A invenção do pensamento científico cederj

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/6/2019 A inveno do pensamento cientfico cederj

    1/22

    A inveno do pensamento cientfico

    Marcos Andr Reis de Amorim

    Desde os primrdios da humanidade, a capacidade de criao do homem a servio damanuteno da espcie notria, mas, ao se referir cincia como a vemos noOcidente, ou seja, sob as ordens da razo e sem a presena de argumentaesmsticas, religiosas, devemos partir de onde esta trajetria comeou: o bero da culturaocidental, a Grcia antiga, que atinge seu auge na era clssica, entre os sculos VI eIV a. C.

    Os gregos inventam a razo

    So os gregos que iniciam um processo de laicizao do discurso sobre a vida,fenmeno esse conhecido como a passagem do mito ao logos (razo) que dar a luz filosofia (que por sua vez inventa a cincia). Em seu passado micnico (entre ossculos XX e XI a. C.), vigora o mito de soberania (de forma semelhante aos impriosegpcio e da Babilnia, entre outros): os gregos viam em seu rei o produtor deverdades, por possuir um status divino, com poderes no mundo sobrenatural e nonatural, includa a a vida mundana e material da sociedade.

    Mas no sculo XI a. C., com a destruio de Micenas por invasores, a Grcia sereorganiza em outros moldes, do poder baseado nas oligarquias at a inveno dademocracia, por volta do sculo VI a. C. Passamos por Homero (sculo VIII a. C.) eHesodo (VII a. C.), dois dos maiores poetas gregos, que conseguiram, pela escrita,organizar o que se sabia das lendas e mitos da crena grega. Quando a tradio oralvira um manuscrito j possvel ver um grau de racionalizao nessa transposioorganizada por esses poetas, que contam os mitos (que ento se tornam mitologia)dotados de uma lgica embrionria que culminar nas tragdias (o teatro grego da era

    clssica) e na filosofia.Chegamos ento ao nascimento da filosofia: no sculo VI a. C., em Mileto, o primeirofilsofo Tales afirma que a gua representa o princpio da vida, deslocando assim averdade baseada no sobrenatural para a esfera da physis (aproximadamente o quechamamos de natureza). Agora, na busca do conhecimento da vida, abandona-se osacerdote com seu acesso privilegiado aos deuses e se passa a responsabilidade para ofilsofo, que, por sua vez, busca na prpria physis as respostas sobre seufuncionamento.

    Percebamos esta mudana radical: no discurso da religio, no cabe discusso oucontrovrsia; a verdade depende de quem diz, no se o que dito tem realmentesentido lgico-racional. Com a filosofia, o dito passvel de questionamento, processo

    na busca da verdade. Ela no vem pronta da boca do homem divinizado, mas campode investigao humana e com a marca de no sair dos limites daphysis.

    Os primeiros filsofos, que historiadores da filosofia resolveram chamar de pr-socrticos, so tambm vistos como cosmlogos; so chamados tambm de physics(fsicos, batizados assim por Aristteles), diante de suas pesquisas no campo daAstronomia e dos fenmenos da natureza.

    A tese dos quatro elementos primordiais (terra, fogo, gua e ar), o teorema dePitgoras, o tomo descrito por Demcrito e outros conceitos importantes foramdesenvolvidos nos primeiros tempos da filosofia.

    1

  • 8/6/2019 A inveno do pensamento cientfico cederj

    2/22

    O sere o devir

    Entre as diversas controvrsias dos primeiros tempos da filosofia, uma se sobressai enos persegue at os dias de hoje: o que o movimento, a transformao, o tempo? Sepodemos acreditar em verdades absolutas (ou seja, imunes ao tempo, eternas), comolidar com o devir (conceito que representa a mudana e a transformao)? QuandoHerclito de feso afirma que o homem no pode banhar-se duas vezes no mesmorio, torna-se o maior defensor da ideia de que no h nada na physis que no soframutaes permanentes. O rio e ns mudamos; a cada milsimo de segundo, no somosmais os mesmos. Mas a questo permanece: como acreditar em alguma caractersticafixa nas coisas diante de tanta mudana?

    Um filsofo chamado Parmnides, da cidade de Eleia, produz um pensamento quepretende responder a essa pergunta, e para tanto desqualifica o devir(que considerauma iluso provocada pelos nossos sentidos), na busca daquilo que permanece, queno muda nem se modifica, aqum e alm do movimento e da transformao. Podemosrepresentar esta imutabilidade com o conceito de ser. O serdas coisas aquilo que

    nelas se mantm sempre o mesmo. Tambm podemos chamar de essncia. Porexemplo: se acreditarmos que todos os seres humanos so dotados da capacidade deraciocinar, ento estamos diante de uma essncia que todo homem tem, pois, apesarde todas as nossas transformaes, essa caracterstica nos imutvel. Pois est amesmo a nossa capacidade de achar a essncia das coisas: o uso da razo, que, porsua vez, impediria as emoes, os sentidos, de nos enganar com a viso superficial deque tudo est em devir.

    Scrates, Plato e Aristteles, os mais influentes filsofos da histria, optaram pelocaminho aberto por Parmnides e, se hoje acreditamos existir essncia de algumacoisa, devemos muito a esses pensadores. A palavra grega aletheia normalmentetraduzida por verdade, mas, num estudo mais minucioso desse termo, podemos dizerdes-cobrir, des-velar, ou seja, tirar o vu que cobre a verdade (o ser, a essncia). Mas

    o que cobre a verdade? O devir, que passageiro, e sua velocidade, que inebriante,confundiriam o nosso senso lgico-racional.

    Herclito e o devir foram duramente criticados pelos socrticos, que, apesar dereconhecerem a existncia da mutao eterna naphysis, privilegiaram a des-coberta doser, a nica forma de saber o que as coisas so, alcanveis atravs de um controlergido dos sentidos para que a razo possa trabalhar com sua famosa iseno acima dequalquer suspeita.

    Pode parecer estranho; afinal, como ignorar a fora do devirno universo, mas a baseda cincia ocidental a filosofia do ser, e no a do devir. O cientista no est buscandoa essncia das coisas? No est procura de leis na natureza?

    Se, por outro lado, privilegiarmos o devir, vai nos parecer absurdo existir esse tipo deambio proposta por Parmnides e seus seguidores (des-cobrir o ser), pois at ascoisas estariam sofrendo a passagem contnua do tempo e, portanto, correndo o riscode no serem reconhecidas mais como eram. Ficaramos a perguntar: onde est oobjeto que estava a estudar? Transformou-se em outra coisa... A existncia de umasuposta essncia, que, por sua vez, s pode ser percebida atravs de uma atitude ditaracional, que para funcionar deve controlar nossos mpetos emocionais, no produz umaviso acerca do mundo? Esta forma a nica maneira correta de saber o que o universo?

    2

  • 8/6/2019 A inveno do pensamento cientfico cederj

    3/22

    A metaphysis

    Essa questo ser X devirnos remete tambm s outras dicotomias clssicas da mesmapoca: razo X sentidos e esprito X matria. Em relao ao esprito (ou alma), osgregos acreditavam estar diante daquilo que o que d vitalidade ao corpo, sem seralgo material. J a matria (ou corpo), o nome j diz: tudo aquilo que material, temmassa etc. Para simplificar, podemos dizer que a matria dotada de sentidos(sentimentos, emoes) e a alma dotada da capacidade de raciocnio, de inteligncia,pensamento. Essa viso perdurou (e talvez ainda viva em ns) durante sculos,ganhando at o reforo do filsofo francs Ren Descartes, que, no sculo XVII, diziaexistirem a substncia pensante (a alma) e a substncia extensa (a matria) queestariam juntas em ns, humanos, mas no nos outros animais, que so s matria.No por isso que se afirma que os homens so dotados de inteligncia e os outrosanimais so irracionais?

    Fundamentar nossa busca em algo imaterial, seja por causa do uso da razo, seja noobjeto que ela procura estar alm do movimento e da transformao, ajudou a criar

    um dos conceitos mais importantes da filosofia: a metaphysis. Seguindo essa linha depensamento, possvel afirmar que o que os filsofos (pelo menos os socrticos e seusherdeiros, ou seja, praticamente toda a tradio filosfica at hoje e, por que no?, oscientistas tambm) pretendem encontrar algo que esteja alm do que a natureza capaz de mostrar, uma espcie de alma das coisas, sua caracterstica essencial.

