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A fragilidade do ato de profess(or)ar pela ótica do fracasso dos seus aprendizes: até onde o olhar permite se ver... Ana Luiza Carvalho da Rocha Pesquisadora do GEEMPA Antropóloga/Laboratório de Antropologia Social/PPGAS/UFRGS “A boa consciência tem como grau anterior a má consciência - não como oposto: pois todo bem foi uma vez novo, conseqüentemente inusitado, contra o costume, imoral e roía o coração do feliz inventor como um verme.” (Nietzsche, Humano, demasiado humano) É sempre útil ter-se em mente que transpor questões teórico-conceituais de uma matriz disciplinar para outra, gera sempre alguns transtornos epistemológicos que devem ser cuidados para que não se subvertam as propriedades das análises a serem levadas a cabo em uma tal tentativa de investigação. Portanto, abordarei aqui alguns temas antropológicos pertinentes aos estudos na área da Educação, lembrando-me das ressalvas apontadas acima, sem a pretensão de transformar educadores em antropólogos, mas com o objetivo explícito de refletir sobre sua prática profissional nos termos da complexa dramática social da temporalidade interior que configura sua ação pedagógica. Em termos mais objetivos, discutir a posição que a identidade pessoal do sujeito do educador ocupa na produção de aprendizagens escolares dos seus alunos. Parto do princípio de que a prática didático-pedagógica do profissional da Educação está sujeita aos constrangimentos sócio-culturais (pré-conceitos e pré-juízos) que operam na

A fragilidade do olhar do professor

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A fragilidade do ato de profess(or)ar pela ótica do fracasso dos seus aprendizes: até onde o olhar permite se ver...

Ana Luiza Carvalho da Rocha

Pesquisadora do GEEMPAAntropóloga/Laboratório de Antropologia Social/PPGAS/UFRGS

“A boa consciência tem como grau anterior a má consciência - não como oposto: pois todo bem foi uma vez novo, conseqüentemente inusitado, contra o

costume, imoral e roía o coração do feliz inventor como um verme.” (Nietzsche, Humano, demasiado humano)

É sempre útil ter-se em mente que transpor questões teórico-conceituais de uma matriz

disciplinar para outra, gera sempre alguns transtornos epistemológicos que devem ser cuidados

para que não se subvertam as propriedades das análises a serem levadas a cabo em uma tal

tentativa de investigação.

Portanto, abordarei aqui alguns temas antropológicos pertinentes aos estudos na área da

Educação, lembrando-me das ressalvas apontadas acima, sem a pretensão de transformar

educadores em antropólogos, mas com o objetivo explícito de refletir sobre sua prática

profissional nos termos da complexa dramática social da temporalidade interior que configura

sua ação pedagógica. Em termos mais objetivos, discutir a posição que a identidade pessoal do

sujeito do educador ocupa na produção de aprendizagens escolares dos seus alunos.

Parto do princípio de que a prática didático-pedagógica do profissional da Educação está

sujeita aos constrangimentos sócio-culturais (pré-conceitos e pré-juízos) que operam na

construção de seu olhar sobre o processo de aprendizagem do seu aluno, derivando disto uma

distorção, tanto da figura do professor, quanto do aluno na sala de aula. Fracasso escolar,

repetências, situações de não-aprendizagem podem, muitas vezes, vir associadas a tendência do

educador em pensar e conceber as aprendizagens escolares de seus alunos reduzindo-as ao eixo

do tempo aparentemente vazio e abstrato da lógica dos conteúdos da disciplina.

Este fenômeno tem implicações graves para o caso do processo de ensino-aprendizagem

que o professor realiza em sala de aula, uma vez que ignora a incidência da diferença de formas

sociais, políticas, econômicas, religiosas, jurídicas e morais inerentes a qualquer processo de

construção de conhecimento, inclusive aquelas afetas aos conceitos científicos. Sem singularizar

o processo de aprendizagem de seus alunos a partir das representações simbólicas que lhe são

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afetas e os seus conceitos cotidianos daí oriundos, sem tratar das doutrinas pedagógicas que

enquadram sua prática profissional e problematizar, neste contexto, o seu próprio universo social

de origem, nem situar o conhecimento local segundo o qual alunos e professores ingressam neste

drama social - as aprendizagens escolares - e, apenas, preocupados com as operações formais da

lógica de conteúdo que devem ministrar, as propostas didáticas mais convencionais nem mesmo

postulam a possibilidade de reduzir esta diferença a uma diferença espacial (o que fará a

pedagogia da libertação de inspiração paulo-freiriana), aprisionando o processo dos alunos ao

das construções abstratas da Ciência que, diga-se de passagem, são o resultado de um longo

processo de maturação e complexificação no plano das revoluções científicas.

