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ERICA RODRIGUES
A redação do vestibular na revista Época
Monografia apresentada à disciplina Orientação Monográfica II como requisito parcial à conclusão do Curso de Letras – Bacharelado em Estudos Lingüísticos, Departamento de Lingüística, Letras Clássicas e Vernáculas, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná Orientadora: Profª. Ligia Negri Co-orientador: Prof. Dr. Gilberto de Castro
CURITIBA 2006
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SUMARIO
Resumo, 2
1. Introdução, 3
2. Embasamento teórico, 6
3. Análise e discussão, 10
3.1 A ciência de escrever bem, 10 3.2 O jovem tem a palavra, 11
4. Considerações finais, 24
5. Referências bibliográficas, 26
6. Anexos, 27
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Resumo A prova de redação do vestibular continua sendo um assunto polêmico que motiva discussões entre professores de universidades, de escolas e de cursos pré-vestibulares. Na mídia, também são comuns programas, cadernos especiais e reportagens que veiculam informações e dicas sobre esta prova. O objetivo deste trabalho é investigar e descrever os enunciados presentes na reportagem “O jovem tem a palavra”, publicada na revista Época, em 14 de junho de 1999, cujo tema central é a redação do vestibular. Com base nos princípios teóricos sobre Análise do Discurso de Michel Foucault, a leitura e análise da reportagem foram realizadas no intuito de identificar em seu conteúdo enunciados que constituem um discurso, ou discursos, sobre redação do vestibular e escrita, de um modo geral. Na análise desta reportagem, identificamos, de um lado, opiniões que revelam uma noção mecanicista/normativa de texto e, consequentemente de linguagem; de outro, uma postura que entende a escrita como um tipo de expressão construída e intimamente ligada à experiência de cada um.
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1. Introdução
A redação do vestibular, ainda um problema...
Logo no início do curso de Letras, em uma aula da disciplina de Língua
Portuguesa, houve uma discussão sobre a redação do vestibular e lembro-me
muito bem da polêmica causada por uma “revelação” feita pela professora.
Todos calouros desabafaram seus “traumas” em relação a tão temida e
misteriosa prova de redação do vestibular. Cada um tinha uma história
interessante para contar sobre as aulas de redação do Ensino Médio ou do curso
pré - vestibular.
De maneira geral, as “dicas” e os “mitos” eram os mesmos, independente
da origem dos então calouros: jamais use o pronome de primeira pessoa do
singular (eu) nos textos, nunca esqueça do título, cuidado com letra, seja original
em suas idéias (!!!), cuidado com as “pegadinhas”, procure adequar a opinião à
instituição em que você está fazendo a prova (ou seja, se na prova do vestibular
da PUC pede-se a opinião dos candidatos a respeito do aborto, os vestibulandos
devem se manifestar contrariamente, já que a PUC sendo uma universidade
católica só aceitaria alunos católicos...). Também é interessante ressaltar a figura
do corretor de redações nestes relatos: uma pessoa enigmática, mal humorada,
extremamente maldosa, alguém que detém o “poder” de aprovar ou não um
candidato...
A professora ouviu atentamente todas as histórias, mas a cada fala não
escondia um sorriso irônico diante desses comentários, até que veio a grande
revelação: todas aquelas histórias acerca dos mistérios da prova de redação eram
bobagens! A revelação causou grande surpresa: “Ah! Se soubéssemos que tudo
isso era bobagem seria bem mais fácil...”
Sem entrar na questão do exagero ou não da turma ao relatar essas
experiências, o fato é que uma pergunta pairava no ar: se não é a universidade
que coloca essas exigências, de onde os professores e até mesmo os alunos
tiraram tudo isso?
4
No decorrer do curso, ouvi muitas histórias interessantes sobre a redação
do vestibular, porém achava que aquelas experiências pré – universitárias dos
meus colegas de turma e minhas também já não aconteciam mais. Mas durante a
realização do meu estágio de licenciatura, no Colégio Estadual do Paraná, pude
perceber que não tinha mudado muita coisa...
Nesse estágio, depois de algumas observações às aulas, eu e uma colega
optamos por realizar um outro tipo de trabalho: aulas de reforço de redação,
principalmente para os alunos do terceiro ano do Ensino Médio, prováveis
vestibulandos. As aulas se realizavam no contra-turno, assim só participava os
que realmente tivesse interesse.
Com o decorrer das aulas, as alunas foram perdendo “o medo” e a timidez
de se expressarem e em um de nossos encontros fizeram uma série de perguntas
que revelaram que “os mitos” acerca das redações do vestibular ainda circulavam
pelos colégios. Não me recordo exatamente das perguntas, mas lembro-me que
isso chamou muito a minha atenção e a de minha colega e recordamos da nossa
aula de Língua Portuguesa, quando ainda éramos calouras na universidade...
Para completar, nos últimos semestres do curso, uma professora contou-
nos mais um caso interessante sobre redação do vestibular. Em um dos
vestibulares da Universidade Federal do Paraná foi apresentada como proposta
de redação a seguinte questão aos estudantes: Você adotaria uma criança? O
comando solicitava que os candidatos respondessem escrevendo um texto
argumentativo. A professora então disse que boa parte dos vestibulandos fizeram
um grande esforço para fugir do que acreditavam ser uma “pegadinha”, tentando
responder à questão sem usar o pronome de primeira pessoa do singular! A
pergunta se dirigia ao candidato, mas ele achava que não podia se expressar no
texto, não podia dizer eu adotaria, ou eu não adotaria. Complicado, não?
Mais uma vez a pergunta: de onde surge isso?
Sabemos dos inúmeros problemas que a Educação enfrenta,
especialmente o ensino público: poucos recursos, excesso de alunos por turma,
má remuneração dos professores, falta de material didático, etc. Especificamente
no ensino de Língua Portuguesa, sabemos que a visão normativa da língua reduz
5
as aulas a mera assimilação de regras, criando um abismo entre a língua do aluno
e a da escola. Boa parte dos alunos desistem, já que não se “encaixam nessa
realidade”, e os poucos que chegam ao vestibular demonstram grandes
dificuldades de expressarem suas opiniões e têm uma visão distorcida de texto.