    A filosofia e a cincia

    Nestes primeiros tempos, o filsofo e o cientista no esto separados, coisa que s vaiacontecer mais tarde, quando a filosofia passar a se dedicar mais ao que funda ascrenas e verdades, enquanto a cincia j as supe existentes e corre em busca de

    descrev-las. Mas no podemos nos esquecer: se a filosofia grega no tivesseinaugurado o uso da razo (ou pelo menos o seu tipo de razo), a cincia teria queesperar o surgimento de Tales para comear sua histria.

    3

  • 8/6/2019 A inveno do pensamento cientfico cederj

    4/22

    A matematizao da natureza

    Marcos Andr Reis de Amorim

    Matemtica: introduzir o refinamento e o rigor da Matemtica em todas as cincias, atonde seja possvel, no na crena de que por essa via conheceremos as coisas, maspara assim constatar nossa relao humana com as coisas.(Friedrich Nietzsche,A Gaia Cincia, livro III, 246)

    Como acontece com toda viso de mundo, as sociedades criam uma forma de ver arealidade (ou pelo menos a sua realidade), e esse ponto de vista acaba por parecerinato, e no uma inveno cultural, diante de nosso hbito de ver as coisas daquelamaneira. Quero dizer que isso tambm aconteceu (e acontece) com a presena daMatemtica em nossas vidas: ela est por toda parte, no comrcio, na msica, naspesquisas de opinio, nas cincias de modo geral. Mas se agirmos como antroplogos,perceberemos que somos herdeiros da produo cultural de nossos antepassados, ouseja, a Matemtica no extrada da natureza, mas sim uma interveno humana sobre

    ela. Por isso o ttulo deste texto: a matematizao da natureza. Como foi que issocomeou, e mais: que viso de mundo est embutida nessa forma de ver a vida?

    I

    Vamos comear pela inventividade sem precedentes daquela que se tornou a matriz domodo de pensar ocidental: a Grcia antiga. Os gregos no inventaram a Matemtica,mas criaram uma Matemtica grega bastante associada geometria. Basta lembrarde Euclides, que d nome geometria plana, do teorema de Pitgoras e de Plato, quedeu mathematik (do grego mthma: cincia, conhecimento, aprendizagem;mathmatiks: aquele que aprecia o conhecimento) um lugar especial em sua filosofia.

    VERNANT, Jean-Pierre. Estrutura geomtrica e noes polticas na cosmologia deAnaximandro. In: Mito e pensamento entre os gregos, p. 170-186.Desde a crena, descrita pelo poeta Hesodo (sculo VII a. C.) em sua Teogonia (aorigem dos deuses), de que Zeus vence seus irmos, representantes do caos e dadesordem e impe a ordem ao mundo, est presente na cultura grega essa tendncia,que dessacralizada na filosofia, como se fosse natural a existncia de um mundoequilibrado, organizado, ordeiro. A astronomia grega se diferencia da de outrascivilizaes por desenvolver uma representao do cosmos atravs de esquemasgeomtricos, que mecanicamente regem o funcionamento de tudo. Para o pr-socrticoAnaximandro, nosso planeta ocupa o centro do universo, e essa localizao mantm aTerra equilibrada sem ser necessrio nada que a sustente. Geometricamente, ocupariaum espao no universo de tal forma que sua posio em relao aos outros astros a

    mantm suspensa e equilibrada, assim como os outros planetas.

    Essa representao do espao simultaneamente aplicada na esfera poltica e na socialquando a democracia prega a igualdade entre os cidados: o crculo geomtrico tornou-se um smbolo da igualdade que se buscava. como se dissssemos a distncia docentro borda (o raio) igual para todos. A gora (praa onde ocorrem as decisespolticas) criada no centro da cidade, de forma que todos os cidados possam sereunir para decidir os rumos da sociedade.

    PLATO. Timeu, 31b-c e 32a-b.A presena da Matemtica na cultura grega aparece por toda parte, como o dito dePitgoras que afirma que todas as coisas so nmeros ou sua utilizao na msica(quem no sabe frao no entende o valor do tempo das figuras musicais). A filosofia

    do grande Plato atribua ao estudo da Matemtica o valor de uma das maisimportantes tarefas humanas, diante da proximidade do discurso matemtico com a

    4

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Ci?nciahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Ci?nciahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Conhecimentohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Aprendizagemhttp://el.wikipedia.org/wiki/??????????http://pt.wikipedia.org/wiki/Ci?nciahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Conhecimentohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Aprendizagemhttp://el.wikipedia.org/wiki/??????????
  • 8/6/2019 A inveno do pensamento cientfico cederj

    5/22

    ideia de perfeio afinal o que seria mais perfeito que um quadrado ou um crculo? Esua astronomia, descrita em sua obra Timeu, remete perfeio geomtrica da qual ouniverso feito.

    II

    Viajando no tempo, chegamos at a fundao da Fsica moderna, nos sculos XVI eXVII, quando encontramos a Matemtica como elemento primordial nos estudos deAstronomia que romperam com a viso medieval geocntrica. O pai da Fsica moderna,o italiano Galileu Galilei (1564-1642), soube somar a observao, a experimentao eos clculos matemticos para abordar os fenmenos da natureza. Sua metodologiapressupe traduzir a natureza atravs da linguagem matemtica, na medida em que sepoderia calcular a regularidade com que ocorrem as transformaes no mundo fsico.Obviamente h um princpio a subentendido de que a natureza funcionaria como sefosse um relgio, passvel de ser quantificvel viso essa que continuou a fazersucesso, vide seu colega ingls Isaac Newton (1642-1727), que em seus estudosmanteve essa viso matematizada do mundo. Quando Galileu escreve Discursos e

    demonstraes matemticas sobre duas novas cincias (1638) e Newton, seu Principia Princpios matemticos de filosofia natural(1687), funda-se a Mecnica clssica, ques no sculo XX encontrou adversrio, com a teoria da relatividade de Einstein e amecnica quntica, o que no quer dizer que a Matemtica tenha perdido status comoparceira da fsica e da cincia em geral.

    Alm dos pais da Fsica moderna, refora a viso mecanicista da natureza o filsofofrancs Ren Descartes (1596-1650), conhecido pelo cogito penso, logo existo, mastambm por ter fundado a geometria analtica, ao somar a lgebra para esse contexto.Descartes pretendia trazer o esprito da Matemtica, sua exatido e preciso, para ocampo da filosofia, que para ele se encontrava de certa forma perdida emcontrovrsias e discusses sem a fim a cerca da verdade das coisas, sem chegar a umaconcluso.

    III

    O sculo XX conheceu uma srie de inovaes cientficas (para resumir, a teoria darelatividade e a mecnica quntica) que expuseram um universo muito mais arredio exatido pretendida pela Fsica clssica e, por tabela, fez a Matemtica repensar seupapel para dar conta de um carter mais catico do que se imaginava em relao aofuncionamento da natureza. Ilya Prigogine, Prmio Nobel de Qumica que atualmentetem se encontrado no campo da filosofia da cincia, afirma em seu livro As leis do caosque o conceito de lei da natureza deve ser substitudo pela noo de evento e que aviso calcada em verdades absolutas (que outrora imperava na cincia) seja aberta

    para a de probabilidades, deixando a um importante papel da Matemtica com seusclculos a servio da estatstica na tentativa de compreender a instabilidade presente nanatureza.

    IV

    Esperamos ter iniciado aqui uma reflexo sobre o papel da Matemtica na formao denossa viso de mundo, que muito se deve filosofia e talvez mais ainda aodesenvolvimento da cincia, notadamente s chamadas cincias da natureza, mas nopercamos de vista um ponto crucial: at onde no estamos matematizando o universode que fazemos parte?

    5

  • 8/6/2019 A inveno do pensamento cientfico cederj

    6/22

    O mecanicismo, o Racionalismo e o Empirismo

    Marcos Andr Reis de Amorim

    O Renascimento Cultural europeu (sculos XV e XVI) foi um perodo que tambmpodemos chamar de renascimento da cincia; afinal, nesse momento que podemosperceber a decadncia da viso escolstica apoiada na filosofia de Aristteles e aascenso de uma nova viso do universo, que abandonaria a contemplao por umaatitude de interveno e domnio sobre a natureza. Como uma espcie de continuidadedos avanos do Renascimento, foi a Revoluo cientfica do sculo XVII quepossibilitou o aparecimento de novas prticas cientficas: o mecanicismo, o racionalismoe o empirismo.