Esta é uma das razões, inclusive, dos professores apresentarem, muitas vezes, de forma

não processual os próprios conceitos científicos com os quais operam com seus alunos,

congelando-os num tempo suspenso e ignorando as descobertas históricas e revoluções de

paradigmas que lhes deram origem.

No que tange a área da Educação, a própria a lógica do conteúdo das disciplinas

curriculares apresentadas tem por hábito submeter as “revoluções científicas” a um processo de

redução espacial da diferença pela idéia evolucionista da forma como são apresentadas aos

professores, onde, por exemplo, as transformações dos conceitos científicos em Newton e

Einstein são totalmente achatadas ao modo de pensar da Física contemporânea.

Com uma falha desta escala em sua formação profissional (a ausência de uma análise no

plano da etnociência no que tange as disciplinas universitárias dirigidas às práticas de ensino de

1º e 2º graus), não é de admirar que o educador não se preocupe em situar as aprendizagens de

seus alunos nos termos de um processo antroposociopsicogenético, como se diz no GEEMPA,1

tanto quanto não se sinta pulsionado a situar o seu “si-mesmo” no interior das relações ensino-

aprendizagem que se tecem na sala de aula.

O resultado do que aponto acima tem sido a prática costumeira das propostas, na área da

Educação, de postular a unidade temporal das aprendizagens escolares de alunos (e dos

professores) - um modo “eficiente” de apresentar o que lhes é estranho, como velho e conhecido,

eliminando as diferentes perspectivas aí contidas, e transformando-as em similaridade postulada.

Recolocando estas observações no corpo do esquema utilizado por DaMatta2, para

comentar as marcas redutoras do evolucionismo na Antropologia, poder-se-ia observar o quanto

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o positivismo lógico desta perspectiva elimina qualquer reflexão a propósito da figura do

professor e do seu lugar na configuração das aprendizagens escolares de seus alunos.

Processos dos Alunos

X Y Z R

Lógica A

dos B

Conteúdos C

C

Tem sido comum, na área da Educação, a recorrência aos instrumentais metodológicos, e

inclusive conceituais, de investigação oriundos do campo disciplinar da Antropologia, os quais

são transladados, sem muito critério, para o caso dos estudos e pesquisas envolvendo os aspectos

culturais das práticas escolares. Não quero retornar a este tema sobre o qual já me pronunciei em

outro artigo.

Entretanto, percorrendo a mesma trilha de reflexão, proponho aqui que se pense com

mais detalhe um aspecto importante da condição do fazer antropológico, o processo de

relativização e o seu fundo comum de sentido, o caráter dialógico e situacional da ação “em

campo” como condição de produção/construção de conhecimento etnográfico, no que ele pode

significar para o entendimento do processo não só de formação do educador, mas da sua atuação

didático-pedagógica em sala de aula.

Para nós, antropólogos, o desafio mais difícil que os educadores nos colocam no

convívio profissional é o de compreender a autonomia moral irrestrita com a qual avaliam o

processo de aprendizagem de seus alunos - seu desempenho e trajetória escolares -, sem jamais

formularem juízos reflexivos sobre as condições de ensino que eles criam para esses mesmos

alunos. O ato de ensinar não encerra as interpretações dos professores acerca do processo de

aprendizagem dos seus alunos; ele é , acima de tudo, um ato de aplicar regras e critérios

exteriores ao próprio processo de construção do conhecimento, submetendo-o a uma lei geral

invocada como modelo explicativo que o desobriga o educador a apreciar/julgar/avaliar seu

lugar no curso desta história.

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Através de uma única explicação válida (os graus de consciência), a asséptica lógica dos

conteúdos, como forma de apreciar uma seqüência de acontecimentos que conduzem as

aprendizagens de seus alunos, o professor preserva o seu “si-mesmo” de questionamentos ético-

morais. Acima do bem e do mal, aplicando o vazio abstrato da “lógica dos conteúdos”, os

professores reduzem, no plano da sua prática didático-pedagógica, as diferenças do processo de

aprendizagens de seus alunos às regras de ação e às normas de comportamentos afetas a

perfomance social de seu “si-mesmo”, descarnado de um sistema de valores.

