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7/25/2019 Criminologia Crtica e Crtica Do Direito Penal - Baratta, Alessandro
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I S (,0_ I
lV 'RTUAI
Coleo Pensamento Criminolgico
Alessandro Baratta
CRIMINOLOGIA CRTICA E
CRTICA DO DIREITO PENAL
7/25/2019 Criminologia Crtica e Crtica Do Direito Penal - Baratta, Alessandro
2/129
"",
~Pensarnento
Cril11ino/gicoDireo
Pro! Dl:Nilo Batista
1999 Instituto Carioca de CriminologiaAv. Beira Mar, 216 3Q andar
Tel.: 0(xx)21 263 2069 Fax: 532 3435
20021-060 Riode Janeiro - RJ- Brasil
e-mail: [email protected]
Projeto GrficoLuiz Fernando Gerhardt
Edio e DistribuioEditora Revan Ltda.
Av.Paulo de Frontin, 163 - Rio Comprido
20260-010 - Rio de Janeiro - RJTel: 0(XX)21 25027495 - fax: 0(X.X)21 22736873
B22Gc
Baralta,AlessandroCriminologiaCritica e Critica do Direito Penal:
introduo sociologiado direito penal / Alessandro
Baratta; traduo) uarez Cirino dos Santos. -3 ed.-
Riode)aneiro: EditoraRevan: Instituto Carioca de
Criminologia,2002.
25GP.
ISBN85-353-0188-7
Traduo de: Criminologiacritica c critica dei
diritlopenale.
Incluibibliografia.1.Direitopenal- Filosofia.2. Sociologiajurdica;
I. InstitutoCariocade Criminologia.1 1 . TituloCDD345
AL~SANDRO BARA1TA
APRESENTAO
Com a publicao, em esmerada traduo do Prof. Dr.Juarez
Cirino dos Santos, deste j clssico Criminologia Crtica e Crtica
do Direito Penal - uma das mais notveis e densas recenses do
pensamento criminolgico, escrita pelo mais brasileiro de todos os
professores europeus, Alessandro Baratta - o Instituto Carioca de
criminologia inaugura uma coleo que objetiva suprir o histri:..
co deficit editorial que a literatura criminolgica registra em nos-
so pas.A coleo Pensamento Criminolgico incluir, alterna-
damente, obras gerais e investigaes monogrficas; ainda que
compreensivelmente concentrada na extraordinria produo
latino-americana (j previstos Lolita Aniyar de Castro, Rosa deI
Olmo e Ral Zaffaroni), procuraremos trazer luz certos textos
fundamentais pouco difundidos entre ns, como por exemplo o
trabalho pioneiro de Rusche e Kirchheimer, at hoje jamais verti-
do ao portugus.Sem embargo da utilidade da coleo para muitos campos
d:ls cincias sociais, e especialmente para os historiadores do con-
trole social penal - que, afinal de contas, fazem a prpria histria
da criminologia - pretendemos atingir o pblico de formao ju-
rdica, rompendo os preconceitos metodolgicos que interpuse-
ram um fosso entre juristas e criminlogos.Efetivamente, constitui um fenmeno recente o dilogo entre
os saberes criminolgicos e os saberes jurdico-penais. Desde sua
fundao positivista, na segunda metade do sculo XIX, a
criminologia buscou obter uma duvidosa autonomia acadmica ao
preo de no questionar a legitimidade do sistema penal, os motivos
profundos da produo legislativa penal e o desempenho real das
agncias administrativas ou judiciais encarregadas de sua aplicao.
1
mailto:[email protected]:[email protected]7/25/2019 Criminologia Crtica e Crtica Do Direito Penal - Baratta, Alessandro
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C R IMINOLOGIA C R TICA E C R iTICA DO DIREITO PENAL
Reduzind0 seu horizonte a uma inofensiva explicao causal do
delito e do delinqente, a criminologia positivista no apenas
relegitimava o sistema penal, mas tambm criava o impasse, to
celebrado, da dependncia que seu objeto guardava do direito vi-
gente. A fantstica recepo que na Amrica Latina teve a antropo-
logia criminal, com seu mtodo "clnico", vincula-se a sua utilida-
de, num continente marcado desde sua descoberta por conflitos
tnicos freqentemente convertidos em genocdios, para a dissimu-lao ideolgica do controle social penal que a's oligarquias exter-
minadoras deviam exercer. Por seu turno, os,jJ'ristas viam comdes-
confiana esses saberes "profanos"; o mais relJomado dos penalistas
brasileiros, Nlson Hungria, chegou em certo momento a preconi-
zar uma "doutrina de Monroe: o direito penal para os juristas,exclusivamente para os juristas".
Ficara em aberto saber se os juristas eram exclusivamente
para o direito penal. A superao das criminologias funcionalistas
que haviam sucedido ao positivismo, atravs de um vigoroso
pensamento crticoque inverteu a equao legitimante, outorgando
ao prprio sistema penal - a compreendida a produo legislativa
penal - a condio de objeto qo afazer criminolgico, responderianegativamente a essa questo. Exceo feita ao jurista imobilizado
pelas teias da tradio escolstica, que sacraliza o texto legal e
empareda as possibilidades hermenuticas na ortodoxia dalectura" ." '.. ,
algumas das crIses do dIreIto penal - pense-se na prpria crise
da pena - sinalizavam a insuficincia do mtodo dogmtico para
a reflexo jurdica, especialmente no campo angustiante dos
operadores do sistema penal. Dentro do prprio mbito da
dogmtica juridico-penal muitos avanos s~ deviam a partir de
contribuies externas, provindos ora da filosofia. (como as
transformaes que o conceito de ao final imprimiu em toda a
teoria do delito), ora da sociologia (como as recentes e polmicas
contribuies do funcionalismo sistmico imputao objetiva)
ora da psicologia (por exemplo, nas reas da imputabilidade e d~
erro).' etc. O conjunto das reflexes tericas e dos dados empricos
~umdos por uma criminologia nova, que reinventara o prprio
SIstema penal como seu objeto por excelncia e que se concebia
como vrtice interdisciplinar, metodologicamente pluralista, do
encontro daquelas reflexes e daqueles dados, necessariamente
2
ALESSANDRO I3ARATTA
passaria a oxigenar a elaborao jurdica: ou bem o jurista pensa
o sistema penal do qual participa, ou bem se converte num jurista-
objeto, reprodutor mecnico das funes concretas de controle
social penal numa sociedade determinada.
Na atual conjuntura brasileira, em que o conhecimento e o
debate dos problemas associados ao controle social penal- violncia
urbana, drogas, violaes de direitos humanos, a instituio policial,
Ministrio Pblico, Poder Judicirio, a questo penitenciria,violncia no campo, etc. - integram a agenda poltica dos partidos
e alimentam cotidianamente os meios de comunicao de massa,
a convenincia de que a formao criminolgica se inscreva na
formao jurdica bsica dispensa maiores consideraes. Isso deve
ser feito sem perda dos contedos especificamente jurdicos, que
s avanaro ao influxo dessa tardia "cincia geral do direito
penal" que desabrocha num quadro planetrio no qual o discurso
penal j desloca o foco perigosista do proletariado, onde estava
por ocasio do Programa de Marburgo, para o conjunto de grupos
sociais cotidianamente marginalizados pelo empreendimento
neoliberal que, para usar os termos lisztianos, "costumamos
reagrupar sob a compreensiva denominao" de excludos.
Com essas esperanas, a coleo Pensamento Criminolgico
pretende constituir-se no grande repositrio de estudos
multidisciplinares sobre crime, direito e sociedade no Brasil.
Prof. Dr. Nilo Batista
3
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/ 25
Sumrio
~
~:~~p.. UI::I..'E "-v.'~~ c S C < ., : ; "
~.:J \. )::>!E 8/~1 ....C
(I) '-4(./0 -C'N .,.~C =a
Prefcio: Anatomia de uma cr iminologi a cr tica / 9 .,.~( ~ ~ ..
lnlmduo, Sociologia ju"dica c ,ociologia jU"dicO~pcnalI'JnBA '< ~
I. Objelodtl socioIOSi.7juridic.7 /21 ~
2. Objelodtl sociolOSitljlllidico-pelUiI /23
3. MicrossociolOSitl e IIUlCIVSSOCioIOSitl. Fussibilid;ldee lill/lio de SUtlJillegmlio
I
I. A escola liberal clssica do direito penal e a criminologia positivista
I. A cJmiJlolositl posiliYisl:t e:t escoltl libcntl c1:ssictI do dJi'eilo pelUlI /29
2. DtI filosofi.7 do dJi"eilo JX'IUlI:t IIl/UI fUJld:UlleJlI:t;lo filosfic:1 dtl ciJlcitl peJI:IL CeS:/J"e
IJccc:uia. /323. O JX'Jls.7mcJllode GimldomcJlico ROI/I:'SJlos. A pelW COl/loCOJllm-csllllulo:lo impulso
cnillliloso /344. O IUlscimcJllo d:1 mOOenl:1 cinci:t do direilo pelwllw ll:Ii:t. O sislcJlw jurdico d
lhll/cesco Carnml /355. A escol:t posiliY:t C:I explic:l:io p:tlolSictl d:rcnillilUllk/:tde. OcrimiJloso como "dlfe-