E por falar em vestibular... Volto aqui à questão que me motivou e quero
chamar a atenção para a maneira como a mídia aborda esse tema. Não questiono
se ele é ou não o meio mais justo de acesso a uma universidade, tampouco
questiono a importância de sua abordagem pela mídia. Mas o assunto é
extremamente difundido pelos meios de comunicação quando a época das provas
se aproxima (meio do ano e principalmente final do ano).
Na televisão são veiculados programas de revisão dos conteúdos das
provas, os telejornais mostram as aulas dos grandes cursinhos, entrevistam os
vestibulandos, divulgam as altas concorrências de alguns cursos. Também é
comum que um calouro apareça e dê as dicas de como passar bem por tudo isso
e seus conselhos são reforçados pelos comentários de psicólogos (conciliar o
tempo de estudo e o tempo de lazer, nunca estudar no dia anterior, dormir oito
horas..) e até de nutricionistas (há dietas ideais para essa época).
Essa ênfase também acontece em outros veículos de comunicação: jornais,
revistas e internet que costumam publicar reportagens ou cadernos específicos
meses antes das provas com resolução de questões dos grandes vestibulares,
resumos dos livros indicados para a prova de Literatura, tópicos importantes de
todas as disciplinas, dicas de professores, etc. E é claro que também aparecem
dicas e opiniões sobre as redações dos vestibulares. Mas como as questões
referentes à redação do vestibular são abordadas?
O objetivo deste trabalho, então, é investigar e descrever os enunciados
presentes em uma reportagem publicada na revista Época cujo tema central é a
redação do vestibular.
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2. Embasamento Teórico
A análise da reportagem “O jovem tem a palavra” será realizada na
perspectiva da análise do discurso apresentada no trabalho de Gregolin (2004)
cujo propósito é responder à necessidade de um olhar histórico para a teoria do
discurso, com objetivo de “compreender a coerência, a densidade da proposta
teórica formulada em um certo momento da história e por ela determinada“ (p. 12).
Para tanto, a autora busca neste trabalho “revolver o solo que possibilitou a
aparecimento de uma teoria do discurso dentro de um campo de pesquisas que
convencionalmente denomina-se análise do discurso de linha francesa e que tem
em Michel Pêcheux o seu centro de gravitação.” (p. 13) . Gregolin (p. 13, 2004) também ressalta a importância de se considerar que a obra
de Michel Pêcheux dialoga com outros trabalhos que vão na mesma linha de seu
pensamento ou também o questionam. Por isso, a autora busca a história da Análise do
Discurso Francesa : “por meio dos diálogos/ duelos teóricos (nunca tranqüilos) entre
Michel Foucault e Michel Pêcheux, que tramaram-se os fios de uma teoria do discurso
que propôs um novo olhar para o sentido, o sujeito e a História” (p. 13). Gregolin ressalta
que o olhar sobre a história da análise do discurso francesa colabora para o entendimento
da história desse campo de pesquisa no Brasil:
Há, portanto, uma história da análise do discurso na França e uma história dessa análise do discurso no Brasil: se há profundas relações entre elas, há também profundas diferenças. A recuperação histórica das bases francesas é um caminho para compreender essa história brasileira. Ao vasculhar, nos textos fundadores, as motivações teóricas e políticas da construção da análise do discurso francesa, meu objetivo é recuperar a historicidade de sua constituição, enxergando o lugar dos diálogos entre Foucault, Althusser e Pêcheux na tessitura de balizas que sustentam os trabalhos brasileiros. (p. 16)
Gregolin percorre as “ três épocas” de Michel Pêcheux, evidenciando que o
autor, ao decorrer de seus trabalho, foi revendo seus conceitos e aproximando-se
aos poucos das teses foucautianas. A “primeira época” de Pêcheux inicia-se com
o livro Análise Automática do Discurso:
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proposta teórico-metodológica impregnada pela releitura que ele faz de Saussure, deslocando o objeto, pensando a langue (sua sistematicidade; seu caráter social) como base dos processos discursivos, nos quais estão envolvidos o sujeito e a História. Na concepção do objeto discurso cruzam-se Saussure (relido por Pêcheux), Marx (relido por Althusser) e Freud (relido por Lacan). As teses althusserianas sobre os aparelhos ideológicos e o assujeitamento propõem um sujeito atravessado pela ideologia e pelo inconsciente (um sujeito que não é fonte nem origem do dizer; que reproduz o já-dito, o já-lá, o pré-determinado. A análise automática busca colocar em evidência traços do processo discursivo, a fim de determinar os enunciados de base produzidos pela “máquina discursiva’. (p. 62)
Na denominada “segunda época”, Michel Pêcheux “inicia um movimento
em direção à heterogeneidade, ao Outro, à problematização metodológica”, e,
posteriormente, fazendo uma auto crítica na “terceira época”:
Pêcheux afasta-se de posições dogmáticas sustentadas anteriormente a partir de sua vinculação com o Partido Comunista. É o momento do encontro com a “nova História”, de aproximação com as teses foucaultianas, em que Pêcheux critica duramente a política e as posições derivadas da luta na teoria, e assim, abre várias problemáticas sobre o discurso, a interpretação, a estrutura e o acontecimento.” (GREGOLIN, 2004, p. 64)
Segundo Gregolin, portanto, o ano de 1980 marca a “mudança de rumos
dos trabalhos realizados por Michel Pêcheux”, pois “as categorias althusserianas
de ‘luta de classes’, de interpelação ideológica’ e a insistência de Pêcheux em
pensar centralmente no lingüístico já não cabiam nesse novo mundo que se
desenhava pleno heterogeneidades” (p .154).
