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1 A Vida Intelectual  A. D. Sertillanges Índice CAPÍTULO I - A vocação intelectual.................................................................................................. 3 I – O intelectual é um consaga!o. ................................................................................................. 3 II – O intelectual não é um isola!o.................................................................................................. " III – O intelectual #etence ao seu tem#o. ...................................................................................... $ I - As vitu!es comuns..................................................................................................................... % II - A vitu!e #&#ia !o intelectual................................................................................................. ' III - O es#(ito !e oação................................................................................................................11 I) - A !isci#lina !o co#o. ........................................................................................................... 1* CAPÍTULO III - A ogani+ação !a vi!a............................................................................................ 1, I – im#liica................................................................................................................................ 1, II – /ua!a a soli!ão.................................................................................................................... 1$ III – Coo#ea com os seus iguais..................................................................................................1% I) – Cultiva as elaç0es necessias .............................................................................................1' ) – Conseva a !ose necessia !e acção.....................................................................................*1 )I – 2ante o silncio inteio. .................................................................................................... ** CAPÍTULO I) - O tem#o !o ta4al5o...............................................................................................*, I - O ta4al5o #emanente.............................................................................................................. *, II - O ta4al5o noctuno................................................................................................................. *% III – A ma!uga!a e os se0es....................................................................................................... *' I) - Os instantes !e #lenitu!e. ......................................................................................................31 CAPÍTULO ) - O cam#o !o ta4al5o............................................................................................... 3, I – A cincia com#aa!a..................................................................................................................... 3, II – O tomismo6 7ua!o i!eal !o sa4e...........................................................................................38 III – A es#eciali!a!e ...................................................................................................................... 3' I) – Os saci(cios necessios. .................................................................................................... ,9 CAPÍTULO )I - O es#(ito !o ta4al5o.............................................................................................,1 I – O a!o !a investigação............................................................................................................ ,1 II – A concentação ........................................................................................................................ ,* III – A su4missão : ve!a!e.......................................................................................................... ,3 I) – Alagamentos.........................................................................................................................," ) – O senso !o mistéio. ...............................................................................................................,$ CAPITULO )II - A #e#aação !o ta4al5o...................................................................................... ,8 A. – A L;ITU<A...........................................................................................................................,8 I – Le #ouco............................................................................................................................. ,8 II – ;scol5e.............................................................................................................................. ,' III – =uato es#écies !e leitua................................................................................................. "9 I) – O tato com o génio.......................................................................................................... "1 ) – Concilia em ve+ !e o#o................................................................................................... ", )I – Assimila e vive............................................................................................................... ", > – A O</A?I@ABO A 2;2D<IA.................................................................................... "% I – =ue se !eve eteE ..............................................................................................................."% II – Po 7ue o!em eteE ......................................................................................................... "8 III – Como eteE......................................................................................................................."' C. – A ?OTA............................................................................................................................ $9 I – Como toma notas................................................................................................................ $9

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A Vida Intelectual - A. d. Sertillanges

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  • 1A Vida IntelectualA. D. Sertillanges

    ndiceCAPTULO I - A vocao intelectual.................................................................................................. 3

    I O intelectual um consagrado. ................................................................................................. 3II O intelectual no um isolado.................................................................................................. 5III O intelectual pertence ao seu tempo. ...................................................................................... 6I - As virtudes comuns..................................................................................................................... 7II - A virtude prpria do intelectual................................................................................................. 9III - O esprito de orao................................................................................................................11IV - A disciplina do corpo. ........................................................................................................... 12

    CAPTULO III - A organizao da vida............................................................................................ 14I Simplificar................................................................................................................................ 14II Guardar a solido.................................................................................................................... 16III Cooperar com os seus iguais..................................................................................................17IV Cultivar as relaes necessrias.............................................................................................19V Conservar a dose necessria de aco.....................................................................................21VI Manter o silncio interior. .................................................................................................... 22

    CAPTULO IV - O tempo do trabalho...............................................................................................24I - O trabalho permanente.............................................................................................................. 24II - O trabalho nocturno................................................................................................................. 27III A madrugada e os seres....................................................................................................... 29IV - Os instantes de plenitude. ......................................................................................................31

    CAPTULO V - O campo do trabalho............................................................................................... 34I A cincia comparada..................................................................................................................... 34

    II O tomismo, quadro ideal do saber...........................................................................................38III A especialidade...................................................................................................................... 39IV Os sacrifcios necessrios. .................................................................................................... 40

    CAPTULO VI - O esprito do trabalho.............................................................................................41I O ardor da investigao............................................................................................................ 41II A concentrao........................................................................................................................42III A submisso verdade.......................................................................................................... 43IV Alargamentos.........................................................................................................................45V O senso do mistrio. ...............................................................................................................46

    CAPITULO VII - A preparao do trabalho...................................................................................... 48A. A LEITURA...........................................................................................................................48

    I Ler pouco............................................................................................................................. 48II Escolher.............................................................................................................................. 49III Quatro espcies de leitura................................................................................................. 50IV O trato com o gnio.......................................................................................................... 51V Conciliar em vez de opor................................................................................................... 54VI Assimilar e viver............................................................................................................... 54

    B A ORGANIZAO DA MEMRIA.................................................................................... 57I Que se deve reter? ...............................................................................................................57II Por que ordem reter? ......................................................................................................... 58III Como reter?.......................................................................................................................59

    C. AS NOTAS............................................................................................................................ 60I Como tomar notas................................................................................................................60

  • 2II Como classificar as notas................................................................................................... 63III Como utilizar as notas.......................................................................................................64

    CAPTULO VIII - O trabalho criador................................................................................................65I Escrever.................................................................................................................................... 65II Desapegar-se de si e do mundo. .............................................................................................67III Constncia, pacincia e perseverana.....................................................................................69IV Fazer tudo bem feito e at ao fim.......................................................................................... 73V No ir alm das prprias foras.............................................................................................. 74

    CAPTULO IX - O trabalhador e o homem.......................................................................................76I Guardar o contacto tom a vida..................................................................................................76II Saber distrair-se.......................................................................................................................78III Aceitar as provaes. ............................................................................................................ 80IV Saborear as alegrias............................................................................................................... 81V Gozar antecipadamente os frutos. .......................................................................................... 82

  • 3CAPTULO I - A vocao intelectual

    I O intelectual um consagrado.

    Falar de vocao equivale a designar os que pretendem fazer do trabalho intelectual a sua vida, ou porque dispem de vagar para se entregarem ao estudo, ou porque, no meio de ocupaes profissionais, reservam para si, como feliz suplemento e recompensa, o profundo desenvolvimento do esprito. Digo profundo, para descartar a ideia de tintura superficial. Uma vocao no se satisfaz com leituras vagas nem com pequenos trabalhos dispersos. Requer penetrao continuidade e esforo metdico, no intuito duma plenitude que responda ao apelo do Esprito e aos recursos que lhe aprouve comunicar-nos. Este apelo no se deve conjecturar. Quem se aventura a um caminho, que no pode trilhar, com p firme, conte de antemo com decepes. O trabalho pesa sobre todos e, aps a primeira formao sempre custosa, seria loucura deixar descambar o esprito na primitiva indigncia. Uma coisa a conservao pacfica do que se adquiriu, e outra coisa retomar pela base uma instruo puramente provisria e que se considera simples ponto de partida. Este ltimo estado de esprito o de um chamado. Implica uma resoluo grave, porque a vida de estudo, sendo austera, impe duros encargos. Paga, e abundantemente; mas exige uma entrada de capital de que poucos so capazes. Os atletas da inteligncia, Como os atletas do desporto, tm de prever privaes, longos treinos e tenacidade por vezes sobre-humana. Precisam de se dar de alma e corao conquista da verdade, visto que a verdade s presta servios a quem a serve. Tal orientao deve ser precedida de maduro e longo exame. A vocao intelectual como as demais vocaes: est inscrita nos nossos instintos, nas nossas capacidades, em um no sei que entusiasmo interior sujeito ao exame da razo. As nossas disposies so como as propriedades qumicas que determinam, para cada corpo, as combinaes em que pode entrar. No coisa que se d. Vem do cu e da natureza primeira. O ponto est em ser dcil a Deus e a si prprio, depois de ter escutado estas duas vozes. Assim compreendida, a mxima de Disraeli: , encerra profundo sentido. O gosto, que se encontra cm correlao com as tendncias ntimas e com as aptides, esplndido juiz. S. Toms, afirmando que o prazer qualifica as funes e pode servir para classificar os homens, deve naturalmente concluir que o prazer tambm pode trair as nossas vocaes. Mas mister esquadrinhar at s profundidades em que o gosto e o ardor espontneo se encontram com os dons e a providncia de Deus. O estudo duma vocao intelectual comporta, alm da vantagem incalculvel de o homem se realizar plenamente a si prprio, um interesse geral a que ningum pode renunciar. A humanidade crist compe-se de personalidades diversas, e nenhuma destas pode abdicar daquela sem empobrecer o grupo e privar o eterno Cristo de parte do seu reino. Jesus Cristo reina pelo seu desdobramento. A vida de qualquer dos seus um instante qualificado da sua durao; qualquer caso humano e cristo um caso incomunicvel, nico e, por conseguinte, necessrio, da extenso do . Se sois porta-luz, no escondais, debaixo do alqueire, o brilho pequeno ou grande que de vs se espera na casa do Pai de famlia. Amai a verdade e os seus frutos de vida, para bem vosso e dos outros; consagrai ao estudo e sua utilizao o principal do vosso tempo e do vosso corao. Todos os caminhos, excepto um, so maus para vs, visto que todos se apartam da direco onde se espera e se requer a vossa aco. No sejais infiel a Deus, nem a vossos irmos, nem a vs prprios, rejeitando um apelo sagrado. Isto supe que se abraa a vida intelectual com intenes desinteresseiras e no por ambio ou v glorola. Os guisos da publicidade s tentam os espritos fteis. A ambio, que quisesse subordinar a si a verdade eterna, ofend-la-ia. Brincar com as questes que dominam a vida e a morte, com a natureza misteriosa, talhar-se um destino literrio e filosfico custa da