rcnlc": CCS:lrc J.,omblvso /38
11.A ideologia da defesa social
I. A ideolositl d:t defeS:1socitil como kleolOSitl comum:i esco1:Jc1:ssic:t e:i escol:t posiliYtI.
Os plJlcipios c;lI'dc:Jis d:t id,x)k:gitl d:t defeS:1 socitil /4 1
2. J1ll/:io legilJiWll/le dcseJlyolYidtl pel:1 idcolOSitl d" defCS:1socitll em filce do sislel/w pe-
IUII /443. Neccssid:tdede silutlrosclel//{:Jllosde 1IJ1W!Colia dodcsvio, IIOS"comporllJmeJllossoci'
"Imel/lc JI
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IV. A teoria estrufural-funcionalista do desvio e da anomia. Negaodo princpio do bem e do mal
I. A vimd:1 sociolgic/llI/1 cninillolqgi.7 cOlllcmpor:/ne,7: linile Dllr1.'heim /59
2. 'obcrl Afelton: A suPCr:l:7ododu:tli~'lIlO Jildivlduo-socied'lde. })ilSClIllllJ~/i~ /ICCS~'O:IOS//Ieios lilslitucion/lis c '~7noll/" /62
3. A n..'l:l~"7vell(re Ijilsculll/l~lise //Ieios ls(i(ucioll//l~:' clilco modc'/os de '':ldtYjll:l//o lildi-vidl"7/" 163
4. Afelton e/I cnillliwltd:ldc do "col:millto bmllco" 165
V.A teoria das subculluras criminais. Negao do princpio de culpa-
bilidade
I. CO//lP/llibilid7de e Jillegnl:7o das leon/Is fUlIciolllllislas e d,7s leon:7s das subculluras cnilllimls /69 I
2. dwlil H. SUlherlmld: cn~ic,7 das feontls gem- sobre cnillill.7lid7de; Alberf Cohell: a/1Jl,ilised7 sulxulfum dos bmldosjuvellis. /71
3. Eslrolitic/loe plumrmoculluml dosgrupos soci:l. Rel.7livld.7dedo~'l~-fenm de valo-res penolmenle fulel/ldos: lIega:7o do "principio de cIIJp/lbilid/lde" /73
VI. Uma correo da teoria das subculturas criminais: a teoria das tc-nicas de neutralizao
I. GreslulJll M. Sy1.'ese D//Vid M.7/Z:1: "/ISlcnicas de neUlmliz,7//o" / 7 7
2. A lean:7 d7S "lcnic,7s de neulmliz,7:70" CO/110lillegm//o e corre:io dtl leon:7 d7SSUlxillluros 179
3.Observacs clific,7S sobre a fcoda dlls sulxullums cnilllimis. A feoda das sulxullilmscomolcoda "dcll/dioalcancc" /81
VI L O novo paradigma criminolgico: "Labeling Approach", ou enfoque
da reao social. Negao do princpio do fim ou da preveno
J. "1':lbelh{g Appro,7ch": 11111.7rcvolutiocienfific,7not7mbifod7 sociologit/ cniwil.71 /852. A oricnla:lo sociolgica cm quc se Sl~U/Io ''l':lbelil{g Approach" /87
3.O cOll/polt.7Jllenfo desvl:71lfe como comporl.7Jllenlo lVlul/ldo como f.71 /89
4. As dhllcS lroncas quc COlllriblllimll pam o desenvolvhllclIfo d/Is duas dtillcnscs dop.7rod{gnl.7 dl1 rca,io social /92
5. Os processos de dcf1ili.io do" snso comull/ na tlll,ilise dos inlemcion'ltls e dosfcllomenlogos /94
6. O PlvceSSO dc lipificaEio dtl SU/f//O.A lllltl-e dos proccssos de dcfiiliEio do ~-eIlSO
COl1lUl1Inos hlfcracionisf,7S c nos fllol1lelllogos /96
VIII. A recepo Alem do "Labeling Approach". Negao do princ-pio de. igualdade
J.A cnil1liwlid/ldc de "colminl1o bmnco'; ,7 ucifm lIcgm" d/I cnil1lim!Jd/ldl1 c ,7 clic.7 d/IsCSf,7fislklls cnimimis olicitl' /10 I
2. A reccpdo/tle//l// do ''l~/bt:lL
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Au:sSANDRo llARA1TA
XII. Do "L,7befing Appro:lc!J" :I lInw criminologt crlic
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CRIMINOLOGIA CRITICA I: CRiTICA 00 DIREITO PENAL
2. Assim, mostra como teorias psicanalticas do criminoso por
sentimento de culpa, desenvolvidas por Reik, negariam o princpio
de culpabilidade: instintos criminosos reprimidos pelo superego
no seriam destrudos, permanecendo no lde pressionando o ego
sob a forma de sentimento de culpa e exigncia de confisso, so-
mente aliviados pelo comportamento criminoso. Outras formula-
es psicanalticas, como a teoria da sociedade punitiva, de
Alexander e Staub, estariam em conflito com o princpio da legiti-midade: por um lado, a punio corresponderia a mecanismos
psicossociais inconscientes ligados ao compartilhamento social dos
impulsos proibidos do criminoso; por outro Jado, a identificao
com os rgos repressivos reforaria o superego contra exigncias
instintuais do jdsobre o ego, permindo descarregar, sobre o crimi-noso, impulsos agressivos inconscientes.
3. A teoria estrutural-funcionalista de Durkheim e, depois,
de Merton, rejeitaria o princpio do bem e do mal: o desvio seria
fenmeno normal em determinados limites, funcional para o equi-
lbrio social e reforo do sentimento coletivo, anormal apenas na
hiptese de expanso excessiva em situaes de anomia, caracte-
rizadas por desequilbrios na distribuio de meios legtimos pararealizar metas culturais de sucesso e bem-estar. A teoria das
subculturas criminais de Cloward-Ohlin e Sutherland, por sua
vez, mostraria de que modo a desigual distribuio estrutural do
acesso a meios legtimos para realizar metas culturais compele
minorias desfavorecidas para modelos de comportamento
desviantes, difundidos por aprendizagem atravs da comunica-
o e associao subcultural: a existncia estratificada dos gru-
pos sociais, com valores e normas especficos interiorizados por
aprendizagem, permitiria contextualizar o comportamento em
sistemas valorativos e normativos concorrentes (o oficial e o
subcuItural) e, assim, explicar o crime como atitude conforme a
valores e normas subculturais - e no, propriamente, como ati-
tude contrria aos valores e normas sociais. A estratificao dos
grupos sociais conduziria relativizao de valores e normas,
volatilizando noes de crime como leso do "mnimo tico" ou
como rebeldia contra valores comuns. Mais: se a escolha do sis-
tema de valores e de normas no livre, mas determinada por
condies sociais e por mecanismos de aprendizagem e de comu-
Ia
AU:SSANDRO I3ARA"-''A
nicao subcultural, poderia parecer inconsistente uma concep-
o tica da culpabilidade, que reprova pela atitude interior como
expresso de livre determinao contra valores institucionalizados.
4. Esses conceitos de anomia e de subcultura criminal, enri-
quecidos pela pesquisa fenomenolgica sobre petcepes e atitu-
des de Matza, entre outros, teriam levado identificao das cha-
madas "tcnicas de neutralizao", racionalizaes vlidas para ocriminoso (mas no para o sistema jurdico) como justificaes
pessoais do comportamento: uma extenso das descriminantes ofi-
ciais para resolver conflitos com normas ou valores sociais e prote-
ger contra a reprovao prpria ou alheia e, desse modo, anular o
controle social. Assim, por exemplo, se o'sujeito no se julga culpa-
do ou no considera criminosa a ao, ou acha a leso da vtima,
merecida, ou define as instituies de controle como corruptas e
hipcritas, ou, enfim, sente-se preso a outros deveres de lealdade,
estaria ativando "tcnicas de neutralizao" dos vnculos normativos
oficiais e liberando a conduta para valores alternativos aprendidosna interao subcuIturaI.
5. A anlise dolabeljng approachconstitui um momento de gran-
de lucidez do texto: a criminalidade no seria um dado ontolgico
preconstitudo, mas realidade social construda pelo sistema de justia
criminal atravs de definies e da reao social; o criminoso no seria
um indivduo ontolozicamente diferente, mas um status social atribu-
do a certos sujeitos selecionados pelo sistema penal. Os conceitos des-
se paradigma marcam a linguagem da criminolozia contempornea: o
comportamento criminoso como comportamento rotulado como cri-
minoso; o papel da estigmatizao penal na produo do status social
de criminoso ou seja, a relao do desvio primrio, que produz mu-' . . .
danas na identidade social do sujeito, com o desvio secundano, com-
preendido como efeito do desvio
primrio; a rejeio da funoreeducativa da pena criminal, que consolida a identidade criminosa e
introduz o condenado em uma carreira desviante etc. O deslocamento
do objeto da pesquisa, dos fatores ?a criminalidade (etiolozia) para a
reao social UabeJjng ~1pproach) - definida como mudana de
paradigma da cincia -' projetaria luz sobre a criminalidade de cola-
rinho branco, como conivncia entre empresrios e polticos, expres-
so do prestgio social do autor e da ausncia de esteretipo para ori-
entar a represso, e sobre a cifra negra da criminalidade, como distri-
II
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,'.'
,.
C R IMINOLOGIA C R iTICA E C R iTICA 00 lJ lR EITO J 't:NAL
buio social desigual da criminal idade pela se-letividadedos rgos
oficiais e da opinio pblica.G.Segundo o autor, a contribuio germnica ao lc1beJjng
t7ppro.7ch teria acentuado o papel das met:l-regl"'7s na interpreta-
o das regras jurdicas: leis e'mecanismos psquicos atuantes na
pessoa do intrprete ou aplicador do direito, aparecem como a
"questo cientfica decisiva" no processo de filtragem da popula-o crminosa e responsvel, em ltima instnia, pela distoro
na distribuio social da criminal idade. Assim, a criminal idade no
seria simples comportamento violador da norma, mas "realidade
social" construda por juzos atributivos, detetminados, primaria-
mente, pelas met.7-regrs e, apenas secundariamente, pelos tipos
penais: juzes e tribunais seriam instituies determinantes da "re-
alidade", mediante sentenas atributivas de qualidades aos impu-
tados, com estigmatizao, mudana dest.7tuse de identidade soci-
al do condenado. Desse.modo, a criminalidade seria um "bem ne-
gativo" distribudo socialmente em processos protagonizados por
sujeitos-autores de comportamentos definidos como desviantes e
sujeitos-detentores do poder de definir tais comportamentos comodesviantes - uma categoria de funcionrios especializados recru-
tados de determinados estratos sociais e representando, preponde-
rantemente, determinadas constelaes de interesses e valores.
7. O autor mostra a natureza irreversvel da crtica dolabelJiIg
approch ideologia tradicional: a criminalidade como statusatri-
buido a alguns sujeitos pelo poder de outros sujeitos sobre a cria-
o e aplicao da lei penal, atravs de mecanismos seletivos
estruturados sobre a estratificao social e o antagonismo de clas-
ses, refutaria o princpio de igualdade; a relao varivel do pro-
cesso de criminalizao com a posico social do acusado indicaria
a relatividade da proteo penal a bens jurdicos, atingindo o prin-
cpio de legitimidade; enfim, a diferenciao entre desvio primrio
e desvio secundrio acabaria por desmoralizar a idia de
ressocializao e, portanto, o princpio de pre,-eno: o desvio se-
cundrio, definido como efeito do desvio primrio, indicaria a na-
tureza criminognica do tratamento penitencirio e a distncia entre
a ideologia da ressocializaco e a realidade da prisionalizaco.
Mas as crticas ao prprio 1,,7beJjngapproacJl fomuladas pelo
autor tambm no seriam desprezveis: se criminalidade
1 Z
AU:SSANDR O I3AR ATTA
criminalizao mediante definies legais e rotulao oficial, desa-
pareceria o comportamento rel como ao socialmente negativa-
um conceito nuclear para a questo criminal, que permItiria
aprofundar o estudo dos fenmenos at lgica 1llaterial que os pro-
duz, ou seja, do crime para a estrutura social subjacente; se a reao
social tem origem em comportamentos concretos que perturbariam
a normalidade da vida, a constituio da qualidade criminosa de
aes ou de indivduos por regras (jurdicas) e meta-regras (psqui-
cas) pareceria excluir precisamente as condies determinantes da-
queles contedos, que explicariam por que certas aes so
criminalizadas e outras no; enfim, a teoria descreveria os mecanis-
mos de criminalizao e de estigmatizao, mas no explicaria a
realidade social nem o significado do desvio, dos comportamentos
socialmente negativos e da criminalizao - justificando, portanto,
a crtica de parecer a Dutm C.7l71da ideologia oficial.
