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A BURGUESIA MERCANTIL DO PORTO E AS COLÓNIAS (1834-1900) José Capela EDIÇÕES ELECTRÓNICAS CEAUP

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  • A BURGUESIA MERCANTILDO PORTO E AS COLNIAS (1834-1900)

    Jos Capela

    EDIESELECTRNICAS

    CEAUP

  • A BURGUESIA MERCANTIL DO PORTO E AS COLNIAS (1834-1900)

  • A BURGUESIA MERCANTIL DO PORTO E AS COLNIAS (1834-1900)

    Jos Capela

  • A BURGUESIA MERCANTIL DO PORTO E AS COLNIAS (1834-1900)

    Autor: Jos CapelaEditor: Centro de Estudos Africanos da Universidade do PortoColeco: e-booksEdio: 1. (Maio/2010)Este livro foi inicialmente publicado em papel, em 1975, pelas Edies Afrontamento, PortoISBN: 978-989-8156-22-8Localizao: http://www.africanos.euCentro de Estudos Africanos da Universidade do Porto.http://www.africanos.eu

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  • NDICE

    Introduo 9

    01. O significado do abolicionismo setembrista 1402. A burguesia mercantil do Porto e o setembrismo 2203. A tentativa falhada da implantao do mercantilismo sistemtico 4804. O cabralismo no Porto 5605. A burguesia portuense e a Regenerao 7006. A crise de 1876 e os mercados africanos 8607. A conferncia de Berlim e as expedies africanas 9808. Ultimato de 1890 11409. O proteccionismo de 1892 12110. A navegao e a burguesia mercantil do Porto 135

    Anexos 153 Anexo 01. Estimativa dos valores envolvidos na cultura e comrcio dos vinhos do Douro de exportao para Inglaterra (1842) 153 Anexo 02. Tratados internacionais (1884) 171 Anexo 03. Conflito com o Governo Ingls 175 Anexo 04. A situao econmica geral do pas 182 Anexo 05. cmara dos deputados da nao, em 15 de setembro de 1890, exprimindo o sentir desta Associao Comercial quanto ao convnio anglo-lusitano para a delimitao das pocesses africanas 185 Anexo 06. Representao do Centro Commercial do Porto

  • dirigida camara dos senhores deputados contra o convenio luso-britanico de 20 de agosto de 1890 190 Anexo 07. Situao geral do commercio do paiz sob o ponto de vista dos interesses desta classel do comrcio do pas (1892) 195 Anexo 08. Situao geral financeira medidas de fazenda regime pautal tratados de comrcio alfndegas 203 Anexo 09. Questes coloniais projecto de um museu comercial e colonialismo do Porto 207

    Mapas estatsticos 218Bibliografia 224Notas de rodap 229

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    INTRODUO

    O modesto trabalho corporizado nesta monografia nasceu um tanto oca-sionalmente no nosso esprito quando, dentro do campo especfico onde temos vindo a investigar alguma coisa, o das relaes entre Portugal e as suas colnias, procurvamos apoio para a interpretao cabal da histria do trabalho forado na frica de ocupao portuguesa. Parecia-nos impres-cindvel a demarcao quanto possvel exacta das classes dominantes na metrpole e nas colnias, produtoras e reprodutoras de toda essa legislao diarreica para a prestao do trabalho por pretos, na frica de domnio portugus, na segunda metade do sculo XIX. Das classes eventualmente e mediata ou imediatamente implicadas na explorao colonial. Para alm de vagas referncias, deparmos com uma quase total ausncia de estudos sobre que nos apoissemos para a interpretao classista do fenmeno, de resto, e a priori, perfeitamente captvel. O que, de modo nenhum, poderia suprir, pelo menos a quantificao do que representou um saque sucedneo do da escravatura, a coberto de jurisprudncia prpria, e levado at s ltimas consequncias.

    Porqu, apesar de tudo, a degradao atingida na explorao portu-guesa? Se ela foi executada localmente por classes sucessoras da esclava-gista, at que ponto o foi ao servio de uma classe ou classes autnomas metropolitanas? Como e quanto para tal contriburam as relaes eco-nmicas no contexto das relaes globais metrpole-colnias? E quando chegou o momento imposto pela Inglaterra, e por outras potncias, da transformao profunda desse tipo de relaes, qual e como foi o acomo-damento das classes dirigentes portuguesas nova situao?

    Se s quem assistiu de perto realidade das relaes de produo nas colnias portuguesas, tal como elas se vieram a processar at ao fim da era colonial, pode descrev-las, acreditando no impossvel, nem por

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    isso fica apetrechado para, historicamente, melhor poder interpretar o fenmeno. De alguma maneira, a perplexidade , para ele, maior. Porque alguma coisa a ultrapassar a imaginao est por detrs da prtica de uma escravatura abjecta em pleno sculo XX.

    E foi essa curiosidade que nos levou a um debruamento sobre a evoluo da burguesia mercantil do Porto, no sculo XIX, projectada-mente ligeiro e apenas perspectivador. A breve trecho, e j convencidos de, em certo aspecto, termos batido a porta errada, pareceu-nos valer a pena prosseguir numa primeira abordagem. O resultado disso mesmo o que a est, elaborao pobre, singelamente descritiva, de algumas facetas relevantes do comportamento de uma classe em perodo dado. Comportamento, apesar de tudo, digno da ateno dos profissionais da histria, pois ele reveste-se de um interesse que facilmente conclumos no estarmos capacitados para explorar exaustivamente.

    Do ponto de vista que nos levou ao atrevimento, tambm cedo chegmos concluso de que, de muito maior interesse, e, a faz-lo parcelarmente, como fizemos, relativamente ao todo nacional, era o estudo da burguesia mercantil lisboeta que mais interessava. Essa, sim, passando do trfico esclavagista para o trfico mercantil colonial, sem interrupo. Ao que suspeitamos. Permanecendo, quase at ao final do sculo, a burguesia portuense no elitismo dos seus mercados tradicionais, com a recuperao da primazia de interesse por esses novos mercados, j no nosso tempo.

    No obstante, um panorama de fundo se desenha claro. Esse de um atraso metropolitano, relativamente s potncias com interesses coloniais, tradicionais ou modernos, e atraso em grande parte devido ao facto do passado colonial ter levado as classes dirigentes portuguesas, quando expirava o sculo XIX, exacerbao de um esprito colonial. Sentido proveniente da procura ansiosa do remdio panaceico para a dinamizao de um sistema de produo dbil, mas tambm o chauvinismo empolado pelos acontecimentos de 1890 e que jamais, da em diante, desapareceria da nossa poltica colonial. Como ficaria para sempre a miragem dos mer-cados africanos para salvatrio de uma economia retrgrada.

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    A fraco da burguesia mercantil do Porto, alojada na Associao Comercial, ao longo do sculo passado, deixou patente uma conscincia de classe to claramente manifestada, que permite, por reflexo, determinado tipo de leitura das vicissitudes da sociedade portuguesa no mesmo perodo. No somente porque exibia essa conscincia de classe mas tambm por-que se torna perfeitamente demarcvel no contexto das restantes classes locais e nacionais e ainda porque, dentro da prpria burguesia mercantil, apresenta caractersticas inconfundveis. Com uma tradio conhecida de sculos, influenciada pela presena, no seu seio, dos comerciantes britni-cos, senhora no burgo, esta burguesia empolou-se qualitativamente e fez valer o seu peso em momentos decisivos da histria nacional como, por exemplo, em 1820. Foi da que saiu definitiva e modelarmente organizada e a um ponto tal que bem pode dizer-se ser a sua melhor expresso plstica o palcio onde se alojou. Condizente arquitectonicamente com a poca da construo, a magnificncia e o lugar deixado s artes decorativas revelam uma classe opulenta mas, sobretudo, com uma capacidade de afirmao em termos susceptveis de nos remeterem, analogicamente, e descontadas circunstncias de tempo e de lugar, aos mercadores renascentistas das cidades mediterrnicas ou nrdicas.