Gregolin também traz as características das “três épocas de Michel
Foucault”, identificando o ponto comum em todas elas “o sujeito é, portanto, o
lugar para onde Foucault olhará na construção de sua obra. Ele é o seu objeto,
seja enquanto objeto de saber, seja enquanto objeto de poder, seja enquanto
objeto de construção identitária” (2004, p. 58). Por isso, suas reflexões estão
baseadas na relação entre discurso, linguagem, história e sociedade, conforme
afirma Gregolin:
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Segundo Foucault, para analisar diferentes modos de subjetivação é preciso determinar e descrever a proliferação dos acontecimentos discursivos através dos quais, graças aos quais e contra os quais se formaram as noções, os conceitos, os topoi que atravessam e constituem os objetos e engendram os discursos que falam sobre eles. (p. 59)
Assim, para estudar os discursos em suas condições de produção, Foucault
baseia seus trabalhos no método arqueológico que “permite analisar as redes de
relações entre o discurso e outros domínios (instituições, acontecimentos políticos,
práticas e processos econômicos” (GREGOLIN, 2004, p. 70): O método arqueológico envolve a escavação, a restauração e a exposição de discursos, a fim de enxergar a positividade do saber em um determinado momento histórico. Ele se constitui na busca de elementos que possam ser articulados entre si e que fornecem um panorama coerente das condições de produção de um saber em certa época. (GREGOLIN, 2004, p. 71)
Isso não significa, entretanto, buscar a origem ou significados escondidos
por trás das palavras , mas sim “analisar o acontecimento discursivo, isto é, tratar
os enunciados efetivamente produzidos, em sua irrupção de acontecimento, a fim
de compreender as condições que possibilitaram a sua emergência em um certo
momento histórico. (p. 76)
Dentre os conceitos de Michel Foucault relacionados ao discurso, para a
leitura e análise desenvolvidas neste trabalho, torna-se fundamental a
compreensão do que o autor define por “enunciado”. Para Foucault, enunciado
não se identifica exclusivamente com uma unidade lingüística e gramatical, pois
está além da língua e é “uma função que cruza um domínio de estruturas
possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos no tempo e no
espaço” (FOUCAULT, 1995, p. 99).
Os enunciados se repetem independentemente dos sujeitos, épocas e
lugares em que foram produzidos, mas de acordo com as “leis” da formação
discursiva a qual pertencem: “Um enunciado pertence a uma formação discursiva,
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como uma frase pertence a um texto, (...) enquanto a regularidade de uma frase é
definida pelas leis de uma língua, (...) a regularidade de um enunciado é definida
pela própria formação discursiva” (FOUCAULT, 1995, p. 135).
Portanto, discurso é compreendido como: “Um conjunto de enunciados, na
medida em que se apóiem na mesma formação discursiva” (FOUCAULT, 1995, p.
95).
Desta forma, a leitura e análise da reportagem serão realizadas no intuito
de identificar em seu conteúdo enunciados que constituem um discurso, ou
discursos, sobre redação do vestibular e escrita, de um modo geral.
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3. Análise e discussão 3.1 A ciência de escrever bem
A revista Época reservou a capa de sua edição do dia 14 de junho de 1999
ao polêmico assunto da redação no vestibular. Nesta capa, está a foto de uma
jovem identificada pela legenda: “Éllen Sayuri, 17 anos, é autora de uma das
melhores redações do vestibular da USP deste ano”. Na imagem, a estudante
aparece segurando uma caneta maior do que ela, o que complementa a idéia
expressa pelo título: “A ciência de escrever bem”. A palavra “ciência” nos remete a
um tipo de saber restrito, ou seja, escrever é algo muito complicado, uma
“ciência”, um saber que poucos têm condições de dominar. Na imagem,
entendemos que a caneta, instrumento clássico da escrita, representa, portanto, o
próprio ato de escrever, ou ainda, a dificuldade de muitos frente à escrita.
Para essa dificuldade a revista apresenta a “solução” nos dois tópicos que
estão abaixo do título: “A receita para uma boa redação“ e “Como evitar
armadilhas do idioma”. Destacamos aqui as palavras “receita” e “armadilhas”: a
primeira nos remete a idéia de enumeração de passos para atingir um
determinado resultado (para quem tem dificuldade em escrever, o conteúdo da
reportagem trará as diretrizes para superar isso) e, na segunda, claramente
percebemos uma noção confusa de língua: estamos sujeitos a ciladas armadas
pelo idioma? Quais são essas armadilhas?
Ainda na capa, há um enunciado que contraria os anteriores: “Vestibular e
internet melhoram textos dos jovens”. Isso indica uma visão otimista da revista: o
retorno da prova de redação ao vestibular e o acesso à internet possibilitaram
uma maior proximidade entre estudantes e a escrita, trazendo bons resultados.
Essa dualidade estará presente, como veremos, no conteúdo da
reportagem: de um lado opiniões que revelam uma noção mecanicista/normativa
de texto e, consequentemente de linguagem; de outro uma postura que entende a
11
escrita como um tipo de expressão construída e intimamente ligada à experiência
de cada um.
3.2 O jovem tem a palavra
A reportagem, que ocupa 6 páginas da revista, é intitulada “O jovem tem a
palavra”1 e faz parte da seção “Ciência e Tecnologia”, subseção “Educação”. A
matéria aborda o tema sob vários aspectos: além de um texto central em que são
relatadas as experiências de jovens que obtiveram boas notas na redação dos
vestibulares (Universidade de São Paulo, Universidade de Brasília e da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e opiniões de professores sobre o
assunto, há trechos de redações destes mesmos estudantes seguidos da análise
feita pela professora Maria Thereza Fraga Rocco, fotos e os seguintes blocos de
textos:
- “Leitura e reflexão”, em que há opiniões de João Ubaldo Ribeiro, Josué
Montello, Fernando Henrique Cardoso, José Roberto Torero, Luis Fernando
Veríssimo e Lygia Fagundes Telles;
- “Modelos eternos”, conselhos que norteiam a redação dos jornais The
Economist e The New Yorker;
- “Critérios de avaliação”, roteiro para correção das redações;
- “Como escrever bem” , algumas dicas para a escrita;
- “Entrevista”, com o professor Pasquale Cipro Neto.