  • 4verdade ou fora da dependncia da verdade, constitui um sacrilgio. Tais intentos, sobretudo o primeiro, no conseguiriam manter o investigador; depressa o esforo esmoreceria e a vaidade haveria de entreter-se com bagatelas, sem curar das realidades. Mas isto supe igualmente que se junta, aceitao do fim, a aceitao dos meios, sem o que no se deve tomar a srio a obedincia vocao. Quantos h que desejariam saber! Uma vaga aspirao impele as multides para horizontes que a maior parte admira de longe, como o doente de gota admira, desde a plancie, as neves eternas que cobrem o cimo das montanhas. Obter sem gastar, eis o desejo universal; mas desejo de coraes cobardes e de crebros enfermos. O universo no acorre ao primeiro sussurro e para que a luz de Deus baixe a vossas lmpadas, necessrio que as vossas almas a peam instantemente. Sois um consagrado: tendes de querer o que a verdade quer; consenti, por causa dela, em vos mobilizardes, em vos fixardes nos seus domnios, em vos organizardes e, porque vos falta a experincia, em vos firmardes na experincia alheia. Mais do que ningum, precisam os jovens deste aviso. A cincia conhecimento pelas causes; mas activamente, quanto sua produo, criao pelas causas. preciso conhecer e adoptar as causas do saber, depois coadun-las e no adiar o cuidado de lanar os alicerces at ao momento de assentar o telhado. Que belas culturas se podiam empreender nos primeiros anos de liberdade aps os estudos, revolvida ainda de fresco a gleba intelectual com as sementes confiadas ao solo! esse um tempo que no volta mais, o tempo de que se h-de viver mais tarde. Qual ele tiver sido, tal ser o homem, porque no h maneira de arrepiar o caminho andado. Se viverdes superficialmente, sofrereis o castigo de ter descurado, em seu tempo, o porvir que vive sempre de esperana. Pense cada qual nisto na hora em que o pensar pode servir. Quantos jovens, que nutrem a pretenso de vir a ser trabalhadores, malbaratam miseravelmente os dias, as foras, a seiva intelectual! ou no trabalham, quando lhes sobra tempo de o fazer, ou trabalham mal, caprichosamente, sem saberem o que so, nem para onde querem ir, nem como se anda. Cursos, leituras, frequentaes, dosagem do trabalho e do descanso, da solido e da aco, arte de extrair e de utilizar os elementos adquiridos, realizaes provisrias que anunciam o trabalho prximo, virtudes a alcanar e a desenvolver, nada se prev, nada ser satisfeito. No entanto, em igualdade de recursos, que diferena entre o que sabe e prev e o que corre aventura! , mas pacincia organizada, inteligente. No se requerem faculdades extraordinrias para realizar uma obra; basta uma mdia superior; o resto, fornece-o a energia e a arte de a aplicar. Sucede aqui o que sucede a um operrio honrado, poupado e fiel ao trabalho: chega ao termo, quando muitas vezes o inventor fracassa por causa de irritaes e pressas. O que digo aplica-se a todos, dum modo especial aos que s sabem dispor duma parte da vida, da mais fraca, para se entregarem aos trabalhos da inteligncia. Mais do que os outros, devem estes ser consagrados. Tero de amontoar, em reduzido espao, o que lhes no dado distribuir em vasta extenso. O ascetismo especial e a virtude herica do trabalhador intelectual devero ser, para eles, o po de cada dia. Se, porm, consentirem nesta dupla oferta de si prprios, no desanimem. Se para produzir no faz falta o gnio, menos falta ainda faz a plena liberdade, tanto mais que esta tem armadilhas, e para as vencer pode concorrer imenso o estar adstrito a rigorosas obrigaes. Uma corrente apertada entre margens estreitas irromper mais longe. A disciplina do ofcio forte escola que aproveita aos lazeres estudiosos. O homem, quando constrangido, concentra-se mais, aprende a avaliar o tempo, refugia-se com ardor nas horas raras em que, satisfeito o dever, se torna a encontrar o ideal e se goza da calma da aco escolhida, aps a aco imposta pela dura existncia. O trabalhador que no esforo novo encontra a recompensa do esforo antigo, que dele faz o seu tesouro, de ordinrio um apaixonado; no h meio de o desapegar do que assim consagrado pelo sacrifcio. O seu andar, na aparncia mais lento, dispe de recursos para ir por diante. Pobre tartaruga laboriosa, no perde o tempo em ninharias, porfia, e ao fim de poucos anos, ultrapassa a lebre indolente, cuja marcha desimpedida lhe causava inveja, enquanto se arrastava lentamente. Pensai o mesmo do trabalhador isolado, sem dotes intelectuais, nem facilidade de frequentaes que o estimulem, enterrado nalgum canto de provncia onde parece condenado

  • 5a estagnar-se, longe das ricas bibliotecas, dos cursos brilhantes, do pblico vibrante, possuindo-se unicamente a si e obrigado a tudo haurir deste fundo inalienvel. No desanime. Se tem tudo contra si, guarde-se a si prprio, e que isso lhe baste. Um corao ardente dispe de maiores probabilidades de vencer, embora em pleno deserto, do que um estrdio do Bairro latino que no sabe aproveitar as facilidades que tem mo. Tambm aqui, da dificuldade pode brotar a fora. Sobre a montanha, s nos especamos nas passagens difceis; nos caminhos planos avanamos folgados, e a folga, no vigiada, depressa se toma funesta. O querer vale mais do que tudo: querer ser algum; chegar a ser alguma coisa; ser j, pelo desejo, esse algum qualificado pelo ideal. O resto sempre se alcana. Livros, h-os em toda a parte; alm disso, poucos bastam. Frequentaes, estmulos, encontramo-los em esprito na solido: as grandes seres esto l, presentes a quem os invoca, e por detrs do pensador ardente erguem-se os grandes sculos. Os que tm a facilidade de assistir a cursos, ou os no seguem ou os seguem mal, se, em caso de necessidade, no tiverem em si recursos para deles prescindirem. Quanto ao pblico, por vezes anima-vos, ordinriamente perturba-vos e dispersa-vos. No vos arrisqueis a perder uma fortuna por uma colher de mel coado. Mais vale a solido apaixonada, onde qualquer semente rende cem por um e um simples raio de sol doura os frutos do outono. Quando S. Toms de Aquino se dirigia a Paris e descobriu ao longo a cidade, disse ao irmo que o acompanhava: . A quem vive destes sentimentos pouco importa o lugar onde est ou os meios de que dispe; esse um eleito do esprito e, como tal, s lhe resta perseverar e entregar-se vida consoante o Plano divino. Escuta-me, jovem que compreendes esta linguagem e a quem os heris da inteligncia parece chamarem misteriosamente, mas que receias encontrar-te desprovido. Tens duas horas por dia? Podes obrigar-te a reserv-las ciosamente, a empreg-las com ardor e, depois, destinado tambm de antemo ao Reino de Deus, podes beber o clice de sabor esquisito e amargo, que estas pginas quereriam dar-te a prova? Se a tua resposta afirmativa, tem confiana, mais do que isso repousa na certeza. Obrigado a ganhar a vida, ganh-la-s sem lhe sacrificar, como tantas vezes acontece, a liberdade da alma. Entregue a ti, sentir-te-s atirado com maior violncia para os teus nobres fins. A maior parte dos grandes homens exerceu um ofcio. Na opinio de muitos, as duas horas, que peo, bastam para talhar um destino intelectual. Aprende a administrar esse pouco tempo; mergulha todos os dias no manancial que, dessedentando, aumenta a sede. Queres contribuir com a tua quota para perpetuar a sabedoria entre os homens, para recolher a herana dos sculos, para fornecer ao presente as regras do esprito, para descobrir os factos e as causas, para orientar os olhos inconstantes na direco das causas primeiras e os, coraes na dos fins supremos, para reavivar a chama que se apaga e organizar a propaganda da verdade e do bem? esse um quinho que vale, sem dvida, sacrifcios suplementares e o cultivo duma paixo absorvente. O estudo e a prtica daquilo que o P. Gratry chama a Lgica viva, isto , o desenvolvimento do nosso esprito, ou verbo humano, pelo contacto directo ou indirecto com o Esprito e o Verbo divino, este estudo grave e esta prtica perseverante franquear-te-o a entrada no santurio admirvel. Hs-de pertencer ao nmero dos que crescem, adquirem e se preparam para os dons magnficos. Se Deus quiser, tambm tu encontrars lugar, um dia, na assembleia dos espritos nobres.

    II O intelectual no um isolado.

    O trabalhador cristo, em virtude da sua vocao intelectual de consagrado, no deve isolar-se. Seja qual for a sua situao, julguem-no abandonado ou retirado materialmente, no deve deixar-se tentar pelo individualismo, imagem deformada da personalidade crista. Se a solido vivifica, o isolamento paraliza e esteriliza. fora de ser alma, cessa-se de ser homem, diria Vitor Hugo. O isolamento inumano; porque trabalhar humanamente trabalhar com o sentimento do homem, das suas necessidades, das suas grandezas, da solidariedade que nos liga numa vida estreitamente comum.

  • 6O trabalhador cristo deveria viver constantemente no universal, na histria. Porque vive com Jesus Cristo, no pode separar dele nem os tempos nem os homens. A vida real vida num, vida de famlia imensa com a caridade por lei: se o estudo pretende ser acto de vida, e no arte pela arte ou monoplio do abstracto, deve reger-se por esta lei de unidade cordial. , diz Gratry devemos tambm trabalhar a mas a verdadeira cruz no est isolada da terra>>. O verdadeiro cristo ter sem cessar diante dos olhos a imagem do globo onde est plantada a cruz, onde os pobres seres humanos erram e sofrem, e onde o sangue redentor procura encontr-los atravs de meandros sem conta. A luz, que possui, reveste-o dum sacerdcio; a luz que pretende adquirir, promessa implcita e dom. Toda a verdade prtica; a mais abstracta na aparncia, a mais elevada tambm a prtica. Toda a verdade vida, orientao, caminho em ordem alcanar o fim humano. Por isso Jesus Cristo reuniu numa s afirmao: Eu som o Caminho, a Verdade e a Vida. Trabalhai, pois, sempre, em esprito de utilizao, como recomenda o Evangelho. Deixai sussurrar em volta o gnero humano; distingui nele estes e aqueles, indivduos ou grupos, cuja indigncia conheceis; descobri o que pode arranc-los noite, enobrec-los, o que de perto ou de longe os salva. S as verdades redentoras so Santas e as palavras do Apstolo - aplicam-se ao nosso trabalho como a tudo o mais. Jesus Cristo precisa do nosso esprito, como precisava, enquanto viveu na terra, do seu prprio esprito humano. Ele retirou-se, ns continuamo-lo: eis a nossa honra incomensurvel. Somos os seus , portanto o seu esprito em participao, portanto os seus cooperadores. Opera por ns, fora e pelo seu esprito inspirador, dentro, como, em vida, operava exteriormente pela palavra, e no ntimo das almas pela graa. Sendo o nosso trabalho necessrio para esta aco, trabalhemos como Jesus meditava, haurindo, como Ele, nos mananciais do Pai, com o intuito de difundir.

    III O intelectual pertence ao seu tempo.