    At que ponto uma tal conotao histrico-cultural ter impedido a burguesia mercantil do Porto de ombrear temporaneamente com a lisboeta nos mercados coloniais? Nem sequer estamos certos de que tenham sido meras razes de carcter geogrfico. Talvez uma conjugao de factores entre os quais esse de a transferncia dos negcios coloniais comeada, mas de modo definitivo, no tempo de Pombal, se ter feito das mos da aristo-cracia para uma burguesia recm-criada, radicada em Lisboa, onde a coroa directamente ou por concesso, detivera os rditos da explorao?

    Foi o vintista Jos Ferreira Borges, intimamente ligado burguesia comercial do Porto, o homem da ideia da Associao da classe, que se corporizaria em 1834, no meio do entusiasmo dos mais ricos mercadores nacionais e estrangeiros do Porto. O nmero limitado de associados, oscilando at hoje volta dos 400, poder ser uma indicao do elitismo desta associao se levarmos em conta que, quando apareceu uma outra associao da classe, em 1887, reuniu logo um nmero bastante maior.

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    A partir de 1850, pronta a sua sede, o conhecido palcio da Bolsa, pas-sou a mesma a ser ponto obrigatrio para as recepes mais espaventosas aos visitantes ilustres da cidade.

    Eram seus scios e tomavam parte nos corpos gerentes os maiores capitalistas da cidade, igualmente presentes na fundao de bancos e companhias de seguros, que se multiplicaram ao longo do sculo. Assim como nas vistosas associaes humanitrias, tais como a Real Sociedade Humanitria, cujos estatutos foram aprovados a 9 de Fevereiro de 1854 e cuja mesa de assembleia-geral era justamente composta pelos nomes mais sonantes da Associao Comercial.

    Para o fim do sculo, o ascenso de novos estratos burgueses, inclusive na actividade mercantil, levou ao aparecimento do Centro Comercial do Porto, do Ateneu Comercial, da Associao Comercial dos Lojistas do Porto, etc. A Repblica, que retirou a sede Associao, mais tarde devolvida, por Sidnio Pais, e o Corporativismo do Estado Novo, assim como a evoluo social diluiu a importncia de que se revestia o estrato burgus corporizado no que fora a nica associao da classe, durante dcadas, no Porto.

    A investigao, a que procedemos, incidiu quase exclusivamente nos arquivos e biblioteca da Associao Comercial do Porto. Dispondo como dispe de quase toda a correspondncia desde a sua fundao, cumula-tivamente com os relatrios dos exerccios, possvel no s reconstituir toda a histria da associao como obter elementos da maior importncia para a histria econmica do sculo XIX, atravs dos muitos pareceres e trabalhos produzidos por comisses especiais. Pautas, comrcio externo, emigrao, actividade bancria, etc., so outros tantos temas sobre os quais o arquivo pode fornecer elementos preciosos. A partir de 1873, os prprios relatrios da Direco publicam no s o habitual em tal tipo de documentos como ainda resumos das actas da Direco e da Assembleia-Geral, correspondncia recebida e emitida, estudos e pareceres, alguns deles de qualidade incontestvel. Por si s, estes relatrios so magnficos instrumentos de trabalho.

    A biblioteca dispe de instalaes luxuosas mas no tem ficheiros altura e os arquivos, muito danificados aquando da ocupao pelo municpio, na era republicana, tiveram uma classificao e arrumao

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    nos anos 40 que no foi completada mas so passveis de consulta a partir de um ndice geral onde, com alguma ateno, se pode basear uma procura til.

    O que nos foi extremamente facilitado pela gentileza inexcedvel do secretrio-geral da Associao, sr. dr. Jos Ribeiro Pereira, e pelos funcio-nrios da secretaria, sr. Carlos Manuel Matos Sousa, sras. D. Rosa Queirs e D. Maria Fernanda Braga, e sr. Antnio Manuel Ribeiro de Almeida.

    Nas citaes das fontes, o Arquivo da Associao Comercial do Porto vem designado apenas pelas iniciais A.A.C.P., e quando se trata dos relatrios das suas Direces, cita-se apenas Relatrio e o ano a que refere. Relativamente aos relatrios, e apesar de serem, em alguns casos, muito volumosos, no figuram as pginas, por dois motivos: por haver, em alguns casos, vrias numeraes sucessivas e porque a referncia no original se torna extremamente fcil, dada a maneira como esto organizados. Para todos os outros casos, damos a indicao bibliogrfica completa, como normal.

    Em anexos, publicamos vrios textos que se nos afiguram de valor intrnseco inestimvel quer como documentao, quer como pontos de referncia fundamentais para o estudo do comportamento da burguesia mercantil do Porto na poca a que respeitam, quer ainda como elementos esclarecedores para a histria econmica do sculo XIX.

    Com tudo quanto segue, no pretendemos mais do que fornecer dados monogrficos numa rea qual se nos afigura pouca ateno se ter pres-tado. Sem a pretenso de debitar qualquer interpretao definitiva, apenas adiantando, ao longo do texto, uma que outra hiptese quando tal nos parecia legtimo.

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    01. O SIGNIFICADO DO ABOLICIONISMO SETEMBRISTA

    Parece ser opinio corrente terem as classes dominantes portuguesas, logo aps a independncia do Brasil, tentado a reestruturao do co-mrcio colonial africano, em alternativa. Disso seria a grande prova o decreto de S da Bandeira, de 1836, determinando a extino do trfico da escravatura nas colnias, e em cujo prembulo afirmava os benefcios a colher da abolio.

    As razes pelas quais S da Bandeira publicava aquela lei e tentava p-la em execuo, sem qualquer xito, eram, porm, bem outras. Trata-va-se de uma manobra de diverso relativamente presso inglesa exercida sobre Portugal, quando a Inglaterra se valia dos seus reais interesses na extino, fazendo, simultaneamente, prevalecer a manuteno do domnio econmico. De facto, as condies objectivas da sociedade portuguesa, quer no tocante s classes dominantes metropolitanas, quer relativamente s classes esclavagistas coloniais, no s em nada favoreciam medidas para a extino do trfico e da escravatura como, consequentemente, impediam, liminarmente, quaisquer projectos acabados e efectivos de reconverso da economia nacional.(1)

    Que S da Bandeira no agia motivado por aquilo que afirmava no prembulo, isto , por ideias desenvolvimentistas, mas sim no sentido de se furtar presso inglesa, patenteou-o ele mesmo(2) e prova-o circular oficial do governo portugus(3). A Conveno adicional (ao Tratado de Viena de 1815) de Londres, de 28 de Julho de 1817, proibia expressa-mente a deteno de navios ao sul do Equador. O artigo separado, de 11 de Setembro, declarava ficar esta Conveno em vigor durante o espao de quinze anos contados a partir do dia em que o trfico fosse totalmente abolido pela coroa portuguesa, e desde que as duas partes no pudessem chegar a um acordo quanto a novo tratado. Assim, promulgando, a 10 de

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    Dezembro de 1836, a abolio do trfico, S da Bandeira procurava manter a situao mais conveniente, nas circunstncias, classe esclavagista por-tuguesa, at 10 de Dezembro de 1851. Do mesmo passo se tentava retirar aos ingleses a possibilidade de intervirem nas medidas vindas a ensaiar a favor da independncia da economia nacional e nas quais se incluam as novas pautas. Ser pelo menos curioso anotar ser do prprio punho de S da Bandeira a assinatura sobre o pedido dirigido, logo a 20 de Setembro de 1836, Associao Comercial do Porto, solicitando um parecer acerca do projecto da nova pauta(4).

    A manobra de S da Bandeira no obteve qualquer xito. Nem da parte dos ingleses, estes continuando a ignorar o decreto e a exigir novo tratado, nem da parte das classes esclavagistas portuguesas que, apesar das medi-das enrgicas do governo, mantiveram, sem grandes dificuldades, o trfico at muito mais tarde(5). Mas importante assinalar isso de no haver, em Portugal, qualquer possibilidade de um projecto coerente e consequente de reestruturao do comrcio e da economia coloniais para frica. nesse pressuposto que entendemos a afirmao segundo a qual, na realidade, se um dos primeiros projectos de reestruturao do comrcio e agricultura africanos surgiram cedo (lei de 1836, que proibiu o comrcio de escravos) s no fim do sculo se concretizam esses objectivos(6).