No início do texto central da reportagem, são apresentados aos leitores
Éllen e Henrique, treineiros do vestibular da Fuvest 1998 - 1999 e “autores dos 51
melhores textos produzidos pela multidão de candidatos ao concorrido vestibular
da Universidade de São Paulo” (p.80). O clima é de otimismo. Segundo a
reportagem, os textos dos jovens estão melhorando a cada ano:
1 Reportagem de Yuri Vasconcelos e Cristiane Segatto.
12
Ellen e Henrique já não são raridades. Boa notícia. Depois do período de trevas imposto pela ditadura das cruzinhas nos quadrados, as respostas com múltipla escolha abriram espaço, em meados da década de 70, para volta da prova de redação aos exames. Desafeitas à escrita e à leitura, as primeiras turmas expostas à mudanças enxergaram na ressurreição da palavra mais um dos fantasmas do vestibular – e naufragaram espetacularmente. Agora, estudantes que sabem escrever (e gostam de ler) já não são apontados como fenômenos. (p. 80 - 81)
A professora Maria Thereza Fraga Rocco, “com a autoridade de quem
analisa redações desde o vestibular de 1978” (p. 82), entende que essa diferença
na produção dos textos da geração de 20 anos atrás se dá pois “não tinham aulas
práticas sobre como fazer uma boa redação” (p. 82). Na seqüência, a revista faz o
seguinte comentário:
Hoje, os estudantes começam a exercitar a comunicação escrita já no ensino fundamental (o antigo 1º grau). Quando a disputa por vagas na universidade se aproxima, descobrem nos cursos vestibulares que escrever bem é, simultaneamente, arte e ciência. Exige talento mas também a assimilação de técnicas, regras, e às vezes, truques. (p. 82)
É interessante observar “com que escrita” os vestibulandos se deparam
nos cursos pré - vestibulares: um misto de arte e técnica, algo que “exige talento
mas também técnicas, regras, e às vezes truques”. Aqui está a solução do
problema exposto na capa: para superarmos as “armadilhas do idioma”, portanto,
é preciso talento, regras e até mesmo truques! Isso, no entanto, pouco ou nada
esclarece sobre o ato de escrever e nos remete à critica feita, há duas décadas,
por Gustavo Bernardo Krauser, em seu livro Redação Inquieta (1985) em que o
autor revela como definições deste tipo apenas geram idéias confusas sobre a
escrita:
Na realidade, ele [o aluno] não sabe como começar, como fazer o meio e como terminar. Recorda-se confusamente de duas noções opostas que lhe foram transmitidas pela escola e pelos mais velhos: escrever é um dom e escrever é questão de técnica. Não sabe mal com qual das duas fica. Se escrever é um dom, se ele não tem o dom, e não deve ter porque não baixa nenhuma inspiração na
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hora “h”, não adianta técnica. Se escrever é questão de técnica, por que alguns pegam logo a tal da técnica e ele não? Então ele, além de desinspirado e sem dom, é burro. Logo, não tem mesmo jeito, o negócio é se conformar e enganar escrevendo as frases do mestre em qualquer ordem para ver se o dito cujo “cai nessa”. (KRAUSER, 1985, p. 5)
Em 1983, Alcir Pécora também já afirmava que os problemas encontrados
nos textos dos alunos “surgiam muito menos em função de dificuldades técnicas
do que em função das que eram geradas pela concepção de linguagem e de
escrita adotadas pela escola” (PECORA, 1999, p. 114). E qual seria essa
concepção de linguagem? Basicamente, o autor se refere a um ensino centrado
em regras e posições normativas que separam a língua da experiência do aluno.
Assim, nesse contexto, qualquer atividade relacionada com a linguagem acaba
tomando ares de artificiliadade e mecanicismo.
Um enunciado recorrente, derivado desta concepção mecanicista de
linguagem, é o que estabelece uma relação automática entre hábito de leitura e
bom desempenho da escrita:
A relação entre escrever e ler, entretanto, vem sendo posta como mecânica, de ligação direta, levando à idéia de que uma pessoa que leia muito necessariamente escreve bem. Isto é falso. (...) ler não é condição para escrever, mas sim munição para viver, e para escrever também. A atitude de ler é metonímia da vontade de entender o mundo. A atitude de escrever, por sua vez, é metonímia da pretensão legítima e transcendente de transformar o mundo. (KRAUSER, 1985, p.12)
Na reportagem, esse enunciado aparece da seguinte maneira: nas duas
primeiras páginas, há uma montagem com fotos dos estudantes que obtiveram
bons resultados na prova de redação de alguns vestibulares. Na legenda da foto
dos estudantes Tomaz, Melina e Susana está escrito: “GOSTO PELA LEITURA: Graças ao hábito de leitura, os calouros gaúchos Tomaz, Melina e Susana fizeram
boas redações no vestibular” (p. 81). Duas páginas adiante, no texto central da
revista: “Outro conselho a todos é lembrado pelo vice-diretor da Fuvest, José Atílio
Vanin: ler é condição essencial para escrever bem” (p. 84). E na seqüência,
novamente, Tomaz, Melina e Suzana, calouros - “devoradores de livros” - da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul aparecem como exemplos: “Quando
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me dei conta já tinha lido quase tudo o que existia na biblioteca da escola” e “Perdi
alguns relacionamentos pelo prazer da leitura” (p. 84).
No parágrafo seguinte, no entanto, a fala da professora Maria Thereza
Fraga Rocco é anunciada como um alerta: “Mas atenção: engana-se quem pensa
que basta ler para escrever com perfeição”. E a professora complementa: “A
leitura é uma atividade muito diferente da escrita. Ao ler, você fica informado, mas
isso não significa que você passe automaticamente a escrever bem“ (p. 84 – 85).