    Em seguida, pensai que, se todos os tempos so iguais perante Deus, se a sua eternidade centro irradiante, a igual distncia do qual correm todos os pontos da circunferncia do tempo, no sucede o mesmo na relao dos tempos connosco, que habitamos a circunferncia. Estamos aqui, na vasta roda, no noutra parte. Foi Deus que nos colocou a. Qualquer momento da durao nos diz respeito e qualquer sculo nosso prximo, do mesmo modo que qualquer homem; esta palavra prximo termo relativo, que a providencial sabedoria determina para cada qual e que cada qual, na sua sabedoria restrita, deve igualmente determinar. Eis-me aqui, homem do sculo XX, contemporneo dum drama permanente, testemunha de confuses como porventura o mundo nunca presenciou desde que os montes surgiram e os mares foram atirados para seus antros. Que fazer por este sculo arquejante? Mais do que nunca, o pensamento espera pelos homens e os homens pelo pensamento. O mundo corre perigo por falta de mximas de vida. Encontramo-nos num comboio que desfila a toda a velocidade, e no h sinalizao, nem agulheiros. O planeta no sabe para onde vai, a sua lei abandona-o: quem lhe restituir o seu sol? O que digo no visa a estreitar o campo da investigao intelectual, nem a confin-lo no estudo exclusivamente religioso. O decurso do livro o mostrar. J disse que toda a verdade prtica, que toda a verdade salva. Mas indico um esprito, e este esprito exclui qualquer forma de diletantismo. Exclui tambm certa tendncia arqueolgica, certo amor do passado que se desinteressa das dores actuais, certa estima do passado que parece ignorar a presena universal de Deus. Nem todos os tempos valem o mesmo, mas todos os tempos so tempos cristos, e h um que para ns e praticamente os ultrapassa a todos: o nosso. Para ele so os nossos recursos nativos, as nossas foras de hoje e as de amanh, e por conseguinte os esforos que lhes devem corresponder. No nos assemelhemos aos que do sempre a impresso de pegar s borlas do caixo nos funerais do passado. Utilizemos, como vivos, o valor dos mortos. A verdade sempre nova. Todas as virtudes antigas querem reflorescer, exactamente como a erva da

  • 7madrugada beijada pelo orvalho. Deus no envelhece. mister ajud-lo a renovar, no os passados enterrados, nem as crnicas extintas, mas a eterna face da terra. Este o esprito do intelectual catlico, esta a sua vocao. Quanto mais depressa a determinar pelo descobrimento do gnero de estudos a que se deve consagrar, tanto melhor. Atentai agora nas virtudes que Deus lhe pede.

    CAPTULO II - As virtudes do intelectual Cristo

    I - As virtudes comuns.

    A virtude contm, em certo modo, a intelectualidade em potncia, uma vez que, levando-nos ao nosso fim, que intelectual equivale ao supremo saber. Muitas concluses se podem daqui deduzir; podemos at deduzir tudo, porque a esta primazia da ordem moral prende-se a dependncia relativa da verdade, do belo, da harmonia, da unidade, at do ser, a respeito da moralidade que deste modo contrai parentesco com o primeiro princpio. Prefiro, porm, seguir caminho mais modesto. As qualidades de carcter desempenham, em todas as coisas, papel preponderante. O intelecto no passa de instrumento, e o seu manejo que lhe determina os efeitos. Para bem reger a inteligncia, requerem-se evidentemente outras qualidades alm da inteligncia. Um esprito recto declara instintivamente que a superioridade em qualquer gnero inclui uma dose de superioridade espiritual. Para julgar com acerto, preciso ser grande. Provocaria certo escndalo o atribuir a um valdevinos uma importante inveno. Ficaria com isso magoada a candura dum homem simples. Escandalizamo-nos duma dissociao que ofenda a harmonia humana. Ningum acredita nos joalheiros que vendem prolas e no as usam. Parece um paradoxo est junto dum manancial sublime e no aproveitar a sua natureza moral. Gozar do poder da inteligncia e convert-lo em fora isolada, afigura-se-nos jogo perigoso, porque toda a fora isolada, no seio dum todo equilibrado, torna-se vtima dele. Ora, se o carcter fraqueja, natural que venha a ressentir-se o senso das grandes verdades. O esprito que, por falta de inspeco, no volta a encontrar o seu nvel, despenha-se em perigosos declives, e um pequeno erro ao princpio acaba por ser grande. A fora lgica poder precipitar mais fundo aquele, cuja alma deixou o discernimento sem salvaguardas. Da tantas quedas retumbantes, e tantos erros s vezes geniais, em mestres desorientados. A vida unidade; seria para espantar que se lograsse executar uma funo ao mximo, descurando a outra, e que o viver as ideias no ajudasse a perceb-las. Donde provm esta unidade da vida? Do amor. . O amor, em ns, o comeo de tudo, e este ponto de partida do conhecimento e da prtica no pode deixar de tornar solidrios, em cem medida, os rectos caminhos de um e da outra. A verdade vem ao encontro dos que a amam, dos que lhe no resistem, e este amor pressupe a virtude. Pelo que, a despeito de possveis taras, o gnio, que no trabalho j virtuoso, para ser santo s precisaria de ser mais plenamente o que . A verdade medra na mesma terra que o bem; as razes duma e doutro comunicam entre si. Desligados desta raiz comum e, por conseguinte, menos ligados sua terra, ambos vm a sofrer: ou a alma se torna anmica ou o esprito se estiola. Pelo contrrio, alimentando a verdade, ilumina-se a conscincia; fomentando o bem, guia-se o saber. Praticando a verdade que se conhece, merece-se a que se ignora. Merecemo-la tambm com um mrito que a sua prpria recompensa; porque todas as verdades so interdependentes, e sendo a homenagem do facto, de todas, a mais decisiva, quando a rendemos verdade da vida, abeiramo-nos das claridades supremas e das dependncias. Embarcando no afluente, chega-se ao rio e, pelo rio, ao mar. Apertemos mais esta importante doutrina, to importante que s para a relembrar teria sido oportuna a composio deste livrinho. A virtude sade da alma. Ora, quem se atreve a asseverar que a sade nada tem de comum

  • 8com a viso? Perguntai-o ao oculista. Um prtico inteligente no se detm a medir a curvatura do cristalino e a escolher combinaes de lentes, nem se limita a aconselhar colrios ou banhos locais, mas preocupa-se com o estado geral do enfermo, com a dentio, com o regime de vida, com o bom ou mau funcionamento das vsceras. No vos admireis se este mdico dum s rgo vos interroga acerca da vossa virtude. A viso espiritual no menos exigente. Julgais que pensamos s com a inteligncia? Seremos acaso puro feixe de poderes, donde retiramos o instrumento apto para isto ou para aquilo? Pensamos , declarava Plato. Ns vamos muito mais longe e dizemos: pensamos com todo o ser. O conhecimento interessa tudo em ns, desde a ideia vital at composio qumica da mais pequenina clula. As desordens mentais, os estudos delirantes, as alucinaes, as astenias e as hiperestenias, as inadaptaes ao real, de qualquer espcie que sejam, provam claramente que no s o esprito pensa, mas o homem todo. Como querereis pensar bem com a alma doente, com o corao trabalhado pelos vcios, solicitado pelas paixes, desorientado por amores violentos ou culpados? H um estado clarividente e um estado cego da alma, dizia Gratry, um estado so e conseguintemente sensato, e um estado insensato.
  • 9unir-nos intimamente a ele, descobrir-lhe os rastos e sofrer a sua influncia poderosa, sem o reconhecer e sem o servir igualmente como bem. Subi a grande pirmide pelos degraus que representam to exactamente a ascenso da verdade: se subirdes pelo ngulo norte, no chegareis ao cume sem vos aproximardes do ngulo sul. Manter-vos a distncia, ficar nos nveis baixos; afastar-vos, ir de travs e tornar a descer. Assim o gnio da verdade tende para o bem: se dele se afasta, custa da sua ascenso para os cimos. Bem-aventurados os coraes puros, disse o Senhor, porque vero a Deus. , recomenda S. Toms ao estudante; . A obedincia da alma fonte inefvel, as suas disposies filiais e amantes abrem-se invaso das claridades como dos ardores e das rectides. A verdade, amada e realizada como vida, revela-se como princpio; vemos segundo o que somos; participamos na verdade participando no Esprito segundo o qual ele existe. As grandes intuies pessoais, as luzes penetrantes vm, igualdade de valor, do aperfeioamento moral, do desapego de si e das banalidades rotineiras, da humanidade, da simplicidade, da disciplina dos sentidos e da imaginao, do empenho em alcanar os fins sublimes. No se trata aqui de ostentar destreza, nem de fazer brilhar as prprias faculdades, como jias; queremos comunicar como o foco de luz e de vida; abeiramo-nos deste centro na sua unidade, tal qual ; adoramo-lo, e renunciamos ao que se lhe ope, para que a sua glria nos inunde. No ser, porventura, um pouco isto o que quer dizer a clebre mxima: ?

    II - A virtude prpria do intelectual.

    Eis-nos certos de que a virtude, em geral, necessria cincia e que, quanto maior rectido moral nela empregarmos, tanto mais fecundo ser o estudo. No entretanto, h uma virtude prpria do intelectual, e convm insistir nela, embora no decurso destas pginas a encontremos frequentemente. A virtude prpria do homem de estudo , evidentemente, a estudiosidade. Ningum se apresse a qualificar de simplria esta afirmao, pois que os mestres no assunto incluram debaixo desse rtulo muitas coisas, mas excluram de l muitas outras(1). S. Toms subordinava a estudiosidade a temperana, para indicar que o saber, em si, sempre bem-vindo, mas que a constituio da vida exige que temperemos, isto , que adaptemos s circunstncias e liguemos aos outros deveres o apetite de conhecer, que facilmente sai dos justos limites. Quando digo sai, entendo o termo nos dois sentidos. No reino da estudiosidade, Opem-se dois defeitos: a negligncia e a v curiosidade. Deixemos agora a primeira: se o leitor a no detestar no momento de fechar este livro, que se ter enfastiado durante o caminho ou ento que fizemos muito mal a travessia. No digo, porm, o mesmo da curiosidade. Esta pode tirar lucro dos instintos e vici-los no momento em que pretende satisfaz-los. J mencionamos as pretenses ambiciosas que desorientam a vocao intelectual. Sem ir tio longe, a ambio pode alterar a estudiosidade e os seus efeitos teis. Um acto de ambio a propsito da cincia j no acto de cincia, e quem o pratica no merece o nome de intelectual. E qualquer outro intuito menos confessvel, que o estudioso se proponha, merece o mesmo veredicto. Por outra parte, o estudo, mesmo quando desinteressado e recto, nem sempre oportuno; e se o no , o sujeito da cincia esquece-se do mister de homem. E um intelectual, que no homem, que ser? Existem outros deveres humanos alm do estudo. O conhecimento, tomado em absoluto, constitui sem dvida o nosso bem supremo; mas o que saboreamos aqui subordina-se muitas vezes a outros valores que so os equivalentes daqueles sob os auspcios do mrito. O proco de aldeia que vive para os paroquianos, o prtico que desdenha da cincia para

    ( 1) Cf.S.Toms, Suma Teolgica. II II e, q. 167.