Regras e normas transformadas em modelos que adquirem estruturas de explicações para

os dramas que se desenrolam no espaço da sala de aula, nos termos de uma regularidade

verificada de “se..., então”. Se tal aluno vive numa ‘família desestruturada’, tem um irmão

traficante, mora numa peça de um cômodo junto com mais 4 irmãos de idades diferentes, mais a

mãe..., então o professor deve ficar atento ao fato de que sua ‘desatenção’ ou ‘apatia’ na sala de

aula deve-se a problemas de “desvios de conduta’” que os torna menos aptos a operar com

sistemas complexos de conceitos, sistema que o próprio professor, ele mesmo, ignora.

Através da ótica da regularidade de um conceito nomológico de infância e família, o fato

do aluno viver no interior de uma ‘família desestruturada”, ter uma mãe prostituta ou o irmão

traficante, viver num ambiente “promíscuo”, conviver com o tráfico de drogas e assassinatos,

partilhando-os diariamente com vizinhança de um vila de invasão, chega-se a aplicabilidade da

idéia de função, “explicar” por meio de “fatos sociais”(com base num positivismo de inspiração

durhkeiminiano ou marxiano) os aspectos antropológicos de suas aprendizagens escolares.

De uma forma geral, uma criança ou um adolescente submetidos a tais condições reais de

existência podem vir a ser, segundo as conveniências do etnocentrismo de cada professor, anjos

ou demônios, conseguindo reunir, numa só pessoa, mas não há um só tempo, as duas figuras.

Tem sido, igualmente, recorrente a participação de antropólogos em encontros entre

educadores no sentido de esclarecer ou pontuar aspectos culturais que incidem nas aprendizagens

escolares, principalmente, no que se refere ao processo vivido por crianças, jovens e adultos

oriundos de classes trabalhadoras urbanas.

Em outros tempos, a participação da Antropologia na área da Educação, se limitou aos

estudos já clássicos das teorias da ação social, dos papéis sociais e padrões de comportamento (e,

até certo, no resíduo de positivismo lógico que inspiraram suas preocupações normativas), no

sentido de orientar a prática didática dos educadores para os aspectos “culturais” diferenciais de

formas de vida social que incidem sobre o espaço da vida escolar. Tudo isto como garantia do

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sucesso da explicação do fracasso e evasão escolar, das “dificuldades de aprendizagens” e do

analfabetismo residual do país.

Nos dias de hoje, a influência dos aspectos antropológicos presente à pedagogia

libertadora de Paulo Freire, sem a devida atualização crítica dos pressupostos epistemológicos

daí recorrentes, para o caso da formação do professor dirigida à educação popular, pode ser

apontada como uma das razões da permanente atração, às vezes desmedida, dos educadores por

conceitos e teorias da Antropologia como chave das explicações de sua prática profissional.

Nos casos acima referidos, a área da Educação tem se utilizado de uma visão reducionista

dos sistemas simbólicos que conformam os diferentes universos culturais dos segmentos não-

letrados, tanto na descrição e análise do contexto - através dos quais “explicam-se” as ações

particulares que os professores estabelecem no espaço da sala de aula (no sentido da prática

libertadora) -, quanto na decifração da prática didático-pedagógica escolar (suas estruturas de

poder e dominação).

É preciso dizer que o grau indiscriminado de interesse que despertam as tradições

culturalistas e funcionalistas no educador é diretamente proporcional a sua tentativa de fugir de

uma reflexão mais cuidadosa a respeito das correlações existentes entre os processos cognitivos

vividos por seus alunos, segundo as propostas didáticas que desenvolve em sala de aula, os

contrangimentos sociais aos quais acham-se submetidos ambos os elos da cadeia de ensino-

aprendizagem (professores e alunos) e as práticas culturais que orientam a construção de

conhecimento n interior da vida escolar, lá onde somente a antropologia das aprendizagens pode

dar frutos.

Um exemplo do que acabo de dizer é o fato de ser uma Antropologia, geralmente,

praticada às avessas aquela que tem, erroneamente, orientado os educadores no sentido da busca

de seus ideais utópicos de redenção e salvação das classes populares. Dela resulta, pela via da

“naturalização” de seus constrangimentos de classe, a figura do sujeito do aprendente destituído

de inteligência, sede da alienação, de uma consciência fragmentada, da ausência de juízos morais

e de valores éticos.

O que está em jogo, neste caso que também abarca a “pedagogia da libertação”, é o uso

meramente instrumental da Antropologia como justificativa aos abusos da disseminação da

cultura letrada e erudita no corpo social a revelia dos universos simbólicos que ele contempla. A

complexidade das formas através das quais expressa-se a construção do conhecimento no ser

humano é abandonada, relegada a segundo plano, supérflua.

