”

“Contei-lh e a verd a de, Nicky”, d is s e Fra n k ca l-mamente.

“Ta lvez já s eja h ora de você ta m bém en fren ta r a verdade.”

“Ele tem u m dem ôn io”, d is s e pa pa i, en ca ra n do-me s em p is ca r os olh os . “Ele es tá pos s es s o. Precis o liber tá -lo.”

Olh ei pa ra pa pa i e r i n ervos a m en te: “No a n o pa s s a do eu pen s ei qu e t in h a u m dem ôn io. Ma s a gora até os demônios têm medo de mim.”

Papai a t ra ves s ou o qu a r to e colocou s u a pes a da m ã o em m eu om bro. Em pu rrou -m e com força , a té qu e fu i ob r iga do a a joelh a r-m e por ter ra . Dom in ou -m e em toda a s u a a ltu ra , s u a s m ã os en orm es p ren den do-me como correntes.

“Sin to cin co es p ír itos m a u s n ele”, d is s e pa pa i. Fez s in a l pa ra qu e Fra n k a ga rra s s e m eu s b ra ços e os leva n ta s s e a cim a da m in h a ca beça . Lu tei pa ra libertar-m e, m a s eles era m for tes dem a is pa ra m im . “Cinco demônios!” ca n tou pa pa i, “é por is s o qu e ele é delinqüente! Hoje nós vamos curá-lo.”

Cru za n do a s m ã os s ob re a m in h a ca beça , exerceu gra n de p res s ã o, a per ta n do pa ra ba ixo, e torcen do a s m ã os , com o s e es t ives s e ten ta n do a b r ir a ta m pa de u m recipiente.

“Sa i! Sa i!”, gr ita va ele, “eu orden o qu e vocês saiam.” Papai estava falando com os demônios da minha mente.

Deu-m e, en tã o, ta pa s com a s du a s m ã os em a m -bos os la dos da ca beça , s ob re a s orelh a s , repet ida s vezes . Es ta va gr ita n do com os dem ôn ios pa ra qu e saíssem de meus ouvidos.

Fra n k con t in u ou s egu ra n do m eu s b ra ços a cim a da ca beça , e pa pa i colocou s u a s m ã os im en s a s a o redor do meu pescoço, e começou a me estrangular.

“Há u m dem ôn io n a s u a lín gu a . Sa i, dem ôn io, sai.” Depois gritou: “Pronto. Ele já está saindo.”

“O s eu cora çã o ta m bém es tá n egro”, d is s e ele, e deu-m e vá r ios s ocos n o peito, qu e a té pen s ei qu e minhas costelas iriam partir-se.

Fin a lm en te, ele m e a ga rrou pela cin tu ra e m e colocou de pé, da n do-m e ta pa s n a s vir ilh a s e ordenando aos espíritos maus que saíssem das minhas entranhas.

Afin a l ele m e s oltou e Fra n k a fa s tou -s e d izen do : “Ele te fez u m gra n de fa vor , Nicky. Você tem s ido m u ito mau, mas papai te purificou.”

Pa pa i es ta va de pé n o m eio do qu a r to, t rem en do com o va ra verde. Eu d is s e u m pa la vrã o e s a í com o u m pé-de-ven to pela por ta a fora , corren do pela s es ca da s , em d ireçã o à ru a . Du a s h ora s depois en con trei u m m a r in h eiro bêbedo, dorm in do em u m ba n co n a Pra ça Wa s h in gton . Virei-o de la do e rou bei-lh e a ca r teira . Se pa pa i t in h a expu ls a do os dem ôn ios de m im , n ã o dem orou m u ito tem po pa ra qu e eles volta s s em . Eu ainda era filho de Lúcifer.

Os pes a delos fica ra m p iores . A vis ita de m eu p a i pa receu a u m en ta r o m eu m edo do fu tu ro. Noite a pós n oite rola va pela ca m a gr ita n do, a o a corda r de u m pes a delo a pós ou tro. Redobrei m in h a s b r iga s fren ét ica s , ten ta n do en cobr ir o m edo qu e m e con s u m ia interiormente.

Naquele verã o n os s a lu ta con tra a polícia tornou-

s e a in da m a is in ten s a . Toda s a s n oites ficá va m os n os telh a dos , es pera n do qu e os gu a rda s pa s s a s s em por ba ixo. Derru bá va m os s a cos de a reia , a t irávamos ga rra fa s e ped ra s n eles — m a s p recis á va m os de a rm a s de fogo, principalmente de rifles, e isto custava dinheiro.

Tive u m a idéia , pa ra rea liza r u m rou bo fá cil. Eu t in h a n ota do qu e todo s á ba do, à s t rês da m adrugada, u m h om em ch ega va em u m gra n de ca r ro p reto, dirigindo-s e pa ra u m dos a p a r ta m en tos . Os ra p a zes já havia m obs erva do is s o, e con tá va m os m u ita s p ia da s s ob re o ca s o. Sa b ía m os qu e ele vin h a da cida de de J ers ey, e qu e es pera va s em pre qu e Má r io Silvér io s a ís s e pa ra o t ra ba lh o. Ach á va m os qu e es ta va s e en con tra n d o com a m u lh er de Má r io. Cer ta n oite, a lgu n s dos ra pa zes des a fia ra m a m im e Alber to a es p iá -los . Trepa m os a s s im pela escada de incêndio e vimo-lo entrar no apartamento de Silvério.

Todo s á ba do à s t rês da m a n h ã a con tecia a m esma cois a . Ele es ta cion a va o ca r ro, t ra n ca va a s p or ta s e subia as escadas até o apartamento.

Eu d is s e a Ma n n ie qu e a ch a va qu e s er ia u m tra ba lh in h o fá cil e ele con cordou . Ped im os a Willie Açou gu eiro pa ra t ra zer o s eu revólver , e en con tra r -se conosco às duas da madrugada.

Qu a n do ch ega m os a o p réd io de a pa r ta m en tos , Willie já es ta va por a li, tes ta n do o revólver . E le t irara toda s a s ba la s e coloca ra u m a a o la do da ou tra , n u m degra u da es ca da r ia . Ven do-n os ch ega r , reca r regou a arma e colocou-a no cinto.

Nos s o p la n o era : Willie e Ma n n ie es pera r ia m a trá s do ed ifício. Qu a n do o h om em s a ís s e do ca r ro, eu m e a p roxim a r ia dele e fa r ia u m a pergu n ta . En tã o Willie e Ma n n ie a pa recer ia m , o p r im eiro a pon ta n do a a rm a pa ra o h om em , en qu a n to o revis tá va m os e tom á va m os s eu dinheiro.

O relógio do gra n de ed ifício de Fla tbu s h , n a esquina da Rua Houston, deu três badaladas. Willie quis exa m in a r o revólver de n ovo. Des ta vez d ir igiu-s e a os fu n dos do ed ifício, e voltou den tro de pou cos m in u tos , dizendo que tudo estava pronto.

Ma is ou m en os à s t rês e qu in ze o ca r ro virou a es qu in a e pa rou d efron te a o p réd io. Willie e Ma n n ie esconderam-s e n a s s om bra s . En rolei a ca pa de ch u va em torn o do corpo, e com ecei a a n da r pela ca lça da . O h om em s a iu do ca r ro. Era u m s u jeito gra n da lh ã o, d e cerca de qu a ren ta a n os e u s a va ch a péu e ca s a co d e eleva do p reço. Fech ou o ca r ro cu ida dos a m en te, e começou a andar em direção ao edifício.

As ruas estavam desertas. Só os carros que transi-tavam pela avenida próxima quebravam o silêncio.

Qu a n do m e a p roxim ei, ele a per tou o pa s s o. “Ei, moço”, disse eu, “estou perdido. Pode me dizer onde é a Av. Lafayette ?”

O h om em virou -s e e olh ou em toda s a s d ireções . “Suma, moleque”, disse, “não quero amolação. “

“Olh e, m oço, tu do o qu e eu qu ero s a ber é on de fica a Av. La fa yet te.” Dei u m a r is a da e pu s a m ã o n o bols o da ca pa , com o s e t ives s e u m revólver a pon tado para ele.

“Socorro! La drões !” gr itou o h om em , recu a n do para o carro.

Encostei-me nele : “Cale a boca, ou eu te mato.”

Ele en goliu em s eco, e olh ou -m e in crédu lo. Depois começou a gritar : “Socorro! Socorro!”

Na qu ele m om en to Willie pa s s ou o b ra ço a o redor do s eu pes coço, por t rá s , ba ten do-lh e n o ros to com o ta m bor do revólver : “Se der u m p io, es tá m or to”, fa lou Willie entre dentes.

O h om em ficou du ro, en qu a n to Ma n n ie e eu co-meçávamos a revistá-lo.

No bols o do pa letó en con trei o m a ior m a ço de n ota s qu e já vira . Es ta va m p res a s por u m elá s t ico. Pen s o qu e es ta va leva n do a qu ele d in h eiro pa ra a m u lh er de Mário.

“Ei, olh e, Willie. Qu e ta l ? Es te ca ra é r ico. Pu xa , veja todo este dinheiro.”

Afastei-m e r in do. Tín h a m os a ch a do u m a m in a de ouro. Comecei a caçoar dele : “Ei, cara, se eu deixar você dorm ir com a m in h a velh a , você m e da rá d in h eiro toda semana ?”

Ma n n ie com eçou a des a fivela r o cin to do h omem. “Qu e ta l, Zé ? Nã o s e im por ta s e t ira rm os s u a ca lça pa ra que todas as senhoritas vejam como você é simpático?”

O h om em r ilh ou os den tes e com eçou a gemer. “Ei, ca ra , n ós es ta m os p res ta n do u m fa vor a você”, d is s e Mannie. “Va m os , va m os t ira r a ca lça com o u m bom menino.”

Abr iu o cin to e o h om em com eçou a gr ita r ou tra vez. “Socorro! Soc...”

Ma s eu pu lei e fech ei-lh e a boca com a m ã o. Ele en ter rou os den tes com força n a pa lm a da m in h a m ã o. Pu lei pa ra t rá s gr ita n do : “Atira n ele, Willie! Fu ra ele ! Ele me mordeu. “

Willie recu ou e com a m ba s a s m ã os a pon tou o revólver pa ra a s cos ta s do h om em e pu xou o gatilho. Ouvi o pino cair, mas nada aconteceu.

Dei u m s oco n o es tôm a go do h om em , com tod a s as forças. Ele dobrou-se, e eu dei-lhe outro soco na fonte com a ou t ra m ã o, m a s s en t i ta n ta dor qu e pen s ei qu e ia desmaiar. Fiquei de lado, rodeando-o : “Atira nele, Willie. Dê-lhe uma lição.”

Willie pu xou o ga t ilh o ou tra vez. Na da a con teceu de n ovo. Ele con t in u ou ten ta n do, m a s o revólver n ã o disparou.

Aga rrei o revólver de Willie, e dei u m a coron h a -da n o ros to do h om em . Hou ve u m ru ído de m eta l ba ten do n o os s o. A ca rn e s e rom peu e eu pu de ver o b ra n co do os s o fa cia l, e o s a n gu e com eça n do a correr . E le es ta va ten ta n do gr ita r qu a n do eu o fer i de n ovo n o a lto da ca beça . Ele ca iu p ros t ra do n a s a r jeta , u m a da s m ã os pendentes sobre o bueiro que havia sob o meio-fio.

Não es pera m os m a is . Lu zes s e a cen d ia m n a s ja -n ela s dos a pa r ta m en tos , e ou vim os a lgu ém gr ita r . Corremos rua abaixo, e atalhamos por uma travessa que ia da r a t rá s da es cola . En qu a n to corr ia , t irei a ca pa e joguei-a em uma lata de lixo.

Separamo-n os n a ru a s egu in te. Corr i pa ra a m i-n h a ru a e s u b i a es ca da a té m eu qu a r to. J á den tro, t ra n qu ei a por ta e fiqu ei n a es cu r idã o a rqu eja n do e rindo, “Isto sim, era vida.”

Acen d i a lu z e olh ei pa ra a m in h a m ã o. Vi cla -ra m en te a s m a rca s dos den tes do h om em n a pa lm a . Lavei-a com um pouco de vinho e enrolei um lenço.

Apaguei a luz e deixei-me cair na cama. As sirenes da polícia gem era m à d is tâ n cia , e eu s orr i pa ra m im mesmo. “Qu e pa cote!” pen s ei, e a pa lpei o bols o, procurando o maço de notas.

E es ta a gora ? Nã o es ta va lá ! Fiqu ei de pé, p ro-cu ra n do fren et ica m en te em todos os bols os . De repente, lem brei. Eu o coloca ra n o bols o da ca pa , n o com eço d a briga. Ah, não ! Eu havia jogado a capa na lata de lixo. E o revólver? O revólver de Willie também se fora. Eu devia tê-lo deixa do ca ir , depois qu e dera a coron h a da n o homem.

Eu n ã o p od ia volta r lá a qu ela h ora . O lu ga r devia es ta r regu rgita n do de gu a rda s . Precis a r ia es pera r a té de

m a n h ã , m a s en tã o o lixeiro ter ia pa s s a do e a ca pa e o dinheiro estariam perdidos.

Ca í n a ca m a , ba ten do com os pu n h os n o colchão. Todo aquele esforço, e nenhum resultado.

Capítulo 8

AA GGAARR GGAALLHH AADD AA DD OO DD IIAABB OO

DURANTE O PERÍODO de dois a n os em qu e fu i líder dos Ma u -Ma u s , dezes s ete pes s oa s fora m m ortas. Fu i p res o m a is vezes do qu e s ou ca pa z de m e lem bra r . Nós vivíamos — todos os componentes das quadrilhas — com o s e n ã o exis t is s e lei. Na da era s a gra do, exceto a n os s a lea lda de u n s pa ra com os ou tros — pr in cipa lm en te os la ços de lea lda de qu e eu s en t ia em relação a Israel e a Mannie.

Cer to d ia Is ra el en trou fu r t iva m en te em m eu qu a r to, n o m eio da n oite, e la n çou u m a pom ba pela por ta . Ficou de fora e deu ga rga lh a da s a o ou vir m eu s gr itos de m edo. Qu a n do ele a b r iu a por ta e a cen deu a lu z, eu es ta va deba ixo da ca m a . Ten tei en cobr ir m eu ter ror , r in do en qu a n to ele a t ira va a pom ba pela ja n ela . Ma s depois qu e ele s e foi, fiqu ei t rem en do n a ca m a , com o s om d e a s a s ru fla n do n os ou vidos . Qu a n do fin a lm en te con s egu i pegar no sono, sonhei que estava caindo. Acordei julgan-do ter ouvido a gargalhada do diabo.

Na m a n h ã s egu in te Is ra el voltou pa ra m e con tar que Mannie fora esfaqueado e estava no hospital. “O que é que há, Nicky ?” disse ele depois de contar como fora a facada, “que cara é essa?”

Nã o pu de res pon der n a h ora . Sen t ia o es tôm a go

em bru lh a do, e o s a n gu e fu gin do de m in h a s fa ces. Ma n n ie e Is ra el era m os ú n icos a m igos qu e eu t in h a . De repen te, via m in h a s egu ra n ça a ba la da , en qu a n to Is ra el me contava que Mannie quase morrera.

Sa cu d i a ca beça : “Es tou bem . É s ó ra iva . Vou vis ita r Ma n n ie e des cobr ir qu em fez is s o. Depois va m os queimar esse cara direitinho.”

Na qu ela ta rde ten tei en tra r n o h os p ita l, m a s h avia dois policia is u n iform iza dos n a por ta . Trepei pela escada de incêndio e bati de leve na janela e Mannie a abriu por den tro. Ele es ta va fra co e m a l pôde a r ra s ta r -s e de volta para o leito.

“Qu em fez is to, ca ra ?” pergu n tei. “Nin gu ém va i bater e esfaquear você sem levar o troco.”

“Fora m os Bis h ops . Eles m e pega ra m s ozin h o, e me acertaram duas vezes: na perna e no lado.”

“Quem foi ?” perguntei. “Você sabe quem fez isso?”

“Sim . Foi a qu ele ca ra ch a m a do J oe. É o n ovo vice-p res iden te deles . Pen s a qu e é o ta l. Qu a n do fu giu d is s e qu e eles volta r ia m pa ra m e m a ta r . É por is s o qu e os tiras estão aí fora.”

“Bem , s ó qu ero qu e você fiqu e bom , m eu ch a pa . E quando sair daqui, vamos agarrar aquele negro sujo.”

Esgueirei-m e de volta pela es ca da de in cên d io e n a qu ela n oite en con trei com Is ra el e Hom er Bela n ch i, n os s o con s elh eiro de gu er ra , pa ra t ra ça r p la n os de vingança. Decidimos fazer um seqüestro.

No d ia s egu in te Hom er rou bou u m ca rro. Es -condem os o b ich o a t rá s de u m velh o a rm a zém du rante duas semanas, até Mannie sair do hospital.

Es tá va m os n a s em a n a a n ter ior a o Na ta l de 1957 , qu a n do en tra m os em a çã o. Hom er foi gu ia n do o ca r ro, e n ós a pa n h a m os Ma n n ie. Ele a in da es ta va u s a n do

ben ga la . Au gie, Pa co e eu fica m os n o ba n co de t rá s . Cru za m os a Ru a St . Edwa rd , depois do Cen tro Ca tólico. Ha via u m ba ile de Na ta l n o Cen tro, n a qu ela n oite, e dois policia is u n iform iza dos es ta va m de gu a rda à por ta . Nã o vim os n en h u m dos Bis h ops por a li; por is s o, continuamos des cen do a ru a , a té a con feita r ia , e es ta cion a m os do la do opos to. Era m qu a s e on ze h ora s da noite; dissemos a Mannie para esperar no carro.

Atra ves s a m os a ru a e en tra m os n a con feita r ia . Ha via vá r ios Bis h ops n a con feita r ia , e eu d is s e: “Ei, tu rm a , n ós es ta m os p rocu ra n do o n os s o a m igo, Vice-Pres iden te dos Bis h ops . Algu ém d is s e qu e ele qu er fa zer u m a cordo, e n ós viem os por ca u s a d is s o. Ele es tá por aqui ?”

“Você es tá fa la n do do J oe ? Es tá lá n o ca n to, beijando a garota”, disse um dos Bishops.

Sa ím os deva ga r e fom os a té on de J oe es ta va , s en ta do n o ch ã o, a o la do de u m a m ocin h a . Ele levantou os olh os e Au gie d is s e : “Bich o, n ós s om os os ta is . Os Mau-Maus. Viemos buscar você.”

J oe ten tou leva n ta r , m a s Au gie pôs o pé s ob re o s eu om bro e em pu rrou -o pa ra t rá s . Nós dois es távamos armados e ele viu que apontávamos para ele.

Com eçou a gr ita r . Au gie t irou o revólver e a pon tou pa ra os ou tros qu e es ta va m n o loca l. “Nã o s e m ova m . Ninguém. O primeiro que mexer é homem morto.”

O proprietário parecia que ia ter um acesso.

“Nã o va m os fa zer n a da com você, velh in h o”, d is s e Augie.

“Fiqu e qu ieto qu e n ós va m os ca ir fora n u m m i-nuto.”

Fa lei com J oe, qu e a in da es ta va s en ta do n o ch ã o, a o la do d a ga rota qu e pa recia h orror iza da : “Ei, pu lh a , você tem duas coisas para escolher: ou vai conosco,

ou n ós o m a ta m os a qu i m es m o. Qu er u m m in u to pa ra pensar ?”

O ra pa z com eçou a ga gu eja r a lgo, e eu d is s e : “Bem, fico alegre por você ter resolvido.”

De u m a r ra n co coloqu ei-o de pé, e s a ím os pela por ta , e Is ra el ficou a pon ta n do o revólver pa ra os ou tros rapazes que ficaram no bar.

“Diga m a os Bis h ops qu e va m os t ra zê-lo de volta depois de m os tra r o qu e a con tece qu a n do a lgu ém põe a m ã o n u m Ma u -Mau”, d is s e Au gie. Fech a m os a por ta a t rá s de n ós e o ob r iga m os a correr ; a t ra ves s a m os a ru a empilhamo-n os n o ca r ro. E le s en tou -s e a t rá s , en tre Au gie e eu , e du ra n te todo o tem po a pon ta m os a s a rm a s pa ra ele. Hom er deu pa r t ida n o ca r ro, e s a ím os em d ireçã o a u m ed ifício a ba n don a do, per to da Pon te d e Manhattan.

Leva m os J oe pa ra den tro, a m a rra n do-o a u m a cadeira, com uma mordaça na boca.

“Ta lvez s u a m or te s eja rá p ida . Ta lvez vá fica r a qu i o res to da vida ”, fa lei zom ba n do. Au gie cu s p iu n o ros to dele e s a ím os ba ten do a por ta a t rá s de n ós . Era m eia -noite.

Só volta m os dois d ia s depois . Qu a n do o fizem os , levam os vin te e cin co Ma u -Ma u s con os co. J oe es tava ca ído de la do, a in da a m a rra do à ca deira . Ten ta ra es ca pa r , m a s fora m u ito bem a m a rra do. Pu s em os a cadeira em pé e acendemos a luz. Ele tinha passado dois d ia s in teiros s em com ida e s em á gu a . O ed ifício es ta va gela do. Ele p is cou de m edo e h orror , qu a n do n os agrupamos ao seu redor.

Chamei Mannie para ficar diante dele.

“Ma n n ie, foi es te qu e te deu u m a fa ca da e a m ea -çou te matar?”

Ma n n ie a p roxim ou -s e m a n ca n do. “Foi ele. Foi ele

mesmo.”

Tirei a m orda ça da boca de J oe. Seu s lá b ios e s u a lín gu a es ta va m in ch a dos e ra ch a dos . Tin h a a ga rga n ta s eca e p rodu ziu ru ídos es qu is itos e ofega n tes , a o ten ta r falar.

“Veja, ele está confessando”, disse eu rindo.

Au gie a ga rrou -o pelos lon gos ca belos e pu xou -lhe a ca beça pa ra t rá s . Ma n n ie s a cu d iu a cin za de s eu ciga rro, e colocou -o per to do pes coço do ra pa z. Os olh os de J oe es ta va m a rrega la dos de m edo, e Ma n n ie r iu a o en cos ta r levem en te a pon ta a ces a do ciga rro n a pele fina. Ele gritou de dor, e Mannie tirou o cigarro.

“Ou tra vez”, d is s e Au gie a Ma n n ie, “ele es fa qu eou você duas vezes.”

Des ta vez Ma n n ie es m a gou va ga ros a m en te o ci-ga rro con tra a boca do ra pa z, força n do-o delibera da -m en te en tre os lá b ios ra ch a dos , qu e ele cer ra va for -tem en te. O qu eixo do ra pa z t rem ia en qu a n to ele corr ia a lín gu a cres ta da pela s fer ida s a verm elh a da s , em u m a déb il ten ta t iva de livra r -s e da cin za e dos fra gm en tos de fumo que se haviam apegado a elas.

“Agora, pessoal, é a vez de vocês”, disse Augie.

Ca da ra pa z qu e es ta va n o p réd io a cen deu u m ci-ga rro, e a va n çou p a ra ele, en qu a n to Au gie o a ga rrava pelo cabelo outra vez, forçando sua cabeça para trás. Ele gr itou de dor e a ga rga n ta p rodu ziu ru ídos es t ra n h os , com o de lixa es frega da em u m a tela . Os ra pa zes chegaram-s e a ele, ca da u m a pa ga n do o ciga rro con tra o s eu ros to e pes coço. Ele gr itou s em pa ra r , a té des m a ia r de dor.

Tira m os a s corda s qu e o p ren d ia m e ele es cor -regou pa ra o s olo, em m eio à s u jeira e teia s de a ranha. Grita n do pa la vrões , os ra pa zes dera m -lh e ch u tes , com os s a pa tos pon tu dos , qu ebra n do-lhe a s cos tela s e o

m a xila r . Foi depois a t ira do n o ca r ro e leva do à con feita r ia qu e h a via n o ter r itór io dos Bis h ops . Au gie es creveu u m a n ota e p ren deu -a com um alfinete às suas costas. “Nin gu ém fere u m Ma u -Ma u e fica s em o t roco.” Pa s s a m os va ga ros a m en te pela con feita r ia , e rola m os o s eu corpo in con s cien te pa ra a ru a . Depois , ch is pa m os para longe dali.

No d ia de Na ta l en con trei Ma n n ie n o b a r do Gin o. Es tá va m os s en ta dos em ba n qu eta s d ia n te do ba lcã o, fumando, e rindo do que acontecera na semana anterior.

Leva n tei os olh os e vi cin co Bis h ops a t ra ves s a n do a ru a . Dei u m a olh a dela em volta : em bora es t ivéssemos n o cen tro do terr itór io dos Ma u -Ma u s , es távamos s ozin h os . Cu tu qu ei Ma n n ie : “Bis h ops , m eu ch a pa . Vamos nos raspar.”

Ma s era ta rde dem a is . E les n os vira m m ergu lh a r detrá s do ba lcã o pa ra ten ta r s a ir pela por ta la tera l. Tín h a m os a lgu m tem po de va n ta gem s obre eles , e correm os por ta a fora , a t ra ves s a m os a ru a e n os en -fia m os por u m a t ra ves s a Corr ía m os o m a is d ep ressa possível, mas fraco como estava, Mannie foi ficando para trás. Quando viramos a esquina da travessa e saímos na outra rua — eles estavam à nossa frente.

Ba ixei a ca beça e corr i d ireta m en te a t ra vés deles. Peguei-os de s u rp res a com m in h a ou s a d ia , e eles n ã o es ta va m p repa ra dos pa ra o a ta qu e. At in gi u m deles n o es tôm a go, de ca beça , e ele ca iu de cos ta s n a ca lça da . Pu s a m ã o s obre a ca pota de u m ca rro es ta cion a do, e s a ltei s ob re ele, ca in do n o m eio da ru a . Um ca rro d e en trega s vin h a a toda pela ru a , e tocou in s is ten tem en te a bu zin a en qu a n to eu m e s a fa va por pou co. Es pera va qu e Ma n n ie a p roveita s s e a va n ta gem do m eu a ta qu e, e me seguisse.

De repen te, perceb i qu e Ma n n ie n ã o m e s egu ira . Olh ei pa ra t rá s . Nen h u m d os Bis h ops es ta va m e s e-gu in do. Pa rei de correr e voltei pela ru a , pa ra ver o qu e

t in h a a con tecido. Na en tra da da t ra ves s a vi qu e os cin co t in h a m cerca do Ma n n ie, a per ta n do-o con tra o m u ro, e davam-lhe socos e chutes no estômago e na virilha.

Algo b r ilh ou por u m in s ta n te, e perceb i qu e era o reflexo da lu z do s ol n a lâ m in a de u m a fa ca . Corr i pa ra eles , p rocu ra n do t ira r a p res s a da m en te a m in h a fa ca do bols o, e gr ita n do: “Ba s ta rdos ! La rgu em dele Vou m a ta r vocês.”

Era , porém , m u ito ta rde. Vi o ra pa z qu e es tava com a fa ca leva n ta r o b ra ço, e n u m golpe des leal, abaixá-lo em d ireçã o à cos tela de Ma n n ie, com gra n de força . Es te gem eu e vi-o ereto con tra o m u ro por u m cu r to m om en to; depois com eçou a ca ir de ros to n o con creto. En qu a n to ca ía , o ra pa z, m a ldos amente enterrou a faca outra vez no seu peito.

Eu t in h a pa ra do n o m eio-fio. Nã o a cred ita va qu e eles ten ta r ia m m a tá -lo. Fiqu ei com o lou co. Corr i pa ra o gru po b ra n d in do a fa ca e da n do s ocos com a ou tra m ã o. Eles es pa lh a ra m -s e e correra m em toda s a s d ireções . Ma n n ie ficou ca ído n a ca lça da . O s a n gu e corr ia da boca e do n a r iz, e u m a poça com eçou a form a r-s e a li, com o que vazava de sob o casaco de couro.

Es ta va deita do de b ru ços , m a s t in h a o ros to vira do de la do, e os s eu s olh os m e en ca ra va m ch eios de ter ror . Ten tou fa la r , m a s qu a n do a b r iu a boca , s ó saíram pequenas bolhas de sangue.

Ajoelhei-m e e virei-o de cos ta s . Leva n tei s u a ca -beça e coloqu ei-a em m eu colo, a b ra ça n do-a con tra m eu b lu s ã o de cou ro. Seu s a n gu e m a n ch ou m in h a s ca lça s , e eu o sentia quente e pegajoso em minhas mãos.

Con t in u ou ten ta n do d izer -m e a lgo. Os olh os es -ta va m a rrega la dos de ter ror . Porém , qu a n do a b r iu a boca pa ra fa la r , tu do o qu e pu de ou vir foi u m gorgolejo qu e s u b ia dos pu lm ões . Con t in u ou s olta n do pequ en a s bolhas de sangue com os lábios.

“Mannie, Mannie”, gritei, “não morra, Mannie. Não morra, Mannie.”

Ele a b r iu a boca u m a vez, m u ito pou co, e pu de ou vir u m s om com o de a r es ca pa n do. Pa recia u m pn eu a ca ba n do de s e es va zia r . Su a ca beça rolou em m eu s braços e senti que o seu peito baixava sob a jaqueta.

Olhei para os seus olhos fixos. Estava morto!

“Ma n n ie! Ma n n ie! Ma n n ie!” eu es ta va gritando com toda s a s força s , e m in h a p rópr ia voz s e en ch era do h orror in fin ito da rea lida de qu e eu a ca ba ra de presenciar.

Ouvi vozes rua abaixo. Uma mulher gritou: “O que está acontecendo aí?”

Eu não podia mais ficar ali. Com todas as minhas passagen s pela polícia , eles ten ta r ia m cu lpa r-m e. Nã o h a via ou tra cois a qu e eu p u des s e fa zer n a qu ela h ora . As vozes s e a p roxim a va m . Leva n tei-m e ca m ba lea n do. O corpo in er te de Ma n n ie ca iu pes a da m en te n a calçada. O som cavo de sua cabeça, chocando-se contra o con creto du ro, ecoa va em ca da u m a de m in h a s pa s s a da s , en qu a n to corr ia pela t ra ves s a , a té s a ir n a ru a s egu in te. Em m in h a m en te, a in da es ta va ven do Ma n n ie ca ído n a ca lça da com a fa ce vira da pa ra m im , com a qu eles olh os m or tos , a r rega la dos de ter ror . Eu estava com medo.

Corr i a té ch ega r a o m eu a p a r ta m en to. Ba t i a por ta a t rá s de m im , e t irei o revólver do gu a rda -roupa. Minha respiração saía aos arrancos, e eu me sentei, n a beira da ca m a , t rem en do, com a p is tola a rm a da a pon ta da pa ra a por ta fech a da . Eu es ta va petr ifica do de terror.

Nu n ca vira a m or te tã o de per to — pelo m enos n ã o fa ce a fa ce. E le fora m eu a m igo. Um m in u to a n tes es ta va r in do e fa la n do. No m in u to s egu in te, es ta va deita do n a ru a , com s a n gu e es correndo d a boca ...

Eu não podia agüentar aquilo. Pensara que era valente — qu e n ã o t in h a m edo de n a da . Ma s a m or te era dem a is pa ra m im . Com ecei a s en t ir -m e m a l. Gra n des on da s de n á u s ea m e dom in a ra m , e eu m e es forcei para não vomitar. Queria chorar, mas não conseguia.

Fiqu ei de pé e cor r i em d ireçã o à pa rede. “Não es tou com m edo! Nã o es tou com m edo!” gr itei repetidas vezes.

Pa recia qu e es ta va pos s u ído por dem ôn ios . Olh ei pa ra m in h a s m ã os . Vi o s a n gu e coa gu la do em m in h a pele e s ob a s u n h a s . Aqu ela im a gem , de lá b ios ra ch a dos e olhos arregalados atravessou de novo minha mente.

Com ecei a ba ter a ca beça n a pa rede, gr ita n do: “Nin gu ém pode m e fa zer m a l! Nin gu ém pode m e fa zer mal! Ninguém...”

Exa u s to, ca í ofega n te n o ch ã o. Medo! Terror in fin ito, in defen s á vel, in ven cível, ter r ifica n te! Era com o s e u m pes a delo t ives s e s e torn a do rea lida de. Rolei n o ch ã o du ra n te m u ito tem po, a per ta n do o peito com os b ra ços , gem en do e gr ita n do. As pa redes do qu a r to pa recia m a p roxim a r-s e de m im , à m ed ida qu e o for ro s e afastava . Pa recia es ta r a dez qu ilôm etros de d is tâ n cia . Piqu ei deita do n o fu n do da qu ele retâ n gu lo m in ú s cu lo, olh a n do pa ra cim a , ven do a por ta e a ja n ela qu e pa recia m es ta r a cen ten a s de m etros a cim a de m im . Eu es ta va a per ta do e p res o n o fu n do do qu e era , pa ra m im, com o u m ca n u d in h o de refres co, qu a dra do, qu e t inha dez quilômetros de altura, sem saída.

En tã o, de cim a , u m a n u vem n egra , gros s a e lodos a a pa receu e com eçou a a ch a ta r o ca n u do em m in h a d ireçã o. Eu es ta va s u foca n do. Abr i a boca pa ra gr ita r , m a s n a da s a ía a n ã o s er bolh a s de s a n gu e. Eu estava arranhando a parede, tentando escapar, tentando trepa r . Ma s m eu pes coço in s is t ia em ca ir de la do, e eu s en t i m in h a ca beça ch oca n d o-s e con tra o s olo com u m ru ído com o o da ca beça de Ma n n ie, qu a n do, a o rola r de

meu colo, chocara-se contra a calçada de cimento.

A nuvem negra foi descendo, e eu fiquei deitado de cos ta s , com a s m ã os e os pés es ten d idos pa ra cim a , ten ta n do a fa s tá -la . Era a n u vem da m orte — m orte — m orte... e vin h a bu s ca r-m e. Ou vi o ch ia do s u a ve do a r es ca pa n do dos m eu s pu lm ões qu e s e es va zia va m . Tive n á u s ea s e ten tei gr ita r , m a s s ó s a íra m m a is bolh a s , e en tã o a qu ele gorgolejo ca vo qu e ou vira n o peito d e Ma n n ie, qu a n do o s a n gu e en ch era s eu pu lm ã o e s u b ira pela ga rga n ta . Es cu tei-o em m eu p rópr io peito. En tã o, a nuvem n egra m e en volveu e ou vi u m a ga rga lh a da fa n -ta s m a gór ica ecoa r pela s pa redes da qu ele ca n u do qu a dra do n o fu n do do qu a l eu es ta va . O eco repetiu-se vezes s em con ta . MORTE. .. Mor te .. Morte... Era a gargalhada do Diabo.

Qu a n do a cordei, era d ia . O s ol es ta va ten ta n do pen etra r pela m in h a ja n ela im u n da . Eu a in da es ta va n o ch ã o pa ra lis a do, dolor ido, e en regela do. A p r im eira cois a qu e n otei fora m m in h a s m ã os , a in da cober ta s de s a n gu e endurecido.

Capítulo 9

NNAA FF OOSS SS AA

TRÊS DIAS ANTES DA Pá s coa , eu e m a is t rês d e n os s o gru po es tá va m os n a es qu in a da s Ru a s Au bu rn e St . Edwa rd , defron te à Igreja St . Edwa rd e St . Mich a el. Sa b ía m os qu e os pa d res receb ia m m u ito d in h eiro du ra n te a s m is s a s es pecia is da s em a n a s a n ta , e estávamos planejando entrar na igreja.

Um policia l s a iu do Dis t r ito, a t ra ves s ou a ru a e viu-nos encostados na grade de ferro que rodeia a igreja.

Aproximou-s e de n ós e d is s e: “Ca ia m fora , s eu s por to-r iqu en h os porcos .” Fica m os a li, a b ra ça n do a gra de, contemplando-o com olhos inexpressivos .

O gu a rda repet iu : “Va ga bu n dos , já d is s e qu e ca ia m fora !” Os ou tros ra pa zes s e es p a lh a ra m m a s eu n ã o m e m ovi. O gu a rda olh ou -m e fixa m en te: “Eu d is s e mexa-s e, va ga bu n do; en tã o, vá circu la n do.” Leva n tou o cassetete, como se fosse me bater.

Cu s p i n ele. Bra n d iu o ca s s etete em m in h a d ire-çã o, m a s eu m e ba ixei, e es te foi a t in gir a gra de. In ves t i con tra o policia l, e ele m e a ga rrou pelo pes coço. Era du a s vezes m a ior do qu e eu , m a s eu o m a ta r ia , s e pu des s e. Procu rei a pa n h a r a fa ca , qu a n do perceb i qu e ele a b r iu o cold re e es ta va ten ta n do t ira r o revólver , a o mesmo tempo que gritava, pedindo socorro.

Afastei-m e depres s a e leva n tei a s m ã os . “Eu m e entrego! Eu me entrego!”

Vá r ios policia is der ra m a ra m -s e pela por ta do Distrito, e atravessaram a rua correndo. Agarraram-me e arrastaram-m e pa ra a Delega cia , fa zen do-m e s u b ir os degraus e entrar no prédio.

O gu a rda qu e lu ta ra com igo ba teu com força n o meu rosto. Senti na boca o sangue que saía dos lábios.

“Você é u m va len tã o qu a n do es tá a rm a do, m a s por den tro é u m cova rde com o todo o res to des s es t ira s sujos”, disse eu.

Ele m e ba teu ou tra vez; fin gi qu e des m a ia va e ca í no chão.

“Levante-s e, porco im u n do. Des ta vez va m os a ju s -tar as contas com você.”

En qu a n to eles m e a r ra s ta va m pa ra ou tra s a la , ou vi o s a rgen to es creven te m u rm u ra r : “Ach o qu e es s e ca ra é lou co. Deve fica r p res o a té m ofa r , a n tes qu e m a te alguém.”

Eu já fora p res o m u ita s vezes , m a s eles n u n ca con s egu ira m m e s egu ra r por m u ito tem po. Nin guém tes tem u n h a ra con tra m im , porqu e s a b ia qu e qu a n do eu saísse da ca deia h a ver ia de m a tá -lo, ou os Ma u -Maus matariam para mim.

Des s a vez eles m e leva ra m pa ra o ou t ro la do d a cida de, e coloca ra m -m e em u m a cela . O ca rcereiro deu -m e u m em pu rrã o, qu a n do en trei n a cela . Virei-m e e a r rem et i con tra ele da n do s ocos . O h omem pu xou -me pa ra o corredor , e ou tro gu a rda m e s egu rou , en qu a n to ele me esmurrava à vontade.

“A ú n ica m a n eira de t ra ta r es s es p ... é ba ter n eles a té m a tá -los”, d is s e ele. “Sã o u m a s ú cia de porcos s u jos e fedoren tos . A ca d eia es tá ch eia de n egros , ita lia n os e porto-r iqu en h os . Você é igu a lzin h o a o res to, e s e n ã o en tra r n a lin h a , va i a ca ba r des eja n do qu e es t ives s e morto.”

Empurraram-m e de n ovo pa ra a cela , e eu ca í n o ch ã o du ro, d ir igin do-lh es pa la vrões . “Es tá bom , vagabundo”, d is s e o ca rcereiro a o fech a r a por ta da cela , “por qu e você n ã o s e leva n ta e b r iga con os co a gora ? Você n ã o é tã o du rã o?” Mord i os lá b ios e n ã o res pon d i, mas sabia que iria matá-lo quando saísse.

No d ia s egu in te o ca rcereiro voltou à m in h a cela . Qu a n do a b r iu a por ta , jogu ei-m e de n ovo con tra ele, em pu rra n do-o de volta pa ra o corredor . Ele m e ba teu n a ca beça com o m olh o de ch a ves . Sen t i o s a n gu e correr de um corte no supercílio.

“Va m os , pode ba ter em m im ”, gr itei, “m a s u m d ia vou à s u a ca s a e m a to a s u a m u lh er e s eu s filhos. Espere para ver.”

Eu es ta va s en do a cu s a do a pen a s de u m a pequena contravenção, por ter resistido à prisão e desobedecido à a u tor ida de. Ma s es ta va p iora n do a m in h a p rópr ia s itu a çã o. O ca rcereiro m e deu u m s oco, joga n do-m e de

costas no chão da cela, e fechou a porta.

“Pois bem , ca ch orro, você pode a podrecer a í!” Meu ju lga m en to foi n a s em a n a s egu in te. Fu i a lgem a do e m a rch ei pa ra o t r ibu n a l. Sen tei-m e em u m a ca deira , e um policial começou a ler as acusações.

O ju iz, u m h om em de ros to s evero, de cerca de cin qü en ta a n os , qu e u s a va ócu los s em a ro, d is s e. “Es pere u m m in u to: es te ra pa z já n ã o es teve n o ba n co dos réus?”

“Sim , m er it ís s im o”, res pon deu o policia l, “es ta é a terceira vez qu e ele é t ra zido a o t r ibu n a l. Além d is to, ele tem vin te e u m a p r is ões n a s u a folh a corr ida , e tem s ido a cu s a do de tu do, des de rou bo a té a s s a lto a m ã o a rm a da e tentativa de homicídio.”

O ju iz virou -s e e olh ou pa ra m im : “Quantos anos você tem, rapaz?”

Curvei-me na cadeira e fixei os olhos no chão.

“Levante-s e qu a n do eu fa la r com você!” exp lod iu o juiz.

Fiquei de pé e olhei para ele

“Pergu n tei qu a n tos a n os você tem ”, repet iu ele firmemente

“Dezoito”, respondi.

“Você tem dezoito a n os e já foi p res o vin te e u m a vezes e já com pa receu a o ba n co dos réu s t rês vezes . Por que seus pais não vieram com você?”

“Eles estão em Porto Rico”, respondi.

“Com quem você vive?”

“Com n in gu ém . Nã o p recis o de n in gu ém . Vivo sozinho.”

“Há quanto tempo vive sozinho?”

“Des de qu a n do ch egu ei a Nova York , h á t rês a n os atrás.”

“Meritíssimo”, in ter rom peu o oficia l de ju s t iça , “ele n ã o p res ta . É o p res iden te dos Ma u -Ma u s . É o cen tro d e todos os p rob lem a s qu e tem os t ido n o con ju n to h a b ita cion a l. Nu n ca vim os u m ra pa z tã o m a lva do e in corr igível com o es te. É com o u m a n im a l, e a ú n ica cois a qu e s e pode fa zer com u m ca ch orro lou co é enjaulá-lo. Gos ta r ia de recom en da r , m er it ís s im o, qu e Vossa Exª. o colocasse na prisão até que ele completasse vin te e u m a n os . Qu em s a be s e a té en tã o poder ía m os manter um pouco de ordem em Fort Greene.”

O juiz virou-se e olhou para o oficial de justiça:

“Você d iz qu e ele é com o u m a n im a l, n ã o é? Um cachorro louco, não é assim ?”

“Exa ta m en te, m er it ís s im o. E s e V. Exª ., s oltá-lo, ele matará alguém antes do escurecer.”

“Sim , creio qu e você tem ra zã o”, d is s e o ju iz, olh a n do pa ra m im ou tra vez “Ma s pen s o qu e p re-cis a m os pelo m en os ten ta r des cobr ir o qu e é qu e fa z com qu e ele s eja com o u m a n im a l. Por qu e é tã o dep ra va do? Por qu e odeia , rou ba , b r iga e m a ta ? Cen ten a s de ra pa zes com o ele pa s s a m pelos t r ibu nais todos os dias, e creio que o Estado, tem, por assim dizer, u m a obr iga çã o de ten ta r s a lva r a lgu n s des tes ra pa zes . Nã o a pen a s t ra n cá -los pelo res to de s u a s vida s . Creio qu e bem n o fu n do do cora çã o des te pervers o “cachorro louco” há uma alma que pode ser salva.”

Virou-s e pa ra o oficia l de ju s t iça : “Você a ch a que devemos tentar ?”

“Nã o s ei, m er it ís s im o”, d is s e o policia l. “Estes ra pa zes m a ta ra m t rês policia is n os ú lt im os dois a n os , e t ivem os qu a s e cin qü en ta a s s a s s in a tos n a -qu ele ba ir ro, des de qu e es tou n a qu ela ron da . Só com -preendem a linguagem da força. Estou certo de que.

se V. Exª . s oltá -lo, terem os de p ren dê-lo de n ovo Só que da próxima vez poderá ser por assassinato .”

O juiz lançou os olhos à folha de papel que tinha à sua frente.

“Cru z, n ã o é? Ven h a a qu i, Nicky Cru z, e fiqu e de pé diante da mesa.”

Levantei-m e e fu i a té on de ele es ta va . Sen t i qu e meus joelhos começavam a tremer.

O ju iz d eb ru çou -s e s ob re a m es a e olh ou -me dentro dos olhos.

“Nicky, eu tenho um filho da sua idade. Ele vai à es cola , vive em u m a boa ca s a , em u m ba ir ro a gra dá vel. E le n ã o s e m ete em ba ru lh o. J oga beisebol n o t im e da es cola e tem boa s n ota s . Nã o é u m ca ch orro lou co com o você A ra zã o é qu e tem a lgu ém qu e o a m a . Pa rece eviden te qu e n in gu ém a m a você — e você ta m bém n ã o a m a a n in gu ém Nã o tem ca pa cida de pa ra a m a r . Você es tá d oen te, Nicky, e eu qu ero s a ber o m otivo. Qu ero s a ber o qu e fa z você od ia r ta n to. Você n ã o é n orm a l com o os ou tros ra pa zes . O oficia l tem ra zã o. Você é u m a n im a l. Vive com o u m a n im a l e a ge com o u m a n im a l. Devia t ra tá -lo com o a u m a n im a l, m a s vou ten ta r des cobr ir porqu e você é tã o a n orm a l. Fica rá s ob a cu s tód ia do ps icólogo do t r ibu n a l, o Dr . J oh n Goodm a n . Nã o es tou qu a lifica do pa ra decid ir s e você é ou não um psicopata. Ele vai examiná-lo e dar a decisão final.”

Sacudi a cabeça. Eu não sabia se ele iria me soltar ou deixa r n a cela , m a s com preen d i qu e ele n ã o ia mandar-me para a cadeia, pelo menos por enquanto.

“Ma is u m a cois a , Nicky”, d is s e o J u iz, “s e você a r ra n ja r n ova s en cren ca s , s e eu t iver u m a s ó qu eixa contra você, se fizer qualquer coisa errada, saberei então qu e é com pleta m en te in ca pa z de s egu ir orden s , e a ceita r res pon s a b ilida des , e s erá im ed ia ta m en te en via do pa ra

Elmira, para a colônia agrícola . Compreendeu?”

“Sim , s en h or”, res pon d i. E fiqu ei s u rp res o comigo m es m o. Era a p r im eira vez qu e res pon d ia a a lgu ém dizendo “senhor”. Ma s pa receu -m e a cois a m a is correta a dizer naquele caso.

No d ia s egu in te, logo de m a n h ã , o ps icólogo do tribunal, Dr. John Goodman, entrou em minha cela. Era u m h om en za rrã o de ca belos p rem a tu ra m en te gr is a lh os n a s têm pora s , e u m a p rofu n da cica tr iz n a fa ce. O cola r in h o de s u a ca m is a es ta va ga s to e os s a pa tos s em brilho.

“Fu i en ca rrega do de a com pa n h a r o s eu ca s o”, d is s e ele, s en ta n do-s e n o m eu ca tre e cru za n do a s pernas. “Is to s ign ifica qu e terem os de pa s s a r a lgum tempo juntos.”

“Está certo, grandão, seja como quiser.”

“Es cu te, va ga bu n do, con vers o com vin te s u jeitos com o você todos os d ia s . Veja com o fa la com igo, s en ã o vai ser pior para você.”

Fiqu ei s u rp reen d ido com s eu s m odos ru des , m a s rep liqu ei com a rrogâ n cia : “Qu em s a be qu er receber u m a visita dos Mau-Maus uma noite destas?”

An tes qu e pu des s e m over-m e, o m éd ico h a via m e agarrado pelo colarinho, e quase me levantou do chão.

“Deixe-m e d izer-lh e a lgo, es p ir ro. Pa s s ei qu a tro a n os n a s ga n gs e t rês n os Fu zileiros Na va is , a n tes de ir pa ra a Fa cu lda de. Es tá ven do es ta cica t r iz?” Ele virou a ca beça pa ra qu e eu pu des s e ver a p rofu n da cica tr iz qu e ia da pon ta do s eu qu eixo a té o cola r in h o da ca m is a . “Ga n h ei is to n a s qu a dr ilh a s , m a s n ã o a n tes de ter m a ta do s eis ou tros pu lh a s com u m ta co de beis ebol. Agora , s e qu er ba n ca r o va len te, en con trou o h om em certo.”

Ele m e em pu rrou pa ra t rá s . Tropecei n o ca tre e

caí sentado. Cuspi no chão, mas não falei mais nada.

Su a voz voltou a u m tom n orm a l qu a n do d is s e: “Am a n h ã de m a n h ã ten h o de fa zer u m a via gem à m on ta n h a Bea r . Você pode ir com igo, e en tã o conversaremos.

No d ia s egu in te es t ive s ob o exa m e in form a l do ps icólogo. Sa ím os da cida de e en tra m os n o Es ta do de Nova York. Era a minha primeira viagem fora da selva de a s fa lto, des de qu e ch ega ra de Por to Rico, t rês a n os a n tes . Sen t i u m cer to en tu s ia s m o, m a s perm a n eci amuado e arrogante, quando me fazia perguntas.

Depois de u m a b reve pa ra da n a clín ica , levou-me a o ja rd im zoológico, n o pa rqu e pú b lico. An da m os pelo caminho que passava defronte às jaulas. Parei e observei os a n im a is s elva gen s a n da n do pa ra lá e pa ra cá , detrá s das grades.

“Você gosta de zoológicos, Nicky ?” perguntou ele.

“Detesto”, respondi, dando as costas para as jaulas e descendo caminho abaixo. “Ah, é? Por quê?”

“Odeio es s es b ich os fedoren tos . Sem pre a n da n do para lá e para cá. Sempre querendo sair.”

Sen ta m os em u m ba n co do pa rqu e, e con vers a -m os . O Dr . J oh n t irou a lgu n s ca dern os de u m a pa s ta , e pediu-m e pa ra fa zer a lgu n s des en h os . Ca va los . Va ca s . Casas. Fiz uma casa com uma porta enorme na frente.

“Por qu e colocou u m a por ta tã o gra n de n a ca sa?” perguntou ele.

“Pa ra o es tú p ido ps iqu ia t ra poder en tra r”, res -pondi .

“Não aceito isto. Dê-me outra resposta.”

“Pois bem , pa ra eu poder s a ir dep res s a n o ca s o de alguém estar atrás de mim.”

“Muita gente desenha portas para entrar.”

“Eu não. Estou querendo sair.”

“Agora desenhe uma árvore”, disse ele.

Des en h ei u m a á rvore. Pen s ei, en tã o, qu e n ã o es -tava certo ter uma árvore sem um passarinho, e por isso desenhei um no alto da árvore.

O Dr . Goodm a n olh ou pa ra o des en h o e d is s e: “Você gosta de pássaros, Nicky?”

“Detesto.”

“Você parece que tem ódio de tudo.”

“Sim . Pode s er qu e s im . Ma s detes to pá s s a ros mais do que tudo.”

“Por quê ?” perguntou ele, “por que são livres ?”

Ou vi u m trovã o rola n do s u rda m en te n o céu , à distância.

Aqu ele h om em es ta va com eça n do a m e a m e-d ron ta r com s u a s pergu n ta s . Pegu ei u m lá p is e fiz u m buraco no lugar da figura do pássaro.

“Então esqueça o passarinho. Já está morto.”

“Você pen s a qu e pode livra r -s e de toda s a s cois a s de que tem medo, matando-as, não é?”

“Qu e d ia ch o você pen s a qu e é, s eu ch a r la tã o estúpido?” gritei.

“Pen s a qu e pode m e fa zer des en h a r u m a figu ra estú p ida , fa zer -m e a lgu m a s pergu n ta s boba s , e s aber tu do a m eu res peito? Eu n ã o ten h o m edo de n in gu ém . Todo m u n do tem m edo de m im . Pergu n te a os Bis h ops , eles lh e con ta rã o. Nã o h á n en h u m a qu a dr ilh a de Nova York qu e qu eira en cren ca com os Ma u -Ma u s . Eu n ã o ten h o m edo de n in guém.” Min h a voz s e eleva ra febrilmente, enquanto o enfrentava.

O Dr . J oh n con t in u ou es creven do cois a s em s eu bloco.

“Sente-s e, Nicky”, d is s e ele, leva n ta n do os olh os , “não precisa tentar impressionar-me.”

“Es cu te, ca ra , pa ra de en ch er , s en ã o a ca bo com você “

O r ibom ba r n o h or izon te torn ou -s e m a is for te. Con t in u ei de pé à s u a fren te, t rem en do. Dr . J oh n olh ou pa ra cim a e com eçou a d izer a lgu m a cois a , m a s os p in gos de ch u va com eça ra m a ca ir com força n o ca m in h o, a o n os s o la do. Ele s a cu d iu a ca beça: “É m elh or irm os em bora a n tes qu e fiqu em os m olh a dos ”, disse.

Fech a m os a s por ta s do ca r ro exa ta m en te n o in s ta n te em qu e a p r im eira pa n ca da for te de ch u va s a lp ica va o pá ra -b r is a . O Dr . J oh n ficou s en ta do s ilen cios a m en te du ra n te m u ito tem po, a n tes de da r partida no carro e sair para a estrada.

“Eu n ã o s ei, Nicky”, d is s e ele, “n ã o s ei m es m o.” A via gem de volta foi h orr ível. A ch u va bom ba rd ea va o ca r ro s em com pa ixã o. O Dr . J oh n gu iava s ilen cios a m en te. Eu es ta va perd ido em m eu s pen s a m en tos . Od ia va ter de volta r pa ra a cida de. A idéia de volta r pa ra a ca deia m e a m edron ta va . Era insuportável ficar enjaulado como um animal selvagem

A ch u va pa rou , m a s o s ol já s e es con dera qu a n do pa s s a m os pela s cen ten a s de qu a r teirões de a ltos ed ifícios de a pa r ta m en to en ca rd idos . Eu m e s en t ia com o s e es t ives s e a fu n da n do em u m a fos s a . Gos ta r ia de s a ir e correr . Ma s , em lu ga r de d ir igir-s e a o p res íd io, o Dr . J oh n d im in u iu a m a rch a e en trou n a Av. La fa yet te, em direção ao conjunto habitacional de Fort Greene.

“Nã o va i m e leva r pa ra a ca deia ?” pergu n tei, confuso.

“Não. Tenho direito de trancá-lo ou soltá-lo. Não acho que a cadeia vai lhe trazer nenhum benefício .”

“Boa , m eu ch a pa , a gora você es tá n a m in h a ”, fa lei rindo.

“Nã o, você n ã o com preen de o qu e eu qu ero d izer. Acho que nada pode ajudá-lo!”

“Qu e é is s o, dou tor , a ch a qu e n ã o h á es pera n ça ?” gargalhei.

Ele es ta cion ou o ca r ro n a es qu in a da Av La fayette com Fort Greene.

“Exa ta m en te, Nicky. Ten h o t ra ba lh a do com ra -pa zes com o você du ra n te a n os . Eu vivi n u m gu eto. Ma s é a p r im eira vez qu e vejo a lgu ém tã o du ro, fr io e selvagem como você. Não reagiu a nada que eu lhe disse. Odeia a tu do e a todos , e tem m edo de tu do qu e pos s a ameaçar a sua segurança.”

Abri a porta e saí: “Olhe, doutorzinho, pode ir para o inferno. Não preciso de você nem de ninguém .”

“Nicky”, disse ele, quando eu comecei a afastar-me do ca r ro, “qu ero s er bem cla ro : você es tá con denado. Nã o tem es pera n ça A m en os qu e m u de, es tá n u m a es t ra da qu e o leva rá d ireto à ca deia , à ca deira elét r ica , e ao inferno.”

“Ach a ? Vejo você lá en tã o”, d is s e eu . “Onde?” perguntou.

“No in fern o, m eu ch a pa ”, res pon d i, da n do u m a risada.

Ele s a cu d iu a ca beça e a r ra n cou , perden do-s e em m eio à n oite es cu ra . Ten tei con t in u a r r in do, m a s o s om morreu na minha garganta.

Fiquei pa ra do n a es qu in a com a s m ã os n os bolsos da ca pa . Era m s ete h ora s da n oite, e a s ru a s es ta va m ch eia s de in con tá veis ros tos , pes s oa s de pa s s os a p res s a dos .. a n da n do, a n da n do, a n da n do... Eu m e s en t i com o u m a folh a n o m a r da h u m a n ida de, s en do leva do

pa ra toda s a s d ireções pela s m in h a s p rópr ia s pa ixões in s en s a ta s . Olh ei p a ra o povo. Todo m u n do s e m ovia . Algu n s es ta va m corren do. Es tá va m os em m a io, m a s o ven to era fr io. O ven to fu s t igou m in h a s pern a s e es fr iou -me por dentro.

As pa la vra s do ps icólogo con t in u a ra m s oa n do em m in h a m en te com o u m d is co en gu iça do: “O s eu ú n ico caminho é a cadeia, a cadeira elétrica, e o inferno.”

Eu ja m a is h a via olh a do pa ra m im m es m o, a n tes. Ser ia m en te, n ã o. Gos ta va de olh a r pa ra m im m es m o n o es pelh o. Sem pre fora u m ra pa z a s s ea do, o qu e é u m pou co in com u m pa ra a m a ior ia dos por to-r iqu en h os do m eu ba ir ro. Diferen tem en te de qu a s e todos os ra pa zes da quadrilha, eu me orgulhava da forma como me vestia. Gos ta va de u s a r gra va ta s e ca m is a s color ida s . Sem pre p rocu ra va con s erva r a s ca lça s bem pa s s a da s , e u s a va montes de loção no rosto. Não fumava muito, para evitar o mau hálito produzido pelo cigarro.

Senti-m e, porém , s u jo por den tro, repen t in a m en -te. O Nicky qu e eu via n o es pelh o n ã o era o verda deiro Nicky. E o Nicky qu e eu es ta va ven do a gora era s u jo... imundo... perdido.

Da vit rola a u tom á t ica n o ba r do Pa pa J oh n ou via-s e o s om gr ita n te de u m d is co de m ú s ica popu la r . O t râ n s ito n a ru a era in ten s o: u m ca rro en cos ta do n o pára-ch oqu e do ou tro. As bu zin a s toca va m , a p itos s ilva va m , pes s oa s gr ita va m . Olh ei pa ra os s eu s ros tos in expres s ivos e a n ôn im os . Nin gu ém s orr ia . Todos pa recia m a p res s a dos . Algu n s m en d igos es ta va m em bria ga dos . Na fren te do ba r , a m a ior ia dos s u jeitos es ta va m a con h a da . Aqu ele era o verda deiro Brook lin . Aquele o verdadeiro Nicky...

Com ecei a s u b ir a ru a em d ireçã o a o m eu qu a rto n a For t Green e. Folh a s de jorn a l leva da s pelo ven to agarravam-s e à cerca de fer ro e à s gra des de a ço d ia n te da s loja s . Ha via ga rra fa s qu ebra da s e la ta s de cerveja

va zia s a o lon go da ca lça da . O ch eiro de com ida s ebos a des cia a té a ru a , e eu m e s en t i n a u s ea do. A ca lça d a t rem ia deba ixo dos m eu s pés , qu a n do os t ren s passavam matraqueando rumo às trevas desconhecidas.

Encontrei-m e com u m tra po de velh a . Eu d isse “velha”, mas pelas costas não se podia dizer a sua idade. Ela era ba ixa , m a is ba ixin h a do qu e eu . Tin h a u m len ço p reto en rola do n a ca beça , bem a per ta do. Seu ca belo amarelo-a verm elh a do, t in gido repet ida s vezes , a pa recia n a s beira da s . Ves t ia u m a velh a ja qu eta de lã d e m a r in h eiro, s eis n ú m eros m a ior qu e o ta m a n h o cer to. Su a s pern a s m a gra s , en volta s em ca lça s n egra s , pa recia m pa litos a ba ixo do ca s a co. Ca lça va s a pa tos de homem, sem meias.