Como vimos anteriormente, um enunciado pode se repetir,
independentemente dos sujeitos, mas sim, de acordo com as leis que regem a
formação discursiva ao qual pertencem. Por isso nas opiniões de diversas
pessoas na reportagem - jornalistas, professores, estudantes – identificamos
enunciados dessa formação discursiva que coloca uma relação automática entre
hábito de leitura e escrita e até mesmo neste “conselho” da escritora Lygia
Fagundes Telles, na seção “Leitura e Reflexão”, desta mesma reportagem:
O único caminho é ler, ler, ler. Ler os clássicos, perceber por que Machado de Assis é vivo até hoje. Essa é a única salvação para a formação de um jovem. Sabendo interpretar o que lê, o estudante saberá organizar suas idéias e produzir um bom texto. O resto é conversa, falsa teoria. (p. 83)
Sem dúvida a leitura de autores da literatura erudita é de grande
importância, mas colocar isso como “a única salvação para a formação de um
jovem” revela uma concepção bastante limitada de leitura e educação... Há nessa
recomendação da escritora, um discurso que permeia o senso comum e, de
acordo com o desenvolvimento dos trabalhos do projeto O discurso sobre a leitura
e o leitor na mídia escrita no período de 1970 a 20002, também está presente na
2 As atividades deste projeto foram desenvolvidas por um grupo de estudantes do curso de Letras da UFPR, vinculado ao Programa de Iniciação Científica da instituição, sob a coordenação do Prof. Dr. Gilberto de Castro. O projeto recebeu auxílio financeiro da Fundação Araucária e foi realizado no período de 2004 a 2005. Tivemos como fonte os jornais Folha de São Paulo e Gazeta do Povo e a Revista Veja. Os resultados encontrados em cada veículo foram apresentados no 15º Congresso Brasileiro de Leitura (COLE, 2005) e também no Encontro de Iniciação Científica (EVINCI, 2005).
15
mídia. Trata-se de um discurso em que o ato de ler é compreendido como uma
atividade mecânica e quantitativa, na qual é considerado leitor aquele que
desenvolveu e tem o hábito de ler livros, e não qualquer livro, mas sim o livro
literário e clássico. Este reconhecimento e valorização de apenas “uma leitura” nos
afasta de possíveis reflexões que poderiam trazer contribuição para a formação de
leitores.
Nesse mesmo sentido, questiono a “receita” dada por João Ubaldo Ribeiro:
Os jovens devem praticar a redação em diários, cartas, emails. Outra dica é ler os clássicos na ortografia antiga. Perceber as mudanças e conviver com recursos sintáticos fora de uso podem ajudar o estudante a entender a Língua Portuguesa (p. 82)
O escritor inicia com um conselho importante: exercitar a prática da escrita
– o que abordaremos mais adiante. Porém, será que para escrever um bom texto
é necessário ter contato com a ortografia antiga e “conviver com recursos
sintáticos fora de uso”? Este é um tipo de conhecimento muito especializado, que,
em geral, é objeto de estudo de profissionais da área de Letras. O que as
universidades esperam dos candidatos: especialistas em língua ou pessoas que
consigam articular suas idéias e expressá-las adequadamente?
Uma das respostas que o professor Pasquale Cipro Neto apresentou na
entrevista pode nos ajudar:
ÉPOCA: Quem gosta de ler escreve bem? Pasquale C. Neto: A leitura é necessária, mas não é suficiente. Para escrever bem é preciso raciocínio lógico e contato com a língua padrão. O candidato deve estar atento à estrutura do texto e à correção gramatical. Um texto bem amarrado, mas com a língua descuidada, receberá uma avaliação negativa. (p. 85)
A leitura de outros meios, não apenas de livros literários, também aparece
como recomendação, mas de forma bem mais discreta. O professor Francisco
Platão Savioli ressalta que não se faz um bom texto apenas com ousadia e
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criatividade, e sim “a familiaridade com o tema é fundamental para elaborar uma
composição consistente, sem traços de ingenuidade” (p. 83). E complementa:
Quando o estudante está familiarizado com o tema, mas não domina a língua, as redações ficam herméticas. Se ocorrer o contrário, o texto se torna inconsistente. Por isso é essencial estar informado sobre os fatos do cotidiano. (p. 83)
Para reforçar essa recomendação, na seqüência, são citados 3 estudantes:
A receita é seguida pela estudante paulista Renata Malvezzi, de 20 anos, e por seus colegas baianos Edgar Vianna Neto, 20, e Aline Jesus Farias, 18. Dispostos a conseguir uma vaga na universidade, eles ressaltam o quanto é importante assistir aos programas jornalísticos na televisão e ler jornais e revistas. “Nas aulas, aprendemos a construir um texto e tipos de argumentação”, diz Renata. “Mas isso não adianta se você não souber o que acontece no mundo”. (p. 83 – 84)
Esse reconhecimento da necessidade de busca por informações em
diferentes meios (jornais, revistas, televisão e internet) também pode ser
percebido na legenda de uma foto (p. 82) de um jovem segurando uma vassoura:
“ESFORÇO RECOMPENSADO: o ex-gari Wellington lia jornais velhos para se
manter atualizado sobre o cotidiano”. (Wellington foi aprovado no vestibular da
Universidade de Brasília, como esclarece posteriormente o texto). Mesmo diante
da contribuição trazida pela leitura de outros meios e pela “popularização” do uso
de computadores, nada supera o contato com obras autores clássicos:
Graças à popularização dos computadores, os meninos do Brasil aprendem a lidar com as palavras para navegar na internet, remeter ou receber mensagens informatizadas. Nenhuma geração de brasileiros começou a escrever tão cedo e tão intensamente como a “geração da internet”. Podem demorar a descobrir os livros de Machado de Assis, mas estão mais próximos do grande escritor. (p. 82)
No trecho abaixo, no bloco “Leitura e Reflexão”, o autor Josué Montello, tem
uma opinião diferente acerca da relação dos jovens com os computadores:
17
Além de ler muito, o jovem precisa ampliar seu vocabulário. Hoje, a imagem sobrepõem-se à palavra. Esta geração, que domina tão bem o computador precisa buscar a palavra. Também é importante raciocinar sobre o que foi lido, desconfiar daquilo e tentar novas conclusões. (p. 82)