8. As teorias conflituais pretenderiam mostrar a relao do di-
reito penal com interesses de grupos de poder: no processo de confli-
to, grupos sociais procuram a cooperao do Estado, atravs de leis
incriminadoras, para proteger valores ameaados por outros gru-pos, cujas sanes seriam uma espcie de ampliao e continuao
do conflito. A luta por valores como poder, sttus, recursos distingui-
ria os conflitos em realsticos e no-realisticos: aqueles seriam meios
para certos fins, como poder e posse de bens, estes seriam fins em si
mesmos, como a satisfao de emoes. O crime seria fenmeno
poltico, e o criminoso, um membro de grupos minoritrios induzido
a agir contra a lei, porque grupos majoritrios instrumentalizariam
o Direito e o Estado para criminalizar comportamentos contrrios. O
processo de criminalizao representaria um conflito entre detento-
res do poder e submetidos ao poder, pelo qual as instncias oficiais
atribuem ostatus de criminoso a estes. O paradigma do conflito, fas-
cinado com fenmenos de aparente separao entre propriedade epoder, e de burocratizao da indstria e do Estado, situaria o con-
flito nas relaes de poder, e no nas relaes de propriedade: na
empresa industrial moderna o conflito se teria deslocado da relao
capital/trabalho assalariado para a relao de poder/submisso en-
tre gerentes e trabalhadores. Aqui, Alessandro llaratta indica uma
confuso entre atores do processo econmico e sujeitos reais desse
processo, que ainda seriam o capital, na fase de internacionalizao
1 3
e
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CRIMINOLOGIA CRil1CA r. cRincA DO DIREITO rENAL
da acumulao, e o trabalho assalariado, ao lado das massas urbanas
e rurais deserdadas e marginalizadas. No obstante as crticas, a pers-
pectiva macrossociolgica do conflito social representaria um avan-
o da criminologia liberal, aplicando o enfoque da reao social s
estruturas da sociedade, aos conflitos de interesse e s relaes depoder entre grupos.
A hiptese de integraco dos sistemas penal e de controle
social em um modelo racional de controle do crime, sob a gideda chamada "criminologia liberal", funciona;-ia como ideologia
substitutiva, adequada mediao das contradies sociais no pe-
rodo monopolista do capitalismo, reproduzi-ndo as relaes de
desigualdade existentes em duas direes: maior efetividade de
controle do desvio disfuncional valorizao do c;,pital, como os
crimes contra a propriedade, e maior imunidade do desvio funci-
onaI ao sistema, como crimes ecolgicos, de colarinho branco etc.
O autor conclui que um novo modelo integrado de cincia penal
e cincia social no seria vivel - talvez somente entre cincia
social e tcnica jurdica -, pela defasagem do direito penal em
face da cincia social. A assertiva de que o jurista deveria adotar
nova atitude cientfica, iluminando a tcnica do direito com a
teoria social, parece indicar o caminho de eventual recuperaodessa defasagem.
9. O texto revela como o salto qualitativo do Jabeling approach
para a criminologia crtica passaria pela construo de uma teoria
materialista do desvio, dos comportamentos socialmente negativos e
da criminalizao, com uma metodologia capaz de dar conta do mo-
vimento social - uma razo crtica que pudesse apreender a socie-
dade na lgica de suas contradies e adotar essa lgica como mto-
do de pensamento: a dialtica como ratio essendi e ognoscendi da
realidade. O desenho dessa criminologia crtica mostra o contraste
com a criminologia tradicional: primeiro, desloca o enfoque tericodo autor para as condies objetivas, estruturais e institucionais, do
desvio; segundo, muda o interesse cognoscitivo das causas (etiologia)
para os mecanismos de construo da "realidade social" do desvio
especialmente para a criao e aplicao das definies de desvio e ~
processo de criminalizao; terceiro, define criminalidade comostatus
atribudo a detemnados sujeitos atravs de dupla seleo: dos bens
protegidos penalmente nos tipos penais e dos indivduos estigmatiza-.
14
: j...~
I
ALESSANDRO BARi\TrA
dos no processo de criminalizao. O direito penal seria objeto privi-
legiado de estudo como sistema dinmico de funes (compreen-
dendo os mecanismos de produo, aplicao e execuo das nor-
mas penais), e como direito desigual por natureza: o direito da desi-
gual proteo de bens jurdicos e da desigual distribuio social da
criminalizao. A questo geral do direito desigual, extrada da con-
tradio entre igualdade formal do sujeito jurdico na venda da fora
de trabalho e desigualdade real dos indivduos concretos no consu-
mo da fora de trabalho, apareceria no direito penal de outro modo:
a igualdade formal do sujeito jurdico ocultaria a desigualdt>de real
de indivduos concretos, em chances de criminalizao. O progresso
da criminologia crtica estaria na passagem da descrio para a in-
terpretao dessa desigualdade, mostrando a relao dos mecanis-
mos seletivos do processo de criminalizao com a estrutura e as leis
de desenvolvimento da formao econmico-social. Assim, a seleo
legal de bens e comportamentos lesivos instituiria desigualdades si-
mtricas: de um lado, garante privilgios das classes superiores com
a proteo de seus interesses e imunizao de seus comportamentos
lesivos, ligados acumulao capitalista; de outro, promove acriminalizao das classes inferiores, selecionando comportamen-
tos prprios desses segmentos sociais em tipos penais. O processo de
criminalizao, condicionado pela posio de classe do autor e influ-
enciado pela situao deste no mercado de trabalho (desocupao,
subocupao) e por defeitos de socializao (famlia, escola), con-
centraria as chances de criminalizao no subproletariado e nos mar-
ginalizados sociais, em geral. Desse modo, o processo de
criminalizao cumpriria funo de conservao e de reproduo
social: a punio de determinados comportamentos e sujeitos contri-
buiria para manter a escala social vertical e serviria de cobertura
ideolgica a comportamentos e sujeitos socialmente imunizados. O
crcere, finalmente, nascido da necessidade de disciplina da fora detrabalho para consumo da fbrica, seria o momento culminante de
processos de marg:nalizao, discriminao e estigmatizao, fechan-
do um continuul11 que abrange ~ famlia, a escola e a assistnciasocial.
10. Ao mostrar a relao entre sistema penal e formao eco-
nmico-social, o texto revela, tambm, a integrao dos sistemas penal
e escolar no processo mais geral de conservao e reproduo da
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. .',.
. .
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I CRIMINOLOGIA CRTICAE CRiTICA DO DIREITOI'ENAL
realidade social. O sistema escola!; primeiro segmento do aparelho
de seleo, discriminao e marginalizao, reproduziria a estrutura
social pelos critrios de avaliao do mrito individual, com efeitos
discriminatrios sobre crianas e jovens de estratos sociais inferiores:
diferenas em desenvolvimen{o mental e linguagem, originrias da
classe social, seriam interpretadas como defeitos pessoais; estereti-
pos e preconceitos informariam a "injustia institucionalizada" do
sistema de notas, atravs das percepes e atitudes dos mestres: os
juzos negativos do mestre afetariam o rendimri1to escolar, conformea teoria do self fullfilling profecy sobre a natureza constituinte da
atitude dos outros; os efeitos estigmatizantes da rejeio e isolamento
seriam ampliados pela distncia social, desadaptando o "mau" alu-
no cada vez mais, at excluso do sistema. O significado das puni-
es e recompensas do sistema escolar seria semelhante ao de outros
sistemas sociais: recompensas convalidariam modelos de comporta-
mento da maioria no-estigmatizada; punies transfeririam culpas
para minorias estigmatizadas, reprimindo o medo do insucesso e de
reduo destatus.No outro lado do continuulll, o sistema penal cum-
priria funes de constituio, garantia e legitimao da realidade
social, ao separar o joio do trigo. Os contedos dos tipos penais coin-
cidiriam com os valores do universo moral burgus, e os no-con-
tedos de sua natureza "fragmentria" exprimiriam menos a
inidoneidade tcnica da matria e mais a tendncia no-
criminalizadora de aes anti-sociais das classes hegemnicas; o pro-
cesso de criminalizao, ativado por esteretipos e preconceitos da
policia e da justia, dirigiria "normalmente" a investigao e repres-
so criminal para os estratos inferiores, ampliando a discriminao
seletiva. Seria a lgica de uma justia de classe, denunciada por
Liebknecht: juzes extrados dos segmentos mdio e superior; acusa-
dos, dos segmentos inferiores, separados daqueles por distnciasso-
ciais e lingsticas; jurisprudncia feita de esteretipos, preconceitose teorias de senso comum, distribuindo desigualmente definies de
criminalidade e estigmatizao penal, com mudana de identidade
social do condenado, consolidao de carreiras criminosas, constru-
o social da populao carcerria - e a expectativa de novos com-
portamentos criminosos intensificando a ao das instncias oficiais
sobre zonas marginalizadas etc. Aligao funcional entre aparelhos
de reproduo social seria formada por cadeias de transmisso su-
1 G
Al.l:SSANLJRO BARATI"A
cessiva da populao, do sistema escolar para o sistema penal, com
passagens pelos sistemas produtivo e de assistncia social, cuja lgi-
ca parece promover a excluso, a marginalizao e a criminalizao.
11.Na anlise do capitalismo contemporneo Baratta indi-
ca o carter nodal da relao crcere/marginalizao social: o
crcere seria o momento culminante de mecanismos de
criminalizao, inteiramente intil para reeducao do condena-
do - porque a educao deve promover a liberdade e o autc-respeito, e o crcere produz degradao e represso, desde a ceri-
mnia inicial de despersona-lizao; portanto, se a pena no pode
transformar homens violentos em indivduos sociveis, institutos
penais no podem ser institutos de educao. A priso se caracte-
rizaria por dois processos complementares: um processo de
desculturao em face da sociedade, com reduo da vontade,
perda do senso de responsabilidade, formao de imagens ilus-
rias da realidade e distanciamento progressivo dos valores soci-
ais; e um processo de aculturao em face da priso, com absor-
o de valores e adoo de modelos de comportamento prprios
da subcultura carcerria: o condenado ou assume o papel de "bom
preso", com atitudes de conformismo e oportunismo, ou assume
o papel de criminoso, compondo a minoria dominante na organi-
zao informal da comunidade carcerria, com poder sobre "re-
cursos" e culto violncia ilegal.