Odiei-a. Ela simbolizava toda a sujeira e imundície da m in h a vida . Procu rei a fa ca n o bols o. Des ta vez eu não es ta va b r in ca n do. Fiqu ei im a gin a n do com qu e força p recis a r ia golpeá -la pa ra qu e a lâ m in a a t ra ves s a s s e o ca s a co gros s o e a t in gis s e s u a s cos ta s . Im a gin a r qu e o s a n gu e goteja r ia da ba rra do ca s a co e s e em poça r ia n a rua, deu-me uma sensação pegajosa de calor.

Na qu ele m om en to u m ca ch orr in h o veio corren do ru a a ba ixo em n os s a d ireçã o, e des viou -s e dela . Ela virou-s e e olh ou pa ra ele com olh os va zios e m or t iços . Reconheci-a com o u m a da s p ros t itu ta s deca den tes qu e vivia m n o m eu qu a r teirã o. Pela s u a a pa rên cia , pelos olh os s em icerra dos , in expres s ivos , perceb i qu e es ta va “baratinada”.

Soltei a fa ca , volta n do a pen s a r em m im m es m o, e com ecei a u lt ra pa s s á -la . Ao fa zê-lo, vi s eu s olh os va zios obs erva n do u m ba lã o verm elh o vivo, leva do pelo ven to para o meio da rua.

Um ba lã o. Meu p r im eiro in s t in to foi correr pa ra o meio da rua e pisá-lo. Que ódio senti dele. Era livre.

Repen t in a m en te, u m a gra n d e on da de com pa ixão

m e dom in ou . Iden t ifiqu ei-m e com a qu ela es tú p ida bola flu tu a n te. É es t ra n h o qu e a p r im eira vez em qu e t ive pieda de em toda a m in h a vida , foi por u m ob jeto inanimado sendo levado pelo vento, sem destino.

As s im , em vez de des cer a té o m eio da ru a e estourá-lo, u lt ra pa s s ei a m u lh er e a per tei o pa s s o pa ra acompanhar o balão que voava e saltava pela rua suja.

Parecia es t ra n h a m en te des loca do n a qu ele lu ga r im u n do. Ao s eu redor h a via pa péis e lixo ta m bém s opra dos pelo ven to fr io. Na ca lça da via m -s e ga rra fa s d e vin h o qu ebra da s e la ta s de cerveja a m a s s a da s . De a m bos os la dos da ru a fica va m a s pa redes de con creto e ped ra s n egra s , des bota da s , da p r is ã o in es ca pá vel on de eu m ora va . E a li, n o m eio de tu do a qu ilo, es ta va u m a bola verm elh a , livre, s en do leva da pela s força s in vis íveis do vento.

O qu e h a via n a qu ele es tú p ido ba lã o qu e m e in -teres s a va ? Aper tei a in da m a is o pa s s o pa ra a com panhá-lo. Surpreendi-me desejando que o balão não batesse em u m peda ço de vid ro e es tou ra s s e, em bora s ou bes s e qu e ele n ã o d u ra r ia m u ito. Era m u ito delica do. Mu ito lim po; ten ro e p u ro dem a is pa ra con t in u a r a exis t ir n o m eio daquele inferno.

Prendia a res p ira çã o ca da vez qu e ele s a lta va n o a s fa lto, es pera n do o es tou ro fin a l e in evitá vel, m a s con t in u ou s eu t ra jeto s a lt ita n te pelo m eio da ru a . Fiqu ei pensando: “Pode s er qu e ele con s iga . Pode s er qu e ch egu e a té o fim do qu a r teirã o, e s eja leva do pelo vento, pa ra a p ra ça , livre. Afin a l de con ta s , é pos s ível qu e ele tenha chance de sobreviver .”

Eu es ta va qu a s e reza n do pa ra qu e ta l a con te-ces s e. Porém , a d ep res s ã o voltou qu a n do pen s ei n a p ra ça . Aqu ela p ra ça m a l-ch eiros a e es tú p ida . O qu e a con tecerá s e ele ch ega r a o ja rd im ? E depois ? Nã o h á n a da pa ra ele a li. Será a t ira do, pelo ven to, con tra a cerca en fer ru ja da e exp lod irá . Ou m es m o qu e con s iga

pa s s a r por cim a da cerca e en tre n o gra m a do, ca irá em cim a de a lgu m es p in h o n a gra m a ou n os a rbu s tos , e lá se vai...

“Ou en tã o”, pen s ei com m eu s botões , “m es m o qu e a lgu ém o pegu e, va i levá -lo pa ra o s eu im u n do a pa r ta m en to, on de fica rá a pr is ion a do pa ra o res to da vida . Nã o h á es pera n ça . Nã o h á es pera n ça pa ra ele — nem para mim.”

Su b ita m en te, s em a vis o p révio, u m ca rro da po-lícia s u rgiu n a es qu in a . An tes qu e eu pu des s e in ter -rom per m in h a ca deia de pen s a m en tos , ele es ta va em cim a do ba lã o. Ou vi u m pequ en o es tou ro, qu a n do o ca r ro, s em com pa ixã o, es m a gou -o con tra o ch ã o. O ca rro s u m iu — des ceu a ru a e virou a es qu in a . Nem percebeu o qu e a con tecera , e m es m o qu e s ou bes s e, n ã o s e im por ta r ia . Ma s eu qu is correr a t rá s do ca r ro e gr ita r : “Mega n h a s im u n dos , n ã o en xerga m ?” Qu er ia m a tá -los por me terem esmagado no meio da rua.

Sen t i u m des â n im o m orta l. Pa rei n o m eio-fio e olhei pa ra a ru a es cu ra , porém n ã o h a via s in a l do ba lã o. Seu s res tos s e m is tu ra ra m com o lixo e o ca s ca lh o, n o m eio da ru a , e s e iden t ifica ra m com toda a s u jeira de Brooklin.

Voltei e s en tei-m e n a es ca da . A velh a m eretr iz des a pa recera n a s t reva s . O ven to a in da a s s ob ia va e os pa péis e o lixo con t in u a ra m s en do s opra dos ru a a ba ixo, e a t ira dos con tra a cerca qu e rodea va a p ra ça . Ou tro m etrô m a tra qu eou deba ixo da ter ra , e retu m bou n a s t reva s . Eu es ta va com m edo. Eu , Nicky. Es ta va com m edo. Es ta va t rem en do, n ã o de fr io, m a s por den tro. Coloquei a cabeça entre as mãos, e pensei: “Não adianta. Es tou con den a do. É exa ta m en te com o o Dr . J oh n d is s e. Não há esperança para o Nicky; seu destino é a cadeia, a cadeira elétrica e o inferno.”

Depois daquilo nada mais me importava. Devolvi a p res idên cia da qu a dr ilh a a Is ra el. Es ta va n a fos s a ; n ã o

pod ia des cer m a is fu n do. Nã o h a via m a is es pera n ça . Eu pod ia m u ito bem fa zer com o todos os ou tros n o gu eto, e recorrer à a gu lh a . Es ta va ca n s a do de fu gir . O qu e o ju iz d is s era qu e m e fa lta va ? Am or! Ma s on de poder ia encontrar amor dentro da fossa?

Capítulo 10

OO EE NNCCOONNTTRR OO

ERA UMA TARDE QUENTE de s exta -feira , em ju lh o de 1958 . Is ra el, Líd ia e eu es tá va m os s en ta dos n a es ca da defron te a o m eu a pa r ta m en to, qu a n do a lguns dos garotos vieram correndo rua abaixo.

“Ei, o que está acontecendo ?” gritei para eles.

“É u m circo qu e es tá lá n a es cola ”, res pon deu u m dos meninos.

Acon tecim en tos extra ord in á r ios s ã o ra ros em Brook lin . Es ta é u m a da s ra zões qu e tem os pa ra cr ia r n os s os p rópr ios d iver t im en tos , em form a de lu tas, n a rcót icos e s exo. Qu a lqu er cois a era m elh or do qu e fica r a li s en ta do. Por is s o, a t ra ves s a m os o ja rd im em direção à escola da Rua St. Edward.

Qu a n do ch ega m os , u m a gra n de m u lt idã o s e for -m a ra em fren te a o Pos to Policia l n °. 67 . Abr im os ca -min h o a t ra vés do p ovo, der ru ba n do a o ch ã o os m eninos pequenos, para ver o que estava acontecendo.

Um h om em s e a ch a va de pé s ob re o h id ra n te, to-cando “Ava n te, Ava n te, ó Crentes” em u m p is tom . Ele ficou repet in do a m es m a m ú s ica , vezes s em con ta . Ao seu lado, de pé na calçada, estava outro homem.

O in d ivídu o m a is m a gro, m a is fra co e m a is in s ig-n ifica n te qu e eu já vira . Sobre eles , p res a a u m m a s tro, drapejava uma bandeira americana.

O p is ton is ta fin a lm en te pa rou , e a tu rb a com eçou a gr ita r pa ra ele. Qu a s e cem ra pa zes e m oça s s e h a via m reunido, bloqueando a rua e a calçada.

O m a gr in h o t in h a u m a ba n qu eta de p ia n o qu e t rou xera da es cola . Su b iu n ela e a b r iu u m livro p reto. Com eça m os a gr ita r e a gra ceja r . E le ficou a li, com a ca beça cu rva da e vim os qu e es ta va com m edo. A gr itaria tornou-se maior. A multidão era compacta.

De repen te, perceb i qu e tu do s ilen cia ra . Des viei a a ten çã o de Líd ia e olh ei pa ra o h om em de pé s ob re o ba n qu in h o. Ele cu rva ra a ca beça e s egu ra ra o livro p reto, a ber to. Um a s en s a çã o de m edo percorreu o m eu corpo, a m es m a qu e cos tu m a va s en t ir qu a n do, em ca s a , meu pai praticava a feitiçaria. Tudo ficou estranhamente qu ieto; a té os ca r ros n a Av. Pa rk , a m eio qu a r teirã o da li, pa recia m n ã o es ta r fa zen do ru ído a lgu m . Era u m silêncio esquisito. Fiquei amedrontado.

O velh o m edo, qu e eu n ã o s en t ira des de qu e m e ju n ta ra a os Ma u -Ma u s , repen t in a m en te m e dom in ou . Era o m edo qu e eu p recis a ra com ba ter n o t r ibu n a l, d ia n te do ju iz; era o m edo qu e s en t ira n a n oite em qu e fora pa ra ca s a , depois da en t revis ta com o psicólogo do t r ibu n a l. Da s ou tra s vezes eu pu dera a fa s tá -lo, ou fu gir dele. Ma s a gora , ele s e a ga r ra va a o m eu cora çã o e a o m eu corpo, e eu p od ia s en t i-lo tom a r pos s e da m in h a p rópr ia a lm a . Qu er ia es ca pa r — m a s todo m u n do es ta va escutando — esperando.

De repen te, o m a gr icela leva n tou a ca beça e, n u -m a voz tã o fra ca qu e m a l s e pod ia ou vir , com eçou a ler n o livro p reto: “Porqu e Deu s a m ou o m u n do de ta l m a n eira qu e deu o s eu Filh o u n igên ito pa ra qu e todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.”

Eu trem ia de m edo. Aqu ele s u jeito devia s er u m a es pécie de pa d re, ou feit iceiro, ou cois a pa recida . Ele es ta va fa la n do de a m or . Eu con h ecia o “amor”. Era exper ien te n is s o. Es ten d i a m ã o e belis qu ei a coxa d e Líd ia . Ela olh ou pa ra m im : “Es cu te o qu e ele d iz, Nicky.” Fech ei a ca ra e voltei os olh os de n ovo pa ra o magricela. Ele estava falando a respeito de pedirmos que a con teces s e u m m ila gre. Eu n ã o s a b ia o qu e era u m m ila gre, m a s todo m u n do es ta va es cu ta n do, e eu n ã o queria ser diferente.

O h om em t in h a pa ra do de fa la r e es ta va a li de p é, es pera n do a lgu m a cois a a con tecer . Dis s e a s egu ir qu e qu er ia fa la r com os p res iden tes e vice-presiden tes da s qu a dr ilh a s . Com ecei a a ch a r a qu ele h om em per igos o. Ele es ta va in va d in do o n os s o m u n do e eu n ã o qu er ia que nenhum estranho se intrometesse.

Ele con t in u ou : “Se vocês s ã o tã o gra n des e tã o fortes, não terão medo de vir aqui e apertar a mão de um pregador magricela, não é?”

Houve um movimento na multidão. Alguém gritou, lá de t rá s : “Ei Bu ck , o qu e é qu e h á , es tá com m edo?” Referiam-s e a Bu ck , o p res iden te dos Ch a p la in s , n os s a quadrilha irmã.

Ou vi u m bu lício a trá s , n a m u lt idã o, e olh ei: a li vin h a Bu ck a o la do de Sta ge e m a is dois m em bros da qu ela ga n g de ra pa zes de cor . Dir igira m -s e pa ra o p rega dor m a gr in h o, qu e a gora des cera da ba n qu eta e os esperava.

Fiqu ei m a is n ervos o. Nã o es ta va gos ta n do da qu ilo, de form a a lgu m a . Dei u m a olh a da a o m eu redor , e pa recia qu e todo m u n do es ta va s orr in do e a b r in do caminho para Buck e Stage passarem.

Eles s e cu m prim en ta ra m , e depois o p rega dor e o p is ton is ta leva ra m Bu ck , Sta ge e os ou tros dois rapazes pa ra a en tra da da es cola . Fica ra m lá con vers a n do; eu

m e a fa s tei de Líd ia , e m e a p roxim ei de Is rael. “O qu e es tã o fa zen do ?” p ergu n tei-lh e. Is ra el n ã o res pon deu . Tinha um ar estranho.

De repen te, eu vi todos eles s e a joelh a n do a li m es m o, n a ru a . Bu ck e Sta ge t in h a m t ira do o ch a péu e o seguravam, ajoelhados ali na calçada.

Qu a n do s e leva n ta ra m , volta ra m pa ra o m eio da multidão. Eu gritei para Buck: “Ei, Buck, você é crente agora?” Bu ck era u m ra pa z corpu len to; t in h a n a qu ela época u n s oiten ta qu ilos e cerca de 1 ,80m de a ltu ra . Virou-s e e olh ou pa ra m im de u m a form a qu e eu n u n ca vira antes. Seu rosto estava sério, muito sério. Seu olhar pen etrou p rofu n da m en te n o m eu , e com preen d i o qu e qu er ia d izer , em bora n ã o en ten des s e o qu e lh e a con tecera . Es ta va d izen do, com os olh os : “É m elh or você cair fora, Nicky; isto não é hora de piadas.”

Su b ita m en te, a lgu ém gr itou pa ra m im : “Ei, Nicky, s erá qu e a qu eles n egr in h os vã o deixa r você p ra t rá s ? Está com medo de ir à frente, também?”

Is ra el m e cu tu cou e a cen ou com a ca beça em d i-reçã o a os dois h om en s . “Va m os , Nicky, va m os .” Vi qu e ele es ta va fa la n do s ér io, e m e a fa s tei. Ha via a lgo de sinistro naquilo tudo... algo perigoso e enganador. Fazia-me lembrar de algo de que eu tinha terror mortal.

A tu rba com eçou a va ia r e a gr ita r : “Ei, veja o nosso líder. Ele está com medo do pregador magrinho.”

Is ra el pu xou -m e pelo pa letó. “Va m os , Nicky.” Eu n ã o t in h a es colh a : fu i à fren te e m e coloqu ei d ia n te dos dois homens.

Israel deu a m ã o pa ra eles . Eu a in da es ta va com m edo, ret ra ído. O h om em m a gr in h o veio a té m im e es ten deu a m ã o. “Nicky, m eu n om e é Da vi Wilkers on . Sou um pregador da Pensilvânia.”

Olh ei bem pa ra ele e d is s e: “Vá p ro in fern o, p re-

gador.”

“Você não gosta de mim, Nicky”, falou ele, “mas eu pen s o d iferen te. Gos to de você. E n ã o é s ó is to: vim pa ra lhe falar sobre Jesus, que também ama você.”

Eu m e s en t i com o u m a n im a l a pa n h a do n u m a a rm a d ilh a , p res tes a s er en ja u la do. Atrá s de m im es tava a m u lt idã o. Na m in h a fren te, a fa ce s orr iden te da qu ele h om em fra n zin o fa la n do de a m or . Nin gu ém m e a m a va . Nin gu ém ja m a is m e a m a ra . En qu a n to es ta va a li de pé, recordei m e da qu ela oca s iã o, ta n tos a n os a n tes , qu a n do ou vira m in h a m ã e d izer com ód io: “Nã o gos to de você, Nicky.” Pensei: “Qu a n do n os s a p rópr ia m ã e n ã o ama a gente, ninguém nos ama — nem pode amar.”

O p rega dor con t in u a va a li de pé, s or r in do, com a m ã o es ten d ida . Eu s em pre m e orgu lh a ra de n ã o ter m edo. Ma s , es ta va com m edo. Com m u ito m edo de qu e a qu ele h om em fos s e m e pôr n u m a ja u la . Ele ia rou ba r -m e os a m igos . Ia t ra n s torn a r tu do em m in h a vida , e por isso eu o odiava.

“Se ch ega r per to de m im , p rega dor , eu te m a to”, d is s e eu , ret ra in do-m e, bu s ca n do a p roteçã o do povo. Es ta va a m edron ta do e n ã o s a b ia com o en fren ta r a situação.

O pa vor m e dom in a va . Sen t ia -m e qu a s e em pâ -n ico. Ros n ei a lgo pa ra ele e pu s -m e a a n da r a t ra vés da multidão. “Es te h om em é com u n is ta , tu rm a ”, gr itei. “Saiam daqui. Ele é comunista.”

Eu n ã o s a b ia o qu e era u m com u n is ta , m a s s a b ia qu e era a lgo qu e todos dever ia m com ba ter . Eu es ta va fu gin do, e bem s a b ia d is s o, m a s é qu e n ã o con s egu ia en fren ta r u m a s itu a çã o com o a qu ela . Se ele t ives s e m e atacado com uma faca, teria enfrentado. Se tivesse vindo roga n do e s u p lica n do, ter ia r ido dele, e lh e da r ia u m s oco n os den tes . Ma s ele veio d izen do: “Gos to de você.” E eu n u n ca t ivera qu e en fren ta r a lgu ém qu e s e

aproximasse de mim com afeto.

Atra ves s ei a m u lt idã o com a ca beça leva n ta da e o peito es tu fa do. Ch egu ei a té Líd ia , a ga rrei-a pelo b ra ço, e levei a com igo; com eça m os a s u b ir a Ru a St . Edwa rd , afastando-nos da escola.

Algu n s ra pa zes n os s egu ira m . Des cem os a o porão e ligu ei a vit rola a o m á xim o. Es ta va ten ta n do a ba fa r o s om da qu ela s pa la vra s : “J es u s a m a você.” Por qu e u m fa to com o a qu ele m e deixa ra tã o con fu s o? Da n cei u m pou co com Líd ia , beb i m eia ga rra fa de vin h o ba ra to e fu m ei u m m a ço de ciga rros . Fu m ei m u ito — a cen den d o u m ciga rro n o toco do ou tro. Líd ia percebeu qu e eu es ta va n ervos o. “Nicky, qu em s a be você dever ia con vers a r com o p rega dor . Ser cr is tã o pode n ã o s er tã o ru im com o você pen s a .” Olh ei-a ca r ra n cu do: ela ba ixou a cabeça.

Eu m e s en t ia m is erá vel. E com m edo. De repen te, h ou ve u m a a gita çã o n a por ta ; leva n tei os olh os e vi o p rega dor m a gr icela en tra n do. Ele pa recia com pleta m en te des loca do, a li n a qu ele porã o s u jo, com o tern o bon ito, ca m is a b ra n ca e gra va ta lim pa . Perguntou a um dos rapazes : “Onde está o Nicky ?”

O ra pa z a pon tou pa ra o lu ga r on de eu m e a ch a va s en ta do com o ros to es con d ido n a s m ã os , o ciga rro pendente dos lábios.

Da vi a t ra ves s ou a s a la com o s e o lu ga r lh e per ten ces s e. Tin h a u m s orr is o a ilu m in a r-lh e a fa ce. Es ten deu a m ã o ou tra vez, d izen do: “Nicky, eu a penas qu er ia a cer ta r a s u a m ã o e...” An tes qu e p u desse terminar, dei-lhe um tapa na cara — com toda força. Ele ten tou força r u m s orr is o, m a s era eviden te qu e eu o im pres s ion a ra . A s egu ir , porém , con s egu iu con trola r -se e ou tra vez o m edo b rotou den tro de m im , a pon to de s en t ir o es tôm a go em bru lh a do. Fiz a ú n ica cois a qu e sabia fazer, para me vingar: cuspi nele.

“Nicky, cu s p ira m em J es u s ta m bém , e ele orou : “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.”

“Sa ia da qu i! Vá p ro in fern o!” gr itei, fu r ios o, e empurrei-o para a porta.

“Nicky, a n tes de s a ir , qu ero d izer s ó u m a cois a : Jesus ama você.”

“Ca ia fora , pa d re d oido. Nã o s a be o qu e fa la . Vou lh e da r vin te e qu a tro h ora s pa ra deixa r m eu território; depois, te mato.”

O Rev. Wilkers on ret irou -s e, a in da s orr in do. “Lembre-se, Nicky, Jesus ama você.”

Era m a is do qu e eu pod ia s u por ta r . Pegu ei a ga r ra fa de vin h o va zia qu e es ta va n o ch ã o e a t irei-a no a s s oa lh o es pa t ifa n do-a . Nu n ca m e s en t ira tã o fru s trado, tão desesperado, tão insatisfeito.

Sa í por ta a fora , ba ten do os pés . O m eu orgu lh o borbu lh a va den tro de m im . Perceb i qu e todos os ou tros ra pa zes s a b ia m qu e a qu ele s u jeito con s egu ira m e impressionar. A ú n ica m a n eira qu e con h ecia pa ra en -ganá-los era agir rudemente. Se desse demonstração das m in h a s verda deira s em oções , m es m o por u m in s tante, sentia que perderia todo o respeito da quadrilha.

“Aqu ele m a cu m beiro es tú p ido, m a lu co”, d is s e eu ; “s e ele volta r a qu i, pon h o fogo n ele.” Ba t i a por ta a t rá s de m im e perm a n eci n a ca lça da , olh a n do-o pela s cos ta s , en qu a n to ele s e ret ira va a p res s a do. “Convencido”, pen s ei. Apes a r de tu do, lá n o fu n do eu s a b ia qu e h a via algo de verdadeiro naquele homem estranho.

Voltei-m e, e a n dei n a d ireçã o opos ta . Pa rei n o s a -lã o de b ilh a r , com ecei u m a pa r t ida , ten ta n do con cen -trar-m e n a pon ta do m eu ta co. Porém tu do o qu e eu con s egu ia ou vir em m in h a m en te era a voz do p rega dor magricela, e as palavras : “Jesus ama você.”

“Qu e m e importa”, pen s ei; “ele n ã o va i m e a s -

sustar. Ninguém me mete medo.”

Fiz a s du a s joga da s s egu in tes e a t irei o ta co n a mesa. “J es u s a m a você”, a s pa la vra s res s oa va m n os m eu s ou vidos . Dis s e a os ra p a zes qu e es ta va doen te e arrastei-me de volta ao meu apartamento.

Tin h a m edo de es ta r rea lm en te doen te. Nu n ca m e recolh era tã o cedo. Era m vin te e du a s e t r in ta e eu sempre esperava até três ou quatro horas da madrugada pa ra ir dorm ir . Fech ei a por ta e t ra n qu ei-a . Trem ia a o a t ra ves s a r o qu a r to e a o a cen der o pequ en o qu ebra -luz s obre a m es a , a o la do da ca m a . Pegu ei m eu revólver n o guarda-rou pa , coloqu ei du a s ba la s n o ta m bor , e deixei-o ta m bém n a m es a . Ch u tei fora os s a pa tos e t roqu ei de rou pa . Deixei o m a ço de ciga rros s ob re a m es a , deitei, e fiqu ei olh a n do pa ra o for ro. Ou via a s pa la vra s de Da vi Wilkers on repet in do-s e s em ces s a r : “J es u s a m a você, Nicky, Jesus ama você.”

Levantei a mão, apaguei a luz e acendi um cigarro. Nova m en te, fu m ei u m ciga rro a t rá s do ou tro. Nã o con s egu ia repou s a r . Vira va -m e de u m la do pa ra ou tro. Nã o con s egu ia dorm ir . As h ora s pa s s a va m . Fin a lm en te, levantei-m e, a cen d i a lu z e olh ei o relógio : cin co da madrugada. Eu me revirara na cama a noite inteira.

Levantei-m e, ves t i-m e e gu a rdei o revólver n o guarda-rou pa , n ova m en te. Pegu ei os ciga rros , des ci os dois la n ces de es ca da s e a b r i a por ta da fren te do p réd io de apartamentos. O céu tinha começado a ficar cinzento. À d is tâ n cia , ou via m -s e os s on s da gra n de cida de, qu e bocejava e se espreguiçava, voltando à vida.

Sentei-m e n os degra u s do p réd io, com a ca beça n a s m ã os . “J es u s a m a você... J es u s a m a você... J es u s ama você.”

Ouvi um carro parar em frente ao apartamento e a por ta ba ter . Sen t i o pes o da m ã o de a lgu ém em m eu om bro. Leva n tei a ca beça e vi o p rega d or fra n zin o de pé,

d ia n te de m im . Es ta va a in da s orr in do, e d is s e: “Oi, Nicky. Você s e lem bra do qu e lh e fa lei on tem à n oite? Tive von ta de de volta r e d izer -lh e ou tra vez : Nicky, Jesus ama você.”

Fiquei em pé de um salto e fiz um movimento para atingi-lo. Da vi t in h a cer ta m en te perceb ido, pois pu lou pa ra t rá s , pa ra fora do m eu a lca n ce. Fiqu ei rosnando com o u m a n im a l p ron to pa ra o bote. Ele olh ou -m e bem n os olh os , e d is s e: “Você pode m e m a ta r , Nicky. Você pode m e cor ta r em m il peda ços e jogá -los n a ru a . Ma s , ca da peda ço con t in u a r ia gr ita n do: “Jesu s a m a você”. Nunca poderá escapar disto.”

Eu ten tei in t im idá -lo com m eu a s pecto belicos o, m a s ele con t in u ou fa la n do: “Nicky, n ã o ten h o m edo de você. Você fa la gros s o, m a s por den t ro é exa tamente igu a l a todos n ós . Es tá com m edo. Es tá ca n s a do dos seus pecados. Sente-se solitário. Mas Jesus ama você.”

Algo deu u m es ta lo em m im : com o é qu e ele s a b ia qu e eu m e s en t ia s olitá r io? Eu n ã o s a b ia do qu e ele falava quando mencionou pecado; tinha medo de admitir m eu s tem ores . Ma s , com o ele s a b ia qu e eu m e s en t ia solitá r io ? A qu a d r ilh a es ta va s em pre a o m eu la do. Tin h a t id o toda s a s ga rota s qu e des eja ra . As pes s oa s t in h a m m edo de m im — a o m e verem , ela s des cia m da ca lça da e a n da va m pelo m eio da ru a . Eu era o ch efe da ga n g. Com o a lgu ém pod ia s a ber qu e m e s en t ia is olado? Es ta era , porém , a verda de. E a qu ele p rega dorzin h o sabia disso.

Ten tei pa recer es per to : “Você a ch a qu e va i m e t ra n s form a r de u m m om en to pa ra ou tro?” d is s e eu , es ta la n do dois dedos . “Você a ch a qu e vou a ten dê-lo, vou pega r u m a Bíb lia e a n da r por a í p rega n do, e o povo va i com eça r a d izer : Nicky Cru z — a n jo — s a n to ?” Ma s eu compreendi que ele estava decidido. E que era sincero.

“Nicky, você n ã o dorm iu m u ito es ta n oite, n ã o é ?” Fiqu ei de n ovo a dm ira do. Com o é qu e ele s a b ia qu e eu

não dormira ?

“Eu ta m bém n ã o dorm i m u ito es ta n oite, Nicky. Fiquei acordado a maior parte da noite, orando por você. An tes d is s o, con vers ei com a lgu n s dos ra pa zes da qu i. E les m e d is s era m qu e n in gu ém pode a p roximar-s e de você. Tod os têm m edo de você. Olh e, Nicky, eu vim pa ra dizer-lh e qu e a lgu ém s e im por ta com você: J es u s . Ele a m a você.” Olh ou -m e en tã o bem firm e n os olh os : “Um d ia , e n ã o dem ora m u ito, Nicky, o Es p ír ito de Deu s com eça rá a opera r em você. Um d ia , Nicky, você va i deixar de fugir, e vai correr para ele.”

Eu n ã o d is s e n a da . Leva n tei-m e, dei-lh e a s cos tas e en trei n o p réd io, fech a n do a por ta a t rá s de m im . Su b i a es ca da , en trei n o m eu a p a r ta m en to e s en tei-m e n a ca m a . Olh a n do pela ja n ela , vi qu e o ca r ro dele s e fora . No les te, o céu es ta va com eça n do a fica r ros a do. Um en orm e ed ifício, do ou tro la do da ru a , b loqu ea va a m in h a vis ã o do h or izon te. Porém , s u b ita m en te, a s s im com o s en t im os a b r is a m a r ít im a qu a n do a in da es ta m os a m u itos qu ilôm etros do m a r , t ive u m a s en s a çã o de qu e h a via , n a vida , a lgo m a is do qu e a qu ilo qu e eu con h ecia . Ma is do qu e a qu eles ed ifícios a lt ís s im os , de con creto — aquelas prisões de vidro e pedra.

Pen s ei n a s pa la vra s dele: “Um d ia você va i pa ra r de fu gir e correrá pa ra ele.” Eu n em s a b ia qu em era ele, m a s , s en ta do a li n a ca m a , olh a n do pa ra a ru a ch eia d e lixo e ou vin do o ru ído dos ca m in h ões qu e des cia m ra n gen do e ru gin do, pen s ei qu e ele devia s er a lgo s em elh a n te à es t rela m a tu t in a qu e a in da b r ilh a va n o céu qu e s e color ia com a s p r im eira s t in ta s do a r rebol. Talvez... Algum dia...

Esse dia estava mais perto do que eu pensava.

Nos d ia s qu e s e s egu ira m , eu n ã o pu de es ca pa r a u m en con tro com o h om em qu e rep res en ta va Deu s . Era Is ra el qu e m e a torm en ta va con s ta n tem en te. Toda vez qu e n os en con trá va m os , t in h a de ou vir a lgu m a cois a a

respeito de Deus.

“Diacho, Is ra el, s e você n ã o pá ra de fa la r n es s e negócio de Deus, eu te mato.”

Ma s Is ra el con t in u ou fa la n do s obre ele, e eu s u s peitei qu e es t ives s e s e en con tra n do com Da vi Wilkers on à s es con d ida s . Eu n ã o es ta va gos ta n do da qu ilo. Ach a va qu e a qu ele h om em pod ia a té mesmo destruir a nossa quadrilha. Agora que Mannie se fora, só Is ra el fica ra . E a té ele pa recia es ta r s e des via n do pa ra ou tra d ireçã o. As s u a s con s ta n tes referên cia s a Da vi Wilkers on e o s eu in s is ten te des ejo de m e força r a fa la r , levaram-me às raias do desespero.

Nã o a gü en ta va m a is . Na vés pera do d ia da in -depen dên cia dos Es ta dos Un idos , qu a tro de ju lh o, qu a n do toda s a s qu a dr ilh a s devia m con vergir pa ra o pa rqu e de Con ey Is la n d , Is ra el pa s s ou a n oite comigo. Fa lou a té ta rde da n oite, p rocu ra n do con ven cer-m e a que não fosse a Coney Island na noite seguinte, e em vez d is s o, qu e fos s e con vers a r com Da vi Wilkers on . Ta pei os ou vidos , p rocu ra n do a ba fa r a s u a con vers a in ces s a n te. Ma is ta rde, ele ca iu n o s on o. Deitei-m e n o leito, olh a n do pa ra o forro, n o es cu ro, qu a s e con s u m ido de m edo. Eu t in h a de pa ra r com a qu ilo. Tin h a de fa zer Is ra el ca la r . Não suportava mais ouvir falar de Davi Wilkerson.

Ta tea n do s ob o colch ã o, en con trei o ca bo de m a deira do fu ra dor de gelo qu e eu t in h a es con d ido a li. Ou via Is ra el res s on a n do p rofu n da m en te, n a ca m a a o la do. Qu a n to m a is pen s a va n ele, m e a m ola n do a respeito de Deus, mais furioso ficava.

Não agüentei mais. “Isto vai ensinar você a não me en ch er m a is ”, gr itei, en qu a n to a r ra n ca va o fu ra dor de gelo de s ob o colch ã o e o la n ça va em d ireçã o à s cos ta s de Israel.

O m eu gr ito a cordou -o e ele s e leva n tou ra p ida -m en te, exa ta m en te n a h ora em qu e o fu ra dor de gelo

penetrava profundamente no colchão, atrás dele.

Arranquei-o, e ten tei b ra n d i-lo ou tra vez, gr ita n do: “Eu m a n dei você ca la r a b oca e n ã o fa la r m a is s ob re Deus. Por que você não se calou? Por quê? Por quê ?”

Is ra el m e a ga rrou e com eça m os a lu ta r corpo a corpo, ca in do n o ch ã o, en qu a n to eu o golpea va cega -mente.

Ele m e d eitou de cos ta s e ca iu s ob re m im , s en -tando-s e s ob re o m eu peito, s egu ra n do-m e a s m ã os contra o assoalho, sobre a minha cabeça.

“Por que você não parou?” continuei gritando.

“O qu e é qu e h á com você?” Is ra el gr ita va , ten -ta n do m a n ter -m e s egu ro. “Você es tá lou co. Sou eu . Seu amigo. O que há com você?”

Repentinamente, perceb i qu e ele es ta va ch ora n do, enquanto gritava e lutava comigo. Lágrimas corriam pela sua face. “Nicky, Nicky. Pára. Eu sou seu amigo. Não me obr igu e a m a ch u cá -lo. Por fa vor , pá ra . Eu s ou s eu amigo. Eu gosto de você.”

Ele h a via d ito a qu ilo! Aqu ela s pa la vra s ca íra m s obre m im com o á gu a gela da . Ele h a via fa la do exa -ta m en te da m a n eira com o Da vi Wilkers on fizera . Rela xei a p res s ã o s obre o fu ra dor de gelo e ele a rrancou-o da m in h a m ã o. Eu n u n ca vira Is ra el ch ora r . Por qu e chorava agora?

Ficou com o furador de gelo suspenso sobre o meu ros to. Aga rra va -o com ta n ta força qu e os n ós dos s eu s dedos s u rgia m b ra n cos n a pen u m bra . Es ta va t rêm u lo pela ten s ã o m u s cu la r . Por u m m om en to pen s ei qu e ia golpear-m e n a ca beça com o fu ra dor , m a s depois a t irou -o ra ivos a m en te pa ra u m la do. Ain da es ta va ch ora n do quando me soltou e jogou-se na cama.

Eu rolei n o ch ã o, fru s t ra do, con fu s o e exa u s to. O qu e h a via de er ra do com igo ? Ten ta ra m a ta r o m eu

melhor amigo !

Fu gi do qu a r to e s u b i os degra u s qu e leva va m a o telh a do do ed ifício. Lá fora es ta va es cu ro e a ba fado. Cru zei a la je d ir igin do-m e pa ra o lu ga r on de o velh o Gon za les gu a rda va a s s u a s pom ba s em u m a ga iola . Abr i a ga iola e pegu ei u m a pom ba . As ou t ra s es voa ça ra m , debateram-se, e fugiram na noite.

Segurei a pomba bem apertada contra o meu peito nu, dirigi-me para perto do tubo de ar, e sentei-me.

Pá s s a ros ! Eu os od ia va . Tã o livres ! Ó, Deu s , com o eu od ia va os qu e era m livres . Da vi Wilkers on era livre. Is ra el a p roxim a va -s e da liberda de. Eu es ta va s en t in do is s o. Aqu ele pá s s a ro era livre, m a s eu es ta va p res o n a minha gaiola de ódios e temores.

Meu s dedos s e a per ta ra m em torn o da ca beça da pomba, esticando-lhe o pescoço. “Não estou com medo.”

O pá s s a ro deu u m p ia do cu r to e a ba fa do e s en t i s eu corpo t rem er , qu a n do os os s os do pes coço s e separaram. “Veja, mãe, eu não estou com medo.”

Perd i o con trole. Torci-lh e o p es coço pa ra d ia n te e pa ra t rá s , a té qu e s en t i a pele e os os s os s e s epararem; depois , com u m for te repelã o, s epa rei com pleta m en te a cabeça do corpo.

O s a n gu e qu en te jor rou n a s m in h a s m ã os , p in gou n os m eu s joelh os e correu pela la je de con creto. Mirei a ca beça en s a n gü en ta da n a m in h a m ã o, e gr itei: “Agora, você não está livre. Ninguém é livre.”

Atira n do lon ge a ca beça da pom ba , es m a gu ei con tra a la je, o corpo a in da t rêm u lo. Por fim , a qu ele pa s s a r in h o da n a do es ta va m or to; n u n ca m a is a s -sombraria meus sonhos.

Fiqu ei n o telh a do, dorm in do e a cord a n do in ter -m iten tem en te. Ca da vez qu e dorm ia , o pes a delo volta va , m a is h orr ível do qu e a n tes . Ao a m a n h ecer , voltei

para meu quarto. Israel se fora.

Pa s s ei a m a ior pa r te do d ia s egu in te p rocu ra n do-o. Fin a lm en te en con trei-o s en ta do s ozin h o n o porão on de rea lizá va m os a s n os s a s “festinhas”. Todos os outros rapazes haviam ido a Coney Island.

“Ei, ca ra , des cu lpe pelo qu e a con teceu on tem à noite”, comecei.

“Esqueça”, res pon deu Is ra el com u m s orr is o amarelo.

“Nã o, ca ra , eu s in to m es m o. Nã o cos tu m o fa zer isso. Acho que alguma coisa está errada comigo.”

Is ra el leva n tou -s e e fin giu da r-m e u m s oco n o queixo. “Certo, meu chapa; somos iguais — malucos.”

Pa s s ei o res to da ta rde com ele. Era a p r im eira vez em três anos que eu não ia a Coney Island no dia quatro de julho.

Du ra n te a s egu n da s em a n a de ju lh o de 1958 , Is ra el m e p rocu rou e fa lou a res peito da gra n de reu nião qu e Da vi Wilkers on ir ia rea liza r n a Aren a St . Nich ola s . De fa to, ele viera con vers a r com Is ra el e con vida r os Mau-Ma u s pa ra a reu n iã o. Ha ver ia u m ôn ibu s es pecia l pa ra n ós , defron te a o Pos to Policia l n .° 67 , e ter ía m os a s s en tos res erva dos n os p r im eiros ba n cos do a u d itór io. Israel d is s era a Da vi Wilkers on qu e leva r ia os Ma u -Maus.

Men eei a ca beça e com ecei a s u b ir os degra u s do p réd io do m eu a pa r ta m en to. Eu n ã o qu er ia n a da com a qu ilo. On da s de ter ror com eça ra m a rola r s ob re m im , n ova m en te, e s en t i-m e tã o s u foca do qu e t in h a dificuldade de falar.

“Ei, ca ra ”, ch a m ou Is ra el qu a n do voltei-m e pa ra sair, “você não é covarde, é?”

Is ra el m e a t in gira n a ú n ica fa lh a da m in h a a r -

madura — m eu ú n ico pon to fra co. Voltei-m e pa ra ele: “Nicky n ã o tem m edo de n in gu ém ... n em daquele pregadorzinho... nem de você... nem mesmo de Deus.”

Is ra el ficou a li com u m pequ en o s orr is o b r in cando n o s eu ros to s im pá t ico. “Pa rece qu e você es tá com medo de alguma coisa. Então, por que não quer ir?”

Lem brei de Bu ck e Sta ge a joelh a dos n a ca lça da , d ia n te da es cola . Tin h a cer teza de qu e s e a qu ilo podia a con tecer a eles ... A ú n ica cois a qu e eu s a b ia era fu gir — con t in u a r fu gin do. Ma s , correr a gora , em fa ce do des a fio de Is ra el, d a r ia a im pres s ã o de qu e es ta va com medo. Com medo mesmo.

“A que horas chega o ônibus?” perguntei.

“Sete da n oite”, res pon deu Is ra el. “A reu n iã o começa às sete e trinta. Você vai ?”

“Cla ro, m eu ch a pa ! Você pen s a qu e s ou cova rde ? Va m os leva r a tu rm a toda lá e pôr fogo n aquela espelunca.”

Is ra el s or r iu e des ceu ru a a ba ixo, gin ga n do. Virei-me e s u b i os degra u s em d ireçã o a o m eu a pa r tamento, três andares acima. Sentia-me doente.

Fechei a porta atrás de mim, e joguei-me de costas n a ca m a . Procu rei u m “pacau”. Qu em s a be s e a m a con h a a ju da r ia . Nã o t in h a n en h u m , por is s o fu m ei um cigarro comum.

Os pensamentos inundaram minha mente, como a á gu a corren do por u m a com por ta qu e t ra n s borda . Estava aterrorizado! O cigarro tremeu e as cinzas caíram n a m in h a ca m is a , in do pa ra r s ob re os len çóis s u jos da ca m a . Tin h a m edo de pega r a qu ele ôn ibu s . Detes ta va a idéia de a ba n don a r n os s os dom ín ios . Só de pen s a r em s a ir dos a ca n h a dos lim ites do ter r itór io com qu e es ta va fa m ilia r iza do, u m ter ror des m ed ido n a s cia n o m eu cora çã o. Tin h a m edo de m e en con tra r em m eio a u m a

gra n de m u lt idã o, de s er en golido por ela e m e torn ar u m a bolh a — n a da . Sa b ia qu e, n a a ren a , ter ia de fa zer algo para chamar a atenção sobre mim.

Acim a de tu do, porém , eu es ta va com m edo do que vira diante da escola, aquele dia. Tinha medo de que a lgu ém ou a lgu m a cois a m a ior e m a is poderos a do qu e eu m e força s s e a ca ir de joelh os d ia n te do povo e m e fizes s e ch ora r . Tin h a verda deiro h orror de lá gr im a s . E la s s im boliza va m fra qu eza , fra ca s s o, es tu p idez e cr ia n cice. Eu n u n ca m a is ch ora ra depois dos oito a n os de idade. Algo fizera Israel chorar. Mas, eu — nunca.

Ma s , s e eu n ã o fos s e, s er ia ch a m a do de cova rde por Israel e pelo resto da turma. Eu não tinha escolha.

Fa zia m u ito ca lor n a qu ela n oite de ju lh o, em qu e lota m os u m ôn ibu s . Ha via dois h om en s de tern o e gra va ta , qu e devia m m a n ter a ordem . Ma s n a da conseguiram. O barulho no ônibus era ensurdecedor.

Eu m e s en t i m elh or por es ta r n o m eio da m inha ga n g. Era a s olidã o do m eu qu a r to qu e m e depr im ia . No ôn ibu s era d iferen te. Ma is de cin qü en ta Ma u -Maus es ta va m com prim idos den tro dele. Os m on itores , a flitos , ten ta ra m m a n ter a ordem , m a s fin a lm en te des is t ira m e n os deixa ra m à von ta de. A tu rm a ficou s e es m u rra n do, gr ita n do pa la vrões , a b r in do ja n ela s , fu m a n do, beben do vin h o, pu xa n do a ca m pa in h a , e gr ita n do pa ra o ôn ibu s partir.

Qu a n do ch ega m os à Aren a , a b r im os a por ta de em ergên cia e a lgu n s ch ega ra m m es m o a pu la r pela s ja n ela s . Ha via vá r ia s m ocin h a s n a fren te do p réd io, u s a n do b lu s a s ju s ta s e “shorts”. De todos os la dos ouviam-s e gr itos com o : “Ei, bon eca , m e dá u m pedaço? “Ven h a com igo, va m os fa zer u m a “festinha” d ivertida”. Algu m a s da s m en in a s ju n ta ra m -s e a n ós , qu a n do entramos.

Is ra el e eu fom os à fren te da t ropa . Um por teiro

ten tou fa zer-n os pa ra r n a por ta in ter ior . Pod ía m os ver qu e, lá den tro, pes s oa s s e volta va m e olh a va m pa ra n ós , quando irrompemos no saguão.

“Ei, ca ra , deixa a gen te en tra r !” d is s e Is ra el. “Nós s om os a ga n g. Os Ma u -Ma u s . O p rópr io pa d re n os convidou. Tem lugar reservado para nós.”

Lá n a fren te, u m m em bro dos Ch a p la in s n os viu , levantou-s e e gr itou : “Ei, Nicky, des ce a qu i, ca ra . Es tes lu ga res s ã o pa ra vocês .” Em pu rra m os o in decis o e es pa n ta do por teiro pa ra u m la do, e en tra m os empavonados na Arena.

Es tá va m os ves t idos com os n os s os u n iform es de Mau-Ma u . Nen h u m de n ós t irou o ch a péu p reto. Des -fila m os pelo corredor a ba ixo, ba ten do for te n o a s soalho com n os s a s ben ga la s , gr ita n do e a s s ob ia n do pa ra a multidão.

Olh a n do pa ra o povo, pu de ver m em bros de qu a -d r ilh a s r iva is . Ha via Bis h ops , GGI, bem com o a lgu n s Ph a n tom Lords d o pa rqu e da Av. Bedford . A a ren a es ta va qu a s e ch eia e con t in h a todos os ingredientes pa ra u m con flito em gra n de es ca la . Afin a l de con ta s , isso não seria mau.

O ba ru lh o era ter r ível. Sen ta m os e com eça m os a pa r t icipa r , a s s ob ia n do, gr ita n do e ba ten do com a s bengalas no chão.

Em u m d os la dos da p la ta form a , u m a jovem co-m eçou a toca r o órgã o. Um jovem p or to-r iqu en h o le-vantou-s e, deu u m m u rro n o peito com a s du a s m ã os , jogou a ca beça pa ra t rá s e gr itou : “Ó, J es u -u -u s ! Sa lve a m in h a a lm a gra n de e en ca rd ida .” Ca iu de n ovo n a ca deira en tre va ia s e ga rga lh a da s es t ron dos a s de todas as quadrilhas.

Vá r ios ra pa zes e m oça s fora m pa ra per to do órgão e com eça ra m a requ ebra r . As m en in a s ba m bolea va m a s ca deira s n u m r itm o du a s vezes m a is rá p ido do qu e a

m ú s ica , e os ra pa zes gin ga va m a o redor dela s . Ap la u s os e gr itos de a p rova çã o s a u da ra m a s u a p roeza . As cois a s estavam começando a sair dos limites.

De repen te, u m a jovem d ir igiu -s e a o cen tro do pa lco. Colocou -s e a t rá s do m icrofon e, a s m ã os u n ida s diante de si, esperando o barulho diminuir.

Aumentou. “Ei, boneca, requebra um pouco mais”, gritou a lgu ém . “Va m os m a rca r u m en con tro, qu er ida ?” Um ra pa z m a gro, qu e eu n u n ca t in h a vis to, levantou-se, fech ou os olh os , es ten deu os b ra ços , e d is s e, n u m tom efem in a do : “Mamãe!” A tu rba a u m en tou os a p la u s os e assobios.

A m oça com eçou a ca n ta r . Mes m o de n os s a p o-sição privilegiada, na terceira fileira, era impossível ouvir a s u a voz a cim a da ba lbú rd ia em qu e es ta va a m u lt idã o. En qu a n to ela ca n ta va , vá r ios ra pa zes e ga rota s levantaram-s e de s eu s lu ga res e com eça ra m a gira r e a da n ça r . As ga rota s , com “shorts” bem cu r tos , e os ra pa zes com ja qu eta s Ma u Ma u , s a pa tos pon tu dos e ch a péu s de pon ta , cober tos de fós foros e com u m a estrela prateada na frente.

A m oça term in ou o s eu câ n t ico e olh ou n ervos a -m en te em d ireçã o a os ba s t idores . Com eça m os a a clamar e a p la u d ir e ped ir ou tra ca n çã o. Con tu do, ela s a iu do pa lco e de repen te o p rega dor m a gr icela a va n çou pa ra o microfone.

Eu n ã o o vira des de a qu ele en con tro de m a dru -ga da , vá r ia s s em a n a s a n tes . Meu cora çã o deu u m s a lto e o ter ror voltou , com o a in u n dá -lo. Era com o u m a n u vem n egra qu e pen etra va em todos os reca n tos da m in h a pers on a lida de. Is ra el es ta va de pé. “Ei, Da vi! Es tou a qu i. Veja , eu d is s e qu e vir ia . E olh e qu em es tá aqui”, disse ele, apontando para mim.

Eu sabia que tinha de fazer algo ou iria arrebentar de m edo. Fiqu ei de pé e gr itei: “Ei, p rega dor , o qu e é qu e

você vai fazer: converter-nos, ou o quê ?”

Os Ma u -Ma u s a com pa n h a ra m em ga rga lh a da s e eu m e s en tei de n ovo, s en t in do-m e m elh or . Eles a in d a recon h ecia m a m in h a a u tor ida de. Apes a r de s en t ir -me petrifica do de ter ror e ter a bd ica do a p res idên cia em fa vor de Is ra el, a in da era o líder deles e a in da r ia m da s minhas piadas. Estava de novo no controle da situação.

O Rev. Wilkers on com eçou a fa la r : “Es ta é a ú lt im a n oite de n os s a ca m pa n h a pa ra a m ocida de de Nova York . Hoje va m os fa zer u m a cois a d iferen te. Vou ped ir a os m eu s a m igos , os Ma u -Ma u s , pa ra t ira rem a coleta.”

Ir rom peu o pa n dem ôn io. Os m em bros de toda s a s qu a dr ilh a s p res en tes n o a u d itór io con h ecia m a n os s a repu ta çã o. Ped ir a os Ma u -Ma u s pa ra t ira rem a coleta era com o ped ir qu e J a ck , o Es tr ipa dor , s ervis s e de a m a -seca. O pessoal começou a rir e a gritar.

Ma s eu es ta va de pé em u m s egu n do. Es t ivera es pera n do u m a opor tu n ida de pa ra m e m os tra r , pa ra ch a m a r a a ten çã o de todos s ob re m im , de m a n eira espetacular. Ch ega ra a h ora . Nã o pod ia im a gin a r qu e o p rega dor ir ia ch a m a r-n os , m a s s e ele qu er ia , n ós realmente o faríamos.

In d iqu ei ou tros cin co, in clu s ive Is ra el. “Você, você, você.. va m os .” Nós s eis m a rch a m os pa ra a fren te e n os a lin h a m os defron te a o pa lco. Atrá s de n ós o a u d itór io ficou em silêncio — silêncio mortal.

Da vi Wilkers on cu rvou -s e e en tregou a ca da u m de n ós u m a gra n de ca ixa d e pa pelã o. “Agora”, d is s e, “qu ero qu e vocês s e en fileirem a qu i d ia n te da p la ta -form a . O órgã o va i toca r e vou ped ir a o povo pa ra vir à fren te e da r a s u a ofer ta . Qu a n do term in a r , qu ero qu e vocês dêem a volta por a qu ela cor t in a e s u ba m a o pa lco. Eu esperarei até que tragam a coleta.”

Era bom dem a is pa ra s er verda de. Nin gu ém du -

vida va do qu e ir ía m os fa zer . Qu a lqu er s u jeito qu e n ã o aproveitasse uma situação daquelas seria um bobo.

A coleta foi gra n de. Os corredores es ta va m ch eios de gen te qu e s e d ir igia à fren te. Mu itos dos a du ltos dera m n ota s gra n des e ou tros dera m ch equ es . Se n ós ía m os receber a ofer ta , eu res olvi qu e ela dever ia s er bem boa . Algu n s dos m em bros da s qu a dr ilh a s viera m à fren te, requ ebra n do e da n ça n do pelo corredor . Algu n s n ã o p reten d ia m por d in h eiro n a ca ixa , m a s t ira r . Qu a n do is to a con tecia , eu pu n h a a m ã o n o bols o com o s e fos s e a ga rra r u m a fa ca e d izia : “Ei, es pere um m in u to, m eu ch a pa . Você s e es qu eceu de pôr a lgu m a coisa.”

Eles com eça va m a r ir , a té perceberem qu e eu fa -la va s ér io. “Ra pa z, o pa d re d is s e : dê! Você va i da r , ou preciso fazer com que os rapazes o tirem de você ?”

Quase todos fizeram alguma contribuição.

Quando todos tinham vindo à frente, acenei com a ca beça e n ós m a rch a m os pelo la do d ireito do a u d itório, a t ra ves s a n do a cor t in a qu e cobr ia a pa rede. Bem s obre a s n os s a s ca beça s es ta va u m let reiro en orm e, em let ra s verm elh a s , es cr ito : “SAÍDA” Pod ia s er vis to por todos , e tã o logo des a pa recem os por detrá s da s cor t in a s , a s ga rga lh a da s com eça ra m . No com eço era m a pen a s r is in h os rep r im idos . Pou co a pou co, com eça m os a ou vi-los a u m en ta rem n u m cres cen do, a té qu e todo o auditório estava contorcendo-se de rir do pobre pregador que fora logrado pelos Mau-Maus.

Reunimo-n os em círcu lo, a t rá s da cor t in a . Os ra -pa zes olh a ra m pa ra m im com gra n de expecta t iva , es -pera n do qu e eu lh es d is s es s e o qu e fa zer . Eu pod ia d izê-lo com os olh os . Es ta va m es pera n do u m s in a l. u m piscar de olh os em d ireçã o à s a ída , o qu e s ign ifica r ia : “Va m os correr . Va m os pega r es te d in h eiro e des a pa recer daqui.”

Todavia, algo dentro de mim estava me arrastando em ou tra d ireçã o. O p rega dor m e es colh era e dem on s tra ra con fia n ça n a m in h a pes s oa . Eu pod ia fazer o qu e a tu rba es pera va de m im , ou o qu e ele es pera va qu e eu fizes s e. A con fia n ça do p rega dor a cen deu u m a fa ís ca em m eu ín t im o. Em vez de p is ca r os olh os em d ireçã o da por ta de s a ída , s a cu d i a ca beça : “Não. Venham”, d is s e eu . “Va m os leva r es te s a qu e pa ra o magricela.”

Os ra pa zes qu a s e n ã o a cred ita va m , m a s t in h a m de fa zer o qu e eu lh es orden a va . Ha via dois ra pa zes n a m in h a fren te, qu a n do com eça m os a s u b ir os degraus por t rá s da p la ta form a . Um deles t irou u m a n ota de vinte da caixa e meteu-a no bolso da jaqueta.

“Ei, você! Qu e d ia ch o pen s a qu e es tá fa zen do ? Devolva esse dinheiro. Pertence ao padre.”

Eles olharam para mim, incrédulos.

“Ei, Nicky, n ã o fiqu e n ervos o. Veja qu e m on te. Nin gu ém va i fica r s a ben do... Va m os ! Há ba s ta n te pa ra todos nós e para ele também.”

Meti a m ã o n o bols o e n u m m ovim en to rá p ido s a qu ei a m in h a fa ca . Bra n d in do a lâ m in a a ber ta , d is se: “Meu ch a pa , is to va i s er s eu cem itér io, s e você n ã o devolver a gaita.”

Nã o h ou ve m a is d is cu s s ã o. Ele devolveu h u m il-demente, à caixa, a nota roubada.

“Es pera u m m in u to; a in da n ã o term in ou ”, d is s e eu. “Quanto dinheiro você tem no bolso, meninão?”

“Ora , Nicky, pu xa vida ”, ga gu ejou ele. “Es te d i-n h eiro é m eu . Min h a m ã e m e deu pa ra com pra r u m a calça.”

“Quanto?” pergu n tei de n ovo, a pon ta n do a pon ta brilhante da faca para o seu pomo de Adão.

Ele ficou verm elh o, en fiou a m ã o n o bols o e t irou duas notas de dez e uma de cinco. Eu disse: “Na caixa.”

“Meu ch a pa , você es tá lou co, ou o qu ê? Min h a velh a va i m e pela r vivo, s e eu perder es te d in h eiro.” Ele estava quase chorando.

“Bem , eu vou lh e d izer u m a cois a , m en in ã o: eu vou te pela r vivo a gora m es m o, s e você n ã o obedecer . Na caixa !”

Ele olh ou pa ra m im ou tra vez, com in credu lida de. O pu n h a l con ven ceu -o de qu e fa la va s ér io. Am a s s ou a s notas e atirou-as na caixa.

“Agora vamos”, disse eu.

Ma rch a m os em fila pa ra o pa lco. Um gru po de ra pa zes com eçou a va ia r . Pen s a va m qu e n ós ir ía m os en ga n a r o p rega dor e es ta va m decepcion a dos porqu e n ã o t ín h a m os fu gido com o d in h eiro, com o ter ia m feito. Porém , t ive a s en s a çã o a gra dá vel de s a ber qu e fizera u m a cois a cer ta . Um a cois a h on ra da . Pela p r im eira vez em toda a m in h a vida , a gira correta m en te porqu e quisera. A sensação era deliciosa.

“Aqu i, p rega dor!” d is s e eu , “is to é s eu .” Es ta va n ervos o, a li n a fren te da m u lt idã o. Qu a n do es ten d i a ele o dinheiro, o auditório ficou silencioso outra vez.

Da vi Wilkers on pegou a s ca ixa s de n os s a s m ã os e me olhou bem nos olhos. “Obrigado, Nicky. Eu sabia que pod ia con ta r com você.” Vira m os e, em fila , volta m os pa ra n os s os lu ga res . O a u d itór io es ta va tã o qu ieto qu e s e poder ia ou vir u m a lfin ete ca ir . O Rev. Wilkers on começou a pregar.

Fa lou du ra n te cerca de qu in ze m in u tos . Tod o mundo es ta va em s ilên cio, m a s eu n ã o ou vi p a la vra . Fiqu ei lem bra n do a s en s a çã o a gra dá vel qu e t ivera qu a n do lh e en trega ra o d in h eiro. In ter iorm en te, eu m e rep rova va por n ã o ter ca ído fora com a gra n a . Ma s a lgo

a dqu ir ira vida den tro de m im e eu s en t ia qu e a qu ilo cres cia . Era u m a s en s a çã o de bon da de — de n ob reza — de justiça. Sentimentos que eu jamais experimentara.

Fu i in ter rom pido n a m in h a s u ces s ã o de pen s a -mentos por uma desordem atrás de mim. Davi chegara a u m pon to do s erm ã o em qu e d izia qu e devem os a m a r u n s a os ou tros . Ele es ta va d izen do qu e os por to-r iqu en h os devem a m a r os ita lia n os , os ita lia n os devem a m a r os n egros , os n egros devem a m a r os b ra n cos , e todos devemos amar-nos uns aos outros.

Au gie leva n tou -s e por t rá s de m im : “Ei, p regador, você é m a lu co, ou cois a pa recida . Você qu er qu e eu a m e es s es gr in gos ? Es tá lou co! Olh e a qu i.” Leva n tou a ca m is a e m os trou u m a gra n de cica tr iz verm elh a n o s eu lado. “Há dois meses um daqueles guinéus sujos me deu u m t iro. Você a ch a qu e pos s o es qu ecer d is to ? Eu vou matar aquele... se eu o encontrar outra vez.”

“Ah , é ?” u m ra pa z den tre os ita lia n os leva n tou -se de u m s a lto e a b r iu a ca m isa. “Es tá ven do is to ?” Apontou uma cicatriz de faca que dava uma volta no seu om bro e des cia pelo peito. “Um n egro m e cor tou com u m a n a va lh a . Sim , eu vou a m á -los — com u m pa u d e fogo.”

Um n egr in h o leva n tou -s e, lá n o fu n do, e, com ven en o n a voz, gr itou : “Ei, gu in éu , você qu er expe-rimentar agora?”

De u m a h ora pa ra ou tra , a s a la es ta va ca r rega da de ód io. Um ra pa z n egro, dos Ch a p la in s , leva n tou -se derru ba n do ca deira s . Ten ta va a b r ir ca m in h o pa ra o lu ga r on de s e a ch a va m os Ph a n tom Lords . Sen t i qu e u m tumulto generalizado estava se formando.