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    prestar socorros urgentes, o filho de famlia que aprende um ofcio para ajudar os seus e renuncia desse modo a uma cultura liberal, no profanam o gnio interior; rendem homenagem quela verdade que se identifica com o Bem. Procedendo de modo diferente, ofenderiam a verdade e a virtude, visto que, por um desvio, oporiam a Verdade viva a si prpria. Muitos curiosos na cincia no receiam sacrificar-lhe os mais estritos deveres: no so sbios, so diletantes, ou ento abandonam o estudo que corresponde s suas obrigaes, para se entregarem ao estudo que os lisonjeia nos seus desejos. Afinal, a depreciao e a mesma. Quem visa mais alto do que pode e se expe a errar, quem deita a perder faculdades reais a fim de adquirir faculdades ilusrias, igualmente curioso no sentido antigo. Dois dos dezasseis conselhos de S. Toms em matria de estudo dirigem-se a esses tais: , . Preciosos conselhos, to teis para a cincia como para a virtude, pelo equilbrio que comunicam ao homem. No sobrecarregueis o solo, nem eleveis o edifcio mais alto do que os alicerces o permitem, ou antes de os alicerces estarem consolidados: de contrrio tudo desabaria. Quem sois? Qual a vossa situao? Quais os vossos fundamentos intelectuais? Eis o que deve determinar as vossas empresas no domnio da cincia. Se quiserdes colher os frutos, plantai a rvore: eis, em resumo, o contedo do conselho de S. Toms. O sbio comea pelo princpio e s d novo passo depois de ter consolidado o precedente. Por este motivo, os autodidactas apresentam tantas deficincias. Ningum pode contar s consigo para comear pelo princpio. Associando-nos a um grupo em meio do caminho, evitamos a dificuldade dos primeiros passos. Por outro lado, o que verdade de cada um no respeitante ao espao percorrido do seu prprio desenvolvimento, igualmente verdade de cada um com relao aos outros. No devemos estimar-nos acima do que valemos, mas sim julgar-nos. Aceitar-nos tais quais somos, obedecer a Deus e preparar vitrias certas. A natureza nunca vai alm do que pode. Tudo nela se mede com preciso sem esforo vo nem avaliaes mentirosas. Cada ser opera segundo a sua quantidade e a sua qualidade, de acordo com a sua natureza e a sua fora, e depois permanece em paz. S o homem vive de pretenses e de tristeza. Grande cincia e grande virtude o homem julgar-se rectamente e ser o que realmente . Assiste-vos uma misso que s vs podeis cumprir e que deveis cumprir com perfeio, em vez de tentardes violentar a fortuna. Os destinos no se podem mudar discrio. Perde-se quem quer subir como quem quer descer. Caminhai sempre para a frente em harmonia com o que sois, levando a Deus por guia. S. Toms ajunta, a estas necessrias medidas de prudncia, o cuidado de no deter a curiosidade nos objectos do mundo com detrimento do objecto supremo. Tiraremos da uma importante consequncia para a organizao do trabalho(1); mas, acima de tudo, salientaremos que o estudo deve ceder o lugar ao culto, orao, meditao directa das coisas de Deus. Ele um reflexo do ofcio divino; busca e honra os criadores ou antes as , consoante perscruta a natureza ou a humanidade; mas, em seu tempo, deve preferir a frequentao directa; de contrrio, faltar a um dever capital e alm disso os vestgios da imagem de Deus nas coisas criadas s serviro de afastar para longe daquele a quem atestam. Estudar de sorte que se descure a orao e se no pratique o recolhimento, nem se leia a palavra sagrada, nem a dos santos, nem a das grandes almas, de sorte que o homem se esquea de si e, inteiramente concentrado nos objectos de estudo, no faa caso do hspede interior, abuso e iluso. Supor que desse modo aumentaro os progressos ou a produo; equivale a dizer que o regato levar maior quantidade de gua se o manancial estancar. A ordem do esprito deve corresponder ordem das coisas. No real tudo ascende para o divino, tudo dele depende, porque tudo dele procede. Na efgie do real em ns, notam-se as mesmas dependncias, a no ser que tenhamos transformado as relaes da verdade.

    ( 1) Cf. Abaixo o cap. V, O Campo do Trabalho; A cincia comparada.

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    III - O esprito de orao.

    Estas disposies ficaro inclumes se, independentemente da piedade, que deve preceder o estudo, se cultivar, no trabalho, o esprito de orao. ainda S.Toms que recomenda ao apaixonado da cincia: , e Van Helmont assim explica este preceito: . A cincia conhecimento pelas causas, repetimos sem cessar. Os pormenores no so nada: os factos tambm no; o que importa so as dependncias, as comunicaes de influncia, as ligaes, as trocas que constituem a vida da natureza. Ora, atrs de todas as dependncias, h a dependncia primeira; no mago de todas as ligaes, o supremo Lao; no cimo das comunicaes, a Fonte; debaixo das trocas, o Dom; sob a sstole e a distole do mundo, o Corao, o imenso Corao do Ser. No ser porventura necessrio que o esprito se conforme incessantemente com ele e nunca perca o contacto do que assim o todo de todas as coisas e por conseguinte de toda a cincia? A inteligncia s cumpre plenamente a sua misso exercendo uma funo religiosa, isto , rendendo culto suprema verdade atravs da verdade reduzida e dispersa. Cada verdade um fragmento que mostra por todos os lados as suas ligaes; a Verdade em si uma, e a Verdade Deus. Cada verdade um reflexo: atrs do reflexo, e a dar-lhe o valor, est a Luz. Cada ser testemunha; cada facto, um segredo divino: para alm est o objecto da revelao, o heri do testemunho. Toda a verdade se destaca no Infinito como num fundo de perspectiva; parece-se com ele; pertence-lhe. Pode uma verdade particular ocupar a cena, as imensidades esto mais longe. Podamos dizer: uma verdade particular apenas smbolo, smbolo real, Sacramento do absoluto; ela figura, e ela , mas no por si mesma; no se basta a si prpria; vive do que recebe e, entregue sua inconsistncia, morreria. Portanto, para a alma inteiramente desperta, toda a verdade lugar de entrevista, aonde o Pensamento supremo convida o nosso pensamento: faltaremos ao encontro sublime? A vida do real no se confina no que se v, no que se analisa pela cincia. O real tem vida oculta, como Jesus, a qual tambm vida em Deus; como que Vida de Deus; revelao da sua sabedoria pelas leis, do seu poder pelos efeitos, da sua bondade pelas utilidades, da sua tendncia para se difundir pelas trocas e pelo crescimento: convm venerar e amar esta espcie de incarnao ao contacto daquele que se encarna. Desligar este do seu Esprito, abusar dele, como abusar de Cristo ver nele puramente o homem. A incarnao de Cristo termina na comunho, em que se no dissocia o corpo, o sangue, a alma e a divindade do Salvador: a espcie de incarnao de Deus no ser, da Verdade eterna em cada caso da verdade, deve tambm terminar num xtase celeste, em vez das nossas distradas investigaes e das nossas banais admiraes. Decidamo-nos a trabalhar sombra das grandes leis e ao abrigo da Lei suprema. Nem o conhecimento, nem qualquer outra manifestao da vida se deve separar das suas razes na alma e no real, onde o Deus do corao e o Deus dos cus se revelam e se juntam. Cumpre estabelecer a unidade entre os nossos actos (compreendendo o acto de aprender) e os nossos pensamentos e as nossas realidades primeiras. Em suma, tenhamos connosco toda a alma, toda a natureza, toda a durao e a prpria Divindade. Para obter este esprito de orao na cincia, no mister entregar-se o homem a encantaes misteriosas. No se requerem esforos extrnsecos. Sem dvida, a invocao de Deus e a sua interveno especial tm aqui o seu lugar. S. Toms orava sempre antes de ditar ou de pregar e compusera para esse efeito uma orao admirvel(1): o menino da cincia, que balbucia, busca muito naturalmente, no olhar divino, a palavra que lhe falta. Mas na prpria cincia, na cincia crist, encontra-se o escabelo que, elevando-nos Para Deus, nos permitir voltar ao estudo com o esprito mais esclarecido e, por assim dizer, com os dons do profeta. Tudo o que instrui leva a Deus por caminho coberto. Toda a verdade autntica , de si, eterna, e a, eternidade, que ela possui, orienta para aquela de que a revelao. Atravs da natureza e da alma, para onde nos podemos encaminhar seno para o manancial de ambos? Quem l no chega, que se desviou no caminho. O esprito inspirado e recto atravessa dum salto os

    ( 1) Cf.Les Prires de Saint Thomas dAquin, Paris, Librairie de lArt Catholique.

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    intermedirios, e a toda a interrogao que se ergue dentro de si, quaisquer que sejam as respostas particulares que d, uma voz secreta responde: Deus! Por conseguinte, basta que, por outro lado, deixemos ao esprito o seu voo e, por outro, a sua ateno para que, entre o objecto dum estudo particular e o da contemplao religiosa, se estabelea um vaivm em proveito de ambos. Por um movimento rpido e muitas vezes inconsciente, passamos do Vestgio ou da Imagem a Deus, e da, ressaltando com novas foras, retornamos aos vestgios do divino Viageiro. O que a se descobre ento comentado, magnificado; v-se a um episdio dum imenso acontecimento espiritual; mesmo ocupando-se duma ninharia, o homem sente-se cliente de verdades, diante das quais as montanhas so efmeras; o Ser infinito e a durao infinita cercam-vos, e o vosso estudo autntico .

    IV - A disciplina do corpo.

    Como j dissemos, a doutrina do composto humano ope-se dissociao das funes espirituais e das funes corporais, ainda as mais estranhas ao pensamento puro. S. Toms subscreve este pensamento irnico de Aristteles: >(1); e sustenta estas proposies na aparncia materialista: (2). (3). No admira. O pensamento nasce, em ns, depois de demoradas preparaes em que toda a mquina corporal entra em aco. A base de tudo a qumica celular; as mais obscuras sensaes preparam a experincia: esta o produto do trabalho, dos sentidos que elaboram lentamente as suas aquisies e as fixam pela memria. O fenmeno intelectual produz-se no meio de fenmenos fisiolgicos, em continuidade com eles e debaixo da sua dependncia. Ningum pensa, mesmo que s utilize uma ideia adquirida, sem evocar uma srie de imagens, de emoes, de sensaes, que so os adubos com que se fermenta a ideia. Quando queremos despertar nalgum um pensamento, servimo-nos apenas dum meio: produzir nele, pela palavra ou por sinais, estados de sensibilidade e de imaginao, de emoo, de memria, nos quais ele descubra a nossa ideia e a possa fazer sua. As almas no comunicam seno pelo corpo. Do mesmo modo, a alma de cada qual no comunica com a verdade e consigo prpria seno pelo corpo, de sorte que a mudana pela qual passamos da ignorncia cincia se deve atribuir segundo S. Toms, directamente ao corpo e s parte intelectual(4). Esta doutrina, que o Santo Doutor desenvolve a cada passo, to essencial e providencialmente moderna, deve gerar a convico de que para pensar, sobretudo para pensar com ardor e sabedoria durante uma vida inteira, indispensvel sujeitar ao pensamento no s a alma e as suas diversas potncias, mas tambm o corpo e todas as suas funes orgnicas? Tudo, num intelectual, deve ser intelectual. O complexo fsico e mental, a substncia homem esto ao servio desta vida especial que por certos aspectos parece to pouco humana: no lhe ponham embargos! Tornemo-nos harmonia, que d em resultado a conquista da verdade. Ora, h a duas coisas a encarar sem respeito humano, embora a primeira costume assustar os espirituais de juzo pouco firme. Primeiramente, no vos envergonheis de cuidar da sade. Gnios houve de sade lamentvel, e se Deus permite que assim suceda convosco, no discutamos. Mas se a culpa vossa, ento isso seria tentar a Deus e caso de grande culpabilidade. Tu que s aluno dos gnios ests seguro de possuir, como eles, bastante vigor

    ( 1) Quaest.XIX de Veritate, art. I, arg. I.( 2) De Mrmoria, lect.I.( 3) In II de Anima, lect.19.( 4) Quaest.XXVI de Veritate, art.3, ad 12 um.