    O mecanicismo

    Herdeiro do atomismo grego concepo do mundo como sistema de corpos emmovimento, como uma grande mquina -, o mecanicismo est associado a grandescientistas que construram a Fsica moderna, como Galileu e Newton, e ao filsofo ematemtico Ren Descartes, que criou um mtodo de investigao cientfica quepressupe uma ordem natural do tipo mecanicista. Esses pensadores defendiam aimportncia da mecnica na explicao dos fenmenos naturais. Sem entrar nosmeandros tcnicos que a questo contm, vamos chamar a ateno para ainterpretao da vida que o mecanicismo gerou, influenciando as mais diversas reas dacincia, como a Biologia, a Qumica, a Psicologia e at a Sociologia.

    A crena de que o universo parecido com um relgio, dotado de certa regularidade eexatido (semelhante a uma mquina), como se a vida material j tivesse seufuncionamento passvel de previsibilidade, fez tanto sucesso que at hoje possvel vera cincia trabalhando dessa maneira. Um simples exemplo como a Biologia relata

    certas funes orgnicas atravs da ideia de aparelho (digestrio, respiratrio etc.);outro a presena do mtodo cartesiano nos laboratrios, que desmontam peas(anlise) e depois a remontam (sntese) para conhecer o objeto em questo.

    Mas no percamos de vista que o mecanicismo (assim como outros ismos),filosoficamente falando, apenas uma das interpretaes possveis do que a vida podeser pois h quem discorde dessa viso: em seu livro Ponto de Mutao, o fsico FritjofCapra expe os prejuzos sofridos pela humanidade provocados por essa viso cientficanos ltimos sculos.

    Racionalismo e empirismo

    No debate entre o racionalismo e o empirismo est presente a grande questo daEpistemologia (filosofia do conhecimento ou filosofia da cincia): realmentepossvel conhecer? Se a resposta for afirmativa, qual a melhor forma de conheceralguma coisa? Mais do que uma reflexo a respeito do conhecimento, estamos diante deduas concepes de mundo que englobam uma tica e uma moral diante da vida, comopoderemos verificar nas linhas a seguir.

    Ren Descartes e o racionalismo

    Desde o Renascimento os filsofos vm rediscutindo a importncia da razo para

    alcanar a verdade, e nesse clima que ocorre o que denominamos Revoluocientfica do sculo XVII, que tem como um de seus principais expoentes o pensadorfrancs Ren Descartes (1596-1650), o pai do racionalismo.

    6

  • 8/6/2019 A inveno do pensamento cientfico cederj

    7/22

    O cogito cartesiano

    Ren Descartes comeou sua histria filosfica como um verdadeiro ctico: tudo devepassar pela mquina de duvidar do pensamento, no existindo nenhuma verdadeinteiramente verdadeira. Segue desta forma at chegar a algo que, para ele, erainquestionvel: a sua clebre frase penso, logo existoComo Descartes escrevia emlatim, vrios de seus conceitos esto nesta lngua; por isso, a frase Penso, logo existo

    tambm conhecida como Cogito ergo sum, ou mais simplesmente como cogitocartesiano.. Partindo dessa premissa, Descartes ergue sua filosofia, utilizando-se dadvida junto razo para chegar a verdades claras e indubitveis. Se foi possvelchegar ao cogito, ento possvel encontrar outras verdades imbatveis.

    Descartes rejeita tudo que possa apresentar sombra de dvida, de tal forma que a nicasentena que sobrevive ao seu ataque questionador aquela que pensa: se penso,existo, e disso no posso duvidar. Este o ponto de partida de sua metafsica: sempensar no posso saber que existo, ou seja, o pensamento que me d a noo deestar vivo, existindo. Para existir, ento, dependia-se dessa substncia (resRes, emlatim, quer dizer coisa. pensante) que o pensar, quer dizer, o pensamento me fazsaber que existo. Essa alma pensante inteiramente distinta do corpo, que seria, porsua vez, outra substncia: a res extensa. O ser humano o nico que tem conscinciade que existe, pois dotado da capacidade de raciocinar, enquanto os outros seres, porno terem essa substncia, no tm noo de que esto vivos. Dotados apenas dasubstncia material, os outros seres vivos esto merc dos instintos, que so atitudespuramente mecnicas, corpos-mquina sem dose de pensamento.

    O mtodo universal

    A Matemtica a cincia modelo de seu pensamento, j que suas verdades so lmpidase objetivas e, por isso, serviro de exemplo (inclusive para a Filosofia) para tornar asoutras cincias to exatas quanto s razes matemticas. Seguindo esse raciocnio emseu mais famoso livro, O discurso do mtodo, descreve uma srie de procedimentosque todo pensador, de qualquer cincia, de qualquer filosofia, deveria seguir parachegar s verdades objetivas, absolutamente certas. Um mtodo universal eficaz,

    aplicvel em qualquer situao e sem prazo de validade, que deve obedecer sseguintes etapas:

    1. evidncia: nunca aceite como verdadeiro algo que no seja ntido e indubitvel;2. anlise: divida o objeto em questo em tantas partes quantas forem necessrias

    para chegar aos elementos mais simples e certos;3. ordem ou deduo: da parte mais simples segue-se uma ordem crescente at o

    conhecimento dos mais compostos;4. enumerao ou induo: deve-se revisar bem para se certificar de que tudo est

    claro e nenhuma certeza foi esquecida.

    Descartes encontra no pressuposto de sua metafsica (o cogito cartesiano), o exemplodaquilo que tanto procurava: uma verdade indubitvel (aquilo que no h comoquestionar). Da extrai a existncia e o papel da alma humana e justifica tambm apresena de Deus (que por sua vez uma substncia absoluta) e sua devidaimportncia como avalista da epistemologia cartesiana. Pergunta: de onde vem a ideiade perfeio (que legitima a verdade indubitvel)? De mim prprio no possvel, dizDescartes, seno nunca teria dvida de nada, s certezas. Somente algo perfeitopoderia ter criado a perfeio, o que no pode ser humano. Deus o nico perfeito queconhecemos, e foi quem nos colocou na cabea a possibilidade de buscar a perfeio.Ora, se se tem no pensamento a ideia de perfeio, ento ela existe; e mais: quemcriou essa ideia de fato existe tambm, ou seja, Deus. Seguindo essa lgica, se Deusps em ns a noo de perfeio e tudo mais em nossa mente, ento esto inatas emns (nasceram conosco, no foi dada pela cultura), o que nos faz menosprezar aexperimentao ou o qualquer forma de conhecimento que no seja atravs da razo. A

    substncia pensante , desta forma, superior substncia extensa (o corpo), afinal asideias inatas esto na alma e no na matria. Finalizando: partindo do cogito temosuma certeza inabalvel, de que nem os cticos poderiam duvidar, que comprova a

    7

  • 8/6/2019 A inveno do pensamento cientfico cederj

    8/22

    existncia de Deus e menospreza o corpo que se configura como uma substncia (resextensa) separada da alma, ou seja, do pensamento (res cogitans).

    David Hume e o empirismo

    Empirismo algo prximo do que chamamos de experincia.O empirismo se constituiu num um importante contraponto ao racionalismo, iniciado na

    Inglaterra no sculo XVII com Francis Bacon, Thomas Hobbes e John Locke e atingindoseu auge com David Hume (1711-1776), que o filsofo que escolhemos para abordaro assunto.

    Duas possibilidades de perceber as coisas: as impresses e as ideias

    Para Hume, no h na mente humana nada que no tenha se originado na percepo.Esta se subdivide em duas espcies:

    - uma, mais forte, que ele chama de impresso, que se refere s impresses quetemos dos fenmenos psquicos atuais, s vivncias de apresentao atuais. Aimpresso s se d diante da experincia in loco (quer dizer ao vivo): eu, agora,tenho a impresso de verde.

