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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros MENDONÇA FILHO, M., and NOBRE, MT., orgs. Política e afetividade: narrativas e trajetórias de pesquisa [online]. Salvador: EDUFBA; São Cristóvão: EDUFES, 2009. 368 p. ISBN 978-85-232- 0624-6. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org >. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. A invenção do humano como modo de assujeitamento Cecilia Maria Bouças Coimbra Lilia Ferreira Lobo Maria Livia do Nascimento

A Invenção Do Humano Como Modo de Assujeitamento

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O presente trabalho traz apenas alguns apontamentosiniciais, na intenção de suscitar o debate sobre a emergênciado conceito de humano, objeto tanto das ciências humanasquanto das práticas de individualização de sujeitos que, aomesmo tempo em que trouxeram novos valores para os corpose para vida das populações (FOUCAULT, 2002) produzirammodos assujeitados de estar-no-mundo.

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    MENDONA FILHO, M., and NOBRE, MT., orgs. Poltica e afetividade: narrativas e trajetrias de pesquisa [online]. Salvador: EDUFBA; So Cristvo: EDUFES, 2009. 368 p. ISBN 978-85-232-0624-6. Available from SciELO Books .

    All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported.

    Todo o contedo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, publicado sob a licena Creative Commons Atribuio - Uso No Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 No adaptada.

    Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, est bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.

    A inveno do humano como modo de assujeitamento

    Cecilia Maria Bouas Coimbra Lilia Ferreira Lobo

    Maria Livia do Nascimento

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    A inveno do humano como modo de assujeitamento

    Cecilia Maria Bouas Coimbra Lilia Ferreira Lobo

    Maria Livia do Nascimento

    (...) como se d ao longo da histria a transformao de seres humanos em sujeitos de tal forma assujeitados aos poderes dominantes que abrem mo da expanso da vida em troca de uma iluso de paz e segurana? Ana Monteiro

    O presente trabalho traz apenas alguns apontamentos iniciais, na inteno de suscitar o debate sobre a emergncia do conceito de humano, objeto tanto das cincias humanas quanto das prticas de individualizao de sujeitos que, ao mesmo tempo em que trouxeram novos valores para os cor-pos e para vida das populaes (FOUCAULT, 2002) produzi-ram modos assujeitados de estar-no-mundo. Tomando como solo a justificativa da defesa dos direitos humanos, trata-se de priorizar a inveno do humano, tomado como natureza uni-versal, e dos modos de assujeitamento, colados concepo humanista da existncia ou talvez pudssemos dizer sub-existncia ou simplesmente sobrevivncia. Ainda ouvindo os ecos das comemoraes dos 60 anos da Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948 entendemos ser importante problematizar alguns fundamentos histricos, filosficos e polticos das produes que vm sendo naturalizadas no co-tidiano das lutas por esses mesmos direitos. comum consi-der-los como frutos de uma evoluo em direo ao progres-

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    so do chamado gnero humano, em direo elevao das sensibilidades do homem civilizado. Entendemos, portanto, ser importante colocar em anlise alguns termos que, de to evidentes e repetidos, passam a ser percebidos como verdades tcitas, cabais, inquestionveis, a-histricas, atribuindo-lhes determinadas essncias.

    Se, por um lado, a Declarao dos Direitos Humanos no ser aqui considerada como um marco histrico que tenha efetivamente inaugurado novas prticas para os direitos; por outro, no se pode negar que continua sendo um problema em nossa atualidade. Trata-se de uma questo que se repete indefinidamente e por isso constitui-se em um perigo que nos espreita no cotidiano. A esse respeito, Ewald (1997), a prop-sito do pensamento de Foucault, nos diz:

    O problema do presente que ele se repete indefinidamen-te. Foucault, com frequncia, designa essa repetio como um perigo, sem que (...) seja definido como repetio do mesmo (...); e Foucault colocou, ainda, como (...) impera-tivo tico combater esse perigo. Se h uma linha tica em Foucault, e ele a tem, ela est fundamentalmente ligada ideia de que preciso combater o perigo da repetio. (...) o presente aquilo que deve ser interrompido. (...) Dividir o presente fazer com que ele seja um passado e um porvir, da a noo de futuro. O porvir, diz ele, a maneira pela qual transformamos em verdade o que est em movimento, o que dvida (p. 204/205) 1.