Um fotógra fo des ceu pelo cor redor com a m áquina fotográ fica . Pa ra n do n a fren te, virou -s e e com eçou a tirar fotos.

Is ra el d ir igiu -s e ra p ida m en te a t rês dos ra pa zes

qu e es ta va m n a pon ta da fileir : “Agarrem-n o !” Eles levantaram-s e e en tra ra m em lu ta corpo-a -corpo com o fotógra fo. Um dos ra pa zes con s egu iu a r ra n ca r-lh e a m á qu in a da s m ã os e a t irou -a n o a s s oa lh o. Qu a n do o fotógra fo s e cu rvou pa ra a pa n h á -la , u m ra pa z do ou tro la do ch u tou -a corredor a ba ixo, a té a fren te do s a lã o. O fotógra fo a r ra s tou -s e de ga t in h a s a t rá s dela . No m om en to em qu e es ten deu u m a da s m ã os pa ra a pa n h á -la , ou tro ra pa z ch u tou a pa ra lon ge dele, em d ireçã o à pa rede, do ou tro la do. O fotógra fo já es ta va de pé, corren do a t rá s da m á qu in a , m a s a n tes qu e p u des s e alcançá-la , ou tro ra pa z ch u tou -a com força : ela des lizou pelo ch ã o e foi es pa t ifa r -s e n a pa rede de con creto — quebrada e inútil.

Todos es tá va m os de pé. O a u d itór io fervia de ód io. Eu p rocu ra va u m m eio de s a ir pa ra o corredor . Um “quebra-pau” em grande escala estava se formando.

De repen te, s en t i u m a n eces s ida de im per ios a de olh a r pa ra Da vi Wilkers on . Ele es ta va de pé n o pa lco, m u ito ca lm o. A ca beça cu rva da . As m ã os cru zadas d ia n te do peito. Eu pod ia ver s eu s lá b ios s e m ovendo. Sabia que orava.

Algo a per tou o m eu cora çã o. Pa rei e olh ei pa ra m im m es m o. Ao m eu redor , a ba dern a con t in u a va , m a s eu es ta va olh a n do p a ra den tro. Ali es ta va a qu ele homem fra n zin o, cora jos o, n o m eio de todo a qu ele per igo. De on de ele receb ia es s e poder? Por qu e n ã o t in h a m edo, como todos nós ? Senti-me envergonhado. Culpado.

A ú n ica cois a qu e eu s a b ia a cerca de Deu s era o qu e a p ren dera a o obs erva r a qu ele h om em . Pen s ei em m in h a ú n ica exper iên cia a n ter ior a res peito de Deu s . Qu a n do eu era cr ia n ça , m eu s pa is h a via m m e leva do à igreja. Estava cheia de gente. O padre mastigou algumas pa la vra s e o povo res pon deu ca n ta n do. Foi u m a h ora h orr ível. Na da pa recia a p lica r -s e a m im . Nu n ca m a is voltei.

Ca í s en ta do n a m in h a ca deira . Ao redor , o pa n -dem ôn io con t in u a va . Is ra el leva n tou -s e e olh ou para trá s . Com eçou a gr ita r : “Ei! Ca lm a ! Va m os ou vir o qu e o pregador tem a dizer.”

Os Ma u -Ma u s s e s en ta ra m . Is ra el con t in u ou gr i-ta n do, ped in do s ilên cio. O ba ru lh o a r refeceu . Com o u m n evoeiro vin do do m a r , o s ilên cio in va d iu o a u d itór io, da fren te pa ra o fu n do, e depois a s ga ler ia s . Ou tra vez u m silêncio mortal dominou o salão.

Algu m a cois a es ta va a con tecen do com igo. Es ta va recorda n do... Recordei a m in h a in fâ n cia — o ód io qu e ded ica va à m in h a m ã e. Recordei os p r im eiros d ia s em Nova York , qu a n do corr ia com o u m a n im a l s elva gem liber ta do de u m a ja u la . Foi com o s e es t ives s e em u m cin em a e a s m in h a s a ções fos s em pa s s a n do d ia n te dos m eu s olh os . Vi a s ga rota s ... o des ejo... o s exo. Vi a s fa ca da s ... a dor ... o ód io. Era qu a s e in s u por tá vel. Es ta va com pleta m en te in s en s ível a o qu e s e pa s s a va a o m eu redor . A ú n ica cois a qu e con s egu ia era recorda r ... Qu a n to m a is eu recorda va , m a ior era o s en t im en to de cu lpa e vergon h a . Tin h a m edo de a b r ir os olh os , tem en do qu e a lgu ém pu des s e olh a r den tro deles e ver o que eu estava vendo. Era repulsivo.

Da vi Wilkers on fa la va ou tra vez. Dis s e a lgo s obre a r repen d im en to de peca dos . Eu m e a ch a va s ob a in flu ên cia de u m poder u m m ilh ã o de vezes m a is for te do qu e qu a lqu er d roga . Nã o era res pon s á vel por m eu s m ovim en tos , m in h a s a ções ou pa la vra s . Era com o s e t ives s e s ido a pa n h a do por u m a corren teza s elva gem , em u m r io tu rbu len to. Nã o t in h a força s p a ra res is t ir . Nã o com preen d ia o qu e es ta va a con tecen do den tro de m im . Só sabia que o medo desaparecera.

Ao m eu la do, ou vi Is ra el a s s oa n do o n a r iz. Atrá s de m im , ou vi gen te ch ora n do. Algo es ta va va rren d o a qu ela a ren a lota d a , com o o ven to qu e ba la n ça a s copa s da s á rvores . Até a s cor t in a s , dos la d os do a u ditório,

com eça ra m a m over-s e e a fa r fa lh a r com o s e a n im a da s por um sopro misterioso.

Davi Wilkerson dizia: “Ele está aqui! Ele está nesta s a la . E le veio es pecia lm en te pa ra vocês . Se qu erem qu e s u a s vida s s eja m tra n s form a da s , es te é o m om en to exato.” Excla m ou en tã o com a u tor ida de : “Leva n tem s e ! Os qu e des eja m receber J es u s Cr is to e s er transformados — levantem-se! Venham à frente!”

Perceb i qu e Is ra el ficou de pé. “Ra pa zes , eu es tou indo. Quem vai comigo ?”

Eu es ta va de pé. Virei-m e pa ra a m in h a qu a dr ilha e a cen ei com o b ra ço : “Vamos.” Hou ve u m m ovimento es pon tâ n eo: leva n ta ra m -s e e fora m à fren te. Ma is de vin te e cin co dos Ma u -Ma u s a ten dera m a o a pelo. Atrá s de n ós , cerca de t r in ta ra pa zes de ou tra s qu a dr ilh a s seguiram o nosso exemplo.

Reunimo-n os de pé d ia n te do pa lco, olh a n do pa ra Davi, lá em cima. Ele terminou a reunião e convidou-nos pa ra s egu i-lo pa ra a s s a la s do fu n do, on de receber ía m os conselhos.

Is ra el ia à m in h a fren te, com a ca beça cu rva da , o len ço n o ros to. Atra ves s a m os a por ta e en con tra m o-nos em um vestíbulo que levava aos camarins.

Vá r ios m em bros da m in h a qu a dr ilh a es ta va m a li n o ves t íbu lo, da n do r is a d in h a s : “Ei, Nicky, o qu e é qu e h á , ca ra , você virou cren te ?” Leva n tei a ca beça , n a h ora em qu e u m a da s m en in a s d ir igiu -s e a n ós . Ela leva n tou a b lu s a e m os trou -n os o s eio n u . “Se você for lá , m eu bem, pode dizer adeus para isto aqui.”

Com preen do a gora qu e ela s es ta va m com ciú m e. Sen t ia m qu e ía m os repa r t ir n os s o a m or com Deu s e qu er ia m qu e o dés s em os s ó a ela s . Era tu do o qu e s a b ia m a cerca do a m or . Era tu do o qu e eu ta m bém con h ecia do a m or . Ma s , n a qu ela h ora , a qu ilo n ã o m e a t ra iu . Em pu rrei-a pa ra lon ge, cu s p in do n o ch ã o, e

disse: “Você m e en oja .” Na da m a is im por ta va n aquele m om en to, exceto o fa to de qu e eu des eja va s er s egu idor de Jesus Cristo — fosse ele quem fosse.

Um h om em fa lou a res peito da vida cr is tã . E , en -tã o, Da vi Wilkers on en trou: “O.K., ra pa zes ”, d is s e, “ajoelhem aqui no chão.”

Pen s ei qu e ele es ta va lou co. Eu n u n ca m e a joe-lh a ra d ia n te de n in gu ém . Ma s u m a força in vis ível m e p res s ion ou . Sen t i m eu s joelh os dobra rem . Nã o con segui perm a n ecer em pé. Foi com o s e u m a giga n tes ca m ã o es t ives s e m e em pu rra n do pa ra ba ixo, a té m eu s joelh os tocarem o solo.

O con ta to com o ch ã o du ro m e t rou xe de volta à rea lida de. Era verã o. Era época dos “quebra-paus”. Abr i os olh os e pen s ei: “O qu e você es tá fa zen do a qu i?” Is ra el es ta va a o m eu la do, ch ora n do a lto. No m eio de toda aquela tensão, comecei a rir.

“Ei, Is ra el, você es tá m e en ch en do com es s e ch o-ro.” Is ra el olh ou pa ra cim a e s orr iu en tre lá gr im a s . Ma s , qu a n do olh a m os u m pa ra o ou tro, eu t ive u m a es t ra n h a sensação. Senti lágrimas encherem os meus olhos, e dali a pou co ela s t ra n s borda ra m pelos ca n tos dos olh os e des cera m pela s m in h a s fa ces . Eu es ta va ch ora n do... Pela p r im eira vez, des de qu e ch ora ra à von ta de n o porã o da casa em Porto Rico, eu estava chorando.

Is ra el e eu es tá va m os de joelh os , la do a la do, com lá gr im a s corren do pela fa ce, m a s r in do a o m esmo tempo. Era um sentimento estranho, indescritível.

Lá gr im a s e r is os ... Eu m e s en t ia feliz, m a s ch o-ra va . Algo es ta va a con tecen do em m in h a vida , s ob re o qu a l eu a bs olu ta m en te n ã o t in h a con trole... e a qu ilo m e trazia felicidade.

De repen te, s en t i a m ã o de Da vi Wilkers on s obre a m in h a ca beça . Ele ora va por m im . As lá gr im a s correram m a is livrem en te qu a n do ba ixei a ca beça , e a vergon h a , o

a rrepen d im en to, e a m a ra vilh os a a legr ia da s a lva çã o misturaram-se em minha alma.

“Con t in u e, Nicky”, d is s e ele. “Con t in u e ch ora n do. Derra m e a s u a a lm a d ia n te de Deu s . Cla m e a ele.” Abr i a boca , m a s a s pa la vra s qu e s a íra m n ã o era m m in h a s . “Ó Deus, se você me ama, vem para a minha vida. Estou ca n s a do de fu gir . Vem tra n s form a r m in h a vida . Por favor, transforma-me.”

Foi s ó is s o. Ma s s en t i-m e en volvido e leva do pa ra o céu.

Ma con h a ! Sexo ! Sa n gu e! Toda s a s em oções s á -d ica s e im ora is de u m m ilh ã o de vida s ju n ta s n ã o pod ia m igu a la r -s e a o qu e eu s en t ia . Fu i litera lm en te batizado com amor.

Depois qu e a cr is e em ocion a l pa s s ou , Da vi Wilkers on m en cion ou a lgu n s vers ícu los da Es cr itu ra pa ra n ós : “Se a lgu ém es tá em Cris to, é n ova cr ia tu ra : a s coisas antigas já passaram: eis que se fizeram novas.” (II Cor. 5:17.)

Era is to m es m o. Pela p r im eira vez n a vida eu com preen d ia . Eu fora ren ova do. Eu era Nicky, m a s n ã o era m a is Nicky. A velh a vida h a via d es a pa recido. Era com o s e eu t ives s e m orr ido pa ra a velh a vida — m a s estava vivo, em uma vida nova.

Felicida de. Alegr ia . Gozo. Alívio. Liberda de. Ma-ravilhosa, maravilhosa liberdade.

Eu parara de fugir.

Todos os m eu s tem ores t in h a m fin da do. Toda a minha ansiedade terminara. Todo o meu ódio se fora. Eu a m a va a Deu s ... a J es u s Cr is to... e a toda s a s pes s oa s a o m eu redor . Am a va a té a m im m es m o. O ód io qu e s en t ira por m im m es m o t ra n s form a ra -s e em a m or . De repen te, com preen d i qu e a ra zã o pela qu a l eu p rocedera de forma tão mesquinha em relação à minha pessoa, era

porqu e eu rea lm en te n ã o a m a va a m im m es m o com o Deus queria que amasse.

Is ra el e eu n os a b ra ça m os . Lá gr im a s n os corr ia m pelo ros to, m olh a n do a ca m is a u m do ou tro. Eu o amava. Ele era meu irmão.

Da vi Wilkers on s a íra , m a s já es ta va de volta à s a la . Eu o a m a va ta m bém . Aqu ele p rega dor fra n zin o e s orr iden te em qu em eu cu s p ira s em a n a s a t rá s — eu o amava.

“Nicky, Is ra el”, d is s e ele, “qu ero da r u m a Bíb lia a vocês. Tenho bíblias para todos os outros Maus também. Venham comigo.”

Nós o s egu im os a té ou tra s a la . Ali, em ca ixa s qu e es ta va m n o ch ã o, h a via exem pla res do livro p reto. Ele s e cu rvou , pegou a lgu n s n ovos tes ta m en tos , ta m a n h o de bols o, e com eçou a n os da r . “Ei, Da vi”, pergu n tei, “e a qu eles livros gra n des ? Nós poder ía m os ga n h a r dos gra n des ? Qu erem os qu e todo m u n do s a iba qu e a gora somos cristãos “

Da vi pa receu s u rp res o. Os “livros gra n des ” era m exatamente isso. Eram bíblias enormes, de púlpito. Mas, os ra pa zes qu er ia m a qu ela s e ele es ta va d is pos to a dá -las.

“Menino”, d is s e Is ra el r in do pa ra m im , “qu e ta l ? Um a Bíb lia de dez qu ilos !” Eu ta m bém a ch a va , m a s o peso dela era pequeno em comparação com o peso tirado do m eu cora çã o n a qu ela n oite, qu a n do o peca do fora removido e o amor inundara.

Ta rde da n oite, s u b i os degra u s pa ra o m eu qu a r-to, com o u m a n ova pes s oa . Era m pou co m a is d e on ze h ora s , o qu e pa ra m im era cedo, m a s eu es ta va a n sioso pa ra volta r a o m eu qu a r to. Nã o h a via m a is n eces s ida d e de correr . As ru a s n ã o t in h a m m a is a t ra t ivo pa ra m im . Nã o s en t ia m a is n eces s ida de de s er recon h ecido com o chefe de gang. Não tinha mais medo da noite.

En trei, d ir igi-m e a o gu a rda -rou pa , t irei o b lu s ã o Mau-Ma u e os s a pa tos pon tu dos e coloqu ei-os em u m a sacola. “Nu n ca m a is ”, pen s ei. “Nã o vou p recis a r m a is disso.” Es ten d i a m ã o pa ra a p ra teleira e t irei o revólver . Por força do h á b ito, com ecei a por a s ba la s n o ta m bor , pa ra dorm ir com o revólver n o cr ia d o-mudo. Porém , de repen te, lem brei. J es u s m e a m a . Ele m e p rotegerá . Tirei a s ba la s , coloqu ei-a s de volta n a ca ixin h a e devolvi o revólver à prateleira. De manhã, iria entregá-lo à polícia.

Pa s s ei pelo es pelh o. Nã o pod ia crer n os m eu s olhos. Havia uma luz radiosa em minha face, que jamais vira. Sorri para mim mesmo. “Ei, Nicky, veja como você é s im pá t ico. Pen a qu e ten h a de des is t ir de toda s a s ga rota s , a gora qu e é tã o s im pá t ico.” Dei u m a ga rga lh a da , d ia n te da iron ia de tu do a qu ilo. Ma s es ta va feliz. O peso dos temores se fora. Podia rir.

Ajoelhei-m e a o la do da ca m a , e jogu ei a ca b eça pa ra t rá s . “Jesus...” n ã o pu de d izer m a is n a da . “Jesus...” Fin a lm en te viera m a s pa la vra s . “Obrigado, Jesus... obrigado.”

Na qu ela n oite, pela p r im eira vez, a o qu e m e lem -bra va , pu s a ca beça n o t ra ves s eiro e dorm i m a ra vi-lh os a m en te du ra n te n ove h ora s . Na da de rola r n a ca m a . Nen h u m m edo de ru ídos fora do qu a r to. Os pesadelos tinham terminado.

Capítulo 11

SS AAIINNDD OO DD OO DD EE SS EE RR TTOO

NO DIA SEGUINTE, bem cedo, eu já estava na rua p rocu ra n do os ra pa zes qu e h a via m ido à fren te, n a n oite a n ter ior . Dis s e-lh es qu e t rou xes s em a s a rm a s e a

m u n içã o, e s e en con tra s s em com igo n a Pra ça Washington. Íamos marchar para a delegacia de polícia.

Voltando ao meu quarto, pus o revólver no cinto e, pega n do m in h a Bíb lia gra n de, voltei à Pra ça Wa s h in gton para encontrar os outros.

Des cen do pela Ru a For t Green e, qu a s e dei de en con tro com u m a velh a s en h ora ita lia n a qu e já vira a n tes . No pa s s a do ela cos tu m a va a t ra ves s a r a ru a qu a n do m e via . Des ta vez leva n tei m eu gra n de livro p reto qu e, em let ra s dou ra da s , t in h a a s pa la vra s “Bíblia Sagrada” na capa, e aproximei-me dela.

“On de você rou bou es s a Bíb lia ?” A velh a a r rega -lou os olhos.

“Nã o rou bei. Ga n h ei de u m p rega dor .” Dei u m a risada.

Ela ba la n çou a ca beça . “Nã o s a be qu e n ã o d eve mentir s ob re a s cois a s s a gra da s ? Deu s va i ca s t iga r você”.

“Nã o es tou m en t in do. Deu s n ã o va i m e ca s t iga r , porqu e m e perdoou . Es tou in do pa ra a delega cia , pa ra entregar o meu revólver.”

Abri a camisa e mostrei a arma debaixo do cinto.

Seu s olh os m overa m -s e do revólver pa ra a Bíb lia : “Aleluia!”, gritou ela, enquanto seu rosto se abria em um sorriso. Levantando os braços, gritou de novo: “Aleluia!”

Sorr i e pa s s ei por ela , em d ireçã o à Pra ça Wa s h in gton . Cerca de vin te e cin co Ma u -Ma u s es ta va m a li. Is ra el orga n izou -os , e m a rch a m os pela Ru a St . Edwa rd , a té a Delega cia de Polícia n a es qu in a da Ru a Auburn.

Nã o pen s a m os n o qu e a polícia poder ia a ch a r de n os s a a t itu de. Vin te e cin co dos m a is en du recidos m em bros de qu a d r ilh a s do Brook lin , m a rch a n do pelo

m eio da ru a , ca r rega n do u m a rs en a l de a rm a s e m u -n ições . Ten h o a gra decido a Deu s m u ita s vezes pelo fa to deles não nos terem visto antes de chegarmos à porta da delega cia . Se n os t ives s em vis to a u m qu a r teirã o d e d is tâ n cia , ter ia m ergu ido ba rr ica da s à s por ta s e provavelmente atirado em nós ainda de longe.

Qu a n do en tra m os , o s a rgen to leva n tou -s e de u m salto e procurou o revólver. “O que é que há, rapazes ? O que estão querendo agora?”

“Ei, ca lm a , s eu gu a rda ”, d is s e Is ra el, “n ã o qu e-remos encrenca. Viemos entregar nossas armas.”

“En trega r o qu ê?” d is s e o s a rgen to. “Qu e n egócio é es s e a fin a l?” Virou -s e e gr itou por t rá s do om bro: “Delegado, acho que é melhor o senhor vir aqui já.”

O delega do a pa receu à por ta : “O qu e é qu e es s es ra pa zes es tã o fa zen do a qu i ?” pergu n tou a o s a rgento, “o que é que há?”

Is ra el virou -s e pa ra o delega do : “Nós todos demos o cora çã o pa ra Deu s , e a gora qu erem os da r n ossos revólveres para a polícia.”

“É s im ”, con cordou u m dos ra pa zes , “qu em s abe vão servir para vocês atirarem nos moleques malvados .”

Todos r im os , e o delega do virou -s e pa ra o s a r -gento: “Será verda de? En tã o é m elh or m a n da r a lguns gu a rda s da r u m a olh a da lá fora . Pode s er u m a emboscada, ou coisa parecida.”

Dei u m pa s s o à fren te: “Ei, delega do olh e a qu i.” Leva n tei a m in h a Bíb lia . “O p rega dor n os deu es ta s b íb lia s on tem à n oite, depois qu e todos n ós en tregamos o cora çã o a Cr is to. Nã o va m os m a is s er m em bros de quadrilhas. Agora, somos crentes.”

“Que pregador ?” perguntou o delegado.

“Ora , Da vi Wilkers on . Aqu ele p rega dor m a gr in h o

qu e tem es ta do por a qu i, con vers a n do com os m em bros da s qu a dr ilh a s . Teve u m a gra n de reu n iã o n a Aren a St . Nich ola s on tem à n oite, e n ós todos n os en trega m os a Deus. Se não acredita na gente, telefona pra ele.”

O delega do olh ou p a ra o s a rgen to: “Você tem o telefone do pregador ?”

“Sim , s en h or ; es tá h os peda do em ca s a de u m a ta l Sra. Ortez.”

“Chame-o e d iga -lh e pa ra vir a qu i o m a is depressa pos s ível. Pode s er qu e es teja m os m et idos em gra n de en cren ca . Se is to foi a lgo in ven ta do por ele, vou m etê-lo na cadeia tão depressa que ele vai ficar tonto.”

O s a rgen to fez a liga çã o, e en tregou o fon e pa ra o delegado.

“Reveren do Wilkers on ? É bom o s en h or vir a qu i a gora m es m o. A s a la es tá ch eia de Ma u -Ma u s , e eu n ã o s ei o qu e es tá a con tecen do.” Hou ve u m a pa u s a , e depois o delegado colocou o fone no gancho.

“Ele es tá a ca m in h o. Ma s a n tes de ch ega r qu ero suas armas — todas.”

“Cla ro, gen era l”, d is s e Is ra el, “é pa ra is s o qu e es ta m os a qu i.” Depois , vira n do-s e pa ra a tu rm a , d is s e : “Va m os , tu rm a . Tra ga m os revólveres e pon h a m n o balcão. Deixem as balas também.”

Os policia is n ã o pod ia m crer n o qu e via m . A essa a ltu ra m a is qu a tro gu a rda s t in h a m ch ega do, e ficaram a li com os olh os a r rega la dos de in credu lida de pa ra o m on te de p is tola s , revólveres de fa b r ica çã o ca s eira e espingardas pica-pau, que crescia mais e mais.

Qu a n do term in a m os , o delega do s ó ba la n çou a ca beça . Vira n do-s e pa ra Is ra el, d is s e: “Pois bem s u pon h a m os qu e a gora você m e con te a verda de s obre o que está acontecendo.”

Is ra el rela tou ou tra vez o qu e h a via s u ced ido n a Aren a St . Nich ola s . Dis s e-lh e qu e n ós a gora éra m os cren tes , e com eça r ía m os u m a vida d iferen te. Depois pergu n tou a o delega do s e ele pod ia a u togra fa r a s u a Bíblia.

Is to pa receu -n os u m a gra n de idéia , e n ós todos reunimo-n os em torn o dele e dos gu a rda s , ped in do-lhes que autografassem nossas bíblias.

Na qu ele m om en to, Da vi em pu rrou a por ta . Deu u m a olh a da rá p ida pa ra n ós e ca m in h ou d ireto pa ra o delega do. Es te ped iu qu e todos os ou tros gu a rda s en tra s s em n a s a la . “Reverendo”, d is s e ele, “quero apertar a sua mão

Da vi Wilkers on olh ou em torn o de s i com u m a r s u rp res o, m a s es ten deu a m ã o qu e o delega do a per tou firmemente.

Como é que o Senhor conseguiu isto ?” perguntou. Es tes ra pa zes decla ra ra m gu erra con tra n ós , e s ó tem n os da do t ra ba lh o, du ra n te a n os . Agora , s em n in gu ém espera r , en tra toda es ta t rop a a qu i, e o s en h or s a be o que eles queriam ?”

Davi sacudiu a cabeça em negativa.

“Queriam nosso autógrafo em suas bíblias.”

O Rev. Wilkers on es ta va s em fa la “Vocês ped iram aos policiais o quê ?” gaguejou

Abr i m in h a Bíb lia e m ostrei-lh e o a u tógra fo d o delegado na folha de rosto.

“Bem , glór ia a Deu s !” d is s e Da vi. “Veja , delegado, Deus está operando aqui em Fort Greene!”

Sa ím os todos pa ra a ru a e deixa m os o h om em s a cu d in do a ca beça , es tu pefa to, ten do u m a p ilh a de armas amontoadas no balcão, diante dele.

Aglomeramo-n os a o redor do Rev. Wilkers on .

Is ra el fa lou : “Ei, Da vi, pa s s ei a m a ior pa r te da n oite len do a Bíb lia . Veja ! Eu es tou n a Bíb lia . O m eu n om e está em toda parte. Viu ? Israel. Sou eu. Sou famoso.”

Vá r ia s s em a n a s depois , o Rev. Arce, pa s tor de u m a igreja cu jos cu ltos era m rea liza dos em es pa n h ol, chamada Iglesia de Dios J u a n 3 :16 , veio a o m eu a pa r-ta m en to. Is ra el es ta va lá . Pa s s a m os m u ito tem po ju n tos , len do a Bíb lia e a n da n do pelo qu a r to, ora n do em voz alta. O Rev. Arce queria que fôssemos à sua igreja no dia s egu in te, pa ra da r tes tem u n h o. Era u m cu lto de qu a r ta -feira à n oite, e ele p rom eteu pa s s a r em m in h a ca s a pa ra apanhar-nos.

Foi o primeiro culto verdadeiro que assisti em uma igreja . Ca n ta m os du ra n te qu a s e u m a h ora . Is ra el e eu es tá va m os n a p la ta form a , e o tem plo s e en con trava lota do. O Rev. Arce p regou u m s erm ã o m a is ou m en os longo, e depois chamou-me para dar meu testemunho.

Depois qu e term in ei de fa la r , s en tei-m e n a p r i-meira fileira e ouvi Israel dar o dele.

Foi a p r im eira vez qu e o ou vi fa la r em pú b lico. Ele levantou-s e detrá s do pú lp ito; s eu ros to s im pá t ico ir ra d ia va o a m or de Cr is to. Com voz s u a ve com eçou a con ta r os a con tecim en tos qu e m otiva ra m a s u a con vers ã o. Em bora t ivés s em os pa s s a do ju n tos a m a ior pa r te da s ú lt im a s s em a n a s , n a qu ela n oite eu obs ervei n ele u m a p rofu n d ida de de s en t im en tos e de expres s ã o qu e n ã o vira a n tes . Su a s pa la vra s leva ra m -m e de volta à Aren a St . Nich ola s , qu a n do ele tã o p ron ta m en te a ten dera a o eva n gelh o. Pen s ei n a m in h a p rópr ia a t itu de pa ra com Da vi. Tivera ód io dele — Deu s s a be com o eu o od ia ra ! Com o pu dera es ta r tã o er ra do ? Tu do o qu e ele qu er ia era deixa r Deu s m e a m a r a t ra vés dele — m a s , n a m in h a ign orâ n cia , eu cu s p ira n ele, xin ga ra e des eja ra matá-lo.

A m en çã o do n om e de Da vi, feita por Is ra el, t rou -xe-me de novo para a realidade.

“Eu a in da es ta va tes ta n do a s in cer ida de do Rev. Wilkerson”, d izia Is ra el, rela ta n do s eu s s en t im en tos depois da qu ela p r im eira reu n iã o a o a r livre, em qu e ouvira Davi pregar.

“Cer ta ta rde, ele veio à m in h a ca s a e ped iu -me pa ra a p res en tá -lo a a lgu n s d os líderes de ou tra s ga n gs . Ele qu er ia con vidá -los pa ra a s reu n iões qu e es ta va realizando na Arena St. Nicholas.

“Com eça m os a a n da r ju n tos pelo ba ir ro de Brook lin , e eu m os trei-lh e J o-J o, qu e era p res iden te dos Dragon s de Con ey Is la n d , u m a da s m a iores qu a dr ilh a s de ru a da cida de de Nova York . Só in d iquei-o. Nã o qu er ia qu e ele s ou bes s e qu e eu o iden t ifica ra pa ra Da vi pois os Dragons eram grandes inimigos dos Mau-Maus.

“Dis s e a Da vi qu e ia pa ra ca s a . Qu a n do ele s e enca m in h ou pa ra J o-J o, es con d i-m e por t rá s da es ca -da r ia de u m p réd io de a pa r ta m en tos , pa ra ou vir . J o-Jo olh ou bem pa ra ele e depois cu s p iu n os s eu s s a pa tos . Es s e é o m a ior s in a l de des p rezo qu e s e pode de-m on s tra r a u m in d ivídu o. J o-J o n ã o d is s e pa la vra : s ó cu s p iu n os s a pa tos de Da vi. Depois , virou -s e de cos tas para ele e sentou-se nos degraus da escada.

“Jo-J o n ã o t in h a ca s a . De fa to, n ã o pos s u ía cois a a lgu m a . Dorm ia n a p ra ça du ra n te o verã o, e qu a n do ch ovia ou fa zia fr io, dorm ia n o m etrô. J o-J o era u m rema ta do va ga bu n do. Rou ba va rou pa s da s ca ixa s gra n des qu e fica va m n a s es qu in a s pa ra a s orga n iza ções ben eficen tes , e u s a va -a s a té qu e fica va m em fa r ra pos e, depois roubava mais.

“Na qu ele d ia ele u s a va u m pa r de a lpa rga ta s ve-lh a s e s u ja s , com os dedões a pa recen do, e gra n des ca lça s velh a s a m a rfa n h a da s , qu e s ervir ia m bem pa ra um gorducho.

“Es ta va cer to de qu e s e Da vi Wilkers on fos s e u m im pos tor , s er ia des m a s ca ra do em s eu en con tro com J o-

Jo. Jo-Jo era esperto, e descobriria logo um impostor. Se ele não fosse sincero, Jo-Jo lhe daria uma facada.

“Ele leva n tou os olh os pa ra Da vi e d is s e: “Vá em bora , h om em r ico. Você é u m es t ra n h o a qu i. Você ch ega a Nova York , fa la n do bon ito, d izen do qu e Deu s t ra n s form a a s pes s oa s . Tem s a pa tos n ovos , bem en -gra xa dos , e ca lça s n ova s — e n ós n ã o tem os n a da . Min h a velh a m e ch u tou pa ra fora de ca s a , porqu e tem dez cr ia n ça s lá n o n os s o bu ra co, e n eca de d in h eiro. Te m a n ca , ca ra , eu con h eço o s eu t ipo. Você es tá a qu i vis ita n do os gu etos com o a qu eles ca ra s r icos qu e leva m s eu s ôn ibu s pelo ba ir ro de Bowery. Pra fim de con vers a , é m elh or você da r n o pé a n tes qu e a lgu ém en fie u m a faca na sua barriga.”

“Eu perceb i qu e a lgu m a cois a es ta va a per ta n do o cora çã o de Da vi. Pode s er qu e ele s ou bes s e qu e J o-Jo fa la va a verda de. Ma is ta rde ele m e d is s e qu e foi por ter lem bra do de a lgo qu e u m cer to Gen era l Booth d is s era : “É im pos s ível a qu ecer o cora çã o dos h om en s com o a m or de Deu s , qu a n do s eu s pés es tã o du ros de fr ios .” Pode s er qu e eu n ã o es teja cita n do textu a lm en te s u a s pa la vra s , m a s de qu a lqu er form a Da vi d is s e qu e is s o passara pela sua mente. E sabem o que ele fez ? Sentou-s e n a qu eles degra u s — bem a li n a ru a — t irou os sapatos e entregou a Jo-Jo.

“Jo-J o olh ou es pa n ta do pa ra Da vi e d is s e: “Que es tá ten ta n do p rova r , p rega dor ? qu e tem cora çã o, ou o quê ? Eu não vou calçar seus sapatos fedidos.”

“Ma s Da vi res pon deu -lh e à qu eim a -roupa: “Meu chapa”, disse ele, “você estava choramingando por causa de sapatos. Agora, calce, ou pare de chorar.”

“Jo-J o res pon deu : “Ma s eu n u n ca t ive u m s a pa to novo.”

“Davi apenas continuou dizendo: “Calce.”

“Jo-J o ca lçou a s s im o s a pa to de Da vi. Em s egu i-

da , es te com eçou a a fa s ta r -s e em d ireçã o a o ca r ro. Con t in u ei es con d ido por t rá s dos degra u s , en qu a n to J o-J o corr ia a t rá s de Da vi ru a a ba ixo. O pobre Da vi es ta va s ó de m eia , e teve de a n da r a s s im dois qu a r teirões pa ra ch ega r a o ca r ro, en qu a n to todo m u n do r ia e ca çoa va dele. Foi aí que tive a certeza de que ele era sincero.”

Is ra el pa rou u m p ou co, rep r im in do a s lá gr im a s . “Na da do qu e Da vi d is s era a té en tã o m e im pres s ionara. Ma s a qu ele h om em n ã o era u m im pos tor : ele vivia o qu e p rega va . Perceb i qu e n ã o p oder ia res is t ir à es pécie d e poder qu e pod ia leva r u m h om em a u m a to com o a qu ele em fa vor de a lgu ém com o J o-Jo.” Depois do cu lto, a t ra ves s ei va ga ros a m en te a m u lt idã o, a in da em ocion a do com o t ra ba lh o e com o poder da p res en ça de Deu s den tro de m im , en qu a n to fa la ra . Fiqu ei pen s a n do qu e ta lvez ele qu is es s e qu e eu fos s e p rega dor . Ser ia a qu ela a s u a form a de comunicar-s e com igo? Nã o en con trei a res pos ta , m a s s en t i qu e p recis a va de tem po pa ra pen s a r no assunto.

O pes s oa l a in da con vers a va n o ves t íbu lo e n a ca lça da , em fren te a o tem plo. Con t in u a va receben do cu m prim en tos a o s a ir pela por ta cen tra l. Na qu ele m o-m en to, dois ca r ros do ou tro la do da ru a liga ra m os m otores . Ou vi u m gr ito de m u lh er . Olh a n do n a qu ela d ireçã o, vi ca n os de es p in ga rda s a in do pela s ja n ela s , e recon h eci a lgu n s dos Bis h ops . Eles com eça ra m a a t ira r s elva gem en te em m in h a d ireçã o, en qu a n to os ca r ros a r ra n ca va m velozm en te. Ha via gen te ca in do em fren te à igreja , e ou tros corren do a ter ror iza dos pa ra den tro do tem plo, p rocu ra n do es ca pa r à fu zila r ia . Aba ixei-m e por t rá s de u m a por ta , en qu a n to ba la s r icoch etea va m n a pa rede de ped ra , a o m eu la do. Os ca r ros des a pa recera m na noite.

Qu a n do a con fu s ã o s e d is s ipou , u m s en h or de ida de en caminhou-s e pa ra m im e rodeou -m e os om bros com o b ra ço : “Filh o, n ã o fiqu e des a n im a do. O p rópr io

J es u s foi ten ta do n o des er to, depois do s eu ba t is m o. Deve sentir-se honrado pelo fato de Satanás ter marcado você pa ra s er pers egu ido. Eu p revejo qu e fa rá gra n des cois a s pa ra Deu s , s e pers evera r .” Deu -m e u m a s pa lm a d in h a s n o om bro e des a pa receu n o m eio da multidão.

Eu n ã o s a b ia o qu e era “perseverar”, con tu do qu er ia fa zer gra n des cois a s p a ra Deu s . Ma s n ã o es tava m u ito cer to de s er u m a h on ra o fa to de Sa ta n á s ter mandado os Bishops para me matar.

O a m bien te pa recia ter -s e a ca lm a do e s a í de n ovo, in icia n do o lon go ca m in h o de volta p a ra ca s a . O Rev. Arce leva ra Is ra el de ca r ro p a ra ca s a , m a s eu qu is ir a pé. Precis a va pen s a r . O Sr . Delga do, qu e es t ivera trabalhando com Davi Wilkerson, convidara-me para ir à sua casa passar a noite com ele. Era um homem amável, gen t il, bem ves t ido. Pen s ei qu e ele devia s er m u ito r ico. Fiquei envergonhado dos meus maus modos, das roupas velh a s , e recu s ei o con vite. E le m e deu u m a n ota de u m dóla r , e m e d is s e qu e s e p recis a s s e de d in h eiro, ba s ta va avisá-lo.

Agra deci e com ecei a volta r pa ra o a p a r ta m en to. Ao a t ra ves s a r a Av. Va n derb ilt , vi Loca d ia n te do s eu apartamento. “Ei, Nicky, on de você tem es ta do todo es s e tempo ? Disseram que saiu da quadrilha. É verdade ?”

Disse-lhe que sim.

“Pu xa , ra pa z, você es tá fa zen do fa lta . J á n ã o é a mesma coisa, sem você lá. Por que não volta ?”

De repen te, a lgu ém m e a b ra çou por t rá s . Eu r i: “Pu xa , vocês qu erem m es m o qu e eu volte, h ein ?” pen s a n do qu e fos s e u m dos n os s os . O ros to de Loca transfigurou-s e, gela do de ter ror . Virei a ca beça de-p res s a , e recon h eci J oe, u m Apa ch e a qu em h a víamos raptado e queimado.

Es ta va lu ta n do pa ra m e liber ta r qu a n d o vi a fa ca

n a m ã o dele. J oe m e s egu rou por t rá s pa ssando a m ã o es qu erda em volta do m eu pes coço, en qu a n to b ra n d ia a lâ m in a s obre o m eu om bro, em d ireçã o a o cora çã o. Leva n tei a m ã o d ireita pa ra fru s t ra r o golpe d a qu ela lâ m in a de vin te e qu a tro cen t ím etros e ela m e fer iu n a mão, entre o anular e o mínimo, atravessando-me a mão e esfolando um pouco o peito.

Girei sobre mim mesmo, e ele me golpeou de novo. “Des ta vez eu te m a to”, u ivou . “Pen s a qu e pode fu gir , fica n do es con d ido d etrá s de u m a igreja , m a s es tá m u ito en ga n a do, m eu velh o. Vou fa zer u m fa vor pa ra o m u ndo e matar um covarde que virou honesto.”

Gr itei pa ra Loca : “Sa ia da qu i! Es te ca ra es tá louco!”

Ele a va n çou pa ra m im e deu u m a fa ca da em d i-reçã o a o m eu es tôm a go, m a s pu lei pa ra t rá s e a rranquei a a n ten a de u m ca rro qu e es ta va es ta cion a do a li. Agora podía m os lu ta r de igu a l pa ra igu a l. Na s m in h a s m ã os , a a n ten a era u m a a rm a tã o m or t ífera qu a n to a peixeira dele.

Rodeei o ra pa z, es gr im in do n o a r com a va ra d e m eta l. Es ta va a gora de volta a o m eu elem en to. Sen t i-me con fia n te de qu e poder ia m a tá -lo. Por exper iên cia , eu s a b ia qu a l s er ia o s eu p róxim o m ovim en to. Qu a n do ele a r rem etes s e con tra m im com a fa ca , da r ia u m pa s s o a t rá s , fa zen do com qu e perdes s e o equ ilíb r io. Pod ia cegá-lo, gira n do o corpo e o b ra ço e a t in gin do-o n os olhos, e paralisá-lo ou matá-lo com um segundo golpe.

Segurei a antena com a mão esquerda, enquanto a d ireita , qu e p in ga va s a n gu e do fer im en to qu e ele m e fizera, conservava à minha frente para me resguardar da faca.

“Va m os , m en in o”, coch ich ei, “ten te m a is u m a vez. Só uma vez. Será a última.”

Os olh os de J oe es ta va m a per ta dos , ch eios de

ód io. Eu s a b ia qu e ter ia de m a tá -lo, porqu e n a da m a is o faria parar.

Ele a va n çou pa ra m im , e eu dei u m pa s s o a t rá s , e a fa ca s ib ilou , qu a s e toca n do o m eu es tôm a go. Agora ! Ele perdera o equ ilíb r io. Leva n tei a a n ten a com o u m chicote, para bater-lhe no rosto desprotegido.

Repen t in a m en te, s en t i com o s e a m ã o de Deu s t ives s e a ga rra do o m eu b ra ço. “Dê a ou tra fa ce.” A voz era a u d ível, e m u ito rea l. Olh ei pa ra a qu ele Apa ch e n ã o com o u m in im igo, m a s com o u m a pes s oa . Sen t i pen a dele, a li n o m eio da n oite, cu s p in do pa la vrões , com o ód io gra va do em s eu ros to. Vi-m e n o s eu lu ga r , a lgu m a s s em a n a s a t rá s , n a ru a es cu ra , p rocu ra n do m a ta r u m inimigo.

Orei. Pela primeira vez na vida, orei por mim:

“Deus, ajuda-me.”

O Apa ch e recu perou o equ ilíb r io e olh ou pa ra mim: “O que você disse ?”

“Deu s , a ju da -me”, eu repet i. E le pa rou e a r rega lou os olhos.

Loca correu , en fia n do o ga rga lo qu ebra do de u m a garrafa em minha mão : “Corta a cara dele, Nicky.”

O rapaz começou a correr.

“Atira nele, Nicky, atira nele !”

Leva n tei o b ra ço, m a s em vez de a t ira r o ca co de ga rra fa n o Apa ch e qu e fu gia , a t irei-o con tra a pa rede do prédio.

Depois , pegu ei u m len ço e en rolei-o n a m ã o qu e s a n gra va m u ito. Ficou logo em pa pa do de s a n gu e e Loca s u b iu corren do a o s eu qu a r to, e t rou xe u m a toa lh a de ba n h o pa ra a bs orver o s a n gu e. Ela qu is m e leva r pa ra ca s a , m a s eu d is s e qu e era ca pa z de ir s ozin h o, e fu i embora.

Tin h a m edo de ir a o h os p ita l, m a s s a b ia qu e p recis a va de a ju da . J á es ta va fica n do fra co devido à perda de s a n gu e. Precis a va a t ra ves s a r a Pra ça Wa s h in gton e a Pra ça Fu lton , pa ra ch ega r a o Hos p ital Cu m ber la n d . Ach ei m elh or ir a n tes qu e m e es va ís s e em s a n gu e e m orres s e. De pé n a es qu in a de De Ka lb , per to do Corpo de Bom beiros , eu es pera va a lu z do s em á foro a cen der , m a s s en t i a ca beça ton ta e res olvi a t ra ves s a r a rua antes de desmaiar.

Ca m ba leei pelo m eio do t rá fego. En tã o ou vi u m gr ito, e u m dos Ma u -Ma u s veio corren do pela ru a p a ra m e a ju da r . Era Ta rza n , u m ra pa gã o qu e u s a va u m en orm e ch a péu m exica n o. “Que é is to, Nicky, es tá qu eren do s e matar?” Ele pen s a va qu e eu es ta va lou co, porqu e entregara o coração a Jesus.

“Ra pa z, eu es tou fer ido. Mu ito fer ido. Aju de-m e a chegar à casa de Israel, por favor.”

Ta rza n foi com igo a té o a pa r ta m en to de Is ra el, e n ós s u b im os os cin co la n ces de es ca da s , a té o qu a rto dele. Era meia-noite quando bati à porta.

A m ã e de Is ra el a b r iu e m e con vidou pa ra en trar. Ela percebeu qu e eu es ta va fer ido. Is ra el s a iu do ou tro qu a r to. Olh ou pa ra m im e com eçou a r ir . “Ra pa z, o qu e aconteceu com você?”

“Fui esfaqueado por um Apache.”

“Pu xa ! n u n ca pen s ei qu e is to pu des s e te a con -tecer.”

A m ã e de Is ra el n os in ter rom peu e in s is t iu pa ra qu e eu fos s e pa ra o h os p ita l. Is ra el e Ta rza n m e a ju da ra m a des cer a s es ca da s , e m e leva ra m a o p ron to-socorro do h os p ita l vizin h o. Ta rza n con cordou em pega r m in h a ca r teira on de es ta va o dóla r qu e eu ga n h a ra , e ir con ta r a o m eu irm ã o Fra n k o qu e m e a con tecera . Is ra el es perou o m éd ico exa m in a r m in h a m ã o. Algu n s ten dões t in h a m s ido cor ta dos , e eu ia p recis a r de a n es tes ia .

Is ra el es ta va s ér io qu a n do m e leva ra m n a m a ca . “Nã o s e p reocu pe, m eu ch a pa , n ós va m os a cer ta r o ca ra qu e fez isto.”

Eu qu er ia d izer -lh e qu e n ã o p recis á va m os m a is de vin ga n ça . Deu s cu ida r ia d is s o. Ma s a por ta fech ou s e vagarosamente atrás de mim...

No d ia s egu in te, bem cedo, Is ra el es ta va n o m eu qu a r to de h os p ita l. Eu a in da es ta va m eio ton to devido à a n es tes ia , m a s pu de perceber qu e es ta va d iferente. Fin a lm en te con s egu i a b r ir os olh os e vi qu e ele t in h a rapado completamente a cabeça.

“Ei, ca reca , o qu e é qu e h á ?” m u rm u rei. A velha expressão voltara ao rosto de Israel.

“Ca ra m ba , p r im eiro eles qu a s e n os fu ra m com o pen eira s d ia n te da igreja , e a gora es fa qu eia m você. Es s e n egócio de J es u s n ã o dá pé. Aqu ele ca ra n ã o pod ia fa zer isso. Vou pegá-lo para você.”

Eu es ta va recu pera n do os s en t idos , e leva n tei-me n a ca m a . “Ei, ca ra , você n ã o pode fa zer is s o. Eu poder ia tê-lo a cer ta do s ozin h o, m a s d eixei-o n a s m ã os de Deu s . Se você volta r à s ru a s , n u n ca m a is s a irá . Lem bre-s e do qu e Da vi fa lou s obre la n ça r a m ã o a o a ra do... Meu chapa, fique comigo e esqueça a briga.”

Lu tei pa ra fica r s en ta do, e n otei qu e Líd ia e Loreta t in h a m en tra do com Is ra el. Ca í, porém , de cos ta s n a cama, pois ainda estava fraco com a perda de sangue e a ciru rgia . O m eu b ra ço in teiro es ta va em u m s ó m olde de gesso, desde a ponta dos dedos até o cotovelo.

Loreta era u m a bela ita lia n in h a de ca belos n egros com qu em t ivera vá r ios en con tros . Ela fa lou : “Nicky, Is ra el tem ra zã o. Aqu eles ca ra s vã o en tra r n o h os p ita l e matá-lo, s e você n ã o volta r pa ra a qu a dr ilh a . Va m os fa zer com o n os velh os tem pos . Você fica bom e volta para os Mau-Maus. Estamos esperando você.”

Virei e olh ei pa ra Líd ia . “É is s o qu e você a ch a também ?”

Ela baixou a cabeça. “Nicky, preciso te contar uma cois a . Es tou en vergon h a da . Devia ter fa la do h á m u ito tempo. Já faz dois anos que sou crente.”

“O qu ê ?” en ca rei-a in crédu lo. “Você qu er m e d izer qu e a cred ita va em Cris to todo es te tem po e n ã o m e con tou ? Com o é qu e pode s er cren te e fa zer tu do qu e tem feito? Os cr is tã os n ã o a gem a s s im . Eles n ã o s e envergonham de Jesus. Não, não creio em você.”

Líd ia m ordeu o lá b io in fer ior , e lá gr im a s viera m a os s eu s olh os , en qu a n to ela torcia o len çol com a s mãos. “Es tou en vergon h a da , Nicky. Eu t in h a m edo d e lh e fa la r de Cr is to. Se fa la s s e a verda de, você n ã o m e quereria mais.”

Israel aproximou-se da cama. “Vamos, Nicky. Você es tá a pen a s con fu s o. Va i s en t ir -s e m elh or m a is ta rde. Loreta e eu a ch a m os qu e você deve volta r pa ra a qu a dr ilh a . Nã o s ei o qu e Líd ia a ch a . Ma s pen s e n is s o e n ã o s e p reocu pe. Vou fa la r com a lgu n s dos ra pa zes , e vamos pegar aquele cara que fez isto com você.”

Dei-lhe as costas. Loreta chegou-se e beijou me na face. Senti lágrimas em meu rosto, quando Lídia curvou-s e e m e beijou . “Sin to m u ito, Nicky. Perdoe-m e, por favor.”

Eu n ã o d is s e n a da . Ela m e beijou ou tra vez e s a iu depressa. Ouvi a porta fechar-se atrás deles.

Depois qu e eles s a íra m , qu a s e pu de s en t ir a p re-s en ça de Sa ta n á s n o qu a r to. Ele fa la ra com igo por in term éd io de Is ra el e Loreta . Es ta va m e p repa ra n do através da minha decepção com respeito a Lídia.

“Nicky”, coch ich ou ele, “você é u m bobo. Eles têm razã o. Volte pa ra a ga n g. Recorde dos bon s tem pos . Lembre-s e da s a t is fa çã o de vin ga r-s e. Lem bre com o era

doce es ta r n os b ra ços de u m a ga rota bon ita . Você t ra iu s u a qu a dr ilh a , Nicky, m a s a in da n ã o é ta rde dem a is para voltar.”

En qu a n to m e ten ta va , a en ferm eira en trou com a ba n deja do ja n ta r . Ou vi-o a in da a s egreda r : “On tem à noite foi a primeira vez na vida em que você não revidou. Cova rde! O gra n de e b ra vo Nicky Cru z ch ora n do n a Arena St. Nicholas, correndo de um Apache e deixando-o escapar. Mulherzinha. Santinho Medroso.”

“Sr . Cru z?” Era a en ferm eira fa la n do, a o a p ro-ximar-s e do m eu leito. “Se vira r pa ra cá , eu a r ru m a rei a sua bandeja.”

Dei u m pu lo n a ca m a , e ba t i n a ba n deja , joga n do-a no chão: “Vá para o inferno !”

Qu is d izer m a is a lgu m a cois a , porém n ã o s a iu n a da . Tod os os a n t igos pa la vrões t in h a m des a pa recido. Na qu ele in s ta n te, n ã o fu i n em ca pa z de lem brá -los. Fiqu ei a li s en ta do com a boca a ber ta , e de repen te lágrima s com eça ra m a correr dos m eu s olh os , des cen do ao longo do rosto como dois regatos. “Desculpe”, solucei. “Por favor, chame um ministro Chame o Rev. Arce.”

Silen cios a m en te, a en ferm eira a pa n h ou os p ra tos do ch ã o, e ba teu de leve n o m eu om bro: “Vou ch a m á -lo agora mesmo. Deite e descanse.”

Deitei a ca beça n o t ra ves s eiro, a in da s olu ça n do. Em pou co tem po o Rev. Arce ch egou e orou em m eu fa vor . En qu a n to ele ora va , eu m e s en t i liber ta do do es p ír ito qu e s e a pos s a ra de m im . Dis s e-m e qu e pediria ao Sr. Delgado para me visitar, na manhã seguinte, e ele p roviden cia r ia pa ra qu e eu t ives s e os cu ida dos necessários.

Na qu ela n oite, depois qu e a en ferm eira m e a ju dou a t roca r o pa letó do p ija m a , a joelh ei-m e a o la do do leito do h os p ita l. De ta rde eles h a via m coloca do u m ou tro pa cien te n a ca m a a o la do da m in h a , m a s pen s ei qu e ele

es t ives s e dorm in do. Com ecei a ora r em voz a lta , o ú n ico jeito qu e eu s a b ia . Nin gu ém m e d is s era qu e s e pode ora r “em pen s a m en to”. Sa b ia a pen a s qu e t in h a de ora r a Deu s , e a ú n ica m a n eira de fa zê-lo era fa la n do com ele — em voz alta. Comecei assim a orar.

Ped i a Deu s qu e perdoa s s e o ra pa z qu e h a via m e es fa qu ea do, e qu e o p roteges s e de todo m a l, a té qu e ele pu des s e a ceita r a J es u s . Ped i a Deu s qu e m e perdoa s s e pela m a n eira com o eu t ra ta ra Líd ia , e por ter da do a qu ele ta pa n a ba n deja , der ru ba n do-a da s m ã os da en ferm eira . Eu lh e d is s e qu e ir ia on de qu er qu e des eja s s e e fa r ia o qu e ele qu is es s e. Lem brei a Deu s qu e eu n ã o es ta va com m edo de m orrer , m a s ped i qu e m e deixa s s e viver o ba s ta n te pa ra u m d ia fa la r a m a m ã e e a papai a respeito de Jesus.

Fiqu ei de joelh os m u ito tem po, a n tes d e joga r-me na cama e cair no sono.

Na m a n h ã s egu in te, es ta va m e ves t in do pa ra deixa r o h os p ita l, qu a n do o h om em da ca m a a o la do fa lou ba ixin h o, fa zen do m e s in a l pa ra ch ega r per to dele. Era u m velh o qu e t in h a u m tu bo n a ga rga n ta . Trem ia , estava muito pálido e a sua voz era um murmúrio.

“Eu es ta va a corda do on tem à n oite”, coch ich ou ele.

Fiqu ei u m pou co en vergon h a do e dei u m s orr is o tolo. “Mu ito ob r iga do”, d is s e ele, “m u ito ob r iga do pela sua oração.”

“Ma s eu n ã o es ta va ora n do pelo s en h or”, con -fessei. “Pen s ei qu e o s en h or es t ives s e dorm in do. Eu estava orando por mim mesmo.”

O ancião estendeu o braço e agarrou a minha mão s ã , com s eu s dedos fr ios e ú m idos . O a per to era m u ito fra co, m a s pu de s en t ir qu e ele es ta va a per ta n do com energia.

“Oh , n ã o, você es tá en ga n a do. Você es ta va ora n do por m im . E eu ta m bém orei. Pela p r im eira vez em m u itos , m u itos a n os , eu orei. Eu ta m bém orei. Eu ta m bém des ejo fa zer o qu e J es u s qu er qu e eu fa ça . Muito obrigado.”

Gra n des lá gr im a s rola ra m pela s s u a s fa ces , vin -ca da s de p rofu n da s ru ga s , en qu a n to ele fa la va . Eu disse: “Deu s o a ben çoe, m eu a m igo”, e s a í. Eu n u n ca ten ta ra a ju da r n in gu ém , em m in h a vida . E n em s abia com o o fizera , n a qu ele d ia . Ma s s en t ia de forma con for ta dora e for te qu e o Es p ír ito de Deu s opera ra por meu intermédio. Estava satisfeito.

O Sr . Delga do es ta va m e es pera n do n o s a gu ã o. Pa gou a m in h a con ta , e levou -m e pa ra o s eu ca r ro. “Telefon ei pa ra Da vi Wilkers on on tem à n oite”, d is s e ele. “Es tá em Elm ira rea liza n do u m a s ér ie de reu n iões . Ele quer que eu leve você e Israel para lá, amanhã “

“Da vi m en cion ou is s o a ú lt im a vez em qu e n os encontramos”, d is s e eu , “m a s Is ra el voltou pa ra a quadrilha. Acho que ele não vai.”

“Vou en con tra r -m e com ele h oje à n oite. Ma s h oje qu ero qu e você fiqu e n a m in h a ca s a , on de es ta rá em segurança. Vamos sair amanhã bem cedo para Elmira.”

Pa recia u m a iron ia o fa to d e eu es ta r in do pa ra Elm ira pa ra a vis ta r -m e com Da vi. Era pa ra lá qu e a polícia qu er ia m e m a n da r , m a s por u m a ra zã o d iferente. Pa s s ei o res to do d ia ora n do por Is ra el, pa ra qu e ele n ã o volta s s e pa ra a qu a dr ilh a , m a s res olves s e ir com igo pa ra Elmira.

Na m a n h ã s egu in te, leva n ta m o-n os bem cedo e a t ra ves s a m os a cida de de ca r ro, em d ireçã o a o Brook lin e a o Con ju n to Ha b ita cion a l For t Green e. O Sr . Delga do d is s e qu e Is ra el con corda ra em ir con os co, e dever ia encontrar-s e con os co n a es qu in a da s ru a s Myrt le e De Kalb às sete da manhã. Quando ali chegamos, Israel não

es ta va . Com ecei a s en t ir u m fr io n a boca do es tôm a go. Dem os a volta n o qu a r teirã o, m a s n ã o o vim os . O Sr . Delga do d is s e qu e t ín h a m os p res s a ; n ã o obs ta n te, pa s s a m os pelo s eu a pa r ta m en to, n a Ru a St . Edwa rd , defronte ao 67.° Distrito, para ver se podíamos encontrá-lo. Passamos lá, mas não vimos sinal dele. O Sr. Delgado ficou olh a n do pa ra o relógio, e fin a lm en te d is s e qu e tínhamos de ir embora.

“Será qu e n ã o podem os da r s ó m a is u m a volta n o quarteirão?” d is s e eu ; “pode s er qu e o en con tremos desta vez.?

“Olh e, Nicky”, res pon deu , “eu s ei qu e você gos ta de Israel e está com medo que ele volte para a quadrilha. Ma s ele p recis a a p ren der a a r ra n ja r -s e s ozin h o. Dis s e qu e n os en con tra r ia à s s ete h ora s , e n ã o es tá a qu i. Va m os da r m a is u m a volta n o qu a r teirã o, m a s s ã o s eis h ora s de via gem a té Elm ira , e Da vi es tá n os esperando às duas da tarde.”

Fizem os a volta d o qu a r teirã o m a is u m a vez, e depois fom os pa ra o Bron x, pa ra pega r J eff Mora les . J eff era u m ra pa z por to-r iqu en h o qu e qu er ia en tra r pa ra o m in is tér io da Pa la vra de Deu s . Da vi ped ira a o Sr . Delga do qu e o leva s s e pa ra s ervir -m e de in térprete quando falasse na igreja.

Qu a n do s a ím os da cida de, t ive u m a s en s a çã o de a lívio. Recos tei-m e n o ba n co e s u s p irei. O pes o fora ret ira do. Ma s n o m eu cora çã o h a via u m a p rofu n d a t r is teza porqu e es tá va m os deixa n do Is ra el pa ra t rá s , e eu t in h a u m p res s en t im en to de a lgo a m ea ça dor , en volven do con den a çã o e des es pero, em rela çã o a o fu tu ro dele. Eu n ã o s a b ia n a qu ela época , m a s ... s eis a n os s e pa s s a r ia m a n tes qu e n os en con trá s s em os de novo.

Na qu ela n oite Da vi a p res en tou -m e a o povo de Elmira e dei o m eu tes tem u n h o. Da vi m e ped ira pa ra com eça r des de o p r in cíp io, e con ta r a m in h a h is tória

exa ta m en te com o a con tecera . Fu i obs cu ro n os d etalhes, e não pude lembrar-me de muita coisa. Compreendi logo qu e Deu s n ã o a pen a s t ira ra de m im m u itos dos antigos des ejos , m a s ta m bém a pa ga ra m u ita s da qu ela s recorda ções da m in h a m en te. Con tei, p orém , a h is tór ia da m elh or m a n eira qu e pu de. Mu ita s vezes a d ia n tei-me a o m eu in térp rete, e J eff t in h a de d izer : “Ca lm a , Nicky, espere por mim.”

O povo r iu e ch orou , e qu a n do foi feito o a pelo, m u itos a p roxim a ra m -s e do a lta r pa ra da r s eu cora çã o a Cr is to. A s en s a çã o de qu e Deu s es ta va m e ch a m a n do pa ra u m m in is tér io es pecia l ficou a in da m a is forte, qu a n do vi qu e Deu s es ta va opera n do a t ra vés da m in h a vida.

No d ia s egu in te t ive opor tu n ida de de con vers a r com Da vi por m u ito tem po. Ele m e pergu n tou s e eu es ta va m es m o decid ido a in gres s a r n o m in is tér io. Res pon d i qu e n ã o s a b ia d ireito o qu e era is s o, e n em pod ia fa la r u m in glês in teligível, m a s s en t ia qu e Deu s es pera va a lgo de m im , e es ta va m e gu ia n do n es s e s en t ido. Da vi d is s e qu e fa r ia tu do o qu e lh e fos s e possível para me arranjar uma escola.