Essa idéia de que é preciso “ampliar o vocabulário” para escrever bons
textos está presente no imaginário de muitos. Na tentativa de demonstrar “riqueza
vocabular” e impressionar corretores, estudantes acabam empregando em seus
textos palavras sem conhecer o significado que elas possuem. Como Pécora
(1999) esclarece em sua análise, isso é decorrente da imagem que estudante tem
da escrita:
(...) é possível que esse procedimento se esclareça por uma imagem que o aluno possa ter adquirido de que um bom desempenho na escrita apresenta necessariamente uma grande variedade lexical ou vocabular. Nesse caso, para responder a essa imagem, ele poderia ser levado a utilizar algumas palavras cujo emprego realmente não conhece, em prejuízo de sentido da oração ou da construção lingüística onde essas palavras aparecem. (PECORA, 1999, p. 48)
A professora Wania Aragão, corretora das provas de vestibular da
Universidade de Brasília, reconhece esse problema na relação dos jovens com a
escrita: “Na tentativa de agradar quem vai ler a prova, reproduzem um discurso
que não é deles”. Para o professor Carlos Cortez Minchillo (Colégio Bandeirantes)
essa tentativa de impressionar não é válida: “Quem tenta mostrar erudição pode
cair numa armadilha”. A professora Maria Thereza Fraga Rocco, em entrevista a
Revista Época em 09/09/2002, faz um comentário sobre a imagem que foi
construída dos corretores das provas de redação:
Os jovens acham que a banca é formada por senhores vestutos, que gostam de palavreado difícil e expressões rocambolescas. Os corretores são muito preparados e relativamente jovens. Não há, por exemplo, nenhum policiamento sobre as posições que o candidato deve assumir. (...) Citações são bem vindas, desde que sirvam de argumento para comprovar uma idéia. A citação vira uma inutilidade quando quer demonstrar erudição.
Escrevendo para impressionar o corretor e pensando apenas em
preencher um espaço em branco, os estudantes deixam de lado um elemento
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importante na prática da escrita: não escrevemos simplesmente para preencher
linhas, mas para afirmar nossas idéias para o leitor:
Escrever para o outro, ou para outros, contínua representando o ato de afirmar-se, firmando no papel as próprias idéias. Além disso, implica considerar atentamente a existência alheia. E a consideração da existência alheia passa pelo esforço de facilitar o acesso geral às idéias próprias em questão. (...) preocupar-se com o leitor, representa preocupar-se com o seu entendimento preciso, mas não equivale a subordinar-se humilhantemente, não equivale escrever apenas o que o outro quer ver escrito. (KRAUSER, 1985, p. 16 –17)
Como já dissemos, os problema nas produções de textos portanto têm
origem na “falsa imagem da especificidade da escrita” (PECORA, 1999, p. 72).
Outro exemplo claro desta “falsa imagem” podemos ver nas páginas 84 e 85 da
matéria em foco, em que a revista coloca um bloco de texto intitulado Como
escrever bem:
Dicas que valem para brasileiros de todas as idades
• O uso do gerúndio empobrece o texto. Lembre que não existe gerúndio no Português falado em
Portugal.
• Adjetivos que não informam são dispensáveis. Por exemplo: luxuosa mansão. Toda mansão é
luxuosa.
• Evite o uso excessivo do “que”. Essa armadilha espreita períodos longos. Prefira frases curtas.
• Escreva com simplicidade. Evite o uso de expressões virtualmente banidas da linguagem oral.
Por exemplo: “Após” e “ao invés” (que significa ao contrário e costuma ser utilizado
equivocadamente). Prefira “depois de” e “em vez”.
• Evite clichês, frases feitas e jargão.
• O verbo fazer no sentido de tempo não é usado no plural . é errado escrever: “Fazem alguns
anos que não leio um livro” (a informação deve ser correta, mas essa é outra história)
• Cuidado com redundâncias. É errado escrever por exemplo: “Há cinco anos atrás”. Corte o “há”
ou dispense o “atrás”.
• Só com a leitura intensiva se aprende a usar vírgulas corretamente. As regras sobre o assunto
são insuficientes. Leia bons autores e faça como eles: trate a vírgula com bons modos.
• Sempre que usar longas declarações, feche aspas depois da primeira frase, coloque vírgula e
use um verbo seguido do nome de quem diz aquilo. O leitor precisa respirar, e gosta de saber
com quem está falando.
• Leia muito, leia sempre, leia o que lhe pareça agradável.
• Escreva diários, cartas, e-mails, crônicas, poesias, redações, qualquer texto. Só escrevendo se
aprende a escrever.
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Podemos dizer que apenas em uma das dicas acima há um pouco de
preocupação com a interação que será estabelecida entre autor e leitor do texto,
mesmo assim trata-se da abordagem de um aspecto bastante formal da língua: o
uso de aspas. Como vimos em opiniões já citadas, o cuidado com questões
gramaticais também é importante para produção de um bom texto, mas aqui essa
preocupação exagerada com as “armadilhas” dá origem a dicas bastante
confusas. Por exemplo, a primeira dica recomenda que não utilizemos gerúndio
porque é uma forma verbal que não existe no português falado em Portugal. Como
justificar uma dica com um argumento como esse? Como podemos usar como
parâmetro para a língua escrita portuguesa no Brasil a língua portuguesa falada
em Portugal? São inúmeras as diferenças entre o padrão escrito e o padrão falado
no Brasil, maiores ainda em relação a essas variedades do português de Portugal.
A tendência é que a escrita incorpore as mudanças da oralidade, mas isso
é um processo lento, cada uma dessas variedades têm suas características e não
é adequado que usemos uma delas como parâmetro de outra. Nesse mesmo
grupo de dicas, encontramos um exemplo de que não podemos usar a oralidade
como parâmetro para a escrita: Cuidado com redundâncias. É errado escrever por
exemplo: “Há cinco anos atrás”. Corte o “há” ou dispense o “atrás”. A nossa
tendência é sermos redundantes na escrita porque na oralidade não há diferença
entre a pronúncia de “a” e “há”, portanto, sentimos necessidade de reforçar que se
trata de tempo decorrido e por isso acrescentamos “atrás”.