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Ironicamente, a via compreensiva do fenômeno das relações ensino-aprendizagem que

poderia ter se estabelecido na área dos estudos e pesquisa em Educação popular, a partir dos

pressupostos antropológicos que presidem a pedagogia da libertação de Paulo Freire, foi, e

continua sendo, eclipsada pelo caráter residual do positivismo lógico que ela preserva.

O caráter residual de modelo nomológico que apresenta a pedagogia da libertação não

reside no seu reconhecimento do caráter local do conhecimento das sociedades humanas, fato

que merece destaque por ser uma das poucas que rompeu com a idéia simplista do processo de

construção do conhecimento como fenômeno imparcial, genérico e universal, desvinculado das

condições reais de existência dos grupos humanos. Mas, ao contrário, reside no fato de excluir

de suas preocupações o conjunto de valores, motivações e intenções que orientam as ações e

decisões do sujeito do educador como uma condição do cumprimento da sua “carta

programática”.

Certamente, este caráter residual desse positivismo lógico faz com que a pedagogia da

libertação tenha sido ultrapassada por estudos na linha do pós-construtivismo justo naquilo que

de mais original ela pretendia, sua intenção de reunir uma “explicação autêntica” do mundo (os

saberes científicos) e uma “pseudoexplicação” (os saberes cotidianos).

Reunindo-os, num primeiro momento, para, logo após, separá-los, a pedagogia da

libertação, ao ser aplicada em sua feição modelar, acabou por estabelecer graus de falsidade e

veracidade para o processo de construção do conhecimento humano. Neste sentido, ela renuncia

o próprio processo de transformação dos conceitos científicos e atribui à Educação a ambição

triunfante de explicar a ordem do mundo e das coisas, através de um modelo prescritivo de

prática didático-pedagógica, considerando o processo das aprendizagens humanas apenas o

Sujeito do Cogito, sede da Consciência. Da mesma forma, ela transforma os conceitos cotidanos

e as representações simbólicas em entidades vazias de significação na ordem das aprendizagens

da lógica do pensamento científico.

A forma apologética como são conduzidas as campanhas de alfabetização de crianças,

jovens e adultos no país - nos termos de proporem-se a nivelar os traços específicos da

“mentalidade arcaica” que marcam os saberes acumulados pelas classes populares - segundo o

modelo nomológico de conhecimento adotado para a área da educação popular, concebendo o

que o sujeito humano como sede exclusiva da Consciência, é um exemplo banal da forma como

1 Antropo, porque sujeito a uma concepção do sujeito humano, sócio, porque esta figura de aprendente esta sujeita a lógica das estruturas de uma sociedade, e psicogenético porque relaciona-se com a complexificação de esquemas mentais e estados psíquicos determinados.2 Cf. R. da Matta, Relavizando, uma introduçào à Antropologia Social, Petrópolis, Vozes, 1981.

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os preconceitos coletivos e os atos de juízos pessoais dos educadores, oriundos de camadas

médias intelectualizadas, tornam-se residuais na fabricação da pedagogia da libertação.

O produto secundário deste modelo pedagógico, é a apresentação da legibilidade do

processo de ensino-aprendizagem como fenômeno, até certo ponto, redutível ao jogo das forças

sociais. A leitura deste processo advoga uma antropologia reducionista ao aprisionar a

construção do conhecimento humano a dramática social no interior do qual professor(es) e

aluno(s) sociais acham-se envolvidos, sendo que o universo simbólico letrado e erudito aquele

que exclusivamente funda os princípios nomológicos das aprendizagens no corpo da vida

escolar.

Do ponto de vista das diferentes propostas didáticas que se apresentam na área da

Educação, e nas quais o professor se inspira para desencadear as aprendizagens lógicas em seus

dos alunos, gostaria de me ater, em especial, na proposta pós-construtivista do GEEMPA

segundo a qual a autoridade didático-pedagógica do professor se constitui na justa medida da sua

condição de “sujeito situado” no processo de conhecimento que se desencadeia na sala de aula.

No corpo desta proposta, um professor ciente de suas representações simbólicas e de suas

interpretações parciais e circunstancias a respeito do sujeito de seus alunos, tanto quanto atento

ao seu processo de conhecimento (esquemas de pensamento, hipóteses, níveis psicogenéticos) e

ao campo conceitual a ser transposto, é condição de uma prática pedagógica mais eficaz e

eficiente.