Es cola ! Há t rês a n os qu e eu n ã o ia à es cola , desde qu e fora expu ls o. “Da vi, n ã o pos s o volta r pa ra a es cola . O d iretor d is s e qu e s e eu volta r , ele m e en trega à polícia.” Davi riu.

“Não é aquela escola, Nicky. É uma Escola Bíblica. Você gostaria de ir para a Califórnia?”

“Para onde ?”

“Califórnia, na costa ocidental.”

“É per to de Brook lin ?” pergu n tei. Da vi ca iu n a gargalhada

“Oh , n ã o, Nicky. Es tou ven do qu e o Sen h or va i ter de opera r m u ito em você. E eu s ei qu e ele é

s u ficien tem en te poderos o pa ra fa zê-lo. Es pere pa ra ver gra n des cois a s a con tecerã o a t ra vés do s eu m in is tério. Estou certo disso.”

Sa cu d i a ca beça . Tin h a m edo dos gu a rda s de Brook lin . Se p recis a va ir p a ra a es cola , fa zia votos fervoros os pa ra qu e fos s e em a lgu m lu ga r fora da cida de de Nova York.

Da vi qu is qu e eu fica s s e em Elm ira , en qu a n to ele es crevia pa ra a Es cola Bíb lica . Ma is ta rde, fiqu ei s a ben do qu e ela fica va em La Pu en te, Ca lifórn ia , per to de Los An geles . O cu rs o b íb lico era pa ra m oça s e ra pa zes qu e des eja va m p repa ra r -s e pa ra o m in is tér io e n ã o t in h a m pos s ib ilida des fin a n ceira s de ir pa ra a fa cu lda de; o cu rs o d u ra va t rês a n os . É cla ro qu e eu n ã o term in a ra o gin á s io, m a s Da vi es creveu u m a ca r ta expressa pedindo-lhes que me aceitassem assim mesmo. Ele d is s e qu e eu n ã o es ta va es con den do n a da a res peito da m in h a vida p regres s a , m a s fa la va de m eu s s on h os e a m bições , e ped ia qu e fizes s em u m a exper iên cia com igo, em bora eu t ives s e m e torn a do cr is tã o h á pou ca s semanas.

As cois a s em Elm ira n ã o es ta va m corren do m u ito bem , n es s e m eio tem po. Algu ém es pa lh ou o boa to qu e eu a in da era ch efe da ga n g e qu e es ta va p rocu ra n do form a r u m a qu a dr ilh a a li. Da vi ficou a borrecido, e percebeu qu e a qu ilo pod ia s ign ifica r d is tú rb io. Eu pa s s a va a n oite com Da vi, m a s t in h a m edo de qu e pa s s a s s em a cr it icá -lo. Con corda m os em ora r a respeito do problema.

Na qu ela n oite Da vi fa lou -m e s obre o ba t is m o n o Es p ír ito Sa n to. Ou vi-o a ten ta m en te, m a s n ã o en ten d i o qu e ele es ta va qu eren do m e en s in a r . E le leu pa ssagens da s Es cr itu ra s n os livros de Atos , I Cor ín t ios e Efés ios . Exp licou qu e depois qu e u m a pes s oa é s a lva , Deu s des eja t ra n s m it ir -lh e o s eu p oder . Exp licou a con vers ã o de Sa u lo em Atos 9 ; t rês d ia s depois de s u a con vers ã o,

Sa u lo foi ba t iza do com o Es p ír ito Sa n to, receben do u m novo poder.

“É d is s o qu e você p recis a , Nicky”, d is s e Da vi. “Deus deseja dar-lhe poder, e dons especiais.”

“Qu e es pécie de don s você qu er d izer ?” pergu n tei-lhe.

Ele a b r iu a Bíb lia em I Cor ín t ios 12 :8 -10 e explicou a respeito dos nove dons do Espírito.

“São dados aos que são batizados no Espírito San-to. Pode s er qu e você n ã o receba todos , m a s receberá a lgu n s . Nós , pen tecos ta is , crem os qu e todos os qu e s ã o batizados no Espírito têm dom de línguas.”

“Você qu er d izer qu e eu s erei ca pa z de fa la r em inglês mesmo sem estudar?” perguntei, estupefato.

Da vi ia con t in u a r fa la n do, porém fech ou a Bíb lia : “O Sen h or d is s e a os a pós tolos pa ra “esperar”, e en tão receber ia m poder . Nã o qu ero s er a p res s a do a es s e res peito, com você, Nicky. Va m os es pera r n o Sen h or , e ele vai batizá-lo, quando estiver preparado para isso. Por en qu a n to, tem os u m p rob lem a n a s m ã os , e p recis a m os orar para resolvê-lo.”

Ele des ligou a lu z e eu d is s e: “Se ele m e der ou tra língua es pero qu e s eja ita lia n o. Eu con h eço a ga rota ita lia n a m a is ba ca n a qu e exis te, e es tou cer to de qu e...” Fu i in ter rom pido pelo t ra ves s eiro de Da vi qu e s ib ilou através do quarto e amassou-se contra o meu rosto.

“Du rm a , Nicky. J á é qu a s e d ia , e m eta de da ci-da de pen s a qu e você a in da é u m ch efe de qu a dr ilh a . Se ele lh e der ou tra lín gu a , é m elh or qu e s eja a lgo qu e es te povo possa entender, quando você lhes disser que não é, na verdade, um assassino.”

Na m a n h ã s egu in te, Da vi pa recia p reocu pa do quando voltou da reunião matutina.

“A s itu a çã o n ã o es tá boa , Nicky. Va m os p recis a r t ira r você da qu i a n tes de ca ir a n oite, e eu n ã o s ei pa ra onde pode ir, a menos que seja de volta para Nova York.”

“Você a ch a qu e o Sen h or ou viu n os s a s ora ções ontem à noite ?” perguntei.

“É cla ro qu e s im . É por is to qu e eu oro: porqu e creio que ele me ouve.” Davi olhou-me surpreso.

“Você orou pa ra qu e Deu s tom a s s e con ta de mim?”

“Você sabe que sim.”

“Então, por que está tão preocupado ?”

Da vi leva n tou -s e e en ca rou -m e du ra n te u m m i-nuto: “Vamos tom a r ca fé, es ta m os a t ra s a dos . Es tou com fome, e você?”

Na qu ele d ia , à s du a s h ora s da ta rde, tocou o telefon e n o qu a r to do m otel. Era o pa s tor da igreja on de Da vi es ta va p rega n do. Ha via u m a s en h ora n o s eu es cr itór io qu e qu er ia fa la r con os co. Da vi d is s e que sairíamos imediatamente.

En tra m os e o pa s tor a p res en tou -n os à Sra . J oh n s on qu e via ja ra t rezen tos qu ilôm etros , de s u a ca s a , n o n or te do Es ta do de Nova York . Tin h a s eten ta e dois a n os , e d is s e qu e n a n oite a n ter ior o Es p ír ito Sa n to lh e fa la ra . Lera a s n ot ícia s a m eu res peito n os jorn a is , e a firm ou qu e o Es p ír ito Sa n to a a vis a ra de qu e eu es ta va em dificuldades, e que deveria ir ao meu encontro.

Olh ei pa ra Da vi: gra n des lá gr im a s corr ia m pela s u a fa ce. “O s eu n om e pode s er Sra . J oh n s on , m a s eu penso que realmente é Sra. Ananias”, disse ele.

“Nã o com preen do”, d is s e. Olh ou com es t ra n h eza para Davi.

“Ele es tá s e refer in do a o An a n ia s m en cion a do em Atos 9 , a qu em o Es p ír ito Sa n to tocou e en viou pa ra

auxiliar Paulo”, interrompeu o pastor.

“Só s ei qu e o Sen h or m e d ir igiu pa ra vir bu s ca r es te ra pa z e levá -lo pa ra ca s a ”, d is s e s orr in do a Sra . Johnson.

Da vi m a n dou qu e m e p repa ra s s e pa ra volta r com ela . Dis s e ta m bém qu e dever ia ter u m a res pos ta de La Pu en te den tro de pou cos d ia s , e m e a vis a r ia o m a is depressa possível. Eu não queria ir, mas depois de saber o qu e a con tecera n a n oite a n ter ior , e ven do o qu e es ta va acontecendo, fiquei com medo e atendi.

Du a s s em a n a s m a is ta rde receb i u m telefon em a de Da vi. Es ta va exu lta n te. Os d iretores do In s t itu to Bíb lico t in h a m res pon d ido. Es ta va m tã o in t r iga dos a res peito da pers pect iva da m in h a ida , qu e con corda ram em d is pen s a r todos os requ is itos e a ceita r -m e com o a lu n o. Ele m a n dou qu e eu tom a s s e u m ôn ibu s d e volta a Nova York , pois s a ir ia pa ra a Ca lifórn ia n o d ia seguinte.

Desta vez n ã o s en t i m edo du ra n te a via gem pa ra Nova York . Lem brei-m e da via gem com o Dr . J oh n , e da ter r ível dep res s ã o qu e s en t i, da s en s a çã o de es ta r volta n do a ca ir n a fos s a . A fos s a , porém , des aparecera. Desta vez eu estava saindo do deserto.

Eu ter ia de es pera r cin co h ora s n a es ta çã o ro-doviá r ia , a n tes qu e Da vi fos s e en con tra r com igo. Con corda ra em es pera r n a p rópr ia rodoviá r ia , pa ra evita r p rob lem a s . Con tu do, os p rob lem a s t in h a m u m m eio de m e a ch a r . Viera m n a form a de dez Viceroys qu e form a ra m u m círcu lo s ilen cios o a o m eu redor , en qu a n to me achava sentado, lendo uma revista.

“Ei, olh a o m en in o bon ito”, d is s e u m deles , fa -zen do referên cia a o m eu tern o e gra va ta . “Ei, a lm o-fa d in h a , você es tá fora do s eu ter r itór io. Nã o s a be qu e isto é domínio dos Viceroys?”

“Ei, tu rm a , s a bem qu em é es te? É a qu ele Ma u -

Ma u s im plór io qu e virou p rega dor”, d is s e de repen te u m dos rapazes.

Ou tro a p roxim ou -s e de m im e es petou o dedo n o m eu ros to: “Ei, p rega dor , pos s o en cos ta r em você ? Pode ser que a sua santidade pegue em mim.”

Dei u m ta pa n a s u a m ã o: “Você qu er m orrer?” ros n ei, o velh o Nicky res s u s cita n do. “Pon h a ou tra vez a mão em mim, e você é um homem morto.”

“Puxa”, pulou para trás, fingindo surpresa. “Vejam s ó. Ele pa rece p rega dor , m a s fa la com o u m ...” e u s ou um palavrão.

Antes qu e pu des s e m exer-s e, leva n tei-m e de u m s a lto e m ergu lh ei o pu n h o n o s eu es tôm a go. Qu a n do s e dobrou com o golp e, golpeei-o n a n u ca , com o pu n h o fechado, fazendo-o cair inconsciente por terra. Os outros ra pa zes es ta va m s u rp res os dem a is pa ra s e m overem . As pes s oa s qu e es ta va m n a es ta çã o rodoviá r ia com eça ra m a s e es pa lh a r , e a s e es con der por t rá s dos ba n cos . Afastei-me em direção à porta.

“Vocês a í, ten tem qu a lqu er cois a , e m a to vocês . Vou a t rá s dos Ma u -Ma u s dep ois volto pa ra m a ta r todos os Viceroys.

Vira m qu e eu fa la va s ér io e s a b ia m qu e os Ma u -Maus eram duas vezes mais depravados e mais fortes do que eles. Olharam uns para os outros e se afastaram em d ireçã o à ou tra por ta , a r ra s ta n do o com pa n h eiro m eio desmaiado.

“Eu volto”, gr itei. “É m elh or vocês s e mandarem, porqu e s e es t iverem a qu i qu a n do eu volta r , já s a bem que vão morrer.”

Corr i por ta a fora , em d ireçã o a u m a en tra da do m etrô qu e h a via a li per to. Ma s , n o ca m in h o, pa s s ei por u m a igreja de pes s oa s de or igem es pa n h ola . Algo em mim fez com que eu diminuísse o passo, e voltasse. Subi

va ga ros a m en te os degra u s e en trei n o ed ifício a ber to. Qu em s a be era m elh or qu e eu ora s s e a n tes , pen s ei. Ir ia depois buscar os Mau-Maus.

Uma vez, porém, dentro da igreja, esqueci os Mau-Maus — e os Viceroys. Comecei a pensar em Jesus, e na n ova vida qu e m e es pera va n o fu tu ro. Ajoelh ei-m e a o pé do a lta r e os m in u tos s e pa s s a ra m com o s egu n dos , a té qu e fin a lm en te s en t i u m ta p in h a n o om bro. Olh ei. Era Davi Wilkerson.

“Quando não encontrei você na estação rodoviária, imaginei que estivesse aqui”, disse ele.

“Naturalmente”, respondi. “Onde você acha que eu es ta r ia : de volta à ga n g?” Ele deu u m a r is a da , e s a ím os em direção ao carro dele.

Capítulo 12

EE NNVVOOLLVVIIDD OO NNAA EE SS CCOOLLAA

O INSTITUTO BÍBLICO DE LA PUENTE, Ca li-fórn ia , é a ca n h a do e des p reten s ios o. Es tá loca liza do em u m pequ en o t ra to de ter ra , bem per to da cida de. A m a ior pa r te dos s eten ta a lu n os m a tr icu la dos n a es cola era de fa la es pa n h ola , e qu a s e todos t in h a m or igem modesta.

Steve Mora les e eu ch ega m os de a viã o de Nova York . A es cola era d iferen te — m u ito d iferen te de tu do o qu e eu já exper im en ta ra . Os regu la m en tos e h orá r ios era m m u ito r ígidos . A es cola era m u ito s is tem á t ica , e a s a u la s ia m de terça a s á ba do. A m a ior pa r te dos a lu n os vivia em dormitórios do tipo alojamento militar.

Fora m n eces s á r ios vá r ios m es es pa ra qu e eu m e

a cos tu m a s s e com o In s t itu to. Eu s em pre vivera s em freios , m a s n o In s t itu to tu do era regu la do por u m s in o, des de a h ora em qu e n os leva n tá va m os , à s s eis da manhã, até o momento das luzes se apagarem, às nove e t r in ta da n oite. De m odo gera l, n ã o h a via tem po d is pon ível, e exigia m de n ós qu e pa s s á s s em os m a is de du a s h ora s por d ia em ora çã o, a lém da s s eis h ora s d e a u la . Meu m a ior p rob lem a era n ã o pod er con vers a r com a s ga rota s . Is to era es t r ita m en te p roib ido, e a única opor tu n ida de em qu e pod ía m os con vers a r era em u n s pou cos m om en tos rou ba dos a n tes e depois da s a u la s , ou en qu a n to es tá va m os la va n do p ra tos , du ra n te o cumprimento de nossa escala na cozinha.

Con tu do, a filos ofia da es cola era en s in a r d is ci-p lin a e obed iên cia . Em bora is s o fos s e m u ito d ifícil pa ra m im , era ju s ta m en te o t ipo de t rein a m en to de qu e eu p recis a va . Qu a lqu er cois a m en os s evera m e proporcionaria liberdade em excesso.

As refeições eram fartas, mas estavam longe de ser a pet itos a s . De m a n h ã cedo, gera lm en te com ía m os m in ga u com tor ra da s , m a s u m a vez por s em a n a t í-n h a m os ovos . Porém es s a d ieta t íp ica era pa r te definida do n os s o t rein a m en to, pois a m a ior ia ir ia t ra ba lh a r em regiões ou ba ir ros pobres , m in is t ra n do a pes s oa s de fa la es pa n h ola . Ser ía m os , en tã o, força dos a viver em circunstâncias bem humildes.

Os p rofes s ores fora m m u ito pa cien tes com igo. Eu n ã o s a b ia com o a gir , e m e s en t ia ter r ivelm en te in seguro. Procu ra va com pen s a r m in h a s fa lh a s , a gin do com esperteza e ostentação.

Lembro-m e de cer ta m a n h ã , du ra n te o terceiro m ês es cola r , qu a n do es tá va m os de pé en qu a n to o p ro-fes s or n os d ir igia em u m a lon ga ora çã o n o in ício da a u la . Eu es t ivera es p reita n do, h a via a lgu m a s s em a n a s , a qu ela ga rota m exica n a de ca belos n egros , m u ito bonita e espiritual, que se assentava à minha frente, porém não

con s egu ira ch a m a r s u a a ten çã o. No m eio da ora çã o pegu ei a ca deira dela , a fa s ta n do-a s ilen cios a m en te da carteira, pensando que assim ela iria sem dúvida ter sua a ten çã o volta da pa ra m im . Depois do “amém”, todos n os senta m os . Ela rea lm en te m e n otou . Virou -s e pa ra t rá s , em s u a pos içã o des elega n te n o ch ã o, e olh ou pa ra m im com olh os qu e des ped ia m ch is pa s de fogo. Qu a s e m orren do de r ir , es ten d i a m ã o pa ra a ju dá -la a leva n ta r -s e, porém ela m e en ca rou fu r ios a e pôs -s e de pé s em minha ajuda. Não disse uma palavra e, de certa forma, a cois a perdeu m es m o a gra ça . En qu a n to coloca va a ca deira de volta n o lu ga r , ela ba teu delibera da m en te com a perna pontuda da mesma na minha canela. Penso qu e n u n ca s en t ira ta n ta dor em toda a m in h a vida . O s a n gu e fu giu -m e da s fa ces , e pen s ei qu e ia des m a ia r . Toda a cla s s e ca iu n a r is a d a . Fin a lm en te recu perei o controle e olh ei pa ra ela . E la devolveu -m e o olh a r com olh os qu e s er ia m ca pa zes de fu n d ir a b lin da gem de u m ta n qu e de gu erra . Sorr i deb ilm en te, m a s s en t ia o es tôm a go em bru lh a do. Ela virou -s e e s en tou -s e r i-gidamente na cadeira, olhando para o professor.

Es te lim pou a ga rga n ta , e d is s e: “Agora qu e term in a m os a devoçã o m a t in a l, com ecem os a a u la . Sr . Cruz será o primeiro a ser argüido esta manhã.”

Olh ei pa ra ele com olh os fra cos e in expres s ivos . “Sr . Cru z!” d is s e ele. “O s en h or p repa rou a liçã o, n ã o foi?” Ten tei d izer a lgo, m a s m in h a pern a doía ta n to qu e n ã o pu de fa la r . “Sr . Cru z, s a be qu a l é o ca s t igo pa ra qu em n ã o p repa ra a liçã o. Sei qu e tem grande d ificu lda de com a lín gu a , e qu e a in da n ã o d is cip lin ou a m en te pa ra pen s a r em term os a ca dêm icos . Tod os es ta m os ten ta n do s er pa cien tes com o s en h or , m a s a m en os qu e coopere, n ã o ten h o es colh a : p recis o da r-lhe u m zero, e rep rová -lo n es ta m a tér ia . Vou pergu n ta r -lhe mais uma vez : preparou a lição?”

Sa cu d i a ca beça a firm a t iva m en te, e fiqu ei de pé.

Min h a m en te es ta va com pleta m en te va zia . Fu i m a n -qu eja n do a té a fren te da s a la de a u la , e olh ei pa ra a cla s s e. En ca rei a ga rota bon ita de olh os n egros . Ela s orr iu docem en te, e a b r iu o s eu ca dern o de form a qu e pu de ver pá gin a s e m a is pá gin a s de n ota s es cr ita s com u m a belís s im a ca ligra fia — a liçã o qu e eu dever ia a p res en ta r . Olh ei p a ra o p rofes s or e d is s e deb ilm en te : “Desculpe-me.” Corr i pa ra fora da cla sse, em d ireçã o a o dormitório.

Eu m e fizera de tolo. Pen s a ra qu e pod ia s er “vivo” e todos iriam rir, como faziam nas quadrilhas. Mas estas pes s oa s era m d iferen tes . E la s m e tolera va m porqu e t in h a m dó de m im . Eu era u m des a ju s ta do, u m proscrito.

Sentei-me na cama e escrevi uma longa carta para Da vi Wilkers on . Dis s e-lh e qu e era du ro viver a li, e qu e eu com etera u m erro em ter a ceito s u a ofer ta . Eu s en t ia decepcioná-lo, m a s t in h a m edo qu e fos s e deixá -lo em ba ra ça do, s e con t in u a s s e n a es cola . Ped i-lh e pa ra mandar-m e u m a pa s s a gem de a viã o, pa ra qu e pu des s e volta r . Ma n dei a ca r ta expres s a , e en derecei-a à ca s a de Davi na Pensilvânia.

A res pos ta dele ch egou u m a s em a n a depois . Ra s -gu ei o en velope a n s ios a m en te, pa ra en con tra r u m pe-queno bilhete :

“Querido Nicky :

Fico s a t is feito em s a ber qu e você es tá in do tã o bem. Ame a Deus e fuja de Satanás.

Pen a qu e eu n ã o ten h a d in h eiro em ca ixa , a gora . Es creverei m a is ta rde pa ra você, qu a n do con s egu ir algum dinheiro. Seu amigo, Davi.”

Fiqu ei doen te, con fu s o e fru s t ra do. Es crevi en tã o

u m a ca r ta expres s a a o Sr . Delga do. Eu s a b ia qu e ele t in h a d in h eiro, m a s t ive vergon h a de con ta r -lh e qu e es ta va pa s s a n do por h ora s tã o du ra s n a es cola . Dis s e-lh e qu e m in h a fa m ília em Por to Rico p recis a va d e d in h eiro e eu t in h a de ir pa ra lá , a r ru m a r u m em prego e ajudá-la . Fa zia u m a n o qu e eu n ã o t in h a n ot ícia s de m in h a fa m ília , m a s pa recia -m e a ú n ica es tór ia qu e eu podia contar, sem me complicar.

Um a s em a n a depois , receb i u m a ca r ta expres s a do Sr. Delgado :

“Querido Nicky:

Fiqu ei s a t is feito em receber n ot ícia s s u a s . En viei dinheiro para a sua família, para que você possa ficar na escola. Deus o abençoe.”

Na qu ela n oite, fu i con vers a r com o Diretor , o Sr . Lopez. Contei-lhe os problemas que estava tendo. Estava m e rebela n do con tra toda a a u tor ida de. No d ia a n ter ior , fora m in h a vez de la va r o a u d itór io, e eu a t ira ra o es fregã o n o a s s oa lh o e d is s era a eles qu e viera à Ca lifórn ia pa ra es tu da r , e n ã o pa ra t ra ba lh a r com o u m escravo. Eu ainda andava gingando. Sabia que não devia pen s a r com o o velh o Nicky pen s a va — m a s n ã o con s egu ia . Qu a n do os ou tros ra pa zes do dormitório ten ta ra m ora r por m im , eu os em pu rrei e d is s e-lh es qu e era m bon s dem a is pa ra m im . Eu era u m tra pa ceiro. Um ga n gs ter . E les todos era m s a n tos . Eles qu er ia m ora r por m im e im por a s m ã os s ob re m im , m a s eu m e recu s ei a perm it ir qu e s e a p roxim a s s em . Ch orei lá gr im a s a m a rga s , s en ta do em s eu pequ en o es cr itór io, e cla m ei pedindo sua ajuda.

O Sr . Lopez era u m h om em pequ en o, de p ele b ron zea da . Ou viu -m e s ilen cios a m en te, m en eou a ca -beça , e fin a lm en te es ten deu a m ã o, pega n do s u a velha

Bíb lia qu e es ta va es con d ida deba ixo de u m a p ilha enorme de provas não corrigidas.

“Nicky, você p recis a de u m rela cion a m en to m a is ín t im o com o Es p ír ito Sa n to. Você foi s a lvo e qu er s egu ir a J es u s , m a s ja m a is terá qu a lqu er vitór ia rea l em s u a vida , en qu a n to n ã o receber o ba t is m o do Es p írito Santo.”

Fiqu ei a li s en ta do, ou vin do o Sr . Lopez ler , n a Bíb lia a ber ta , vers ícu los qu e fa la m da m a ra vilh os a vitór ia qu e eu poder ia a lca n ça r , s e recebes s e o Es p írito de Deus.

“Em Atos 1”, d is s e ele, “os a pós tolos es ta va m n a m es m a s itu a çã o em qu e você es tá . Tin h a m s ido s a lvos, porém , n ã o t in h a m poder . Depen d ia m da p res en ça fís ica da pes s oa de J es u s Cr is to pa ra p roporcionar-lh es poder . En qu a n to es ta va m per to dele, s en t ia m poder . Qu a n do, porém, fora m s epa ra dos dele perdera m o poder . Só u m a vez n os Eva n gelh os en con tra m os o regis t ro de J es u s cu ra n do a lgu ém s em es ta r p res en te. Foi o ca s o do s ervo do cen tu r iã o. Porém , m es m o n es s e ca s o, o cen tu r iã o p recis ou d irigir-s e a J es u s pa ra exercer s u a fé. Em Ma teu s registra-s e qu e J es u s com is s ion ou os doze d is cípu los e deu -lh es poder s ob re os es p ír itos im u n dos , pa ra expulsá-los , e pa ra cu ra r toda s or te de en ferm ida des . Ma s , m es m o ten do receb ido a ordem , eles n ã o pos s u ía m poder s u ficien te pa ra con tin u a r s ozinhos. Encontra-s e evidên cia d is s o n o fim do m es m o livro, qu a n do u m h om em levou s eu filh o pa ra s er cu ra do por J es u s , d izen do qu e o a p res en ta ra a os d is cípu los , e eles não tiveram poder para curá-lo.”

Ou vi a ten cios a m en te, en qu a n to os ded os do d i-retor m ovia m -s e a gilm en te, dem on s tra n do fa m ilia r idade com a Bíb lia , ga s ta pelo u s o. “No J a rd im do Gets êm a n i, J es u s a fa s tou -s e dos d is cípu los pa ra ora r . Ma s logo qu e ele des a pa receu de vis ta , eles perdera m o poder . J es u s ped ira qu e fica s s em a corda dos e vigia s s em , m a s eles

caíram no sono.”

Pen s ei com m eu s b otões : “É ju s ta m en te is s o qu e a con tece com igo. Sei o qu e ele qu er qu e eu fa ça , m a s n ã o ten h o força s pa ra fa zê-lo. Eu o a m o e qu ero s ervi-lo, mas não tenho poder.”

O d iretor con t in u ou fa la n do, a ca r icia n do a Bíb lia com a s m ã os , com o s e es t ives s e toca n do a pon ta dos dedos de u m velh o e qu er ido a m igo. Seu s olh os b r i-lh a va m , ú m idos , en qu a n to ele fa la va do s eu p recioso Senhor: “Depois , você s e lem bra , n a qu ela m es m a n oite qu a n do Pedro es ta va a o la do de fora do pa lá cio, no m om en to em qu e leva ra m o s eu Sen h or , ele perdeu o poder . Torn ou -s e u m cova rde es p ir itu a l. Na qu ela n oite, a té m es m o u m a cr ia da pôs a des cober to s u a m en t ira , fa zen do com qu e Pedro b la s fem a s s e con tra o s eu Salvador, e até negasse que o conhecia.”

Lopez res p irou fu n do, da n do u m s u s p iro, e gra n -des lá gr im a s s e form a ra m n os s eu s olh os , ca in do n a s pá gin a s a m a rela da s da Bíb lia a ber ta : “Nicky, is to é m u ito s em elh a n te a todos n ós . Com o é t rá gico! Com o é ter r ivelm en te t rá gico, qu e n a s u a h ora de n eces s ida de, ele teve de fica r s ozin h o! Aprou ves s e a Deu s qu e eu es t ives s e lá pa ra fica r com ele... pa ra m orrer com ele. Ma s a s s im m es m o, Nicky, ten h o a im pres s ã o de qu e eu s er ia igu a l a Pedro, porqu e o Es p ír ito Sa n to a in da n ã o viera , e eu , depen den do da s m in h a s p rópr ia s forças, teria também abandonado meu Salvador.”

Pa rou de fa la r por u m m om en to, pois s u a voz ficou s u foca da . Tirou o len ço do bols o e a s s oou ru i-dosamente o nariz.

Rea br iu a Bíb lia em Atos , e con t in u ou : “Nicky, lembra-se do que aconteceu depois da crucificação ?”

Men eei a ca beça . Eu con h ecia m u ito p ou co a Bí-blia.

“Todos os d is cípu los des is t ira m . Foi is to qu e

a con teceu . Eles d is s era m qu e tu do es ta va term in a do, e ia m volta r a os s eu s ba rcos de pes ca . O ú n ico poder qu e eles t in h a m era o qu e flu ía d a p res en ça fís ica de J es u s , em qu em vivia o Es p ír ito Sa n to. Ma s , depois qu e res s u s citou , J es u s lh es recom en dou qu e volta s s em a J eru s a lém e es pera s s em a té receberem n ovo poder ... o prometido poder do Espírito Santo.

“A ú lt im a p rom es s a feita por J es u s a os s eu s s e-guidores , foi a de qu e eles receber ia m poder . Veja a qu i em Atos 1 :8 .” Ele es ten deu a Bíb lia por s ob re a es cr iva n in h a , pa ra qu e pu d és s em os ler ju n tos : “Mas recebereis poder , a o des cer s ob re vós o Es p ír ito Sa n to, e s ereis m in h a s tes tem u n h a s ta n to em J eru s a lém com o em toda a Judéia, e Samaria, e até aos confins da terra.”

“Veja , Nicky, is to n ã o é u m a ordem pa ra s a ir pelo m u n do da n do tes tem u n h o. É u m a p rom es s a de qu e receber ía m os poder . E qu a n do os a pós tolos receberam poder , n ã o pu dera m deixa r de s er tes tem u nhas. Recebera m poder por oca s iã o do ba t is m o do Es p ír ito Sa n to. O Es p ír ito volta ra dos céu s de m a n eira poderos a e m a gn ificen te, en ch en do ca da u m da qu eles a pós tolos com o mesmo poder possuído por Jesus.”

Eu m e rem exi n a ca deira : “Se ele já en viou o s eu Espírito”, disse eu, “por que não o enviou a mim ?”

“Ma s ele en viou ”, res pon deu o d iretor , qu e s e pôs ou tra vez de pé, e com eçou a a n da r pa ra cá e pa ra lá , a o la do de s u a pequ en a es cr iva n in h a ; “ele en viou ! Só qu e você ainda não o recebeu.”

“Enviar. Receber. Qual é a diferença ?”

“O Es p ír ito de Deu s es tá em você, Nicky. Ele en -t rou em s u a vida n a qu ela n oite, n a Aren a St . Nich olas. Ninguém pode dizer: “Senhor Jesus!” senão pelo Espírito Sa n to. Foi o Es p ír ito qu em o con ven ceu dos s eu s peca dos . Foi o Es p ír ito qu em lh e deu o poder pa ra a ceita r a J es u s com o s eu Sen h or . Foi o Es p ír ito qu em

a br iu a s por ta s pa ra qu e você en tra s s e n es ta es cola . Ma s você a in da n ã o deixou qu e ele o pos s u ís s e completamente.”

“Com o é qu e eu fa ço, en tã o?” pergu n tei s in ce-ramente. “Ten h o ten ta do pu r ifica r m in h a vida , livra r -me de todos os m eu s peca dos . Ten h o jeju a do e ora do, m a s nada aconteceu.”

“Você n a da fa z, Nicky. Você s im ples m en te o re-cebe.” Sacudi a cabeça. Ainda estava confuso.

O Sr . Lopez pegou a Bíb lia de n ovo e en con trou com fa cilida de o livro de Atos . “Vou con ta r -lh e a h is tória de u m h om em ch a m a do Sa u lo. Es ta va a ca m in h o de Da m a s co pa ra u m gra n de “quebra-pau”, m a s foi der ru ba do pelo Es p ír ito de Cr is to, n a es t ra da . Três d ia s depois ele foi ba t iza do n o Es p ír ito e com eçou a p rega r . Desta vez o poder veio através da imposição de mãos.”

“É es ta a m a n eira pela qu a l eu pos s o recebê-lo ?” perguntei. “Algu ém irá im por a s m ã os s ob re m im e s erei batizado com o Espírito Santo?”

“Pode s er qu e s eja des s a m a n eira ”, res pon deu o Sr . Lopez. “Ou você pode recebê-lo qu a n do es t iver s ozin h o. Ma s , u m a vez qu e is to a con teça , a s u a vida jamais será a mesma.”

Ele pa rou , e depois , olh a n do-m e bem n o fu n do dos olh os , d is s e: “O m u n do p recis a de s u a voz, Nicky. Há centenas de milhares de jovens pelos Estados Unidos que a in da vivem on de você viveu — e da m es m a form a com o você viveu . Es tã o p res os n os la ços do m edo, do ód io e do peca do. Neces s ita m de u m a voz p rofét ica poderos a qu e s e leva n te n a s fa vela s e n os gu etos , e indique-lh es Cr is to, qu e é a ú n ica s a ída pa ra a s s u a s m is ér ia s . E les n ã o vã o ou vir os eloqü en tes ora dores dos pú lp itos m odern os . Nem da r a ten çã o a os p rofes s ores de s em in á r ios e in s t itu tos b íb licos . Nem a ten der a os vis ita dores s ocia is . Nã o da rã o créd ito a os eva n gelis ta s

profission a is . Nã o vã o à s gra n des igreja s , e m es m o qu e o fizes s em , n ã o s er ia m bem receb idos . Eles p recis a m de u m p rofeta s a ído de s u a s p rópr ia s fileira s , Nicky. E des de es te m om en to, vou com eça r a ora r pa ra qu e s eja você es s e p rofeta . Você fa la a lin gu a gem deles . Viveu on de eles vivem . É com o eles . Você od iou com o eles odeia m . Teve m edo com o eles têm . Agora Deu s tocou s u a vida e o ch a m ou pa ra fora da s a r jeta , a fim de qu e possa chamar outros para seguirem o caminho da cruz.”

Houve um longo período de silêncio sagrado. Ouvi-o d izer : “Nicky, qu er qu e eu ore pa ra qu e você receba o Espírito Santo?”

Pen s ei ba s ta n te, e depois res pon d i: “Nã o. Ach o qu e is to é a lgo qu e devo receber s ozin h o. Se ten h o qu e m e m a n ter por m im m es m o, devo recebê-lo s ozinho. Creio qu e ele virá qu a n do ch ega r a h ora ... porqu e eu já estou preparado.”

O d iretor olh ou p a ra m im e s orr iu : “Você é prudente, Nicky. Suas palavras só poderiam ter vindo do Es p ír ito de Deu s . Mu ito b reve s u a vida va i m u da r com pleta m en te. Ora rei por você, en qu a n to você ora por si próprio.”

Olh ei ra p ida m en te pa ra o relógio de pa rede. Eu pa s s a ra qu a tro h ora s com ele. Era m du a s da m a -drugada.

As cin co n oites s egu in tes fora m pa s s a da s em ora çã o a gon iza n te, n a ca pela . Meu s d ia s era m ch eios d e a t ivida de es tu da n t il, m a s à n oite eu m e d ir igia pa ra a ca pela , a fim de s u p lica r a Deu s pa ra qu e m e ba t iza s s e n o s eu Sa n to Es p ír ito. Eu n ã o s a b ia ora r , exceto em voz a lta . Com ecei a s s im a ora r em voz ca da vez m a is a lta . Eu m e a joelh a va d ia n te do a lta r , e cla m a va a Deu s : “Batiza-m e, ba t iza -m e, ba t iza -me!” Ma s , n a da a con tecia . Era com o s e o s a lã o fos s e u m a ca ixa h erm et ica m en te fech a da , o qu e im ped ia m in h a voz de s u b ir a té os céu s . Noite a pós n oite eu ia à ca pela , a joelh a va , da va s ocos n o

gra d il do a lta r , e gr ita va : “Batiza-m e, ó Deu s , por fa vor , batiza-m e, pa ra qu e eu ten h a o poder de J es u s .” Ten tei m es m o p ron u n cia r pa la vra s em u m a lín gu a des con h e-cida, mas não saiu nada.

Na s exta -feira à n oite, depois de u m a s em a n a d e qu a tro a cin co h ora s de ora çã o in fru t ífera por n oite, eu es ta va a pon to de es tou ra r s ob a ten s ã o em ocional. Sa í da ca pela , bem ta rde, e es ta va a t ra ves s a n do va ga ros a m en te o pá t io, qu a n do ou vi a lgu ém gr ita n do a t rá s do p réd io on de fica va m a s s a la s de a u la . Corr i pa ra o la d o de on de ou vira o b a ru lh o e d ei de fren te com Rober to, ex vicia do em d roga s : “O qu e foi, Rober to ? O que foi?”

Ele leva n tou os b ra ços e gr itou : “Glór ia a Deu s ! Glória a Deus ! Glória a Deus !”

“O que aconteceu ? Por que você está tão alegre ?”

“Eu fu i ba t iza do n o Es p ír ito. Agora m es m o, h á pou cos m in u tos , eu es ta va ora n do e Deu s tocou m inha vida e en ch eu -m e de a legr ia e felicid a de. Nã o pos s o parar. Preciso ir. Preciso contar ao mundo inteiro. Glória a Deus, Nicky, glória ao seu maravilhoso nome!” Ele saiu corren do pelo pá t io, pu la n do e gr ita n do: “Alelu ia ! Glór ia a Deus!”

“Ei, es pere u m m in u to”, s a í gr ita n do a t rá s dele. “Rober to ! Rober to ! On de você recebeu o ba t is m o? On de você estava quando isso aconteceu ?”

Ele virou -s e, e qu a s e s em fôlego, a pon tou pa ra o p réd io da es cola . “Na cla s s e. Na s a la gra n de. Eu es ta va n a fren te, de joelh os , e ele m e en ch eu de fogo. Alelu ia ! Glória a Deus!”

Nã o es perei pa ra es cu ta r m a is . Sa í corren do lou -ca m en te pelo pá t io, em d ireçã o à cla s s e. Se ele tocara Rober to, pod ia s er qu e a in da es t ives s e lá e m e toca s s e ta m bém . Des lizei pela por ta do ed ifício e corr i s a gu ã o a den tro, a té o s a lã o. Frea n do à por ta , es p iei. Tu do es ta va

escuro e silencioso.

En trei deva ga r n a s a la va zia e es cu ra , e ta teei por en tre a s ca r teira s , a té ch ega r à fren te. Ajoelh ei a o la do da ca r teira on de a ga rota b on ita de olh os n egros s e es ten dera tã o s em cer im ôn ia n o ch ã o, qu a n do a fa s tei a ca deira . Nã o t ive tem po pa ra recon s t itu ir o a con tecim en to em m in h a m en te; coloqu ei-m e de m ã os postas, na posição tradicional de prece, e ergui o rosto.

Em alta voz, gritei então: “Deus, sou eu, Nicky! Eu ta m bém es tou a qu i. Ba t iza -me!” Es perei a n s iosamente. Nada aconteceu.

Ta lvez eu es teja fa la n do com a pes s oa er ra da , pen s ei. Vou ten ta r ou tra vez. “Jesus”, gr itei com toda s as forças dos pulmões, “sou eu, Nicky Cruz, aqui na sala de a u la s , em La Pu en te. Es tou es pera n do pa ra s er ba t iza do n o teu Es p ír ito. Perm ite qu e eu receba o batismo.” A a n s ieda de era tã o gra n de qu e eu qu a s e m e sentia suspenso no ar. Minha boca estava aberta, pronta pa ra fa la r em lín gu a s . Min h a s pern a s es ta va m ten s a s deba ixo d e m im , p ron ta s pa ra pu la r e correr com o Rober to. Na da , porém , a con teceu . Na da . Silên cio. O a s s oa lh o torn ou -s e du ro, e m eu s joelh os com eça ra m a doer . Leva n tei-m e va ga ros a m en te e s a í des a n im a do, atravessei o pátio escuro e fui para o dormitório.

O a r recen d ia com o perfu m e dos ja s m in s qu e des a b roch a va m du ra n te a n oite. A gra m a es ta va ú m ida deba ixo dos m eu s pés , rega da pelo orva lh o d a m a dru ga da . Nos a rbu s tos , ou vi o ca n to s olitá r io de u m curiango, e algures, à distância, ouvi o resfolegar grave e p la n gen te de u m a locom otiva d ies el, pu xa n do vagarosamente os va gões ca r rega dos , la deira a cim a . A lu a es con deu -s e por t rá s de u m a n u vem escura s em elh a n te a u m a da m a s edu tora , es gu eirou -s e pa ra den tro do s eu a pa r ta m en to e fech ou a por ta . O perfu m e dos ja s m in s flu tu a va n o a r fr io da n oite, e a s lâ m pa da s dos pos tes p is ca va m qu a n do o ven to a gita va os ra m os

da s pa lm eira s d ia n te dos ra ios da s u a lu z. Eu es ta va sozinho no paraíso de Deus.

En trei s ilen cios a m en te n o dorm itór io, e en ca m i-nhei-m e, gu ia do pela força do h á b ito, pa ra m eu beliche na pen u m bra . Deitei-m e de cos ta s n a ca m a , com a s m ã os cru za da s s ob a ca beça , de olh os a r rega la dos n a es cu r idã o. Eu pod ia ou vir o res s on a r s u a ve dos ou tros rapazes. “Deus!” s olu cei. E s en t i lá gr im a s es ca lda n tes me subirem aos olhos e correrem para dentro de minhas orelh a s , e s ob re o t ra ves s eiro. “Fa z u m a s em a n a qu e eu estou pedindo, e tu não me atendeste. Eu não presto. Já s ei porqu e n ã o pu de receber-te: é porqu e eu n ã o s ou d ign o. Eu a jo com o u m im becil em rela çã o à s ou tra s pess oa s . Nem s ei com o s egu ra r o ga rfo e a fa ca . Nã o s ei ler d ireito, n em ra ciocin a r com ligeireza s u ficien te pa ra a s s im ila r os en s in a m en tos . Tu do o qu e s ei é da ga n g. Es tou tã o des loca do a qu i, e s ou tã o s u jo e peca dor ... Eu qu ero s er bom . Ma s n ã o pos s o s er bom s em o teu Es p ír ito. Nã o obs ta n te, tu n ã o o dá s porqu e eu n ã o s ou bastante digno.”

A im a gem do m eu velh o qu a r to, n a Ru a For t Green e, 54 , a t ra ves s ou -m e a m en te com o u m relâ m pa go, e eu com ecei a t rem er in con trola velm en te. “Eu n ã o qu ero volta r , m eu Deu s , m a s o qu e a con tece é qu e n ã o con s igo m e a ju s ta r a qu i. Todos es tes ra pa zes e es ta s m oça s s ã o tã o es p ir itu a is e s a n tos , e eu tã o im pu ro e peca dor ... recon h eço qu e es tou fora do m eu lu ga r . Vou volta r a m a n h ã .” Virei-m e de la do, e ca í n u m sono agitado.

Depois da a u la , n o d ia s egu in te, voltei a o dor-m itór io pa ra a r ru m a r m in h a s m a la s . Tin h a res olvido s a ir fu r t iva m en te da es cola , e em preen der a lon ga jorn a da de volta pa ra ca s a — ped in do ca ron a . Nã o adiantava ficar ali.

Na qu ela n oite, s en ta do n o m eu belich e, os m eu s pen s a m en tos fora m in ter rom pidos por u m dos a lu n os

externos.

“Ah , Nicky! É você m es m o qu e eu qu er ia en -contrar.”

Pen s ei com m eu s botões : “É você m es m o qu e eu não queria encontrar.”

“Nicky”, con t in u ou ele n u m tom a legre, “vamos rea liza r u m es tu do b íb lico e u m cu lto n a pequ en a igreja do Boulevard Guava. Eu quero que você vá comigo.”

Sa cu d i a ca beça : “Hoje n ã o, Gen e. Es tou ca n s a do, e ten h o m u ito o qu e es tu da r . Con vide u m dos ou tros rapazes.”

“Ma s n ã o h á n en h u m ou tro ra pa z por a qu i”, d is s e ele en qu a n to m e d a va u m ta p in h a n a s cos ta s , “e a lém disso, o Espírito Santo me mandou procurar você.”

“Hu m m m , o Es p ír ito, é? Bem , o Es p ír ito m e m a n dou fica r a qu i e des ca n s a r u m pou co, pois eu ten h o es ta do m u ito ocu pa do fa la n do com ele a s em a n a in teira . Agora , ra s pe-s e e deixe-m e des ca n s a r .” Deitei e dei-lhe as costas.

“Não sairei daqui se você não for comigo”, disse ele teim os a m en te. Sen tou -se a os pés de m in h a ca m a , e cruzou as pernas.

Fiqu ei exa s pera do. O ra pa z es ta va lou co. Será qu e não percebia que eu não queria ir ?

“Tá bom ”, s u s p irei, “vou com você. Ma s , n ã o s e surpreenda se eu cochilar no culto.”

“Vamos”, d is s e Gen e a legrem en te, pu xa n do-me pelo braço. “Estamos atrasados, e tenho de pregar.”

Eu con corda ra em ir porqu e decid ira s a ir de m a n -s in h o depois do cu lto, e a r ra n ja r u m a ca ron a pa ra a cida de. Met i n o bols o à s p res s a s a es cova de den tes e a lgu n s ou tros per ten ces e res olvi deixa r o res to da bagagem. Afinal de contas, não valia muita coisa.

Ch ega m os à pequ en a ca pela m a is ou m en os à s s ete e t r in ta da n oite. Era feita de a dobe, reboca da por den tro. Os tos cos ba n cos de m a deira es ta va m ch eios de mexicanos simples e sinceros. “Pelo menos estou em boa companhia”, pen s ei. “Até m es m o es ta gen te é m elh or do qu e eu . Pelo m en os es tã o a qu i porqu e qu erem . Eu es tou aqui porque fui forçado a vir.”

Gene pregou cerca de qu in ze m in u tos , e depois fez o a pelo. Eu es ta va s en ta do n o ú lt im o ba n co, a o la do de um homem de cabelos grisalhos que recendia fortemente a s u jeira e s u or . Su a s rou pa s es ta va m s u ja s , com o s e ele t ives s e vin do d ireta m en te do ca m po s em ter tom a do banho. En qu a n to Gen e ora va , m eu vizin h o de ba n co com eçou a ch ora r : “J es u s , J es u s , J es u s ”, m u rm u ra va ele sem parar. “Obrigado, Jesus. Oh, obrigado, Jesus.”

Algo m oveu s e den tro de m im . Era com o s e a l-gu ém t ives s e a ber to u m a torn eira , u m pou qu in h o s ó, a princípio; e qu e, depois , com eça s s e a jor ra r . “Obrigado, Jesus”, orava o velho granjeiro ao meu lado, “obrigado.”

“Oh , Deu s !” s olu cei, “Oh , J es u s , J es u s .” Cerrei os den tes , e ten tei s egu ra r a a va la n ch e, m a s a s com portas n ã o a gü en ta ra m , e eu m e vi corren do corredor a ba ixo, em d ireçã o a o a lta r , t ropeça n do e ca m ba lea n do, a té qu e ca í de en con tro a o gra d il de m a deira b ru ta , ch ora n do incontrolavelmente.

Sen t i a s m ã os de Gen e s obre m im . “Nicky.” Eu qu a s e n ã o ou via a s u a voz, por ca u s a de m eu s s olu ços. “Nicky, Deu s n ã o ia deixa r você fu gir es ta n oite. O s eu Es p ír ito veio a m im h á u m a h ora a t rá s , e m a n dou qu e fos s e a o dorm itór io, pa ra bu s ca r e t ra zer você a es te cu lto. Eu s a b ia qu e você p la n eja va fu gir . E le en viou -me para impedi-lo.”

Com o ele s a b ia ? Nin gu ém s a b ia ! Nin gu ém , exceto Deus.

“Deus me enviou a você, Nicky. Todos os rapazes e

professores estão orando por você, na escola. Sentimos a m ã o de Deu s s ob re você de m a n eira m a ravilhosa. Sen t im os qu e ele es tá pa ra en ca m in h á -lo a u m gra n de e p recios o m in is tér io. Nós gos ta m os de você. Nós a m a m os você. Amamos você.”

As lá gr im a s corr ia m com o rega tos . Eu qu er ia fa la r , m a s n ã o con s egu i d izer n a da . Perceb i qu e ele deu a volta pelo gra d il tos co, s em p in tu ra , pôs o b ra ço a o redor dos m eu s om bros , e a joelh ou -s e a o m eu la do. “Pos s o ora r por você, Nicky ? Pos s o ora r pa ra qu e Cr is to o batize no seu Santo Espírito ?”

Ten tei res pon der , m a s o ch oro a u m en tou . Acenei a firm a t iva m en te com a ca beça , res m u n gu ei qu a lqu er cois a qu e ele in terp retou com o s en do u m a res pos ta afirmativa.

Eu n ã o t ive con s ciên cia d a s u a ora çã o, n em p res tei a ten çã o n ela . Nem s ei s e ele orou ou n ã o. De repen te, a b r i a boca , e dela s a íra m os m a is belos s on s qu e eu já ou vi. Sen t i u m a gra n de p u r ifica çã o in ter ior , como se o meu corpo estivesse sendo limpo, desde a sola dos pés a té o a lto da ca beça . A lin gu a gem com qu e eu es ta va lou va n do a Deu s n ã o era in glês n em es pa n h ol. Era uma língua desconhecida. Eu não tinha idéia do que estava fa la n do, m a s s a b ia qu e era lou vor a o Deu s Sa n -t ís s im o, em pa la vra s qu e, por m im m es m o, ja m a is s er ia capaz de formar.

O correr do tempo perdeu qualquer significado, e a du reza da s tá bu a s em qu e eu es ta va a joelh a do n ã o fez d iferen ça . Eu es ta va lou va n do a Deu s da m a n eira qu e sempre desejara, e nunca mais ia parar.

Pareceu-me que se haviam passado apenas alguns m om en tos , qu a n do s en t i Gen e m e s a cu d ir pelo om bro: “Nicky, es tá n a h ora de ir . Precis a m os volta r pa ra a escola.”

“Nã o, es tá m u ito bom a qu i”, ou vi-m e d izer , “deixe-

me ficar aqui para sempre.”

“Nicky”, ele in s is t iu , “p recis a m os ir . Você pode con t in u a r qu a n do volta rm os , m a s a gora p recis a m os ir embora.”

Leva n tei os olh os . A igreja es ta va va zia ; s ó n ós dois estávamos ali. “Ei, onde está o pessoal?”

“Ra pa z, s ã o on ze h ora s da n oite. Fa z u m a h ora que todos saíram.”

“Qu er d izer qu e es t ive ora n do du a s h ora s ?” Nã o podia acreditar.

“Obr iga do, J es u s , ob r iga do!” gr itei, en qu a n to corríamos para o carro.

Gen e deixou -m e defron te a o dorm itór io, e foi em bora . Corr i pa ra den tro e a cen d i a lu z. Com ecei a ca n ta r com toda s a s força s : “Sa n to, Sa n to, Sa n to, Deu s onipotente!”

“Ei, qu e ba ru lh o é es s e ? O qu e é qu e deu em você?” com eça ra m a gr ita r . “Apa gu e es s a lu z. Qu e loucura é essa? Apague a luz!”

“Calma”, gr itei. “Hoje es tou celeb ra n do. Vocês n ã o sabem o que me aconteceu, mas eu sei, e quero cantar... Glór ia , glór ia , a lelu ia !...” Um a fu zila r ia de t ra ves s eiros m e a t in giu , vin do de todos os ca n tos do qu a r to. “Apague a lu z!” Ma s eu s a b ia qu e u m a lu z s e a cen dera em m in h a a lm a , qu e ja m a is h a ver ia de a pa ga r-s e. Br ilh a r ia pa ra sempre.

Na qu ela n oite, s on h ei de novo — pela p r im eira vez des de qu e fora s a lvo. No s on h o, eu es ta va n o a lto da colin a , per to de La s Pied ra s , em Por to Rico, on de eu subira muitas vezes em meus pesadelos. Olhando para o céu , vi a form a d e u m pá s s a ro. Mes m o dorm in do, com ecei a t rem er , e ten tei leva n tar-me. “Oh , Deu s , n ã o permita que isso comece de novo. Por misericórdia!” Mas o pá s s a ro ch ega va ca da vez m a is per to. Só qu e des ta vez

n ã o era o pa s s a r in h o s em p ern a s — era u m a pom ba . Encolhi-m e de ter ror , pen s a n do qu e ela ir ia b ica r -m e, e bater com a s a s a s n o m eu ros to. Ma s n ã o — n a da d is s o aconteceu . Era u m a pom ba m a n s a e m eiga . Ela foi des -cen do... des cen do... e pou s ou m a n s a m en te s ob re a m in h a ca beça . O s on h o s e des fez, e eu ca í n u m s on o profundo, calmo, delicioso.

Capítulo 13

OONNDD EE OOSS AANNJJ OOSS TTEE MMEE MM

AANNDD AARR

OS DIAS QUE SE SEGUIRAM fora m ch eios de a legr ia e de vitór ia . A p r im eira t ra n s form a çã o qu e n otei foi n a m in h a con du ta . Nã o a n da va m a is gin gando. Fica va a ten to du ra n te a s ora ções , ora n do com a pes s oa qu e d ir igia . Em lu ga r de ba n ca r o “vivo”, com ecei a dem on s tra r con s idera çã o pelos ou tros , p r in cipa lm en te pela ga rota de lin dos olh os n egros qu e s e s en ta va à minha frente.

Des cobr i qu e o n om e dela era Glór ia . No d ia em qu e dei m eu tes tem u n h o d ia n te da cla s s e, ela en -caminhou-s e pa ra m im e a per tou -m e a m ã o de m aneira d ign a , com o u m a da m a : “Deu s o a ben çoe, Nicky. Ten h o orado por você.”

Tin h a u m a des con fia n ça de qu e ela p rova velmente es t ives s e ora n do pa ra qu e eu “ca ís s e m or to”. Ma s perceb i qu e es ta va rea lm en te feliz pelo fa to de Deu s ter -m e toca do. Seu s olh os , p rofu n dos e n egros , p is ca va m como as estrelas à meia-noite e seu sorriso era lindo.

Na s em a n a s egu in te en con trei cora gem s u ficien te pa ra con vidá -la a ir com igo a u m a ca m pa n h a de eva n geliza çã o, qu e es tá va m os rea liza n do em u m a pe-qu en in a igreja per to da es cola . Ela s orr iu , e du a s covinhas apareceram, quando acenou afirmativamente.

No decorrer da qu ele a n o fom os ju n tos a m u itos cu ltos . Em bora es t ivés s em os s em pre n a com pa n h ia de ou tra s pes s oa s , fiqu ei s a ben do m u ita s cois a s a s eu res peito. Na s cera n o Es ta do de Ar izon a . O pa i era ita lia n o, e s u a m ã e m exica n a . Tin h a m m u da do pa ra a Califórnia quando ela estava com cinco anos, e seus pais abriram um bar em Oakland. Na última série do ginásio, fora s a lva e decid ira en tra r n a Es cola Bíb lica . Seu pastor, o Rev. Sixto Sanchez, sugerira que ela escrevesse pa ra o In s t itu to Bíb lico. Eles a a ceita ra m , e en tra ra n a escola no outono daquele ano.

Per to do fim do a n o es cola r , s en t i qu e Glór ia es ta va pa s s a n do por a lgu m p rofu n do des a s s os s ego ín t im o. O regim e es cola r era m u ito pes a do pa ra ela . Nos ú lt im os d ia s de a u la , ela m e d is s e qu e a ch a va qu e n ã o a gü en ta r ia cu rs a r ou tro a n o, e qu e por is s o n ã o volta r ia à es cola depois da s fér ia s . Fiqu ei des a pon ta do, m a s ela prometeu que me escreveria.

Pa s s ei a qu ele p r im eiro verã o em Los An geles . Algu n s a m igos m e leva ra m pa ra lá e p roviden cia ra m u m lu ga r pa ra eu m ora r . Ma s s en t i m u ito a fa lta de Glór ia . Qu a n do a s a u la s com eça ra m , n o ou ton o, fiqu ei m u ito s a t is feito a o en con tra r u m a ca r ta à m in h a es pera . Ela cumprira a promessa.

Glór ia revelou -m e, em pa r te, os m ot ivos qu e a leva ra m a deixa r a es cola . “Min h a s exper iên cia s foram d iferen tes da s s u a s , Nicky”, es creveu ela . “Embora m a m ã e e pa pa i t ra ba lh em n u m ba r , fu i cr ia da em u m a a tm os fera m ora lm en te boa . Qu a n do fu i s a lva , fu i a extrem os exa gera dos . Apren d i qu e era peca do cop ia r os pa d rões do m u n do. Des fiz-m e de toda m a qu ila gem ,

deixei de u s a r m a iô, e des is t i a té de en feita r -m e com jóia s . Tu d o em m im era n ega t ivo. Qu a n do fu i pa ra a es cola , a s itu a çã o p iorou a in da m a is . Es ta va a pon to de s ofrer u m cola ps o m en ta l. Qu er ia con ta r is s o a você, m a s n u n ca t ivem os opor tu n ida de de es ta r a s ós . Es pero qu e com preen da e con t in u e ora n do por m im . Ma s eu não voltarei para a escola...”

O s egu n do a n o n a Es cola Bíb lica pa s s ou depres s a . Min h a s n ota s m elh ora ra m , e os ou tros a lu n os esta va m com eça n do a m e a ceita r com o igu a l. Tive vá rias opor tu n ida des de p rega r em t ra ba lh os a o a r livre, e da r meu testemunho em algumas igrejas vizinhas.

Em a br il, receb i u m a ca r ta de Da vi Wilkers on . Ele a in da es ta va m ora n do n a Pen s ilvâ n ia , m a s qu er ia qu e eu volta s s e pa ra Nova York n a qu ele verã o, pa ra t ra ba lh a r en tre a s qu a dr ilh a s do Brook lin . Planejara a lu ga r u m a pa r ta m en to n a Av. Clin ton , en tre a s ru a s Fu lton e Ga tes , e h a via con s egu ido qu e Th u rm a n Fa is on e Lu iz Delga do t ra ba lh a s s em com igo, s e eu fos s e. O d in h eiro era pou co, m a s ter ía m os m ora d ia e pa ga r ia m sete dólares por semana a cada um de nós.

Na qu ela n oite, depois da h ora de es tu do, fu i a o es cr itór io do d iretor , e telefon ei pa ra Da vi, a cobra r . O telefone tocou du ra n te m u ito tem po, e fin a lm en te u m a voz s on olen ta a ten deu . Ele res m u n gou qu e pa ga r ia a taxa.

“Ei, Da vi, s ou eu , Nicky. Você já a ca bou de ja n -tar?”

“Nicky, s a be qu e h ora s s ã o?” “Cla ro, m eu ch a pa , s ã o dez da n oite.” “Nicky...” h a via u m a pon t in h a de exa s pera çã o n a voz, “podem s er dez h ora s n a Ca lifórn ia , m a s a qu i é u m a da m a dru ga da . Eu e Gwen es ta m os dormindo h á du a s h ora s . Agora você a cordou o beb ê também.”

“Ma s Da vi, s ó qu er ia da r -lh e a s boa s n ova s .”

Ou vi perfeita m en te a cr ia n ça berra n do, com o “fundo musical”. “O qu e é tã o bom qu e n ã o pode es pera r a té de manhã, Nicky ?”

“Is to n ã o pode es pera r , Da vi. Eu vou pa ra Nova York t ra ba lh a r com você n es te verã o. Deu s m e d is s e qu e quer que eu vá.”

“Is s o é ót im o, Nicky. Es tou vib ra n do, Gwen ta m bém , e o bebê ta m bém . Vou m a n da r u m a pa s s agem de avião para você. Boa noite.”

Fiqu ei a corda do a n oite in teira , fa zen do p la n os para a minha volta a Nova York.