    - outra, mais fraca, que se chama ideia, que se relaciona aos fenmenos psquicosreproduzidos, s representaes: eu, que tinha a impresso de verde, agora no tenhomais a impresso de verde, mas penso nela, relembro-a ou a imagino, e ento tenho aideia de verde. As ideias so como cpias, representaes das impresses. E as ideiascostumam se associar, conectando-se de vrias formas: por semelhana (a imagem deum objeto ser parecida com a imagem de outro objeto), por contiguidade (ideias decontinuidade entre uma imagem e outra, como o amarelo pode lembrar o ouro) e porcausalidade (ao ferimento se segue a ideia de dor: causa, o ferimento; o efeito, a dor).

    Contudo, os fatos concretos revelados pela experincia sensvel (que mais adiante sepropagar como ideia) s mostram como eles so, sem quaisquer relaes lgicas;deveriam ser aceitos como so dados. As conexes de ideias so completamente

    arbitrrias, pois, na impresso que temos de algo, nada nos diz que devemos relacionarum acontecimento a outro: um copo caindo (impresso 1) e se quebrando no cho(impresso 2) associao de ideias que realizamos para impor uma ordem aomundo, uma lgica que no tem nada a ver com a natureza.

    Somos ns que estabelecemos a razo de ser dos acontecimentos, segundo Hume, afim de que uma forma de sobrevivncia do homem esteja garantida. Todo um edifciode conhecimento foi construdo pelo Ocidente para satisfizer nossa curiosidade e paraque outras necessidades fossem atendidas. O conhecimento ocidental seria umaespcie de consolo metafsico para suportar o mistrio, o caos de puros acasos de que feita a natureza da vida. Toda a conexo de ideias que fazemos, a relao causa eefeito que nos parece bvia porque estamos acostumados com ela... Estamoshabituados a praticar o conhecimento dessa forma. No h, de fato, nada de racional

    nisso, apenas a crena de que, ao cair um copo, ele se quebrar, mas nada garanteque isso v realmente acontecer. O que se quer dizer que, apesar de tudo, arelao de causa e efeito s pode ter sua inspirao na experincia (de tantas vezes umcopo cair e quebrar, chega-se concluso de que, ao cair, quebrar), descartando arazo como motivador da interpretao de causa e efeito. A priori, no possvelconhecer; somente a posteriori (ou seja, aps a experimentao) podemos terargumentos para nossas associaes de ideias.

    Enfim, o empirismo afirma que todo conhecimento deriva da experincia e emparticular da experincia dos sentidos. No existe outra realidade seno a acessvelpelos sentidos. Com isso, as ideias inatas, as substncias e o racionalismo cartesiano denada servem para David Hume. Todas essas fices, como a relao causa e efeito,no tm existncia emprica. O racionalismo s diz respeito Matemtica, que noprecisa das impresses sensveis para existir. Para Hume, o homem um ser prtico esensvel, que faz de suas associaes mentais (inspiradas nas impresses) um uso local

    8

  • 8/6/2019 A inveno do pensamento cientfico cederj

    9/22

    de forma a obedecer a suas necessidades (sejam elas culturais ou fisiolgicas se que possvel saber exatamente quando comea uma e termina a outra). Assim soconstrudos os costumes de um povo, que por vezes no se lembra da origemexperimental de suas ideias e acha que elas so inatas, como dizia Descartes...

    9

  • 8/6/2019 A inveno do pensamento cientfico cederj

    10/22

    Mecanicismo X Sistema holstico

    Fritjof Capra

    Crise de percepo

    Uma das melhores fontes State of the World, uma srie de relatrios anuais editadospelo Worldwatch Institute, em Washington, D.C. [Esses relatrios esto sendotraduzidos pela Editora Globo sob o ttulo de Salve o Planeta!]Outras avaliaesexcelentes podem ser encontradas em Hawken (1993) e em Gore (1992). medida que o sculo se aproxima do fim, as preocupaes com o meio ambienteadquirem suprema importncia. Defrontamo-nos com toda uma srie de problemasglobais que esto danificando a biosfera e a vida humana de maneira alarmante quepode logo se tornar irreversvel. Temos ampla documentao a respeito da extenso eda importncia desses problemas.

    Quanto mais estudamos os principais problemas de nossa poca, mais somos levados aperceber que eles no podem ser entendidos isoladamente. So problemas sistmicos,o que significa que esto interligados e so interdependentes. Por exemplo, somenteser possvel estabilizar a populao quando a pobreza for reduzida em mbito mundial.A extino de espcies animais e vegetais numa escala macia continuar enquanto ohemisfrio meridional estiver sob o fardo de enormes dvidas. A escassez dos recursos ea degradao do meio ambiente combinam-se com populaes em rpida expanso, oque leva ao colapso das comunidades locais e violncia tnica e tribal, que se tornou acaracterstica mais importante da era ps-Guerra Fria.

    Em ltima anlise, esses problemas precisam ser vistos exatamente como diferentesfacetas de uma nica crise, que , em grande medida, uma crise de percepo. Eladeriva do fato de que a maioria de ns, e em especial nossas grandes instituies

    sociais, concordam com os conceitos de uma viso de mundo obsoleta, uma percepoda realidade inadequada para lidarmos com nosso mundo superpovoado e globalmenteinterligado.

    Hsolues para os principais problemas de nosso tempo, algumas delas at mesmosimples. Mas requerem uma mudana radical em nossas percepes, no nossopensamento e nos nossos valores. E, de fato, estamos agora no princpio dessamudana fundamental de viso do mundo na cincia e na sociedade, uma mudana deparadigma to radical como o foi a revoluo copernicana. Essa compreenso, porm,ainda no despontou entre a maioria dos nossos lderes polticos. O reconhecimento deque necessria uma profunda mudana de percepo e de pensamento para garantir anossa sobrevivncia ainda no atingiu a maioria dos lderes das nossas corporaesnem os administradores e os professores das nossas grandes universidades.

    Nossos lderes no s deixam de reconhecer como diferentes problemas que estointer-relacionados; eles tambm se recusam a reconhecer como as suas assimchamadas solues afetam as geraes futuras. A partir do ponto de vista sistmico, asnicas solues viveis so as solues "sustentveis". O conceito de sustentabilidadeadquiriu importncia-chave no movimento ecolgico e realmente fundamental. LesterBrown, do Worldwatch Institute, deu uma definio simples, clara e bela: "umasociedade sustentvel aquela que satisfaz suas necessidades sem diminuir asperspectivas das geraes futuras " (Brown, 1981).

    Em resumo, este o grande desafio do nosso tempo: criar comunidades sustentveis isto , ambientes sociais e culturais onde podemos satisfazer as nossas necessidades easpiraes sem diminuir as chances das geraes futuras.

    10

  • 8/6/2019 A inveno do pensamento cientfico cederj

    11/22

    A mudana de paradigma

    Na minha vida de fsico, meu principal interesse tem sido a dramtica mudana de concepes e de ideias que ocorreu na Fsica durante as trs primeiras dcadas do sculoXX, e ainda est sendo elaborada em nossas atuais teorias da matria. As novasconcepes da Fsica tm gerado uma profunda mudana em nossas vises de mundo:da viso de mundo mecanicista de Descartes e de Newton para uma viso holstica,ecolgica.

    A nova viso da realidade no era, em absoluto, fcil de ser aceita pelos fsicos nocomeo do sculo. A explorao dos mundos atmico e subatmico colocou-os emcontato com uma realidade estranha e inesperada. Em seus esforos para apreenderessa nova realidade, os cientistas ficaram dolorosamente conscientes de que suasconcepes bsicas, sua linguagem e todo o seu modo de pensar eram inadequadospara descrever os fenmenos atmicos. Seus problemas no eram meramenteintelectuais; alcanavam as propores de uma intensa crise emocional e, poder-se-iadizer, at mesmo existencial. Eles precisaram de um longo tempo para superar essa

    crise, mas, no fim, foram recompensados com profundas introvises sobre a naturezada matria e de sua relao com a mente humana (Capra, 1975).

    As dramticas mudanas de pensamento que ocorreram na Fsica no princpio do sculoXX vm sendo amplamente discutidas por fsicos e filsofos durante mais de cinquentaanos. Elas levaram Thomas Kuhn noo de um "paradigma" cientfico, definido como"uma constelao de realizaes concepes, valores, tcnicas etc. compartilhadapor uma comunidade cientfica e utilizada por essa comunidade para definir problemas esolues legtimos" (Kuhn, 1962). De acordo com Kuhn, mudanas de paradigmasocorrem sob a forma de rupturas descontnuas e revolucionrias, denominadas"mudanas de paradigma".