    Houve, certamente, vrias tentativas isoladas para relanar as trocas coloniais, em novos termos, e prescindindo da escravatura. Tentativas puramente ideais. De facto, sem quaisquer resultados prticos, a no ser, para finais do sculo, e em circunstncias muito particulares. R. J. Hammond(7) sintetiza tudo isso quando, apoiando-se em Oliveira Martins, afirma no poder o liberalismo, a partir de 1834, compatibilizar-se com a escravatura. Mas incompatibilidade ideal. Quando Mousinho da Silveira, em 1832, decretou a abolio dos prazos de Moambique, a lei ficou no papel. E os seus discpulos continuaram a legislar para uma realidade de todo incapaz de absorver tal jurisprudncia. Assim aconteceu com S da Bandeira. Um outro autor, em ptica idealista, expressa o mesmo: No brilhante a situao da frica Portuguesa durante este reinado de D. Maria II. Eram grandes as dificuldades que enfrentava todo o Ultramar. Os Portugueses, divididos na Metrpole, no se deixavam seduzir em massa pelas perspectivas de Portugal de alm-mar. uma pequena elite que se

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    impe e que teima em acreditar nas possibilidades colonizadoras da raa. Era esta uma ideia-fora que teria necessariamente de triunfar(8).

    Na sesso de 4 de Junho de 1821, das Cortes Extraordinrias, foi apre-sentado o projecto seguinte para discusso urgente: Dado que as Bases da Constituio Portuguesa haviam estabelecido a igual liberdade em todas as partes da Monarquia, feito cessar inteiramente o sistema colonial e cons-titudo todos os Domnios Ultramarinos em Provncias do mesmo Reino, tornava-se consequentemente incompatvel com essas Bases o governo absoluto em qualquer das mesmas provncias, pelo que se propunha a abolio das capitanias gerais e dos ttulos e atribuies dos governadores e capites generais(9). Assim se entendia abolir o sistema colonial!

    O Presidente da Associao Comercial de Lisboa, em 1938, con-siderava que aps a revoluo liberal, e quando surgia diante desses homens o problema da criao e organizao do Portugal moderno e a imperativa urgncia de conquistar, sobre o patrimnio que nos restava, posies firmes entre as Naes da Europa a sua inteligncia logo encarou como primordial conservar e desenvolver as possesses ultra-marinas e cuidar imediatamente do seu progresso(10). Seriam causas e condies para esse interesse a economia destroada aps a guerra civil, o fim da escravatura, a extino do caudal de riquezas do Brasil e, nessas circunstncias, os domnios coloniais ofereciam-se providencialmente escapos s sangrentas divises da guerra civil, como supremas reservas, de inexplorados tesouros, para a reconstituio, em novas bases, do fomento econmico nacional(11).

    A comprovar essas intenes, Roque da Fonseca apresenta o facto de, logo a 30 de Setembro de 1835, ter sido proposta ao Conselho da Associao o projecto de estabelecimento de uma Companhia Nacional para o melhoramento da Agricultura e Comrcio em todas as possesses de frica. Da o plano para a fundao da Companhia Africana. Essa e a Companhia da frica Ocidental foram estudadas pelos comerciantes de Lisboa e, em 1839, a Associao continuava a bater-se pela formao dessas companhias. Em 1836, elaborou-se, em Luanda, um Projecto de Regulamento para a Companhia de Agricultura e Indstria de Angola e Benguela, projecto enviado Associao de Lisboa para interessar nela capitalistas metropolitanos(12).

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    s Associaes Comerciais de Lisboa e do Porto acorriam no s con-sultas por parte dos rgos oficiais como de interessados no comrcio tricontinental. Em 1835 e 1836, tratava-se, porm, de comerciantes li-gados ao trfico da escravatura e que o viam, nesse preciso momento, ameaado(13). At que ponto estas diligncias podiam ter alguma cor-respondncia com as realidades portuguesas no sentido da capacidade destas atenderem, a partir de uma produo prpria, o mercado colonial africano, pode avaliar-se pelo facto de, a 16 de Junho de 1837, o Secretrio de Estado dos Negcios da Fazenda ter consultado a Associao Mercan-til de Lisboa sobre uma tabela de gneros de manufactura europeia e estrangeira, necessrios para o comrcio interior de frica, e que ou por no se fabricarem em Portugal, ou porque fabricando-se, o seu preo no convm ao comrcio, so ainda hoje fornecidos esses gneros pelo Imprio do Brasil(14). Nessa altura, o Brasil independente negociava directamente com Angola e relegava Portugal para um papel secundrio nas trocas com esta colnia, como veremos.

    A 10 de Julho de 1837, o Tesouro Pblico dirigia-se Associao Comercial do Porto: Desejando Sua Majestade a Rainha promover por todos os modos possveis a prosperidade da Nao, e sendo sem dvida um dos meios mais eficazes para obter to importante fim o estabelecimento de Companhias, quando criadas para animar a indstria agrcola, manu-factora e comercial, assim como a Navegao Nacional, principalmente nas ricas Possesses Portuguesas do Ultramar(15), e como constava haver Negociantes interessados no estabelecimento da Companhia DAfrica Oci-dental, consultava a Associao sobre aquelas condies de favor recproco entre o Governo e a Companhia que julgasse mais capazes de ajudar ao empreendimento. A 19 de Dezembro, nova carta(16) convidava a que os comerciantes do Porto, na sua Associao, se pronunciassem sobre o estabelecimento de Companhias, particularmente nos estados de Angola, Moambique e Ilhas de S. Tom e Prncipe. O Relatrio da Associao re-lativo ao exerccio daquele ano refere estar por responder aquela consulta do governo, e ter sido nomeada uma comisso para dar o seu parecer sobre o assunto. Isto no que respeita primeira carta, assunto sobre o qual no encontramos mais qualquer tratamento e supomos o segundo nem sequer ter sido considerado. No obstante, o mesmo Relatrio informa ter

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    a Associao acabado de representar ao Soberano Congresso pedindo a interpretao do artigo 3. da Lei de 5 de Maio porque na Alfndega desta cidade se exige o pagamento de 12$ por pipa de vinho despachado para as nossas possesses ultramarinas, exigncia injusta quando para os portos estrangeiros nos mesmos pontos situados, s se exige um por cento na conformidade da lei.

    No se descobre ter surgido qualquer interesse entre os mercadores do Porto pela participao, igualmente, na Companhia de Agricultura Indstria e Comrcio da Provncia de Moambique(17) que, por intermdio da Direco da Companhia de Pescarias Lisbonenses, pusera subscrio, em Portugal, 2 000 aces.

    O relatrio de 1839 refere uma consulta do governo para a formao de uma companhia de navegao por vapores que facilitando s comu-nicaes em todo o litoral do reino se estendesse at alguns portos da Amrica..., no aparecendo considerados, portanto, os portos africanos. E analisa as consequncias funestas e desastrosas trazidas ao definhado comrcio pelo Decreto do Brasil de 6 de Maio que elevara a 50 por cento os direitos dos vinhos importados de qualquer nao que no tivesse tratado em vigor com o imprio. A questo era to importante que os comerciantes do Porto admitiam que, para eliminar aquela elevao da pauta sobre os vinhos, se modificassem os direitos proibitivos sobre a aguardente de cana nas nossas alfndegas. E informa terem reclamado junto do governo contra a impoltica e pouco considerada indiferena, com que temos tratado um pas que tanto nos convm conservar em relaes de ntima e estreita amizade.

    O comrcio exportador portuense vivia do vinho e do Brasil.O Noticiador Commercial Portuense, de 11 de Dezembro de 1838,

    anunciava a sada breve de um brigue portugus para a Baa, de uma escuna para Pernambuco, de um brigue para o Maranho e de uma barca para o Rio de Janeiro, todos recebendo carga e passageiros. Por este peri-dico se v como o comrcio externo se mantinha totalmente predominante com a Inglaterra e com o Brasil.