A base sociolgica dessa teoria a relao mais geral entre
mercado de trabalho e sistema punitivo, de Rusche-Kirchheimer e
de Foucault. Em Rusche-Kirchheimer, o mercado de trabalho no
seria uma instituio meramente econmica, mas poltica e econ-
mica ao mesmo tempo, que produz a marginalizao social sob a
cobertura ideolgica do "pleno emprego": a acumulao capitalis-
ta, com seus mecanismos de renda e parasitismo, necessita de seto-
res marginais ao sistema, alimentando permanentemente o "saco
da excluso". Em Foucault, o sistema punitivo realizaria uma fun-
o indireta de punir uma ilegalidade visvel para permitir uma
ilegalidade invisvel; e uma funo direta de produzir uma zona de
criminosos marginalizados, que alimentam mecanismos econmi-
cos da "indstria" do crime, como o ciclo econmico da droga, a
mfia etc., ou mecanismos polticos de subverso e de represso
ilegais, como o terrorismo fascista.
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r - - 12. O e : : : : : ' : ~ : : : : ~ ' I ~ : : a: : ' : : i : : O D : ~ : i ~ ~ ~ :a r e l a oe n .: J tre sistemas de punio e sistemas de produo, ou a relao disci-wI plinar entre crcere e fbrica, que o enfoque idealista dos fins da) pena, com a velha teoria da retribuio, intimidao e reeducao,
no pode alcanar. O texto mostra que as polticas de "ordem p-
blica" na Alemanha e Itlia, que revigoram o crcere de segurana
mxima, com funes de mera custdia e intimidao, invertendo
a tendncia do capitalismo avanado de reduzir o controlecarcerrio por mecanismos substitutivos, c9mo probation, livra-
mento condicional e regimes abertos, encontrariam explicao no
aumento da desocupao e subocupao, agravada pela lgica ca-
pitalista de "racionalizao" dos processos produtivos, em que a
elevao da produtividade por novas tecnologias significa elevao
da explorao, do desemprego e da marginalizao; alm disso,
tenses das massas marginalizadas aumentariam exigncias de dis-
ciplina e represso, criando um clima favorvel a crticas contra o
Estado de Direito e abrindo caminho a formas de gesto autoritria
dos processos produtivos e da sociedade. A crise da ideologia penal
de reeducao/reinsero e o abandono do mto do "pleno empre-
go" no seria mera coincidncia, mas indcio de arregimentao
das elites conservadoras por uma "democracia autoritria".
Apesar do estado embrionrio da teoria materialista do des-
vio,dos comportamentos socialmente negativos e da criminalizao,
Baratta afirma que as teses da criminologia crtica podem funda-
mentar um programa de poltica criminal alternativa - que no se
confunde com paI/fica penal alternativa. E ainda: se o processo de
criminalizao o mais poderoso mecanismo de reproduo das
relaes de desigualdade do capitalismo, a luta por uma sociedade
democrtica e igualitria seria inseparvel da luta pela superao
do sistema penal- mas, paradoxalmente, tambm seria inseparvel
da defesa do direito penal: contra os ataques s garantias legais e
processuais; contra o prprio direito penal, para conter e reduzir a
rea de penalizao e os efeitos de marginalizao e diviso social;
e atravs do direito penal, ainda uma resposta legtima para solu-
o de determinados problemas. A capacidade de superar o direito
penal seria o critrio de avaliao das reformas penais - embora a
melhor reforma do direito penal no seja substitu-lo por outro
direito penal melhor, mas por qualquer coisa melhor do que o di-
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AI.ESSANDRO BARATI"A
reito penal, segundo a frmula de Radbruch, transpondo a linha
que separa "sistemas penais alternativos e alternativas ao sistema
penal".
13. A linha principal de uma politica criminal alternativa se
basearia na diferenciao da criminalidade pela posio social do
autor: aes criminosas das classes subalternas, como os crimes
patrimoniais, por exemplo, expressariam contradies das relaes
de produo e distribuio, como respostas individuais inadequa-
das de sujeitos em condies sociais adversas; aes criminosas das
classes superiores, como criminalidade econmica, dos detentores
do poder, ou crime organizado, exprimiriam a relao funcional
entre processos polticos e mecanismos legais e ilegais de acumula-
o do capital. Essa diferenciao fund~mentaria orientaes di-
vergentes: por um lado, reduo do sistema punitivo mediante
despenalizao da criminalidade comum e substituio de sanes
penais por controles sociais no-estigmatizantes; por outro lado,
ampliao do sistema punitivo para proteger interesses individuais
e comunitrios em reas de sade, ecologia e segurana do traba-
lho, revigorando a represso da criminalidade econmica, do po-
der poltico e do crime organizado.O objetivo estratgico indicado pelo autor seria a abolio do
crcere por sua inutilidade para controle da criminalidade ou ree-
duca~/reinsero do condenado, e pelos efeitos de marginalizao
e esmagamento dos segmentos inferiorizados. Fases preliminares se-
riam a ampliao das medidas alternativas, dos regimes de liberdade
e semiliberdade e a abertura do crcere para a sociedade, com coo-
perao de entidades de presos e da sociedade civil para reduzir efei-
tos sobre a diviso da classe trabalhadora e reinserir o condenado na
sociedade atravs da sua classe e das lutas de classe. Sea criminalidade
do marginalizado constitui resposta individual irracional a cond~-
es sociais adversas, ento a reeducao do criminalizado devena
transformar reaes individuais egostas em conscincia e ao pol-
tica coletiva: o desenvolvimento da conscincia poltica do criminoso
seria a alternativa racional iconcepo tico-religiosa da culpa, com
sua exigncia de punio e de ar~ependimento.
Uma poltica criminal alternativa deveria, segundo Baratta,
levar em conta a opinio pblica, portadora da ideologia domi-
nante, com imagens da criminalidade fundadas em esteretipos e
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: - . : :
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I
CRIMINOI.OGIA CRTICA [ CRiTICA DO DIREITO "[NA I.
teorias de senso comum, que legitimam ideolgica e psicologica-mente o sistema penal; nesse nvel, processos psicossociais de !Jro-
jeo da culpa explicariam como a pena engendra sentimentos deunidade e consolida relaes de poder, assim como campanhasde "lei e ordem" obscurecem a conscincia de classe sob a ilusode solidariedade na luta contra o crime, o "inimigo comum". Umameta procedimental proposta pelo autor seria reverter a relaode hezemonia cultural mediante crtica ideolgica, produo ci-
entfica e informao, com uma discusso d~ massa da questo
criminal. 1A concluso final possui o significado de um manifesto: numa
sociedade livre e igualitria, o controle social no-autoritrio dodesvio abriria espao diversidade, precisamente aquilo "que garantido pela igualdade" e expresso da individualidade do ho-mem, como portador de capacidades e de necessidades positivas. Asuperao do direito desigual seria conduzida pela idia central dautopia libertadora: de cada um segundo suas capacidades; a cadaum sezundo suas necessidades.
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l\I.ESSANDRO lMKAITI\
B IB L IO T E C A D E C I N C i A S J U R I D t C A S
INTRODUO*
SOCIOLOGIA JURDICA E SOCIOLOGIA JURDICO-PENAL
1.ODjl:-7V DA SOCIOLOGIAjURiDICA
Partindo-se da distino entre a comunidade, como organiza-o compreensiva da vida humana em comum, e o direito comouma parte dela, pode-se dizer que o objeto da sociologia jurdica ,por um lado, a relao entre mecanismos de ordenao do direito e ~da comunidade, e por outro lado, a relao entre o direito e outros iifsetores da ordem social. Portanto, a sociologia jurdica tem a ver ,P:tanto com as estruturas nonnativas da comunidade, em geral, como !r
tambm com as condies e efeitos das normas jurdicas, em especi- ~. ,aI. Elase ocupa com modos de ao e de comportamento (a) que tm ~.
'~como conseqncias normas jurdicas (o costume como fonte do ~direito, os modos de ao e de comportamento normativos do legis- ; r - "lador e as instncias institucionais de aplicao do direito), ou (b) ~.que sero percebidos como efeitos das normas jurdicas (o problema t..do controle social atravs do direito, o problema da efetividade, do ~
I
conhecimento e da aceitao do direito), ou (c) que sero postos emrelao com modelos de ao e de comportamento, que tm comoconseqncias normas jurdicas ou so efeitos de nonnas jurdicasno sentido de (a) e (b). Sob este terceiro ponto de vista entram, porexemplo, no campo da sociologia jurdica, o estudo da ao direta e
indireta de grupos de interesse na formao e aplicao do direito,como tambm a reao social ao comportamento desviante, en-quanto precede e integra, como controle social no-institucional, o
(NOTA DO TRADLTrOR): A introduo foi trnd~zida conforme modificacs realizadas pelo aulor
para a lraduo alem deste livro. (N. do 1'.)
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~QU~ I t.Jh LI~jil~{W.\JhW_
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AJ.ESSANDRO BARAlIA
direito tem por objeto a estrutura l:~ico-semntica das normas, en-tendidas como proposies, e os problemas especficos das relaesformais entre normas (validade das normas; unidade, coerncia, ple-nitude do ordenamento) e entre ordenamentos. A teoria do direito sedistingue, por outro lado, da teoria geral do direito, se se indica comeste termo o extremo nvel de abstrao da cincia dogmtica do direi-to, que parte do contedo de um sistema normativo dado e procede
elevando o prprio nvel de abstrao, ou seja, construindo conceitosmuito gerais tambm no sentido histrico e comparativo.
23
2. OBJETO DA SOCIOLOGIA JURDICO-PENAL
O objeto da sociologia jurdico-penal corresponde s trs cate-gorias de comportamentos objeto da sociologia jurdica em geral. AsOciologia jurdico-penal estudar, pois, em primeiro lugar, as aese os comportamentos normativos que consistem na formao e naaplicao de um sistema penal dado; em segundo lugar, estudar osefeitos do sistema entendido como aspecto "institucional" da reaoao comportamento desviante e do correspondente controle social. Aterceira categoria de aes e comportamentos abrangidos pela soci-ologiajurdico-penal compreender, ao contrrio (a) as reaes no-institucionais ElO comportamento desviante, entendidas como umaspecto integrante do controle social do desvio, em concorrncia comas reaes institucionais estudadas nos dois primeiros aspectos Ie (b)em nvel de abstrao mais elevado, as conexes entre um sistema
penal dado e a correspondente estrutura econmico-social.Os problemas que se colocam com relao a esta proposta de
definio se referem: (a) relao da sociologia jurdico-penal coma sociologia criminal, e (b) relao entre sociologia jurdico-pe-
nal e sociologia geral.Quanto primeira relao, observa-se hoje uma certa c'Jnver-
gncia de estudiosos de sociologia jttrdica e de criminologia (emparticular, de sociologia criminal) sobre temas comuns. Este fato nodeixou de despertar certa preocupao, especialmente nos que seinclinam a supervalorizar os limites acadmicos entre as disciplinas,mesmo partindo de exigncias no infundadas de carter institucionale de organizao cientfica. Mas esta compenetrao entre grupos
CRIMINOLOGIA CRTICA E CRTICA DO DlRJ:ITO rENAL
controle social do desvio, por meio do direito e dos rgos oficiaisde sua aplicao.