A via gem pa ra a “m in h a cida de” a ju dou -m e a ver com o eu t in h a m u da do. Era com o s e toda a m in h a vid a tivesse s e torn a do rea lm en te viva . Qu a n do com eça m os a des cer n o a eropor to de Nova York , m eu cora çã o com eçou a ba ter m a is dep res s a a n te a s recorda ções , e o en tu s ia s m o cres ceu . Loca lizei a s ilh u eta do Ed ifício Em pire Sta te n o h or izon te, e depois , a pon te de Brooklin . Nu n ca percebera com o a cida de era tã o com pa cta , n em com o s e es pa lh a va por cen ten a s d e qu ilôm etros qu a dra dos . Meu cora çã o t ra n s borda va de a m or e com pa ixã o pelos m ilh ões de pes s oa s qu e es ta va m a m a rra da s , a li em ba ixo, n a s elva de a s fa lto do peca do e do des es pero. Meu s olh os fica ra m ra s os de á gu a qu a n do o a viã o fez u m círcu lo s ob re a cida de. Es ta va t r is te e feliz — a m ed ron ta do e a n s ios o. Es ta va em casa.

Da vi foi m e bu s ca r n o a eropor to, e n ós n os a b ra ça m os e ch ora m os s em a ca n h a m en to. Com o bra ço rodea n do m eu s om bros , levou -m e a té o ca rro, fa la n do, ch eio de en tu s ia s m o, a res p eito do s eu n ovo sonho.

Es cu tei, en qu a n to ele fa la va d os p la n os qu e t inha pa ra o fu tu ro; do s eu n ovo Cen tro — Des a fio J ovem . Porém , ele percebeu qu e a lgo es ta va m e p reocu pa n do, e

fin a lm en te s eu en tu s ia s m o a r refeceu o s u ficien te pa ra perguntar-me o que era.

“Da vi, você s ou be a lgu m a cois a de Is ra el? On de ele está? Se está bem?”

Da vi cu rvou a ca beça , e fin a lm en te olh ou pa ra mim com um olhar sombrio.

“Nã o, Nicky, n em tu do es tá bem . Nã o fa lei n a d a s obre is to em m in h a s ca r ta s , porqu e tem ia des animá-lo. Ach o qu e devo con ta r tu do a gora , pa ra qu e com ece a orar comigo nesse sentido.”

Fica m os a lgu m tem po n o ca r ro a ba fa do, n o pá t io de es ta cion a m en to do a eropor to, en qu a n to Da vi m e contava a situação de Israel.

“Is ra el es tá n a p r is ã o, Nicky. Foi en volvido em u m a s s a s s in a to, em dezem bro, depois qu e você foi pa ra a escola. Até agora, não saiu da prisão.”

Meu cora çã o a celerou -s e. Sen t i u m s u or fr io n a palma das mãos. Respirei fundo.

“Conte-m e tu do o qu e s a be, Da vi. Eu qu ero s a -ber.”

“Qu a n do t ive n ot ícia s dele tu do es ta va term inado, e já tinha sido levado para a penitenciária de Elmira. Fui até Nova York para visitar a mãe de Israel. Ela chorou ao con vers a r com igo, e m e con tou qu e h ou vera u m a gra n de m u da n ça n a vida d o filh o depois qu e ele a ceita ra Cr is to, mas, depois do desengano, ele voltara para a quadrilha.”

“Que desengano?” perguntei.

“Você não sabe?”

“Você s e refere a o fa to de eu ter s ido es fa qu eado? Ele disse que ia pegar o cara que fizera aquilo.”

“Nã o, foi a lgo m a is p rofu n do do qu e is s o. A m ã e dele contou me que no dia em que você saiu do hospital, o Sr . Delga do pa s s ou n o a pa r ta m en to ped iu -lh e pa ra

ir com você en con tra r com igo em Elm ira , n o d ia s egu in te. Is ra el ficou en tu s ia s m a do e d is s e qu e ir ia . E la o a cordou n a m a dru ga da do d ia s egu in te à s qu a tro h ora s , pa s s ou a s rou pa s dele, e a r ru m ou a s u a m a la . Ele foi a té a Av. Fla tbu s h e es perou da s s eis a té à s n ove da m a n h ã . De a lgu m a form a , vocês s e des en con tra ra m . Ele voltou pa ra o a pa r ta m en to, jogou a m a la n o ch ã o, e d is s e à m ã e qu e todos os cren tes era m u m a ca m ba da d e trapaceiros. Naquela noite voltou para a gang.”

Sen t i lá gr im a s vin do a os m eu s olh os , qu a n do m e virei pa ra Da vi. “Nós o p rocu ra m os . Procu ra mo-lo por toda pa r te. Eu qu er ia pa ra r e p rocu ra r m a is , m a s o Sr . Delga do d is s e qu e p recis á va m os ir . Oh , Da vi, s e s ou bés s em os ! Se t ivés s em os olh a do u m pou co m a is det ida m en te, poder ia s er qu e ele a gora es t ives s e n a escola comigo.”

Da vi a s s oou o n a r iz e p ros s egu iu : “Depois qu e voltou pa ra a qu a dr ilh a , ele e ou tros qu a tro a t ira ra m em u m ra pa z da qu a dr ilh a dos An gels da Ru a Su l, defron te à Arca da Pen n y. Ele m orreu im ed ia ta m en te. Is ra el foi a cu s a do de a s s a s s in a to em s egu n do gra u , e s en ten cia do a cinco anos na penitenciária do Estado. Está lá agora.”

Hou ve u m a lon ga e s ofr ida pa u s a , e fin a lm en te pergu n tei a Da vi s e ele o t in h a vis to, ou t ivera n ot ícias dele desde que fora preso.

“Escrevi-lh e, m a s vim a s a ber qu e ele n ã o pod ia res pon der . Só pode es crever pa ra a fa m ília . Até os s eu s curs os por corres pon dên cia p recis a m s er en viados a tra vés do ca pelã o da p r is ã o. Orei por ele todo o verã o s egu in te, e fin a lm en te em preen d i u m a via gem a Elm ira , s ó pa ra vê-lo. Es ta va m p repa ra n do a s u a t ra n s ferên cia pa ra a colôn ia pen a l a gr ícola de Com s tock , e perm it ira m qu e eu m e en trevis ta s s e com ele du ra n te a lgu n s minutos. Israel está bem, penso eu, mas ainda tem mais de três anos para ficar atrás das grades.”

Fica m os a li, s en ta dos em s ilên cio, du ra n te lon go

tem po, e fin a lm en te eu d is s e: “Pen s o qu e devem os ora r por ele.”

Da vi cu rvou -s e s ob re o vola n te e com eçou a ora r em voz a lta . Virei-m e de cos ta s , n o a s s en to, e a joelh ei-m e n o p is o do ca r ro, com os cotovelos a poia dos n o ba n co. Pa s s a m os qu a s e qu in ze m in u tos ora n do, a li n o pá t io de es ta cion a m en to. Qu a n do term in a m os , Da vi disse: “Fizem os tu do o qu e n os é pos s ível fa zer por Israel, por enquanto, Nicky; mas há uma cidade cheia de ou tros , igu a izin h os a ele, qu e n ós a in da podem os s a lva r pa ra J es u s Cr is to. Você es tá p ron to pa ra por m ã os à obra?”

“Vamos”, d is s e eu . Ma s eu s a b ia qu e m in h a ob ra ja m a is es ta r ia com pleta en qu a n to n ã o pu des s e liber ta r Is ra el. Da vi deu pa r t ida n o ca r ro, e en veredou pelo in ten s o t rá fego de Nova York . Eu es ta va a b ra s a do de zelo pelo Sen h or . “Qu ero vis ita r os m em bros da m in h a velh a qu a dr ilh a , a m a n h ã ”, d is s e com o qu e desinteressadamente. “Quero falar-lhes de Jesus.”

Da vi virou -s e pa ra m im , a o s a ir da p referen cia l e b reca r d ia n te de u m s in a l verm elh o, e d is s e: “Eu , s e fos s e você, a va n ça r ia deva ga r , Nicky. Des de qu e você foi em bora , m u ita cois a a con teceu . Você se lem bra qu a n do s e con ver teu ? Qu a s e m a ta ra m você. Eu ter ia m u ito cu ida do. Há m u ito o qu e fa zer , s em s e en volver tã o cedo com os Ma u -Ma u s . Só lou cos en tra m on de os a n jos temem andar.”

O s em á foro m u dou de cor , e n ós a r ra n ca m os , abrindo a curva, para ultrapassar um ônibus. “Posso ser louco, Davi, mas desta vez sou louco por amor de Jesus. Ele irá com igo e m e p rotegerá . Os a n jos podem ter m edo de en tra r n a zon a dos Ma u -Ma u s , m a s eu vou com Jesus.”

Da vi s or r iu e ba la n çou a ca b eça com o a concor-dar, enquanto entrava na Av. Clinton. Freando diante de um edifício de apartamentos, ele disse: “Ele é o seu guia,

Nicky, n ã o eu . Fa ça o qu e ele orden a r , e você s ó terá vitória. Vamos, quero que conheça Thurman e Luís.”

O d ia s egu in te s er ia o gra n de d ia . Pa s s ei a m a ior pa r te da n oite a corda do, ora n do. De m a n h ã , ves t i o tern o e pu s u m a gra va ta vis tos a , com m in h a Bíb lia n ova de ca pa de cou ro deba ixo do b ra ço, a tra ves s ei a cida de em d ireçã o a o con ju n to h a b ita cion a l de For t Green e. Ia ao encontro dos Mau -Maus.

A cida de n ã o s e m od ifica ra m u ito. Algu n s dos p réd ios m a is a n t igos t in h a m s ido con den a dos , e h a via tapumes ao seu redor. Tudo o mais permanecia como eu deixa ra , dois a n os a n tes . Ma s eu es ta va d iferente. En gorda ra e cor ta ra o ca b elo. Con tu do, a d iferença maior estava no íntimo. Eu era um novo Nicky.

Qu a n do a t ra ves s ei a Pra ça Wa s h in gton , m eu co-ra çã o com eçou a ba ter m a is dep res s a . Com ecei a p rocu ra r os Ma u -Ma u s ; con tu do, pela p r im eira vez, es ta va p reocu pa do a res peito da m a n eira com o s a u dá -los — e o qu e eles d ir ia m , qu a n do m e vis s em . Com o eu m e a p res en ta r ia ? Nã o es ta va com m edo, s ó qu er ia ter s a bedor ia pa ra m a n eja r a s itu a çã o pa ra a glór ia de Deus.

Qu a n do s a í da p ra ça , vi u m a tu rm a de Ma u -Maus en cos ta da n a pa rede de u m ed ifício. As pa la vra s de Da vi rela m peja ra m pela m in h a m en te: “Só lou cos en tra m on de os a n jos tem em a n da r”, m a s eu m u rm u rei u m a ora çã o em voz a lta , ped in do qu e o Es p ír ito Sa n to fos s e com igo, e en ca m in h ei-m e pa ra a “tropa” de desocupados.

Ha via cerca de t reze ra pa zes n a qu ela tu rm a . Recon h eci Willie Cor tez, e d a n do-lh e u m ta p in h a n a s costas, disse: “Ei, Willie, meu chapa...”

Cor tez voltou -s e e a r rega lou os olh os : “Nã o m e diga que você é o Nicky?”

“Sim, meu chapa, sou o Nicky.” “Puxa, você parece

u m s a n to, ou cois a pa recida .” “Con vers a , ra pa z. Aca b o de chegar da Califórnia. As coisas estão indo bem para mim. Sou crente e estou estudando.”

Ele a ga rrou m eu s om bros com a m ba s a s m ã os e fez-me girar várias vezes, olhando para minhas roupas e m eu a s pecto. “Pu xa , Nicky, n ã o a cred ito. Nã o pos s o acreditar.”

Depois , vira n do-s e pa ra os ou tros m em bros da ga n g, qu e es ta va m olh a n do cu r ios a m en te, d is s e. “Ei, ra pa zes , t irem o ch a péu . Es te é o Nicky. Ele foi n os s o p res iden te. Era u m ca ra bem bom de b r iga e fez h is tór ia com os Mau-Maus. Era o mais durão de todos.”

Os ra pa zes t ira ra m os ch a péu s , res peitos os . Willie Cor tez era o ú n ico do gru po a qu em eu con h ecia . Qu a s e todos os ra pa zes era m m a is n ovos , m u ito m a is n ovos , m a s todos fica ra m im pres s ion a dos . Tin h a m ou vido fa la r de m im , e a glom era ra m -s e a o n os s o redor , es ten den do a mão.

Coloqu ei o b ra ço a o redor do om bro de Willie e s or r i pa ra ele. “Olh a , Willie, va m os da r u m a volta pela praça. Quero conversar com você.”

Afastamo-n os do gru po e en tra m os n a Pra ça Wa s h in gton . Willie a n da va va ga ros a m en te a o m eu lado, com a s m ã os n os bols os , a r ra s ta n do os pés n o cim en to. Qu ebrei o s ilên cio: “Willie, qu ero con ta r a você o qu e Cristo fez em minha vida.”

Ele n ã o leva n tou a ca beça , m a s con t in u ou a n -da n do en qu a n to eu fa la va . Con tei-lh e com o eu m e s en t ira qu a n do era m em bro da qu a dr ilh a , dois a n os a n tes , e com o eu en trega ra o cora çã o a Cr is to. Con tei-lhe a maneira como Deus me guiara para fora do deserto de con creto, pa ra u m lu ga r on de a gora eu era u m s er humano útil.

Willie in ter rom peu -m e, e eu perceb i qu e a s u a voz tremia: “Ei, Nicky, pá ra com is s o, te m a n ca ! Você m e fa z

s en t ir m a l. Qu a n do fa la , a lgu m a cois a m exe a qu i den tro do m eu peito. Você es tá d iferen te. Nã o é m a is o m es m o velho Nicky. Você me dá medo.”

“Tem ra zã o, Willie, a lgu m a cois a m e t ra n s formou. O s a n gu e de Cr is to t ra n s form ou -m e e la vou -m e; a gora , es tou lim po. Sou u m h om em d iferen te. Nã o ten h o m a is m edo. Nã o ten h o m a is ód io. Agora eu a m o a s pes s oa s . Amo você, Willie. E quero dizer-lhe que Jesus te ama.”

Ch ega m os a u m ba n co, e fiz s in a l pa ra Willie sentar . Ele s en tou -s e e olh ou -m e, d izen do: “Nicky, fa la m a is de Deu s .” Pela p r im eira vez n a m in h a vida perceb i com o era im por ta n te fa la r de Cr is to pa ra os m eu s a m igos . Perceb i a s olidã o n a s u a fa ce, a ign orâ n cia — o medo. Ele era exa ta m en te com o eu fora dois a n os a n tes. Ma s a gora eu qu er ia m os tra r -lh e com o es ca pa r . Sen tei a o la do d ele, e a b r i a Bíb lia n a s pa s s a gen s m a rca da s com lá p is verm elh o. Li a s pa s s a gen s b íb lica s referen tes a o peca do do h om em . Qu a n do li : “Pois o s a lá r io d o peca do é a m or te”, Willie olh ou pa ra m im com m edo estampado no rosto.

“O qu e qu er d izer , Nicky? Se eu s ou peca dor , e Deu s va i m e m a ta r porqu e pequ ei, o qu e pos s o fazer? Qu ero d izer , pu xa , p recis o fa zer a lgu m a cois a . Qu e devo fazer?” Seu s olh os m os tra va m gra n de excita çã o, e ele ficou de pé, de um salto.

“Sente-s e, Willie, a in da n ã o a ca bei. Vou con ta r o res to da h is tór ia . Deu s a m a você. Ele n ã o qu er qu e vá pa ra o in fern o. Ele o a m a ta n to qu e m a n dou s eu ú n ico Filh o pa ra pa ga r o p reço de s eu s peca dos . Ele en viou J es u s pa ra m orrer em s eu lu ga r , pa ra qu e você n ã o p recis e m orrer , m a s pos s a ter vida etern a . E s e você aceitá-lo, se você confessá-lo, ele salvará você.”

Willie deixou -s e ca ir n o ba n co, com u m a r de des es pero n o ros to. Fiqu ei olh a n do pa ra ele, com os olh os ch eios de lá gr im a s . Fech ei os olh os com força e comecei a orar, mas as lágrimas conseguiram passar por

en tre a s pá lpebra s cer ra da s , e correra m pela s m in h a s fa ces . Qu a n do a b r i os olh os , Willie ta m bém es ta va chorando.

“Willie, sabe o que significa arrepender-se?” Ele fez que não.

“Sign ifica m u da r d e d ireçã o. Da r m a rch a -ré. Se você não se importa, quero que faça uma coisa.

Pode fer ir o s eu orgu lh o, m a s eu vou ora r por você. Você quer ajoelhar-se?”

Eu n ã o t in h a idéia de com o ele ir ia rea gir . Ha via gen te a n da n do pa ra lá e pa ra cá , n a ca lça da , bem defron te a o ba n co em qu e es tá va m os s en ta dos , m a s Willie a cen ou a firm a t iva m en te, e s em h es itação, ajoelhou-s e n a ca lça da . Olh a n do pa ra cim a , ele d is s e: “Nicky, s e Deu s pôde m u da r você, pod e m e t ra n s form a r também. Você ora por mim agora?”

Coloqu ei a s m ã os s ob re a ca beça de Willie e co-m ecei a ora r . Sen t i s eu corp o es t rem ecer s ob m inhas m ã os , e ou vi s eu s s olu ços . Ele pôs -s e a ora r . Es tá va m os ambos orando em voz alta — muito alta. Através de uma cor t in a de lá gr im a s , cla m ei: “Sen h or! Toca em Willie! Toca em m eu a m igo. Sa lva-o. Fa z com qu e ele s eja u m líder para levar outros a ti.”

Willie ora va em voz a lta e tor tu ra da : “Jesus... J es u s ... Aju da -m e! Aju da -me!” Es ta va ofega n te, en -quanto chorava e gritava: “Oh, Jesus, ajuda-me!”

Fica m os n o ja rd im o res to da ta rde. Ao crepú s -cu lo, Willie voltou a o s eu a pa r ta m en to, p rom eten do t ra zer o res to da ga n g à m in h a ca s a , n a n oite s eguinte. Fiqu ei a li de pé ven do-o a fa s ta r -s e, a té s u mir-s e a o lon ge. Mes m o olh a n do por t rá s , pod ia -s e n ota r a d iferen ça . Algo flu íra a t ra vés de m im e a lca n ça ra Willie Cor tez. Ach o qu e n ã o a n dei a té a Av. Clin ton , n a qu ela ta rde... flu tu ei... lou va n do a Deu s a ca da vez qu e res p ira va . Lem brei-m e da vez em qu e correra pelo

gra n de p a s to, defron te à n os s a ca s a em Por to Rico, batendo os braços e tentando voar como um passarinho. Ali em Nova York , n a qu ela n oite, leva n tei a ca beça e respirei fundo. Finalmente estava voando.

Pa s s ei o res to do verã o com a ga n g, p rega n do a o a r livre e rea liza n do t ra ba lh o pes s oa l. J eju a va reli-gios a m en te, fica n do s em com ida da s s eis h ora s da m a n h ã de qu a r ta -feira a té s eis da m a n h ã de qu in ta -feira . Des cobr i qu e qu a n do jeju a va e pa s s a va a lgu m tem po em ora çã o, a con tecia m cois a s em m in h a vi- da. Ta m bém es crevi vá r ia s vezes pa ra Glór ia , e u ltimamente s u a s ca r ta s es ta va m ga n h a n do u m tom a m igo e a m á vel, com o s e ela es t ives s e gos ta n do de m e es crever . Os s eu s p la n os pa ra o a n o s egu in te era m a in da in defin idos , e eu orei muito por ela.

Du a s s em a n a s a n tes de volta r à es cola , u m n e-gociante cristão, que fazia parte da junta de conselheiros de Da vi, ch egou com u m ch equ e. Dis s e-m e qu e qu er ia m dar-m e a lgu m a cois a extra pelo t ra ba lh o qu e eu rea liza ra , e s u ger ia m qu e eu u s a s s e o ch equ e pa ra comprar uma passagem de avião até Porto Rico, a fim de vis ita r m eu s pa is , a n tes de volta r à es cola . Foi im en s a a minha emoção.

Ch egu ei a Sa n J u a n n u m a s egu n da -feira , à tardinha, e tomei um ônibus para Las Piedras.

J á es ta va qu a s e es cu ro, qu a n do des ci do ôn ibu s e com ecei a a t ra ves s a r a cida dezin h a , em d ireçã o à con h ecida t r ilh a qu e s erpea va pela colin a gra m a da , s u b in do a té a ca s in h a b ra n ca de m a deira , n o topo do ou teiro. Cem m il recorda ções in u n da ra m m eu cora çã o e minha mente. Alguém gritou: “É Nicky. É Nicky Cruz”, e vi u m h om em corren do à m in h a fren te, colin a a cim a , pa ra con ta r a pa pa i e m a m ã e qu e eu es ta va ch ega n do. Algu n s s egu n dos depois a por ta a b r iu -s e de u m golpe, e qu a tro dos m en in os m a is n ovos s a íra m voa n do colin a a ba ixo. Fa zia cin co a n os qu e n ã o os via , m a s eu

recon h eci m eu s irm ã os . Atrá s deles , com a s a ia voa n do a o ven to, vin h a m in h a m ã e. Deixei ca ir a m a la , e corr i pa ra en con trá-los . Colid im os em u m a a gita çã o de excla m a ções felizes , lá gr im a s e a b ra ços a per ta dos . Os m en in os t repa ra m à s m in h a s cos ta s , der ru ba n do-me por ter ra em u m a lu ta a n im a da . Ma m ã e pôs -s e d e joelhos, abraçando-m e o pes coço, e s u foca n do-m e de beijos . Recu pera n do a ca lm a , vi qu e d ois dos m en in os m a is n ovos t in h a m corr ido pa ra a pa n h a r a m in h a m a la e t ra zia m -n a t r ilh a a cim a . Olh ei pa ra a ca s a , e a li de pé, a lta e im por ta n te, es ta va a figu ra poderos a e s olitá r ia de pa pa i, olh a n do em m in h a d ireçã o. Dir igi-me va ga ros a m en te pa ra ele, qu e perm a n ecia im óvel, ereto, observando-m e. Pu s -m e en tã o a correr , e ele com eçou a des cer va ga ros a m en te os degra u s pa ra m e en con tra r . Afin a l, ir rom peu ta m bém n u m a corr ida , e m e en con trou n a fren te da ca s a . Aper ta n do-m e n os b ra ços p elu dos , levantou-m e do ch ã o e a per tou -m e con tra o peito a m plo. “Bem-vindo, à sua casa, passarinho, bem-vindo.”

Fra n k es crevera a m a m ã e e pa pa i, d izen do qu e m in h a vida m u da ra , e qu e eu es ta va es tu da n do, n a Ca lifórn ia . Es pa lh a ra -s e a n ot ícia de qu e m e torn a ra cren te, e m u itos dos m em bros da s igreja s em La s Pied ra s fora m à n os s a ca s a , à n oite, pa ra m e ver . Dis s era m qu e ou tros qu er ia m ver-m e, m a s fica ra m com m edo de ir à “ca s a do feit iceiro”. Cr ia m qu e pa pa i pod ia fa la r com os m or tos , e n a s u a s u pers t içã o t in h a m m edo de se aproximar. Contudo, queriam ter um culto na casa de u m dos cren tes e ped iram-m e pa ra p rega r e da r m eu tes tem u n h o. Dis s e-lh es qu e d ir igir ia o cu lto, m a s ter ia qu e s er em m in h a ca s a . Olh a ra m u n s pa ra os ou tros , e o d ir igen te do gru po d is s e: “Ma s , Nicky, m u itos dos n os s os irm ã os têm m edo dos dem ôn ios . Têm m edo de seu pai.”

Disse-lhes que iria ajeitar as coisas, e que na noite s egu in te ter ía m os u m gra n de cu lto cr is tã o em m in h a casa.

Mais ta rde, n a qu ela m es m a n oite, qu a n do pa pa i ou viu o qu e t ín h a m os p la n eja do, ob jetou violen tamente. “Nã o perm ito is s o. Nã o h a verá cu lto cr is tã o n es ta ca s a . Es s a gen te va i a r ru in a r m eu s n egócios . Se t iverm os u m cu lto a qu i, os ou tros n u n ca m a is virã o... es ta rei arruinado como espírita. Proíbo isso.”

“Você n ã o é ca pa z de ver com o o Sen h or t ra n s -form ou o s eu filh o? Tem de h a ver a lgo n is s o. A ú ltima vez em qu e o viu , ele era com o u m a n im a l. Agora é u m p rega dor , u m m in is t ro cr is tã o. Nós terem os o cu lto e você assistirá”, argumentou mamãe.

Ra ra m en te m a m ã e d is cu t ia com pa pa i, m a s qu a n do is to a con tecia , s em pre s a ía ven cen do. Des ta vez, ta m bém foi a s s im . Na n oite s egu in te a ca s a ficou lota da de gen te da vila , bem com o de vá r ios p rega dores d e cida des vizin h a s . O ca lor era es ca lda n te. Fiqu ei de pé, n a fren te da s a la , e dei o m eu tes tem u n h o. En trei em m u itos deta lh es , con ta n do o dom ín io qu e Sa ta n á s exercera s ob re m im , e com o eu fora liber to d a s s u a s ga rra s pelo poder de Cr is to. O povo m a n ifes ta va a u d ivelm en te s eu a gra do, en qu a n to eu p rega va , m u rm u ra n do a p rova çã o, e a lgu m a s vezes gr ita n do e ba ten do pa lm a s de jú b ilo, en qu a n to eu des crevia os vários acontecimentos que cercaram a minha salvação.

Ao fim do cu lto, ped i a todos qu e cu rva s s em a ca beça . En tã o, con vida n do os qu e qu is es s em a ceita r a Cr is to com o s a lva dor pes s oa l qu e des s em u m pa s s o à fren te e s e a joelh a s s em , fech ei os olh os e com ecei a ora r silenciosamente.

Hou ve u m m ovim en to n a m u lt idã o. Sen t i qu e a lgu m a s pes s oa s es ta va m s e a p roxim a n do. Ou vi-as ch ora r , en qu a n to s e a joelh a va m à m in h a fren te. Ma n t ive m in h a pos içã o, com os olh os fech a dos e o ros to volta do pa ra o céu . Pod ia s en t ir a t ra n s p ira çã o des cen do pelo m eu ros to, corren do pela s m in h a s cos ta s e goteja n do pela s m in h a s pern a s . Eu es ta va todo s u a do, devido a o

calor qu e s e gera ra em m im , en qu a n to p rega va , m a s sentia que Deus estava operando, e continuei a orar.

Ou vi en tã o u m a m u lh er qu e a joelh a da d ia n te de mim, começou a orar. Reconheci sua voz, e abri os olhos in credu la m en te. Nã o pu de con ter m in h a a legr ia : a li, a joelhada à minha frente, com o rosto enterrado na saia, es ta va m in h a m ã e e ta m bém dois de m eu s irm ã os m en ores . Ca í de joelh os d ia n te dela , e rodeei-a com os braços.

“Oh , Nicky, m eu filh o, m eu filh o, eu ta m bém creio n ele. Qu ero qu e ele s eja o Sen h or de m in h a vida . Nã o suporto mais ouvir falar de demônios e espíritos maus, e qu ero es te J es u s com o m eu Sa lvador.” Ela com eçou então a orar. Ouvi a mesma voz que um dia me mandara pa ra o qu a r to, e depois pa ra o porã o, com gr itos h is tér icos de: “Eu odeio você...” cla m a n do a gora a Deu s , ped in do s a lva çã o, e gra n des s olu ços s a cu d ira m m eu corpo, en qu a n to ela ora va ped in do perdã o: “Por m is er icórd ia , Deu s qu er ido, perdoa -m e por ter fa lh a do em relação ao meu filho. Perdoa-me por tê-lo afastado do la r . Perdoa m eu s peca dos , e por n ã o ter cr ido em t i. Agora eu creio. Creio em ti. Salva-me, ó Deus, salva-me.”

Abr i os b ra ços e cin gi os m eu s dois irm ã os m a is n ovos , u m de qu in ze e ou tro de dezes s eis a n os , e todos nos aconchegamos, orando e louvando a Deus.

Ma is ta rde, leva n tei-m e e olh ei pa ra a m u lt idã o. Mu itos ou tros t in h a m vin do e es ta va m a joelh a dos n o ch ã o, ora n do e ch ora n do. Fu i de u m pa ra ou tro, im pon do a s m ã os s ob re a s s u a s ca beça s , e ora n do por eles . Fin a lm en te, pa rei e olh ei pa ra o fu n do da s a la . Ali, en cos ta do à pa rede, via-s e a figu ra s olitá r ia de pa pa i, levantando-s e ereta s ob re a s ca beça s cu rva da s . Nos s os olh os s e cru za ra m em u m lon go olh a r , e o s eu qu eixo es t rem eceu vis ivelm en te. Seu s olh os en ch era m -s e de lágrimas — m a s ele virou -s e e deixou repen t in a m en te a sala.

Papa i ja m a is decla rou a ber ta m en te s u a fé. Ma s s u a vida a b ra n dou -s e des de en tã o. Depois da qu ela n oite, n ã o h ou ve m a is n en h u m a s es s ã o es p ír ita n a ca s a da fa m ília Cru z. Voltei a Nova York dois d ia s depois , e u m dos pa s tores por to-r iqu en h os ba t izou m in h a m ã e e m eus dois irmãos nas águas, na semana seguinte.

Eu t in h a m en os d e u m a s em a n a d is pon ível em Nova York , a n tes de via ja r pa ra a Ca lifórn ia , pa ra fa zer m eu ú lt im o a n o n a es cola . Na n oite a n ter ior à m in h a viagem houve uma grande concentração da mocidade na Igreja de Deu s J oã o 3 :16 . Fizem os u m gra n de es forço pa ra leva r os Ma u -Ma u s a a s s is t ir . Fizera a m iza de com Steve, s eu n ovo p res iden te, e ele d is s e qu e s e eu fos s e estar presente, levaria com certeza a gang ao culto.

No ves t íbu lo, a n tes do cu lto com eça r , eu exa m in a va os velh os or ifícios feitos p ela s ba la s de dois a n os a n tes , qu a n do os Ma u -Ma u s com eça ra m a ch egar. Ma is de oiten ta e cin co deles a pa recera m . A p equena igreja ficou com pleta m en te lota da . Qu a n do en tra ra m , gritei-lhes: “Ei, m eu s ch a pa s , a qu i é ter r itór io de Deu s . Tirem o ch a péu .” Eles obedecera m de boa von ta de. Um ra pa z es ta va n o ca n to do ves t íbu lo, com u m a da s ga rota s . Gr itou : “Ei, Nicky, pos s o a b ra ça r m in h a ga rota aqui?”

Respondi: “Sim , m eu ch a pa , va i em fren te, m a s n a da de beija r n em de bolin ação.” O res to da qu adrilha caiu na gargalhada e entrou no auditório.

No fim do cu lto, o pa s tor ped iu -m e pa ra da r m eu tes tem u n h o. Virei-m e e olh ei pa ra os ra pa zes . Sa b ia qu e ir ia em bora pa ra a Ca lifórn ia n o d ia s egu in te, e u m ca la fr io s u b iu pela m in h a es p in h a . Algu n s da qu eles ra pa zes es ta r ia m m ortos ou p res os , qu a n do eu volta s s e. Pregu ei. Pregu ei com o u m m oribu n do a m or ibu n dos . Esqueci-m e de res t r in gir a s em oções , e der ra m ei o cora çã o. J á es tá va m os n a igreja h a via du a s h ora s , e eu p regu ei m a is qu a ren ta e cin co m in u tos . Nin gu ém s e

m ovia . Qu a n do term in ei lá gr im a s corr ia m pela m in h a fa ce, e eu a pelei a eles pa ra en trega rem a vida a Deu s . Treze ra p a zes fora m à fren te, e a joelh a ra m -s e d ia n te do altar. Se Israel estivesse ali...

Um dos ra pa zes qu e s e a p res en tou era m eu velho a m igo, Hector Fu ra cã o. Lem brei-m e da época em qu e o fizera pa s s a r pela cer im ôn ia da in icia çã o, pa ra en tra r n a qu a dr ilh a , e da vez em qu e h a vía m os t ido u m a “briga leal” e ele fu gira a o ver qu e eu ia m a tá -lo por ter rou ba do m eu d es per ta dor . Fu ra cã o es ta va a gora ajoelhado diante do altar.

Depois do cu lto, fu i a n da n do com ele a té For t Green e. Fu ra cã o era o con s elh eiro de gu erra dos Ma u -Ma u s . Vis to qu e fora por m eu in term éd io qu e en tra ra n a ga n g, s en t ia m u ita res pon s a b ilida de por ele. Pergu n tei-lhe onde vivia.

“Es tou m ora n do em u m a pa r ta m en to a ba n do-nado.”

“Ra pa z, por qu e n ã o es tá m ora n do m a is com s u a família?” perguntei.

“Eles m e ch u ta ra m . Fica ra m com vergon h a de m im . Você s e lem b ra ? eu fu i u m dos ra pa zes qu e fora m à fren te n a qu ela n oite n a Aren a St . Nich ola s , com você e Is ra el. Vá r ia s s em a n a s depois , con videi m in h a fa m ília para ir à igreja comigo, e todos os meus familiares foram con ver t idos . Torn a m o-n os a t ivos n a igreja , e eu es ta va t ra ba lh a n do com a m ocida de. Aba n don a ra a ga n g, e tu do o m a is , com o você e Is ra el. A igreja , porém , era m u ito exigen te. Eu qu er ia a r ra n ja r fes t in h a s pa ra a m ocida de, m a s eles n ã o a ceita va m . Fin a lm en te fiqu ei desanimado e desviei .”

Era a m es m a velh a h is tór ia . E le s e en con tra ra m a is ta rde com os Ma u -Ma u s , e eles o con vid a ra m a volta r pa ra a qu a dr ilh a , da m es m a form a com o h a via m ten ta do com igo. Dis s era m qu e os cren tes era m

“quadrados”, va ga bu n dos , a fem in a dos , e qu e a ga n g era o ú n ico gru po qu e t in h a a verda deira s olu çã o pa ra os p rob lem a s da vida . Na verda de, eles o “evangelizaram”, fazendo com que voltasse à quadrilha.

Seguiu-s e u m a s ér ie de p r is ões . Seu s pa is ten -ta ra m con vers a r com ele, m a s ele teim ou e fin a lmente fica ra m tã o exa s pera dos a pon to de d izer qu e ter ia de s a ir de ca s a , s e n ã o con corda s s e com a s regras fa m ilia res . Prefer iu s a ir , e des de en tã o m ora va em u m velho edifício condenado.

“Algu m a s vezes pa s s o fom e”, d is s e ele, “mas prefiro m orrer de fom e do qu e ped ir a lgu m a cois a a o meu velho. Ele é “quadrado” mesmo. Tudo o que pensa é em ir à igreja e ler a Bíb lia . Eu cos tu m a va s er a s s im , m a s a gora es tou de volta a o m eu a m biente — os Ma u -Maus.”

Ch ega m os a o ed ifício on de ele m ora va . Toda s a s ja n ela s es ta va m cober ta s por ta pu m es , e ele m e con tou qu e h a via u m lu ga r , n os fu n d os , on de con s egu ira força r u m dos ta pu m es e es gu eira r -s e pa ra den tro. Dorm ia sobre um acolchoado estendido no chão.

“Fu ra cã o, com o é qu e você a pa receu es ta n oite?” pergu n tei, refer in do-m e a o fa to dele ter a ten d ido a o apelo para salvação.

“Fu i à fren te porqu e, bem den tro de m im , eu des ejo s er correto, Nicky. Qu ero s egu ir a Deu s . Ma s n ã o con s igo en con tra r a s olu çã o cer ta . Ca da vez qu e m e volto pa ra ele, e depois des vio, a s cois a s fica m p iores . Gos ta r ia qu e você volta s s e pa ra a ga n g, Nicky. Qu em sabe se eu voltaria para Cristo, se você estivesse aqui.”

Sentamo-n os n a gu ia da ca lça da e con vers a m os m a dru ga da a den tro. Ou vi o relógio da tor re da r qu a tro horas. “Fu ra cã o, s in to o Es p ír ito de Deu s d izen do-me pa ra fa la r is to a você. O relógio a ca ba de da r qu a tro h ora s . É ta rde. Ma s s e você der o cora çã o a J es u s , ele o

leva rá de volta . É ta rde, m a s n ã o ta rde dem a is . Você s en te a s u a cu lpa , m a s Deu s o perdoa rá . Você n ã o qu er entregar-se a Jesus agora?”

Hector es con deu o ros to n a s m ã os e com eçou a ch ora r . Ma s con t in u ou a s a cu d ir a ca beça e a d izer : “Não pos s o. Nã o pos s o. Qu ero fa zer is s o. Ma s s ei qu e s e fizer , volto pa ra a qu a dr ilh a a m a n h ã m es m o. Nã o pos s o. Não posso mesmo.”

“Hector , você n ã o viverá n em m a is u m a n o s e n ã o s e ren der a Cr is to a gora . Você es ta rá m or to, n es te m es m o d ia do a n o qu e vem . Eles vã o m a ta r você.” Meu cora çã o t ra n s borda va com pa la vra s qu e n ã o era m minhas, enquanto eu profetizava para ele.

Hector a pen a s ba la n çou a ca beça . “Se a con tecer, aconteceu, Nicky, e eu não posso fazer nada.”

Es tá va m os s en ta dos n o m eio-fio da Av. La fa yet te. Perguntei-lh e s e pod ia ora r por ele. E le en colh eu os ombros. “Não vai adiantar nada, Nicky, eu sei disso.”

Levantei-m e, coloqu ei a s m ã os s ob re a s u a ca -beça , e orei pa ra qu e Deu s a b ra n da s s e o s eu coração, pa ra qu e ele pu des s e volta r a Cr is to. Qu a n do term in ei, apertei-lh e a m ã o: “Fu ra cã o, es pero vê-lo qu a n do volta r . Ma s s in to p rofu n da m en te qu e, a m en os qu e você volte pa ra Cr is to, n u n ca m a is o verei.” Na ta rde s egu in te, via jei pa ra a Ca lifórn ia . Na qu ela época , n ã o s a b ia qu ã o exatamente a minha profecia viria a ser cumprida.

Capítulo 14

GGLLÓÓRR IIAA

O VERÃO PASSADO EM NOVA YORK transformou

m in h a vida , m eu s p en s a m en tos e m eu s pon tos d e vis ta . Voltei à Califórnia resolvido a pregar.

Nã o t in h a en con tra do, porém , a m a ior bên çã o, s en ã o qu a n do ch egu ei à es cola em La Pu en te — Glór ia volta ra a o In s t itu to Bíb lico. Nã o s a b ia qu a n to s en t ira a sua falta, até o momento em que a encontrei de novo.

A s itu a çã o n a es cola con t in u a va a in da im pos s ível. Tu do pa recia con s p ira r pa ra n os s epa ra r . Os regu la m en tos era m os m es m os de dois a n os a n tes , qu a n do h a vía m os s en t ido a m es m a fru s t ra çã o. A conversa à mesa era limitada a frases como “passe o sal, por fa vor”, e os p rofes s ores com olh os d e á gu ia obs erva va m ca da u m dos n os s os m ovim en tos n o pá t io. Em bora eu detes ta s s e t ra ba lh a r n a cozin h a , com ecei a apresentar-m e com o volu n tá r io pa ra s erviços extra , la va n do p ra tos , com o p ropós ito de fica r per to de Glór ia . A cozin h a ba ru lh en ta era tu do, m en os res erva da , m a s des cobr i qu e pod ía m os m a n ter u m a con vers a s em i-res erva da , con ta n to qu e es t ivés s em os a m bos cu rva dos s ob re a p ia — eu com os b ra ços en ter ra dos a té os cotovelos em á gu a qu en te e s a bã o, e Glór ia en xa gu a n do e enxugando.

À m ed ida qu e os m es es voa va m , ch egu ei à con -clu s ã o de qu e es ta va a pa ixon a do por ela . Min h a s n ota s con t in u a va m a m elh ora r , e eu t in h a u m a pet ite de leã o, em pa r te, es tou cer to, por ca u s a do exercício extra ju n to à p ia da cozin h a ; m a s s en t ia -m e fru s t ra do porqu e n ã o pod ia expres s a r -lh e o m eu a m or . Toda vez qu e t ín h a m os a lgu n s m in u tos a s ós , a lgu ém n os in ter rom pia . Procu ra va ch ega r m a is cedo à s a la de a u la s , m a s in va r ia velm en te a lgu n s es tu da n tes en tra va m a li, ju s ta m en te n a h ora em qu e eu ten ta va fa la r a s ér io com Glór ia . A fru s t ra çã o es ta va m e pon do lou co. Mes m o leva n do em con ta m in h a or igem la t in a , a ch a va qu a s e im pos s ível s en t ir -m e rom â n t ico d ia n te de u m a p ia rep leta de p ra tos gordu ros os , em u m a cozin h a ch eia d e

estudantes a cantar hinos.

Nu m a qu in ta -feira à n oite, receb i perm is s ã o pa ra ir à cida de. Pa rei n a p r im eira ca b in a telefôn ica qu e en con trei, e d is qu ei o n ú m ero do dorm itório de Glór ia . Qu a n do a con s elh eira a ten deu , coloqu ei u m len ço s obre o fon e e, em voz de ba ixo p rofu n do, ped i pa ra fa la r com a Sr ta . Steffa n i. Hou ve u m a pa u s a , e ou vi a con s elh eira cochichar para Glória: “Penso que é o seu pai.”

Glór ia deu u m a r is a d in h a , qu a n do m e ou viu ga -gu eja n do do ou tro la do da lin h a . Es ta va fru s t ra do e desesperado. “Precis o en con tra r -m e com você”, murmurei.

“Nicky, o qu e é qu e você es tá p rocu ra n do d izer?” coch ich ou Glór ia , lem bra n do-s e de qu e pen s a va m qu e ela estava falando com o pai.

Gagu ejei e en rolei a s pa la vra s , m a s os term os cer tos n ã o m e vin h a m à m en te. Toda s a s m in h a s a s s ocia ções com ga rota s h a via m s ido em term os de ga n g, e eu rea lm en te n ã o s a b ia com o con vers a r com uma moça tão pura e doce como Glória.

“Pen s o qu e s e pu des s e vê-la pes s oa lm en te, po-der ia expres s a r -m e m elh or”, d is s e eu . “Ta lvez s eja m elh or volta r pa ra o m eu qu a r to e pa ra r de a borrecer você.”

“Nickyyy!” es cu tei-a gr ita r , “n ã o ou s e coloca r o fone no gancho.”

Ou vi a s ou tra s m oça s do qu a r to r in do. Nã o obstante, Glória estava resolvida a forçar-me a falar.

“Ps iu , ela s vã o fica r s a ben do qu e s ou eu ”, respondi.

“Nã o m e im por ta qu e fiqu em s a ben do. Agora d iga -me o que você está procurando dizer.”

Fiz u m trem en do es forço pa ra en con tra r a s pa -

la vra s cer ta s , e fin a lm en te d is s e: “Estou pen s a n do qu e s er ia m a ra vilh os o s e você a ceita s s e a n da r comigo.” Eu con fes s a ra . Fin a lm en te, t in h a con s egu ido. Fiqu ei de respiração suspensa, esperando a reação dela.

“An da r com você? Qu e s ign ifica “andar” com você?” Glór ia es ta va gr ita n do e des s a vez ou vi a s m oça s rindo alto.

“Sign ifica is s o m es m o”, d is s e m eio a ca n h a do. Sen t i m eu ros to qu eim a r em bora es t ives s e s ozin h o n a ca b in e, a u m qu ilôm etro de d is tâ n cia . “Qu er ia qu e você saísse comigo.”

Glór ia voltou a coch ich a r : “Você qu er d izer qu e quer. que eu seja a sua namorada?”

“É is s o m es m o o qu e qu ero d izer”, d is s e eu , a in da verm elh o e ten ta n do en colh er-m e den tro da ca b in e telefônica.

Perceb i qu e ela en cos tou bem a b oca n o fon e qu a n do s u s p irou : “Sim , Nicky, s er ia m a ra vilh os o. Ten h o s en t ido qu e Deu s n os vem a proxim a n do com u m propós ito. Vou es crever u m b ilh ete bem com prido e passá-lo a você na hora do café, amanhã cedo.”

Depois de coloca r o fon e n o ga n ch o, fiqu ei pa rado n a ca b in e du ra n te m u ito tem po. A n oite es ta va qu en te, m a s eu es ta va a la ga do de s u or fr io, e m in h a s m ã os tremiam como varas verdes.

Ma is ta rde, fiqu ei s a ben do qu e depois qu e Glória pôs o fon e n o ga n ch o, a con s elh eira olh ou p a ra ela , d izen do com u m a voz s evera : “Glór ia , por qu e o s eu pa i h a ver ia de telefon a r a es ta h ora da n oite, e ped ir pa ra você sair com ele?”

Um a da s ga rota s fa lou en tre r is a da s : “Porqu e o n om e do pa i dela é Nicky.” Em bora bem m oren a , Glór ia ficou ru b ra , e todo o qu a r to exp lod iu em u m a gra n de ga rga lh a da . Nã o é todo o d ia , qu e u m a ga rota recebe u m

con vite do h om em dos s eu s s on h os p a ra s er n a m ora da dele, com quarenta colegas escutando tudo. A conselhei-ra ficou in d ign a da , e deu -lh es t rês m in u tos pa ra s e a p ron ta rem pa ra dorm ir . Glór ia , porém , pa s s ou a m eta de da n oite com a ca beça deba ixo do t ra vesseiro, ten do s ó a tên u e lu z da ru a com o ilu m in a çã o, escrevendo-m e a s u a p r im eira ca r ta de a m or . Es ta ficou totalmente ilegível, mas foi a carta mais esperada que eu já recebi.

Vá r ia s s em a n a s depois , fu i a borda do por u m dos professores, Esteben Castilho, que pediu-me para ajudá-lo a in icia r u m a obra eva n gelís t ica em S. Ga br iel, per to da es cola . Dis s e qu e a lis ta ra m a is s ete a lu n os pa ra t ra ba lh a r com ele n os fin s de s em a n a . Des cobr ira u m a pequ en a ca pela qu e fora fech a da e a ba n don a da . Os a lu n os dever ia m s a ir a os s á ba dos , e ba ter em toda s a s por ta s da vizin h a n ça , con vida n do o povo pa ra os cu ltos n a ca pela . Os a lu n os a ju da r ia m a la va r e p rep a ra r o pequ en o ed ifício, e en s in a r ia m n a es cola dom in ica l. O Professor Castilho seria o pregador e pastor.

Senti-m e h on ra do com o con vite, e fiqu ei m u ito emocionado quando ele piscou um olho e me contou que Glór ia fora ta m bém con vida da pa ra s ervir n o com itê, ju n to com igo. “O s en h or é u m p rofes s or m u ito s á b io, Sr . Esteben”, d is s e-lh e s orr in do. “Creio qu e podem os fa zer u m bom tra ba lh o pa ra Cr is to com o excelen te com itê que escolheu.”

“Qu em s a be s e depois qu e term in a rem o t ra ba lho s obra rá a lgu m tem po pa ra ou tra s cois a s im portantes”, replicou ele.

Pu de perceber qu e a n ot ícia de qu e Glór ia con -corda ra em s er m in h a n a m ora da já s e es pa lh a ra . Fiqu ei m u ito gra to à qu ele m es tre s á b io e com preen s ivo, qu e n os a ju dou a en con tra r u m a form a pela qu a l o n os s o a m or pu des s e des en volver-s e e des a b roch a r de m a n eira natural, orientada por Deus.

No m ês s egu in te, t ra ba lh a m os todos os s á ba dos n a pequ en a ca pela , e s a ím os de ca s a em ca s a con vi-da n do o povo pa ra os cu ltos de dom in go. Fin a lm en te, eu e Glór ia t ivem os opor tu n ida de de pa s s a r u m d ia ju n tos . Vía m os u m a o ou tro con s ta n tem en te, m a s s em pre n a com pa n h ia de ou tros . Na qu ele d ia , porém , pela p r im eira vez, ter ía m os t rês h ora s glor ios a s s ó pa ra n ós . Glór ia p repa rou u m la n ch e de p iqu en iqu e, e depois d e u m a a ta refa da m a n h ã , con vida n do o pes s oa l pa ra os cu ltos , fomos a um pequeno parque para comer e conversar.

Com eça m os a fa la r a o m es m o tem po — e depois r im os u m pa ra o ou tro, em baraçados. “Você p r im eiro, Nicky. Eu ouço”, disse Glória.

Os m in u tos s e fizera m h ora s , en qu a n to ficá va m os a li s en ta dos , con vers a n do. Es t ivera tã o a n s ios o pa ra con ta r m in h a vida a ela com todos os deta lh es . Fa lei in term in a velm en te, e ela ou viu com a ten çã o, a bs or ta , com a s cos ta s a poia da s em u m a gra n de á rvore. De repente, caí em mim: só eu estava falando, e ela só fizera ouvir.

“Des cu lpe, Glór ia , m a s h á ta n ta cois a n o m eu coração, e eu quero que você saiba de tudo... todo o bem e todo o m a l. Qu ero qu e s a iba tu do o qu e m e a con teceu n o pa s s a do. Perdoe-m e por ter fa la do ta n to. Fa le você agora. Conte-me o que está no seu coração.”

Ela com eçou , deva ga r a p r in cíp io, m a s logo a s pa la vra s com eça ra m a flu ir fa cilm en te, e ela der ra m ou o cora çã o d ia n te de m im . Depois , ret ra iu -s e e ficou em silêncio.

“O que foi, Glória? Continue.”

“Eu es fr iei m u ito, Nicky. Com preen d i is s o qu a n d o voltei pa ra a es cola e vi s u a t ra n s form a çã o. Você es tá d iferen te. Você n ã o é tolo n em in s egu ro, com o era . Você cresceu, amadureceu, e tem grande espiritualidade. Vejo em você uma vida que foi entregue ao Senhor. Nicky...” e

os seus olhos se encheram de lágrimas. “Eu-eu-eu quero is s o pa ra m im . Qu ero a pa z, a s egu ra n ça , a cer teza qu e você tem n a s u a vida . Eu m e s in to s eca , es p ir itu a lm en te. Em bora Deu s ten h a m e cu ra do e m a n da do de volta à es cola , es p ir itu a lm en te s in to-me fr ia . Procu ro ora r , m a s n a da a con tece. Es tou va zia . Morta. Desejo aquilo que vejo em você.”

Ela ba ixou a ca beça e es con deu o ros to n a s m ã os . Aproximei-m e e coloqu ei des a jeita da m en te o b ra ço a o redor dos s eu s om bros , en qu a n to es tá va m os a li s ob a ra m a da da á rvore. Ela virou -s e pa ra m im e en ter rou a ca beça n o m eu peito. Os m eu s b ra ços rodea ra m s eu corpo t rêm u lo, e a lis ei o s eu ca belo com a m ã o. Glór ia voltou a fa ce m a n ch a da d e lá gr im a s em d ireçã o à m in h a , e n os s os lá b ios s e en con tra ra m em u m lon go e hesitante beijo de amor.

“Eu a m o você, Nicky.” As pa la vra s derra m aram-se da s u a boca , bem den tro do m eu ou vido. “Eu o a m o de todo o coração.”

Nã o n os m exem os de n os s a pos içã o, e fica m os s en ta dos a li, du ra n te m u ito tem po, bem ju n t in h os , a b ra ça dos com o du a s videira s en la ça da s , s u b in do em direção aos céus.

“Glór ia , qu ero ca s a r -m e com você. Sei d is s o h á m u ito tem po. Qu ero viver o res to da m in h a vida com você. Nada tenho a oferecer. Pequei muito, mas Deus me perdoou. E se você acha que o seu coração também pode perdoar, quero que seja minha esposa.”

Sen t i s eu s b ra ços m e en la ça rem a o redor d a minha cintura, e ela deitou a cabeça no meu ombro.

“Sim , qu er ido. Sim . Se Deu s o perm it ir , eu s erei sua para sempre.”

Ela leva n tou a ca beça , e n os s os lá b ios s e en -con tra ra m em ou tro beijo. Deixei-m e ca ir de cos ta s , e puxei-a pa ra m im . Fica m os deita dos n a gra m a , os

braços ao redor um do outro, em um apertado abraço.

Sen t i em m in h a s pern a s u m a s en s a çã o de quei-m a du ra , de com ich ã o. Deu s es ta va per to, m a s o pa s s a do a in da es ta va den tro de m im . Su rgiu n a m in h a m en te o pen s a m en to de qu e a qu ela era u m a d a s m a is bela s cr ia tu ra s de Deu s . Es ta va eu pa ra con ta m in á -la com des ejos peca m in os os ? A s en s a çã o de fogo continua va a s u b ir por m in h a s pern a s . Torn ou -s e m a is aguda.

De repen te, ergu i-m e de u m s a lto, em pu rra n do-a pa ra t rá s . E la rolou n a gra m a . “Nicky”, gr itou “o qu e foi?”

“Formigas”, gr itei. “Milh ões de form iga s ! Es tou coberto delas!”

Com ecei a correr , ba ten do fu r ios a m en te n a s pern a s ; ch u tei fora os s a pa tos . Nã o a d ia n tou . Minhas m eia s es ta va m cober ta s de pequ en os dem ôn ios verm elh os . Eu a s s en t ia a n da n do à s cen ten a s pela s m in h a s pern a s . Por m a is qu e ba tes s e n a ca lça , n a d a pa recia in ter rom per o s eu a ta qu e s em trégu a s e o s eu a va n ço pa ra cim a . Glór ia m e olh a va de olh os a r rega la dos , com a r in crédu lo, en qu a n to eu corr ia em círculo, dando tapas nas pernas e coçando-me.

“Vire-s e! Vire-se!” gr itei. “Olh e pa ra o ou tro la d o! Depressa.” Ela virou -m e a s cos ta s e olh ou pa ra o pa rqu e. Lu tei fren et ica m en te com a fivela do m eu cinturão, e soltei-a.

“Nicky...” começou ela, e fez menção de virar-se.

“Vire-s e! Nã o olh e!” gr itei, E la com preen deu o qu e eu estava fazendo, e virou-se, obedientemente.

Levei m u ito tem po pa ra a fa s ta r toda s a s formigas. Algu m a s ten ta va m pen etra r deba ixo da m in h a pele. Tive qu e b a ter a s ca lça s n u m a á rvore, pa ra fa zê-la s ca ir . Finalmente, pude dizer a Glória que ela podia virar-se.

Volta m os pa ra a es cola . Ela foi a n da n do, e eu coxea n do. Ten tei n ã o perder a ca lm a , pois ela es tava r in do. Ma s , pa la vra , qu e eu n ã o con s egu ia ver n a da de engraçado naquilo.

Deixei-a defron te a o dorm itór io da s m oça s , e fu i d ireto pa ra m eu qu a r to e pa ra o ch u veiro. De pé s ob a á gu a fr ia , e es frega n do s a bã o n os vergões verm elh os que cobr ia m m in h a s pern a s , a gra deci a Deu s por Glór ia — e pelo poder p rotetor do s eu Es p ír ito. “Senhor”, d is s e eu sob a cascata que se derramava do chuveiro, “sei que ela é pa ra m im . As form iga s fora m u m a p rova . Lou vo o teu n om e por m e teres p rova do, e peço qu e n u n ca m a is p re-cises disciplinar-me de novo.”

No d ia s egu in te, dom in go à n oite, fu i es ca la do pa ra p rega r n a m is s ã o de S. Ga br iel. Sen t i o Es p ír ito de Deu s s ob re m im , qu a n do d ei m eu tes tem u n h o pa ra o pequ en o gru po de gen te h u m ilde qu e viera a o cu lto. No fim do cu lto, fiz o a pelo. Obs ervei Glór ia qu a n do ela es corregou do s eu a s s en to, a o fu n do, a li n a qu ela pequ en in a igreja , e veio à fren te. Nos s os olh os prenderam-s e n u m a bra ço, qu a n do ela s e a joelh ou d ia n te do a lta r e cu rvou a ca beça em ora çã o. Ajoelhei-m e a o la do dela , e o Sr . Ca s t ilh o im pôs a s m ã os s ob re n ós e orou . Sen t i a m ã o de Glór ia a per ta r m eu cotovelo, en qu a n to o Es p ír ito de Deu s en ch ia s eu cora çã o. A m ã o de Deus estava sobre nós dois.

No Na ta l, fu i pa ra s u a ca s a , em Oa k la n d . Glór ia providencia ra pa ra qu e eu fica s s e com a m igos , vis to os pa is dela n ã o s im pa t iza rem com s eu s es tu dos n o In s t itu to. Seu pa s tor , Rev. Sa n ch ez, a r ra n jou pa ra eu fa la r em u m a pequ en a igreja on de os cu ltos era m feitos em es pa n h ol, a Mis s ã o Betâ n ia . Eu pa s s a va os d ia s com Glór ia , e p rega va à n oite. Na da poder ia ter m e feito m a is feliz.

Na p r im a vera do m eu ú lt im o a n o, receb i ou tra ca r ta de Da vi. Es ta va com pra n do u m a gra n de ca s a

velh a n a Av. Clin ton , pa ra a b r ir u m cen tro pa ra adolescentes e viciados em entorpecentes. Convidava-me pa ra volta r a Nova York depois de receber o d ip lom a , e trabalhar no Centro Desafio Jovem.

Con vers ei à qu ele res peito com Glór ia . Pa recia qu e o Sen h or es ta va n os força n do a a ceita r os s eu s p la n os . Pen s á va m os ter de es pera r m a is u m a n o, a té qu e Glór ia term in a s s e o s eu cu rs o, a n tes de n os ca s a rm os . Ma s a gora , a s por ta s es ta va m s e a b r in do, e pa recia qu e Deu s qu er ia qu e eu volta s s e pa ra Nova York . Eu s a b ia qu e não poderia voltar sem ela.

Es crevi a Da vi, e d is s e-lh e qu e eu p recis a r ia ora r a n tes de tom a r u m a decis ã o. Dis s e-lh e ta m bém qu e Glór ia e eu qu er ía m os n os ca s a r . Res pon deu qu e fica r ia es pera n do m in h a d ecis ã o, e qu e Glór ia ta m bém s er ia bem-vinda.

Res olvem os ca s a r em n ovem bro, e u m m ês depois ch ega m os a Nova York , pa ra a ceita r o oferecim en to de Davi, e com eça m os o n os s o t ra ba lh o n o Cen tro Des a fio Jovem.

A en orm e e velh a m a n s ã o de t rês a n d a res , n a Av. Clin ton , 416 , fica va n o cora çã o de u m velh o ba ir ro res iden cia l do Brook lin , a pou cos qu a r teirões do Con ju n to Ha b ita cion a l de For t Green e. Na qu ele verão, a lgu n s es tu da n tes t in h a m ido a li e t in h a m da do u m a lim peza n o ed ifício, a fim de com eça r o m in is tér io. Da vi con tra ta ra os s erviços de u m jovem ca s a l pa ra m ora r n o ca s a rã o, com o s u pervis ores . Eles p repa ra ra m u m pequ en o a pa r ta m en to pa ra m im e Glór ia em uma garagem, nos fundos da casa.

Era m u ito pequ en o e tos co. O ch u veiro fica va do lado de fora, pegado ao edifício principal, e a única cama era u m s ofá ; m a s pa ra n ós era o céu . Nós n a da t ín h a m os e de n a da p recis á va m os . Tín h a m os u m a o ou tro, e u m des ejo a b ra s a dor de s ervir a Deu s a qu a lqu er cu s to. Qu a n do Da vi com eçou a des cu lpa r-se

por n os s a s a com oda ções pobres e pequ en a s , lem brei-lhe qu e s ervir a J es u s n u n ca era s a cr ifício — m a s u m a honra.

Pou co a n tes do Na ta l, voltei a vis ita r a zon a dos Mau-Ma u s . Meu cora çã o s en t ira o pes o da res -pon s a b ilida de por Hector Fu ra cã o, e qu er ia en con trá-lo e t ra ba lh a r com ele pes s oa lm en te, a gora qu e volta ra pa ra o Brook lin pa ra fica r . En con trei u m gru po de Ma u -Ma u s n a con feita r ia , e pergu n tei-lhes: “On de es tá o Furacão?”

“Con vers e com Steve, o n os s o p res iden te; ele con ta rá o qu e a con teceu ”, d is s e u m deles e os rapazes se entreolharam.

Eu tem ia a verda d e, m a s fu i a o a pa r ta m en to de Steve.

“O que aconteceu a Hector?” perguntei-lhe.