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    para triunfar na luta incessante da alma contra a fraqueza da carne? Nada nos diz que os gnios no tenham visto as suas taras fisiolgicas desviarem ou reduzirem-lhes os talentos. Muitas anomalias intelectuais, mesmo entre os mais bem dotados, talvez se expliquem deste modo, bem como a fraca produo de alguns. Em igualdade de dons, a doena grave inferioridade: diminui o rendimento; entrava a liberdade no momento das suas delicadas funes; desvia a ateno; pode falsear o juzo pelos efeitos de imaginao e de emotividade que o sofrimento provoca. Uma enfermidade de estmago muda o carcter do homem e o carcter muda os pensamentos. Se Leopardi no tivesse sido o aborto que foi, quase decerto o no contaramos no nmero dos pessimistas. Tratando-se duma vida elevada, deveis preocupar-vos, ao mesmo tempo que com o pensamento, com todas as suas substrues orgnicas. : eis o ideal de sempre. O homem de pensamento tem uma, fisiologia especial; precisa de velar por ela e de no recear consultar o homem da arte(1). Em todo o caso, segui as prescries correntes. A boa higiene , para vs, uma virtude por assim dizer intelectual. Os nossos modernos, por vezes to pobres de filosofia, so ricos de higiene; pois bem, no a desdenheis, porque ela enriquecer a vossa filosofia. Tanto quanto possvel, vivei ao ar livre. A ateno, nervo da cincia, est em estreita correlao com a respirao e, para a sade em geral, a abundncia de oxignio condio primeira. Janelas abertas ou entreabertas dia e noite quando a prudncia o permite, perodo frequente de respiraes fundas, sobretudo combinadas com movimentos que as amplifiquem e as tornem normais, passeios que se entremeiem com o trabalho e com ele se combinem, consoante a tradio grega: eis a outras tantas prticas esplndidas. importante trabalhar em posio que desembarace os pulmes e no comprima as vsceras. bom interromper, de quando em quando, o estudo aplicado para respirar profundamente, para fazer dois ou trs movimentos rtmicos que distendem o corpo e o impedem, por assim dizer, de se enrugar. Est demonstrado que so de grande eficcia largas aspiraes praticadas de p e elevando-nos na ponta dos ps, com a janela aberta. No descureis nada, para evitar a congesto e o estiolamento dos rgos. Consagrai todos os dias algum tempo a exerccios corporais. Lembrai-vos da observao dum mdico ingls: . Se no podeis exercitar-vos ao ar livre, no faltam mtodos excelentes que suprem essa deficincia. O de J.-P. Muller, um dos mais inteligentes; mas existem outros(1). O trabalho manual suave e distractivo igualmente precioso para o esprito e para o corpo. Os antepassados sabiam-no muito bem; mas o nosso sculo zomba da natureza. Por isso a natureza vinga-se. Reservai-vos todos os anos, e no decurso do ano, frias para descansar a srio. No quero dizer que vos abstenhais de todo o trabalho, pois isso afrouxaria faculdades naturalmente activas, mas sim que predomine, nesses perodos de tempo, o repouso, o ar livre e o exerccio em plena natureza. Cuidai da alimentao. Uma alimentao leve, simples, moderada em quantidade e em qualidade, permitir-vos- trabalhar com mais prontido e liberdade. O pensador no passa a vida em sesses de digesto. Cuidai mais ainda do sono: no seja demasiado nem escasso. Demasiado, embrutece e entorpece, espessa o sangue e o pensamento; escasso, expe-vos a prolongar e a sobrepor perigosamente as excitaes do trabalho. Observai-vos; no que respeita ao sono, como ao alimento, encontrai a justa medida que vos convm e proponde no sair dela. No se pode marcar aqui lei comum. Em suma, o cuidado do corpo, instrumento da alma, , para o intelectual, virtude e prova de sabedoria. S.Toms reconhece isso mesmo e classifica esta sabedoria do corpo entre os elementos que concorrem para a felicidade temporal, incentive da outra(1). No vos torneis raquticos, malogrados possivelmente futuros idiotas, velhos antes do tempo, portanto ecnomos insensatos do talento que o Mestre lhes confiou. Mas o cuidado do corpo comporta outros elementos. J falamos das paixes e dos vcios como de formidveis inimigos do esprito. Pensvamos ento nos seus efeitos psicolgicos, nas perturbaes que trazem ao juzo e criao do esprito, que, chegados a certo grau,

    ( 1) Cf.Rveill Parise, Physiologie et Hygine des hommes livrs aux travaux de lespirit, Paris, 1881.( 1) J.P. Muller, O meu sistema, trad. Port., Lisboa, Bertrand.( 1) Contra Gentes. III, Cap. 141.

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    transformam em potncia de trevas. Actualmente referimo-nos os seus efeitos corporais, que indirectamente se convertem em doenas da alma. Quem preguioso, guloso, escravo do travesseiro e da mesa, quem abusa do vinho, do lcool, do tabaco, quem se compraz em excitaes malss, em hbitos que a um tempo debilitam e enervam, em pecados talvez perdoados periodicamente, mas cujos efeitos permanecem, como praticar a higiene que vimos ser necessria? O amigo do prazer inimigo do seu corpo e depressa se torna inimigo da sua alma. A mortificao dos sentidos requerida para o pensamento e s ela nos pode colocar naquele estado clarividente de que falava Gratry. Se obedecerdes carne, estais em caminho de ser carne, quando devereis ser todo esprito. Por que motivo se chama S. Toms o doutor anglico? Ser unicamente pelo gnio alado? No, porque nele tudo se subordinava ao pensamento genial e santo, porque a sua carne, oriunda das margens tirrenas, se revestira da brancura do Carmelo e do Hermo; porque, sbrio e casto, pronto para o ardor e afastado de excessos, era todo ele uma alma, , segundo a clebre definio. A disciplina e a mortificao do corpo, juntas aos cuidados necessrios, de que, por sua conta, constituem a melhor parte: tal , trabalhadores cristos, e vs sobretudo, jovens, uma das mais preciosas salva- guardas do porvir.

    CAPTULO III - A organizao da vida

    I Simplificar.

    A fim de que, em vs, tudo se oriente para o trabalho, no basta organizar por dentro, organizar-vos por dentro, precisar a vocao e administrar as foras: precisais tambm de dispor a vida, quanto ao ambiente, obrigaes, vizinhanas, cenrio. Uma palavra que tudo resume: simplificai. Tendes de levar a cabo uma viagem difcil: no vos sobrecarregueis de bagagens, pois pode acontecer que no sejais inteiramente senhor delas, e nesse caso de que serviria legiferar? Erro! Na mesma situao exterior, um esprito de simplificao pode muito, e o que no se consegue afastar por fora pode-se afastar da alma. No atrelars o jumento com o boi, prescreve a Lei: o trabalho pacfico e comedido no deve associar-se aos conflitos caprichosos e ruidosos duma vida puramente exterior. Um certo ascetismo constitui ainda, sob este aspecto, o dever do pensamento. Religiosa ou laica, cientfica, artstica, literria, a contemplao no se compagina com as comodidades demasiado onerosas, nem com as complicaes. , observa Henrique Lavedan. preciso pagar, por amor do gnio, a taxa do luxo. Dez por cento deste privilgio no o arruinaro: no ele quem paga, so antes os defeitos, em todo o caso as tentaes, mas o juro s duplicar. Para dar hospitalidade cincia, no se requerem mveis raros, nem criadagem numerosa. Muita paz, um pouco de bom gosto, algumas comodidades que sirvam de poupar o tempo, quanto basta. Reduzi o teor de vida. Recepes, sadas que arrastam novas obrigaes, cerimnias de vizinhana, todo esse ritual complicado duma vida artificial que tantos mundanos amaldioam cm segredo, no so coisas prprias dum trabalhador. A vida mundana fatal para a cincia. A ideia e a ostentao, a ideia e a dissipao so inimigos mortais. No se representa o gnio sentado mesa a jantar. No vos deixeis tomar por essa engrenagem que pouco a pouco toma o tempo, as preocupaes, as disponibilidades, as foras. Os preconceitos no so os vossos ditadores. Guiai-vos por vs prprios; obedecei a convices, no a ritos, e as convices dum intelectual devem sempre referir-se ao fim que tem em Vista. Vocao consagrao. O intelectual um consagrado, no v portanto dispersar-se em futilidades exigentes. Lance todos os seus recursos ao fogo da inspirao, como Bernardo Palissy sacrificava os seus mveis. O trabalho e as suas condies, eis o que importa. Os