    Hoje, vinte e cinco anos depois da anlise de Kuhn, reconhecemos a mudana de

    paradigma em Fsica como parte integral de uma transformao cultural muito maisampla. A crise intelectual dos fsicos qunticos na dcada de 1920 espelha-se hojenuma crise cultural semelhante, porm muito mais ampla. Consequentemente, o queestamos vendo uma mudana de paradigmas que est ocorrendo no apenas nombito da cincia, mas tambm na arena social, em propores ainda mais amplas(Capra, 1982). Para analisar essa transformao cultural, generalizei a definio deKuhn de um paradigma cientfico at obter um paradigma social, que defino como "umaconstelao de concepes, de valores, de percepes e de prticas compartilhados poruma comunidade, que d forma a uma viso particular da realidade, a qual constitui abase da maneira como a comunidade se organiza" (Capra, 1986).

    O paradigma que est agora retrocedendo dominou a nossa cultura por vrias centenasde anos, durante as quais modelou nossa moderna sociedade ocidental e influenciou

    significativamente o restante do mundo. Esse paradigma consiste em vrias ideias evalores entrincheirados, entre os quais a viso do universo como um sistema mecnicocomposto de blocos de construo elementares, a viso do corpo humano como umamquina, a viso da vida em sociedade como uma luta competitiva pela existncia, acrena no progresso material ilimitado, a ser obtido por intermdio de crescimentoeconmico e tecnolgico, e por fim, mas no menos importante a crena em queuma sociedade na qual a mulher , por toda parte, classificada em posio inferior dohomem uma sociedade que segue uma lei bsica da natureza. Todas essas suposiestm sido decisivamente desafiadas por eventos recentes. E, na verdade, estocorrendo, na atualidade, uma reviso radical dessas suposies.

    11

  • 8/6/2019 A inveno do pensamento cientfico cederj

    12/22

    Ecologia profunda

    O novo paradigma pode ser chamado de viso de mundo holstica, que concebe omundo como um todo integrado e no como uma coleo de partes dissociadas. Podetambm ser denominado viso ecolgica, se o termo ecolgica for empregado numsentido muito mais amplo e mais profundo que o usual. A percepo ecolgica profundareconhece a interdependncia fundamental de todos os fenmenos, e o fato de que, enquanto indivduos e sociedades, estamos todos encaixados nos processos cclicos da natureza (e, em ltima anlise, somos dependentes desses processos).

    Os dois termos, holstico e ecolgico, diferem ligeiramente em seus significados, eparece que holstico um pouco menos apropriado para descrever o novo paradigma.Uma viso holstica, digamos, de uma bicicleta significa ver a bicicleta como um todofuncional e compreender, em conformidade com isso, as interdependncias das suaspartes. Uma viso ecolgica da bicicleta inclui isso, mas acrescenta-lhe a percepo decomo a bicicleta est encaixada no seu ambiente natural e social de onde vm asmatrias-primas que entram nela, como foi fabricada, como seu uso afeta o meio

    ambiente natural e a comunidade pela qual ela usada, e assim por diante. Essadistino entre holstico e ecolgico ainda mais importante quando falamos sobresistemas vivos, para os quais as conexes com o meio ambiente so muito mais vitais.

    O sentido em que eu uso o termo ecolgico est associado a uma escola filosficaespecfica e, alm disso, a um movimento popular global conhecido como EcologiaProfunda, que est rapidamente adquirindo proeminncia (Devall e Sessions, 1985). Aescola filosfica foi fundada pelo filsofo noruegus Arne Naess no incio da dcada de1970, com sua distino entre ecologia rasa e ecologia profunda. Essa distino hojeamplamente aceita como um termo muito til para se referir a uma das principaisdivises dentro do pensamento ambientalista contemporneo.

    A ecologia rasa antropocntrica centralizada no ser humano. Ela v os seres

    humanos como situados acima ou fora da natureza, como fonte de todos os valores, eatribui apenas um valor instrumental, ou de uso", natureza. A ecologia profunda nosepara seres humanos ou qualquer outra coisa do meio ambiente natural. Ela v omundo no como uma coleo de objetos isolados, mas como uma rede de fenmenosque esto fundamentalmente interconectados e so interdependentes. A ecologiaprofunda reconhece o valor intrnseco de todos os seres vivos e concebe os sereshumanos apenas como um fio particular na teia da vida.

    Em ltima anlise, a percepo da ecologia profunda espiritual ou religiosa. Quando aconcepo de esprito humano entendida como o modo de conscincia no qual oindivduo tem sensao de pertinncia, de conexidade com o cosmos como um todo,torna-se claro que a percepo ecolgica espiritual na sua essncia mais profunda.No , pois, de surpreender o fato de que a nova viso emergente da realidade baseada

    na percepo ecolgica profunda consistente com a chamada filosofia perene dastradies espirituais, quer falemos a respeito da espiritualidade dos msticos cristos, dados budistas, ou da filosofia e cosmologia subjacentes s tradies nativas norte-americanas (Capra e Stendl-Rast, 1991).

    H outro modo pelo qual Arne Naess caracterizou a ecologia profunda. "A essncia daecologia profunda", diz ele, "consiste em formular questes mais profundas" (citado emDevall e Sessions, 1985, p. 74). tambm essa a essncia de uma mudana deparadigma. Precisamos estar preparados para questionar isoladamente cada aspecto dovelho paradigma. Eventualmente, no precisaremos nos desfazer de tudo, mas antes desabermos isso devemos estar dispostos a questionar tudo. Portanto, a ecologiaprofunda faz perguntas profundas a respeito dos prprios fundamentos da nossa visode mundo e do nosso modo de vida modernos, cientficos, industriais, orientados para o

    crescimento e materialistas. Ela questiona todo esse paradigma com base numa

    12

  • 8/6/2019 A inveno do pensamento cientfico cederj

    13/22

    perspectiva ecolgica: a partir da perspectiva de nossos relacionamentos uns com osoutros, com as geraes futuras e com a teia da vida da qual somos parte.

    Referncia

    Capra, Fritjof.A teia da vida. So Paulo: Cultrix, 2001.

    Este texto foi extrado do Captulo 1 (Ecologia profunda um novo paradigma) daParte Um (O contexto cultural), p. 23-26, do livro A Teia da Vida, de 1996. Da areferncia ao final do sculo. O ttulo deste artigo foi criado pelo professor Marcos AndrReis de Amorim a fim de se encaixar na organizao da disciplina.

    13

  • 8/6/2019 A inveno do pensamento cientfico cederj

    14/22

    A trajetria epistemolgica da Cincia

    Charles Feitosa

    Filosofia e cincia: ligaes perigosas

    No sculo XX, a cincia considerada o discurso mais eficaz sobre a realidade, e afilosofia, apenas uma cincia auxiliar, uma coadjuvante na busca do conhecimento.Todavia, nem sempre a filosofia teve esse papel subordinado cincia. A filosofia foidurante muito tempo, ela mesma, o discurso mais completo e rico sobre o real. J foiconsiderada cincia, e no uma cincia qualquer, mas a rainha de todas as cincias. Aimagem dos primeiros pensadores, como Tales, Pitgoras, Plato ou Aristteles,coincidia com a dos cientistas, pois eles eram tambm fsicos, botnicos, qumicos,astrnomos etc. Fazer filosofia era a forma mais refinada de estudar o mundo.

    Para fazer cincia na Antiguidade era necessrio pensar filosoficamente, quer dizer,contemplar e refletir dedutivamente. Com o passar do tempo, ocorreu um processo dedogmatizao, isto , aos poucos a atividade de pensar foi substituda pelo merocomentrio aos escritos dos filsofos antigos, principalmente os de Plato e Aristteles.Na Idade Mdia, a busca do conhecimento no podia entrar em choque com o rganon(conjunto de textos aristotlicos) ou com a Bblia (conjunto de escrituras sagradas),ambos considerados fontes de verdades absolutas. A assim chamada cincia modernasurgiu como um ato de resistncia contra o dogmatismo, contra a autoridade atribudaao aristotelismo e f religiosa. Buscando maior autonomia na investigao do mundo,instalaram-se um novo modelo de cincia e um novo modelo de mundo, inaugurando oque se chamou revoluo cientfica dos sculos XVI e XVII.