Com relação ao uso de vírgulas, a dica revela uma perspectiva que entende
o aprendizado de aspectos relacionados à linguagem com interação: aprendemos
a usar vírgula pela leitura (é claro que a revista marca que não se trata da leitura
de qualquer autor, mas sim dos “bons autores”: Só com a leitura intensiva se
aprende a usar vírgulas corretamente. As regras sobre o assunto são
insuficientes. Leia bons autores e faça como eles: trate a vírgula com bons
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modos....) nesse mesmo sentido, interpretamos a última dica que enfatiza que a
escrita só se aprende com a prática. No quadro “Leitura e reflexão”, a importância
também da prática da produção de textos também é citada: “Os jovens devem
praticar a redação em diários, cartas e emails.” (João Ubaldo Ribeiro, p. 82). E,
Luiz Fernando Veríssimo:
Ler muito para ver como os diversos autores escrevem é um bom começo para aprender a redigir um texto. O que não se pode desprezar também é a prática constante da escrita, sempre com a preocupação da clareza. Resumir ajuda muito a praticar a concisão. (p. 83)
Por isso o professor Francisco Platão Savioli “recomenda aos alunos fazer
rascunhos, que funcionam como anteprojeto da redação final”. Para ilustrar, há o
exemplo do estudante Wellington, que a revista faz questão de identificar como
“ex – gari” e “leitor do poeta Carlos Drummond de Andrade” :
O ex-gari Wellington Bispo Alves, 21 anos, leitor de Carlos Drummond de Andrade, usou esse artifício para conseguir uma vaga no curso de Informática da Universidade de Brasília. “Tinha dificuldades de me expressar então colocava o pensamento no papel, ajeitava e, com o tempo, organizava as palavras”, diz. ( p. 84)
Como dissemos, a revista preocupa-se em informar que Wellington é um
leitor de Carlos Drummond de Andrade,( “um bom autor”) , na seção Entrevista o
professor Pasquale Cipro Neto também cita o mesmo poeta :
ÉPOCA: Que conselhos o senhor dá a quem vai prestar vestibular? Pasquale C. Neto: Ninguém aprende nada da noite para o dia. Como disse Carlos Drummond de Andrade, amar se aprende amando. Da mesma forma, escrever se aprende escrevendo.. Ninguém vai receber uma iluminação no dia da prova. (p. 85)
E Fernando Henrique Cardoso também recorre a Drummond:
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Já dizia o poeta Carlos Drummond de Andrade que escrever é cortar palavras. Ou seja: o texto deve ser curto para prender a atenção do leitor, evitando que ele se canse. Além disso, o texto deve ser relido várias vezes, em busca da perfeição possível. (p. 82)
Ao lado dessa citação há uma foto e a seguinte legenda: “Fernando
Henrique Cardoso, autor de Dependência e Desenvolvimento na América Latina”
(p. 82). Curioso que, na época da publicação da reportagem, junho de 1999,
Fernando Henrique Cardoso era presidente do Brasil, mas a revista optou por
marcar sua posição, seu poder de opinar sobre o assunto por ele ser um “autor” e
não o presidente! Assim, o argumento de autoridade é dado pelo autor, ainda que
o prestígio seja dado pelo presidente.
Foucault ao discorrer sobre os mecanismos de produção e controle dos
discursos aponta que, entre os procedimentos de exclusão, a interdição é o mais
evidente: “Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que se pode falar
de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de
qualquer coisa.” (FOUCAULT, 2004, p. 9).
Assim, não é qualquer pessoa que tem o “direito” de falar sobre o ato de
escrever, por isso, em diversos momentos da reportagem, os autores da matéria
preocupam em identificar “de que lugar “ essa pessoa fala. Neste bloco, “Leitura e
reflexão”, a opinião do “escritor” Fernando Henrique Cardoso, está ao lado de
outras opiniões também de escritores. Outro exemplo, na página 81 da
reportagem, ao lado da foto da professora Maria Thereza Fraga Rocco há uma
caixa de texto - Quem é a examinadora - que traz as seguintes informações:
“professora da Faculdade de Educação da USP; há 21 anos analisa redações do
vestibular; autora do livro Crise na Linguagem: a redação no vestibular”. Os
estudantes que relatam suas experiências são todos provenientes de
universidades públicas e com tradição reconhecida por todos (Universidade de
São Paulo, Universidade de Brasília e Universidade Federal do Rio Grande do
Sul), são pessoas que têm “gosto pela leitura”, lêem “bons autores”, etc.
Outro aspecto interessante são os critérios de avaliação que a revista
coloca na página 84:
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A revista não identifica de que universidade são esses critérios,
genericamente coloca-os como um “padrão” comum seguido pelos vestibulares. É
interessante que nem nesse bloco e também em nenhum outro momento da
reportagem, houve uma preocupação em esclarecer a necessidade de adequação
ao gênero textual solicitado. Nesses critérios acima, o máximo que percebemos é
uma adequação entre os critérios de correção para textos argumentativos e
narrativos. Diferentemente dos critérios de correção apresentados, por exemplo,
estão os da Universidade Federal do Paraná, que avalia em suas questões
domínios de diversos tipos de textos, ou seja diversos gêneros da língua escrita:
Cada questão da prova requer domínio de escrita de determinado tipo de texto; sabendo que cada tipo de texto, ou gênero, tem suas intenções específicas; e cada intenção textual requer uma situação enunciativa próprias. (WACHOWICZ, T. C. et al, 2003, p. 317).
Critérios de Avaliação
Roteiro seguido pelos professores na correção de textos nos vestibulares
• A redação não pode fugir ao tema proposto. O conteúdo do texto precisa ter
relação direta com o tema. Pode parecer uma regra óbvia, mas nem sempre ela
é seguida.