    Este presente, que se renova na repetio das prticas dis-cursivas e no discursivas, e vem tornando os princpios dos di-reitos humanos, cnones sagrados, nos impulsiona a pens-los como urgncia, tendo em vista que hegemnicos, apresentam-se como verdades absolutas e universais que devem conduzir tudo e todos.

    Ainda, segundo Foucault (1979), a histria clssica e ofi-cial que nos tem sido ensinada concebida como uma marcha contnua dos fatos histricos em direo a uma teleologia que

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    representaria o progresso, a civilizao, ou mesmo, o fim da histria. Assim, estgios antecedentes nos levariam obrigato-riamente a um futuro de perfeio ou aproximao gradativa do que deve ser a perfeio. O mundo burgus nos faz acreditar nas qualidades da era dos direitos, desqualificando tudo o que a precedeu e colocando como marco desses direitos a Re-voluo Francesa de 1789. Ou seja, o nosso presente no mundo ocidental a partir de certos parmetros valorativos julga e hierarquiza as diferentes histrias dos povos, inclusive a nossa prpria histria, em tudo que antecedeu quela poca como sendo no civilizado. Direitos Humanos: liberdade, igualdade e fraternidade? Os ideais da Revoluo Francesa igualdade, liberdade e fraternidade palavras de ordem da burguesia em ascenso, tornaram-se, a partir do fim do sculo XVIII, os fun-damentos dos chamados direitos humanos. Produzidos pelo ca-pitalismo como um dado natural, tornaram-se, portanto, sin-nimos de direitos inalienveis da essncia do que ser homem.

    Tem-se, ento, um determinado rosto para os direitos hu-manos, desde a primeira grande declarao produzida no m-bito da luta realizada pela burguesia contra a aristocracia fran-cesa, em 1789, at a mais recente declarao de 1948, quando, aps a Segunda Grande Guerra Mundial, foi criada a Organi-zao das Naes Unidas (ONU) em pleno perodo da chamada guerra fria. Esto presentes nessas duas grandes declaraes - que se tornaram marcos da histria oficial da humanidade os direitos, em realidade, reservados e garantidos para as elites. Um dos mais defendidos em nosso mundo, considerado sagra-do e inalienvel, o direito propriedade. Portanto, torna-se fundamental colocar em anlise a lgica presente nos trs prin-cpios trazidos e constantemente repetidos pelo capitalismo: liberdade, igualdade e fraternidade. A liberdade - carro chefe desses princpios - profundamente vinculada ao chamado di-reito da propriedade uma prerrogativa somente daqueles que a possuem.

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    No mundo atual, gira-se nica e exclusivamente em tor-no do capital, propriedade de alguns poucos se comparada grande misria mundial. A propriedade, imanente ao capital, ser a mola mestra das crises, tendo em vista que o capitalis-mo tem para si, como realidade ontolgica, a necessidade da crise para se reproduzir de vrias maneiras; inovar-se para manter-se a custa dos desempregos e do aumento da misria da maioria da populao mundial, situao que assola o mun-do e a cada um de ns na atualidade. Essa imanncia entre liberdade e propriedade traz em seu bojo o modo individua-lista de existir que vem se tornando o grande modelo a ser se-guido. E quem no consegue ficar dentro desse modelo passa a ser naturalmente excludo o que, em geral, se justifica pela incompetncia e ausncia de capacidades do indivduo que, muitas vezes, ser includo como objeto das boas intenes da fraternidade.

    O lema da fraternidade, por sua vez, tem feito uma com-posio em nossa histria com a caridade religiosa, com a fi-lantropia cientfica e com o assistencialismo de Estado. H um potente processo de subjetivao produzindo o territrio do faltoso, aquele que sempre necessitar da boa vontade dos cidados de bem, da sua caridade, de seu trabalho voluntrio e das polticas pblicas, configurando a lgica do ai de voc se no fosse eu. O que isso traz? A manuteno da misria, o apaziguamento das rebeldias, quando no a figura da vtima.

    Hoje, ao contrrio, todos so convocados a se posicionar afetivamente perante inmeras imagens de sofredores es-palhadas pelo planeta. O argumento principal o de que o excesso anestesiaria. (...) O que se teme que [isto] (...) pro-voque a passividade, que no ajamos para reduzir o sofri-mento do outro, quando poderamos e deveramos. (VAZ, S-CARVALHO e POMBO, 2002, p. 3) 2.