    A cincia moderna

    A famosa revoluo copernicana, determinando a mudana do modelo geocntrico (quepressupe a Terra como centro do sistema do universo) para o sistema heliocntrico(que coloca o Sol como centro do sistema planetrio) o principal smbolo da passagemda cincia antiga para a cincia moderna. A imagem religiosa que colocava o homemcomo o mximo da criao comeou a ser abalada. A nova cincia distingue-se daantiga por uma mudana de mtodo e de objetivos. Fazer cincia, a partir do sculoXVI, implica no apenas descrever como as coisas so, mas principalmente como ascoisas funcionam. O mundo passa a ser visto como uma espcie de mecanismo cujaestrutura pode ser decifrada atravs da Matemtica. Segundo Galileu Galilei (1564-1642) um dos fundadores da cincia moderna , real tudo aquilo que possa sermedido e quantificado. Outro progresso importante a substituio do mtodo antigo

    da deduo pela induo. Ao invs de partir de leis gerais (do tipo "todos os homensso mortais") para os casos particulares ("Scrates mortal"), parte-se agora de casosparticulares ("em dez experimentos a gua ferveu a 100C") e vai-se ascendendo at asleis de mxima generalidade ("A temperatura de fervura da gua sempre 100C").Sero considerados verdadeiros somente os discursos que possam ser comprovadospela experincia.

    A principal consequncia da revoluo moderna foi a separao da cincia frente filosofia. A Filosofia clssica perdeu o lugar de destaque como rainha do saber e passoua ser considerada um obstculo para o progresso da civilizao. A cincia assume oposto de expresso mxima da civilizao. Trata-se de uma crise sem precedentes paraa Filosofia, que precisou reavaliar seus pressupostos e suas metas. J que no era maispossvel dizer a verdade sobre as coisas, afinal essa tarefa estava reservada agora para

    a cincia, ento ao menos a filosofia poderia fazer algo que a cincia no pode fazer:pensar os fundamentos da prpria verdade.

    14

  • 8/6/2019 A inveno do pensamento cientfico cederj

    15/22

    Na modernidade, a Filosofia comeou a se tornar epistemologia (do grego episteme =cincia), quer dizer, teoria do conhecimento cientfico. Essa transformao se manifesta,por exemplo, na obra do filsofo ingls John Locke (1632-1704). No seu Ensaio sobre oEntendimento Humano (1690), ele realiza uma investigao sobre a natureza das ideiasna nossa mente, afirmando que elas no so inatas (no nascemos com elas), mas tmsua origem na nossa experincia sensvel com o mundo. A questo da Filosofia no

    mais buscar o conhecimento da verdade, mas buscar a verdade do prprioconhecimento. Um pouco mais tarde, o filsofo alemo Kant estabeleceu que filosofiano deve mais produzir saber, mas se tornar um saber do saber, instaurando umaespcie de "tribunal da razo", "que tem por fim no o aumento dos nossosconhecimentos, mas a retificao dos mesmos" (Crtica da Razo Pura [1781],Introduo, VII). O objetivo da Filosofia passa a ser ento ajudar a evitar que o erroirrompa no trabalho do cientista.

    Teorias alternativas sobre a Cincia

    Se a cincia moderna surgiu como um protesto contra a autoridade das velhas

    doutrinas, no final do sculo XIX ocorreu novo processo de dogmatizao, parecido comaquele contra o qual a cincia moderna havia se oposto, s que dessa vez em tornodela mesma. Comea a crescer uma crena na infalibilidade do mtodo cientfico (assimcomo antes acreditava-se na infalibilidade papal). A cincia arroga para si a pretensode ser a nica forma de descrio neutra e objetiva do real. Surge o positivismo, umacorrente filosfica em torno do filsofo francs Augusto Comte (1798-1857),defendendo que o mtodo cientfico deva ser estendido a todos os campos da atividadehumana, inclusive arte e religio.

    Na esteira do positivismo surge, no incio do sculo XX, o "positivismo lgico", a partirdo trabalho de filsofos como Moritz Schlick (1882-1936), Rudolf Carnap (1891-1970) eo jovem Ludwig Wittgenstein (1889-1951), que defendiam ento como nica tarefa daFilosofia a anlise da linguagem cientfica. A assim chamada "Filosofia analtica" tornou-

    se uma das vertentes mais importantes do pensamento contemporneo e contribuiupara esclarecer a ambiguidade de certos termos filosficos, como "ser", "substncia" ou"qualidade", embora tenha cado s vezes em posies radicais ao rejeitar comodesprovidos de sentido todos os enunciados que no pudessem ser comprovadosempiricamente, incluindo arte, religio, histria etc.

    Entretanto, onde h dogmatizao aparecem tambm os atos de resistncia ou osmovimentos de desdogmatizao. O sculo XX assistiu emergncia de "epistemologiasalternativas", ou seja, a reflexes excntricas sobre a cincia. Entre os expoentes dessanova tendncia esto o filsofo francs Gaston Bachelard (1884-1962), autor de AFormao do Esprito Cientfico (1938), um crtico radical das noes de real ou razoabsolutos, e, mais recentemente, Thomas Kuhn, autor de A Estrutura das RevoluesCientficas (1963), que defende a tese de que as revolues cientficas se do s vezes

    de forma incomensurvel, quer dizer, no apenas pela razoabilidade da argumentao,mas por fora do acaso, de crena, de autoridade e at de razes estticas. Essas novas"teorias do conhecimento" no pretendem mais denunciar ou alertar a cincia contra operigo da irracionalidade, como na modernidade, mas sim mostrar que h sempre umaspecto irracional em tudo que o homem faz, at mesmo na cincia. A relao entre aFilosofia e a cincia muda mais uma vez na era contempornea. A proposta agora no simplesmente servir, mas fazer um rudo incmodo como um zumbido no ouvido docientista, como que lembrando a ele que seu discurso no est totalmente livre deideologias polticas, sociais e culturais. No se trata de diminuir o valor da cincia,responsvel por inmeros avanos tecnolgicos, mas de relativizar a sua pretensasupremacia.

    Um exemplo de epistemologia alternativa a anlise do filsofo austraco PaulFeyerabend acerca do Estranho caso da Astrologia. Em 1975, foi publicado nos EstadosUnidos um manifesto contra a Astrologia, assinado por 186 renomados cientistas, entre

    15

  • 8/6/2019 A inveno do pensamento cientfico cederj

    16/22

    fsicos, matemticos, qumicos, alm de 18 ganhadores do Prmio Nobel. Feyerabenddesvela o carter autoritrio da declarao pblica dos cientistas ao mostrar que ela nose baseia em argumentos ou no conhecimento detalhado da matria por parte dossignatrios, mas sim num profundo preconceito e arrogncia; muitos deles confessaramem entrevistas BBC de Londres nunca terem estudado Astrologia. At os telogoscatlicos medievais procediam de forma mais cuidadosa na investigao das heresias,

    pois, segundo o filsofo austraco: "conheciam a matria, conheciam os adversrios,expunham corretamente suas doutrinas e argumentavam contra elas utilizando todas asinformaes de que dispunham na poca" (A Cincia em uma Sociedade Livre[1978], p.106).

    A cincia pensa?

    O objetivo de Feyerabend no era defender a Astrologia, mas denunciar tanto aprepotncia de certos setores da cincia moderna como a crena ingnua da sociedadena sua imparcialidade. Ainda segundo o autor, o prprio cidado que devesupervisionar o trabalho da cincia. Comisses de no especialistas "devem analisar

    caso por caso a segurana dos reatares nucleares e ter acesso a todas as informaesde interesse. Devem examinar se a teoria cientfica merecedora da exclusivaautoridade terica, do acesso aos fundos de financiamento e dos privilgios demutilao que desfruta, ou se, pelo contrrio, os mtodos curativos no cientficos noresultam superiores com mais frequncia" (op. cit., p. 112). Exercer um pensamentocrtico significa no deixar que a ltima palavra fique com os experts mas sim com osque esto mais diretamente interessados: os cidados.