    Consultada pelo Ministrio dos Negcios Estrangeiros, sobre aquele decreto brasileiro, a Associao pronunciava-se, a 27 de Setembro de 1839(18): O Brasil hoje o ponto do globo para onde a nossa pequena

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    indstria fabril exporta a maior parte dos seus produtos, e o nosso comrcio com ele daqueles que tiramos maior vantagem. Ns pagamos os seus produtos com os nossos prprios produtos, e essa mesma emigrao, que primeira vista parece ruinosa para Portugal no o ... porque sustentava milhares de famlias no pas(19).

    No entretanto, continuavam as tentativas. A 17 de Maio de 1839, o Baro de Ribeira Sabrosa (que sucedera no ministrio e na aco poltica a S da Bandeira) despachou a criao de uma Companhia de Guin, por proposta de Joo Gomes da Costa, Manuel Antnio Martins, Jernimo de Almeida Brando e Sousa e Jos Igncio de Seixas, preferida entre vrias, para melhorar o Comrcio e Administrao dos Domnios Portugueses na Guin, cuja decadncia ou quase total runa reclama as mais prontas e eficazes providncias(20). Por despacho de 14 de Setembro de 1838(21), S da Bandeira havia autorizado o Governador-Geral de Angola, para animar a agricultura e a minerao como fontes principais de riqueza e de prosperidade, a distribuir condecoraes aos colonos que comprassem um certo nmero de aces da Companhia das Minas de Ferro ou lavrassem minas por explorar com certa produtividade, ou mandassem moer em engenho cana de sua prpria lavra e que produzissem certo nmero de arrobas de acar, ou aqueles que fizessem em terras suas ou concedidas um estabelecimento com engenho para moer e ainda os que incremen-tassem as culturas do algodo e do caf assim como os que montassem fbricas de anil ou de potassa, e os que procedessem exportao de arroz e de tabaco. Em 1839, tambm se decretaram medidas fomentadoras da emigrao branca para as colnias, facilitando viagens a mulheres e filhos de degredados e a quaisquer indivduos que nelas desejassem estabelecer-se(22).

    Foram igualmente estabelecidos correios menos espaados para a Provncia de Cabo Verde, facilitando as comunicaes, tudo para aumentar as relaes comerciais e os meios de civilizao de que carecia(23).

    A 5 de Novembro de 1839, um Decreto aprovava os Estatutos de uma Associao Martima e Colonial, ideia de Joaquim Gonalves de Mattos Corra e de Joaquim Ceclia Kol, oficiais da marinha, e cujo programa era promover o melhoramento das Marinhas de Guerra e Mercante e os estabelecimentos e relaes de recproca utilidade entre o Reino e as Pos-

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    sesses Ultramarinas(24). Logo na primeira sesso props a criao de uma comisso permanente para organizar a estatstica dos estabelecimentos ultramarinos, rectificar a extenso e limites desses estabelecimentos e conhecer do legtimo direito de senhorio que a Coroa de Portugal ti-vesse sobre os mesmos(25). O discurso da Rainha na sesso de abertura das Cortes(26), em 1940, alude necessidade de legislao especial para as colnias e de providncias para se tirar partido da natural riqueza e fertilidade daqueles pases, providncias consideradas mais urgentes pela cessao do trfico da escravatura. O que de per si s demonstra cabalmente como a extino do trfico (no totalmente verificada ainda) que levantava o problema da reconverso estrutural da economia colonial e no o contrrio, exactamente porque as medidas legais abolicionistas no resultavam de uma dialctica interior sociedade portuguesa mas eram-lhe impostas do exterior.

    Na sesso das Cortes, que decorria em Janeiro de 1840, discutiram-se propostas vrias relativas ao fomento ultramarino, tais como uma do Go-verno com parecer da Comisso do Ultramar sobre um porto franco na Ilha de S. Vicente, de Cabo Verde(27). Da mesma maneira sobre providncias a favor dos enfiteutas, quanto a aforamento de terras baldias ou devolutas nas colnias(28). Assim como sobre isenes vrias a conceder s possesses ultramarinas(29). Uma carta de lei referendada pelo ministro do Ultramar, Conde do Bonfim, de 10 de Maro de 1840(30), isentava do pagamento de direitos a importao pelas alfndegas das provncias ultramarinas, e pelo espao de 10 anos, de ferramentas, mquinas e utenslios para uso da agricultura e industrializao dos seus produtos.

    A 2 de Dezembro de 1841(31) a Associao responde ao pedido que lhe fora feito de interessar os capitalistas portuenses na sociedade moambi-cana acabada de formar, Empresa dos Concidados do Porto, dizendo no ser aquela ocasio propcia emisso de aces daquela empresa. Havia uma indisposio geral, nessa altura, entre a burguesia mercantil do Porto contra a situao em geral do pas, como veremos. As razes apresentadas eram as seguintes: empresas locais desaparecidas, outras em grave crise, estagnao e apatia geral do comrcio e desconfiana generalizada para com as transaces comerciais originada por grandes prejuzos ultimamente registados. De qualquer modo, o tom geral da

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    informao no s de desnimo como de completo desinteresse pela iniciativa dos portuenses em Moambique.

    Esta inventariao, de modo algum exaustiva, de medidas que tendiam ao fomento da economia colonial e das trocas comerciais com a Metrpole, mostra bem claramente at que ponto as mesmas eram, de sua natureza, aleatrias, na medida em que, situando-se quase exclusivamente num plano legal, no correspondiam a exigncias, de resto inexistentes, de classes industriais desenvolvidas, nem sequer s de uma burguesia comer-cial, carecida como estava esta de marinha mercante capaz e voltada como permanecia para outros mercados aos quais se mantinha tradicionalmente ligada, exportando um tipo de produtos, como o vinho do Porto, de modo nenhum adequados ao comrcio de frica.

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    02. A BURGUESIA MERCANTIL DO PORTO E O SETEMBRISMO

    A burguesia mercantil do Porto, por alturas do nascimento da sua associa-o, debatia-se em contradies e com antagonismos nascidos do ascenso de outras, e a repercutirem-se dentro da prpria classe. Um dos aspectos dessa questo tem sido j analisado a partir da publicao, por A. Silbert(1), da correspondncia do cnsul francs. Segundo essa correspondncia, no Porto, o esprito do setembrismo, mais do que a defesa de vagos interesses pequeno-burgueses ou populares, teria sido a defesa da indstria nacional, e o seu principal apoio s classes industriais, ou seja, os fabricantes, os artfices e os operrios(2).

    Se bem que o antagonismo de interesses, expresso nesta altura, entre classes manufactureiras ainda dbeis e uma burguesia mercantil opulenta e organizada seja um facto incontroverso, tambm se nos afigura no poderem reduzir-se a uma dicotomia linear deste tipo os conflitos em presena, no decorrer do setembrismo.

    Diz Silbert(3) que, depois de Setembro, todos estes artfices, todos os que estavam interessados na vida industrial, recolheram o fruto da vitria, pois a obra caracterstica, fundamental, do novo governo foi a pauta alfandegria de Janeiro de 1837. Duvidamos, igualmente, que se possa concluir de maneira a tal ponto peremptria.

    Antes de mais h a constatar o facto de, dentro da prpria Associao Comercial, isto , a onde a parte mais em evidncia da burguesia mercantil se expressava, no existir uniformidade de pontos de vista relativamente nova pauta e ter vindo a triunfar a faco a seu favor. Isto por um lado. Por outro, de ter em conta no s no ser o projecto pautal do setembrismo como remontar a comerciantes em comisso logo aps 1820. At que ponto se poder classificar a pauta de 1837 como obra caracterstica do setembrismo? Porque foi a favor dos interesses da manufactura incipiente

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    e contra os do grande comrcio importador/exportador? Mas quem pri-meiro requereu essa reforma a favor da indstria e da agricultura foram os comerciantes, a sua associao deu-lhe um apoio majoritrio, se bem que, mais tarde, viesse a queixar-se, repetidamente, dos seus efeitos. Mas sempre alegando que se desfavorecera a importao de bens de consumo tambm em nada promovera a indstria nem a agricultura. O que mesmo no sendo correcto, e tudo indica que no o , revela pelo menos um estado de esprito.