    No momento em que se produz a individualizao da res-ponsabilidade pelas misrias humanas, produz-se ao mesmo

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    tempo a invisibilidade de seus efeitos e de como vem se dando a fabricao de

    ... estratgias retricas de indivduos e grupos na cons-truo dos lugares de vtima e de causador. Susan Sontag conta que, na Guerra da Bsnia, os dois lados mostraram a mesma foto de crianas assassinadas e culparam o outro pela violncia (VAZ, S-CARVALHO e POMBO, 2002).

    No por acaso o artigo primeiro da Declarao de 1948 nos fala: todos os homens nascem livres e iguais em direitos. Sa-bemos que uns nascem mais iguais do que outros. Alguns me-recem, portanto, ser mais ajudados, produzindo assim uma hierarquia da vitimizao. Da mesma forma que a pobreza sempre foi dividida em o bom pobre digno o trabalhador e o mau pobre indigno o considerado vadio - as vtimas tam-bm esto dentro dessa classificao. necessrio saber qual vtima deve ser ajudada. Embora, em ambos os casos, sempre sero considerados pobres coitados. Isto quer dizer que a diferena foi reduzida desigualdade.

    O direito propriedade individual que, como vimos, mola mestra da liberdade, traz como efeito bvio a produo dessa desigualdade em todos os sentidos. Ao mesmo tempo em que essa produo se d, o capital exige para sua sobre-vivncia a homogeneizao das multiplicidades dos diferen-tes modos de perceber, agir, sentir, pensar e viver. Tudo vai sendo laminado, excluindo toda e qualquer diferena con-siderada como algo negativo. O que estamos afirmando a positividade da diferena que no pode ser pensada pelo par semelhana-dessemelhana, que tem sido, em nosso mundo, o fundamento da noo burguesa da igualdade. Ela ser sem-pre referida a um modelo, a uma norma ideal, comparada a um padro, remetendo-a a algo que lhe externo.

    A diferena que queremos afirmar produz-se, enquanto tal, sem quaisquer parmetros. Portanto, o capital o axioma

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    universal que faz funcionar a lgica da liberdade, da fraterni-dade e da igualdade em nosso mundo como valores transcen-dentes a serem atingidos, inventados na Revoluo Francesa como uma essncia universal do humano e que teria sido des-coberta pela luz da razo. Afirmam-se valores como se sem-pre estivessem latentes e que se manifestaram pela ao da crtica iluminista. Com a inveno da razo, o homem, e tudo que o caracteriza como uma natureza, passou a ser o centro do universo, uma referncia nica e superior. Assim, o que considerado fora dessa categoria de julgamento desquali-ficado, excludo, exterminado; o sobrevivente ou o mat-vel (AGAMBEN, 2002). Os direitos humanos, portanto, tm apontado quais so esses direitos e para quem eles devem ser concedidos. Ou seja, se tomados em sua perspectiva histrica, tanto o humano como o direito so construes das prticas sociais em determinados momentos, que produzem continua-mente esses objetos, subjetividades e saberes sobre eles.

    Construindo humanos, direitos e normas Deleuze (1992) nos aponta que os direitos humanos - desde sua formao tm servi-do para levar aos pobres em geral a iluso de participao, de que os bons cidados preocupam-se com o seu bem-estar, de que o hu-manismo dentro do capitalismo uma realidade e veio para ficar (COIMBRA, LOBO e NASCIMENTO, 2008). Entretanto, sem-pre estiveram fora desses direitos vida e dignidade os segmen-tos despossudos, percebidos como marginais: os deficientes de todos os tipos, os desviantes, os miserveis, dentre muitos outros. Para estes, efetivamente, os direitos, assim como o que se alardeia como plena dimenso humana, sempre foram e continuam sendo negados, pois tais segmentos foram produzidos para serem vistos como inferiores, pertencentes a uma humanidade menorizada. No h dvida, portanto, que esses direitos proclamados pelas diferentes revolues burguesas e contidos nas vrias declaraes tenham construdo subjetividades que definem para quais ho-mens os direitos humanos devem dirigir-se.