Penso, em particular, na importância do professor reconhecer o aspecto, não só espacial,

mas temporal de suas explicações a respeito das aprendizagens de seus alunos, sob a influência

de variados níveis de aproximações processuais, ora agradáveis, ora tensos, em sala de aula, com

o mundo do outro: seus diferentes estilos de vida, visões de mundo, esquemas de pensamento,

categorias de entendimento, etc.

Dirijo-me aqui a educadores que atuam, direta ou indiretamente, no espaço da sala de

aula, e que certamente irão concordar comigo sobre o complexo processo de trocas sociais,

portanto, processo de conhecimento, que estrutura a construção de saberes em sala de aula, no

momento em que eles e seus alunos estão vivenciando aprendizagens escolares.

A complexidade deste fenômeno se apresenta na forma como as aprendizagens lógicas

dos alunos, sob a orientação didático-pedagógica do professor, mesclam-se ao registro de

costumes, de comportamentos, de formas de pensar e agir de ambos os atores sociais, professor e

aluno, envolvidos no cotidiano da sala de aula.

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Valho-me aqui novamente de Da Matta para re-situar o esquema anterior, recolocando o

diagrama deste autor para pensar o significado complexo da prática didático-pedagógica quando

esta reflete sobre a descontinuidade temporal que exige o ato de ensinar nos termos de uma

descentração do seu sujeito e da descoberta do aluno e do seu “si-mesmo”como um outro.3

Lógica do Processo Cognitivo

A B C

Esquemas x de

Pensamento y (B) Professor dos

Alunos z (A)

a Sujeito Sujeito A B (Aluno) b (Professor)

Observe-se que não há continuidade nas linhas de tempo que orientam ambos os

processos, onde se possa evocar a idéia de que um plano de acontecimentos provoque a causa do

outro.

Neste sentido, restabelece-se algo fundamental no processo de ensino-aprendizagem dos

conceitos científicos que é continuidade/descontinuidade de suas transformações tendo por base

a sua diversidade, fenômeno que não dispensa o tempo, em ambos os eixos, no caso dos

processos de construção do conhecimento.

No diagrama ilustrativo, o professor está inserido neste deslocamento temporal que se

estabelece entre a lógica de formação dos conceitos científicos e os processos de seus alunos,

tornando-se “situado” no plano da relação com a diferença entre ambos os fenômenos. Uma vez

3 Parafraseando-se aqui o livro do mesmo nome de P. Ricoeur, São Paulo, Papirus, 1994.

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sujeito situado entre ambos, o caráter interpretativo e compreensivo de suas ações e intervenções

é realçado, pontuando-se “o jogo do implícito (inconsciente) e do explícito (consciente)” como

condição de sua atuação em sala de aula, o que indica uma dialética essencial à antropologia, isto

é, o processo de interações do “si-mesmo” do professor com o “outro”, do seu “si-mesmo”

consigo próprio e do “si-mesmo” do aluno consigo mesmo

Neste processo, contido no diagrama que segue abaixo, o professor vive duas

transformações fundamentais não somente porque situa-se como “tradutor” dos dois eixos do

processo de conhecimento, mas porque suas ações configuram-se num quadro de interação com

o(s) seu(s) aluno(s). Uma, considerada por DaMatta uma viagem heróica (b), que significa o seu

encontro com os imponderáveis da presença da diferença, através da busca da relação com o

outro, o aluno e seu processo cognitivo singular, o que lhe exige um deslocamento de seus

códigos sociais e categorias de entendimento até atingir a descoberta da sua situação no mundo.

Outra, responsável pela revelação da interioridade temporal de seu auto desvelamento, que

representa para o mesmo autor uma viagem xamãnística (a), em que o professor se despe de seu

sentido de mesmidade até a chegar no âmago de sua ipseidade, da sua própria condição social e

dos valores culturais que professa.

Em ambas as “viagens”, trata-se da noção da distância, ou diferença, que precisa ser

preservada como condição primeira da formação de juizos reflexivos, éticos e morais por parte

do educador a respeito de sua prática profissional, uma vez que contempla muitas camadas de

significado para suas ações didático-pedagógicas na compreensão do campo de conceitos no qual

está operando.

Retomando os diagramas comparativamente, pode-se dizer que muitas situações

constrangedoras vividas pelos professores (problemas de disciplina, de sexualidade,

agressividade e violência) tornam-se, muitas vezes, o resultado de uma ausência de reflexão por

parte do professor, no plano de sua prática pedagógica, a respeito dos imperativos éticos e

morais que conduzem suas ações em relação às aprendizagens, não apenas lógicas, mas sociais

que, constituem e restituem o corpo coletivo no interior do espaço da sala de aula.