“Va m os des cer pa ra a ru a , e eu lh e con ta rei. Não qu ero qu e a m in h a velh a es cu te.” Steve s a cu d iu a cabeça e olhou para a parede.

Des cem os a s es ca da s , e pa ra m os n o s a gu ã o do ed ifício, pa ra n os res gu a rda r do ven to fr io, e Steve m e con tou a h is tór ia . “Depois qu e fa lou com você, n a qu ela n oite a n tes de s u a volta pa ra a Ca lifórn ia , ele ficou m u ito im pa cien te. Nu n ca o vira da qu ele jeito. Tivem os u m gra n de “quebra-pau” com os Apa ch es , e ele por tou -s e com o u m s elva gem , p rocu ra n do m a ta r todo m u n do qu e a t ra ves s a s s e s eu ca m in h o, a té os Ma u -Ma u s . E então, três meses depois ele levou a dele.”

“Com o foi qu e a con teceu ?” pergu n tei, s en t in do já a dep res s ã o borbu lh a r em m eu cora çã o e pu lmões, fa zen do com qu e a m in h a res p ira çã o s e tornasse ofegante e curta. “Quem foi ?”

“Fu ra cã o, Gilber t , m a is dois ra pa zes e eu , fom os m a ta r u m Apa ch e. Ele vivia s ozin h o n o qu in to a n da r de

u m préd io de a pa r ta m en tos . Ma is ta rde, des cobr im os qu e a qu ele n ã o era o ca ra , m a s Fu ra cã o res olvera m a ta r a qu ele m es m o, e n ós fom os com ele pa ra a ju dá -lo. Fu ra cã o es ta va com u m revólver . Ba tem os à por ta do s u jeito. Es ta va es cu ro, m a s o ca reta era es per to. Abr in do ra p ida m en te a por ta , viu Fu ra cã o com o revólver . Pu lou pa ra fora , pa ra o corredor , b ra n d in do u m a ba ion eta de s es s en ta cen t ím etros . Ha via u m a lâmpada acesa, no teto, e ele a estourou com a baioneta. Nã o con s egu ía m os ver n a da . Ele es ta va com o u m lou co, b ra n d in do a ba ion eta . e da n do golpes pa ra todos os la dos . Fu ra cã o d is pa rou o revólver t rês vezes , e depois ouvim os u m gr ito ter r ível: “Ele m e m a tou ! Ele m e matou!” Nã o s a b ía m os qu em era , e pen s a m os qu e Fu ra cã o m a ta ra o Apa ch e. Sa ím os corren do es ca da abaixo — cinco lances de degraus, e chegamos à rua.”

Steve virou -s e e olh ou es ca da a cim a , em d ireçã o a o s eu a pa r ta m en to, pa ra ver s e a lgu ém es ta va p ro-cu ra n do ou vir . “Vim os , en tã o, qu e Fu ra cã o n ã o es tava con os co. Gilber t s a iu corren do e s u b iu a s es ca da s , in do en con tra r Fu ra cã o em pé, en cos ta do n a pa rede, com a qu ela ba ion eta in teira cra va da n ele. Gilber t d is s e qu e a pon ta es ta va a pa recen do n a s cos ta s . O Apa ch e volta ra correndo para o quarto e trancara a porta. Hector estava com m edo, e ch ora va . Ele s e a poia ra à pa rede, com a qu ela en orm e fa ca en ter ra da , a t ra ves s a n do s eu ven tre, e im p lora va a Gilber t qu e n ã o o deixa s s e m orrer . Dis s e qu e t in h a m edo de m orrer . Gr itou a lgo a res peito da s ba t ida s do relógio, e depois ca iu n o corredor , s ob re a baioneta, e morreu.”

Min h a ga rga n ta es ta va s eca , e m in h a lín gu a pa -recia com o s e eu t ives s e en rola do a lgodã o n ela . Gaguejei: “Por que vocês o deixaram lá?”

“Porqu e es tá va m os todos a m edron ta dos . Es tá -va m os em pâ n ico. Nu n ca t ín h a m os vis to n in gu ém m orrer a s s im . Todos os ra pa zes s e es pa lh a ra m e

fu gira m . A polícia foi lá , m a s n ã o con s egu iu p rova r n a da , e s olta ra m o Apa ch e. Fica m os m u ito ch ocados com tudo o que aconteceu.”

Virei-m e pa ra s a ir , e Steve m e pergu n tou : “Nicky, o que você acha que ele quis dizer sobre o relógio?”

Balancei a cabeça “Não sei. Até mais tarde.”

Es ta va a tordoa do en qu a n to volta va à Av. Clin ton . A cada passo parecia ouvir as batidas do relógio da torre n a Av. Fla tbu s h e m in h a voz d izen do a Hector Fu ra cã o: “É ta rde, Hector , m a s n ã o dem a is . Ma s , s e você n ã o entregar seu coração a Cristo, eu nunca mais o verei.”

“Deu s qu er ido”, m u rm u rei, “por fa vor , n ã o m e deixe a fa s ta r ou tra vez de u m a m igo, s em ten ta r u m pouquinho mais.”

Meu s a lá r io in icia l era de dez dóla res por s emana, a lém de qu a r to e com ida . Da do o fa to de qu e o pequ en o a pa r ta m en to n a ga ra gem n ã o t in h a cozin h a , tom á va m os a s refeições n a ca s a gra n de. Glór ia e eu gos tá va m os m u ito de com ida es pa n h ola a p im en ta da . Ma s n o Cen tro, p recis á va m os com er a lim en to bem equ ilib ra do. Por is s o, es ba n já va m os a m a ior pa r te dos n os s os dez dóla res , toda s a s s em a n a s , em com ida . Era o n os s o ú n ico p ra zer extra na vida.

Com eça m os o t ra ba lh o n a s ru a s . Da vi Wilkers on escrevera um pequeno folheto que chamávamos “Folheto Galinha”. Con t in h a m en s a gem pa ra os jovens, desafiando-os a a ceita rem a Cr is to, deixa n do de s er “covardes” (ga lin h a s ). Dis t r ibu ía m os a qu ele folh eto a os milhares, nas ruas de Brooklin e de Harlem.

Ficou eviden te, im ed ia ta m en te, qu e a n os s a ob ra m a is im por ta n te s er ia en tre os vicia dos em en tor -pecen tes . Mu itos dos m em bros da s qu a dr ilh a s , qu e ou trora s e s a t is fa zia m em fu m a r m a con h a e beber vinho, haviam começado a fazer uso de heroína.

Nos s o m étodo era ou s a do. Aproxim á va m os de gru pos de ra pa zes qu e es ta va m pa ra dos n a s es qu in a s , e entabulávamos conversa.

“Ei, meu chapa, quer largar o vício?”

“Sim , m eu ch a pa , m a s com o?” res pon d ia m eles invariavelmente.

“Ven h a a o Cen tro Des a fio J ovem , n a Av. Clin ton . Nós va m os ora r por você. Crem os qu e Deu s res pon de à s orações. Você pode dar um pontapé no vício, pelo poder de Deu s .” Dá va m os -lh es u m exem pla r do folh eto “Galinha”.

“Pu xa vida , s ó is s o? Bem , ta lvez eu telefon e pa ra vocês , ou a pa reça lá a lgu m d ia .” Foi u m com eço m u ito va ga ros o. A m a ior pa r te do tem po era ga s ta andando en tre gru pos de joven s qu e es ta va m pela s es qu in a s , con vers a n do. Os vicia dos n ã o t ra ba lh a m . Arra n ja m d in h eiro em fu r tos , ba ten do ca r teira s e pega n do “otários” n o con to do vigá r io, e ou tros “contos”. Eles en tra m em a pa r ta m en tos fech a dos , rou ba m os m óveis e ven dem . Rou ba m bols a s de s en h ora s . Rou ba m rou pa s dos va ra is , leite da s por ta s , de m a dru ga da ; en fim , qu a lqu er cois a d is pon ível pa ra ob ter d in h eiro s u ficien te pa ra a lim en ta r o vício. Por toda a p a r te em Williamsburg, há pequenas turmas de oito a dez pessoas pela s es qu in a s , p la n eja n do rou bos ou p rocu ra n do descobrir como se livrar de coisas roubadas.

Na época do Na ta l, t ivem os o p r im eiro con vertido no Centro.

Seu n om e era Pedro. Fora u m Ma u -Ma u . Era u m ra pa z a lto, de cor , qu e vivera com u m a m u lh er ca s ada. Um d ia o m a r ido dela en con trou -o em u m ba r , e Pedro feriu-o com u m a fa ca . O h om em era m em bros dos Scorp ion s , u m a ga n g do ou t ro la do d a cida de, e Pedro ou viu fa la r qu e es ta va m a trá s dele. Con h eci-o cer ta n oite, ou vi s u a h is tór ia , e ofereci-lh e refú gio n o Cen tro

Des a fio J ovem . Ele a ceitou de boa von ta de. Três d ia s depois qu e s e m u dou pa ra o Cen tro, a ceitou a Cr is to, entregando sua vida ao Senhor.

Du ra n te os t rês m es es qu e s e s egu ira m , vivem os e res p ira m os Pedro. Glór ia e eu pa s s a m os o n os s o p r im eiro Na ta l depois de ca s a dos , em n os s o pequ eno a pa r ta m en to de dois côm odos , ten do Pedro com o n os s o h ós pede. Ele tom a va toda s a s refeições con os co. Ia con os co a todos os lu ga res a on de fôs s em os . Nos fin s d e s em a n a , ía m os de m etrô a vá r ia s igreja s , pa ra a s s is t ir cultos. Pedro sempre ia conosco .

Um a n oite, em m a rço, fu i dorm ir ta rde, com o de cos tu m e. Glór ia já s e h a via a n in h a do em n os s o s ofá -ca m a , n o qu a r to da fren te. Pen s ei qu e ela es tivesse dorm in do, e m e des p i s ilen cios a m en te, pa ra n ã o a cordá -la . Es gu eira n do-me pa ra deb a ixo da s cober ta s , coloqu ei o b ra ço em torn o d e s eu s om bros , qu a n do perceb i qu e ela es ta va ch ora n do. Sen t i s eu corpo s a cu d in do-s e s ob o meu braço, enquanto ela soluçava.

“Ei, menina, o que é que há ?”

Foi o ba s ta n te; a s lá gr im a s viera m com s olu ços. Fiqu ei a o s eu la d o, m a s s a gea n do-lh e a s cos ta s e confortando-a , a té qu e ela s e a ca lm ou s u ficien tem en te pa ra poderm os con vers a r . “O qu e h á , Glór ia ? Você n ã o está se sentindo bem, o que foi ?”

“Nã o é n a da , Nicky. Você n ã o en ten de, e n u n ca entenderá.”

“Enten der o qu ê?” Es ta va con fu s o d ia n te da s u a atitude hostil.

“Aqu ele pa ra s ita !” Glór ia excla m ou . “Aquele pa ra s ita do Pedro! Será qu e ele n ã o com preen de qu e qu ero pa s s a r u m pou co de tem po s ozin h a com você ? Fa z a pen a s qu a tro m es es qu e es ta m os ca s a dos , e ele tem de ir conosco a todos os lugares onde vamos ? Se no ba n h eiro n ã o cou bes s e s ó u m a pes s oa , ele s er ia ca pa z

de pedir para tomar banho conosco .”

“Ei, va m os ”, a ca lm ei-a, “n em pa rece qu e você é a m in h a Glór ia . Devia s en t ir -s e orgu lh os a . Ele é o n os s o prim eiro con ver t ido. Você devia es ta r a gra decen do a Deus.”

“Ma s , Nicky, eu n ã o qu ero pa r t ilh a r você com ou tra s pes s oa s , o tem po todo. Eu m e ca s ei com você, e você é o m eu m a r ido. Pelo m en os , devo poder pa s s a r a lgu m tem po com você s em ter a qu ele Pedro de den tes a r rega n h a dos por p er to, d izen do o tem po todo: Glór ia a Deus!”

“Você não está falando sério; está, Glória?”

“Nu n ca fa lei tã o s ér io. Um de n ós p recis a ir em bora . Ou você es tá ca s a do com igo, ou você va i dorm ir com Pedro. Es tou fa la n do s ér io. Você n ã o pode ter nós dois.”

“Ei, es cu te, qu er ida . Se eu o m a n da r de volta pa ra a ru a , ele volta rá d ireta m en te pa ra a qu a dr ilh a , ou os Scorpions o matarão. Precisamos conservá-lo aqui.”

“Bem, se ele voltar para a quadrilha, então há algo erra do com o s eu Deu s . Qu e es pécie de Deu s Pedro tem , a fin a l de con ta s ? Um Deu s qu e o s olta rá n o m u n do, a p r im eira vez em qu e ele s e en con tra r em d ificu lda des ? Nã o creio n is s o. Creio qu e, s e u m h om em tem u m a exper iên cia de con vers ã o, Deu s é s u ficien tem en te gra n de pa ra gu a rdá -lo pa ra s em pre. E s e form os ob r iga dos a ba n ca r a a m a -seca para todos esses rapazes qu e você es tá con vida n do a vir a qu i, eu n ã o qu ero s a ber des s e n egócio.” A voz de Glór ia a lterou -s e en qu a n to ela falava.

“Mas, Glória, ele é o meu primeiro convertido...”

“Ta lvez s eja is to qu e es tá er ra do en tre você e ele. E le é o s eu con ver t ido. Se fos s e u m con ver t ido do Sen h or , você n ã o p recis a r ia fica r tã o p reocu pa do com o

perigo dele voltar para a quadrilha.”

“Bem , pode s er qu e você es teja cer ta . Ma s a s s im m es m o, tem os a ob r iga çã o de p roviden cia r u m lu gar pa ra ele fica r . E lem bre-s e, Glór ia , qu e o Sen h or m e ch a m ou pa ra es ta ob ra , e você con cordou em vir comigo.”

“Ma s , Nicky, o qu e eu n ã o qu ero é pa r t ilh a r você com os outros, o tempo todo. Só isto.”

“Você n ã o p recis a m e pa r t ilh a r com n in gu ém a gora . E a m a n h ã eu vou fa la r com Pedro, e ver s e ele pode en con tra r a lgu m a cois a pa ra fa zer , em vez de fica r a t rá s de n ós o tem po todo. Cer to?” Abra cei-a carinhosamente.

“Certo”, m u rm u rou ela , a o m es m o tem po qu e deita va a ca beça n o m eu om bro e a con ch ega va -s e a mim.

Son n y ch egou n o ú lt im o d ia de a b r il — ju n to com uma predição de neve em maio. Era o primeiro viciado em entorpecentes com quem eu trabalharia .

En trei n a ca pela , a qu ela n oite, e n otei u m ra pa z de ros to m u ito pá lido, s en ta do n u m ca n to. Perceb i logo qu e ele era vicia do; d ir igi-m e a ele e s en tei a o s eu la do. Pa s s a n do o b ra ço por s ob re os s eu s om bros , com ecei a falar-lh e fra n ca m en te. Ficou com a ca beça cu rva da , olhando para o chão, enquanto eu falava.

“Sei qu e você é vicia do... é u m fa r ra po. Percebo qu e já es tá “fisgado” h á m u ito tem po, e qu e n ã o é ca pa z de livra r -s e do vício. Pen s a qu e n in gu ém s e im por ta com você. Deixe-m e d izer -lh e u m a cois a , Deu s s e im por ta . Ele pode ajudá-lo.”

O ra pa z leva n tou a ca beça e olh ou -me inexpressiva m en te. Fin a lm en te, d is s e qu e o s eu n om e era Son n y. Fiqu ei s a ben do m a is ta rde qu e fora cr ia do em u m la r religios o, m a s fu gira de ca s a e fora pa ra r n a

ca deia vezes s em con ta , por u s o de d roga e por rou bo. Teve de d eixa r o vício “n a m a rra ” n a s vá r ia s vezes qu e pa s s ou pela ca deia , m a s a o s a ir , volta va a os entorpecentes. Estava “fisgado” irremediavelmente.

Son n y era u m vicia do qu e t in h a u m m eio s in gular de con s egu ir d in h eiro pa ra a lim en ta r s eu vício. Seu com pa n h eiro s a ía corren do pela ru a , e a r reba ta va a bols a de u m a s en h ora . Qu a n do ela com eça va a gr ita r , Son n y a p roxim a va -s e dela e d izia : “Nã o gr ite, m in h a s en h ora . Con h eço a qu ele la d rã o. Vou bu s ca r s u a bols a . Es pere a qu i, qu e eu volto em u m m in u to.” A s en h ora pa ra va de gr ita r ch a m a n do a polícia , e en qu a n to ela fica va es pera n do, Son n y s a ía corren do pa ra ju n ta r -s e a o amigo e dividir o despojo.

Ajoelh a do a s eu la d o, n a ca pela , eu d is s e : “Quero ora r por você. Você p recis a de J es u s em s u a vida .” Sen t i u m a on da de com pa ixã o en ch er m eu cora çã o, e com ecei a ch ora r en qu a n to ora va : “Sen h or , a ju da es te ra pa z. Ele está morrendo. Só tu podes ajudá-lo. Ele precisa de esperança, de amor. Por misericórdia, ajuda-o.”

Qu a n do term in ei, Son n y d is s e : “Precis o ir pa ra casa.”

“Eu levo você.”

“Não”, res pon deu com expres s ã o de pâ n ico n o rosto. “Você não pode fazer isso.”

Eu sabia que ele estava dando um jeito de escapar pa ra tom a r u m a “picada”. En tã o, va m os fica r com você aqui”, disse eu.

“Não”, res pon deu , “p recis o ir a o t r ibu n a l a m a n h ã cedo. Eles vã o m e s en ten cia r a p r is ã o. Nem s ei m esmo por que estou aqui.”

“Você es tá a qu i porqu e Deu s o m a n dou ”, d is s e eu . “Deu s es tá m e u s a n do pa ra a ju dá -lo. Fiqu e conosco a qu i n o Cen tro es ta n oite; a m a n h ã irei a o t r ibu n a l com

você.” Ele in s is t iu em ir pa ra ca s a , e eu p rom et i encontrar-m e com ele às oito da manhã.

No d ia s egu in te, fu i com ele a o t r ibu n a l. Qu a n do es tá va m os s u b in do os degra u s do gra n de ed ifício, eu lh e disse: “Son n y, vou ora r pa ra qu e Deu s fa ça com qu e o juiz adie o seu julgamento por dois meses, para que você pos s a deixa r o vício e con h ecer a Cr is to. Depois d is s o, pode ser até que ele absolva você.”

“Va i s er d ifícil. Aqu ele ju iz s em -vergon h a n u n ca a d ia n a da . Ele m e porá n a ca deia a n tes do m eio-dia. Espere para ver.” Sorriu.

Pa rei n os degra u s do t r ibu n a l e com ecei a ora r em voz a lta : “Sen h or , eu te peço em n om e de J es u s qu e m a n des o teu Es p ír ito Sa n to toca r a qu ele ju iz, fa zen do com qu e a d ie o ju lga m en to do ca s o de Son n y, pa ra qu e ele pos s a torn a r-s e cren te. Mu ito ob r iga do por responderes à minha oração. Amém.”

Son n y olh ou pa ra m im com o s e eu es t ives s e lou co. Tom ei-o pelo b ra ço: “Va m os , va m os ou vir o ju iz dizer que vai adiar o seu caso.”

En tra m os n a s a la de a u d iên cia , e Son n y a p resentou-se a o oficia l de ju s t iça . Depois , ficou ju n to a os ou tros acusados, e eu me sentei no fundo da sala.

O ju iz ou viu t rês ca s os , e s en ten ciou os ra pa zes a p rolon ga dos per íodos de p r is ã o. O terceiro ra pa z qu e foi ju lga do com eçou a gr ita r qu a n do o ju iz p ron u n ciou s u a s en ten ça . Trepou n a m es a e ten tou pega r o ju iz, gr ita n do qu e ia m a tá -lo. Todos os qu e es ta va m n a s a la de a u d iên cia fica ra m de p é, en qu a n to os p olicia is der ru ba va m o ra pa z e o a lgem a va m . Qu a n do o arrastaram para fora, por uma porta lateral, ele gritava e da va pon ta pés , e o ju iz en xu gou a tes ta e d is s e: “O seguinte.” Son n y pôs -s e de pé n ervos a m en te, en qu a n to o m a gis t ra do folh ea va s eu p roces s o. Olh a n do por cim a dos óculos, finalmente ele disse : “Por alguma razão, sua

in ves t iga çã o p relim in a r n ã o es tá com pleta . Qu ero qu e você se apresente de novo daqui a sessenta dias.”

Son n y virou -s e e olh ou pa ra m im com os olh os ch eios de in credu lida de. Sorr i e fiz s in a l pa ra qu e ele vies s e com igo. Tín h a m os u m a ta refa d ifícil pela fren te, e precisávamos iniciá-la.

Deixa r a h eroín a “n a m a rra ” é u m a da s expe-r iên cia s m a is a gon iza n tes qu e s e p ode im a gin a r . Pre-pa rei u m qu a r to pa ra Son n y n o terceiro a n da r do Cen tro. Eu s a b ia qu e s er ia n eces s á r ia con s ta n te s u -pervis ã o. Por is s o, a vis ei a Glór ia qu e pa s s a r ia os t rês d ia s s egu in tes com Son n y. Arru m ei u m a vit rola com d is cos eva n gélicos , e res olvi fica r s en ta do a o la do dele naquele quarto, até que passasse pela prova.

No primeiro dia ele ficou desassossegado, andando pelo qu a r to e fa la n do ra p ida m en te. Na qu ela n oite ele com eçou a t rem er . Fiqu ei s en ta do a s eu la do n oite a den tro, en qu a n to ter r íveis cr is es de cala fr io s e s u ced ia m e s eu corpo era violen ta m en te s a cu d ido, os den tes ca s ta n h ola va m , ch ega n do a té a fa zer vib ra r o qu a r to todo. Às vezes ele con s egu ia es ca pa r de m im e corr ia para a porta, mas eu a trancara, e ele não podia sair.

Na m a dru ga da do s egu n do d ia , s eu t rem or d i-m in u iu , e eu o levei pa ra ba ixo, pa ra tom a r u m la n ch e. Su ger i qu e dés s em os u m a volta n o qu a r teirã o. Nem bem h a vía m os s a ído do Cen tro, qu a n do ele com eçou a vom ita r . Cu rvou -s e s ob re a ca lça da , a per ta n do o es tôm a go com â n s ia s de vôm ito. Levantei-o, m a s ele safou-s e de m im e foi ca m ba lea n do a té o m eio da ru a , on de ca iu . Arra s tei-o de volta a té a ca lça da , e s egu rei s u a ca beça n o m eu colo, a té qu e os t rem ores pa s s a s s em , e ele recu pera s s e a s força s . Volta m os , en tã o ao nosso quarto no terceiro andar, para esperar e orar.

Qu a n do a n oite s e a p roxim a va , ele com eçou a gritar: “Nicky, eu n ã o con s igo. Fu i lon ge dem a is , n ã o dá para largar o vício. Preciso de uma “picada.”

“Nã o, Son n y, va m os a t ra ves s a r ju n tos es ta p rova . Deus lhe dará forças para vencer.”

“Nã o qu ero força n en h u m a . Qu ero u m a “picada”. Precis o dela . Por fa vor , por fa vor , Nicky. Nã o m e s egu re aqui. Pelo amor de Deus, deixe-me ir. Deixe-me ir.”

“Não, Sonny. Pelo amor de Deus eu não deixo você ir . Você é p recios o pa ra ele. E le qu er u s á -lo, m a s n ã o pode fa zê-lo en qu a n to es te dem ôn io pos s u ir você. Pelo a m or de Deu s , vou s egu rá -lo a qu i a té qu e es teja bom de novo.”

Sentei-m e com ele, e pa s s a m os a li a n oite in teira. Ele s u ou fr io e teve n á u s ea s ter r íveis , a pon to de eu pen s a r qu e o s eu es tôm a go ia vira r pelo a ves s o. Ba n h ei s u a ca beça com toa lh a s m olh a da s , ligu ei a vit rola n o ú lt im o volu m e, e ca n tei pa ra ele, a com pa n h a n do os cantores dos discos.”

No d ia s egu in te eu es ta va m orren do em pé. Ten tei ou tra vez fa zê-lo en golir a lgu m a lim en to, m a s devolveu tu do n a m es m a h ora . Sen tei-m e a o la do da s u a ca m a , e orei até o por do sol.

Ele ca iu n u m s on o es pa s m ódico, gem en do, s o-b res s a lta do, e da n do repelões . Du a s vezes leva n tou -se a gita da m en te e ten tou a lca n ça r a por ta . Da ú lt im a vez tive de agarrá-lo e arrastá-lo de volta para o leito.

Por volta de m eia n oite, s en ta do n a ca deira a o la do da ca m a , s en t i a n u vem n egra do s on o ca ir s obre m im . Ten tei lu ta r pa ra a fa s tá -la , m a s h a via qu a ren ta e du a s h ora s qu e eu n ã o dorm ia . Sa b ia qu e s e ca ís s e n o s on o, Son n y poder ia es ca pa r , e des a pa recer . Es tá va m os per to da vitór ia , m a s eu n ã o t in h a m a is força s , e s en t i m eu qu eixo ca ir s ob re o peito. “Ta lvez s e fech a r os olh os só uns minutinhos...”

Acordei a s s u s ta do. O b r ilh o m ela n cólico da s lâ m -pa da s da ru a reflet ia m -s e n o gra n de qu a r to s im ples do terceiro a n da r do p réd io. Nã o pen s a va qu e t ivesse

dorm ido m a is do qu e a lgu n s s egu n dos , m a s a lgo den tro de m im m e a dver t ia de qu e dorm ira m u ito m a is do qu e is s o. Olh ei pa ra a ca m a de Son n y. Es ta va va zia . Os cober tores es ta va m em des ordem , e joga dos de la d o. Ele fora embora!

Meu cora çã o pu lou pa ra a ga rga n ta . Leva n tei-me de u m pu lo, e s a í em d ireçã o à por ta , qu a n do o vi a joelh a do n o a s s oa lh o, a o la do da ja n ela . Sen t i u m a on da de a lívio, e m e a p roxim ei deva ga r da ja n ela , ajoelhando-me n a s tá bu a s n u a s , a o la do dele. Um a n eva da p r im a ver il ca ía s u a vem en te, e reflet ia n a ca lçada a lu z dos pos tes . A ru a e a ca lça da con fu n diam-se deba ixo de u m s ó ta pete de u m b ra n co im a cu la do, e os ra m os da s á rvores , per to da ja n ela , com s eu s m in ú s cu los b rotos delica dos qu e com eça va m a s u rgir , b r ilh a va m devido à n eve b ra n ca e fofa qu e os cobr ia . Ca da floco m a cio relu zia in d ividu a lm en te, qu a n do flu tu a va d ia n te da lu z da s lâ m pa da s , ca in do a o ch ã o. Faziam-me lembrar de uma figura de cartão de Natal.

“É m a ra vilh os o. É in des cr it ível. Nu n ca vi cois a mais bela; e você?” disse Sonny.

Eu olhava para ele. Seus olhos estavam claros, e a voz firme. Sua face mostrava-se radiante; sua língua não estava grossa, nem sua fala pastosa.

Ele s orr iu pa ra m im : “Deu s é bom , Nicky. Ele é m a ra vilh os o. Es ta n oite ele m e liber tou de u m des t in o p ior do qu e o p rópr io in fern o. Ele m e liber tou d a escravidão.”

Olh ei pa ra fora , a dm irei o qu a dro delica do d e beleza pu ra qu e es ta va d ia n te de m im , e m u rm u rei : “Obr iga do, Sen h or , ob r iga do.” E ou vi Son n y m u rm u ra r : “Muito obrigado.”

Pela p r im eira vez deixei Son n y a s ós , a t ra ves s ei o pá t io cober to de n eve fofa , em d ireçã o a o m eu a pa r ta m en to. Tin h a a ca beça des cober ta , e a n eve

gélida , qu e ca ía tã o m a n s a m en te, cob r iu m eu ca belo e ra n gia s u a vem en te deba ixo dos m eu s pés , en qu a n to eu subia os degraus exteriores.

Ba t i de leve, e Glór ia a b r iu a por ta . “Qu e h ora s são ?” perguntou ela estremunhada.

“Qu a s e t rês da m a n h ã ”, res pon d i. En con tra m o-n os n a s oleira da por ta , e a per tei-a a m oros a m en te con tra m im , en qu a n to obs ervá va m os a n eve s u a ve e fofa amontoar-s e s ilen cios a m en te n o ch ã o, cobr in do tu do o qu e era es cu ro e feio com u m len çol m a ravilhosamente branco, como a inocência.

“Son n y en con trou -s e com Cris to”, d is s e eu . “Uma nova vida nasceu para o reino.”

“Eu te a gra deço, J es u s ”, d is s e Glór ia de m a n s o. Hou ve u m a lon ga pa u s a , e fica m os n a s oleira d a por ta , a dm ira n do o m a ra vilh os o qu a dro d ia n te de n ós . En tã o, s en t i o b ra ço de Glór ia a per ta r m in h a cin tu ra . “Sonny n ã o é a ú n ica n ova vida qu e pa s s ou a exis t ir . Nã o ten h o t ido tem po de fa la r com você, porqu e tem es ta do tã o ocupado nestes últimos três dias, mas há uma vida nova em mim, também, Nicky. Vamos ter um nenê.”

Puxei-a pa ra m im e es t reitei-a ju n to a o m eu peito, ch eio de a m or e a legr ia . “Oh , Glór ia , eu a m o você! Eu a a m o m u ito, m u ito!” Su a vem en te, cu rvei-m e, pa s s ei os b ra ços por t rá s dos joelh os dela , e va ga ros a m en te levantei-a n o colo. Dei u m pon ta pé n a por ta , qu e s e fech ou com u m es ta lido, m ergu lh a n do o qu a r to em com pleta es cu r idã o. Ca rregu ei-a pa ra o s ofá , e coloqu ei-a ca r in h os a m en te n a ca m a . Sen ta n do-m e a o la do dela , pou s ei a ca beça s u a vem en te n o s eu ven tre m a cio, aconchegando-m e a o m á xim o à n ova vida qu e es ta va a li den tro. Com a s m ã os ela a ca r iciou m eu ros to e m in h a ca beça . A exa u s tã o m e dom in ou e ca í n u m s on o profundo e sossegado.

Depois de s u a con vers ã o, Son n y levou -n os a co-

n h ecer o es cu ro s u bm u n do da gra n de cida de, e in -troduziu-n os n o rein o dos vicia dos , da s p ros t itu ta s , e dos criminosos.

Glór ia e eu pa s s a m os m u ita s h ora s n a s ru a s , distribuin do folh etos , e o n ú m ero de pes s oa s qu e era m a ten d ida s n o Cen tro cres ceu . Tín h a m os con tu do, bem pou cos a doles cen tes . A m a ior ia era con s t itu ída de a du ltos . Abr im os o terceiro a n da r pa ra recolh er a s m u lh eres . Glór ia a ju da va a cu ida r da s m oça s , e eu trabalh a va com os ra pa zes , em bora com o d iretor estivesse encarregado dos dois grupos.

Da vi m u da ra -s e pa ra u m a ca s a em Sta ten Is la n d , e vin h a a o Cen tro todos os d ia s , qu a n do es ta va n a cidade, para supervisionar o trabalho.

Com pra m os u m a Kom bi. Glór ia e u m dos rapazes s a ía m du a s vezes por s em a n a pa ra a pa n h a r m em bros de gangs e trazê-los ao Centro, para os cultos.

Pedro a lu gou u m a pa r ta m en to em J ers ey, e m u -dou-s e, m a s Son n y ficou a té s etem bro, qu a n do via jou pa ra La Pu en te, on de foi cu rs a r o In s t itu to Bíb lico. Na qu ele m es m o verã o, o a pa r ta m en to do s egu n do a n da r do Cen tro foi des ocu pa do, e eu e Glór ia m u damo-nos pa ra lá . O dorm itór io dos h om en s fica va n os fu n dos do s egu n do a n da r . No p r im eiro, h a via o es cr itór io, a cozin h a , o refeitór io e u m a s a la gra n de qu e u s á vamos com o ca pela . Es pera va qu e depois qu e n os m u dá s s em os pa ra o ca s a rã o, is to a ju da r ia a d im in u ir a ten s ã o qu e Glór ia s en t ia . Nã o obs ta n te, a n eces s ida de de viver n a m es m a ca s a com qu a ren ta vicia dos em ps icotróp icos não propiciava uma vida de calma e paz.

A ten s ã o con t in u ou . Glór ia e eu t ín h a m os bem pou cos m om en tos a s ós , pois eu pa s s a va toda s a s h ora s d is pon íveis com os vicia dos . No ou ton o de 1962 , t ive de fa zer u m a via gem de em ergên cia a Por to Rico. Ma m ã e en via ra u m ca bogra m a a Fra n k . Pa pa i m orrera . Fra n k, Gen e e eu voa m os pa ra Por to Rico com n os s a s es pos a s ,

on de eu d ir igi u m cu lto, por oca s iã o do s epu lta m en to do meu pai. Eu retornava como pastor evangélico, e embora papai jamais tivesse aceitado abertamente a Cristo como filho de Deus, realizei aquela cer im ôn ia com a cer teza de qu e h ou vera u m a t ra n s form a çã o n a s u a vida , e qu e Deu s , n a s u a m is er icórd ia , s er ia ca pa z de ju lgá -lo de a cordo com o s eu cora çã o. O “Grande” es ta va m or to — mas as recordações de um pai que eu aprendera a amar, continuaram vivendo no meu coração.

Alicia An n n a s ceu em ja n eiro de 196 3 . Aju dou a p reen ch er u m va zio n a vida s olitá r ia de Glór ia , vis to qu e a gora ela pos s u ía a lgu ém com qu em repa r t ir s eu a m or , du ra n te os lon gos d ia s qu e pa s s a va s ozin h a . Eu a n s ia va por fica r a lgu m a s h ora s com ela s , m a s o des ejo dom in a n te de m in is t ra r a os fa r ra pos h u m a n os vicia dos em en torpecen tes , a fa s ta va -m e do la r des de o a lvorecer a té a m eia -n oite. Recom en dei-lh e qu e n ã o deixa s s e n in gu ém pega r o bebê, pois em bora eu a m a s -s e os vicia dos , s a b ia qu e s u a s m en tes s evera m en te p reju d ica da s pela s d roga s era m ca pa zes de qu a lqu er coisa.

Ma s n u n ca fiqu ei s a ben do qu a n ta s n oites Glór ia ficou ch ora n do s ozin h a a té dorm ir , n a s olidã o de n osso a pa r ta m en to. Ela fora , s em dú vida , a es colh a cer ta de Deu s pa ra m im . Nen h u m a ou tra m u lh er ter ia podido agüentar uma vida daquelas.

Capítulo 15

PP AASS SS EE IIOO AAOO IINNFF EE RR NNOO

EU PASSARA DOIS DIAS FORA da cidade, quando voltei, Glór ia fa lou -m e de Ma r ia . Tin h a vin te e oito a n os .

Fora recolh ida da ru a m eio con gela da , com s in tomas a gu dos de p r iva çã o de h eroín a , e n o lim ia r da m or te. Glór ia ped iu -m e qu e pen s a s s e es pecia lm en te n ela , a o pregar naquela noite, na pequena capela.

Depois do cu lto, Glór ia levou Ma r ia a o m eu es -cr itór io. Ela ga gu eja va o tem po todo, s ofren do a in da a p r iva çã o da d roga . “Esta n oite”, d is s e ela , “t ive a es t ra n h a s en s a çã o de qu e d es eja va liber ta r -m e des ta vida in ú t il. En qu a n to você p rega va , t ive u m es t ranho s en t im en to de qu e rea lm en te des eja va m orrer pa ra es ta vida m is erá vel. Nã o obs ta n te, pela p r im eira vez n a vida , eu quero viver. Não consigo entender isso.”

Expliquei-lh e qu e ela es ta va exper im en ta n do o qu e a Bíb lia ch a m a “arrependimento”. “Ma ria , você n ã o pode receber o a m or de Deu s , en qu a n to n ã o es t iver d is pos ta a m orrer pa ra você m es m a . Diga -m e, qu er m orrer pa ra a s u a velh a vida ? Qu er qu e a velh a vida de d roga s e p ros t itu içã o s eja con den a da à m or te, s epu lta da e esquecida para sempre?”

“Sim , s im , s im ”, s olu çou ela . “Es tou d is pos ta a fazer qualquer coisa para escapar.”

“Está disposta a morrer para o “eu”?” perguntei.

“Sim”, res pon deu ela , rep r im in do a s lá gr im a s , “até isso.”

“En tã o deixe-m e fa la r -lh e a res peito de u m a m or tã o m a ra vilh os o, tã o lin do, tã o es p lên d ido qu e pode m u da r a té m es m o u m a pes s oa com o você torn a n do-a pura e santa. Deixe-me falar-lhe de Jesus.”

Du ra n te cerca de d ez m in u tos , fa lei-lh e a res peito do perfeito a m or de Deu s , qu e foi der ra m a do s obre n ós em Jesus Cristo.

Ela es con deu o ros to n a s m ã os e com eçou a ch ora r . Aproxim ei-m e dela e coloqu ei a m ã o n o s eu ombro. “Ma ria , va m os fica r de joelh os e ora r ...” An tes

qu e eu term in a s s e de fa la r , Ma r ia ca íra de joelh os n o a s s oa lh o. Sen t i qu e a rep res a s e reben ta ra . Ma r ia nascera de novo, para uma nova vida em Jesus Cristo.

Um m ês depois , ela en trou em m eu es cr itór io. A n eces s ida de qu e s en t ia da d roga es ta va s e torn a n do in s u por tá vel, e ela qu er ia deixa r o Cen tro. J oh n n y, s eu n a m ora do, já s e ren dera à p res s ã o da d roga , a ba n don a n do o Cen tro a lgu n s d ia s a n tes , n a s ca la da s da noite.

Levantei-m e e fech ei a por ta . “Maria”, d is s e eu , “n a da em m in h a vida é tã o im por ta n te com o o seu fu tu ro. Fa lem os a res peito do qu e a con teceu em s u a vida.”

Ela con cordou . Rem on ta m os à época em qu e Ma -r ia t in h a dezen ove a n os , e t ira ra o d ip lom a do gin ásio. Deixei-a fa la r . “Foi J oh n n y qu em m e en s in ou a fu m a r m a con h a . Min h a s a m iga s h a via m -m e con ta do sua exper iên cia com a erva . Tin h a m d ito qu e n ã o h a via p rob lem a s , con ta n to qu e n ã o s e la n ça s s e m ã o de cois a m a is for te. J oh n n y pa recia ter s em pre u m bom s u pr im en to de “pacaus”, e eu a ch a va tu do m u ito d i-vertido.”

Ma r ia pa rou , com o s e lem bra s s e da qu eles p r imei-ros d ia s , qu a n do com eça ra s u a des cida a o in fern o, e pen s ei com o s u a a t itu de era t íp ica da s dezen a s de viciados que estavam se apresentando no Centro.

Noven ta por cen to deles t in h a m com eça do com macon h a e depois t in h a m ido a lém , vicia n do-s e em n a r-cóticos . Perceb i o qu e vin h a a s egu ir , m a s s en t i qu e ela p recis a va des a ba fa r . “Fa le, Ma r ia , qu a l era o efeito?” Ela rela xou o corpo n a ca deira , e com eçou a con ta r -m e a história, com os olhos semi-cerrados.

“Eu sentia que os problemas, literalmente, voavam para lon ge de m im ”, res pon deu ela . “Cer ta vez, s en t i qu e eu m es m a es ta va flu tu a n do qu ilôm etros e qu ilômetros

a cim a da ter ra . En tã o com ecei a pa r t ir -m e em p eda ços . Meu s dedos s olta ra m -s e da s m ã os e voa ra m pa ra lon ge, n o es pa ço. As m ã os s a íra m dos pu n h os . Os b ra ços e pern a s deixa ra m m eu corpo. Pa r t i-m e em m ilh ões de pedaços que voaram, levados por uma brisa suave.”

Ela pa rou de n ovo, relem bra n do. “Ma s a m a conha n ã o era s u ficien te. O qu e ela fa zia era a pen a s a gu ça r em m im u m des ejo de a lgo m a is for te. Eu es tava mentalmente “fisgada”.

“Foi Johnny quem me deu a primeira “picada”. Ele vin h a fa la n do d is s o h á s em a n a s . Cer ta ta rde, d epois de ter ch ora do o d ia in teiro, pa recia qu e tu do ia m a l. J oh n n y ch egou en tã o com a a gu lh a e a colh er . Eu s a b ia o que ele ia fazer, mas ele parecia tão certo de que aquilo m e a ju da r ia , qu e deixei-o p ros s egu ir . Na qu ela época eu n a da s a b ia a res peito do vício de n a rcót icos , m a s ele m e ga ra n t iu qu e tu do ir ia s a ir bem . Am a rrou u m cin to em torn o do m eu b ra ço, bem a per ta do, pou co a cim a d o cotovelo, a té qu e a veia s a ltou com o u m gra n de ca roço, s ob a m in h a pele. Es va ziou n a colh er o con teú do de u m en velope, u m pó b ra n co e s em elh a n te a a çú ca r . Ad icion ou á gu a com u m con ta -gota s , e em s egu ida a cen deu u m fós foro s ob a colh er , a té o líqu ido ferver . Ou tra vez, com o con ta -gota s , s u gou a h eroín a a gora d is s olvida . Depois , com per ícia , fu rou m in h a veia com a pon ta da a gu lh a h ipodérm ica . En tã o, cu ida dos a m en te, apertou o con ta -gota s , fa zen do goteja r o poten te líqu ido n a pa r te m a is la rga da a gu lh a h ipodérm ica . Deixa n do o conta-gota s de la do, m oveu a a gu lh a pa ra ba ixo e pa ra cim a , em m eu b ra ço, a té o líqu ido des a pa recer n a veia . Nã o s en t i n a da qu a n do ele t irou a a gu lh a . Nã o s a b ia en tã o, m a s a ca ba ra de m e torn a r u m a vicia da qu e in jeta n a rcót ico d ireta m en te n a veia , s en do es ta a form a m a is terrível do vício.

“Johnny, não estou boa”, disse eu.

“Na da d is s o, você es tá bem , ga rota ”, res pon deu .

“Des ca n s e e logo es ta rá voa n do. Prom eti, e n u n ca deixo de cumprir minhas promessas, não é mesmo?”

“Ma s eu n ã o o ou via m a is . Com ecei a ter â n s ia s , e a n tes qu e pu des s e m exer-m e, vom itei n o a s s oa lh o. Ca í a t ra ves s a da n a ca m a , e com ecei a t rem er e a s u a r . J oh n n y s en tou -s e a o m eu la do e s egu rou m in h a m ã o. Logo rela xei os m ú s cu los , e u m a s en s a çã o qu en te, de flu idez, a t ra ves s ou m eu corpo. Tin h a a im pres s ã o de que me elevava em direção ao forro; acima de mim podia ver a fa ce s orr iden te de J oh n n y. Ele cu rvou -s e s ob re mim e murmurou: “Como é que está indo, boneca ?”

“Delicioso”, m u rm u rei. “Pu xa , es tá fica n do bom .” Eu começara a minha incursão no inferno.

“Só receb i ou tra p ica da u m a s em a n a m a is ta rde. Des ta vez, qu a n do J oh n n y fez a s u ges tã o, con cordei prontamente. A dose seguinte veio após três dias. Depois d is s o, J oh n n y n ã o p recis a va m a is s u ger ir , eu é qu e ped ia . Nã o o s a b ia en tã o, m a s já es ta va vicia da . .. “fisgada”.

“Na s em a n a s egu in te, qu a n do J oh n n y ch egou em ca s a , eu es ta va com eça n do a t rem er . Ped i-lh e u m a “picada”.

“Es cu te, bon eca , eu gos to de você e tu do o m a is , mas esta droga custa dinheiro, você sabe.”

“Eu s ei d is s o. J oh n n y, m a s p recis o de u m a “pi-cada .”

“Johnny sorriu: “Não tem, menina. Puxa, você está começando a me custar caro.”

“Por fa vor , J oh n n y”, in s is t i com ele, “n ã o b r in que comigo. Não percebe que eu preciso de uma “picada ?”

“J oh n n y d ir igiu -s e pa ra a por ta . “Hoje n ã o. Es -queça. Eu não tenho tempo nem dinheiro.”

“Johnny”, eu es ta va gr ita n do. “Nã o m e a ba n don e.

Pelo a m or de Deu s , n ã o s a ia !” Ma s ele s e fora , e ou vi a chave girar na fechadura.

“Ten tei con ter -m e, m a s n a da pu de fa zer . Ch egu ei à janela, e vi Johnny na esquina, conversando com duas ga rota s . Eu s a b ia qu em era m . Tra ba lh a va m pa ra J oh n n y. Ele s e refer ia a ela s com o pa r te do s eu “estábulo”. Era m p ros t itu ta s qu e com pra va m a d roga de qu e p recis a va m com o d in h eiro qu e ga n h a va m n a p rofis s ã o. J oh n n y forn ecia a “mercadoria”, e ela s pa s s a va m a d roga a os fregu es es , m ed ia n te u m a co-missão.

“Fiqu ei olh a n do pela ja n ela , e vi qu a n do ele pôs a m ã o n o bols o do pa letó e pa s s ou d is fa rça da m en te, pa ra u m a da s ga rota s , u m pequ en o en velope b ra n co. Eu s a b ia qu e era a d roga . Ao ver J oh n n y des fa zer-s e da p recios a h eroín a , n ã o pu de a gü en ta r . Por qu e ele a da va pa ra ela , e n ã o m e deixa va tom a r u m a “picada”? Deu s , como eu precisava de uma!

“De repen te, ou vi m eu s p rópr ios gr itos : “Johnny! Johnny!” eu gr ita va da ja n ela , com toda s a s forças dos pu lm ões . Ele olh ou pa ra cim a , e voltou pa ra o a pa r ta m en to. Qu a n do en trou , eu es ta va a t ra ves s a da n a ca m a , s olu ça n do e t rem en do. Ha via perd ido todo o autocontrole.

“J oh n n y fech ou a por ta . Sen tei n a ca m a e ten tei fa la r , m a s a n tes qu e pu des s e d izer qu a lqu er cois a , ele avançou para mim e bateu-me na boca com as costas da mão. “Qu e d ia bo es tá qu eren do?” gr itou ele. “Qu er qu e eu seja preso, ou o quê ?”

“J oh n n y, por fa vor , a ju de-m e. Precis o de u m a “pi-cada”. Vi você da r a d roga pa ra a qu ela s ga rota s . Por qu e n ã o dá pa ra m im ? Por fa vor!” Eu ch ega ra a u m es ta do de com pleto des es pero. Es ta va t rem en do e s olu ça n do a o m es m o tem po. Sen t ia o gos to do s a n gu e qu e es corr ia pelo ca n to da boca , m a s n ã o m e im por ta va . Tu do o qu e eu qu er ia era a a gu lh a . J oh n n y deu u m a r is a da .

“Es cu te, ga rota , você é d iferen te da qu ela s ca dela s qu e es tã o lá n a ru a . Você tem cla s s e. Ma s es ta d roga n ã o s e con s egu e de gra ça . Cu s ta , e m u ito. Aqu ela s ga rota s lá em ba ixo t ra ba lh a m pa ra con s egu ir a dela s . O qu e é qu e você está fazendo para conseguir a sua, hein ?”

“Eu vou tra ba lh a r , J oh n n y. Fa rei qu a lqu er cois a . Tudo. Só quero que você me dê aquela agulha.”

“Nã o s ei n ã o”, d is s e J oh n n y. “Você tem cla s s e demais para trabalhar na rua.”

“J oh n n y, fa rei qu a lqu er cois a . Fa le o qu e é.” Sen ti o s oa lh o s u b ir a o m eu en con tro, qu a n do jogu ei-m e a os s eu s pés e a b ra cei s eu s joelh os pa ra n ã o ca ir com o rosto no chão.

“Você qu er d izer qu e es tá d is pos ta a t ra ba lh a r pa ra m im n a ru a ?” Ele pa rou e depois con t in u ou com entusiasmo. “Você p ode, m en in a , eu s ei qu e você pode, s e qu is er . Ra pa z, você pode pa s s a r por cim a da quelas fra n ga s , de dez con t ra u m . Os h om en s vã o en xa m ea r a o s eu redor , e en tre n ós d ois podem os fa zer m u ito d in h eiro. Qu e ta l? Eu ter ia m u ito d in h eiro e poder ia com pra r pa ra você toda H (h eroín a ) qu e qu isesse e você n u n ca m a is pa s s a r ia por is to. Qu e ta l? É is s o qu e você quer?”

“Sim , J oh n n y, s im , s im . Só qu ero qu e você m e dê uma “picada.”

“J oh n n y a p roxim ou -s e do fogã o, e a cen deu u m a boca . Tirou a colh er e colocou n ela u m pou qu in h o de pó b ra n co. Ad icion ou á gu a e s egu rou -a s ob re a ch ama. En ch en do a a gu lh a , a p roxim ou -s e de m im , qu e es ta va a ga ch a da n o ch ã o. “Pu xa , m en in a , is to é o com eço do céu pa ra n ós dois . Com você a o m eu la do, podem os a lca n ça r a lu a .” Sen t i a a gu lh a pen etra r n a veia . A t rem u ra pa rou qu a s e im ediatamente — em qu es tã o d e s egu n dos . J oh n n y a ju dou -m e a leva n ta r , e levou -me pa ra a ca m a , on de eu ca í em p rofu n do s on o. Ma s

J oh n n y es ta va en ga n a do. Nã o era o com eço do céu . Era o com eço de u m pes a delo h orr ível, qu e h a ver ia de du ra r oito longos anos. Não o céu — mas o inferno.

“O in fern o é u m a b is m o s em fu n do, n o qu a l a gen te ca i e con t in u a ca in do, s em n u n ca ch ega r a o fu n do. Nã o h á pon to de pa ra da n em in ter ru pçã o n a qu eda n o vício dos tóxicos . Es s e, o ca m in h o qu e eu começava a trilhar.

“J oh n n y n ã o poder ia u sar-m e, s e eu n ã o fos s e vicia da . Qu a n do m e torn ei es cra va da s d roga s , torn ei-m e ta m bém es cra va dele. Tin h a de fa zer o qu e ele qu is es s e... e ele qu er ia qu e eu m e p ros t itu ís s e pa ra da r-lh e d in h eiro. Ele m e forn ecia d roga , m a s eu via qu e a situação não era exatamente o céu que ele prometera.

“Descobri logo que Johnny tinha outra mulher. Eu s a b ia qu e ele n ã o qu er ia ca s a r com igo, m a s n u n ca im a gin a ra qu e es t ives s e s u s ten ta n do ou tra . Sou be d is to de maneira crua.

“O movimento fora pequeno na noite anterior, e eu havia leva n ta do e des cido à ru a , n a qu ela ta rde, pa ra fa zer a lgu m a s com pra s . Gos ta va de s a ir e es qu ecer-me do qu e eu era , im a gin a n do s er igu a l à s ou tra s pes s oa s . Es ta va n a es qu in a da s ru a s Hicks e At la n t ic, es pera n do o s in a l a b r ir , qu a n do s en t i a lgu ém a ga rrar-m e o om bro, puxando-m e com força , de form a qu e m e fez d a r m eia -volta. “Você é Maria, não é?” Era uma mulher morena de lon gos ca belos n egros qu e s e es pa lh a va m pelos om bros . Seu s olh os des ped ia m ch is pa s de fogo. An tes qu e eu pu des s e res pon der , ela d is s e: “Sim , é você. J á te con h eço. É você qu e a n da a t rá s do m eu h om em . Vou ensiná-la, cadela imunda.”

“Procu rei a fa s ta r -m e, m a s ela deu -m e u m ta pa n o ros to. O s in a l s e a b r ira , e o povo pa s s a va a p res s a do a o n os s o redor , m a s eu n ã o es ta va pa ra s er em pu rra da por n in gu ém , da qu ela form a . Es ten d i a m ã o, pu xei-a pelo cabelo, e empurrei-a para trás com a outra mão.

“Ela com eçou a gr ita r com o u m a lou ca . “Cadela s u ja . Dorm in do com o m eu h om em . Vou m a ta r você.” Es ta va com o lou ca . Ten tou a cer ta r -m e com a bols a , m a s eu m e a ba ixei. Em pu rrei-a com o corpo, e ela ca iu d e cos ta s , con tra o gra d il, n a en tra da da es ta çã o do m etrô. Ou vi qu a n do res p irou fu n do n o m om en to em qu e ba teu a espinha no duro cano de ferro.

“Pegu ei s u a ca beça e em pu rrei-a pa ra t rá s , con tra o ca n o, em d ireçã o a os degra u s n egros qu e leva va m à es ta çã o do m etrô. Eu es ta va ten ta n do en ter ra r a s u n h a s n os s eu s olh os , on de t in h a cer teza de qu e ir ia fer i-la . De repen te, ela en ter rou os den tes n a m in h a m ã o. Sen t i a ca rn e ra s ga r-s e, qu a n do a r ra n qu ei a m ã o de s u a boca , gritando de dor.

“Qu a n do m e a fa s tei, a lgu ém m e a ga rrou e a m u l-t idã o m e s epa rou dela . O h om em qu e m e a ga rra ra fez-m e da r m eia volta e m e a t irou n a ru a , on de t ropecei e ca í. A m u lt idã o a in da es ta va a glom era da em torn o da ou tra m u lh er . Atra ves s ei a ru a dep res s a , e con tinuei correndo pela calçada, do outro lado.

“Nã o olh ei pa ra t rá s , m a s corr i pa ra m eu a pa r ta -mento. Ali lavei a mão e pedi à vizinha para me fazer um cu ra t ivo. Na qu ela n oite voltei pa ra a ru a ... Nu n ca m a is vi aquela mulher.

“Eu não sentia mais nenhuma obrigação para com J oh n n y. Des cobr i qu e pod ia con s egu ir “picadas” com m u itos ou tros h om en s , ca da u m d os qu a is fica ria con ten te s e eu t ra ba lh a s s e pa ra ele. Is to torn ou -s e u m lon go pes a delo. Pa s s ei a viver com u m h om em a pós ou tro. Tod os era m vicia dos em en torpecen tes . Eu ven d ia meu corpo; eles roubavam.

“Com ecei a t ra ba lh a r em s ocieda de com a lgu m a s da s ou tra s m u lh eres . Nós a lu gá va m os u m qu a r to pa ra a n oite. Sa ía m os pa ra a ru a e es perá va m os . Algu n s h om en s era m fregu es es regu la res , m a s n a m a ior pa rte era m in teira m en te es t ra n h os . Negros , ita lia n os ,

or ien ta is , por to-r iqu en h os , b ra n cos ... o d in h eiro deles tinha uma só cor.

“Era o in fern o: qu a n do con s egu ia dorm ir du ra n te o d ia , a corda va gr ita n do, a ter ror iza da com s on h os ter r íveis . Es ta va a p r is ion a da em m eu p rópr io corpo, e era a m in h a p rópr ia ca rcereira . Nã o h a via fu ga daquele temor, daquela imundície, e do horror daquele pecado.

“Os h om en s da s ru a s n ã o era m os ú n icos qu e m e da va m p rob lem a s . Eu ta m bém es ta va em con s ta n te dificuldades com a polícia. Fui presa onze vezes, durante os oito a n os do m eu vício. A s en ten ça m a is com prida foi de s eis m es es . Fu i p res a a p ropós ito de tu do: rou bo em loja s , vício de en torpecen tes , fu r to de pequ en a s quantias, vagabundagem, e também, prostituição.

“Eu od ia va ca deia . Da p r im eira vez, ch orei m u ito. Prometi a mim mesma que nunca mais faria algo que me leva s s e a s er p res a de n ovo. Ma s qu a tro m es es depois , estava de volta. Voltei dez vezes.

“Os policia is es ta va m con s ta n tem en te m e a s s ed i-a n do. Um gu a rda vin h a de dois em dois d ia s , qu a n do eu es ta va n a ru a , p rocu ra n do fa zer com qu e m e en tregasse a ele. Mas eu sabia que não lucraria nem um tostão com aquilo, por isso nunca cedi.

“Ma s a h eroín a es ta va m e des t ru in do. Lem bro-me da p r im eira vez em qu e tom ei u m a dos e exa gera da . Eu a in da es ta va t ra ba lh a n do, e volta ra pa ra a ca s a de m in h a m ã e. Aba n don a ra J oh n n y. Ma m ã e es tava tra ba lh a n do em u m a fá b r ica , e eu em u m es cr itór io. Eu d is s e a m a m ã e qu e p recis a va de a lgu m a s rou pa s n ova s pa ra t ra ba lh a r , e im p lorei ta n to qu e levei a a fa zer u m empréstimo no banco.

“Ch egu ei cedo do s erviço, n a qu ela ta rde, e t irei o d in h eiro da es cr iva n in h a . Des ci pa ra o Ha r lem , on de m ora va o t ra fica n te, com prei a h eroín a e coloqu ei-a den tro do s ou t ien . An dei m a is u n s dois qu a r teirões , e

ch egu ei a u m porã o on de vivia m a lgu n s vicia dos , m eu s con h ecidos . Eu es ta va des es pera da , t rêm u la . Esquentei a d roga em u m a ta m pin h a de ga rra fa , en ch i a a gu lh a , e mergulhei-a n a veia . Perceb i logo qu e a lgu m a cois a es ta va er ra da . Fiqu ei ton ta e des m a iei. Pos s o lem bra r-m e de qu e a lgu ém m e tocou , ten ta n do fa zer-m e fica r de pé. Pen s o qu e eles fica ra m com m edo qu a n do n ã o rea gi. Algu ém ra s gou m eu s ou t ien , rou bou o res to de H, e depois jogou -m e pa ra fora do porã o, deixa n do-m e ca ída na calçada.

“Qu a n do a cordei, es ta va n o Hos p ita l Bellevu e. A polícia m e en con tra ra , leva n do-m e pa ra o h os p ita l. Eu fora rou ba da . Todo o d in h eiro des a pa recera . Três gu a rda s rodea va m m in h a ca m a , todos fa zen do per-gu n ta s a o m es m o tem po. Dis s e-lh es qu e es t ivera be-ben do, e qu e a lgu ém pu s era a lgo n a m in h a beb ida . Ma s eles s a b ia m . Fizera m o m éd ico m a rca r “DE” n a m in h a fich a , in d ica n do “dos e exa gera da ”. Foi a p r im eira de uma série de três.

“A última quase me matou.

“Es t ivera beben do n o qu a r to. A com bin a çã o de vin h o ba ra to e de dos e exa gera da de h eroín a , fez-me desmaiar.

“Fiqu ei in con s cien te n a ca m a , e o ciga rro ca iu em m eu ca belo. Pos s o lem bra r a s en s a çã o es t ra n h a qu e t ive. Son h ei qu e a m ã o de Deu s es ten deu -s e e s acudiu-m e ... e con t in u ou a s a cu d ir -m e... Lem bro-m e qu e d is s e: “Te m a n ca , Deu s , m e deixa s ozin h a . Pá ra de m e sacudir.” Ma s a s s a cu d idela s n ã o pa ra ra m . E eu acordei.

“Eu s a b ia qu e a lgu m a cois a es ta va er ra da , porém n ã o perceb i n a da . Sen t i o odor de a lgo podre — u m ch eiro de ca rn e qu eim a da . Ten tei leva n ta r -m e, m a s ca í n o s oa lh o. Ra s teja n do a té o es pelh o, con s egu i levantar-m e e olh ei. O ros to qu e vi n ã o era o m eu . Eu es ta va careca. Todo o cabelo fora queimado. Meu rosto era uma

m a s s a de bolh a s e ca rn e cres ta da . Min h a s orelh a s t in h a m s ido qu a s e com pleta m en te qu eim a da s , e dela s s u b ia u m a es p ira l de fu m a ça , com o qu e de u m a tor ra da qu eim a da . As du a s m ã os es ta va m qu eim a da s e em pola da s , por ter ten ta do a pa ga r o fogo com ela s , inconscientemente.

“Com ecei a gr ita r . Um h om em qu e m ora va do ou tro la do do corredor , ou viu m eu s gr itos h is tér icos , e s a ben do qu e eu era vicia da em d roga s , veio e com eçou a esmurrar a porta.