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    Os marginalizados de toda ordem nunca fizeram parte dos grupos que, ao longo dos sculos XIX, XX e XXI, tiveram e continuam tendo sua humanidade e seus direitos garantidos. Ou seja, foram e continuam sendo defendidos certos tipos de direitos, dentro de certos modelos, que tero que estar e caber dentro de certos territrios bem marcados e delimitados por certos parmetros que no podero ser ultrapassados. Em vez de pensar os direitos como essncia universal do que huma-no, poderamos, por meio de outras construes, deriv-los como diferentes modos de sensibilidade, diferentes modos de viver, pensar, perceber, sentir; enfim, diferentes jeitos de estar e existir-no-mundo.

    Entretanto, muitas dessas afirmaes da vida em suas po-tncias so ainda vistas fora dos tradicionais direitos huma-nos, porque no esto presentes nos modelos condizentes com a essncia do que direito e do que humano. Rachar a expresso direitos humanos, to naturalmente utilizada, e mesmo banalizada no contemporneo, pode nos possibilitar pensar a diferenciada emergncia histrica desses dois obje-tos: direito e humano. Ao mesmo tempo em que os direitos so construdos historicamente como atributos universais, uma determinada concepo de humanidade tambm vem sendo cessantemente repetida e renovada, desde o sculo XVIII. Foucault nos alerta que a histria ensina tambm a rir das solenidades da origem:

    ... gosta-se de acreditar que as coisas em seu incio se encon-travam em estado de perfeio; que elas saram brilhantes das mos do criador, ou na luz sem sombra da primeira manh (...). Mas o comeo histrico baixo (FOUCAULT, 1979, p. 18).

    O surgimento de uma concepo do que humano e da universalizao dos direitos no se deu da forma to grandio-sa e afirmativa como nos querem fazer acreditar as revolues burguesas e suas declaraes. Naquele mesmo perodo, no s-

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    culo XVIII, foi necessrio dar visibilidade cientfica ao cha-mado indivduo perigoso, pelo saber mdico e pela reforma das prticas de punio, para que uma nova forma de ordena-o social pudesse se manter: a normalizao das populaes.

    O corpo social deixa de ser simples metfora jurdico-poltica (...) para surgir como uma realidade biolgica e um campo de interveno mdica. (...) A psiquiatria, na virada entre os sculos XVIII e XIX, conseguiu sua autonomia e se reves-tiu de tanto prestgio pelo fato de ter podido se inscrever no mbito de uma medicina concebida como uma reao aos perigos inerentes ao corpo social (FOUCAULT, 2006, p. 9).

    Foi, portanto, pela forma negativa do anormal, do peri-go social, da monstruosidade que se construiu o universo da norma como aquilo que seria prprio do que humano: O normal, como a-normal, posterior definio do normal, a negao do normal, a negao lgica deste. No entanto, a anterioridade histrica do futuro anormal que provoca uma inteno normativa. O normal o efeito obtido pela execu-o do projeto normativo, a norma manifestada no fato. Do ponto de vista do fato h, portanto uma relao de excluso entre o normal e o anormal. Esta negao, porm, est su-bordinada operao de negao, correo reclamada pela anormalidade.

    No h, portanto, nenhum paradoxo em dizer que o anor-mal, que logicamente o segundo, existencialmente o pri-meiro. (CANGUILHEM, 1978, p. 216). E o que constituiria a norma seno um conjunto de regras morais que impem sua existncia pela possibilidade de sua infrao? Isso nos aproxi-ma do pensamento de Badiou (1999), quando ele nos diz que, se a experincia do inumano clara, a do humano obscura, uma vez que o humano que delimita o ponto de aplicao dos direitos do homem. Ou seja, nos acostumamos a pensar sempre a partir da negao e do territrio da falta. Tentar interromper as repeties do presente significa, afirmar um

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    direito e uma humanidade positivada como processos ima-nentes, no definidos, no dados a priori, no transcendentes e no garantidos necessariamente pelas leis - que vm se tor-nando cada vez menos jurdicas e cada vez mais normativas.

    O direito e a humanidade precisam diferentemente afir-mar a vida em toda a sua potncia de criao. A desnatura-lizao dos conceitos de direito e do que humano implica um desafio permanente para todos ns no sentido de inventar novas prticas, novos mundos e novos desafios. Afirmamos, portanto, a processualidade dos direitos como conquista da-tada historicamente e do humano como permanente criao de si e de modos de viver.