Os comportamentos dos tipos agora indicados so ~enmenosestudados pela sociologia jurdica emprica que, como tal, no podese projetar, com o mtodo de observao, para alm deles. a soci-ologia terica que, alcanando um nvel mais alto de abstrao,chega da descrio dos fenmenos (os comportamentos) s estrutu-ras e s leis sociais que no so empiricamente observveis, mas que
so necessrias para interpretar os fenmenos., Que as estruturas eas leis sociais no sejam observveis empiricamente no significa,de modo algum, que os conceitos e as construes tericas que aelas se referem no sejam controlveis. Um ontrole j decorre desua maior ou menor idoneidade para explicar os fenmenos.
Bastar agora refletir um momento sobre os campos de inda-gao que entram em seu objeto, tal como este foi aqui definidoaproximadamente, para se dar conta de quo vasto pode ser, eno s para as pesquisas empricas, o concurso interdisciplinar demtodos e de aportes de disciplinas diversas no estudo de muitosdos principais problemas da sociologia jurdica contempornea.
Podemos determinar a relao da sociologia jurdica com acincia do direito, tendo em vista o objeto, dizendo que o objeto dacincia do direito so normas e estruturas normativas, enquanto asociologia jurdica tem a ver com modos de ao e estruturas soci-ais. mais difcil precisar a relao com a filosofia do direito e coma teoria do direito. Na verdade, trata-se aqui, principalmente, de
problemas de terminologia: "filosofia do direito" e "teoria do direi-to" so usadas pelos interlocutores para denotar conceitos diversos.
Estabelecer as relaes entre sociologia, teoria e filosofia do di-reito significa, pois, adota~uma conveno sobre o uso destes trstermos em relao com o universo de discurso por elesdenotado. Um
possvel modelo, bastante difundido na Itlia e na Alemanha, e sobre
o qual, contudo, no nos propomos tomar posio na brevidade desteensaio, o seguinte: a sociologia do direito, como se viu, tem por objetoaes e comportamentos, e precisamente as trs categorias de aese comportamentos acima indicadas. A filosofia do direito tem por obje-to os valores conexos aos sistemas n011l1ativos(e os problemas espec-ficos do conhecimento dos valores juridicos e da relao entre juws devalor e juiws de fato no interior da experincia jurdica). A teoria do
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II
CRIMINOI.OGIA CRTICA I: CRTICA DO DIREITO l'ENA1.
de estudiosos outrora delimitados mais rigidamente entre si, umfato positivo que no deve preocupar, antes deve ser visto como excm-pIo de fecunda colaborao inter-disciplinar. A presena ativa decriminlogos no campo de trabalho da sociologia jurdico-penal e desocilogos do direito no da crin"4nologia um fenmeno irreversivel,destinado, talvez, a ampliar-se, tambm por causa de alguns recentese fundamentais desenvolvimentos ocorridos na perspectiva
criminolgica, a que se aludir em seguidaz . Todavia til manterfirme, em linha de princpio, uma distino entre' as duas disciplinas.Essa distino, em nossO modo de ver, deve se fundar, tambm aqui,sobre diferente objeto, ou seja, sobre compor~amentos, sobre rela-es, sobre estruturas comportamentais, sobre estruturas e leis soci-ais correspondentes, de cujo estudo partem as duas disciplinas. Asociologia criminal estuda o comportamento desviante com relevn-cia penal, a sua gnese, a sua funo no interior da estrutura socialdada. A sociologia jurdico-penal, ao contrrio, estuda propriamenteos comportamentos que representam uma reao ante o comporta-mento desviante, os fatores condicionantes e os efeitos desta reao,assim como as implicaes funcionais dessa reao com a estrutura
social global. A sociologia jurdico-penal estuda, pois, como se viu,tanto as reaes institucionais dos rgos oficiais de controle socialdo desvio (consideradas, tambm, nos seus fatores condicionantes enos seus efeitos) quanto as reaes no-institucionais. Conforme esteltimo ponto de vista, uma parte no desdenhvel das investigaesKOL (Knowledge and OpiJ1iOJlabout LaJ-0, enquanto tm por objetoaspectos conexos com a reao social ao comportamento desviante,
entra na sociologia jurdico-penal.Alm desta delimitao que, em princpio, deve ser feita, se no
se quer confundir completamente as duas disciplinas em exame, umponto de encontro e de superposio logicamente necessrio cntre
sociologia criminal e sociologia jurdico-penal deriva, hoje, particu-larmente, do carter problemtico que, no mbito da mais reccntecriminologia:\, adquiriram o conceito de desvio e suas tradicionaisdefinies. F!':lespecial, a nova perspectiva criminolgica conhecidasob o nome de Iabeling approacb (enf0que do etiquetamento) e, naAlemanha, como Reaktionsansatz (enfoque da reao social) (Becker,Fritz Sack e outros) acentuou, a partir de uma atitude ctica em faceda tradicional definio de desvio (:>cepticaI approach), o cal"ter
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'.
ALESSANDRO UARA'n"A
parcialmente constitutivo que toda reao social contra o desviotem para a qualidade de desviante do comportamento e, mais ain-da, para o StlltllS de desviante assumido por determinados sujeitos.Segundo os representantes deste enfoque, o fato de que os autoresde cert~s comportamentos tornem-se objeto da ao dos rgos darepressao penal, no sem influncia, especialmente por causa deseu efeito estigmatizante, sobre a realidade social do desvio e sobrea co~solidao do st~tus social do delinqente. Em outras palavras, odeSVIOe o SttltuSSOCIaldo delinqente no so uma realidade intei-ramente. preconstituda em relao s reaes institucionais que de-s~ncadelam, numa dada sociedade, ou uma realidade que pode-na, portanto, ser estudada de modo totalmente independente destas:'ea~es: Se i.sto verdade, o mesmo deve valer para as reaes no-m,Stlt.uclOnalS,porque o efeito estigmatizante da reao da opiniopubhca sobre o StlltllS social do delinqente talvez no seja nlenosrelev~nte do que o da ao dos rgos da represso penal. Por isso,este e o as~unto. de ~m.a pesquisa emprica de sociologa jurdco-
penal e soclOlogm crumnal, realizada na Universidade de SaarlandSarbrucken (A. 13aratta, F. Sack, G. Smaus)4. '
. Deste ponto de vista, como se v, o campo da sociologia cri-n~l~al e o d~ s~ciologia penal, mesmo permanecendo firme o prin-ClplOde dehmltao acima indicado, se sobrepem necessariamente ,ao men~s no que se refere aos aspectos da noo, da constituio eda funao do desvio, que podem ser colocados em conexo estreitacom a funo e os efeitos estigmatizantes da reao socialinstitucional e no-institucional. '
3. MICROSSOCIOLOGIA EMACROSSOCIOLOGIA. POSSII3ILIDADE E FUN-
O DE SUA INTEGRAO
A sociologia jurdica e, em seu mbito, a sociologia jurdico-penal, se desenvolveram nas ltimas dcadas em diversos pases, eem particular na Itlia, em uma direo emprica e analtica queparece bastante unvoca e que, em boa parte, constitui a rede decone~o das diversas instituies e associaes que agrupam osestudl~SOS da sociologia jurdica. Esta foi, pois, se liberando pro-greSSIVamente das atitudes apriorsticas, universalistas e
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CtUMINOLOCIA CRiTICA E CRTICA DO DIREITO "ENAL
lat,'vas prprias de um certo modo de fazer sociologia e,especu . . . _. . .mais ainda, filosofia social, caractensttco da trad'ao ldealtsta Ita-
liana procurando construir um discurso baseado em dados
empil~icamente controlveis, em pesquisas .bem localizadas, em
metodolcgias previamente declaradas e experImentadas, e acompa-
nhado, freqentemente, da conscincia de sua funo crtica em face
das ideolcgias e, em geral, da realidade social dos fatos estudados.
Apreende-se, pelo menos em parte, esta atitude geral da soci-ologia jurdica, dizendo que ela , tambm, s~ 'n~ somente,. uma
atitude microssocioJgica. Pois bem, enquanto tal, ISSO podena ser
posto, e, de fato, no raramente se pe, em anttese com uma atitude
que se poderia denominar macrossocioJgica. Se esta anttese um
dado de fato, que pode ser encontrado nos modos assumidos por
uma parte da recente literatura sociolgico-jurdica, seria um peri-
goso equvoco consider-la como um princpio metodolgico reco-
mendvel para nossa disciplina. O equvoco depende, substancial-
mente, de uma falta de distino entre o objeto especfico da pes-
quisa sociolgico-jurdica e o horizonte explicativo e interpretativo
dentro do qual os fenmenos setoriais analisados podem e devem
ser inseridos. Este horizonte coincide com toda a estrutura socio-econmica e, portanto, com o objeto da sociologia geral, entendida
em toda sua dimenso cognoscitiva e crtica. Por isso, uma atitude
microssociolgica quanto ao objeto, como se encontra hoje na soci-
ologia jurdica, compatvel com uma atitude macrossociolgica
quanto ao horizonte explicativo e interpretativo adotado em face
dos fenmenos setoriais estudados por nossa disciplina.
No s: uma atitude analtica e micros sociolgica que, para real-
ar oportunamente o carter especfico e delimitado dos fenmenos
objeto da pesquisa, deixe de considerar a perspectiva sociolgica geral
na qual os dados obtidos podem ser interpretados em seu significado
para a teoria e a prtica, cai em defeitos iguais e contrrios queles
prprios da atitude apriorstica e especulativa que a moderna sociolo-
giajurdica quis abandonar, como se poderia demonstrar com muitos
exemplos. De fato, estamos igualmente distantes do conceito moderno
de cincia, tanto se nos permitimos fceis snteses universalistas no
apoiadas em dados empricos, quanto se camos na hipstase acrtica
destes dados, fora de todo esforo interpretativo. Se hoj~ possvel
cnco. traI' uma tendncia de desenvolvimento positivo na pesquisa
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AL~SANDRO BARA'ITA
sociolgico-jurdica, esta consiste precisamente na tentativa de unir
uma perspectiva microssociolgica, adotada para delimitar objetos
especficos de indagao, com uma perspectiva macrossociolgica,
adotada para definir um horizonte explicativo e interpretativo dentro
do qual so considerados os fenmenos singulares.