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    gastos e os cuidados disseminados por ninharias seriam muito melhor utilizados em formar uma biblioteca, em reservar uma viagem instrutiva, umas frias tranquilas, audies musicais que refrescam a inspirao, etc. O que favorece a vossa obra sempre oportuno; o que a entrava e dificulta deve ser excludo, porque, alm dos inconvenientes imediatos, sois assim levados a procurar o lucro e desorientais os vossos esforos. O Sacerdote tem com que viver do servio do altar e o homem de estudo do seu trabalho; mas assim como ao se diz missa por dinheiro, tambm no se deve, por causa do dinheiro, pensar e produzir. Se pertenceis ao nmero dos que tm de ganhar a vida fora do trabalho da sua predileco, como haveis de preservar as magras horas de que dispondes, se a vida se sobrecarrega? caso para reduzir ao mnimo a matria, para aliviar e libertar o esprito. A este respeito, a mulher dum intelectual tem uma misso que talvez seja bom assinalar, to frequentemente ela a esquece e, em vez de ser a Beatriz, s sabe ser o periquito tagarela e dissipador. A mulher deve desposar a carreira do marido; o centro da gravidade da famlia sempre o trabalho do pai. A est a vida produtiva, portanto tambm o essencial do dever. Mas isto tanto mais verdadeiro quanto mais nobre e laboriosa for a carreira abraada. A vida comum tem aqui por centro um cimo; a mulher deve instalar-se nele, em vez de procurar distrair dele o pensamento do homem. Arrast-lo para bagatelas alheias s suas aspiraes, o desviar o marido destas duas vidas que mutuamente se contradizem. Pense nisso a filha de Eva e no d razo, seno com direito, ao divisius est de S. Paulo. Se o homem casado est de algum modo, que esteja tambm duplicado. Deu-lhe Deus uma auxiliar semelhante a si: que ela se no torne outra. As divises ocasionadas pela incompreenso da alma irm so fatais produo; introduzem no esprito uma inquietao que o corri; no lhe fica ardor nem alegria, e como que a ave voaria sem asas, a ave e a alma sem o seu canto? Por conseguinte, a guarda do lar no deve ser o gnio mau, mas sim a musa do mesmo lar. Desposou uma vocao, logo deve ter igualmente a vocao. Que importa realizar por si ou pelo marido? Ela deve no entanto realizar, uma vez que uma s carne com o que realiza. Sem precisar de ser intelectual, menos ainda mulher de letras, pode produzir muito ajudando o marido a produzir, obrigando-o a velar sobre si, a dar o mximo de trabalho, levantando-o nas horas inevitveis das quedas, animando-o nos dissabores sem lhos acentuar com demasiada insistncia, acalmando-lhe as penas, sendo a sua recompense aps o trabalho. Ao deixar o trabalho, o homem e como que um ferido; precisa de conforto e de calma: no o violentem; animem-no; aquietem-no; interessem-se pelo que faz; dupliquem-no no momento em que se encontra como que diminudo por um gesto talvez excessivo; numa palavra, sejam para com ele me, e este forte, que pura fraqueza, sentir o vigor orientar-se para novos tormentos. Quanto s criana, esta suave complicao deve servir para renovar o nimo mais do que para o privar dos seus recursos. Tomam muito de vs, esses pequeninos, e para que serviriam eles, se vos no moessem a pacincia de tempos a tempos? Mas do tanto ou mais carinho do que o que vos tomam; podem alterar a vossa inspirao misturando-a de alegria; reflectem-vos amorosamente a natureza e o homem, e defendem-vos assim do abstracto; reconduzem-vos ao real, a esse real cujo comentrio seus olhos interrogadores esperam de vs. Suas frontes puras pregam-vos a integridade, irm do saber; e a facilidade em acreditar, em esperar, em sonhar grandes planos e em aguardar tudo da paternidade que os guia, no ser tambm para vs, pensadores, uma elevao e um motivo de esperar? Vde a imagem de Deus e um sinal dos nossos destinos imortais nessa imagem do porvir. Os que renunciaram famlia para se consagrarem inteiramente a uma obra e quele que a inspira, tm o direito de se regozijar por isso, apreciando as liberdades que este sacrifcio lhes outorga. Esses pensaro em seus irmos carregados de cuidados, repetindo de si para consigo a palavra sorridente de Lacordaire a propsito de Ozanam: . Mas o trabalhador envolvido neste lao pode e deve fazer dele uma fora, um motivo de ardor e uma das formas do seu ideal.

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    II Guardar a solido.

    O ponto essencial a salvar na organizao da vida e em vista do qual tudo o mais se adopta, o arranjo exterior e interior da solido. S. Toms est to persuadido disso que, dos dezasseis conselhos que a ao intelectual, sete so consagrados s relaes e ao retiro. . . , mas . . . . A adega, de que se fala aqui, por aluso ao Cntico dos Cnticos e ao comentrio de S. Bernardo, o secreto abrigo da verdade, cujo odor atrai de longe a Esposa, isto , a alma ardente; o domiclio da inspirao o lar do entusiasmo, do gnio, da inveno, da investigao, o teatro das folias do esprito e da sua moderada embriaguez. Para entrar nessa morada, preciso deixar as banalidades e praticar o retiro, simbolizado na cela monstica. . Sobre que vigia seno sobre a orao e o trabalho? Portanto, sede lentos em falar e em ir aonde se fala, porque as muitas palavras obrigam o esprito a escoar-se como gua; pagai, pela cortesia para com todos, o direito de no frequentar verdadeiramente seno alguns cujo comrcio vos seja de proveito; evitai, mesmo com esses, a excessiva familiaridade que abaixa e desorienta; no corrais aps as notcias que ocupam o esprito em vo; no vos imiscuais em aces e palavras seculares, isto , ser alcance moral ou intelectual; evitai os passos inteis que consomem as horas e favorecem a vadiagem dos pensamentos. Tais so as condies do recolhimento sagrado. S assim nos aproximamos dos segredos reais que constituem a felicidade da Esposa; s deste modo nos manteremos em respeito diante da verdade. O retiro laboratrio do esprito; suas asas, a solido interior e o silncio. As grandes obras foram preparadas no deserto, at mesmo a redeno do mundo. Os precursores, os continuadores, o Mestre observaram ou devem observar a mesma lei. Profetas, apstolos, pregadores, mrtires, pioneiros da cincia, inspirados de todas as artes, simples homens ou Homem-Deus, todos pagam o tributo ao isolamento, A vida silenciosa, noite. Na noite astral e na sua vacuidade solene afeioou Deus o universo: quem quiser saborear as alegrias criadoras, no se apresse a pronunciar o Fiat lux, nem sobretudo passe revista a todos os animais do mundo; nas sombras propicias, imitao do Criador, tome o tempo de dispor a matria dos astros. Os mais belos cantos da natureza ressoam de noite. O rouxinol, o sapo de voz cristalina, o grilo, cantam na sombra. O galo proclama o dia, no espera por ele. Todos os anunciadores, todos os poetas, e tambm os investigadores e pescadores de verdades esparsas tm de mergulhar na grande vacuidade que plenitude. Nenhum homem superior tentou fugir a essa lei. Dizia Lacordaire que no seu quarto, entre a sua alma e Deus, se rasgara e que a procurava . Emerson proclamava-se . Descartes encerrava-se no seu . Plato consumia . Bossuet levantava-se de noite para encontrar o gnio do silncio e da inspirao; os sublimes pensamentos no lhe acudiam seno no afastamento dos rudos e dos cuidados fteis. E os Poetas, no tm eles a impresso de s traduzir no verso as misteriosas revelaes do silncio que escutam consoante a frmula de Gabriel dAnnunzio, como um ? O que vale deve erguer uma barreira entre si e o que no vale. A vida banal, e os ludribia de que falava Santo Agostinho, os jogos e as querelas de crianas que um beijo acalma, devem cessar com o beijo da musa, com as carcias embriagantes e calmantes da verdade. , perguntava a si prprio S. Bernardo no claustro: ad quid venisti? E tu, pensador, a que vieste a esta vida fora da vida corrente, a esta vida de consagrao, de concentrao, por conseguinte de solido? No foi por escolha? No preferiste a verdade mentira quotidiana duma vida que se dispersa, mesmo aos cuidados superiores, mas secundrios, da aco? No sejas, pois, infiel ao teu culto, deixando-te assenhorear de novo

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    pelo que livremente abandonaste. Para que o Esprito nos leve para as solides interiores, como levou Jesus para o deserto, precisamos de lhe dar os nossos espritos. Sem retiro no h inspirao. Mas volta da lmpada todos os astros do pensamento se congregam, como num firmamento. Quando a calma do silncio nos invade e o fogo sagrado crepita sozinho, longe do borborinho das estradas, e quando a paz, tranquilidade da ordem, estabelece a ordem dos pensamentos, dos sentimentos, das investigaes, estais na alma disposio de aprender, podeis juntar, depois criar; estais estritamente no princpio da aco; no o momento de acolher misrias, nem de ir vivendo enquanto o tempo corre, nem de trocar o cu por bagatelas. A solido permite-vos o contacto convosco, contacto necessrio, se quiserdes realizar-vos e no ser o papagaio de frmulas aprendidas, mas sim o profeta do Deus interior que fala a cada qual uma linguagem nica. Voltaremos a esta ideia duma instruo especial a cada um, duma formao que educao, isto , desdobramento da alma, alma nica e que no teve nem ter igual nos sculos, porque Deus no se repete. Mas para sair assim de si prprio, indispensvel viver consigo, muito perto, na solido. Dizia o autor da Imitao: . Levai mais longe a ideia e corrigi: voltei de l menos homem do que sou, menos eu prprio. Perdemo-nos no meio da multido, a no ser que nos mantenhamos firmes, mas primeiro devemos criar esta amarra. Na multido ignoramo-nos, inteiramente atravancados por um eu estranho, que multido. : eis a resposta do esprito disperso e dissipado na vida exterior. Os higienistas recomendam para o corpo o banho de gua, o banho de ar e o banho interior de gua pura: eu de bom grado ajuntaria o banho do silncio, a fim de tonificar o organismo espiritual, de acentuar a prpria personalidade e de lhe comunicar o sentimento activo, como o atleta sente os msculos e prepara o jogo deles pelos movimentos interiores que lhes do vida. Disse Ravignan: , orao Verdade, fora de cooperao com a sua influncia, no recolhimento prolongado, frequentemente retomado, a horas determinadas, como para uma entrevista que pouco e pouco se converter em continuidade, em vida estreitamente comum! No podemos, diz S. Toms, contemplar todo o tempo; mas aquele que s vive para a contemplao que para ela orienta tudo o mais, e a retoma logo que pode, d-lhe uma espcie de continuidade, a continuidade que lhe possvel dar sobre a terra. De envolta com ela vira a suavidade, porque . Ora a suavidade da contemplao a parte da sua eficcia. O prazer, explica S. Toms, apoia a alma sobre o seu objecto, como se fosse instrumento para apertar; refora a ateno e desdobra as potncias de aquisio que seriam comprimidas pela tristeza ou pelo aborrecimento. Quando a verdade se apossa de vs e a penugem das suas asas desliza debaixo da vossa alma para a erguer em gestos harmoniosos, eis o momento de vos erguerdes com ela e de vos librardes, enquanto ela vos ala s regies elevadas.

    III Cooperar com os seus iguais.

    Nem por isso sereis o isolado que condenamos: no estareis longe dos vossos irmos pelo facto de ter abandonado o rudo que fazem e que vos separa deles espiritualmente, impedindo assim a verdadeira fraternidade. Para o intelectual, o prximo o ser que precisa de verdade, como o prximo do bom Samaritano era o ferido da estrada de Jeric. Antes de dar a verdade, adquira-a e no dissipeis o gro das vossas sementeiras. Se as palavras da imitao so verdadeiras, longe dos homens sereis mais homens e estareis mais com os homens. Para conhecer a humanidade e para a servir, preciso entrar em si, onde todos os objectos entram em contacto e donde extraem a fora de verdade e a potncia