    Com efeito, a citada nota de S da Bandeira(4) solicita Associao Comercial do Porto o seu parecer desejando o governo formar urna opinio acerca da projectada Pauta das Alfndegas, e constando-me que o sr. Francisco Antnio de Campos, quando exercia as funes do Ministrio da Fazenda, hoje a meu cargo, fizera remeter a V. S. na qualidade de Pre-sidente da Associao Comercial do Porto, vrios exemplares das classes em que foi subdividida a dita projectada Pauta, para serem distribudos pelos membros da mesma Associao (...) porquanto considero que o mesmo parecer, e os das outras Associaes Comerciais, devem constituir a principal base da mencionada opinio.

    Ora, convm lembrar ter nascido a Associao Comercial do Porto, pra-ticamente, do Sindrio vintista. Foi mesmo obra do seu segundo homem, Jos Ferreira Borges, cuja iniciativa recebeu apoio e sequncia entusistica da alta finana agremiada na Juntina, na qual preponderava a opinio do rico comerciante Arnaldo Van-Zeller(5). Isto em 1834. Mas antes, logo em 1821, uma Comisso do Comrcio, instalada no Porto, pedira a proteco pautal para a Indstria e para a Agricultura(6). Quando S da Bandeira d prioridade aos pareceres dos comerciantes no o faz, certamente, por mera gentileza ou, simplesmente, para evitar oposies. Mesmo que se atribua a pauta, mais tarde decretada, a Passos Manuel e se considere este como tomando uma posio favorvel manufactura e consequentemente desfavorvel burguesia mercantil, veremos igualmente como, nem por isso, se pode admitir tal opinio sem limitaes, se com ela se pretende significar uma oposio de classe. Se certo que a comisso nomeada a 31 de Agosto de 1835, presidida por Mousinho da Silveira, acabou por decla-rar no seu parecer ter em vista o fomento da Indstria e a proteco das produes nacionais..., tambm verdade que Passos Manuel referendava

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    o Decreto Pautal, relevando a actualizao tcnica das pautas mais do que os seus propsitos econmicos, e isto a favor do comrcio: Eu no exami-narei neste momento se nossa nascente (ou talvez agonizante!) indstria necessita de proteco no examinarei se esta proteco consiste na mais livre concorrncia, e se a riqueza dos Povos deriva do mais rpido movimento e giro do comrcio mui graves questes so estas, que o Corpo Legislativo resolver com aquela madureza que se deve esperar das suas deliberaes. Mas o que eu vejo, que o Comrcio necessita de um cdigo claro e simples, que lhe declare quanto cada um dos artigos, que fazem objecto das transaces mercantis, deve pagar por entrada, e quanto por sada. At parece que Passos Manuel assim pretendia contraditar a inteno proteccionista para a indstria, dos relatores da lei.

    No estamos aqui a fazer a histria da pauta de 1837, reconhecendo embora a sua grande importncia e significado, at mesmo do ponto de vista tcnico. Pretende-se apenas demarcar, com a aproximao possvel, o comportamento de um sector localizado da burguesia portuguesa, em dado momento histrico. No dispusemos, sequer, dos textos sobre os quais os membros da Associao portuense se pronunciaram antes do setembrismo, em comparao com aquele que veio a vigorar a partir de 1837. Os elementos disponveis permitem-nos detectar o tipo de antago-nismos referenciados e julgamos tanto nos bastar.

    S da Bandeira, imediatamente aps ocupar a pasta da Fazenda, isto , ainda em Setembro, como vimos, solicitava o parecer dos comerciantes portuenses. Acontecia que estes o tinham dado j(7), a 2 de Abril do mesmo ano, por uma comisso nomeada e que trabalhou sobre 60 artigos prontos e recebidos muito antes, a 25 de Janeiro. Esta comisso confessa-se incom-petente para analisar cada um dos artigos mas, comparando os produtos contemplados com os manufacturados em Portugal, tirou em resultado que os direitos impostos equivalem a uma proibio absoluta.... Como crtica genrica ao que lhe fora dado apreciar, conclui serem as pautas fatais e destruidoras do comrcio (...) Basta lanar os olhos sobre as Pau-tas, para se conhecer os direitos exorbitantssimos com que so afectados todos os artigos de importao, e isto o que leva a Comisso a avanar a assero de que as Pautas so ruinosas ao Comrcio, aos interesses da Fazenda Nacional e ao desenvolvimento, e aperfeioamento progressivo

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    da nossa indstria fabril. Prosseguindo, a comisso deixa bem paten-teado o antagonismo de classe perante a manufactura que se pretendia proteger: A Comisso no cede a ningum nos desejos de ver prosperar a nossa indstria e reconhece a necessidade de lhe dar proteco e auxlio, carregando com Direitos fortes artigos iguais que os Estrangeiros nos importam; mas esta proteco tem limites, e no deve tornar-se proibitiva da concorrncia pois ento seguir-se- fazer estacionrios os progressos da indstria, porque o fabricante tendo a venda certa, d a Lei ao comprador, e no procura de escogitar novos inventos para o aperfeioamento da sua indstria. Alm disto, proteger uma classe custa dos interesses gerais da Nao, e da runa de muitos indivduos, nem de justia, nem conforme aos bons princpios da Economia poltica. D-se proteco e animem-se as nossas manufacturas: mas supor como as pautas supem, que Portugal no carece cousa alguma dos Estrangeiros e que podemos manufacturar e cultivar todos os ramos de indstria fabril absurdo tal que nem precisa ser impugnado com razes.

    Esta era uma opinio livre cambista radical, que veremos aflorar, ao longo do sculo, e repetidamente, no meio comercial do Porto mas que no era, segundo parece, e de harmonia com o que a seguir se expe, a da fraco predominante nessa mesma classe. Compunham esta comisso Antnio Ribeiro de Faria, Jos Rodrigues de Azevedo e Joaquim Ventura de Magalhes e Reis. Ora, em Assembleia Geral de 11 de Agosto de 1836, apresentado o parecer final(8) por uma comisso integrada agora por Plcido Antnio de Abreu, Joo da Silva Ribeiro e Jos Joaquim de Arajo Guimares. Acontece concluir esta de maneira substancialmente diferente da outra comisso, a propsito dos artigos da pauta estudados. Afirmava ficarem alguns produtos sobrecarregados no respeitante a direitos de importao; muitos passaram a pagar pelo menos tanto como antes: tecidos de algodo e panos superfinos. Assim, entendia que a nova Tarifa de Pautas se dirige a proteger a nossa Indstria e Agricultura proteco que j em 1821 reclamou a Comisso de Comrcio instalada nesta cidade. Invocando essa reclamao, os comissionados da Associao lembravam ter ela pedido que gnero algum estrangeiro seja admitido totalmente livre de direitos, sejam quais forem os pretextos que se alegarem para tal liberdade: porm que para animar a nossa Indstria e Agricultura, sejam

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    classificados os gneros de Importao pela maneira seguinte: 1. gneros que o pas no produz; 2. gneros que o pas produz mas no em quan-tidade necessria; 3. gneros que o pas produz em abundncia: e estas 3 classes subdivididas em: gneros brutos, em matrias-primas; com alguma mo-de-obra; inteiramente preparadas; a fim de se principiar por um direito muito mdico e ir gradualmente subindo at que os ltimos equivalham quase a uma proibio.

    Estas reclamaes invocadas lembramo-lo verificavam-se jus-tamente aps a revoluo de 1820 que tivera, entre outras, a grande motivao de sacudir o jugo ingls. Reveste-se, pois, do maior interesse a argumentao usada a seguir pelos membros da comisso, em 1836: Ora, se naquela poca, em que a nossa Indstria e Agricultura estavam florescentes, a Comisso reclamou daquele modo a sua proteco, reco-nhece igualmente que ela deve, quanto se possa, liberalizar-se-lhe para no ficarmos duma vez reduzidos mendicidade, e a sermos providos por Nao estrangeira daqueles gneros ou fazendas que antes do Tratado de 1810, eram manufacturados no nosso pas, e que pela concluso desse ruinoso tratado, tem a troco deles desaparecido dentre ns o ouro, que em tanta abundncia possuamos, em modo que na poca presente circula apenas algum bronze e cobre. E mais, apelando para a urgente neces-sidade de proteger a indstria que esta comisso considera que aqueles gneros que na nova Tarifa se acham muito carregados no Direito de Importao so os de mero luxo, cujos consumidores so as classes mais abastadas, que podem pag-los por alto preo; mas entende igualmente que custando os estrangeiros subido preo, pelos grandes direitos que vo pagar, e tendo a Nao em si artfices para as manufacturas, esse alto preo arruinar a nossa Indstria a rivalizar com a estrangeira, e ento chegaremos em breve a ter esses gneros por um mdico preo; pois que sendo a esperana do lucro a que anima a indstria do homem, logo que as manufacturas tenham grande consumo, se dar s Artes grande nmero de pessoas com o fim do lucro, e da se seguir a abundncia, e por ela a diminuio ou baixa de preos. A proposta final, preconizando a aprovao da nova tarifa de pautas tal como estava e sujeita a correces futuras que a experincia ditasse, foi o parecer adoptado pela Assembleia-Geral da Associao.