Assim, no se trata, apenas, de determinar a rea de pesqui-
sa de uma sociologia especial, mas tambm, e talvez ainda mais, o
problema da relao funcional, e portanto explicativa, dos fen-
menos estudados na rea assim circunscrita, com a estrutura socio-
econmica global de que fazem parte. S enfatizando este aspecto
da unidade da sociologia jurdica, a nossa matria pode realizar a
funo de teoria crtica da realidade social do direito, que conside-
ramos sua tarefa fundamental. Por outro lado, s com esta condi-
o se pode realizar a funo prtica da sociologia jurdica, em sua
mais vasta dimenso poltica, sem cair em um mero instrumen-
talismo tecnocrtico, como aconteceria se esta funo, por exem-
plo, se circunscrevesse a fornecer dados ao "poltico" para suasdecises legislativas e administrativas.
No interior da sociologia jurdica contempornea, o setor queprocuramos definir como sociologia do direito penal se apresenta,
no que dado encontrar nos mais recentes desenvolvimentos, em
diversos pases, e no por ltimo na Itlia, como um dos pontos mais
avanados de toda nossa matria, neste processo de recuperao da
dimenso macros sociolgica para a interpretao crtica dos fen-
menos estudados. Isto decorre, em boa parte, um dever afirm-lo,
por atrao dos mais recentes e mais positivos desenvolvimentos da
sociologia criminal: to estreitas so hoje, conforme se observou, as
relaes da sociologia jurdico-penal com esta disciplina.
Especialmente naquela orientao que agora aparece sob o
nome, no desprovido de uma consciente carga polmica em face
d a tr ad i o c ri min ol g ic a, d e "no va cr im in ol og ia "5 o u d e"criminologia crtica", o uso da perspectiva macrossociolgica,
em funo terica e prtica no estudo e na in:erpretao do fen-
meno do desvio, o fato centtal e programtico. Ademais, isto
no deve surpreender se observamos que alguns dos impulsos mais
decisivos para a "nova criminologia" provieram, antes que do seio
mesmo dos estudos criminolgicos, dos estudos de sociologia ge-
raI, e -que a "nova criminologia" , em boa parte, tributria de
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CI'IMINO!.OGIA Cl'iTlCA t : C l'iTIC A DO DlRt:lTO I'ENA!.
uma tradio clssica do pensamento sociolSico, tornada hoje
particularmente atual (pense-se em Durkheim e em Merton, dos
quais loso nos ocuparemos), em cujo mbito o problema do des-
vio (e para Durkheim se pode acrescentar, como testemunho da
atualidade de seu pensamento, o fenmeno da reao social ao
desvio) tratado como um aspecto funcional de uma determina-
da estrutura scio-econmica.A situao da sociolosia juridico-penal, c
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CRIMINOI.OGIA CRITICA E CRITICA DO DIREITO rENAL
dade, os fatores que determinam o comportamento criminoso, para
combat-los com uma srie de prticas que tendem, sobretudo, a
modificar o delinqente. A concepo positivista da cincia como
estudo das causas batizou a criminologia.
Como se poder verificar pela exposio nos captulos seguin-
tes' no obstante a reao que, dos anos 30 em diante, se se.':,iu
concepo patolgica da criminalidade (reao, como se ver, j
antecipada por Durkheim nos tempos de predomnio de tal con-cepo), a matriz positivista continua fundam~~tal na histria da
disciplina, at nossos dias. No s porque a orientao patolgica e
clnica continua representada na criminologia/oficial, mas tambm
porque as escolas sociolgicas que se desenvolveram, dos anos 30
em diante, especialmente nos Estados Unidos, contrapondo-se como
"sociologia criminal" "antropologia criminal", continuaram por
muito tempo e ainda em parte continuam a considerar a
criminolc.sia sobretudo como estudo das causas da criminalidade.
Ainda que estas orientaes tenham, geralmente, deslocado a aten-
o dos fatores biolgicos e psicolgicos para os sociais, dando o
predomnio a estes ltimos, o modelo positivista da criminologia
como estudo das causas ou dos fatores da criminalidade (par~7d.igmaetiolgico) para individualizar as medidas adequadas para remov-
los, intervindo sobretudo no sujeito criminoso (corredonalismo),
permanece dominante dentro da sociologia criminal contempor-
nea. Isto, pelo menos, como se indicou na introduo, enquanto
este modelo no foi posto em dvida e substitudo, parcial ou total-
mente, por um novo paradigma cientfico, o do labeJjng approach
(parad.igma da reao soda!). O conhecimento de que no poss-
vel considerar a criminalidade como um dado prconstitudo s
definies legais de certos comportamentos e de certos sujeitos
caracterstica, como veremos mais detalhadamente adiante, das
diversas tendncias da nova criminologia inspirada neste paradigma.
A considerao do crime como um comportamento definido pelo
direito, e o repdio do determinismo e da considerao do delin-
qente como um indivduo diferente, so aspectos essenciais danova criminologia.
No surpreende, pois, que na reconstruo histrica dos ante-
cedentes desta disciplina, a ateno dos representantes da nova
criminologia, e no s deles, tenha sido chamada para as idias que,
30
II
I
ALESSANDRO BARATIA
acerca do crime e do direito penal, tinham sido desenvolvidas no
mbito da filosofia poltica liberal clssica na Europa, no sculo XVIII
e primeira metade do sculo XIX. No obstante os pressupostos da
escola liberal clssica fossem muito diferentes dos que caracterizam
a nova criminologia, alguns princpios fundamentais em que aquela
se inspirava receberam um novo significado de atualidade, no mbi-
to da reao polmica em face da criminologia de orientao
positivista e do paradigma etiolgico.2
De fato, a escola liberal clssica no considerava o delinqen-
te como um ser diferente dos outros, no partia da hiptese de um
rgido determinismo, sobre a base do qual a cincia tivesse por ta-
refa uma pesquisa etiolgica sobre a criminalidade, c se detinha
principalmente sobre o delito, entendido como conceito jurdico,
isto , como violao do direito e, tambm, daquele pacto social
que estava, segundo a filosofia poltica do liberalismo clssico, na
base do Estado e do direito. Como comportamento, o delito surgia
da livre vontade do indivduo, no de causas patolgicas, e por isso,
do ponto de vista da liberdade e da responsabilidade moral pelas
prprias aes, o delinqente no era diferente, segundo a Escola
clssica, do indivduo normal. Em conseqncia, o direito penal e a
pena eram considerados pela Escola clssica no tanto como meio
para intervir sobre o sujeito delinqente, modificando-o, mas so-
bretudo como instrumento legal para defendera sociedade do cri-
me, criando, onde fosse necessrio, um dissuasivo, ou seja, uma.
contramotivao em face do crime. Os limites da cominao e da
aplicao da sano penal, assim como as modalidades de exerc-
co do poder punitivo do Estado, eram assinalados pela necessid.7de
ou ufiJjdade da pena e pelo princpio de legalidade.
Neste ltimo aspecto, as escolas liberais clssicas se situavam
como uma instncia crtica em face da prtica penal e penitenci-
ria do ancien regime, e objetivavam substitu-la por uma polticacriminal inspirada em princpios radicalmen te diferentes (princ-
pio de humanidade, princpio de legalidade, princpio de utilida-
de). E tambm neste sentido, como exemplo de um discurso crtico
sobre o sistema penal e de uma alternativa radical ante o mesmo, as
escolas liberais clssicas adquiriram um novo interesse luz das
tendncias criminolgicas que, contestando o modelo da
criminologia positivista, deslocaram sua ateno da criminalidade
3 1
,c
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18/129
CKJMIl\:OLOCIA CRiTICA E CRiTICA DO DIRrITO rENAL
para o direito penal, fazendo de ambos o objeto de uma crticaradical do ponto de vista sociolgico e poltico.
Quando se fala da escola liberal clssica como um antecedenteou como a "poca dos pioneiros" da moderna criminologia, se fazreferncia a teorias sobre o Crime, sobre o direito penal e sobre a
pena, desenvolvidas em diversos pases europeus no sculo XVIIIeprincpios do sculo XIX,no mbito da filosofia poltica liberal cls-sica. Faz-se referncia, particularmente, obra de Jeremy Benthamna In:slaterra , de Anselm von Feuerbach na, Alemanha, de CesareBeccaria e da escola clssica de direito penal na Itlia. Quando sefala da criminologia positivista como a primira fase de desenvolvi-mento da criminologia, entendida como disciplina autnoma, se fazreferncia a teOlias desenvolvidas na Europa entre o final do sculoXIXe o comeo do sculo XX,no mbito da filosofia e da sociologiado positivismo naturalista. Com isso se alude, em particular, escolasociol8ca francesa (Gabriel Tarde) e "Escola social" na Alema-nha (Franz von Liszt), mas especialmente "Escola positiva" na It-lia (Cesare Lombroso, Enrico Ferri, Raffaele Garofalo). No presente
volume tomaremos em considerao principalmente as tendnciasda sociologia criminal que se desenvolveram, dos anos 30 em diante,depois do predomnio das escolas positivas e, em parte, emcontraposio a elas. Afinalidade especfica desta reconstruo his-trica consiste em mostrar em que sentido e at que ponto o desen-volvimento do pensamente criminol:sico posterior aos anos 30co-locou em dvida a ideologia penal tradicional, sobre a qual repousaainda hoje a cincia do direito penal, e em face da qual, como sever, a criminologia positivista pode se considerar subalterna.:!
2. DA FILOSOFIA lX) OlREITO PENAL A UMA FUNDAMENTAO FILO-
SFICA DA CINCIA I>ENAL. C~"'A/{E BECCAIVA
Os plimeiros mpulsos fundamentais aos quais se deve a forma-o da h"adio italiana de direito penal, tal como esta se consolidouna Escolaclssica, sobretudo atravs da obra de Carrara, provieram defilsofos como Beccaria, Filangieti e Roma:snosi, ou bem de juristasque partiam de uma li8orosa fundamentao filosfica racionalista e. 'Jusnaturalista, como Cannignani e, precisamente, seu :srande discpu-
32
ALESSANDRO BARATTA
10Francesco Carrara. Fodemos melhor dizer que, neste primeiro per-odo do desenvolvimento do pensamento penal italiano, assistimos aum processo que vai da filosofiado direito penal a uma fundamenta-o filosfica da cincia do direito penal; ou seja, de uma concepofilosfica para uma concepo jurdica, mas filosoficamente fundada,dos conceitos de delito, de respon~abilidade penal, de pena.
Esta fase deliciosamente filosfica do pensamento penal itali-
ano se abre com o pequeno e afortunadssimo tratado D de/itti edelle pene, escrito por Cesare Beccaria em 1764. Este tratado ,como h muito a crtica amplamente demonstrou, menos a obraori:sinal de uma genial personalidade do que a expresso de todoum movimento de pensamento, em que conflui toda a filosofia po-ltica do Iluminismo europeu e, especialmente, o francs. A conse-qncia resultante para a histria da cincia penal, no s italianamas europia, a formulao pragmtica dos pressupostos parauma teoria jurdica do delito e da pena, assim como do processo,no quadro de uma concepo liberal do estado de direito, baseadano princpio utilitarista da maior felicidade para o maior nmero, esobre as idias do contrato social e da diviso dos poderes.