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    de amor. No h maneira de se unir ao que quer que seja seno na liberdade interior. Deixar-se monopolizar, puxar para aqui e para ali, quer se trate das coisas quer de pessoas, trabalhar para desunir. Longe dos olhos, perto do corao. Jesus mostra-nos bem como se pode viver vida interior e ao mesmo tempo dar-se aos outros, ser todo para os homens e viver todo em Deus. Viveu Ele na solido; tratava com a multido s com uma alma de silncio, de que a sua palavra como que a porta estreita para as trocas da divina caridade. E que soberana eficcia, neste contacto que reservava tudo, excepto o ponto preciso pelo qual Deus podia passar e as almas juntar-se a Ele! No deveria haver lugar a, entre Deus e a multido, seno para o Homem-Deus e para o homem de Deus, para o homem de verdade e de dom. Aquele que se cr unido a Deus, sem estar unido a seus irmos, mentiroso, afirma o apstolo; no passa de falso mstico e, intelectualmente, de falso pensador; mas o que est unido aos homens e natureza sem estar unido com Deus no seu ntimo, sem ser cliente do silncio e da solido, apenas vassalo dum reino de morte. Todas as nossas explicaes demonstram claramente que a solido, cujo elogio tecemos, valor que se deve temperar com valores conexos, que o completem e utilizem. No advogamos embalde a solido o sacrifcio do convvio e da simpatia dos nossos irmos vale uma compensao. No temos direito seno ao esplndido isolamento. Ora este ser tanto mais rico e fecundo quanto a vizinhana superior, procurada no retiro, for favorecida por frequentaes escolhidas e medidas com sabedoria. A frequentao primeira do intelectual, a que o qualificar, sem prejuzo das suas necessidades e deveres de homem, a frequentao dos seus iguais. Digo frequentao, prefiriria dizer cooperao, porque, frequentar sem cooperar no fazer obra intelectual. Mas uma tal conjuno dos espritos muito rara, neste tempo de individualismo e anarquia social. J o deplorava o P. Gratry; sonhava ele com Port-Royal e queria fazer do Oratrio . ! As oficinas de outrora, e sobretudo as oficinas de arte eram amizades, famlias: a oficina de hoje masmorra, ou ento meeting. No haver maneira de ver, debaixo da impresso da necessidade que mais e mais se experimenta nossa volta, a oficina familiar ampliada, aberta para fora e no menos concentrada que anteriormente? Seria esse o momento de conceber e de fundar a oficina intelectual, associao de trabalhadores, por igual entusiastas e aplicados, livremente reunidos, vivendo na simplicidade, na igualdade, sem que nenhum deles pretenda impor-se, embora possuindo reconhecida superioridade de que o grupo se possa aproveitar. Longe de competies e de orgulhos, buscando apenas a verdade, os amigos assim reunidos seriam, se assim me atrevo a exprimir, multiplicados uns pelos outros, e a alma comum provaria uma riqueza que em nenhuma parte parece ter explicao suficiente. Para trabalhar s, preciso ter alma forte. Constituir em si s a sua sociedade intelectual, o seu nimo, o seu apoio, encontrar num pobre querer isolado tanta fora quanta pode existir numa massa em movimento ou na dura necessidade, que herosmo! Primeiro sente-se entusiasmo, depois com a chegada das dificuldades, o demnio da preguia sugere: para que tanta maada? Ento enfraquece-se a viso do fim; os frutos esto demasiado longnquos ou aparecem amargos; sentimos vagamente que nos enganamos. certo que o apoio de outrem, as trocas de impresses, o exemplo seria de admirvel eficcia contra este spleen; supririam, em muitos, essa potncia de imaginao e constncia de virtude que s alguns possuem e que no entanto so necessrias para no desistir da prossecuo dum grande fim. Nos conventos em que os religiosos no se falam, nem se visitam, a influncia duma fileira de celas laboriosas anima e activa cada asceta; estes alvolos, na aparncia isolados, formam um cortio; o silncio colectivo e o trabalho conjunto; o acordo das almas no d f dos muros da clausura; um mesmo esprito adeja na atmosfera e a harmonia dos pensamentos ergue-se

    ( 1) Les Sources, Primeira parte, cap. VI.

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    como motivo de sinfonia que a vaga geral dos sons leva e prolonga. Quando em seguida intervm as trocas de impresses, o concerto enriquece-se; cada qual exprime e escuta, aprende e ensina, recebe e d, e talvez este ltimo aspecto da cooperao seja o mais cobiado. A amizade maiutica que extrai de ns os mais ricos e ntimos recursos; desdobra as asas dos sonhos e dos obscuros pensamentos; inspecciona os juzos, experimenta as ideias novas, entretm o ardor e inflama o entusiasmo. H exemplos disso hoje nos grupos de jovens e nas revistas de novos, onde adeptos convictos assumem uma misso e se consagram a uma concepo. Os Cabiers de la Quinzaine nasceram deste voto, a Amit de France, a Revue de jeunes, as Revistas de Juvisy e de Saulchoir cada dia se compenetram mais e mais deste esprito. Nem sempre a se vive em comunidade, mas trabalha-se com o mesmo corao e concertam-se, corrigem-se, defendem-se e excitam-se uns aos outros num ambiente, cujo essencial fornecido por um pensamento iniciador e por uma grande tradio. Se puderes, tentai agregar-vos a uma fraternidade deste gnero; se preciso for, constitu-a. Em todo o caso, mesmo no isolamento maternal, buscai em esprito a sociedade dos amigos da verdade. Alistai-vos em suas fileiras, sentai-vos fraternalmente com eles e com todos os investigadores, com todos os produtores que a cristandade rene. A comunicao dos Santos, no falanstrio, unidade. ; o esprito, s, pode alguma coisa. A unanimidade no consiste tanto em viver juntamente numa morada ou num determinado grupo, quanto em esforar-se, cada qual, com o sentimento de que outros se esforam, em se concentrar quando outros se concentram, de modo que se leve por diante uma tarefa, orientada por um s principio de vida e de actividade, e que as peas do relgio, s quais cada trabalhador em seu quarto se aplica exclusivamente, tenham Deus como relojoeiro.

    IV Cultivar as relaes necessrias.

    Disse que a solido do pensador no implica a excluso dos seus deveres nem o olvido das suas necessidades. H relaes necessrias que fazem parte da vida do intelectual, uma vez que no separamos o intelectual do homem. Compete-vos lig-las intelectualidade, de sorte que no a embaracem, mas a sirvam. Isto sempre possvel. Nunca malbaratado o tempo que se consagra ao dever ou necessidade real; o cuidado, que se lhe dispensa, faz parte da vocao, e s a contrariaria, se a considerssemos abstractamente, parte da Providncia. Decerto no pensais que a vossa obra valha mais do que vs, nem que um suplemento de possibilidades intelectuais possa prevalecer sobre o acabamento do vosso ser. Fazei o que deveis e o que for preciso: se a vossa humanidade o exigir, ela saber arranjar-se. O bem, irmo da verdade, ajudar a sua irm. Estar onde se deve estar, fazer a o que se deve fazer, preparar a contemplao, aliment-la e deixar a Deus por Deus, dizia S. Bernardo. doloroso sacrificar belas horas em frequentaes e assuntos inferiores ao ideal; como, porm, o curso deste mundo feito para se aliar virtude, lembremo-nos que a virtude intelectual ou moral retirar da vantagem. Em certos dias, a intelectualidade alcanar o seu ganho unicamente atravs da moralidade, apesar das suas concesses virtuosas; noutras circunstncias, alcan-lo- por si s. Porque, no o esqueais, nas frequentaes, mesmo correntes, tambm vs tendes algo que respigar. A demasiada solido empobrece. Escrevia recentemente algum: . a nsia da medida que se encontra por toda a parte! Mas, romancista ou no, sentis que no vos podeis enclausurar inteiramente. Nem os prprios monges o fazem. mister guardar, por causa do trabalho, o sentimento da alma comum e da vida. E como que vs o possuireis, se, privado de

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    comunicao com os humanos, encarsseis apenas uma humanidade area? O homem nimiamente isolado torna-se tmido, abstracto, um pouco bizarro; cambaleia no real como o marinheiro quando pe o p em terra; falta-lhe o senso do destino; d a impresso de vos olhar como se fosseis uma a inserir num silogismo ou um caso a notar um calepino. H na riqueza infinita do real tesouros que vos podem instruir; basta que a frequentemos em esprito de contemplao, e que no a desertemos. E no ser porventura o homem o que nela h de mais importante o homem centro de tudo, fim ltimo de tudo, espelho de tudo e que convida o pensador a permanente confrontao? preciso que, na medida em que nos for dado escolher, disponhamos as coisas de maneira a convizinhar o mais possvel com pessoas superiores. A esposa dum intelectual deve tambm velar por isto. No abra a qualquer as portas de casa; que o seu tacto seja como crivo; sociedade da alta roda prefira a das almas nobres; aos pretensos homens de gnio prefira gente de peso, instruda e de juzo slido, visto que no mundo tanto mais se passa por um homem de gnio quanto mais se matou a inteligncia. Sobretudo no v ela, por leviandade ou vaidade, por qualquer interesse reles, introduzir o marido na companhia de insensatos. Que digo? Se at os insensatos concorrem para nos servir e completar a nossa experincia! No os busqueis: h-os em demasia! Mas, se os encontrardes, utilizai-os intelectualmente, cristmente, pelo exerccio das virtudes de que eles so os clientes. A sociedade livro para ler, embora livro banal. A solido obra-prima; mas recordai-vos do que dizia Leibniz, a saber, que sempre retirava utilidade, at da leitura dos piores livros. Nunca pensais s, como nunca pensais s com a inteligncia. Esta associa-se s demais faculdades, a alma associa-se ao corpo, a pessoa associa-se s suas relaes; o ser pensante tudo isto: componde-o o melhor que puderdes, mas de sorte que as prprias taras, e as enfermidades, se convertam em valores, por meio de qualquer indstria feliz da grandeza de alma. No trato com o prximo, portai-vos de maneira que o esprito e o corao dominem sempre o vosso caso; desse modo no sereis invadido nem contaminado, se o ambiente, que vos rodeia, for medocre e se for nobre, reforar em vs os efeitos da solido, o amor verdade e aos seus ensinamentos. Deveramos lidar com o mundo externo como os anjos, que tocam sem ser tocados, que do sem perderem nada do que possuem, porque pertencem a outro mundo. Sendo moderados nas conversas, permanecereis recolhidos e lograreis a sabedoria indispensvel para o intercmbio das ideias com o prximo. Falar para dizer o que se deve dizer, para exprimir um sentimento oportuno ou uma ideia ftil depois disso calar-se, eis o segredo de o intelectual se guardar ao mesmo tempo que se comunica. No existe outro meio de dar autoridade palavra. A palavra pesa, quando por debaixo dela se pressente o silncio, quando esconde e deixa adivinhar, por trs dos sons, um tesouro que vai dispensando com medida sem pressa nem agitao. O silncio o contedo secreto das palavras importantes. O valor duma alma mede-se pela riqueza do que ela no diz.

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    V Conservar a dose necessria de aco.