• É avaliada a capacidade do aluno de organizar os argumentos que
fundamentarão as conclusões do texto. No caso de um texto narrativo, leva-se
em conta a habilidade do autor na construção de personagens.
• O uso da língua na forma como ela é escrita. Ou seja, é uma armadilha para o
aluno o emprego de termos coloquiais, utilizados na fala e não em textos.
Expressões coloquiais só são aceitas na reprodução de diálogos. Isso não
significa que o texto tenha de ser empolado, de difícil entendimento.
• A utilização correta dos recurso da língua. Em outras palavras evitar erros
gramaticais.
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Segundo Faraco (2003), o uso da expressão “gêneros do discurso” se
disseminou no Brasil a partir da reforma de ensino em 1996 e tem sua referência
no pensamento do Círculo de Bakhtin. “A noção de gênero serve, portanto, como
unidade de classificação: reunir entes diferentes com base em traços comuns”
(FARACO, 2003, p. 108). A comunicação verbal (oral e escrita) se realiza por meio
de diferentes gêneros pois não falamos ou escrevemos de maneira aleatória mas
sim segundo “critérios” do contexto em que estamos. Sabemos que a maneira de
cumprimentarmos nossos amigos e nossos pais são diferentes. Da mesma forma,
na escrita também há essa adequação: escrever um texto publicitário não é a
mesma coisa que escrever uma notícia, uma crônica ou mesmo um editorial. Por
isso, é importante avaliar nas provas de redação o domínio que o estudante
possui de diferentes gêneros da escrita.
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4. Considerações finais
Como percebemos na análise, os enunciados desta reportagem revelam
dois tipos de discursos sobre a redação do vestibular e, de maneira mais
abrangente, também sobre a escrita. De um lado, reconhecemos falas, opiniões e
conselhos que revelam uma postura mecanicista, que, basicamente, associa o
aprendizado de produção de texto a enumeração de regras gramaticais e à leitura
de obras de autores clássicos. De outro lado, também aparecem enunciados que
mostram que a escrita é um tipo de atividade que precisa ser exercitada para que
seu aprimoramento se dê gradativamente, o que não elimina a necessidade de
cuidados com as normas da língua padrão e de leitura não apenas de obras de
autores clássicos, mas também de jornais, revistas, internet, etc. Diante dessa
dualidade, em trechos em que poderíamos reconhecer sub-repticiamente “um
discurso” da revista, percebemos que, na verdade, o veículo transita entre essas
duas concepções de texto, o que em alguns momentos dá origem a interpretações
um pouco confusas.
Esse trabalho é um recorte pequeno, mas que de certa maneira, pode
representar concepções sobre escrita que fazem parte do senso comum de
estudantes e até mesmo de alguns professores. Por isso, seria interessante
estender a análise a um recorte temporal maior, verificando também como esse
discurso aparece em outros veículos, como por exemplo, no Fovest, caderno
publicado semanalmente pelo jornal Folha de São Paulo, que aborda
exclusivamente questões referentes ao vestibular.
Outro aspecto que nos chamou atenção foi a ausência de esclarecimentos
aos leitores da revista sobre a questão dos gêneros do discurso, tópico que há
mais de uma década foi incorporado pelos Parâmetros Curriculares de Ensino de
Língua Portuguesa. Essa ausência pode ser justificada, talvez, pelo fato de os
vestibulares da maioria das universidades ainda cobrarem a tradicional
“dissertação” de 30 linhas de seus candidatos. Por isso, seria interessante
conhecer as provas de redação e os critérios de avaliação pelo menos da
universidades que aparecem com maior freqüência nas reportagens. É importante
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ressaltar que os vestibulares das universidades não pretendem estabelecer
parâmetros para os conteúdos que devem ser abordados nas escolas. No entanto,
essa tem sido uma tendência das escolas, que buscam adaptar seus
planejamentos e conteúdos de ensino aos tópicos cobrados pelos vestibulares.
Uma análise mais abrangente e aprofundada dos enunciados sobre a
redação do vestibular, além de pôr em evidência as formações discursivas que
constituem o senso comum sobre a escrita, pode colaborar para desmitificar as
histórias sobre esta prova e trazer contribuições para o aprendizado e prática da
redação escolar.
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5. Referências bibliográficas
CASTRO, G. O discurso sobre a leitura e o leitor na mídia escrita brasileira no período de 1970 a 2000. In: 15º COLE – Congresso de Leitura do Brasil, Campinas: ALB, 2006. ELY, L. O discurso sobre a leitura e o leitor no jornal Gazeta do Povo no período de 1970 a 1985. In: 15º COLE – Congresso de Leitura do Brasil, Campinas: ALB, 2006. FARACO, C. A . Linguagem e diálogo: as idéias lingüísticas do Círculo de Bakhtin. Curitiba, Criar, 2003. FOUCAULT, M. Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 11ª edição São Paulo: edições Loyola, 2004. GREGOLIN, M. R. Foucault e Pêcheux na construção da análise do discurso: diálogos e duelos. São Carlos: Clara Luz, 2004. KRAUSE, G. B. Redação inquieta. Rio de Janeiro: Globo, 1985. LEAO, S. R. O discurso sobre a leitura e o leitor na Revista Veja no período de 1985 a 2000. In: 15º COLE – Congresso de Leitura do Brasil, Campinas: ALB, 2006. LIMA, S. C. O discurso sobre a leitura e o leitor na Revista Veja no período de 1970 a 1984. In: 15º COLE – Congresso de Leitura do Brasil, Campinas: ALB, 2006. PECORA. A . Problemas de redação. 5ª edição. São Paulo, Martins Fontes, 1999. RODRIGUES, E. O discurso sobre a leitura e o leitor no jornal Folha de São Paulo no período de 1986 a 2000. In: 15º COLE – Congresso de Leitura do Brasil, Campinas: ALB, 2006. WACHOWICZ, T. C. et al. O que está por trás da avaliação das redações do vestibular? Educar, Curitiba, n. 22, p. 315 – 333, Editora UFPR: 2003.
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6. Anexos