Abase da justia humana , para Beccaria, a utilidade comum;mas a idia da utilidade comum emer:se da necessidade de manterunidos os interesses pmiiculares, superando a coliso e oposio en-tre eles, que caracteriza o hipottico estado de natureza. O contratosocial est na base da autoridade do Estadoe das leis;sua funo, quederiva da necessidade de defender a coexistncia dos interesses indi-vidualizados no estado civil,constitui tambm o limite l:sicode todole:stimosacrifcio da liberdade individual mediante a ao do Estadoe, em particular, do exerccio do poder punitivo pelo prprio Estado.
F01~poi:,~a necessIdflde que constnlJweu a ceder prte d!l prpra
Jjberd!lde; certo que nin
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CRIMINOLOGIA CRiTICA CRiTICA DO DIRITO rNAL
Do princpio utilitarista da mxima felicidade do maior n-
mero e da idia do contrato social segue-se que o critrio da medi-
da da pena o mnimo sacrifcio necessrio da liberdade individual
que ela implica; enquanto a excluso da pena de morte derivada
por Beccariada funo mesma do contrato social,coma qual aquela
contrastaria lozicamente, j que impensvel que os indivduos
espontaneamente coloquem no depsito pblico no s uma parte
da prpria liberdade, mas sua prpria existncia. Da idia da divi-
so de poderes e dos princpios humanitrl~s iluministas, de que
expresso o livro de Beccaria, derivam, pois, a negao da justia
de gabinete, prpria do processo inquisitrio, da prtica da tortura,
assim como a afirmao da exigncia de salvaguardar os direitos
do imputado por meio da atuao de um juiz obediente, no ao
executivo, mas lei.A essncia e a medida do delito esto, no siste-
ma conceitual do livro de Beccaria, no dano social. O dano social e
a defesa social constituem, assim, neste sistema, os elementos fun-
damentais, respectivamente, da teoria do delito e da teoria da pena.
3. OPEN\"AMENTO DE GIANJ)OMENICO ROMA(,'NOSI. A PENA
COMO CONTR.A-E\'TMULO AO IMPULSO CR.IMINOSO
Partindo de um fundamento' filosficodistinto e mais pessoal,
Romagnosichegaa afirmaesno distantes dasde Beccaria,nagran-
de sistematizaoracionalista do direito penal apresentada naGeJ1esi
deI diritto pelUlle (1791) e nafilosofia deI diritto (1825). UgoSpirit05
atribui a Romagnosi,cremos que com razo, a conscincia da "ne-
cessidade de fazer surgir o sistema de direito penal de uma verdadei-
ra e prpria filosofia do direitd'. Esta filosofiado direito e da socie-
dade, que se acha na base do sistema penal de Romagnosi,afirma a
natureza originariamente socialdo homem e negao conceito abstra-
to de uma independncia natural, qual o indivduo renunciaria por
, meio do contrato para entrar no estado social:a verdadeira indepen-
dncia natural do homem pode-se entender somente como supera-
o da natural dependncia humana da natureza atravs do estado
social, que permite aos homens conservar mais adequadamente a
prpria existncia e realizar a prpria racionalidade. As leis desta
ordem social so leis da natureza que o homem pode reconhecer
mediante a razo. O princpio essencial do direito natural , para
34
Romagnosi,a conservao da espcie humana e a obteno da m-
xima utilidade. Desteprincpio derivam as trs relaes tico-jurdi-
cas fundamentais: o direito e dever de cada um de conservar a pr-
pria existncia, o dever recproco dos homens de no atentar contra
sua exitncia, o direito de cada um de no ser ofendido por outro.
Como para Beccaria, assim tambm para RomagnosiG , mas atravs
de uma muito diferente e mais complexa demonstrao, que parte
da existncia e da exignciaoriginria da sociedade, e no da hipte-
se utilitarista do pacto social, o fim da pena a defesa social. Esta~iferena se realiza pelo fato de que a pena constitui, em relao ao
Impulso criminoso, um contra-estmulo. E assim o limite lgico da
pena assinalado por esta sua funo de contra-impulso, que no
deve ser superada jamais. Por isso, escreve Romagnosiem um par-
grafo famoso da GeJ1esi,"se depois do primeiro delito existisse uma
certeza moral de que no ocorreria nenhum outro, a sociedade noteria direito algum de puni-lo [odelinqente]".;
Contudo, segundo Romagnosi, a pena no o nico meio de
defesa social; antes, o maior esforo da sociedade deve ser colocado
na preveno do delito,atravs do melhoramento e desenvolvimento
das condies de vida social. E aqui se pode ver uma importanteantecipao da teoria dos "substitutivos penais", elaborada por Ferri
no mbito da Escolapositiva.
4. O NASCIMENTO DA MOIJER.N1 CINCIA IX) J)!I{EITO PENAL NA
IT./UA. O.\Z\'TEMA jUR.IJlCO DE F/{ANCE\U) CAI
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t do sl"stema penal Com Carrara nasce, j antecipada pelo
coeren e . .'. t' '0de Cannio-nani seu predecessor na catedra plsana, a
magls en C > '.... .moderna cincia do direito penal ltahano. E a fJlosofla, contudo,
que a apadrinha. . .' . , ,A viso rigorosamente)undlca do dehto, que esta no centro da
construo carrariana, tem, contudo, uma validade formal que , de
algum modo, independente do contedo que a filosofia de Can:ara
d ao conceito de direito. Mas tambm verdade que, sem denvar
seu impulso terico de uma viso jusnaturaJista e racionali~ta do
universo social e moral, a construo jurdica da teoria do dehto, tal
como se contm no programa de Carrara, no teria sido possvel.
Escreve Carrara: "Toda a imensa tran.a de regras que, ao de-
finir a suprema razo de prOlbir; reprimir e julgar as aes dos
homens circunscreve, dentro de limites devidos, o poder legislativo, . .
e judicial, deve (no meu modo de entender) remontar, como a :'alz
mestra da rvore, a uma verdade fundamental." Esta verdade e -
continua Carrara - que "o delito niio um ente de fatq mas um
ente juridicd'. "O delito um ente jurdico porque sua essncia
deve consistir, indeclinavelmente, na violao de um direito."8 Mas
quando Carrara fala de direito, no se refere s mutveis legisla-
es positivas, seno a "uma lei que absoluta, porque constitudapela nica ordem possvel para a humanidade, segundo as previ-
ses e a vontade do Criador",ll Estesignificado absoluto que Carrara
d ao direito lhe permite distinguir, no programa da prpria cte-
dra, a parte terica da parte pnticll do direito penal: para a pri-
meira o fundamento lgico dado pela verdade, pela natureza das,
coisas, da qual, segundo Carrara, deriva a prpria ordem, imut-
vel da matria tratada; para a segunda, em troca, tal fundamento ,
dado pela autoridade da lei positiva.
a primeira, afirma Carrara, "a cincia que devemos estu-
dar' abstraindo sempre do que se pode ter querido ditar nos vrios,
cdigos humanos, e redescobrindo a verdade no cdigo imutvel
da razo. A comparao dos c.ireitos constitutivos no seno um
complemento de nossa cincia".lO
Certo, hoje no mais compartilhamos a f racionalista com
que CaI'rara acreditava poder apreender os princpios imutveis da
razo que presidem a teoria do delito, e deixar-nos-ia perplexos
quem quisesse repropor a rgida contraposio feita por Carrara
entre a autoridade da lei e a verdade que descende da natureza das
coisas, e qual deve se dirigir o tratamento terico do direito penal.
No obstante, alm desta contraposio abstrata, neste dualismo se
contm um profundo ensinamento, que hoje deve de novo nos fa-
zer refletir, se queremos repropor, contra a estreita perspectiva do
positivismo legalista, um modelo integrado de cincia penal. E de-
vemos constatar, tambm, que o edifcio terico construdo por
Carrara com esta pretenso filosfica de apreender uma verdade
superior e independente da contingente autoridade da lei positiva,
foi o primeiro grande edificio cientfico do direito penal na Itlia,
no qual toda a teoria do delito deriva de uma considerao jurdica
rigorosa do mesmo, entendido no como mero fato danoso para a
sociedade, mas como fato juridicamente qualificado, ou seja como
violao do direito.
Disso, e no em ltimo lugar da rigorosa delimitao entre
esfera jurdica e esfera moral, decorre que a considerao objetiva
do delito predomine, no sistema de Carrara, sobre a considerao
subjetiva do ru.
A distino entre considerao jurdica do delito e considera-
o tica do indivduo torna-se, pois, a base da qual parte Crrara
para proceder a uma nova afirmao da tese de que a funo dapena , essencialmente, a defesa social. Ofim da pena no a retri-
buio - afirma Carrara - nem a emenda, mas a eliminao do
perigo social que sobreviria da impunidade do delito. A emenda, a
reeducao do condenado, pode ser um resultado acessrio e dese-
jvel da pena, mas no sua funo essencial, nem o critrio para
sua medida.
A atitude racionalista de Carrara, a distino por ele feita en-
tre teoria e prtica, encontraram amplo eco na cincia italiana,
determinando uma orientao de pensamento, a Escola clssica,
que tem nele seu ponto de partida. No mbito dessa escola volta-
mos a encontrar, em Pessina11, a distino entre a idia e o fato no
direito penal, ou seja, entre um sistema de direito penal absoluto e
um sistema de direito penal positivo, e em Buccellati a distino
entre razo e fato, a propsito da qual se vislumbra j, todavia, a
direo de uma possvel superao da antinomia, onde sustenta
Buccellati que o estudioso deve fazer progredir hannonicamente o
fato e a razo12
37
CRIMINOLOGIA CRTICA E CRiTICA DO DIREITOPENAL Al~SANDRO BARATTA
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5. A ESCOLA IJOSITIVA E A EXPLICAO PATOL()(;ICA DA
ClUMINALIIJAIJE. O CRIMINOSO COMO "OIFEH.ENTE": CE.~ARE
L( )MIJI{( )S()
A atitude filosfica racionalista e jusnaturalista da Escola cls-
sica havia conduzido a um sistema de direito penal no qual, como
vimos, o delito encontra sua expresso propriamente como ente jur-
dico. Isto significa abstrair o fato do delito, na considerao jurdica,
do contexto ontolgico que o liga, por um lado, toda a personalida-1
de do delinqente e a sua histria biolgica e psicolgica, e por outo
lado, totalidade natural e social em que se, insere sua existncia.
Esta dplice abstrao se explica com a caracterstica intelectual de
uma filosofia baseada na individualizao metafsica dos entes.