    Por fim, preciso mencionar uma posio ainda mais radical do que a das chamadas"epistemologias alternativas". Heidegger explode de vez com as relaes perigosasentre Filosofia e Cincia na era contempornea ao afirmar provocativamente, em umaentrevista de 1969 para uma tev alem, que "a cincia no pensa". A cincia moderna capaz de fazer clculos, contas, medies, mas no capaz de investigar seus

    prprios pressupostos, a saber, a crena em um real absoluto e a imagem do homemcomo um "animal racional" (ver captulo 6, item 1). Para Heidegger, o mundo no esttico e homogneo e a racionalidade no necessariamente a parte mais nobre dohomem; por isso, a cincia tambm no a mxima manifestao da cultura.

    A questo que envolve a clonagem no , como se acredita, a ameaa do fim dohomem, mas talvez seja exatamente o contrrio, talvez seja a sua perpetuao comoser empenhado em controlar racionalmente a natureza sua volta e a natureza que hdentro de si. Talvez no sejam os clones, mas sim ns mesmos, os monstrosdesviantes, e ainda no nos demos conta disso. Se quisermos impor limites cincia,no bastar apenas organizar protestos, escrever cartas, fundar comisses de tica eorganizaes no-governamentais. Embora isso tudo seja muito importante, serpreciso tambm repensar a imagem que temos do ser humano. O homem pode muito

    mais do que simplesmente conhecer e raciocinar; existem muitas outras possibilidadesde existir no mundo, mas essas possibilidades esto sendo encobertas e extintas emfuno da hegemonizao do discurso cientfico. S com um outro modelo de homem, aser construdo no futuro, que poderemos tambm construir uma outra cincia, menoscalculista e mais afetiva, uma cincia menos rigorosa e mais alegre; enfim, mais vital.

    16

  • 8/6/2019 A inveno do pensamento cientfico cederj

    17/22

    O mito do cientificismo e o mito da neutralidade cientfica

    Maria Lcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins

    Caractersticas do conhecimento cientfico

    Trataremos o conceito de cincia como se configurou a partir da Idade Moderna. Defato, as cincias da natureza so formas de conhecimento relativamente recente,porque surgiram no incio do sculo XVII, quando Galileu estabeleceu os novos mtodosde investigao da Fsica e da Astronomia. Posteriormente, outras cincias aprimoraramseus mtodos, com enorme repercusso sobre a tecnologia, de maneira que o novosaber ampliou a capacidade humana de agir sobre a natureza e transform-la.

    Ao afirmarmos que a cincia conquista recente da humanidade, a pergunta que nosvem mente a seguinte: afinal, em que tipo de conhecimento se baseavam os povosantes da Idade Moderna, uma vez que inevitvel reconhecer as inumerveis conquistas tcnicas das civilizaes, desde a descoberta do fogo e a inveno da roda?

    Pela histria constatamos as variadas tcnicas agrcolas, de pastoreio, de habitao ouvestimenta, enfim, de construo inteligente do habitat humano. Ou seja, antes dacincia da Fsica, diversos povos j sabiam como fazer flutuar embarcaes, comoconstruir palcios, aquedutos, sistemas de irrigao; antes da cincia da Biologia,identificavam inmeras doenas e seu tratamento; antes da Qumica, j havia oficinasde metalurgia e tingimento; antes da economia, os Estados sabiam como administrar osbens pblicos.

    As civilizaes constituram seu conhecimento e sua tcnica, portanto, a partir do bomsenso, pelo uso espontneo da razo e da imaginao, s vezes por ensaio e erro,outras por deduo ou induo. E em nenhum momento podemos desprezar o refi

    namento de certos saberes, capazes de produzir tcnicas surpreendentes.Se antigo o anseio humano de tornar o mundo inteligvel, o conhecimento que resultado bom senso, porm, sofre limitaes por ser muitas vezes impreciso, fragmentrio equase sempre preso a interesses prticos imediatos.

    Nesse caso, o que realmente mudou a partir do sculo XVII?

    O novo mtodo cientfico inaugurou uma forma de investigao muito mais rigorosa,que permite alcanar um conhecimento sistemtico, preciso e com maior objetividade.Vejamos melhor o que significam essas caractersticas gerais.

    A cincia aspira pela objetividade ao tentar superar as concluses subjetivas, marcadas

    pela nossa sensibilidade ou idiossincrasias. So objetivas porque a cincia umainstituio social em que as atividades de cada cientista, como membro de umacomunidade intelectual, esto sujeitas critica dos demais.

    Isso possvel porque os cientistas trabalham com hipteses testveis, que podem sersubmetidas experimentao, de modo a serem confirmadas ou rejeitadas. Ou seja, acincia constituda por corpos de conhecimento organizado cujas investigaessistemticas esto empiricamente fundamentadas pelo controle dos fatos.

    Uma vez confirmadas, as explicaes cientficas so formuladas em enunciados gerais(as leis) capazes de distinguir e separar certas propriedades e descobrir relaes entreoutras, unificando um grande nmero de fatos que pareciam dspares. Por exemplo,podemos perceber a relao entre o orvalho da noite e as gotculas que aparecem na

    garrafa retirada da geladeira; descobrir que a respirao uma forma de combusto;

    17

  • 8/6/2019 A inveno do pensamento cientfico cederj

    18/22

    relacionar o movimento da Lua, as mars, as trajetrias de projteis e a subida delquidos em tubos delgados.

    A objetividade da cincia tambm decorre da sua linguagem rigorosa. Enquanto naconversa do dia a dia usamos termos vagos, a cincia torna precisos seus conceitos,evitando ambiguidades. Esse rigor aumenta com a aplicao da Matemtica que

    transforma qualidades em quantidades e a utilizao de instrumentos de medida. bem verdade, veremos adiante, que nem todas as cincias atingem a preciso daMecnica, mas permanece em todas elas o ideal da sistematizao e da lgica rigorosa.

    Os mitos da cincia

    Nos ltimos quatro sculos, a cincia e a tecnologia foram capazes de alterar a face domundo, com mudanas to radicais como nunca se teve notcia antes. Era inevitvelque se criasse uma aura em torno desse saber e desse poder, fazendo surgir, l onde sepensava existirem apenas as luzes da razo, algumas regies "nebulosas": os mitos dacincia.

    Esses mitos atingem a sociedade como um todo tanto os leigos como os cientistas ,que se maravilha com o rigor do saber e a eficcia da tcnica, sempre que os critriosda razo instrumentalpassam a interferir nos domnios da vida afetiva, fazendo comque cincia e tcnica se desviem de sua destinao humana (...).

    O mito do cientificismo

    medida que a cincia se mostrou capaz de explicar os fenmenos de maneira maisrigorosa, ao fazer previses capazes de transformar o mundo passou a ser vista comoconhecimento superior. Por consequncia, minimizou-se a importncia dos demais

    modos de compreenso da realidade, como o mito, a religio, o bom senso da vidacotidiana, as intuies da vida afetiva, a arte e a filosofia, consideradas formas"menores" de conhecimento.

    A confiana total na cincia pressupe apenas a racionalidade cientfica, como se elafosse a nica resposta s perguntas que fazemos (como se todas as perguntas tivessemrespostas...). Essa valorizao da cincia comeou com a celebrao de seus primeirossucessos prticos e atingiu seu pice no sculo XIX, com o filsofo francs AugustoComte, fundador do positivismo (..).

    Os crticos desse exagerado otimismo acusam o cientificismo de ser responsvel poruma viso distorcida tanto da natureza quanto do ser humano. O filsofo alemo MaxWeber (1864-1920) percebeu que a formalizao da razo, tendo em vista o ren

    dimento e a eficcia, caminha ao lado do desencantamento do mundo, agora despojadode seus aspectos mticos, sagrados, para ser examinado como um mundo mecnico ecausal.

    Tambm os pensadores da Escola de Frankfurt, como Horkheimer e Adorno, criticarama predominncia da razo instrumental e controladora responsvel por reduzir aatuao humana ao campo da eficcia, alm de fazer esquecer que a relao do serhumano com a natureza no deve ser de dominao, mas de harmonia (...).

    O mito do especialista, fruto do cientificismo, tem como consequncia a tecnocracia,segundo a qual apenas o tcnico competente capaz de deciso; ou seja, desse mito sepode concluir que "saber poder". Ora, onde o conhecimento cientfico no se irmanacom a sabedoria sempre haver riscos de opresso.