Na figura de um drama social singular, os embaraços contidos na prática didática do

professor aparecem, em especial, no reconhecimento, de sua parte, da ambiência turbulenta de

uma turma, ou de alguns alunos, geralmente apontada(os) como “especiais”, na justa medida da

convergências de seus preconceitos com alguns atributos associados a identidade pessoal de

seus alunos.

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Transformados nos traços emblemáticos de seus laços de pertencimento a um segmento

do mundo social (“pobres”, “excluídos”, “explorados”, “marginalizados”, “carentes”), reduzidos

aos casos de “problemas de aprendizagens” e perdendo em sua dignidade humana, tais atributos,

positiva ou negativamente valorados, formam a moldura na qual o professor, encerra toda uma

trajetória de vida diferenciada da sua própria.

Na ausência de uma posição mais comprometida, ética e moralmente, no sentido de

situar o conjunto das representações simbólicas que o conformam no interior do jogo de poder

que recobre todo o tecido social, e do qual ambos fazem parte, o professor acaba por diabolizar

seus alunos na medida em que eles incarnem toda sorte de projeções fantasmáticas do Estranho -

o grotesco, o monstruoso ou o disforme, (como Kasper Hauser no filme de Herzog)-, pela ação

de sua consciência culposa. Ou, ao contrário, o professor angeliza-os aproximando-os do

sofrimentos dos mártires, heróis e santos, como se o martírio da carne significasse a purificação

de suas almas.

O erro mais grave na prática dos profissionais que atuam na área da Educação é, sem

dúvida, a idéia do aluno como sujeitos exclusivo do Cogito, descarnado de emoções, afetos,

paixões e desejos, criando-se a ilusão do sujeito das aprendizagens escolares como sede de

esquemas de pensamento imparciais, portanto, racionais; não como sujeito humano em sua

modéstia plural - nem anjo, nem demônio-, pessoa vivenciando processos de “negociação de

realidade” e atuando num espaço-tempo singular de trocas: o das aprendizagens escolares.

Na linha da proposta didático-pedagógica que se defende no GEEMPA, a autoridade do

professor não se coloca apenas, de forma redutora, no orgulho irrestrito do saber técnico e

especializado que a sua formação acadêmica contempla, mas na humildade em se reconhecer, no

professor e no aluno, a presença de um inconsciente luxuriante, para além de uma consciência

triunfante do mundo.

Faz-se uma diferença entre autoridade e autoritarismo. A autoridade do professor se

traduz na sua capacidade de construir, nos termos de uma situação dialógica consigo mesmo e

com o outro, o encontro diário com as suas próprias representações simbólicas acerca do mundo

e das coisas e as de seus alunos. Como num jogo de espelhos de múltiplas dimensões, o processo

de aprendizagens escolares dos alunos concorre, numa vida de mão dupla, com o processo de

ensinagem dos conceitos científicos, jamais conceitos vazios de significação.

Sem a contrapartida de uma reflexão profunda sobre o seu “si-mesmo” que atravessa a

sua prática didático-pedagógica, a autoridade do professor se transfigura em autoritarismo,

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agindo apenas a partir de um critério de unificação do conhecimento, com base no positivismo

lógico de modelos nomológicos sobre o aprender e o ensinar.

Desde o convencional ditado, com o professor em frente a uma turma de alunos,

sentados, sós, cada um em sua cadeira, até a realização de jogos interativos, através de espaços

de problemas pertinentes a um campo de conceitos, realizados em torno dos grupo áulicos,

passando por usos de cartilhas, quadro-negro, leituras de textos, redações, etc., a ambiência

microcósmica da sala de aula traduz uma estética de trocas sociais onde tende a restituir o curso

hegemônico das relações de poder e de dominação que ocorrem no plano das interações

macrosociais.

A Antropologia, desde sua pré-história com os viajantes e missionários, para o melhor ou

para o pior, tem se confrontado com o tema da identidade pessoal do pesquisador face a

sociedade e/ou grupo humano a partir dos quais desenvolve seus estudos.

Na tentativa de anular, sobrevalorar ou neutralizar os efeitos de ilusão oriundos do ato de

apresentar o outro como parte do ato de nominar-se, o antropólogo, transitando do estranho ao

familiar, e vice-versa, tem, progressivamente, mergulhado no abismo do “anthropological

blues”, ao dar-se conta, pesquisando sua sociedade e cultura, que a própria familiaridade com

seu universo de pesquisa não pertence, por si só, ao reino do conhecido.