O delito, como ao, para Carrara e para a Escola clssica um
ente juridicamente qualificado, possuidor de uma estrutura real e
um significado jurdico autnomo, que surge de um princpio por
sua vez autnomo, metafisicamente hipostasiado: o ato da livre von-
tade de um sujeito. A hipstase deste ato em face do microcosmo
constitudo pela histria biopsicolgica do sujeito, e a hipstase deste
sujeito, o indivduo, dentro do macrocosmo da realidade natural esocial, havia permitido a formao de um sistema penal baseado so-
bre a "objetividade" do delito. A metafsica naturalista, positivista da
qual, ao contrrio, partia a Escola positiva, no final do sculo passa-
do, com a obra de Lombroso, Ferri e Garfalo, levava a uma nova
maneira de considerar o delito; a uma reao contra as hipstases
racionalistas de entidades abstratas: o ato, o indivduo, sobre os quais
se baseava a filosofia da Escola clssica, e que agora perdiam sua
consistncia em face de uma viso filosfica baseada sobre o concei-
to naturalista de totalidade. O delito , tambm para a Escola positi-
va, um ente jurdico, mas o direito que qualifica este fato humano
no deve isolar a ao do indivduo da totalidade natural e social.A reao ao conceito abstrato de indivduo leva a Escola positi-
va a afinLlar a exigncia de uma compreenso do delito que no se
prenda tese indemonstrvel de uma causao espontnea median-
te um ato de livre vontade, mas p~'ocure encontrar todo o complexo
das causas na totaliade biolgica e psicolgica do indivduo, e na
totalidade social que determina a vida do indivduo. Lombroso, em
seu livro LJU01110deiJi1quente, cuja primeira edio de 1876, consi-
38
derava O delito como um ente natural, "um fenmeno necessrio,
ccmo o nascimento, a morte, a concepo", determinado por causas
biolgicas de natureza sobretudo hereditria.
tese propugnada pela Escolaclssica, da responsabilidade moral,
da absoluta imputabilidade do delinqente, Lombroso contrapunha,
pais, um rgido determinismo biolgico. A viso predominantemente
a~ltropolgica de Lombroso (que, contudo, no negligenciava, como
erroneamente cedos crticos sustentam, os fatores psicolgicos e soci-
ais) seria depois ampliada por Garfalo, com a acentuao dos fatores
psicolgicos (a sua Cni1l1i1OJegia de 1905) e por Ferri, com a acentu-
ao dos fatores sociolgicos. Na Sociologia cni1l11ale (I900), Ferri
ampliava, em uma completa e equilibrada sntese, o quadro dos fato-
res do delito, dispondo-os em trs classes: fatores antropolgicos, fato-
res fsicos e fatores sociais. O delito era reconduzido assim, pela Escola
positiva, a uma concepo determinista da realidade em que o homem
est inserido, e da qual todo o seu comportamento , no fim das contas,
expresso. O sistema penal se fundamenta, pois, na concepo da Es-
cola positiva, no tanto sobre o delito e sobre a classificao das aes
delituosas, consideradas abstratamente e independentes da personali-
dade do delinqente, quanto sobre o autor do delito, e sobre a classifi-cao tipolgka dos autores1:\
Esta orientao de pensamento buscava, de fato, a explicao
da criminalidade na "diversidade" ou anomalia dos autores de com-
portamentos criminalizados.
O desenvolvimento da Escola positiva levar, portanto, atravs
de Grispigni, a acentuar as caractersticas do delito como elemento
sintomtico da personalidade do autor, dirigindo sobre tal elemento
a pesquisa para o tratamento adequado. A responsabilidade moral
substituda, 110 sistema de Ferri, pela responsabilidade "social". Se
no possvel imputar o delito ao ato livre e no-condicionado de
uma vontade, contudo possvel referi-lo ao comportamento de umsujeito: isto explica a necessidade de reao da sociedade em face de
quem cometeti. um delito. Mas a afirmao da necessidade da ao
delituosa faz desaparecer todo carter de retribuio jurdica ou de
retribuio ti:;a da pena. Agora novamente, mesmo na profunda
diversidade de pressupostos, e tambm de conseqncias prticas,
vemos reafirmada, na histria do pensamento penalstico italiano, a
concepo da ~ena como meio de defesa social. Ferri agrega pena
39
CRIMINOLOGIA cR'ncA r. CRllCA DO DIREITO rENAL
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todo O sistema de meios preventivos de defesa social contra o crime,
que assumem a forma e a denominao de "substitutivos penais"14.
Mas como meio de defesa social a pena no age de modo exclusiva-
mente repressivo, segregando o delinqente e dissuadindo com sua
ameaa os possveis autores de delitos; mas, tambm e sobretudo, de
modo curativo e reeducativo15 A tipologia de autores que Ferri pro-
pe deve auxiliar esta funo curativa e reeducativa. A conseqn-
cia politicamente to discutvel e discutida desta colocao a dura-
o tendencialmente indeterminada da pena, j que o critrio demedio no est ligado abstratamente ao fato1delituoso singular, ou
seja, violao do direito ou ao dano social produzido, mas s con-I
dies do sujeito tratado; e s em relao aos efeitos atribudos
pena, melhoria e reeducao do delinqente, pode ser medida sua
durao.
De qualquer modo, os autores da Escola positiva, seja privilegi-
ando um enfoque bioantropolgico, seja acentuando a importncia
dos fatores sociolgicos, partiam de uma concepo do fenmeno
criminal segundo a qual este se colocava como um dado ontolgico
preconstitudo reao social e ao direito penal' a criminalidade, ,portanto, podia tornar-se objeto de estudo nas suas "causas", inde-
pendentemente do estudo das reaes sociais e do direito penal.
Em ambos os casos a velha criminologia era subordinada ao
direito penal positivo. verdade que se deve reconhecer Escola
positiva italiana a tentativa de resgatar - mediante a elaborao do
conceito de "delito natural"lG- a criminologia de tal subordinao.
Deve-se recordar, no obstante, que precisamente do direito penal
positivo a velha criminologia emprestava, seja como for, as defini-
es da realidade que pretendia estudar, depois, com o mtodo cien-
tfico-naturalstico. Os sujeitos que observava clinicamente para cons-
truir a teoria das causas da criminaliade eram indivduos cados na
engrenagem judiciria e administrativa da justia penal, sobretudo
os clientes do crcere e do manicmio judicirio, indivduos selecio-nados daquele complexo sistema de filtros sucessivos que o sistema
penal. Os mecanismos seletivos que funcionam nesse sistema, da
criao das normas sua aplicao, cumprem processos de seleo
que se desenvolvem na sociedade, e para os quais, como se ver logo,
o pertencimento aos diversos estratos sociais decisivo.
40
lI. A IDEOLOGIA DA DEFESA SOCIAL
1. A IJ)EOLO(,'IA J)A IJEFE'>'ASOCIAL COMO IJ)EOLO(,'IA COMUM AE,>COLA CLA."SICA E A E,>"(:OLA POSITIVA. OS PRINeil'los CARIJEAIS
DA IDEOLO(,'/A J)A J)EFE'>'ASOCIAL
Uma das questes relativas ao significado histrico e terico do
pensamento expresso pela escola liberal clssica foi colocada em re-
cente debate historiogrfico sobre a posio que tal escola ocupa no
contexto do pensamento criminolgico. Trata-se de saber se, na his-
tria desse pensamento, a escola liberal clssica representa somente
a poca dos pioneiros ou, melhor, constitui seu primeiro captulo,
no menos essencial do que os subseqentes. David Matza e, aps
seu exemplo, Fritz Sack1
quiseram reavaliar, como se indicou no ca-ptulo precedente, a importncia da Escola clssica no s para o
desenvolvimento histrico da criminologia, mas tambm para a fase
atual de reviso crtica de seus fundamentos. Seja qual for a tese
aceita, um fato certo: tanto a Escola clssica quanto as escolas
positivistas realizam um modelo de cincia penal integrada, ou seja,
um modelo no qual cincia jurdica e concepo geral do homem e
da sociedade esto estreitamente ligadas. Ainda que suas respectivas
concepes do homem e da sociedade sejam profundamente dife-
rentes, em ambos os casos nos encontramos, salvo excees, em pre-
sena da afirmao de uma ideologia da defesa sociaF, como n
terico e poltico fundamental do sistema cientfico.
A ideologia da defesa sociaJ3 (ou do "fim") nasceu contempora-
neamente revoluo burguesa, e, enquanto a cincia e a codificao
penal se impunham como elemento essencial do sistema jurdico bur-
gus, aquela assumia o predomnio ideolgico dentro do especfico
setor penal. As escolas positivistas herdaram-na da Escola clssica,
transformando-a em algumas de suas premissas, em conformidade
41
CRlMINOlOCIA CRiTICA E CRiTICA 00 DlRJ:ITO rENAlALESSANDRO I3ARATrA
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s exigncias polticas que assinalam, no interior da evoluo da
sociedade burguesa, a passagem do estado liberal clssico ao estado
social. O contedo dessa ideologia, assim como passou a fazer parte
_ embora filtrado atravs do debate entre as duas escolas - da
filosofia dominante na cincia jurdica e das opinies comuns, no
s dos representantes do aparato penal penitencirio, mas tambm
do homem de rua (ou seja, das every day theories), sumariamente
reconstruvelna seguinte srie de princpios.
a) Princpio de legitimidade. O .Estado, como expresso da so-ciedade, est legitimado para reprimir a crimnalidade, da qual so
responsveis determinados indivduos, por lpeio de instncias ofi-
ciais de controle social (legislao, polcia, magistratura, institui-
es penitencirias). Estas interpretam a legtima reao da socie-
dade, ou da grande maioria dela, dirigida reprovao e condena-
o do comportamento desviante individual e reafirmao dos
valores e das normas sociais.
b) Princpio do bein e do mal.O delito um dano para a socieda-
de. O delinqente um elemento n~ativo e disfuncional do sistema
social. O desvio criminal , pois, o mal; a sociedade constituda, o bem.
c) Princpio de culpabilidade. O delito expresso de uma
atitude interior reprovvel, porque contrria aos valores e s nor-
mas, presentes na sociedade mesmo antes de serem sancionadas
pelo legislador.
d) Princpio da finalidade ou da preveno. A pena no tem,
ou no tem somente, a funo de retribuir, mas a de prevenir o
crime. Como sano abstratamente prevista pela lei, tem a funo
de criar uma justa e adequada contra motivao ao comportamen-
to criminoso. Como sano concreta, exerce a funo de resso-
cializar o delinqente.
, e) Princpio de igualdade. A criminalidade violao da lei
. 1 penal e, como tal, o comportamento de uma minoria desviante. A
., lei penal igual para todos. A reao penal se aplica de modo igual
Iaos autores de delitos. . DOS "COMPOR TAMENT
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, grado de cincia do direito penal, caracterizada por elementosan.titticos ideologia da defesa social: em primeiro lugar, essa te-Oria trabalha com um conceito Si/lU/do, ou seja, com uma llbstnt-iio de/ermJwd/i correspondente a especficas fonnaes econ-mico