    18

  • 8/6/2019 A inveno do pensamento cientfico cederj

    19/22

    O mito da neutralidade cientfica

    A cincia um tipo de saber capaz de superar a subjetividade do prprio cientista e ospreconceitos do senso comum. O rigor do mtodo permite atingir alto grau deobjetividade, porque seus procedimentos e produtos podem ser verificados com isenopela comunidade cientfica.

    Em decorrncia, muitos pensam que a cincia um saber neutro, ou seja, que aspesquisas cientficas no sofrem influncia social ou poltica e visam apenas aoconhecimento "puro" e desinteressado. Por considerar a atividade cientfica margemdas questes histricas, no caberia ao cientista discutir o uso poltico de suas descobertas. O cientista se ocuparia com a descrio dos fenmenos e no com juzos devalor.

    No entanto, sabemos que no bem assim: a humanidade corre riscos diante do"aprendiz de feiticeiro" incapaz de discutir os fins a que se destinam suas pesquisas.

    A bomba atmica no pode ser apenas o resultado do saber sobre a energia atmicanem da simples tcnica de produzir exploso; trata-se de um saber e de uma tcnicaque dizem respeito vida e morte de seres humanos. As indagaes ticas seestendem a inmeros outros campos, refletindo-se, por exemplo, na discusso sobre aclonagem de animais e a possibilidade de essa tcnica ser aplicada aos seres humanos.Se esta ltima vem carregada de temores, a utilizao de clulas-tronco para finsteraputicos tem despertado a esperana para o tratamento de doenas at entoincurveis.

    Essa ambiguidade se reflete em inmeros setores. Se podemos reconhecer os benefciosdo progresso, nem por isso deixamos de indagar sobre os valores do indivduo "urbanoe civilizado" que sofre de solido e vtima de desconfortos como a poluio ambiental.Isso nos leva a questionar o mito do progresso, que justifica as iluses e os

    preconceitos dos povos "civilizados" ao se julgarem superiores aos "menosdesenvolvidos". No em nome do progresso que as tribos indgenas tm sidosistematicamente expulsas dos seus territrios? Ou que as florestas so devastadas esubstitudas por pastos? Ou que a produo de alimentos bsicos desprezada peloprevalecimento do agronegcio das monoculturas para exportao?

    "No momento atual, as prticas de controle da natureza esto nas mos doneoliberalismo; assim, servem a determinados valores e no a outros. Servem aoindividualismo em vez de solidariedade; propriedade particular e ao lucro em vez deaos bens sociais; ao mercado em vez de ao bem-estar de todas as pessoas; utilidadeem vez de ao fortalecimento da pluralidade de valores; liberdade individual e eficcia econmica em vez de libertao humana; aos interesses dos ricos em vez deaos direitos dos pobres; democracia formal em vez de democracia participativa; aos

    direitos civis e polticos sem qualquer relao dialtica com os direitos sociais,econmicos e culturais" (Hugh Lacey).

    As altas cifras destinadas s pesquisas exigem o apoio financeiro de instituiespblicas e privadas, desejosas de subvencionar os trabalhos que mais lhes interessem eque nem sempre esto focados na sade e no bem-estar das pessoas. o caso, porexemplo, da "indstria da guerra", que, desde h muito, alimenta a corridaarmamentista e exige o constante desenvolvimento da cincia e da tecnologia no campomilitar.

    Diante dessas questes, no h como sustentar a neutralidade da cincia. Ainda queseus procedimentos metodolgicos busquem a objetividade, cabe ao cientista aresponsabilidade social de indagar sobre os fins a que se destinam suas descobertas,

    sem alegar iseno, uma vez que a produo cientfica no se realiza fora de umdeterminado contexto social e poltico.

    19

  • 8/6/2019 A inveno do pensamento cientfico cederj

    20/22

    Referncia

    ARANHA, Maria Lcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. SoPaulo: Moderna, 1992.

    Este texto trecho do captulo 12 (O conhecimento cientfico) da primeira parte (Oque cincia) (Aranha; Martins, 1992, p. 172-174). O ttulo foi criado pelo professor

    Marcos Andr Reis de Amorim para se encaixar na organizao do curso.

    20

  • 8/6/2019 A inveno do pensamento cientfico cederj

    21/22

    Contra o dogmatismo na cincia e na vida

    Franois Jacob

    Uma poca ou uma cultura caracteriza-se mais pela natureza das questes que colocado que pela extenso de seus conhecimentos. Este livro (A lgica da vida) umahistria das questes formuladas a respeito da hereditariedade, mais do que dasrespostas que lhe foram dadas. a histria das tentativas de colocar novas questes,ou melhor, de colocar as antigas questes de maneira nova. E, por essequestionamento incessantemente remanejado durante quatro sculos, assiste-se gradual transformao da maneira de considerar a vida e o ser humano. Eles se tornamobjeto de pesquisa e no mais de revelao.

    Ao contrrio do que frequentemente se pensa, tanto o esprito quanto o produto soimportantes na cincia. Tanto a aceitao da mudana, o primado da crtica, asubmisso ao imprevisto, por mais embaraoso que seja, quanto o resultado, por maisnovo que seja. H muito tempo os cientistas renunciaram ideia de uma verdadeltima e intangvel, imagem exata de uma "realidade" que estaria a postos apenas

    esperando o momento de ser revelada. J sabem que devem se contentar com oparcial, com o provisrio. Tal procedimento frequentemente vai de encontro tendncianatural do esprito humano, que busca unidade e coerncia em sua representao domundo sob seus mais diversos aspectos. De fato, esse conflito entre o universal e olocal, entre o eterno e o provisrio reaparece periodicamente em certas polmicas. Porexemplo, a que coloca os partidrios da criao contra os da evoluo, que utiliza osmesmos argumentos j usados por Huxley e Wilberforce, Agassiz e Gray. Os primeirossempre encontram, no mais nfimo detalhe da natureza, o sinal que provainfalivelmente a concluso a que eles no imaginam ser possvel deixar de subscrever.Os outros procuram incansavelmente nesta mesma natureza traos de acontecimentosque frequentemente no foram deixados, com o objetivo de reconstruir aquilo que elesquerem que seja no um mito, mas uma histria, uma teoria que evolui. Este dilogode surdos ope eternamente os que recusam uma viso universal e imposta do mundo

    e os que no podem viver sem ela.

    H alguns anos os cientistas vm sendo objeto de censura. So acusados de nopossurem corao nem conscincia, de no se interessarem pelo resto da humanidade;e mesmo de serem indivduos perigosos que no hesitam em descobrir e utilizar meiosde destruio e de coero terrveis. Exagera-se sua importncia. A proporo depessoas imbecis e sem carter uma constante presente em todas as amostras de umapopulao, sejam compostas por cientistas ou por agentes de seguro, por escritores oupor camponeses, por padres ou por polticos. E, apesar do Dr. Frankenstein e do Dr.Strangelove, as catstrofes da histria tm sido fruto mais da atuaco de padres e depolticos que de cientistas.

    Pois no somente o lucro que faz com que os homens se matem. tambm o

    dogmatismo. Nada mais perigoso que a certeza de ter razo. Nada causa tantadestruio quanto a obsesso de uma verdade considerada absoluta. Todos os crimesda histria so consequncia de algum fanatismo. Todos os massacres foram realizadospor virtude, em nome da religio verdadeira, do nacionalismo legtimo, da polticaidnea, da ideologia correta; em suma, em nome do combate a Sat. A frieza e aobjetividade, frequentemente apontadas como caractersticas condenveis doscientistas, talvez sejam mais convenientes que a febre e a subjetividade para tratar decertos assuntos humanos, pois no so as ideias da cincia que engendram as paixes.So as paixes que utilizam a cincia para sustentar sua causa. A cincia no leva aoracismo e ao dio. o dio que lana mo da cincia para justificar seu racismo. Pode-se censurar o entusiasmo ocasional de alguns cientistas na defesa de suas ideias. Masnenhum genocdio foi perpetrado para fazer uma teoria cientfica triunfar. (...) precisoque fique claro para cada pessoa que nenhum sistema explicar o mundo em todos os

    seus aspectos e detalhes. Ter ajudado na destruio da ideia de uma verdade intangvele eterna talvez seja uma das mais valiosas contribuies da metodologia cientfica.

    21

  • 8/6/2019 A inveno do pensamento cientfico cederj

    22/22

    Referncia

    JACOB, Franois.A lgica da vida. Rio de Janeiro: Graal, 1989.