“Ca m ba leei a té a por ta e a ga rrei o t r in co, p ro-cu ra n do a b r i-la , m a s a ca rn e da s pa lm a s de m in h a s mãos grudou no metal, quando tentei virar a maça-neta. A ca rn e de m in h a s m ã os des p ren deu -s e, e n ã o pu de abrir.

“Nã o s ei com o, ele con s egu iu a b r ir a por ta pelo la do de fora . Qu er ia leva r-m e pa ra o h os p ita l, m a s eu recu s ei. Ca í s em força s n a ca m a , e ped i qu e m e leva s s e a o a pa r ta m en to de m in h a a m iga , In ez. Ele m e levou , e eu passei a noite lá.

“As qu eim a du ra s , porém , era m de s egu n do e terceiro gra u , e a dor torn ou -s e in s u por tá vel. Eu t in h a m edo do h os p ita l. J á es t ivera lá a n ter iorm en te. Com o estava “fisgada”, s a b ia qu e s e fos s e pa ra o h os p ita l, ter ia de deixa r o vício, “n a m a rra ”. Eu a ch a va qu e n ã o agüentaria, e estava com medo de morrer.

“Ma s , n o d ia s egu in te, In ez forçou -m e a ir pa ra o h os p ita l. E la n ã o teve de in s is t ir m u ito. Eu s a b ia qu e m orrer ia , s e n ã o fos s e. Piqu ei lá u m m ês e m eio, a té a s queimaduras sararem.

“Qu a n do s a í do h os p ita l, voltei pa ra a s ru a s . Tomei a m in h a p r im eira “picada” qu a ren ta e cin co m in u tos depois de ter s a ído do h os p ita l e n a qu ela n oite eu es ta va de volta a o t rot toir . Só qu e a gora tu do es ta va m a is d ifícil, devido à s cica t r izes e qu eimaduras.

Ninguém me queria. Minhas roupas estavam cobertas de qu eim a du ra s de ciga rro e m a n ch a s de ca fé. Meu corpo vivia s u jo e ch eira va m a l. Algu m a s vezes eu a n da va pela rua vomitando. O vício estava me pondo louca.

“Um ra pa z es pa n h ol ch a m a do Ren é cos tu m a va con vers a r com igo n a s ru a s . Ele fora t ra fica n te, m a s esteve n o Cen tro Des a fio J ovem , e a ba n don a ra o vício. Torn a ra s e cren te, e du ra n te os ú lt im os m es es vin h a in s is t in do com igo pa ra qu e eu vies s e a qu i e ta m bém abandonasse a droga.

“Cer ta n oite fr ia de m a rço, eu es ta va p recis a n do des es pera da m en te de u m a “picada”. Des ci pela ru a ca m ba lea n do, virei a es qu in a p róxim a a o n .° 41 6 da Av. Clinton, e caí sem forças na escadaria.

“Má rio es ta va n a por ta r ia n a qu ela n oite. E le ch a m ou Glór ia . E la m e leva n tou s u a vem en te, e eu m e a poiei n ela . En tra m os pela por ta la tera l, a o la do da mesa e passamos para a capela.

“Ajoelhe-s e, Ma r ia ”, d is s e ela , “ajoelhe-s e e ore.” Eu m e s en t ia en torpecida , e ju lgu ei es ta r m orren do. Pen s ei: s e é n eces s á r io is to pa ra perm a n ecer viva , vou fazê-lo. Ajoelh ei-m e n o ch ã o, a t rá s de u m dos ba n cos , m a s a n tes qu e pu des s e cu rva r a ca beça , com ecei a vom ita r . Vom itei em m in h a b lu s a e n o ch ã o. Com ecei a ch ora r e a t rem er , e ca í a m on toa da n o ch ã o, com a s duas mãos à minha frente, sobre meu próprio vômito.

“Leva n tei os olh os . As ou tra s m oça s qu e es tavam n a ca pela m e rodea ra m . Recon h eci a lgu m a s qu e eu fica ra con h ecen do n a ca deia , m a s es ta va m d iferen tes . Pa recia m a n jos flu tu a n do n o a r en tre a s ca deira s e m es a s , des cen do va ga ros a m en te s ob re m im . Es ta va m s orr in do. Ha via u m b r ilh o em s u a s fa ces . Seu s olh os refu lgia m , n ã o devido à m a con h a ou H, m a s devido a uma luz interior que resplandecia sobre mim.

“Sentia-m e em pou co ton ta , e pa recia qu e m in h a

cabeça girava como um pião.

“Glór ia a li es ta va , a o m eu la do; perceb i qu e ela es ta va a joelh a da n o m eu vôm ito. Virei a ca beça e ten tei chorar, mas só consegui vomitar.

“As m oça s reu n ira m -s e a o m eu redor , e ou vi-as ora r . Glór ia leva n tou -s e e s en t i s u a s m ã os s ob re m in h a ca beça . Um poder elet r iza n te, es p ir itu a l, a t ra ves s ou -me o corpo, qu a s e ergu en do-m e do s olo, flu in do de s u a s mãos delicadas para o meu corpo queimado.

“Ou vi m ú s ica . Algu m a s m oça s es ta va m ca n ta n do. Estremeci e vomitei de novo.

“Por fa vor , s erá qu e pos s o ir pa ra a ca m a ?” ga -guejei.

“Sen t i m ã os for tes s ob m eu s b ra ços , qu a n do u m a da s m oça s m e leva n tou e qu a s e m e ca r regou es ca d a a cim a . Ou vi o ru ído de á gu a corren te, e s en t i qu e es ta va m t ira n do m in h a rou pa . Eu es ta va doen te dem a is pa ra m e im por ta r . Pen s ei qu e ia m m e a foga r . Pen s ei qu e ta lvez fos s em u m gru po de lu n á t icos e p reten d ia m matar-me. Mas eu não estava ligando.

“Ela s m e coloca ra m ca r in h os a m en te s ob o ch u -veiro, e m e la va ra m . Foi a p r im eira vez em vá r ios m es es qu e tom ei u m ba n h o in teiro, e va leu a pen a . Aju da ra m a enxugar-m e, ves t ira m u m a com bin a çã o, e depois , levaram-m e pa ra u m a ca m a em u m gra n de qu a r to ch eio de outras camas.

“Dê-me um cigarro”, pedi a uma das moças.

“Nós n ã o fu m a m os a qu i, Ma r ia . Ma s tom e u m a ba la . Prove. Pen s o qu e a ju da rá você”, d is s e Glór ia . E la s s e reveza ra m , m a s s a gea n do m in h a s cos ta s . Ca da vez qu e eu ped ia u m ciga rro, Glór ia pu n h a ou tra ba la em minha boca.

“Fica ra m a o m eu la do du ra n te dois d ia s e du a s n oites . À n oite, eu a corda va t rem en do e via Glór ia a li, a o

la do de m in h a ca m a , len do a Bíb lia ou ora n do em voz alta. Não fiquei sozinha nem um instante.

“Foi n a terceira n oite qu e Glór ia m e con vidou : “Ma ria , qu ero qu e você des ça pa ra o cu lto n a ca pela.” Eu es ta va fra ca . Mu ito fra ca . Ma s des ci pa ra a ca pela , e sentei-me bem atrás.

“Naquela noite você pregou. Foi nessa noite que eu en trei n es te es cr itór io, a joelh ei-m e a qu i e a b r i m eu coração para o Senhor.”

Ma r ia pa rou de fa la r . Su a ca beça cu rva ra -s e pa ra a fren te e t in h a os olh os p rega dos n a Bíb lia qu e es ta va sobre a minha escrivaninha.

“Maria”, m u rm u rei s u a vem en te, “o Sen h or ou viu seu clamor?”

Ela olh ou pa ra m im : “Sim , Nicky. Nu n ca du videi d is to. Ma s qu a n do a n eces s ida de da d roga s e torn a for te dem a is , ten h o von ta de de ceder .” Um a lá gr im a correu -lhe pela face. “Con t in u e ora n do por m im . Com a a ju da de Deus, vou vencer agora.”

Capítulo 16

CCOOMM CCRR IISS TTOO NNOO HH AARR LLEE MM

DAVI VIAJ AVA A MAIOR pa r te do tem po, recru -ta n do ob reiros pa ra t ra ba lh a r du ra n te o verã o, e leva n ta n do d in h eiro pa ra o Cen tro. À m ed ida qu e o tem po pa s s a va , ele t in h a ca da vez m en os con ta to pes s oa l com os vicia dos , e des cobr iu qu e es ta va fazendo o pa pel d e a dm in is t ra dor — pa pel es s e qu e n ã o qu er ia assumir, mas que lhe fora imposto pelas circunstâncias.

A m a ior pa r te do n os s o t ra ba lh o era feito a t ravés dos cu ltos a o a r livre, e de en con tros ca s u a is n a ru a . Qu a s e toda s a s ta rdes a rm á va m os n os s a p la ta form a e n os s o s erviço de a lto-fa la n tes em a lgu m ba ir ro pobre da cidade.

Cer ta ta rde, Má r io e eu leva m os u m pequ en o gru po em n os s a Kom bi, a té o cora çã o do Ha r lem Es pa n h ol. Dis t r ibu ía m os folh etos , p rocu ra n do reu nir u m a m u lt idã o pa ra u m cu lto a o a r livre, m a s es tá va m os tendo pouco êxito.

Mário me disse: “Vou buscar gente.”

“Hoje n ã o dá ”, res pon d i. “Nin gu ém es tá in te-res s a do. Ach o qu e é m elh or des a rm a r tu do e ir pa ra casa.”

“Não”, d is s e Má r io, “n ós va m os con s egu ir gen te para ouvir. Você e os outros podem começar a colocar os alto-falantes nos lugares. Em menos de uma hora vamos ter o maior culto ao ar livre.”

“Ra pa z, com o é qu e você pen s a qu e va i rea liza r u m cu lto, s em gen te? Hoje eles n ã o es tã o m es m o interessados.”

“Não se preocupe. Deixe que eu resolvo isto”, disse Mário.

Rin do t im ida m en te, ele s a iu corren do ru a a ba ixo e virou a esquina.

Com eça m os a m on ta r o equ ipa m en to. Era u m a verda deira a ven tu ra de fé. Eu m e s en t ia com o Noé, con s tru in do a a rca n o a lto da m on ta n h a s eca . Ma s con t in u a m os a t ra ba lh a r , es pera n do qu e Deu s p ro-videnciasse a chuva.

E ele p roviden ciou . Qu in ze m in u tos depois h a -vía m os term in a do, e eu es ta va de volta à es qu in a . d is t r ibu in do folh etos , qu a n do vi u m en orm e gru po de ra pa zes corren do pela ru a , n a m in h a d ireçã o. Es ta va m

a gita n do porretes e ta cos de beis ebol, e gr ita va m com toda s a s força s . Virei m e e ia volta r pa ra a p la ta form a , quando vi novo grupo de rapazes vindo de outra direção, gr ita n do e a gita n do porretes. “Precis o ca ir fora da qu i”, pensei, “esses rapazes vão ter um “quebra-pau.” Mas era tarde demais! Fui rodeado pela turma que gritava e dava cotoveladas. Fiquei esperando pela briga.

De repen te, vi Má r io corren do por u m a t ra ves s a qu e h a via n o m eio do qu a r teirã o, gr ita n do a p len os pulmões: “Ei tu rm a , o ch efe da ter r ível qu a dr ilh a d os Mau-Ma u s , de Brook lin , va i fa la r den tro de qu in ze m in u tos . Ven h a m ou vi-lo. Ven h a m ou vir o gra n de Nicky Cru z, o s u jeito m a is per igos o de Brook lin . Ven h a m preparados. Ele é um matador, e ainda é perigoso.”

Os ra pa zes derra m a va m -s e dos a pa r ta m en tos , des cen do pela s es ca da s de em ergên cia , e corren do em m in h a d ireçã o. En xa m ea va m a o m eu redor , e gr ita va m : “On de es tá o Nicky? Qu ero vê-lo. On de es tá o ch efe dos Mau-Maus?”

Má r io ch egou , com u m s orr is o qu e ia a té a s orelhas. “Você viu ? Eu d is s e qu e con s egu ir ia u m a multidão.”

Olh a m os a o n os s o redor . Ele h a via reu n ido u m a turba de tamanho respeitável. Devia haver uns trezentos rapazes rodeando-nos, no meio da rua.

Ba la n cei a ca beça . “Só es pero qu e n ã o s eja m os todos mortos. Puxa, esses rapazes parecem terríveis .”

Má r io a in da es ta va r in do, ofega n te, por ca u s a da corrida. “Va m os , p rega dor , s u a con grega çã o es tá esperando.”

O s u or es corr ia -lh e pelo ros to, m a s ele t repou a té a p la ta form a , a ga rrou o m icrofon e e leva n tou a m ã o, ped in do s ilên cio. Os ra pa zes ou vira m -n o fa la r , à s em elh a n ça de u m ca m elô de feira , “enrolando” o auditório antes de apresentar o show.

“Sen h ores e s en h ora s . Hoje é u m gra n de d ia . O chefe da terrível e famosa quadrilha Mau-Mau vai falar a vocês ... O h om em m a is per igos o de Nova York . Ele é tem ido ta n to por m oços com o por velh os . Só qu e a gora n ã o é m a is o ch efe. É ex-ch efe. Es ta ta rde va i con ta r -lh es porqu e n ã o es tá m a is n a ga n g, e porqu e es tá a s s ocia do a J es u s . Apres en to a vocês NICKY CRUZ, o primeiro e único, ex-chefe dos Mau-Maus.”

Es ta va gr ita n do qu a n do term in ou . Pu lei pa ra a plataforma, ficando por trás do microfone. Os garotos na m u lt idã o com eça ra m a gr ita r e ba ter p a lm a s . Fiqu ei d e pé n a p la ta form a , s or r in do e a cen a n do com a m ã o, en qu a n to eles a p la u d ia m . Mu itos deles m e con h ecia m ou h a via m lido a m eu res peito n os jorn a is . Cerca de du zen tos a du ltos t inham-s e reu n ido por t rá s da m u lt idã o de a doles cen tes . Dois ca r ros da polícia pararam, um de cada lado do povo.

Leva n tei os b ra ços . Os gr itos , a s s ob ios e a p la u sos diminuíram. Em um instante a turba estava silenciosa.

Senti-m e for tem en te u n gido pelo Es p ír ito Sa n to, qu a n do com ecei a p rega r . As pa la vra s s a íra m livre-m en te, s em d ificu lda de. “Eu era o ch efe dos Ma u -Maus. Es tou perceben do qu e vocês já ou vira m fa la r de m im .” Ou tra vez a m u lt idã o ir rom peu em a p la u sos es pon tâ n eos . Leva n tei os b ra ços , e ped i s ilên cio. “Quero contar-lh es porqu e s ou ex-ch efe dos Ma u -Ma u s . Sou ex-ch efe porqu e J es u s t ra n s form ou m eu cora çã o! Um d ia , em u m a reu n iã o de ru a exa ta m en te igu a l a es ta , ou vi u m p rega dor fa la r de a lgu ém qu e p od ia t ra n s form a r minha vida . Ele m e d is s e qu e J es u s m e a m a va . Eu n ã o s a b ia qu em era J es u s , e s a b ia qu e n in gu ém m e a m a va . Ma s Da vi Wilkers on d is s e qu e J es u s m e a m a va . Agora a m in h a vida es tá m u da da . Eu m e en tregu ei a Deu s , e ele m e deu u m a n ova vida . Eu era igu a l a vocês : vivia cor-ren do pela s ru a s . Dorm ia n os telh a dos . Fu i expu ls o da escola por causa de briga. A polícia estava atrás de mim,

e fu i p res o m u ita s vezes , e m u ita s vezes d orm i n a ca deia . Eu es ta va com m edo. Ma s , en tã o, J es u s t ra n s form ou m in h a vida . Ele m e deu u m a lvo pa ra o qu a l eu a gora vivo. Ele m e deu es pera n ça . Ele m e deu u m n ovo ob jet ivo n a vida . Eu n ã o fu m o m a is m a con h a , n em b r igo, n em m a to. Nã o fico m a is a corda do de n oite, com m edo. Nã o ten h o m a is pes a delos . Agora a s pes s oa s con vers a m com igo qu a n do eu pa s s o. A polícia m e res peita . Es tou ca s a do, e ten h o u m a filh in h a . Porém , o qu e é m a is im por ta n te de tu d o, s ou feliz e n ã o vivo m a is fugindo de tudo e de todos.”

A m u lt idã o es ta va s ilen cios a e a ten ta . Term in ei a m en s a gem e fiz u m a pelo p a ra os qu e qu er ia m a ceita r a Cristo.

Vin te e dois a ten dera m a o a pelo, e a joelh a ra m -se defronte à multidão, enquanto eu orava.

Term in ei a ora çã o, e leva n tei os olh os . Os policiais t in h a m s a ído dos ca r ros , e es ta va m de pé, com os qu epes n a m ã o, e a s ca beça s cu rva da s . Virei o ros to para o céu. O sol brilhava no Harlem...

O Ha r lem Es pa n h ol torn ou -s e n os s o lu ga r p re-d ileto pa ra cu ltos a o a r livre. Pa recia qu e a li éra m os ca pa zes d e a t ra ir m u lt idões m a iores , e a n eces s ida de do eva n gelh o era m a is a pa ren te do qu e em qu a lqu er ou tro lu ga r em qu e h a vía m os p rega do. Eu n ã o m e ca n s a va de lem bra r à n os s a equ ipe qu e “on de a bu n dou o peca do, superabundou a graça”.

Glór ia teve d ificu lda des em a ceita r o Ha r lem Es pa n h ol. E la n ã o con s egu ia a cos tu m a r-s e com o ch eiro. Procu ra va n ã o a gir de form a a n t ipá t ica , m a s a lgu m a s da s feira s livres era m qu a s e dem a is pa ra o s eu es tôm a go. Até pa ra m im , era d ifícil a cos tu mar-m e com a s m os ca s qu e en xa m ea va m s obre a ca rn e, a s fru ta s e vegetais.

Além d is to, h a via o ch eiro dos vicia dos . Pa reciam

des p ren der u m m a u ch eiro. E qu a n do a gru pados, p r in cipa lm en te s ob o ca lor do verã o, era qu a s e insuportável ficar perto deles.

Apren dem os m u ito du ra n te a qu eles p r im eiros m es es de p rega çã o n a s ru a s . Apren dem os qu e a s pes s oa s qu e t in h a m m a is êxito era m a s qu e h a via m s a ído da s ru a s , e pod ia m a p res en ta r u m tes tem u n h o d e p r im eira m ã o a res peito do poder t ra n s form a dor de J es u s Cr is to. Eu n ã o t in h a ta n to êxito, a o p rega r pa ra vicia dos em en torpecen tes qu a n to os qu e t in h a m s ido vicia dos . Des cobr im os qu e es s es era m n os s os m elh ores pregadores. Seu s tes tem u n h os , h on es tos e m in u cios os , ca u s a va m u m im pa cto t rem en do n os ou tros vicia dos . Com eça m os a levá -los con os co s em pre qu e ía m os p rega r nas ruas. Contudo, isto também trouxe problemas.

Mu ita s vezes , du ra n te os cu ltos de p rega çã o n a s ru a s , os vicia dos qu e s e a glom era va m p rocu ra va m ten ta r e p rovoca r n os s os a u xilia res . Acen d ia m u m “pacau” em fren te deles , e delibera da m en te s op ra va m a fu m a ça em s eu s ros tos . Ch egu ei a ver u m h om em t ira r u m a a gu lh a e u m pa cote de h eroín a , e a gitá -los n a ca ra de u m de n os s os ob reiros qu e s e livra ra da s d roga s , dizendo: “Ei, menino, não sente falta disto? Rapaz, isto é qu e é vid a . Precis a experimentar.” A ten ta çã o era qu a s e ir res is t ível, m a s a qu ela s vida s es ta va m p rotegida s pelo escudo da força de Deus.

Des cobr i qu e Ma r ia , pa r t icu la rm en te, n ã o t in h a a ca n h a m en to de leva n ta r -s e d ia n te d e u m gru po dos s eu s a n t igos colega s , p ros t itu ta s e vicia dos , e da r tes tem u n h o da gra ça de Deu s . O s eu tes tem u n h o s im ples levou , vá r ia s vezes , os ou vin tes a té à s lágrimas, qu a n do fa la va de u m Deu s qu e é u m a m igo ín t im o e pes s oa l. Um Deu s qu e, n a pes s oa do s eu filh o J es u s Cr is to, pa lm ilh ou a s du ra s es t ra da s da Pa les t in a , toca n do n os peca dos do p ovo e lib er ta n do-o deles . A m a ior pa r te da qu ela gen te ja m a is s ou bera da exis tên cia

de u m Deu s a s s im . O Deu s de qu em ou via m fa la r , s e é que conheciam algum, era um juiz severo que abomina o peca do e fu s t iga a s pes s oa s , coloca n do-a s n a lin h a , com o u m policia l. Ou , ta lvez, iden t ifica va m Deu s com a s igreja s fr ia s e form a is qu e t ivera m opor tu n ida de de observar.

Cer to d ia , u m ex-m em bro de qu a dr ilh a , u m jovem de cor qu e fora vicia do em h eroín a , es ta va da n d o tes tem u n h o a res p eito da s u a in fâ n cia . Con tou qu e fora ob r iga do a fu gir d e ca s a a os t reze a n os , porqu e o a pa r ta m en to era m u ito a per ta do. Fa lou dos d iversos h om en s qu e vivera m com s u a m ã e. Con tou com o dorm ira n os telh a dos e n o m etrô. Afirm ou qu e p recis a ra s u rru p ia r com ida , m en d iga r e rou ba r . E le n ã o t in h a ca s a de es pécie a lgu m a , e u s a va os telh a dos ou ru ela s com o la t r in a . Es ta va viven do com o u m a n im a l selvagem, na selva das ruas.

En qu a n to fa la va , u m a velh a s en h ora , n a ext re-m ida de da m u lt idã o, com eçou a ch ora r . Seu ch oro tornou-s e qu a s e h is tér ico, e eu rodeei o povo pa ra ch ega r a té ela . Qu a n do con s egu iu dom in a r-s e, ela m e d is s e qu e a qu ele ra pa z poder ia s er s eu filh o. Ela t ivera cin co filh os qu e h a via m a ba n don a do o la r , e vivia m exa ta m en te con form e a des cr içã o dele, n a s ru a s da cida de. O s eu s en t im en to de cu lpa era m a ior do qu e pod ia s u por ta r . Reu n im o-n os a o s eu redor , e ora m os a s eu fa vor . E la levou a ca beça pa ra t rá s e olh ou pa ra os céu s , ped in do qu e Deu s a perdoa s s e e p roteges s e s eu s filh os , on de qu er qu e eles es t ives s em . A pobre m u lh er en con trou pa z ju n to a Deu s n a qu ela ta rde, m a s o da n o ca u s a do a os filh os já es ta va feito. Em m ilh a res de ou tros ca s os , ocorr ia o m es m o. Sen t ía m os com o s e estivés s em os p rocu ra n do es va zia r o ocea n o com u m a colh er de ch á . Nã o obs ta n te, s a b ía m os qu e Deu s n ã o es pera va qu e ga n h á s s em os o m u n do — a pen a s qu e testificássemos e fôssemos fiéis. E esse era o nosso alvo.

Na qu in ta -feira , ta rde da n oite, p repa ra m os u m cu lto a o a r livre n a es qu in a de u m a es cola , n o Ha r lem Es pa n h ol. O verã o es ta va qu en te, e u m a gra n de m u lt idã o reu n iu -s e pa ra ou vir os a legres cor in h os em es pa n h ol, e a m ú s ica eva n gélica de r itm o a celera do qu e fluía de nossos alto-falantes.

A m u lt idã o es ta va in qu ieta e n ervos a . Qu a n do a m ú s ica ch egou a u m r itm o m a is a celera do, a lgu n s de n os s os ra pa zes e m oça s coloca ra m -s e defron te a o m icrofon e e com eça ra m a ca n ta r , ba ter p a lm a s , e m a rca r o r itm o. A u m la do, toda via , eu n otei u m a per tu rba çã o. Um gru po de “pequenos” es ta va da n çando a o s om da m ú s ica . Era m cerca de cin co ou s eis “pequenos”, gin ga n do em p len a ru a , ba m bolea n do a s ca deira s e s a pa tea n do. Algu m a s pes s oa s t ivera m s u a a ten çã o des via da pa ra eles e com eça ra m a a p laudi-los, r in do e ba ten do pa lm a s com eles , a com pa n h a n do o r itm o. Deixei o lu ga r on de es ta va , e rodeei o povo, em d ireçã o a o gru po. “Ei, m en in os , por qu e vocês es tã o dançando aqui? Aqui é território de Jesus!”

Um deles d is s e: “Aqu ele h om em lá pa gou pa ra n ós da n ça rm os . Veja , ele n os deu dez cen ta vos .” Apon ta ra m pa ra u m m oço m a gro, de cerca de vin te e oito a n os de idade, que estava na extremidade da multidão. Dirigi-me a ele pa ra con vers a r . E le viu qu e eu m e a p roxim a va e começou a saracotear, no ritmo da música.

Procu rei fa la r com ele, m a s con t in u ou da n ça n do, s a pa tea n do, e s a cu d in do a s ca deira s , d izen do: “Meu chapa, isso é música pra frente, cha-cha-cha.”

Gira va em torn o de s i m es m o, e ba t ia com a s m ã os n os qu a dr is . Ca n ta va s a cu d in do a s ca deira s e a cabeça com o u m lou co: “Bi-bop , ch a -cha-ch a ... du m -di-dum-dum... dança, meu chapa, dança.”

Fin a lm en te con s egu i s u a a ten çã o: “Ei, ca ra , qu ero perguntar-lhe uma coisa.”

Ele con t in u ou da m es m a form a , da n ça n do n o r itm o da m ú s ica : “Sim , pa izin h o, o qu e é qu e você qu er? O qu e é qu e você qu er?... Bi-bop , d i-dum-du m ... o qu e é que você quer?”

Eu d is s e: “Você deu d in h eiro à qu eles ga rotos pa ra qu e eles da n ça s s em e a t ra pa lh a s s em n os s a reu n iã o?” Minha paciência estava começando a acabar.

Gira n do a in da , res pon deu : “É is s o m es m o, m eu ch a pa ; você es tá fa la n do com o ca ra cer to. Sou o h om em ... da -da-di-da...” Da va es ta los com a lín gu a e s a pa tea va , leva n ta n do os p és à s u a fren te, en quanto girava.

Pen s ei qu e ele es t ives s e lou co. “Por qu ê?” gr itei-lhe. “O que há de errado com você, afinal?”

“Porqu e n ã o gos ta m os de vocês . Nã o gos ta m os de cren tes . Nã o. Nã o. Nã o. Nã o gos ta m os de cren tes . Da -da-dum-di-dum.”

Perd i a ca lm a . “Pois bem , s eu ”, d is s e, cer ra n do os pu n h os e a va n ça n do pa ra ele, “va m os con t in u a r es te cu lto, e você va i ca la r a boca , ou en tã o eu vou lh e da r uma surra, e você vai ficar quieto a força.”

Ele viu qu e eu fa la va s ér io, m a s s eu orgu lh o n ã o lh e perm it ia a ca ba r com a b r in ca deira im ed ia tamente. Pôs a m ã o n a boca fin gin do s u rp res a , e a r rega lou os olhos, fingindo terror. Mas parou de dançar e calou-se.

Voltei a o m icrofon e e p regu ei n a qu ela ta rde a res peito da s m in h a s exper iên cia s de a doles cen te em Nova York . Tes t ifiqu ei a res peito da s u jeira , da p obreza , da vergon h a e do peca do qu e exis t ira m em m in h a vida . Em s egu ida , p regu ei s ob re a cu lpa dos pa is qu e perm item qu e s eu s filh os cres ça m em ta l peca do. Roguei-lhes que dessem um bom exemplo para os filhos.

En qu a n to eu fa la va , a lgu n s t ira ra m o ch a péu . Es te é u m dos m elh ores s in a is de reverên cia e respeito.

Notei lá gr im a s n os olh os de m u ita s pes s oa s , e vi a lgu n s len ços a pa recerem . Perceb i qu e o Es p ír ito e o poder de Cr is to es ta va m opera n do de m a n eira es pecia l, m a s n ã o p revi o im pa cto qu e ele p rodu zir ia a lgu n s m om en tos depois.

En qu a n to p rega va , n otei u m velh o, cla ra m en te em bria ga do, ch ora n do n o m eio de todo a qu ele povo. Um a m ocin h a , qu e es ta va n a fren te, es con deu a fa ce n a s m ã os e a joelh ou -s e n a ru a , com os joelh os n u s s ob re o pa vim en to du ro e s u jo. Um a de n os s a s a u xilia res deixou o gru po e a joelh ou -s e a o la do da m en in a , ora n do com ela . Qu a n to a m im , con t in u ei a pregar.

Era eviden te qu e o poder do Es p ír ito de Deu s es ta va n a qu ela reu n iã o. Qu a n do term in ei a p rega çã o e fiz o a p elo, n otei u m vicia do em n a rcót icos , n a extrem ida de da m u lt idã o, em gra n de a gon ia es p ir itu a l . E le en fiou a m ã o n o bols o da ca m is a , t irou vá r ios pacotinhos, e atirou-os na rua, aos seus pés. Começou a gr ita r , s a pa tea n do n os pequ en os en velopes b ra n cos . “Maldito, pó imundo. Você arruinou a minha vida. Levou m in h a es pos a em bora . Ma tou m eu s filh os . Ma n dou m inha alma para o inferno. Maldito! Maldito!”

Ca iu de joelh os n o ch ã o, ch ora n do e ba la n çando-s e pa ra a fren te e pa ra t rá s , com o ros to n a s m ã os . Um de n os s os ob reiros correu p a ra o la d o dele. Dois dos n os s os ex-vicia dos rodea ra m -n o, u m com a m ã o s obre a sua ca beça , e o ou tro a joelh a do, todos ora n do em voz alta enquanto ele gritava pedindo perdão.

Oito ou n ove vicia dos em en torpecen tes viera m à fren te e a joelh a ra m -s e n a ru a , d ia n te do m icrofon e. Fu i de um para o outro impondo as mãos em suas cabeças e orando por eles , com pleta m en te es qu ecido do ba ru lh o do t râ n s ito in ten s o e dos olh a res dos t ra n s eu n tes curiosos.

Depois do culto, demos uma palavra em particular

a cada um dos que haviam aceitado a Cristo, e falamos a res peito do Cen tro. Nós os con vida m os pa ra m ora r con os co, en qu a n to s e livra va m do vício. Sem pre h a via a lgu n s qu e s e d is pu n h a m a n os s egu ir im ed ia ta m en te. Ou tros h es ita va m e recu s a va m -s e. Ou tros a pa recia m den tro de u m a s em a n a ou m a is , e ped ia m pa ra s erem admitidos.

Qu a n do a m u lt idã o s e d is s olveu , reu n im os n os s o equ ipa m en to e com eça m os a gu a rdá -lo n a Kom bi. Um dos m en in os qu e es t ivera da n ça n do n a ru a , com eçou a pu xa r a m a n ga do m eu pa letó. Pergu n tei-lh e o qu e qu er ia , e ele d is s e qu e o “dançador” qu er ia fa la r com igo. Perguntei-lh e on de es ta va o h om em , e ele a pon tou pa ra um beco escuro, do outro lado da rua.

A n oite já ca íra , e eu n ã o s en t ia von ta de de en tra r n u m beco es cu ro on de s e es con d ia u m lou co. Dis s e a o ga roto pa ra a vis a r a o h om em qu e eu ter ia p ra zer em conversar com ele — ali, debaixo das luzes da rua.

O ga roto s a iu corren do, e voltou den tro de in s -ta n tes . J á h a vía m os qu a s e term in a do de des m on ta r n os s o equ ipa m en to. Ele ba la n çou a ca beça e d is s e qu e o h om em precis a va con vers a r com igo, m a s es ta va m u ito envergonhado para encontrar-me no claro.

Com ecei a d izer a o ga roto: “Na da feito”, m a s , repen t in a m en te, lem brei-m e de Da vi Wilkers on procurando-m e n o porã o on de eu fora es con der-me, depois do primeiro culto ao ar livre. Lembrei-me de como ele en trou s em m edo e d is s e: “Nicky, J es u s a m a você”. Aquela cora gem e com pa ixã o m e leva ra m a a ceita r a Cristo como meu salvador.

As s im , olh a n do pa ra o céu es cu ro, d is s e a o Se-n h or qu e, s e ele qu er ia qu e eu fos s e con vers a r com aquele “dançador” s elva gem , fa r ia a s u a von ta de. Ma s ia no seu Espírito, e não em minha própr ia força e poder , e es ta va es pera n do qu e ele fos s e a d ia n te de m im — principalmente por ser naquela ruela escura.

Atra ves s ei a ru a e pa rei n a en tra da do beco. Era com o a en tra da de u m tú m u lo. Mu rm u rei u m a ora çã o: “Sen h or , es pero qu e ten h a s en tra do a qu i a n tes d e m im ”, e en trei. Apa lpa n do a s pa redes de a lven a r ia , m ergu lh ei na escuridão.

Ou vi en tã o o s om a m ortecido de a lgu ém s olu -ça n do. Ava n cei, e n a pen u m bra pu de ver o h om em a ga ch a do n o m eio de a lgu m a s la ta s de lixo m a l-ch eiros a s . Tin h a a ca beça en tre a s pern a s e o s eu corpo era s a cu d ido por s olu ços con vu ls ivos . Aproximei-m e e ajoelhei-m e a s eu la do. O ch eiro ra n ços o da s la ta s de lixo era in s u por tá vel. Ma s h a via a li u m s er h u m a n o em des es pero, e o des ejo de a ju dá -lo foi m a ior do qu e a podridão reinante no beco.

“Ajude-me. Por favor, ajude me”, soluçava ele. “Li a s eu res peito n o jorn a l. Ou vi fa la r qu e você s e con ver teu e foi pa ra a Es cola Bíb lica . Por fa vor , a ju de-me.”

Nã o pod ia crer qu e a qu ele era o m es m o h om em qu e a pen a s a lgu n s m in u tos a n tes es ta va da n ça n do e ca n ta n do n a ru a , p rocu ra n do a t ra pa lh a r n os s a reu n iã o. “Será qu e Deu s m e perdoa ? Diga -m e, s erá qu e eu m e d is ta n ciei dem a is d ele? Será qu e ele m e perdoa ? Por favor, ajude-me.”

Disse-lh e qu e Deu s o perdoa r ia . Eu s a b ia . Ele h a via m e perdoa do. Fiz a lgu m a s pergu n ta s a res peito de s u a vida . Con tou -m e s u a h is tór ia , en qu a n to perm a n ecia ajoelhado ali, em meio à sujeira do beco.

Há m u ito tem po a t rá s , ele s en t ira qu e Deu s o estava chamando para o ministério. Deixara o emprego e s e m a tr icu la ra em u m a es cola b íb lica pa ra es tu da r , p repa ra n do s e pa ra o s erviço do Sen h or . Volta n do a Nova York , porém , en con trou u m a m u lh er qu e o s edu ziu , a fa s ta n do-o de s u a es pos a . Es ta , com s eu s dois filh os , im p lorou -lh e qu e n ã o os a ba n d on a s s e. Lembrou-lh e os votos feitos a Deu s , e os votos do

ca s a m en to, m a s ele es ta va pos s es s o de u m dem ôn io: deixou a es pos a e foi m ora r com a ou tra m u lh er . Dois m es es depois es ta o deixou d izen do qu e es ta va ca n s a da dele e qu e s u a com pa n h ia já n ã o lh e a gra da va . Ficou des es pera do, e ca iu n o vício, fu m a n do m a con h a e tomando “bolinhas”. Pergu n tei-lh e qu e t ipo de com prim ido es ta va tom a n do, e res pon deu qu e era m “bombitas”, n em bies , tu in a l e s econ a l (ba rb itú r icos ). Sen t ia qu e es ta va fica n do lou co. “Eu es ta va ten ta n d o a fa s ta r você”, gem eu ele. “Foi por is to qu e a gi da qu ela form a n o m eio da ru a . Es ta va com m edo. Medo de Deu s e m edo de en fren tá -lo. Qu ero volta r pa ra Deu s . Qu ero volta r pa ra m in h a es pos a e m eu s filh os , m a s n ã o s ei com o. Você pode ora r por m im ?” Leva n tou a ca b eça , e vi seus olhos cheios de angústia e culpa, pedindo ajuda.

Ajudei-o a leva n ta r -s e e s a ím os do beco, a t ra -ves s a m os a ru a e en tra m os n a Kom bi. Éra m os s eis . E le sentou-s e n o ba n co do m eio, com a ca beça en costada n a s cos ta s do ba n co à s u a fren te. Com eça m os a ora r por ele, todos em voz alta. Ele também começou a orar. De repen te, perceb i qu e es ta va cita n do vers ícu los d a Bíblia. Do fundo da sua memória, e do seu treinamento n o In s t itu to Bíb lico, es ta va m -s e derra m a n do a s pa la vra s do Sa lm o 51 — o s a lm o qu e o Rei Da vi p ron u n ciou depois de ter com et ido a du ltér io com Ba te-Seba, en via n do o m a r ido dela pa ra a fren te de ba ta lh a . J a m a is s en t ira o poder de Deu s tã o p róxim o de m im , com o qu a n do a qu ele ex-m in is t ro, qu e s e t in h a torn a do s ervo de Sa ta n á s , recebeu o Es p ír ito de Cr is to e repet iu chora n do a s u a con fis s ã o, ped in do perdã o n a s p a la vra s das Santas Escrituras:

“Compadece-te de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade; e, segundo a multidão das tuas m is ericórd ias , apaga as m inh as tran s gressões .

Lava-m e com ple tam en te d a m inh a iniqüidade, e purifica-me do meu pecado.

Pois eu conheço as minhas transgressões, e o meu pecad o es tá s em pre d ian te d e m im .

Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mal perante os teus olhos, de maneira que serás tido por justo no teu falar, e puro no teu julgar.

Eu nasci na iniqüidade, e em pecado me concebeu minha mãe.

Eis que te comprazes na verdade no íntimo, e no recôndito me fazes conhecer a sabedoria.

Purifica-me com hissopo, e ficarei limpo; lava-me, e ficarei mais alvo que a neve.

Faze-m e ouvir júbilo e alegria, para que exu ltem os os s os que esmagaste.

Esconde o teu rosto dos meus pecados, e apaga todas as minhas iniqüidades.

Cria em mim, ó Deus, um coração puro, renova dentro de m im u m es pírito in abalável.

Não me repulses da tua presença, nem me retires o teu Santo Espírito.

Res titu i-m e a alegria d a tu a s a lvação, e s u s ten ta-me com u m es pírito volun tário.

Então ensinarei aos transgressores os teus caminhos, e os pecadores se converterão a ti.

Livra-me dos crimes de sangue, ó Deus, Deus da minha salvação, e a minha língua exaltará a tua justiça.”

E le term in ou a ora çã o. A Kom bi es ta va em s ilên cio. En tã o Glór ia leva n tou a voz — bela , s u a ve — terminando as palavras do salmo:

“Sacrifícios agradáveis a Deus são o espírito

quebran tad o; coração com pun gid o e con trito n ão o desprezarás, ó Deus.”

Levantamo-n os todos . Ele en xu gou o ros to com o len ço, e a s s oou o n a r iz. Nós ou tros ta m bém es távamos fungando e limpando os olhos.

Virou-se então para mim: “Dei meu último centavo pa ra a qu eles m en in os m a lu cos da n ça rem n a ru a . Será qu e você pode m e da r vin te cen ta vos pa ra eu telefon a r para minha esposa e pegar o metrô? Vou para casa.”

Tín h a m os es ta belecido a p ra xe de n u n ca da r d i-n h eiro a vicia dos em n a rcót icos ou bêbedos . Sa b íamos qu e qu a s e s em exceçã o, o d in h eiro s er ia ga s to em en torpecen tes ou beb ida . Ma s a qu ela era u m a exceçã o. En fiei a m ã o n o bols o e t irei o m eu ú lt im o dóla r . E le pegou a n ota , e a t irou -s e a o m eu pes coço, com o ros to a in da m olh a do de lá gr im a s . Depois , a p roxim ou -s e de cada um dos outros e também abraçou-os.

“Terão notícias minhas”, disse ele, “eu voltarei.”

E voltou m es m o. Dois d ia s depois . Levou s u a es pos a e os dois filh os a o Cen tro, pa ra qu e os co-n h ecês s em os . Su a fis ion om ia es ta va ra d ia n te; t in h a u m b r ilh o qu e ja m a is poder ia s er p rodu zido por d roga s ou comprimidos. Era a luz do Senhor.

Capítulo 17

NNOO VVAALLEE DD AASS SS OOMMBB RR AASS

É QUASE IMPOSSÍVEL coloca r qu a ren ta vicia dos em tóxicos deba ixo do m es m o teto, e n ã o ter p roblemas

— prin cipa lm en te s e s u pervis ion a dos por pes s oa l inexperiente. A ú n ica cois a qu e im ped ia a orga n iza çã o do Cen tro Des a fio J ovem de exp lod ir era o Es p ír ito Sa n to. Es tá va m os s en ta dos n u m ba rr il de pólvora , e qu a lqu er u m de n ós pod ia a cen der o pa vio n a m en te de a lgu m ps icopa ta , e fa zer-n os ir todos pelos a res , ca in do n o es qu ecim en to. A ú n ica es pera n ça era con s erva r-nos tão perto de Deus quanto possível.

A m a ior ia da qu eles h om en s e m u lh eres era perita n a a r te de en ga n a r , torn a n do-s e a s s im d ifícil d is t in gu ir qu em era a u tên t ico e qu em era fa ls o. Ga n h a va m a vida con ta n do m en t ira s . Nós con fiá va m os n a qu ela s pes s oa s tanto quanto podíamos.

Eu era in t ra n s igen te qu a n to à d is cip lin a , e logo des cobr i qu e a m a ior pa r te deles n ã o s e res s en t ia s e fôs s em os ju s tos e ra zoá veis . De fa to a poia va m -s e n a disciplina, porque lhes dava uma base firme de operação — u m s ólido s en t im en to de pa r t icipa çã o. Con tu do, eu sabia que nem todos tinham este sentimento.

Da vi con corda va com a m in h a filos ofia . Porém a des a gra dá vel res pon s a b ilida de de p recis a r rep reen der a toda h ora os delin qü en tes com eçou a pes a r dem a is s ob re os m eu s om bros . Mu ita s vezes p recis a va s a ir d a ca m a , n o m eio da n oite, pa ra res olver u m a qu erela , ou a té m es m o, a lgu m a s vezes , pa ra m a n da r a lgu ém embora, por ter quebrado as regras.

Gra n de pa r te da s d ecis ões m a is im por ta n tes ca b ia a m im , e p recis á va m os a u m en ta r o n os s o qu a dro d e cola bora dores , a m a ior ia dos qu a is a ca ba va de s a ir da u n ivers ida de. Com ecei a s en t ir p rofu n da m en te m in h a fa lta de p repa ro, e a p erceber a m in h a p rópr ia in s egu ra n ça . Eu pou co ou n a da s a b ia a res peito de processos a dm in is t ra t ivos , e a in da m en os a res peito dos a s pectos ps icológicos da s rela ções pes s oa is n eces s á r ia s pa ra m a n ter a com u n ica çã o, e pa ra m e rela cion a r com os ou tros m em bros da equ ipe. Pod ia perceber in veja da

pa r te de a lgu n s dos qu e t ra ba lh a va m s ob m in h a d ireçã o, e com ecei a n ota r u m es t rem ecim en to gra du a l em nossas relações.

Qu a n do Da vi pa s s a va pelo Cen tro, eu ten ta va exp lica r qu e t in h a p rob lem a s gra n des dem a is pa ra m im , m a s ele s em pre m e d izia : “Você s a berá res olvê-los, Nicky. Tenho grande confiança na sua capacidade.”

Os problemas, porém, continuaram a acumular-se com o n u ven s n egra s n o h or izon te, a n tes de u m a tempestade.

No ou ton o, fu i com Da vi a té Pit ts bu rg, pa ra fa la r n a cru za d a de Ka th ryn Ku h lm a n . O m in is tér io da Sr ta . Ku h lm a n é u m dos m a is a ben çoa dos pelo Es p ír ito em todo o m u n do. Su a ob ra , a t ra vés da Fu n da çã o Ka th ryn Kuhlman, alcança todas as partes do globo Ela visitara o Cen tro Des a fio J ovem , dem on s tra n do u m in teres s e es pecia l pelo m eu t ra ba lh o. Eu lh e h a via m os tra do a cida de e a s fa vela s . “Agradeço a Deu s p or ter t ira do você des tes cor t iços ”, d is s e-m e ela . “Se u m d ia t iver u m p ro-blema grande demais para resolver, pode me telefonar .”

Pen s ei qu e devia ten ta r fa la r com ela , en qu a n to es t ives s e em Pit ts bu rg, porqu e m eu cora çã o es ta va ca da vez m a is pes a do. Con tu do, fu i leva do pela gra n d ios ida de do p rogra m a . Na qu ela n oite, fa la n do a t ra vés do m eu a m igo J eff Mora les , qu e m e a com pa n h a ra com o in térp rete, dei m eu tes tem u n h o pera n te m ilh a res de pes s oa s , n o gra n de a u d itór io. Depois do cu lto, ja n ta m os em u m pequ en o res ta u ra n te, m a s , a té en tã o, n ã o t ivera oportunidade de falar a sós com a Srta. Kuhlman. Deixei a s s im Pit ts bu rg, a in da m a is fru s t ra do com m in h a incapacidade de resolver meus problemas pessoais.

Em ja n eiro de 196 4 , o t ra b a lh o h a via cres cido muito e já não podíamos conservar as mulheres alojadas n o terceiro a n da r do ca s a rã o da Av. Clin ton , 416 . Fizem os n egocia ções pa ra a r ra n ja r u m a ca s a do ou tro la do da ru a , pa ra a com oda r a s m u lh eres . Eu já

percebera a lgu m a s con s p ira ções , lidera da s por a lguns vicia dos qu e m e vira ob r iga d o a d is cip lin a r . Além d is to, t ín h a m os receb ido vá r ia s lés b ica s n o Cen tro, qu e es ta va m ca u s a n do gra n des p rob lem a s . Eu tem ia con s ta n tem en te qu e qu a lqu er dela s ten ta s s e s edu zir a lgu m a da s es tu da n tes in exper ien tes qu e n os a ju da va m como conselheiras.

Cu ida r de vicia dos era com o ten ta r a pa ga r u m in -cên d io n a flores ta com u m a toa lh a de ba n h o m olh ada. Ca da vez qu e eu con s egu ia con trola r u m pequ en o p rob lem a , ou tro m a ior s u rgia . Perceb i qu e es ta va m e deixa n do en volver pes s oa lm en te, e qu a n do u m viciado em n a rcót icos voltou pa ra o m u n do, tom ei a qu ilo com o fracasso pessoal.

Glór ia a dver t iu -m e s obre o er ro de leva r todo o pes o s ozin h o, m a s a res pon s a b ilida de pes a va gra n de-mente em meus ombros.

Foi n es s a época qu e Qu et ta ch egou a o Cen tro. Fazia o pa pel de “homem” e fora cer ta vez “casada” com outra moça.

Ves t ia rou pa s de h om em , ca lça s , ca m is a , s a pa tos e a té s u a rou pa de ba ixo era m a s cu lin a . Tin h a pou co m a is de t r in ta a n os , era don a de u m a bon ita pele e com ca belos m u itos n egros cor ta dos com o de h om em . Era u m a ga rota m a gra , es belta e a t ra en te, com personalidade marcante.

Qu et ta era u m a da s m a iores t ra fica n tes de n a r-cót ico da cida de. Du ra n te a n os d ir igira u m a “ga ler ia de picadas” n o s eu a pa r ta m en to. Hom en s e m u lh eres ia m a li, n ã o s ó pa ra com pra r h eroín a , m a s ta m bém pa ra pa r t icipa r de orgia s s exu a is . E la forn ecia tu do o qu e era n eces s á r io: a gu lh a s , recip ien tes pa ra ferver a d roga , h eroín a , com prim idos , e pa ra os s exualmente depra va dos : h om en s e m u lh eres . Era u m a s itu a çã o confusa.

Qu a n do a polícia deu u m a ba t ida n o a pa r ta m en to de Qu et ta , p ren deu doze pes s oa s , in clu s ive a lgu mas pros t itu ta s p rofis s ion a is , e des cobr iu dez “apetrechos” (colh eres , a gu lh a s , e con ta -gota s ). Os policiais dem olira m litera lm en te o a pa r ta m en to, a r ra n ca n do o reboco da s pa redes , leva n ta n do a s tá bu a s do a s s oa lh o, etc., a té des cobr ir o s eu es con der ijo de d roga s , qu e va lia milhares de dólares.

Qu et ta veio pa ra o Cen tro, en qu a n to es ta va em liberda de con d icion a l. Exp liqu ei-lh e a s regra s , e d is se-lh e qu e d evia ves t ir rou pa s d e m u lh er e deixa r o ca belo cres cer . Além d is to, n u n ca poder ia fica r a s ós com qu a lqu er da s ou tra s ex-vicia da s , a n ã o s er a com pa n h a da de u m a de n os s a s a u xilia res . E la es tava dem a s ia do doen te pa ra d is corda r , e pa recia es ta r a legre por ter se livrado das grades. Em menos de uma semana a ceitou a Cr is to, e a p res en tou toda s a s evidên cia s externas de uma verdadeira conversão.

Con tu do, logo ch egu ei à con clu s ã o de qu e m esmo a con vers ã o pode s er fin gida . Em bora u s á s s em os Qu et ta pa ra tes t ifica r em m u itos t ra ba lh os a o a r livre, eu s en t ia que havia algo de falso nela.

Du a s s em a n a s m a is ta rde, u m a da s con s elh eira s veio p rocu ra r -m e logo de m a n h ã . Es ta va b ra n ca como um lençol, e tremendo como vara verde.

“O que foi, Diane? Entre e sente-se.”

Dia n e era a m a is n ova de n os s a equ ipe, u m a ga -rota p rovin cia n a de Nebra s ka , qu e a ca ba ra de d ip lomar-se na Escola Bíblica.

“Nã o s ei com o con ta r -lh e, Nicky”, d is s e ela . “É sobre Quetta e Lilly.”

Lilly era u m a vicia da qu e viera pa ra o Cen tro h a via a pen a s u m a s em a n a . Es ta va freqü en ta n do os cu ltos , m a s a in da n ã o s e en trega ra a o Sen h or . Sen t i os lábios secos. “O que houve com elas?” perguntei.

Diane enrubesceu e baixou a cabeça.

“Es ta va m ju n ta s n a cozin h a , on tem , por volta de meia-noite. Aproximei-me delas e, Nicky, elas estavam ... estavam...” Su a voz em ba rgou -s e, devido à vergon h a e a o a ca n h a m en to. “Nã o fu i ca pa z de dorm ir a n oite toda . O que podemos fazer?”

Levantei-m e da ca deira e com ecei a a n da r , m e-dindo o escritório a passos.

“Volte a o p réd io e d iga -lh es qu e qu ero vê-la s n o m eu es cr itór io im ed ia ta m en te”, decid i. “Es te lu ga r é ded ica do a o Sen h or . Nã o podem os a dm it ir qu e cois a s assim aconteçam aqui.”

Dia n e s a iu , e eu m e s en tei n ova m en te, com a ca beça en tre a s m ã os , ora n do des es pera da m en te, pe-d in do s a bedor ia . Em qu e pon to eu fa lh a ra ? Havíamos perm it ido qu e Qu et ta tes t ifica s s e em n om e do Cen tro. Os jorn a is t in h a m pu b lica do s u a h is tór ia e da do m u ita pu b licida de. Ela fa la ra a té em igreja s , a res peito da transformação ocorrida em sua vida.

Esperei mais de uma hora, e depois saí, para ver o que estava acontecendo. Encontrei Diane na escada.

“Ela s s a íra m . As du a s . Fica ra m com m edo, e disseram que iam embora. Não pudemos impedi-las.”

Virei-m e e en trei va ga ros a m en te n o Cen tro. Sen tia a derrota pes s oa lm en te — fora u m golp e du ro. Du ra n te t rês d ia s Glór ia orou e con vers ou com igo, en qu a n to eu m e s en t ia com pleta m en te des ilu d ido com a m in h a a pa ren te in ca pa cida de de a lca n ça r a qu ela s vicia da s com a verdadeira mensagem de transformação.

“Nicky, o próprio Jesus teve fracasso entre os seus seguidores”, d is s e ela . “Lembre-s e de todos os qu e têm s ido fiéis , e qu e têm t ido êxito. Lem bre-s e de Son n y, qu e es tá n o In s t itu to Bíb lico, es tu da n do pa ra s er pa s tor . Pense em Maria, e na maravilhosa transformação de sua

vida . Lem bre s e do qu e Deu s fez por você. Es qu eceu -se da s u a p rópr ia exper iên cia de s a lva çã o? Com o é qu e pode du vida r de Deu s e fica r des a n im a do com es s es fracassos isolados?”

Glór ia t in h a ra zã o, m a s eu m e s en t ia in ca pa z d e livrar-m e da qu ele des â n im o. A m ed ida qu e o verã o a va n ça va , a s en s a çã o de cu lpa s e a volu m a va . J u lga va-m e u m com pleto fra ca s s o. Nã o h a via com u n ica çã o en tre m im e a m a ior ia dos ou tros m em bros da equ ipe. Da vi a in da a cred ita va em m im . m a s eu p erceb ia , a gu da e dolorosamente, as constantes falhas do Centro. A tensão cres cia . Glór ia con t in u ou ten ta n do t ira r -m e da qu ela a t itu de derrot is ta , m a s tu do o qu e eu fa zia era inteiramente negativo.

O ú n ico pon to a lto foi a ch ega da de J im m y Ba ez. Ele vivera “fisgado” pelos n a rcót icos du ra n te oito a n os . En trou n o Cen tro ped in do rem éd ios , pen s a n do qu e era um hospital.

“Nã o tem ou tro rem éd io a qu i a n ã o s er J es u s ”, disse-lhe.

Pensou que eu estivesse louco.

“Pu xa , pen s ei qu e is to fos s e u m a clín ica . Vocês s ã o u m a ca m ba da de b iru ta s .” Olh ou a o s eu redor , desesperadamente, procurando sair do meu escritório.

“Sente-s e, J im m y. Qu ero con vers a r com você. Cristo pode transformá-lo.”

“Nin gu ém pode m e t ra n s form a r”, res m u n gou . “Já tentei, mas não consigo.”

Levantei-m e e a p roxim ei-m e dele. Coloca n do a s m ã os s ob re s u a ca beça , com ecei a ora r . Sen t i qu e ele es t rem ecia , e de repen te ca iu de joelh os , cla m a n do a Deu s . Da qu ela n oite em d ia n te n u n ca m a is s en t iu necessidade de outra “picada” de heroína.

“Veja”, obs ervou Glór ia , qu a n do lh e fa lei da con -

vers ã o de J im m y, “Deu s es tá m os tra n do qu e a in da pod e ajudá-lo. Com o é qu e você pode con t in u a r du vidando dele? Por qu e n ã o pen s a r pos it iva m en te? Há vá r ios m es es qu e você n ã o s a i pa ra os cu ltos n otu rn os a o a r livre. Pon h a -s e a t ra ba lh a r pa ra Deu s , e s en t irá a orientação do Espírito Santo, como sentia antes.”

Aceitei o con s elh o, e con cordei em d ir igir os cu ltos a o a r livre n a ú lt im a s em a n a de a gos to. Na p r imeira n oite, a rm a m os n os s a p la ta form a em Brook lin , e com ecei a p rega r . Era u m a n oite qu en te e a ba fa da , m a s a va s ta m u lt idã o es ta va a ten ta . Pregu ei com toda s a s força s , e s en t i qu e m e s a íra bem . Qu a n do m e aproximava do fim, fiz um apelo.

De repen te, leva n tei os olh os e, n a extrem ida de da multidão eu o vi. Seu rosto era inconfundível. Era Israel. Todos a qu eles a n os , eu ora ra , p rocu ra ra , in qu ir ira ... e, de repente, ali estava ele, um rosto na multidão.

Meu cora çã o pu lou . Ta lvez Deu s o t ives s e m a n -da do de volta . Sen t i o velh o fogo der ra m a r s e em m eu cora çã o, en qu a n to fa zia o a pelo. Pa recia qu e p res ta va ba s ta n te a ten çã o, es t ica n do o pes coço pa ra ou vir a s minhas palavras. O órgão portátil começou a tocar, e um trio feminino começou a cantar. Vi Israel virar-se para se afastar.

Pu lei da p la ta form a e, à s cotovela da s , a b r i ca -m in h o fu r ios a m en te en tre a m u lt idã o, ten ta n do a lcançá-lo a n tes qu e ele des a pa reces s e. “Is ra el! Is ra el!” gr itei-lhe. “Espere! Espere!”

Ele parou e virou-se. Não nos víamos há seis anos. Tin h a ga n h a do corpo e a m a du recido. Ma s o s eu ros to h a rm on ios o t in h a a a pa rên cia de m á rm ore cin zela do, e os seus olhos estavam fundos e tristes.

Abracei-o com força , e p rocu rei a r ra s tá -lo de volta para a reunião. Ele resistiu e permaneceu imóvel.

“Israel”, gr itei, t ra n s borda n do de a legr ia , “é você

mesmo?” Dei u m pa s s o a t rá s , a ga rrei os s eu s om bros, olhando para ele. “Por onde tem andado? Onde você está m ora n do? O qu e es tá fa zen do? Con te-m e tu do. Por qu e n ã o m e telefon ou ? Ten h o p rocu ra do você em todos os ca n tos de Nova York . Hoje é o m elh or d ia da m in h a vida.”

Seus olhos estavam distantes e frios; sua maneira, es t ra n h a e ret ra ída . “Precis o ir , Nicky. Tive m u ito p ra zer em ver você de novo.”

“Precis a ir? Fa z s eis a n os qu e n ã o n os vem os . Ten h o ora do todos os d ia s por você. Você va i pa ra ca s a comigo.” Com ecei a pu xá -lo, m a s ele s a cu d iu a ca beça e ret irou o b ra ço. Pu de s en t ir os m ú s cu los for tes enrijecendo sob a sua pele.

“Ou tro d ia , Nicky. Hoje n ã o.” Tirou m in h a m ã o do seu ombro, e começou a afastar-se.

“Ei, es pere u m m in u to. O qu e é qu e h á com você? Você é o meu melhor amigo. Não pode ir embora assim.”

Virou-s e e qu a s e m e con gelou com u m olh a r gé-lido daqueles olhos inflexíveis, cinzentos como o aço.

“Ma is ta rde, Nicky”, d is s e ele en tre os den tes . Virou-s e a b ru p ta m en te e des ceu ru a a ba ixo, pa ra a escuridão.

Piqu ei im óvel pela s u rp res a , e ch a m ei-o des es pe-radamente. Mas ele nem se virou. Continuou andando, e retornou à penumbra de onde viera.

Voltei a lqu ebra do pa ra o Cen tro. Arra s tei-m e es -ca da a cim a , a té o terceiro a n da r , e fech ei a por ta a t rá s de m im , em u m d os qu a r tos do s ótã o. “Senhor”, gr itei com voz a gon ia da , “o qu e é qu e eu fiz? Is ra el es tá perd ido, e a cu lpa é m in h a . Perdoa -me.” Ca í n o ch ã o e pa s s ei m u itos m in u tos ch ora n do in con trola velm en te. Da va s ocos des es pera dos n a pa rede. Nã o receb i res pos ta . Du ra n te du a s h ora s fiqu ei n o s ótã o a ba fa do,

exaurindo-me física, emocional e espiritualmente.