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    De facto, perante o que a fica, e para quanto nos importa, nem ser necessrio averiguar at que ponto os artigos assim considerados pela burguesia mercantil portuense foram os decretados em Janeiro de 1837. Apesar de tudo, ainda acrescentamos terem sido os direitos de importao sobre matrias-primas de tal ordem que sobrecarregavam muito mais os pequenos do que os grandes produtores(9). E os primeiros grandes produ-tores no saram da burguesia mercantil?

    Ora igualmente certo os grandes projectos industriais da poca passarem sistematicamente pelas Associaes Comerciais de Lisboa(10) e do Porto, assim como todas as medidas de fomento. Quem detinha, nesse preciso momento, a acumulao do capital necessrio ao investimento seno a burguesia mercantil? Nenhum empreendimento de vulto poderia ter lugar sem o capital ou sem o aval dessa mesma burguesia. Depois, de incompatibilidades entre os interesses industriais e os interesses mercantis, surgiriam conflitos menores ou maiores que acabavam por se processar dentro da prpria associao da classe mercantil, como j referimos.

    A 5 de Abril de 1836, Manuel Pereira Guimares assinava uma carta em nome dos Instituidores da Associao de Indstria Fabril, solicitando Associao Comercial accionistas(11). A 10 do mesmo ms, era Francisco Incio Pereira Rubio que remetia os Estatutos da Empresa Fabril(12).

    Tratava-se de personalidades ligadas a lugares de direco na Asso-ciao da classe mercantil.

    Mas, no ano anterior, isto , a um ano apenas da fundao da Associa-o, surgiu o projecto de uma explorao mineira em Trs-os-Montes(13). Esta iniciativa nasceu exactamente no seio e entre componentes dos mais destacados da actividade mercantil do Porto e igualmente ligados sua associao. Era dirigindo-se mesa da direco que Jos Isidoro Guedes escrevia a 18 de Maio daquele ano: Frtil nosso solo de todos os reinos da natureza, dentre eles um h, sobre que chamo a vossa considerao; este o mineral, que com a descoberta da Amrica foi politicamente votado ao esquecimento, pois desde ento nunca mais se lavraram minas neste Reino, com pequenssima excepo. Somos frteis de preciosos metais, temos boas minas de ouro, prata, estanho, chumbo, amianto. Por isso ... tenho formado um projecto para uma companhia de minerao, que tomo a liberdade de oferecer mesa da Associao...(14).

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    No ano seguinte, era dado corpo Companhia Portuense de Mine-rao pelos seguintes capitalistas: Joo Allen, Francisco Joaquim Maya, Cristvo da Cunha Lima Sampaio, Manuel de Clamouse Browne e Joa-quim da Cunha Lima de Oliveira Leal(15). Em 1840, esta empresa passaria a denominar-se de Companhia Geral de Minerao Perseverana para a minerao de todos os metais, combustveis, sais, barros, pedras preciosas e de valores, e de todos os mais minerais de qualquer denominao, espcie ou natureza que sejam na monarquia portuguesa(16).

    Que a burguesia mercantil portuense no se quedava a contemplar o mero exerccio comercial, prova-o o facto das muitas iniciativas e projectos aparecidos no decorrer do setembrismo.

    Uma outra ideia proposta, que se reveste da maior curiosidade, pois incarna, logo em 1835, a poltica de meios de comunicao que s viria a ter curso anos mais tarde, foi a apresentada a 22 de Maio, por quatro membros da Associao Comercial, de se nomear uma comisso para estudar a construo de um canal que comunicasse o Rio Douro com a Ria de Aveiro e Rio Vouga e a navegabilidade do Vouga at S. Pedro do Sul ou at onde se pudesse fazer(17).

    As iniciativas sucediam-se e sempre buscando o apoio da Associao Comercial. A 11 de Abril de 1836, Antoine Bandier que prope uma manufactura de sedas, reunindo a fiao, tinturaria e estamparia em todos os gneros de sedas assim como de l e de algodo. No dispunha de capital, apenas de conhecimentos tcnicos assim como da primeira mquina Jacquart introduzida em Portugal(18). Logo a 14 de Maio, o pa-recer da Associao, subscritro por Francisco Incio Rubio, inicialmente encarregado de redigir os estatutos para a empresa, preconiza a admisso da proposta com o apoio da corporao pois entende que, possuindo ns as matrias primeiras para o fabrico dos tecidos de seda pura, e dos de seda e l, conhecidos em Frana pelo nome de Thibet, e fornecendo-nos o Brasil o algodo preciso para os de seda e algodo estamos nas mais felizes circunstncias de competirmos com as naes at hoje mais adiantadas do que ns em todos os ramos da indstria fabril e das quais importamos muitos dos produtos, que Bandier se prope fabricar...(19).

    Este parecer reveste-se de grande interesse pois nos fornece uma apreciao crtica ao estdio tcnico da indstria txtil no Porto. Rubio

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    afirmava que os tecidos de seda h muito se fabricavam na cidade mas a sua qualidade no correspondia capacidade dos artistas, o que atribua carncia de modelos e falta de mquinas. Por isso o nosso fabrico no era competitivo com o de outras naes mais industriosas. Por conseguinte, nas circunstncias em que se achavam estas antes dos novos inventos, que por assim dizer, fizeram mudar de face este ramo de indstria fabril e mormente de labor, o que foi devido inovao do tear Jacquart, ape-nas conhecido e adoptado em Lisboa, e inteiramente ignorado entre os fabricantes do Porto, aps exaltar as vantagens da mquina, prope a adopo da proposta de Bandier, promovendo a Associao Comercial a organizao de uma sociedade para estabelecimento de uma fbrica de sedas puras e misturadas assim como o modo de emisso de aces, etc. Um acrescento ao parecer da comisso, assinado por Jacinto de S releva a importncia e a necessidade da generalizao da mquina. Quanto ao estabelecimento da empresa j o condiciona cobrana dos direitos sobre as manufacturas estrangeiras, ao menos conforme as Pautas que se acham feitas em Lisboa para as mesmas manufacturas; pois que sem medida semelhante, nem uma manufactura prospera nem mesmo nos pases aonde elas esto muito mais adiantadas.

    Eis como dentro da prpria Associao Comercial claramente se con-frontavam os interesses dos que pretendiam o relanamento de uma indstria sob proteco pautal frente aos comerciantes de grosso trato para quem se tornava indispensvel a importao livre de manufacturas estrangeiras. E tambm como as pautas proteccionistas se achavam pre-paradas antes do pronunciamento setembrista.

    Bandier acabou por desistir da ideia(20) mas, mais tarde, ela viria a ter execuo na Companhia de Artefactos de Seda, de Algodo e de L, constituda em Fevereiro de 1838(21). A 6 deste ms, o mesmo Rubio e Francisco Correa Monteiro enviavam os estatutos Associao para que esta recolhesse subscritores de aces e anunciava a laborao dentro de breves dias(22). O mesmo que, em 1836, abandonara a redaco dos estatutos para a execuo da ideia de Bandier, Rubio, executa-a agora, aps as pautas proteccionistas de 1837.

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    A 8 de Abril de 1836, o Presidente da Cmara de Chacim era As-sociao Comercial do Porto que se dirigia(23) a propor a reedificao da fbrica de fiao de seda cuja explorao o Marqus de Pombal entregara a trs piemonteses e que estava arruinada.