Confrontado ao seu “si-mesmo” como um outro na construção do diálogo com o seu

universo de investigação, o antropólogo costuma descortinar, em sua prática profissional, crises

de valores ético-morais que colocam em xeque seu próprio lugar no mundo, alargando-o até ao

limite de questionar a cultura que professa e as formas de vida social nas quais vive.

Em Antropologia, o pensamento da diferença tem se tornado a fonte da sabedoria. É nas

suas águas que se ensina o aprendiz de antropólogo a tornar-se mestre de um ofício, ensinando-

lhe a difícil tarefa de construir conhecimento na arte de confrontar-se com a lógica do outro e de

conduzir sua reflexão nos termos da dialética do “si”.

Uma meditação sobre a identidade pessoal do antropólogo e a interioridade desta

experiência temporal, como condição da sua autoridade etnográfica, é aqui dispensável, pois

envolveria um longo percurso de explanação sobre a formação da matriz disciplinar da

Antropologia, sob o fio condutor de uma hermenêutica do “si”, à la P.Ricoeur, o que não vem ao

caso desta comunicação, dirigida a educadores.

Ironicamente, o que merece ser destacado é que, em Antropologia, reconhece-se mais

amplamente do que na área da Educação, a máxima walloniana de que “somos geneticamente

sociais”, uma vez que todo o conhecimento é, essencialmente, “conhecimento do outro”.

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Portanto, seja esse tal “outro”, o estranho e o exótico (populações de vilas e de periferias

urbanas), seja ele, o idêntico e o similar (populações pertencentes as camadas médias urbanas), o

conhecimento só pode se processar através da suspensão da mesmidade, da interrupção do

compromisso do antropólogo (geralmente oriundo das elites intelectuais) consigo mesmo, na

linha de uma reflexão sobre a indeterminação de sua condição no mundo e do abandono da idéia

da existência humana como algo invariável e ininterrupto.

Isto faz com que nós, antropólogos, mais do que outros pesquisadores das ciências

humanas e sociais, reconheçamos a não existência de um conhecimento neutro e, por derivação,

a não impessoalidade de toda a descrição ou análise etnográfica, portanto, de nossa atuação

profissional.

Translado aqui, com certa facilidade, estas reflexões epistemológicas do campo da

Antropologia para a área de Educação, aceitando-se a premissa que as situações de ensino-

aprendizagem, abordadas por uma ótica não reducionista, encerram uma dramática social, ou

seja, o confronto, ora agradável, ora trágico, de identidades pessoais em constante processo de

negociação.

Um fenômeno simples aos olhos do antropólogo, mas invisível a olho nu pelos

profissionais da área de Educação e que, se desdobrado em suas múltiplas facetas, pode ajudar a

elucidar as formas sutis de autoritarismo e etnocentrismo que se disseminam, ainda hoje, no

ambiente escolar apesar das “boas intenções” de muitos educadores em transpor conceitos

científicos para o plano das aprendizagens escolares de seus alunos.

A abordagem deste tema, e a correlata análise das implicações éticas daí decorrentes, é

uma das intenções de minha participação neste evento como forma de incitar a platéia ao debate.

Outra intenção, é a de retraçar, junto aos educadores aqui reunidos, o percurso antropológico

tortuoso que configura a prática didático-pedagógica de professores voltados à “educação

popular”, considerando-se a trajetória social de uma identidade pessoal situada, ou seja, em sua

maioria, professores pertencentes às camadas médias urbanas, intelectualizadas, e, em alguns

casos, psicanalizadas. Logo, portadoras de uma visão de mundo singular, que não é universal

mas universalizante, regida por postulados do individualismo moderno, berço de uma razão

triunfante da qual emerge a figura do sujeito humano como liberdade e criação.

O cotidiano de sala de aula de qualquer professor se compõe de situações de ensino-

aprendizagem as mais amplas que apontam para as tensões contemporâneas entre os processos

de fragmentação e universalização desta figura de sujeito humano.

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Portanto, panorama é, em si mesmo, complexo: professores de camadas médias, adultos,

em sua maioria mulheres, cujo ethos e visão de mundo lhes impõe a diversidade das noções de

privacidade, individualidade, racionalidade, emotividade e subjetividade, pautadas na idéia do

Sujeito do Cogito, em situação de ensino-aprendizagem com alunos, crianças, jovens e adultos

de classes populares, moradores de periferias e favelas, cujo ethos e visão de mundo - segundo

suas trajetórias de vida e itinerários urbanos - contrastam largamente com as suas.