Eu s a b ia qu e ir ia deixa r o Cen tro. Sen t ia qu e o m eu m in is tér io es ta va term in a do. Eu era u m fracasso em tu do o qu e ten ta va fa zer . Tu do em qu e eu toca va , term in a va m a l. Qu et ta . Lilly. Agora , Is ra el. Nã o a d ia n ta va fica r lu ta n do con tra os p rob lem a s cres cen tes qu e n ã o pod ia ven cer . Nã o a d ia n ta va con t in u a r n o m in is tér io. Eu es ta va a r ra s a do. Derrota do. Fu lm in a do. Pus-m e de pé e fiqu ei olh a n do pela ja n elin h a do s ótã o, pa ra o céu es cu ro. “Sen h or , es tou derrota do. Eu er rei. Ten h o con fia do em m im m es m o, e n ã o em t i. Se é es ta a ra zã o pela qu a l tu perm it is te qu e is to a con teces s e, es tou disposto a confessar o meu terrível pecado. Humilha-me. Mata-m e, s e n eces s á r io. Toda via , Deu s qu er ido, n ã o m e lances no lixo.”

Sacudia-m e em s olu ços . En cos tei-m e à por ta , olh a n do pa ra o qu a r to. Silên cio. Eu n ã o s a b ia s e ele m e ou vira ou n ã o. Ma s n a qu ele m om en to, pou ca d iferen ça fazia. Eu já fizera tudo o que sabia.

Des ci de n ovo a s es ca da s , e fu i pa ra o m eu a pa r-ta m en to. Glór ia já t in h a pos to o n en ê n a ca m a , e es tava a rru m a n do a cozin h a . Fech ei a por ta e en caminhei-me pa ra a ca deira . An tes qu e eu pu des s e s en ta r , ela es ta va à m in h a fren te. Seu s b ra ços rodea ram-m e a cin tu ra , e ela m e a t ra iu pa ra s i. Nã o s a b ia n a da do qu e a con tecera n a ru a ou n o s ótã o, m a s porqu e s om os u m a s ó ca rn e, ela pôde perceber qu e eu fora fer ido, e es ta va a o m eu la do pa ra s u s ten ta r o m eu es p ír ito a ba t ido, e m e da r forças na hora da necessidade.

Apertei-a con tra m im , e es con d i o ros to n o s eu ombro, enquanto as lágrimas começavam a cair de novo. Du ra n te m u ito tem po fica m os a li, a b ra ça dos u m a o outro, m eu corpo s a cu d ido pelos s olu ços . Por fim o ch oro pa s s ou , e leva n tei-lh e o ros to com a m ba s a s m ã os , olh a n do p rofu n da m en te n os s eu s olh os . Es ta va m ch eios de lá gr im a s , com o fon tes p rofu n da s , jor ra n do

á gu a , da ter ra pu ra . Ma s , n ã o ch ora va . Ela es ta va sorr in do, em bora fra ca m en te. E o a m or qu e flu ía do s eu cora çã o t ra n s borda va dos s eu s olh os , en qu a n to a s lá gr im a s goteja va m e cor r ia m em pequ en os rega tos pela face bronzeada.

Aper tei o s eu ros to com a s m ã os . Ela es ta va lin da. Ma is lin da do qu e n u n ca . Glór ia s or r iu , e en tã o os s eu s lá b ios s e a b r ira m , qu a n do ela s e a con ch egou a m im em u m beijo s u a ve e dem ora do. Pu de s en t ir o s a l da s m in h a s p rópr ia s lá gr im a s , e a qu en tu ra ú m ida da s u a boca contra a minha.

“Pron to, Glór ia , term in ou . Vou em bora . Pode s er que eu tenha ficado orgulhoso. Talvez tenha pecado. Não s ei, m a s s ei qu e o Es p ír ito a fa s tou -s e de m im . Es tou com o Sa n s ã o. a o s a ir pa ra gu errea r os filis teu s , s em o poder de Deu s . Sou u m fra ca s s o. Arru ín o toda s a s coisas em que toco.”

“O qu e é, Nicky?” Su a voz era m a cia e s u a ve. “O que aconteceu?”

“Vi Is ra el h oje. Pela p r im eira vez depois de s eis a n os , vi o m eu m elh or a m igo. Ele m e deu a s cos ta s . A cu lpa dele s er o qu e é, ca be a m im . Se eu n ã o o t ives s e deixa do s ozin h o n a cida de, h á s eis a n os a t rá s , ele es ta r ia t ra ba lh a n do h oje a o m eu la do. Em vez d is s o, pa s s ou cin co a n os n a p r is ã o, e es tá perd ido. Deu s n ã o se importa mais.”

“Nicky, is to é qu a s e u m a b la s fêm ia ”, d is s e Glór ia , com voz a in da s u a ve. “Você n ã o pode cu lpa r-s e pelo qu e a con teceu a Is ra el. Na qu ela m a n h ã em qu e s a iu da cida de, n ã o pa s s a va de u m ga roto a m edron ta do. Nã o foi s u a a cu lpa de n ã o ter en con tra do Is ra el. Es tá er ra do a o culpar-s e a s i p róp r io. Com o tem cora gem de d izer qu e Deu s n ã o s e im por ta m a is ? Ele s e im por ta . E le s e importou o suficiente para salvá-lo."

"Você n ã o com preen de" d is s e eu , m oven do a ca -

beça . "Des de qu e Da vi m e con tou qu e Is ra el voltou pa ra a qu a dr ilh a , cu lpei-m e a m im m es m o. Ten h o ca r rega do o pes o da cu lpa em m eu cora çã o. Es ta n oite eu o vi, e ele virou -m e a s cos ta s . Nem qu is fa la r com igo. Se você tivesse visto a dureza do seu semblante!"

"Ma s , Nicky, você n ã o pode des is t ir a gora , ju s -tamente quando Deus está começando a operar..."

"Am a n h ã vou m e dem it ir", in ter rom pi. "Meu lu gar n ã o é a qu i. Meu lu ga r n ã o é n o m in is tér io. Nã o s ou suficien tem en te bom . Se eu fica r , todo o Cen tro Des a fio J ovem va i s er des t ru ído. Sou com o J on a s . Pode s er qu e a in da es teja fu gin do de Deu s , e n ã o s a iba d is s o. Eles p recis a m la n ça r-m e a o m a r , pa ra qu e u m peixe m e com a . Se n ã o s e livra rem de m im , o ba rco in teiro va i afundar."

"Nicky, qu e con vers a lou ca ! Sa ta n á s é qu em es tá fa zen do você fica r a s s im ", d is s e Glór ia , qu a s e ch orando. Afastei-me dela.

"Tem ra zã o, Sa ta n á s es tá em m im . Ma s eu vou renunciar."

"Nicky, pelo menos fale com Davi primeiro."

"J á ten tei, cen ten a s de vezes . Ma s ele s em pre es tá ocu pa do dem a is . Ach a qu e eu pos s o res olver tu d o s ozin h o, m a s es tá er ra do. Nã o a gü en to m a is . Sou in ca pa z, e já é tem po de a d m it i-lo. Sou u m fra ca s s o ... um fracasso."

Depois qu e fom os deita r , Glór ia pa s s ou o b ra ço em torno da minha cabeça e acariciou meu pescoço.

"Nicky, a n tes de ren u n cia r você m e p rom ete u m a cois a ? Você telefon a pa ra Ka th ryn Ku h lm a n e con versa com ela?"

Acen ei qu e s im , com a ca beça . Meu t ra ves s eiro es ta va m olh a do de lá gr im a s , e ou vi Glór ia m u rm u rar: "Nicky, Deus vai tomar conta de nós."

En terrei a ca beça n o t ra ves s eiro, ped in do a Deu s qu e n ã o m e perm it is s e ver o s ol des pon ta r ou tro d ia , em minha vida.

Na qu eles d ia s de t reva s e in decis ã o, s ó u m a es -t rela b r ilh a n te s u rgiu , n a form a da qu ela s en h ora majestos a , qu e pa recia t ra n s p ira r a p rópr ia p res en ça do Es p ír ito Sa n to. Só o fa to de con vers a r com a Sr ta . Ku h lm a n , pelo telefon e, n o d ia s egu in te, pa rece qu e a ju dou . Ela in s is t iu pa ra qu e eu fos s e a Pit ts bu rg, com a s des pes a s pa ga s por ela , a n tes de tom a r u m a decisão final.

Na ta rde s egu in te, tom ei o a viã o pa ra Pit ts bu rg. Fiqu ei s u rp res o qu a n do ela n ã o p rocu rou força r -m e a ficar no Centro. Em vez disso, declarou:

"Ta lvez Deu s es teja d ir igin do você pa ra u m m i-n is tér io d iferen te, Nicky. Pode s er qu e ele o es teja leva n do pelo va le da s s om bra s , a fim de qu e pos s a s a ir ao sol, do outro lado. Tão somente, conserve os olhos em J es u s . Nã o fiqu e a m a rgu ra do n em des a n im a do. Deu s pôs a m ã o s obre você, e n ã o va i a ba n doná-lo a gora . Lembre-s e, Nicky, qu a n do pa s s a m os pelo va le da sombra, ele está conosco."

Ora m os e ela ped iu qu e, s e fos s e da von ta de de Deu s qu e eu deixa s s e o Cen tro Des a fio J ovem , qu e ele con s erva s s e a qu ela n u vem de des â n im o a o m eu redor. Se qu is es s e qu e eu perm a n eces s e, d is s ipa s s e a n u vem , para que eu me sentisse disposto a ficar em Nova York.

Voltei à cida de n a m a n h ã s egu in te, gra to pela a m iza de e con fia n ça da qu ela s en h ora cr is tã , gen t il e dinâmica.

Na qu ela n oite, depois qu e o n en ê dorm iu , s en tei à m es a da cozin h a e con vers ei ou tra vez com Glór ia . Eu qu er ia m es m o s a ir . Com eça r ía m os tu do de n ovo, ta lvez n a Ca lifórn ia . Glór ia d is s e qu e m e s egu ir ia on de qu er qu e eu fos s e. O s eu gra n de a m or e s u a con fia n ça da va m -me

n ova s força s . An tes de ir pa ra a ca m a , pegu ei u m peda ço de pa pel e u m a ca n eta , e es crevi m eu ped ido de demissão.

Foi u m fim de s em a n a h orr ível. Na s egu n da -feira cedo, qu a n do Da vi ch egou a o Cen tro, es ten d i-lh e m eu pedido de demissão, e esperei enquanto ele lia.

Ele baixou a cabeça.

“Fu i eu qu em fa lh ei com você, Nicky?” pergu n tou s u a vem en te. “Será qu e eu es ta va tã o ocu pa do qu e n ã o fiqu ei a qu i o tem po s u ficien te, qu a n do você p recis ou de mim? Venha ao meu escritório; vamos conversar .”

Segui-o s ilen cios a m en te pelo s a gu ã o, e en tra m os n o es cr itór io. Ele fech ou a por ta , e en ca rou -m e com u m semblante profundamente aflito.

“Nicky, n ã o s ei o qu e es tá por t rá s de tu do is to. Ma s s ei qu e, em gra n de pa r te, s ou cu lpa do. Todos os d ia s ten h o m e rep reen d ido por n ã o pa s s a r m a is tem po com você. Vivo corren do, leva n ta n do d in h eiro pa ra o Centro. Não tenho tido tempo nem para a minha família. Sin to em m eu s om bros o pes a do fa rdo da res pon s a b ilida de. En tã o, a n tes de con vers a rm os , qu ero pedir-lh e qu e m e perdoe por ter fa lh a do com você. Você me perdoa, Nicky?”

Ba ixei a ca beça , e m en eei-a s ilen cios a m en te. Da vi suspirou fundo, e caiu na cadeira.

“Vamos conversar, Nicky.”

“É tarde demais para conversar, Davi. Várias vezes procurei falar-lhe. Sinto que é isto que eu devo fazer.”

“Ma s , por qu e, Nicky? O qu e ca u s ou es ta decisão repentina?”

“Nã o é repen t in a , Da vi. Es tá s en do prepa ra da h á muito tempo.” Aí, então, abri o coração diante dele.

“Nicky”, disse Davi, com os olhos penetrantes fixos

em m im , “todos n ós pa s s a m os por es s es per íodos de dep res s ã o. Eu já decepcion ei a lgu m a s pes s oa s , e já fiqu ei decepcion a do com ou tra s . Pen s ei em des is t ir vá r ia s vezes . Freqü en tem en te, ten h o m e s en t ido com o Elias, debaixo de um zimbro, gritando:

“Ba s ta ; tom a a gora , Sen h or , a m in h a a lm a .” Contudo, Nicky, você en trou em lu ga res on de os a n jos tem er ia m a n da r . Nã o con s igo im a gin á -lo fu gin do des tas pequenas derrotas.”

“Ela s n ã o s ã o pequ en a s pa ra m im , Da vi. J á re-solvi. Desculpe.”

No d ia s egu in te, Glór ia e Alicia em ba rca ra m de a viã o pa ra Oa k la n d , e dois d ia s depois voei a té Hou s ton , pa ra cu m prir o m eu ú lt im o com prom is s o, p regando n a qu ela cida de. Es tá va m os em a gos to de 1964 . Eu pa s s a ra dois a n os e n ove m es es n o Cen tro Desafio Jovem.

Em Hou s ton , fiqu ei m eio en vergon h a do de con tar qu e s a íra do Cen tro. A m in h a p rega çã o, porém , foi fr ia e in efica z. Es ta va a n s ios o pa ra s egu ir pa ra a Ca lifórn ia e encontrar-me com Glória.

En qu a n to voa va a t ra vés do pa ís , a perceb i-m e de qu e n ã o es ta va m a is via ja n do por con ta do m in is tério. Ha vía m os econ om iza do m u ito pou co, e a s pa s s a gen s de a viã o e des pes a s de m u da n ça ir ia m deixa r-n os s em dinheiro. Fiquei assustado. Inseguro. Com medo.

Lembrei-m e da s vezes em qu e pes s oa s t in h a m ten ta do coloca r d in h eiro em m in h a s m ã os , qu a n do p rega ra em con cen tra ções e con ferên cia s . Eu a gradecia, e m a n da va qu e fizes s em u m ch equ e em n om e d o Cen tro Des a fio J ovem . Na da qu er ia pa ra m im . Toda a minha vida fora ded ica da a o Cen tro. Pa recia irôn ico qu e a té m es m o em Hou s ton eu t in h a con t in u a do a d izer , a os qu e qu er ia m con tr ibu ir , qu e fizes s em os ch equ es em n om e do Cen tro Des a fio J ovem , s a ben do qu e eu m a l

tinha dinheiro para viver, nos dias seguintes.

Glór ia foi en con tra r -s e com igo n o a eropor to. Ela a lu ga ra u m a pa r ta m en to pequ en o. Es tá va m os “qu e-b ra dos ” e dep r im idos . Eu dera a Deu s qu a s e s eis a n os da m in h a vida , e s en t ia qu e ele m e volta ra a s cos ta s . Preten d ia des is t ir , deixa r o m in is tér io, e começa r da es ta ca zero, em a lgu m a ou tra a t ivida de. O s ol m ergu lh ou n o Ocea n o Pa cífico, e todo m eu m u n do afundou na escuridão.

Nã o s a b ia pa ra on de m e volta r . Perceb i qu e es tava m e a fa s ta n do de tu do. Nã o qu er ia ir à igreja com Glór ia , p refer in do fica r s en ta do em ca s a , olh a n do pa ra a s pa redes . Glór ia ten tou ora r com igo, m a s eu m e s en t ia des a n im a do e a fa s ta va -a de m im , d izen do qu e ela pod ia orar, mas, quanto a mim, sentia-me vazio.

Den tro de a lgu m a s s em a n a s , es pa lh ou -s e a n ot í-cia de m in h a volta à Ca lifórn ia . Com eça ra m a ch egar con vites pa ra fa la r n a s igreja s . Logo m e ca n s ei de d izer “n ã o” e de in ven ta r des cu lpa s . Fin a lm en te, d is s e a Glór ia pa ra n ã o a ten der m a is in teru rba n os , e n ã o responder às cartas.

Nos s a s itu a çã o fin a n ceira era , porém , des es pera -dora . Ha vía m os ga s ta do toda s a s econ om ia s , e Glór ia não conseguira achar emprego.

Com o ú lt im o recu rs o, a ceitei u m con vite pa ra p rega r em u m a cru za da pa ra joven s . Es ta va es p ir i-tualmente frio. Pela primeira vez na vida, subi ao púlpito sem orar. Sentado na plataforma, admirei minha própria du reza e fr ieza . Fiqu ei ch oca do com a m in h a a t itu de m ercen á r ia . Nã o obs ta n te, es ta va des es pera do. Se Deu s m e deixa ra ca ir , com o eu s en t ia qu e ele o fizera , em Nova York , en tã o n ã o m e s en t ia ob r iga do a bu s ca r a s u a bên çã o pa ra p rega r . Se m e p a ga s s em , eu a ceita r ia . Era simplesmente isso.

O Sen h or , toda via , n ã o con s idera va a s cois a s a s -

s im tã o s im ples . Ele t in h a p la n os m u ito m a is elevados pa ra m im , m a is do qu e a pen a s receber u m ch equ e com o pa ga m en to pela p rega çã o. Prega r Cr is to é cois a s a gra da — e ele p rom eteu : “Min h a pa la vra ... n ã o volta rá pa ra mim vazia.”

Qu a n do fiz o a pelo, a lgo a con teceu . Pr im eiro, u m jovem s a iu do m eio da m u lt idã o e a p roxim ou -se, ajoelhando-s e d ia n te do a lta r . Depois , ou tro veio do ca n to m a is a fa s ta do do a u d itór io. Ou tros a in da viera m à fren te, e os corredores fica ra m ch eios de jovens dirigindo-s e a o a lta r , a joelh a n do-s e defron te do gra d il e en trega n do s u a s vida s a Cr is to. Tã o gra n de era o n ú m ero d e joven s a li n a fren te, qu e m u itos p recis a ra m fica r de p é, a t rá s d os qu e s e a joelh a ra m d ia n te do gra d il s u per lota do. No fu n do da igreja , vi gen te ca in do de joelh os e cla m a n do a Deu s . Ou tros con t in u a va m s e a p res en ta n do. Nu n ca es t ivera em u m cu lto em qu e o Es p ír ito de Deu s ca ís s e s ob re a con grega çã o com ta n to poder.

O Sen h or p rocu ra va d izer -m e a lgo, n ã o ba ixin h o, s u s s u rra n do, m a s com voz t roveja n te. Dizia -m e qu e ainda estava no seu trono, relembrando-me que, embora eu o decepcionasse, ele não me decepcionava. Estava me d izen do, em term os in con fu n d íveis , qu e n ã o term in a ra s u a ob ra em m in h a vida ... e qu e a in da qu er ia u s a r -me, embora eu não estivesse disposto a ser usado.

Sen t i os joelh os t rem erem , e ten tei s egu ra r -m e n o pú lp ito. De repen te, m eu s olh os en ch era m -s e de lá gr im a s e eu , o p rega dor da n oite, ca í pa ra a fren te, de joelh os d ia n te do gra d il. Ali, com o cora çã o ch eio de a r repen d im en to, der ra m ei a a lm a pera n te o m eu Deu s , numa nova dedicação a ele.

Depois do cu lto, Glór ia e eu en tra m os n o ca r ro qu e es ta va es ta cion a do n o pá t io da igreja . Ha vía m os p la n eja do s a ir pa ra la n ch a r e depois d a r u m pa s s eio de carro. Em vez disso, concordamos em ir para casa.

Qu a n do en tra m os , ca í de joelh os . Glór ia a joelhou-s e a o m eu la do, e n ós dois ch ora m os e cla m a m os a Deu s . E eu s a b ia . Sa b ia qu e h a via m a is a in da . Sa b ia qu e toda s a s cois a s coopera m pa ra o bem da qu eles qu e a m a m a Deu s . Abr i os olh os , e a t ra vés da s lá gr im a s , vi qu e ele es ta va a o m eu la do. Pod ia s en t ir a s u a p res en ça . Qu a s e pod ia ou vir a s pa la vra s : Sim , “a in da qu e eu a n de pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porqu e tu es tá s com igo: a tu a va ra e o teu ca ja do m e consolam...” Salmo 23.

Ha vía m os a t ra ves s a do o va le da s om bra da m or> te, m a s a s u a gra ça n os gu ia ra , e a gora a lu z do s ol já coroa va o p ico da s m on ta n h a s d is ta n tes , a n u n cia n do o alvorecer de um novo dia.

Capítulo 18

NNOO TTEE RR RR IITTÓÓRR IIOO DD EE

JJ EE SS UUSS

A GRANDE OPORTUNIDADE s u rgiu p ou co a n tes do Na ta l, qu a n do receb i u m con vite de u m gru po de leigos con h ecido com o “Fu ll Gos pel Bu s in es s Men 's Fellows h ip In tern a t ion a l”. Foi a t ra vés des s e gru po de com ercia n tes ded ica dos qu e com eça ra m a ch ega r convites para falar em ginásios e universidades. Durante 1965 es t ive n a m a ior ia da s cida des m a is im por ta n tes do pa ís . Min h a s con cen tra ções e cru za da s , em s u a m a ior pa r te pa trocin a da s por igreja s de toda s a s den om in a ções , es ta va m ob ten do m a ra vilh os o êxito, e eu falei a multidões de mais de dez mil pessoas.

Agra decia d ia r ia m en te a Deu s por s u a bon da de. Porém , a in da es ta va im pa cien te e t in h a u m p rofu n do anseio no coração. Não parecia encontrar a solução para o p rob lem a , e p or is s o torn a va-m e ca da d ia m a is impaciente.

Foi en tã o qu e fiqu ei con h ecen do Da n iel Ma lachuk, u m n egocia n te extrover t ido, de eleva da es ta tu ra , qu e vivia em Nova J ers ey, e qu e, s em o s a ber , t rou xe à ton a o meu problema. Casualmente ele mencionou certa noite qu e s a b ia qu e o m eu des ejo or igin a l fora t ra ba lh a r com os “pequ en os ”. Nã o res pon d i à s u a obs erva çã o, m a s suas palavras ficaram gravadas em minha mente.

Recordei m in h a p rópr ia in fâ n cia . Se tã o s om en te a lgu ém t ives s e s e p reocu pa do em m e leva r a Cr is to quando criança, talvez...

Con vers ei a es s e res peito com Glór ia . Deu s es tava u s a n do o m eu tes tem u n h o em gra n des cru za da s , m a s ca da vez qu e eu lia n os jorn a is u m a r t igo s obre cr ia n ça s p res a s por terem ch eira do cola ou terem fu mado m a con h a , m eu cora çã o doía . Con t in u á va m os ora n do pa ra qu e Deu s n os m os tra s s e o ca m in h o pa ra n os aproximarmos dessas crianças.

Pou cos m es es depois , Da n iel a ju dou a p repa ra r u m a cru za da de qu a tro d ia s em Sea t t le. Du ra n te todo esse tempo, eu estivera falando através do intérprete Jeff Morales. J eff m u da ra -s e pa ra a Ca lifórn ia , a fim d e via ja r com igo pa ra a s gra n des con cen tra ções on de a s pes s oa s t in h a m d ificu lda de em en ten der m eu s ota qu e. Porém , cerca de m eia h ora a n tes de deixa r o a eropor to, ele telefon ou : “Nicky, es tou de ca m a , com pn eu m on ia . O m éd ico n ã o m e deixou ir . Você terá qu e s e vira r sozinho.”

De pé n a p la ta form a , d ia n te de u m a ba ter ia de m icrofon es e de câ m a ra s de TV, exa m in ei a en orm e m u lt idã o. Será qu e eles s er ia m ca pa zes de en ten der-me, a pes a r do s ota qu e por to-r iqu en h o? Será qu e r ir ia m do

meu inglês arrevesado? Nervosamente, limpei a garganta e a b r i a boca pa ra fa la r . As pa la vra s n ã o s a íra m — s ó u m m u rm ú rio en rola do. Lim pei a ga rga n ta ou tra vez, e saiu uma coisa que parecia com “uuuggghhhllkfg”.

A m u lt idã o m exeu -s e n ervos a , m a s polidamente. Nã o a d ia n ta va . Eu já t in h a m e h a b itu a do à a ju da de J eff. Cu rvei a ca beça e ped i poder : “Sen h or a m a do, s e podes da r-m e u m a lín gu a des con h ecida pa ra lou va r o teu n om e, con fio em qu e podes da r-m e u m a lín gu a conhecida para falar de ti a estes jovens.”

Leva n tei a ca beça e com ecei a fa la r . As pa la vra s viera m perfeita s , e flu íra m de m in h a boca com poder s ob ren a tu ra l. J eff fora s u bs t itu ído por J es u s e, desde a qu ele m om en to, t ive a cer teza de qu e s em pre qu e estivesse falando dele, não precisaria mais de intérprete.

Depois do ú lt im o cu lto, Da n iel foi a o m eu qu a r to, no hotel.

“Nicky, a s bên çã os de Deu s es tã o s e derra m a n do de m a n eira m a ra vilh os a . Um a ofer ta d e a m or de t rês m il dólares foi levantada para você usar em seu ministério.”

“Daniel, não posso aceitar esse dinheiro.”

“Nicky”, d is s e Da n iel, en qu a n to s e coloca va à von -ta de, es pa rra m a n do-s e n o s ofá e t ira n do o s a pa to, “o d in h eiro n ã o é pa ra você. É pa ra Deu s opera r a t ra vés da sua pessoa.”

“E pos s o u s á -lo de qu a lqu er form a qu e s in ta qu e Deus quer?” perguntei.

“Isso mesmo”, disse Daniel.

“En tã o vou u s á -lo pa ra os “pequ en os ”. Qu ero co-meçar um centro para ministrar a eles.”

“Ma ra vilh os o”, exp lod iu Da n iel, s en ta n do n o s ofá. “Dê-lhe o nome de “Esforço para a Juventude.”

E o n om e foi “Es forço pa ra a J u ven tu de”. Voltei à

Ca lifórn ia com os t rês m il dóla res , res olvido a a b r ir u m Cen tro on de pu des s e t ira r os pequ en os da s ru a s , e ganhá-los para Cristo.

Es ta belecem os o n os s o Cen tro em Fres n o, n a Av. N. Broa dwa y, 221 . Requ erem os o a lva rá oficia l d o Es ta do da Ca lifórn ia , e pen du rei u m a p la ca n a por ta da frente: “Esforço para a Juventude, Nicky Cruz, Diretor.”

Logo em s egu ida , com ecei a va s cu lh a r a s ru a s . No p r im eiro d ia , en con trei u m ga roto de on ze a n os dorm in do n o vã o de u m a por ta . Sen tei-m e a o s eu la do e perguntei como se chamava.

Ele m e exa m in ou com o ca n to dos olh os , e fin a l-mente disse: “Rubem; por que quer saber?”

“Nã o s ei”, res pon d i n a m es m a lin gu a gem erra da qu e ele u s a ra . “Você m e pa receu tã o s im pá t ico qu e qu is conversar com você.”

Es pon ta n ea m en te ele m e con tou qu e o pa i era vicia do em tóxicos . Ele m es m o t in h a ch eira do cola n o d ia a n ter ior . Deixa ra a es cola n o s exto a n o. Es cu tei s u a h is tór ia , e depois con tei-lh e qu e eu es ta va a b r in do u m Cen tro pa ra ga rotos com o ele, e pergu n tei-lh e s e gostaria de ir morar comigo.

“Você quer mesmo que eu vá?”

“Cla ro”, res pon d i, “m a s tem os de fa la r p r im eiro com seu pai.”

“Com os d ia bos ”, res pon deu o ga roto, “o m eu ve-lh o va i pu la r de a legr ia por s e livra r de m im . O ú n ico que vai se importar é o comissário de menores.”

O com is s á r io ficou s a t is feito com a n ot ícia , e Rubem mudou-se para o Centro naquela mesma noite.

Pou ca s s em a n a s depois , recolh em os m a is dois m en in os . Fora m todos m a tr icu la dos n a es cola , e fa -zía m os es tu dos b íb licos d iá r ios n o Cen tro. A p r in cípio,

Ru bem n os deu m u ito t ra ba lh o, m a s n o fim da s egu n da s em a n a a ceitou a Cr is to du ra n te u m es tu do b íb lico. Na ta rde s egu in te, a o volta r da es cola , d ir igiu-se d ireta m en te pa ra o s eu qu a r to e com eçou a es tu da r . Glór ia p is cou pa ra m im . “Qu e ou tra evidên cia você quer, de qu e a s u a con vers ã o foi s in cera ?” d is s e ela . Eu n ã o p recis a va de n en h u m a ou tra . Sen t i-m e bem , interiormente. A inquietude estava desaparecendo .

À m ed ida qu e os d ia s s e pa s s a va m , com eça m os a receber telefon em a s de m ã es a flita s , qu e d izia m qu e os filhos estavam completamente impossíveis, e pediam que os recolh ês s em os . Em qu es tã o de s em a n a s , n os s a s a com oda ções es ta va m lota da s , e a in da con t in u á va m os receben do telefon em a s . Glór ia e eu pa s s a m os m u ito tempo em oração, pedindo a Deus que nos guiasse.

Cer ta m a n h ã , depois de a pen a s a lgu m a s h ora s de s on o, o telefon e tocou . Ca m ba leei a té o a pa relh o. Era Da n iel Sm ith , m em bro a t ivo da s ocieda de “Fu ll Gospel Business Men's” de Fresno:

“Nicky, Deu s es tá n os d ir igin do por u m m is terioso ca m in h o. Vá r ia s pes s oa s de n os s o gru po têm ora do em fa vor da ob ra qu e você es tá rea liza n do. Deu s colocou n o m eu cora çã o o des ejo de a ju dá -lo a form a r u m a J u n ta de Diretores . Fa lei com Ea r l Dra per , con ta dor , com o Rev. Pa u lo Eva n s , e com H. J . Keen er , geren te de u m a es ta çã o de TV loca l. Es ta m os d is pos tos a t ra ba lh a r com você, se nos aceitar.”

Era ou tra res pos ta de ora çã o, o fa to da qu ele pe-qu en o gru po de n egocia n tes e p rofis s ion a is libera is s e coloca rem à d is pos içã o do Cen tro, pa ra a ju da r n a direção.

Ma is ta rde, n a qu ele m es m o m ês , Da vi Ca r ter ju n -tou-s e à n os s a equ ipe, pa ra t ra ba lh a r com os m en inos. Eu con h ecera Da vi, u m ra pa z de cor , a lto, qu ieto, qu a n do era ch efe de u m a qu a dr ilh a em Nova York . Fora pa ra o In s t itu to Bíb lico depois da s u a con vers ã o, e com o

n ã o t in h a la ços de fa m ília , pod ia pa s s a r m u ita s h ora s a con s elh a n do pes s oa lm en te os m en in os fa m in tos de a m or . Ha via ta m bém du a s m oça s m exica n a s : Fra n ces Ra m írez e An gie Sed illos , qu e s e ju n ta ra m a n ós pa ra p rom over o con ta to com a s m en in a s , e a ju da r n o trabalho da secretaria.

O último membro da equipe era uma pessoa muito es pecia l pa ra m im . Tra ta va -s e de J im m y Ba ez. J im m y a ca ba ra de d ip lom a r-s e n a Es cola Bíb lica , e des pos a ra u m a jovem ca lm a , de voz s u a ve. Ele vir ia pa ra t ra ba lh a r com o n os s o s u pervis or , m a s pa ra m im , era m u ito m a is do qu e is s o. Ele era u m a p rova viva d o poder t ra n s form a dor de J es u s Cr is to. Era d ifícil im a gin a r qu e a qu ele jovem de a pa rên cia cu lta , ros to s im pá t ico e ócu los de a ros es cu ros , fos s e o m es m o ga roto fra n zin o, pá lido, qu e fica ra a ga ch a d o h ora s a fio n o Cen tro Desafio Jovem, tremendo devido à privação de heroína, e suplicando que lhe dessem drogas.

Com o cora çã o ch eio de fé em Deu s , e a s m ã os ocu pa da s com os “pequ en os ”, con t in u a m os a va n ça n do. Deu s es ta va a ben çoa n do, e eu pen s a va já ter receb ido o m á xim o em s u rp res a s m a ra vilh os a s . Con tu do, pa ra os qu e a m a m a Deu s , n ã o h á lim ite pa ra a s s u rp res a s do amanhã.

Na qu ele ou ton o, Da n iel Ma la ch u k es ca lou m e pa -ra u m a s ér ie de pa les t ra s em Nova York . Depois de m e a pa n h a r n o a eropor to, en tra m os n o s eu ca r ro e fom os pa ra a cida de, pa s s a n do por qu ilôm etros e m a is qu ilôm etros de a pa r ta m en tos , t ipo cor t iço. Recos tei-me n o ba n co, a o la do dele, e fiqu ei obs erva n do os velh os p réd ios pa s s a rem velozm en te. Algo m e toca va o cora çã o. Eu n ã o fa zia m a is pa r te do gu eto, m a s ele a in da era uma parte de mim. Comecei a pensar nos velhos amigos, e n os m em bros da qu a dr ilh a — pr in cipa lm en te em Is ra el. “J es u s ”, orei, “por fa vor , dê-m e ou tra opor tu n ida de de da r m eu tes tem u n h o em pres en ça

dele.”

Depois da reu n iã o, n a qu ela n oite, Da n iel foi co-m igo pa ra o qu a r to do h otel on de eu ia pa s s a r a n oite. O telefone estava tocando quando entramos.

Atendi, e houve um longo silêncio do outro lado da lin h a , a n tes qu e eu ou vis s e u m a voz fra ca , m a s bem conhecida dizer: “Nicky, sou eu, Israel.”

“Is ra el!” gr itei. “Glór ia a Deu s ! Min h a ora çã o foi respondida. Onde você está?”

“Es tou em ca s a , Nicky, n o Bron x. Aca bei de ler n o jorn a l qu e você es ta va n a cid a de, e telefon ei pa ra o s eu irm ã o, Fra n k . Ele d is s e qu e eu poder ia en con trá-lo n o hotel.”

Com ecei a d izer a lgo, m a s ele m e in ter rom peu : “Nicky, eu -eu-eu es ta va pen s a n do s e poder ia vê-lo en -qu a n to es tá n a cida de. Só pa ra con vers a r a res peito dos velhos tempos.”

Qu a s e n ã o pod ia crer n os m eu ou vidos . Virei-me para Daniel: “Israel. Ele quer me ver.”

“Convide-o pa ra s e en con tra r con os co n o h otel, a m a n h ã à n oite, pa ra ja n ta r”, d is s e Da n iel. O en con tro lon ga m en te es pera do foi m a rca do pa ra a s s eis h ora s da tarde seguinte.

Orei por ele a n oite in teira , ped in do a Deu s pa ra m e da r a s pa la vra s cer ta s , a fim de ga n h a r o s eu co-ração para Cristo.

Da n iel e eu fica m os m ed in do o s a gu ã o do h otel com n os s os pa s s os , da s cin co e t r in ta à s s ete h ora s da noite. Ele não apareceu. O coração subiu-me à garganta, en qu a n to eu m e lem bra va da qu ela m a n h ã , n ove a n os a n tes , qu a n do n os t ín h a m os des en con tra do da p r im eira vez.

De repen te, eu o vi. Su a s feições h a rm on ios a s ,

olh os p rofu n dos , ca belo on du la do. Na da m u da ra . Nã o pu de fa la r , pois a s lá gr im a s viera m -m e a os olh os . “Nicky”, d is s e ele com voz es t ra n gu la da , “n em pos s o crer .” Repen t in a m en te, com eça m os a r ir e fa la r a o m es m o tem po, com pleta m en te es qu ecidos do t râ n s ito intenso ao nosso redor.

Pa s s a do a lgu m tem po, Is ra el s e a fa s tou e d is s e: “Nicky, quero que você conheça minha esposa, Rosa.” Ao s eu la do es ta va u m a jovem por to-r iqu en h a , ba ixin h a e simpática, com u m s orr is o qu e tom a va con ta de todo o s eu bon ito ros to. Cu rvei-m e pa ra a per ta r -lh e a m ã o, porém ela m e a ga rrou pelo pes coço e beijou -me res olu ta m en te n a fa ce. “Es tá a legre de con h ecer você”, p is cou , fa la n do u m in glês a r reves a do. “Ten h o vivido per to de você todo es te tem po. Is ra el fa la m u ito de você estes três anos.”

Fom os a té o s a lã o Ha y Ma rket Room pa ra ja n tar. Israel e Rosa ficaram para trás, e pude perceber que algo os p reocu pa va . “Ei, Is ra el, qu a l é o p rob lem a ? Da n iel va i pagar a conta. Vamos!”

Is ra el olh ou pa ra m im em ba ra ça do, e fin a lm en te m e pu xou de la do. “Nicky, n ã o pos s o en tra r a í. É ch iqu e demais. Não sei o que fazer.”

Rodeei-lh e os om bros com o b ra ço. “Eu ta m bém n ã o s ei o qu e fa zer”, res pon d i. “Olh e, peça o t roço m a is caro que encontrar na lista e deixe o “dono do ouro” aqui pagar”, sorri, apontando para Daniel.

Depois do ja n ta r , tom a m os o eleva dor pa ra o meu apartamento, no décimo - quarto andar. Israel estava descontraído, e parecia o mesmo velho

Is ra el, qu a n do n os fa lou da s u a ca s a , n o gu eto “Nã o é u m lu ga r m u ito a gra dá vel pa ra s e viver”, d is se ele. “Precis a m os gu a rda r os p ra tos n a gela deira , por ca u s a da s ba ra ta s . Ma s poder ia s er p ior . No a n dar tér reo, os ra tos vêm dos es gotos e m ordem a s cr ia n ça s

en qu a n to dorm em . É com o s e es t ivés s em os a corren ta dos a li”, d is s e. “Nã o podem os livra r -n os . É u m lu ga r pés s im o pa ra cr ia r os filh os . Na s em a n a p a s s a da , t rês m en in a s do m eu ed ifício, toda s de cerca de n ove a n os , fora m es tu p ra da s em u m a viela , n os fu n dos d o p réd io. Nã o tem os cora gem de deixa r a s cr ia n ça s s a írem à rua, e eu estou doente de preocupação . Quero sair de lá. Mas...”

A s u a voz fa lh ou , e ele leva n tou -s e da ca deira , foi a té a ja n ela , e olh ou pa ra fora , em d ireçã o à torre relu zen te do ed ifício “Em pire Sta te”. “Ma s a gen te p recis a viver em a lgu m lu ga r , e em qu a lqu er ou tro lu ga r o a lu gu el é a lto dem a is . Qu em s a be n o a n o qu e vem ... ta lvez n o a n o qu e vem n os m u dem os pa ra u m lu ga r melhor. Até que eu não me saí tão mal. Comecei lavando pra tos , e p ros perei. Agora s ou con t ín u o em u m ed ifício na Wall Street.”

“Ma s depois qu e você con s egu ir m u da r , o qu e acontecerá?” interrompi.

“O que foi que você disse?” perguntou.

Perceb i qu e ch ega ra a h ora de m e a p rofu n da r n o passado. “Israel, conte-me o que foi que saiu errado.”

Ele voltou para o sofá onde Rosa estava, sentou-se n ervos a m en te a o s eu la do. “Nã o m e in com odo de fa la r n is s o a gora . Ach o m es m o qu e p recis o fa la r . Nu n ca con tei, n em pa ra Ros a . Você s e lem bra da qu ela m a n h ã , depois qu e s a iu do h os p ita l, qu a n do você e a qu ele homem iam encontrar comigo?”

Acenei que sim. A recordação era dolorosa.

“Es perei t rês h ora s . Fiqu ei com o lou co. Eu fiquei da n a do com os cren tes , e n a qu ela n oite voltei pa ra a quadrilha.”

“Israel, sinto muito. Nós procuramos você...”

“Nã o im por ta . Fa z m u ito tem po. Ta lvez a s coisas

fos s em d iferen tes s e eu t ives s e ido com vocês . Qu em sabe?”

Fez u m a pa u s a , e depois com eçou de n ovo. “De-pois , a r ra n ja m os u m a en cren ca com os An gels da Ru a Su l. Aqu ele ca ra en trou em n os s o ter r itór io e d is s em os qu e n ã o qu er ía m os n en h u m “b ich o de pé” por a li. Qu is ba n ca r o en gra ça d in h o, e ba tem os n ele. Correu , e cin co dos nossos foram atrás dele até os domínios da Rua Sul, e o a ga rra m os n a Arca da . Nós o pu xa m os pa ra fora , e com eça m os a lu ta r com ele. A cois a de qu e m e lem bro a seguir, é que um dos nossos tinha um revólver na mão e com eçou a da r t iros . Pa co p ôs -s e a s egu ra r a b a r r iga e d izer b r in ca n do: “Oh , pegu ei u m t iro! pegu ei u m t iro!” Todos os rapazes riam.”

“En tã o, o “b ich o-do-pé” ca iu n o ch ã o. Es ta va m es m o fer ido. Es ta va m or to. Eu vi o b u ra co da ba la n a sua cabeça.”

Is ra el fez u m a pa u s a . O ú n ico s om qu e s e ou via era o do trânsito, atenuado pela distância, lá embaixo.

“Fu gim os . Eu e m a is t rês fom os a ga rra dos . Os ou tros s e s a fa ra m . O ca ra qu e pu xou o ga t ilh o tomou vinte anos. O resto, de cinco a vinte anos.”

Ele pa rou de fa la r , e ba ixou a ca beça : “Fora m cinco anos de inferno.”

Recu pera n do a s eren ida de, p ros s egu iu : “Tive de fazer um “acordo” para sair da prisão.”

“O qu e é u m “a cordo?” in ter rom peu Da n iel. “A J u n ta de Livra m en to Con d icion a l d is s e qu e eu s er ia s olto, s e p u des s e p rova r-lh es qu e t in h a u m em prego m e es pera n do. Eles m e d is s era m qu e eu ter ia de volta r pa ra m eu a n t igo la r . Eu n ã o qu er ia volta r pa ra o Brook lin . Qu er ia com eça r a vida de n ovo, m a s d is s era m qu e eu t in h a de volta r pa ra ca s a . As s im , eu fiz u m “a cordo” a t ra vés de u m vicia do qu e es ta va lá den tro com igo. Ele con h ecia u m h om em qu e t in h a u m a fá b r ica de rou pa s

n o Brook lin , e d is s e à m in h a m ã e qu e, s e ela lh e pa ga s s e cin qü en ta dóla res , ele m e p rom eter ia u m em prego. Ela deu a o h om em o d in h eiro, e ele es creveu u m a ca r ta d izen do qu e eu t in h a u m em prego n a s u a fábrica, quando saísse da prisão. Foi a única maneira de a rra n ja r em prego. Ra pa z, qu em é qu e va i qu erer u m ex-preso como empregado?”

“Ma s você con s egu iu o em prego?” pergu n tou Da -niel.

“Na da ” d is s e Is ra el, “eu d is s e a vocês qu e era u m “a cordo”. Nã o h a via em prego n en h u m . Era s ó u m jeito para eu sair da cadeia.”

“Sa í, en tã o, e fu i a u m a a gên cia de em pregos , e m en t i s ob re o m eu pa s s a do. Você pen s a qu e eles m e ter ia m con tra ta do, s e eu con ta s s e qu e s a íra da ca deia n o d ia a n ter ior? Arra n jei u m em prego de la va dor d e p ra tos , e depois u m a dú zia de ou tros em pregos . Desde en tã o, ten h o m en t ido. A gen te p recis a m en t ir pa ra con s egu ir u m em prego. Se m eu pa trã o s ou bes s e qu e eu sou um ex-preso, ele me mandaria embora, apesar de eu es ta r fora da ca deia h á qu a tro a n os , e s er u m bom empregado. Portanto, eu minto. Todo mundo faz isso.”

“O oficia l de ju s t iça res pon s á vel por você du ra n te s eu livra m en to con d icion a l, a ju dou -o?” pergu n tou Daniel.

“Sim ele foi o ú n ico s u jeito qu e rea lm en te ten tou. Ma s o qu e é qu e poder ia fa zer? Ele t in h a m a is de cem ra pa zes com o eu pa ra a ju da r . Nã o, a res pon sabilidade era minha, e consegui tudo sozinho.”

O qu a r to ficou em s ilên cio. Du ra n te todo o tem po Rosa es t ivera s en ta da , qu ieta , a o la do de Is ra el. E la n ã o conhecia essa parte da vida de seu marido.

Depois eu falei: “Israel, você se lembra daquela vez em qu e es tá va m os p rocu ra n do os Ph a n tom Lords , e caímos em uma emboscada?”

“Lembro.”

“Você s a lvou a m in h a vida n a qu ela n oite, Is ra el. Es ta n oite eu qu ero ret r ibu ir a qu ele fa vor . Qu ero d izer -lhe algo que salvará sua vida.”

Ros a es ten deu a m ã o e pa s s ou o b ra ço pelo dele. Ambos viraram-se e me olharam com ar de expectativa.

“Is ra el, você é o m eu m elh or a m igo. Você pode n ota r qu e h ou ve u m a t ra n s form a çã o n a m in h a vida . O velh o Nicky m orreu . A pes s oa qu e você vê a gora n ã o é rea lm en te o Nicky, é J es u s Cr is to viven do em m im . Você s e lem bra da qu ela n oite, n a Aren a St . Nich ola s , qu a n do dem os n os s o cora çã o a o Sen h or?” Is ra el fez qu e s im , ba ixa n do os olh os pa ra o ch ã o. “Deu s en trou n o s eu cora çã o n a qu ela n oite, Is ra el. Eu s ei d is s o. Deu s fez u m a cordo com você e a in da m a n tém a s u a pa r te do a cordo. Ele n ã o s e es qu eceu de você, Is ra el. Você tem fu gido todos es tes a n os , m a s a m ã o dele a in da es tá sobre você.”

Pegu ei a Bíb lia : “No Velh o Tes ta m en to tem a história de um homem chamado Jacó. Ele também fugiu de Deu s . En tã o, u m a n oite, exa ta m en te com o es ta , ele teve u m a lu ta com u m a n jo. O a n jo ven ceu , e J a có rendeu-s e a Deu s . Na qu ela n oite Deu s m u dou o s eu nome. Não era mais Jacó — mas Israel. E Israel significa “aquele que anda com Deus.”

Fech ei a Bíb lia e fiz u m a pa u s a , a n tes de con t i-n u a r . Os olh os de Is ra el es ta va m m olh a dos , e Ros a a per ta va o s eu b ra ço. “Du ra n te todos es tes a n os , tenho fica do a corda do du ra n te a n oite, m u ita s vezes , ora n do por você — pen s a n do com o s er ia m a ra vilh os o s e estivesse trabalhando ao meu lado — não como fazíamos a n tes , m a s n a ob ra de Deu s . Is ra el, es ta n oite eu qu ero qu e você pa s s e a a n da r com Deu s . Qu ero qu e en tre n o território de Jesus.”

Is ra el olh ou -m e com os olh os ra s os de á gu a . Virou-s e e olh ou pa ra Ros a . Ela es ta va con fu s a , e fa lou -lh e em es pa n h ol. Eu es t ivera fa la n do em in glês , e vi qu e Ros a n ã o com preen dera tu do o qu e d is s era . Ela perguntou-lhe o qu e eu qu er ia . Is ra el exp licou qu e eu qu er ia qu e eles des s em o cora çã o pa ra Cr is to. Ele fa lou ra p ida m en te em es pa n h ol, con ta n do-lh e do s eu des ejo de volta r pa ra Deu s — com o ou trora J a có teve von ta de de voltar ao lar, e perguntou-lhe se ela iria com ele.

Ela s orr iu , e os s eu s olh os b r ilh a ra m , en qu a n to acenava que sim.

“Glór ia a Deu s !” gr itei. “Ajoelh em -s e a o la do des te sofá, enquanto oro.”

Is ra el e Ros a a joelh a ra m -s e a o la do do s ofá . Da -n iel es corregou da ca deira e a joelh ou -s e, do ou tro la do da sala. Coloquei as mãos sobre suas cabeças, e comecei a ora r , p r im eiro em in glês , depois em espanhol, os cila n do en tre a s du a s lín gu a s . Sen t i o Es p ír ito de Deu s flu in do a t ra vés de m eu cora çã o, m eu s b ra ços , e m eu s ded os , e a lca n ça n do a s s u a s vid a s . Orei, ped in do a Deu s p a ra perdoá -los e a ben çoá -los e receb ê-los n a plenitude do seu reino.

Foi u m a ora çã o lon ga . Qu a n do term in ei, ou vi Is -ra el com eça r a ora r . Tem eros a m en te a p r in cíp io, e depois com in ten s ida de, ele cla m ou : “Sen h or , perdoa -me. Perdoa-me. Perdoa-me.” Então a sua oração mudou, e eu pu de s en t ir n ova s força s a tu a n do em s eu corpo, quando começou a dizer: “Senhor, muito obrigado.”

Ros a u n iu -s e à s u a ora çã o: “Obr iga do, Sen h or , muito obrigado.”

Da n iel pôs Is ra el e Ros a em u m tá xi, e pa gou a corr ida a té o s eu a pa r ta m en to n o Bron x. “Nicky” d is s e ele lim pa n do os olh os , en qu a n to s e a fa s ta va m , “es ta foi a m elh or n oite da m in h a vida , e s in to qu e Deu s va i m a n da r Is ra el pa ra a Ca lifórn ia pa ra t ra ba lh a r com

você.”

Con cordei. Pode s er qu e s im . Deu s tem s em pre uma forma de cuidar de tudo.

EE pp íí ll oo gg oo

Em uma tarde no fim da primavera, Nicky e Glória descansavam nos degraus da frente do Centro, na Av. N. Broa dwa y, 221 , obs erva n do Ra lph ie e Ka r l cor ta n do a gra m a , en qu a n to a n oite s e a p roxim a va . Es ta va qu a s e n a h ora do cu lto a o a r livre n o gu eto. No qu in ta l, podiam-s e ou vir os s on s a legres de Da vi Ca r ter e J im m y Ba ez r in do pa ra Allen , J oly e Kirk , qu e joga va m bolin h a . O ja n ta r term in a ra , e lá den tro Fra n ces e An gie s u pervis ion a va m os ou tros m en in os qu e tom a va m o ba n h o d iá r io. Alicia e a pequ en a La u ra , a gora com u m a n o e qu a tro m es es , b r in ca va m a legrem en te n a gra m a recém cortada.

Glór ia es ta va s en ta da em u m degra u m a is ba ixo, olh a n do com a feto e pen s a t iva m en te pa ra o s eu m arido, encostado numa coluna do balaustre com os olhos semi-s er ra dos , com o s e es t ives s e perd ido n o m u n do dos sonhos. Ela inclinou-se e colocou a mão no joelho dele.

“Qu er ido, o qu e h á ? Em qu e es tá pen s a n do?” “O qu e foi?” pergu n tou ele d is t ra ído, relu ta n do em deixa r seus pensamentos.

“Qu a l o s eu s on h o a gora ? Ain da es tá fu gin do? J á tem os o Cen tro pa ra os “pequ en os ”. Is ra el e Ros a es tão m ora n do em Fres n o e s ervin do a o Sen h or . Son n y es tá pa s torea n do u m a gra n de igreja em Los An geles . J im m y es tá t ra ba lh a n do com você e Ma r ia es tá s ervin do a Deu s em Nova York . Na s em a n a qu e vem você va i pa ra a Su écia e Din a m a rca , pa ra p rega r . Por qu e a in da es tá sonhando? O que mais poderia pedir a Deus?”

Nicky en d ireitou -s e e olh ou bem n o fu n do dos olh os in qu ir idores da com pa n h eira . Su a voz t in h a u m tom d is ta n te, qu a n do d is s e: “Nã o é o qu e eu peço a Deu s , qu er ida , m a s o qu e ele pede a m im . Com n os s o trabalho estamos só arranhando a superfície.”

Hou ve u m a lon ga pa u s a . Só os ru ídos da s a t ivi-da des a legres s oa va m em torn o da ca s a . “Ma s , Nicky”, d is s e Glór ia , m a n ten do os olh os fixos n ele, “n ã o é ta refa s ó pa ra você. É a ta refa de todos os cr is tãos — em toda parte.”

“Sei d is to”, res pon deu Nicky. “Fico pen s a n do em toda s a qu ela s en orm es igreja s , n o cen t ro da cida de, qu e fica m va zia s du ra n te a s em a n a . Nã o s er ia m a ra vilhoso s e a qu ela s s a la s de a u la in ú teis pu des s em s er t ra n s form a da s em dorm itór ios pa ra s er ch eios de cen ten a s de cr ia n ça s e a doles cen tes dos gu etos , qu e n u n ca s ou bera m o qu e é a m or? Ca da igreja poder ia tornar-se um Centro, dirigido por voluntários...”

“Nicky”, in ter rom peu Glór ia , a per ta n do-lh e o joe-lh o. “Você é u m s on h a dor . Você a ch a qu e os m em bros da qu ela s igreja s vã o t ra n s form a r os s eu s belos p réd ios em dorm itór ios pa ra cr ia n ça s perd ida s e s em la r? Eles qu erem p res ta r a ju da , m a s des eja m qu e ou tra s pes s oa s o fa ça m em s eu lu ga r . Fica m ir r ita dos qu a n do u m bêbedo per tu rba o s eu cu lto. Im a gin e o qu e d ir ia m , s e fos s em à igreja cer ta m a n h ã de dom in go, e en con tra s s em s eu “s a n tu á r io” p rofa n a do com ca m a s , ca t res , e u m ba n do de ex-vicia dos em n a rcót icos e ch eira dores de cola n os s a gu ões do tem plo? Nã o, Nicky, você é u m s on h a dor . Es s a gen te n ã o qu er s u ja r a s m ã os . Nã o des eja m ver s eu s ta petes s u jos com o pó de pés descalços.”

Nicky balançou a cabeça. “Você tem razão, é claro. Fico s em pre im a gin a n do o qu e J es u s fa r ia . Será qu e ele sujaria as mãos?”

Ele pa rou e olh ou pa ra a s m on ta n h a s d is ta n tes ,

reflet in do: “Você s e lem bra da via gem qu e fizem os n o a n o pa s s a do a Pon ta Lom a , n a ba ía de Sa n Diego? Lembra-s e da qu ele en orm e fa rol? Du ra n te m u itos a n os ele tem or ien ta do os n a vios qu e en tra m n o por to, m a s a gora os tem pos m u da ra m . Li n a s em a n a pa s s a da qu e a fu m a ça da s fá b r ica s é tã o es pes s a qu e eles p recis a m con s tru ir u m n ovo fa rol bem per to da á gu a , pa ra qu e a luz possa passar por baixo das nuvens de fumaça.”

Glória ouvia atentamente.

“É is to qu e es tá a con tecen do h oje em d ia . A igreja a in da con t in u a com a s u a lu z b r ilh a n do, bem a lto. Toda via , pou ca s pes s oa s con s egu em vê-la , porqu e os tempos mudaram, e há muita fumaça. Faz-se necessário qu e u m a n ova lu z b r ilh e per to do ch ã o — bem em ba ixo, on de o povo es tá . Nã o é s u ficien te s er o gu a rda do fa rol: eu p recis o ta m bém s er o por ta dor da lu z. Nã o, eu n ã o estou fugindo mais. Só quero estar onde há ação.”

“Eu sei”, disse Glória, refletindo profunda alegria e com preen s ã o em s u a voz. “É is to o qu e eu des ejo pa ra você. Ma s você tem de p ros s egu ir s ozin h o. Você s a be disso, não sabe?”

“Sozin h o, n ã o”, d is s e Nicky, a ba ixa n do-s e, e co-loca n do a s m ã os s ob re a s dela . “Es ta rei a n da n do n o território de Jesus.”

As r is a da s dos ga rotos n o qu in ta l torn a ra m -se m a is a lta s ; eles term in a ra m o jogo e en tra ra m . Ka r l e Ralphie tinham pegado suas Bíblias, e estavam sentados no meio-fio, defronte da casa.

Nicky ba ixou a ca beça , e olh ou pa ra Glór ia . “Hoje de m a n h ã receb i u m telefon em a de u m a s en h ora de Pa s a den a .” Pa rou , es pera n do u m a rea çã o. Glór ia es perou qu e ele con t in u a s s e. “O filh o de doze a n os foi a pa n h a do pela polícia , porqu e es ta va ven den do m a con h a . O m a r ido dela qu er qu e ele vá pa ra a ca deia.” Nicky fez u m a pa u s a . “Ma s n ã o tem os lu ga r pa ra ele,

nem dinheiro para sustentá-lo.”

Silên cio. Nicky obs erva va u m pa rda lzin h o qu e pu la va n a gra m a . Seu s olh os en ch era m -s e de lá gr imas, en qu a n to pen s a va n a cr ia n ça des con h ecida ... u m a en tre m ilh a res de ou tra s ... fa m in ta s de a m or ... d is pos ta a en fren ta r a ca deia , s ó pa ra ch a m a r a a ten çã o de a lgu ém ... p rocu ra n do a lgu m a cois a rea l... p rocu ra n do Jesus, mesmo sem o saber...

Glór ia in ter rom peu s eu s pen s a m en tos . “Nicky”, d is s e ela s u a vem en te, s eu s dedos en trela ça dos com os dele, “o que é que você vai fazer?”

Nicky s orr iu e olh ou -a n os olh os , d izen do: Fa rei o que Jesus quer que eu faça. Vou me interessar.”

“Oh Nicky, Nicky...” d is s e Glór ia , en qu a n to en -la ça va s u a s pern a s com os b ra ços . “Eu o a m o! Sem pre há lugar para mais um. E Deus vai suprir o que faltar.”

J im m y t irou a Kom bi da ga ra ge. Os m en in os su-b ira m n ela , pa ra ir a o cu lto a o a r livre n o gu eto. Nicky pôs Glór ia de pé: “Va m os ! Depres s a ! Es tá n a h ora de realizar a obra de Jesus.”

Eu es ta va pa ra com eça r a gra va çã o de u m p ro-gra m a n o es tú d io de rá d io, a o la do do m eu es cr itório, qu a n do Nicky Cru z en trou . Olh a n do à s u a volta , pa ra assegurar-s e de qu e n in gu ém m a is s e a ch a va a li, fech ou a por ta e ficou à m in h a fren te s ilen cios a m en te, com os om bros cu rva dos , a s m ã os en fia da s bem fu n do n os bols os da ca lça . Su a fa ce qu a s e n ã o t in h a expres s ã o, em bora , qu a n do eu a es tu dei, percebes s e s in a is de qu e lutava para controlar suas emoções.

“Tom e”, d is s e ele la con ica m en te, t ira n do va ga ro-s a m en te a s m ã os dos bols os . Por a lgu n s in s ta n tes , eu não sabia se devia ficar calma ou alarmada!

En tã o, s ob re a m es a d ia n te de m im , Nicky com e-çou a coloca r a m a is es t ra n h a coleçã o de ob jetos qu e eu

já vira . E le os iden t ifica va à m ed ida qu e os coloca va n a m es a : u m a ga rru ch a feita em ca s a , u m pa r de s oqu eira s qu e m e pa recera m h orr íveis , u m p u n h a l de ca bo de os s o, du a s bolin h a s de ch u m bo en gen h osamente a m a rra da s n a pon ta de u m ch icote de cou ro, e “os apetrechos” — uma agulha hipodérmica, um conta-gotas e u m a ta m pin h a de cerveja pa ra ferver a d roga — a s fer ra m en ta s in d is pen s á veis de u m vicia do em psicotrópicos.

“Esta é a minha entrega final”, disse Nicky, com os olhos brilhantes de decisão. Olhou para a mesa, tocando ca da u m dos ob jetos com a pon ta dos dedos , com o n u m a deu s . “Eu vivi por eles . Min h a vida depen deu deles . Ma s a gora m in h a n eces s ida de ces s ou . Eu os en trego a ele.”

Ele os ter ia litera lm en te coloca do n a s m ã os de J es u s , fer ida s pelos cra vos , s e is s o fos s e pos s ível. Entregou-os a m im , com o a u m a es pécie de depos itária. Agora era minha vez de ficar emocionada.

Ain da con s ervo a qu ela b iza r ra coleçã o. De vez em qu a n do eu a tom o en tre a s m ã os pa ra recorda r-m e do que foi Nicky Cruz... e do Deus cuja misericórdia e graça fez dele o que ele é hoje em dia.

Kathryn Kuhlman

Pittsburg, Pensilvânia

***

Nicky Cruz

Notas da digitalizadora:

A história de David Wilkerson e Nicky foi também contada no cinema, no filme A Cruz e o Punhal, disponível em vídeo:

www.minasdeleitura.com.br/videosvhs/038.php

Leia mais sobre Kathryn Kuhlman, no livro Bom Dia Espírito Santo, de Benny Hinn, também disponível no PDL (Projeto de Democratização da Leitura):

www.portaldetonando.com.br/forumnovo/portal.php

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