    Como j vimos, de to longe como de Moambique, vinham solicita-es de subscrio de capital endereadas Associao Comercial do Porto. Datada de 31 de Janeiro de 1838, foi recebida uma outra para subscrio de aces destinadas a uma companhia de fundio de todos os metais a vapor(24). A carta era subscrita por Gaudncio Fontana, Director-Geral dos Faris do Reino, Fundador e Director desta Associao oferece apre-sentar aos Srs. Accionistas, e a quaisquer outras pessoas, que o quiserem ser, os documentos necessrios que comprovam a sua capacidade e co-nhecimentos, passados no s em Portugal, sua Ptria, como nos pases estrangeiros, relativamente a mecnica aplicada s artes, bem como do satisfatrio xito, que tem tido nas mesmas empresas e trabalhos, tanto na Amrica como nas suas investigaes em Frana: e por isso tem a honra de convidar os seus compatriotas a subscreverem para a Associao, da qual ele apresenta os Estatutos, que abaixo se seguem, como base principal de to til e produtiva empresa. Gaudncio Fontana dirige-se Associao Mercantil Portuense, como a designa, dadas as provas por esta j fornecidas de entre ns vulgarizar o esprito de associao nico que pode aumentar e desenvolver a prosperidade e indstria nacional.

    Uma proposta apresentada na Direco da Associao Comercial do Porto, a 11 de Janeiro de 1839(25), deixa perfeitamente demarcados os interesses que se debatiam no seu seio. Perante a constante nomeao de comisses especiais para o estudo dos mais diversos assuntos sugeria-se a criao permanente de comisses especiais em que se dividisse a direco: 1. comrcio em geral; 2. agricultura; 3. indstria; 4. fbricas; 5. navegao; 6. objectos de Fazenda. No poder deixar de chamar a ateno a existncia de urna comisso para a indstria e outra para as fbricas.

    Entretanto, os conflitos dentro da burguesia portuense iam aflorando, ao sabor dos interesses atingidos ou ameaados.

    A 13 de Agosto de 1840, S da Bandeira, certamente acossado por quantos se sentiam lesados pelas pautas de 1837, requereu dados completos

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    e minuciosos sobre comrcio, navegao e indstria para os anos entre 1834 e 1839(26), provavelmente para se documentar quanto a acusaes de efeitos nefastos para a economia nacional, provocados por essas mes-mas pautas. Solicitada pelo Tesouro Pblico, a Associao Comercial do Porto, respondendo ao quesito n. 7, declara no lhe constar ter sofrido decadncia ramo algum da indstria fabril por causa do Decreto de 10 de Janeiro de 1837 a no ser, e durante algum tempo, os tecidos feitos com palheta de metal por causa dos grandes direitos sobre a dita palheta e como no reino no havia aquele artigo essa fabricao no dispunha de matria indispensvel. Mas isso fora corrigido. Quanto s demais fbri-cas em geral elas tinham sido praticamente aniquiladas em virtude do opressivo tratado de 1810, tendo sucumbido os grandes estabelecimentos de abastados capitalistas desta cidade, sendo um o de Manuel Francisco Guimares, na Rua do Rosrio, outro de Francisco Jos Gomes Monteiro, na Rua do Priorado, outro de Bernardo Clamouse Browne, na Pvoa de Vilar, outro de Joo Jos de Abreu, em Massarelos, outro de Joo Baptista Fontana, na Rua da Boa Vista, todos estes eram os mais notveis de teci-dos de algodo e estamparia e de lanifcios; o de Plcido Lino dos Santos Teixeira e outro de Arantes Xavier (?), ambos em Lordelo, isto alm de muitos outros em pequeno ponto, e alguns que ainda ficaram existindo se achavam agrilhoados, enquanto durava a continuao desse infeliz tratado(27). E prossegue o parecer: apareceu o decreto de 10 de Janeiro de 1837, que veio ressuscitar a liberdade dos portugueses poderem fazer as suas leis de Fazenda sem a restrio que lhes impunha o dito tratado, em virtude do que reanimaram-se esses poucos estabelecimentos, que existiam e multiplicou-se tanto esse fabrico, que no espao de 3 anos tem aumentado trs vezes mais do que at ento se estava fabricando, o que muito fcil de documentar com a importao do que vem para os tecidos de fora do Reino, conforme se h-de achar escrito nos livros do Despacho da Alfndega desta cidade; sem embargo dos direitos do dito fio serem o dobro do que pagavam antes do dito Decreto e muito mais alento teriam tomado os estabelecimentos se existir ainda um receio de que havero Ministros em Portugal, capazes de condescender com a vontade da Inglaterra, e com uma pena de tinta nos faam escravos da indstria da mesma. Este parecer estava datado de 30 de Junho de

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    1841. Foi elaborado dentro da Associao Comercial do Porto, e se no soubssemos como ela englobava tipos de burguesia j suficientemente diferenciados nos interesses antagnicos que defendiam, ficaramos tanto mais perplexos quanto certo virmos, logo no ano seguinte, a detectar uma oposio frontal entre industriais e comerciantes, como a prpria Associao Comercial a contradizer o parecer que dera favorvel s pautas, em 1836, mas mais do que isso, a atribuir-lhe as desgraas do comrcio sem ter permitido afirmaro o desenvolvimento da indstria.

    Na altura em que os exportadores do vinho do Porto aspiravam a um tratado com a Inglaterra que lhes permitisse a colocao dos grandes estoques de vinho sem sada e, nesse sentido, diligenciavam constante-mente junto do governo, foram surpreendidos com uma representao em contrrio. Em carta de 11 de Outubro de 1842(28), endereada ao ministro dos Estrangeiros, afirmavam ter-lhes constado o envio de urna represen-tao contra a Conveno e isto debaixo de interesses particulares, que nada pesam na proporo dos que esta Associao representa. Recla-mam o exclusivo da representao dos interesses do comrcio do Porto e voltando a referir-se quela diligncia que se lhe apresentava espria admite: mas ser ela (a representao) talvez intitulada da indstria portuense e assinada individualmente com o fim de apresentar nmero de assinaturas....

    Sem dvida que as pautas de 37 vieram a provocar grande descon-tentamento no comrcio importador e serviram de libi para a oposio. Isso mesmo ficou expresso, na sesso da Cmara dos Deputados de 18 de Julho de 1839. Justamente Silva Carvalho, cujas relaes com a burguesia do Porto adiante referimos, mandara para a mesa uma representao da Associao Comercial de Lisboa, acompanhada do Decreto do Imprio do Brasil que levantava o direito de 50 % sobre os vinhos e bebidas espiritu-osas das naes cujos tratados com o Brasil no estavam em vigor. Dada a importncia da exportao de vinhos para aquela antiga colnia, esse decreto viria a ser motivo de grande inquietao entre os comerciantes portugueses, como veremos. Pois foi Passos Manuel quem, vibrantemente, logo depois de apresentada a representao, tomou a palavra para afir-mar que, Portugal, apesar de ter uma populao de apenas 3 milhes de habitantes, era, contudo, capaz de sustentar a honra nacional arrostando

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    com os pases mais colossais como j em outras pocas fizera. Que, nestes negcios, se deve usar do direito de represlias sem que haja o menor receio; porque o artigo 7. da pauta das Alfndegas o autoriza e faz ver que as pautas portuguesas contra as quais se reclamava tanto, eram as mais suaves comparadas com as outras pois que na Inglaterra os nossos vinhos pagavam 600 % e 700 %, e que todavia nas nossas alfndegas se conservavam intactas as estipulaes com bastante descrdito para ns: sendo pois necessrio que se usasse de represlias no s com esta mas com todas as naes que a isso nos instigassem; porque os portugueses ainda eram os mesmos que tinham feito tremer naes poderosas...(29)

    Um incidente menor leva-nos a suspeitar de, nem sempre, a classe dominante na cidade poder furtar-se a conflitos de interesses com outras. A 4 de Agosto de 1835, a Associao Comercial representava ao governo contra a conduta do Prefeito de quem se considerava ultrajada, por causa de questes volta da construo da Rua Ferreira Borges, em que a As-sociao se interessara. Reclamava que fosse dada satisfao devida a uma corporao to distinta, e composta de numerosos e respeitveis membros, logo que provadas falsas imputaes com as quais se fizera crer haver desinteligncias entre os habitantes desta Herica Cidade e o Corpo de Comrcio, como se a sua quase totalidade no fosse composta de nego-ciantes, querendo assim semear discrdia e descontentamentos(30).