    Assim, tambm, preciso estranhar a crena em concei-tos abstratos e transcendentes dos direitos, do humano, da liberdade, igualdade e fraternidade. Essa a forma radical, a partir das experincias de cada um de ns na coletividade, na imanncia das nossas prticas e das lutas no tempo histrico, de problematizar direitos que vo sendo forjados: uma hu-manidade que vai se construindo; e a liberdade, a igualdade e a fraternidade no so valores que pairam acima e alm das vicissitudes da histria.

    Nesse ponto, uma referncia a Deleuze (1992) potencializa o pensamento da diferena: No buscaramos origens mesmo perdidas ou rasuradas, mas pegaramos as coisas onde elas crescem, pelo menos rachar as coisas, rachar as palavras. No buscaramos o eterno, ainda que fosse a eternidade do tempo, mas a formao do novo, a emergncia ou o que Foucault cha-mou de atualidade (DELEUZE, 1992, p. 109). Reafirmamos que, se direito, humano, liberdade, igualdade e fraternidade no so entendidos como objetos naturais, podemos produ-zir outros direitos humanos. Direitos no mais universais, absolutos, contnuos e em permanente estado de aperfeio-amento, mas locais, descontnuos, fragmentrios, proces-suais, em constante movimento e devir, como as foras que

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    os atravessam e os constituem. possvel direitos humanos sem assujeitamentos? Ser que precisamos realmente buscar transcendncia para as prticas dos direitos humanos em nos-so cotidiano? Estaramos perdidos sem a referncia de uma transcendncia qualquer, uma entidade separada de ns, a palavra de ordem de um universal?

    Quase tudo que o nosso mundo vem construindo como re-ferente transcendncia s serviu de fundamento de verdade para a lei e a moral, nunca para um pensamento crtico que se proponha a rachar o que elas produzem como culpa e expia-o. Sempre o dever ser negativo e prescritivo no lugar de um devir positivo de inveno. A dificuldade maior est em como podemos nos tornar sujeitos de prticas ticas em nosso dia a dia sem nos reduzirmos aos cdigos e restries existentes em qualquer sociedade, sem nos deixar seduzir por uma ordem imposta como necessria paz e segurana, e nos deixar admoestados pela ameaa das sanes da lei. Como discernir entre atitudes passivas de submisso, subservincia, assujei-tamento, constrangimento das atitudes ativas das prticas de liberdade? Como, em meio s relaes de poder que, muitas vezes, nos oprimem e tornam esse mundo insuportvel, esta-belecer relaes de cuidado de si e dos outros?

    Um devir tico da imanncia no se processa apenas nas lutas contra foras negativas do mundo: os abusos de poder, as menorizaes, os assujeitamentos e as desqualificaes dos outros, todos os tipos de racismo que nos atravessam e liquidam a vida. Sem dvida, tais lutas so absolutamente necessrias, direitos precisam ser constantemente conquis-tados e no simplesmente resgatados como algo perdido que sempre esteve l, em algum lugar, esperando para ser encontrado. isto que constri a figura nefanda da vtima, to cara ao opressor. Por isso, preciso que a Declarao Universal dos Direitos Humanos no seja algo apenas para ser lembrado e celebrado. Ela pode ser um instrumento ati-

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    vo de transformao das prticas que, ainda hoje, em nome dos direitos humanos e de uma essncia universal, separa, hierarquiza e abandona a maior parte dessa humanidade que diz defender.

    Contudo, no se trata de um objetivo que progressivamen-te ainda no foi alcanado, o que nos traria o alvio da espe-rana de um dia chegar l. Diferentemente, essa Declarao deve ser utilizada como uma estratgia de transvalorao dos direitos, do humano, de liberdade, igualdade e fraternidade. Ou seja, nada h a resgatar, mas afirmar a conquista de algo que sempre requer as foras ativas das lutas agnicas que travamos com ns mesmos, para que possamos nos construir criadores de possibilidades, como nos ensina Badiou (1999), uma atividade em constante desassossego que constitui a ma-ravilha do viver.

    NOTAS1 Traduo livre2 A esse respeito ver Lobo (2008). Sobre o tema ver Foucault (2008)

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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