Uma população cujos laços de amizade e vizinhança, códigos de sexualidade,

solidariedade e sociabilidade, valores ético e morais foram criados, e recriados, em meio à

violência, à fome e à miséria dos excluídos da condição de cidadania, face seu desejo inesgotável

de realização de sua integridade intelectual e expressiva; ela mesma diferenciada segundo seus

graus de aproximação com outros espaços sociais pautados por códigos e valores universalistas,

investindo nas aprendizagens escolares como forma de realização de um projeto social que

referenda a cultura letrada como lugar de status, prestígio e poder.

A pobreza material destas populações confundida, pelo professor, com a miséria

intelectual na ambiência da sala de aula, sua condição física “indigente” e “mendicante”,

desperta no professor uma inspiração quase religiosa, senão maternal. Sofre o professor de uma

aguda doença: a síndrome de uma cultura religiosa messiânico-salvacionista.

“Dar aula” torna-se uma dádiva, um ato de caridade para com o próximo ou, em muitos

casos, um ato de punição. Mas qual é este “próximo”? Alguém que desconhecemos

completamente no seu dia-a-dia, mas que supomos conhecer como a nós mesmos? Não serão

“eles” as projeções de nossos próprios fantasmas?

Sem resposta a tais questionamentos, ensinar torna-se um ato de redenção moral, onde os

alunos, com sua “miserabilidade” aparente (camisa rasgada, pés no chão, olhos e corpos

famintos, piolhos na cabeça, arranhões e hematomas de brigas), trazendo as marcas da nossa

consciência culposa de elites bem-nutridas, da vida bem vivida na comodidade e proteção do lar

( das casas e edifícios guarnecidos de grades, seguranças e porteiros eletrônicos), de nosso ócio

conspícuo, de nossa condição de consumidores “natos” num mundo de abundância de

eletrônicos, de eletrodomésticos, de viagens e de turismo.

A imagem de Pixote amamentado pela prostituta, do filme do mesmo nome de Hector

Babenco, me vem à mente, sem cessar, quando os professores referem-se aos seus alunos como

seus filhos bastardos, abandonados por pais e mães, desenraizados e solitários. Imagem falsa de

um quadro também falsificado.

Page 14: A fragilidade do olhar do professor

Trata-se de uma família outra aquela que o professor desvenda através de seus alunos, de

laços de parentescos outros, invisíveis. Trata-se de redes de solidariedade outras que não aquelas

a que estamos acostumados em nossos condomínios residenciais, nossos edifícios com nomes em

alusão à vilas romanas, à paisagens bucólicas dos Alpes suíços e a mansões nobiliárquicas.

Solidariedade dos mutirões de fins de semana para a construção de uma nova peça no

barraco, da hospedagem de crianças “nas horas de aperto”, do empréstimos de alimentos para

sanar a fome, da troca de remédios caseiros nos casos de doenças e de trocas de favores

religiosos, nas casas de religião e nos templos, para a obtenção de uma dádiva, da circulação de

filhos na busca de resolver os imprevistos do ganha pão diário.

Confunde-se, então, as aprendizagens lógicas dos alunos com a dramática da sala de aula,

num jogo de projeções e contra-projeções infinito, em que o professor se mescla e se perde nas

situações diferenciais de identidades pessoais reduzidas ao mesmo e ao idêntico.

E os alunos onde ficam? Onde se situam? Em parte do jogo de espelhos, ele torna-se

coadjuvante do personagem principal desta estória mal-contada, ou seja, o professor-amigo,

professor-mãe, professor-confessor, professor-assistente social, professor-carrasco, professor-

algoz.... No picadeiro armado para a perfomance destes diferentes personagens de um drama

social, onde se esconde a figura do professor e se anuncia a do aluno?

Nas salas de aula convencionais são estranhos os alunos e estrangeiros os professores,

ambos parceiros de uma aventura rumo a compreensão das formas do conhecimento humano, em

seus graus diversos, tendo como única garantia de uma travessia segura em mar aberto o

reconhecimento de que as histórias vividas de uns são emaranhadas nas histórias de outros. Em

particular, por parte do professor, cabe o reconhecimento lúcido de que as aprendizagens de seus

alunos, embora não sendo as suas próprias, delas fazem parte, o que o faz co-autor, quanto ao

sentido, de seus fracassos e sucessos.