    O que dissemos das frequentaes aplica-se, sem grandes retoques, aco. Convm dosear sempre a vida interna e a externa, o silncio e o rudo. A vocao intelectual estritamente tomada, o contrrio da aco; a vida contemplativa e a vida activa estiveram sempre opostas, como oriundas de pensamentos e de aspiraes contrrias. A contemplao recolhe, a aco gasta; uma chama pela luz, a outra ambiciona dar. Dum modo geral temos de nos resignar a dividir as tarefas, contentes, cada qual de louvar o que no fazemos, de amar os frutos da actividade alheia e de os saborear, graas comunho das almas. No entanto, a vida real no permite distribuio to estrita. O dever pode forar-nos aco, como h pouco dizamos que nos forava a frequentar a sociedade. A aco regulada pela conscincia prepara-a para as regras da verdade, dispe-na para o recolhimento, une-a Providncia, que tambm fonte de verdade. O pensamento e a aco tm um Pai comum. Em seguida, impe-se a todo o pensador a necessidade de reservar parte do tempo e do corao para a vida activa, por pequena que seja. O monge trabalha manualmente ou dedica-se a obras de zelo; o mdico tem a, clnica, o hospital; o artista, as exposies, a sociedade, as excurses, as conferncias; o escritor solicitado de tantos lados que dificilmente conseguir esquivar-se e meter ombros a qualquer empresa. Tudo isto recomendvel. Porque, se, no mundo, cada coisa tem a sua medida, a vida interior no escapa a esta lei. Requere ela que a aco se limite e ceda o passo solido, porque a aco exterior agita a alma, enquanto o silncio a acalma; mas o silncio exagerado causa tambm agitao: o refluxo do homem todo para a cabea desorienta e d tonturas; da a necessidade de diverso para a vida cerebral a necessidade do calmante da aco. H razes fisiolgicas, em que me no vou embrenhar agora; nelas se apoiam e a elas se reduzem as razes psicolgicas, uma vez que a alma, enquanto distinta do corpo, no est sujeita a cansao. Mas o composto animado cansa-se descansando, como se cansa gastando; requere um equilbrio, cujo centro de gravidade se possa alis deslocar do corpo para a alma e vice-versa. O corpo, que se imobiliza demasiado, atrofia-se e enerva-se; a alma que o imita, estiola-se e, pouco a pouco, arruina-se. fora de cultivar o silncio, corre-se o risco de chegar ao silncio de morte. Por outro lado, a vida intelectual precisa do alimento dos factos. Encontramo-los nos livros. Contudo bem frgil a cincia puramente livresca. Sofre do defeito de ser abstracta; perde contacto com a realidade e, por conseguinte, oferecer ao juzo matria demasiado quintessenciada, quase ilusria. . S.Toms consagra um artigo da Suma a provar a necessidade de nos firmamos no real que o real o fim ltimo do juzo e o fim deve iluminar ao longo do caminho(1). As ideias esto nos factos, no vivem em si mesmas, como sups Plato: esta concepo filosfica tem consequncias prticas. O homem do pensamento precisa de se manter na vizinhana do que , para que o esprito no vacile. Que outra coisa o sonho seno pensamento que no quer? O sonho inconsciente o escolho do pensamento puro; precisamos de nos desviar dele como duma causa de impotncia e de queda. O pensamento apoia-se nos factos como o p se firma no solo, como o aleijado nas muletas. Portanto, a dose de aco recomendada ao pensador ter a vantagem de lhe estabilizar o esprito e de o enriquecer. Quantas experincias a vida nos prope cada dia! No lhes ligamos ateno, mas o pensador profundo recolhe-as e compe com elas o seu tesouro; os seus quadros espirituais ir-se-o completado paulatinamente, e as suas ideias gerais, controladas por uma parte, sero alm disso ilustradas por documentao viva. A ideia, em ns, privada dos seus elementos empricos, dos fantasmas, no passa de concerto vazio, que nem sequer percebido. A amplido e fora do pensamento dependem da riqueza dos fantasmas. Ora a aco encontra, no seu caminho, elementos assimilveis e que sero a figuro das suas ideias abstractas. Encontra-se at em nmero mais

    ( 1) I,q.84,art.8.

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    avultado do que esperava, porque o real uma espcie de infinito que nenhuma anlise ou suputao racional pode esgotar. O artista, colocado diante duma rvore, traar muitos esboos dela, sem que lhe ocorra a ideia de reproduzir inteiramente o que a natureza exprime; diante dum esboo de rvore, mesmo at diante da rvore dum Cludio Lorrain ou dum Corot, quando tiver conscienciosamente o modelo, nada mais lhe resta fazer. O individual inefvel, diziam os antigos filsofos. O individual o real em oposio aos temas do esprito. Mergulhando no real pela aco, encontramos nele formas novas, como o artista, executando, alimenta, reala e acaba a sua concepo. Enfim, o instrutor, que a aco, ao mesmo tempo professor de energia, cujas lies no sero inteis a um solitrio. Pelos incentives e resistncias, pelas dificuldades, pelos reveses, pelos xitos, pelo aborrecimento e cansao que obriga a vencer, pelas contradies que suscita e pelas necessidades novas que cria, a aco estimula e retempera as foras, sacode a preguia fundamental e a orgulhosa quietao, to hostis ao pensamento como s realizaes. As virtudes de fora viro assim em auxlio s de dentro, a investigao activa ajudar o recolhimento, a colheita preparar o mel. O pensamento, alternativamente mergulhado nos dois abismos, o do real e o do ideal fortificado por uma vontade aguerrida, iluminado e advertido pelas razes do corao postas em jogo pela aco, ser instrumento de pesquisa e rbitro de verdade diferente duma razo alcandorada sobre a rvore porfiriana. Gostaria de ver o homem de estudo envolvido nalguma empresa pouco custosa, a que dedicasse um tempo bem delimitado, sem ceder a arrebatamentos, no entanto, interessando-se, de alma e corao, pelos resultados que no devem ser para ele como os toros que alguns vo serrar para sobre eles repousarem a cabea. Agir sem se dar totalmente aco no agir como homem, nem da poder derivar o repouso do homem, nem a sua instruo, nem a sua formao. Pelo qu, se ainda as no tendes, procurai causas que vos apaixonem pelo seu valor intrnseco, obras de luz, de levantamento, de preservao, de progresso, ligas de bem pblico, sociedades de defesa e de aco social, empresas que exigem, de quem a elas se d, seno a vida inteira, ao menos a doao total do ser. Aplicai-vos a isso nas horas em que a inspirao vos outorga e at vos impe um feriado, que tambm lhe proveitoso a ela. Em seguida, voltareis inspirao, e o cu, onde ela vos introduz, ser-vos- tanto mais agradvel quanto mais tiverdes experimentado, ao mesmo tempo que os seus tesouros, os perigos, o lodo e as asperezas da terra.

    VI Manter o silncio interior.

    Se me no engano, tudo isto resulta que a solido til, o silncio, o retiro do pensador so realidades mitigadas, animadas por um esprito de exigncia estrita. Se, de facto, o intelectual um consagrado e se no h possibilidade de servir a dois senhores, a aco e as frequentaes devem ser condicionadas e doseadas pelo retiro, pelo silncio e pela solido interior. Por conseguinte, o que importa o espirito de silncio. Costuma-se dizer que a solido me dos obras. Mas exacto seria dizer: o estado de solido. To verdade isto que, em rigor, podemos conceber uma vida intelectual fundada num trabalho de duas horas por dia, o que no quer dizer que, salvas essas duas horas, possamos em seguida proceder como se elas no existissem. Essas duas horas so dedicadas concentrao; independentemente delas, requere-se a consagrao de toda a vida. Um intelectual deve ser intelectual todo o tempo. O que S. Paulo sugere ao cristo: quer comais, quer bebais, quer faais qualquer outra coisa, fazei tudo para glria de o Deus, deve aplicar-se ao cristo que busca a luz. A glria de Deus , para ele, a verdade: deve pensar nela em toda a parte, dobrar-se a ela em tudo. A solido, que lhe recomendada, no consiste tanto na solido de lugar como na solido de recolhimento; mais elevao do que afastamento; consiste cm isolar-se pelo alto, graas ao dom de si s coisas superiores e mediante a fuga das leviandades, das divagaes, da mobilidade e de todos os caprichos da vontade; realiza o conuersatio nostra in caelis do apstolo, estabelecendo a nossa morada e o nosso comrcio no cu dos espritos.

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    Ficar em si e entregar-se garrulice interior, s sacudidelas dos desejos, exaltao do orgulho, ao fluxo de pensamentos que introduzem em ns um mundo externo absorvente e cheio de discrdia, ser isto a solido? H uma falsa solido, como h uma falsa paz. Pelo contrrio, sair e agir por dever, por prudncia ou pelo cuidado de tomar descanso, cuja necessidade voltaremos a advogar mais abaixo, pode ser uma solido superior, que alimenta e tonifica a alma em vez de a apoucar. O que S. Agostinho chama a , em toda a parte se pode manter, mas a sua impureza basta para manchar a prpria casa. . Tende a inspirao interior, a discrio, o amor daquilo a que vos dedicastes, tende convosco o Deus da verdade e, embora sozinhos, estareis em pleno universo.

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    CAPTULO IV - O tempo do trabalho

    I - O trabalho permanente

    Qualificmos de muitas maneiras o labor intelectual; apertemos agora mais as suas diversas condies. Primeiramente, o tempo que o pensador lhe consagra. O estudo foi cognominado orao verdade. Mas, segundo o Evangelho, a orao deve ser ininterrupta: (Lc. I8, I). certo que este texto benignamente interpretado significaria que no devemos deixar passar dia, semana, longo espao de tempo sem nos dirigirmos a Deus. Mas os nossos doutores no restringem a to pouco o sentido destas palavras; tomam-nas letra e delas extraem profundos ensinamentos. A orao exprime o desejo; o seu valor provm da aspirao interior do seu contedo e da sua fora. Suprimi o desejo e a orao deixa de existir; alterai-o, e a orao muda; fortificai ou atenuai o seu ardor, e a orao toma voo ou perde as asas. Pelo contrrio, suprimi a expresso mas deixai o desejo, que a orao, sob muitos respeitos, ficar intacta. A criana que no, diz palavra, mas fixa o olhar ardente no brinquedo de uma vitrina, e que em seguida olha para a me, no formulou porventura a mais comovente orao? Embora nada tivesse visto, no verdade que o desejo do jogo, inato na criana como a sede de agir, j para os seus uma orao permanente que eles atendem? preciso orar sempre equivale a afirmar: preciso desejar sempre as coisas eternas, as coisas do tempo que as servem, o po quotidiano de toda a natureza e de toda a oportunidade, a vida em todas as suas amplides, terrestres e celestes. Aplicando este comentrio orao activa do estudo, entrais numa ordem de considerao extremamente preciosa. O pensador um consagrado; mas s pensador em actividade durante muito poucas horas. Dizia Carlyle: . Uma vez que a maior parte da vida assim se mantm em nvel ou em baixo, necessrio que o homem das alturas desa plancie e se incline: que lucro imenso, se conseguir no se dobrar todo inteiro! Ora, se a orao pode durar todo o tempo, visto ser um desejo e o desejo permanecer, por que razo no h-de o estudo durar todo o tempo, se tambm ele desejo e apelo verdade? O desejo de saber define a inteligncia como potncia de vida. Instintivamente queremos conhecer do mesmo modo que pedimos po. Se os mais dos homens se deixam prender por desejos errneos, o pensador obsidiado pelo desejo de saber; porque o no utilizar, aproveitando-o como se aproveita um curso de gua para mover uma turbina? Ser isso possvel? Sim, ; a experincia e a psicologia o ensinam. O crebro trabalha sem remisso; as turbinas, que reclamo, existem, giram, arrastando em suas voltas um sistema de rodas donde se escapam as ideias como as centelhas dum dnamo em pleno rendimento. Os processos nervosos encadeiam-se em srie continua e no param do mesmo modo que os movimentos do corao ou dos pulmes. Q