    Outro facto que nos deve alertar contra uma aceitao acrtica da dicotomizao entre industriais e comerciantes portuenses, em 1836, a atitude de Passos Manuel. O cnsul francs testemunha a grande influncia dos irmos Passos entre os cinco mil fabricantes de tecidos e de outros objectos que se encontram protegidos pela nova pauta(31). Sem, de qualquer modo, negar esta penetrao dos irmos Passos, h igualmente a ter em conta as suas ligaes estreitas com os homens da Associao Comercial que englobava a grande burguesia mercantil nacio-nal e estrangeira no Porto.

    Parece-nos muito adequada esta sntese sobre a personalidade de Passos Manuel: Efectivamente a revoluo que elevou Manuel de Passos ao poder foi uma revoluo burguesa, a despeito de a impulsionarem princpios ento considerados subversivos. Manuel de Passos era um burgus tpico. Um burgus letrado. A passagem pelos Gerais de Coimbra,

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    a emigrao e a luta nas linhas do Porto e depois no hemiciclo de So Bento no haviam abafado no ntimo do seu ser aquelas qualidades que costume apelidar de burguesas. Por isso ele e a Revoluo se identificaram to profundamente(32).

    Victor de S(33) provou, de uma maneira que se pode considerar de-finitiva, primeiro, nada ter o ministrio setembrista com o movimento insurreccional. Segundo, que Passos Manuel era no s de uma famlia rstica abastada de propriedades e de disponibilidades financeiras mas ainda com participao avultada na Companhia dos Vinhos do Alto Douro e em vrias casas comerciais do Porto(34). No s no fez a revoluo como a ela se ops, no Porto, quando esteve para a rebentar, a 24 de Agosto. A oposio portuense mo tinha uma forte base popular a sustent-la e os seus chefes no estavam interessados em promover a revoluo(35). Resumindo, Passos Manuel no s no era um revolucionrio como agiu por uma determinao anti-revolucionria, para evitar o levantamento popular(36), isto , o levantamento daqueles que Silbert afirma estarem com Passos Manuel e contra a grande burguesia mercantil.

    Mas h mais. Passos Manuel foi o advogado, nas Cortes, e junto do Governo, em Lisboa, dos comerciantes do Porto quanto a uma questo de direitos de exportao do vinho do Porto. F-lo em completo acordo com a Associao Comercial, conforme carta enviada mesma, a 13 de Fevereiro de 1836, na qual se mostra perfeitamente identificado com os interesses que aquela defendia e disposto a tomar inteiramente o partido dos seus pontos de vista(37).

    Que as atitudes dos personagens em evidncia tambm no eram un-vocas e lineares pode-se concluir afoitamente, a partir destas relaes entre a Associao e Passos Manuel. Antes do golpe setembrista, o deputado portuense e a Associao mantinham uma correspondncia que roava pela afectuosidade e, da parte de Passos Manuel, quase atingia o tom da subservincia perante os grandes senhores do dinheiro do Porto. Ora, a 1 de Dezembro de 1836, seno este ltimo aspecto, pelo menos um certo tom de despeito transparece claramente quando a Associao se lhe dirige, lembrando que h mais de dois anos requer ao governo, em vo, a reduo dos direitos de sada dos vinhos, para o nvel de qualquer outra barra onde se no paga mais de 1 % ad valorem. Lembra, igualmente, a missiva de

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    22 de Janeiro e o acolhimento lisonjeiro dado por Passos Manuel que no conseguira fazer vingar a pretenso no Parlamento, tendo-se entretanto dissolvido as Cmaras. Com a Revoluo de Setembro continuava a Associao e a passagem de Passos para o Ministrio do Reino, primeiro, e para o da Fazenda, depois, bem viu logo a Associao que mui boa ocasio se lhe apresentava para ela reiterar as suas representaes acerca dos seus direitos dos vinhos, porquanto aquele deputado solcito, e activo procurador da Cidade Eterna, especialmente escolhido pela Associao para advogar na Cmara Electiva a justia dos comerciantes do Porto, no lha negaria quanto no seu poder estivesse fazer-lhe. Mas a estreiteza do tempo, a melindrosa crise, os embaraos e apuros de circunstncias a que o governo tinha que atender de preferncia, tudo demorou os passos da Associao(38). E veio o decreto de 2 de Novembro, fazendo subsistente o imposto de 12$ ris por sada e 6$300 para consumo, alm de outros gra-vames que a Associao enumera. Como pois este decreto seja ao parecer da Associao mui gravoso ao comrcio pelo que toca s disposies futuras e mui injusto quanto ao efeito retroactivo que envolve, ela julgou dever dirigir-se a V. Ex.a, recordando as lisonjeiras esperanas que lhe deu em Fevereiro p. p., esperanas em que a Associao confia no ser malograda. Muitos foram os clamores que nesta Praa se levantaram quando apareceu o Decreto de 2 de Novembro, e a maior parte dos Negociantes de Vinhos se preparavam para fazer-lhe resistncia legal pelo modo que as leis e a Constituio lhes permitem(39).

    Para alm de, como no caso das pautas, se ver at que ponto estas questes eram anteriores ao setembrismo e no derivarem dele, sem em-bargo de se admitir terem feito parte dos conflitos que o integraram e de, porventura, terem feito parte do seu cerne, para alm disso, tambm esta exposio a Passos Manuel salienta os conflitos internos da classe quando prossegue: Bem presenciou a Associao no relatrio que precedeu o Decreto que ele foi parto infeliz de Informaes de autoridades desta cidade com acordo de negociantes desta Praa, mas cumpre declarar a V. Ex. que nesta combinao no teve parte nem foi ouvida a Associao Comercial, que por seu Estatuto aprovado pelo Governo de S. M. (assim tem sido considerado pelo mesmo governo) o rgo do Corpo de Comrcio, no podendo at ser tida como Representao dele qualquer que no v da

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    Mesa da sua Associao(40). E enumeram-se quais eram os elementos da classe em discordncia com os da Associao: Sim, alguns negociantes estrangeiros exportadores de vinhos (a quem a medida menos prejudica do que aos outros interessados neste ramo), dois membros da Administrao da Companhia do Vinhos (que como corporao abundante de meios, e em circunstncias diferentes de outros negociantes no seria prejudicada pela medida da cobrana dos Direitos entrada, tanto mais quanto o vinho de consumo o principal de seu actual trfico), trs negociantes portugueses (um dos quais altamente clamou contra o que se queria estabelecer e mos-trou os inconvenientes que vinham ao comrcio do pagamento adiantado que se queria exigir de parte dos direitos de sada, (...) eis os vrios nego-ciantes que o Governo Civil e o Administrador Geral da Alfndega ouviram e a que alude o Relatrio do Decreto de 2 de Novembro...(41).

    A propsito de Passos Manuel, interessantssima a opinio dispendida por Palmerston, o poltico ingls que praticamente comandou o compor-tamento colonial portugus em grande parte do sculo XIX.

    Antes do fim do ano os Setembristas que quezilavam entre eles e os Clubes em Lisboa e no Porto acusavam os ministros de trarem a revoluo. Estou satisfeito por saber, escreveu Palmerston a Howard em 3 de Dezem-bro, que Passos (Papos no original) e S da Bandeira litigam com os seus amigos de clube e se esto a tornar moderados e monrquicos. Mas assim acontece com todos os homens quando sobem ao poder. Disseram-me que Freire e Carvalho eram os smbolos da Democracia quando no governo no tiveram imaginao ao destruir a autoridade da qual derivaram o seu poder. A seguir vieram Passos e Bandeira, o primeiro dos quais era o filho de muitos pais, a criatura de todos os clubes. Torna-se toleravelmente inofensivo como ministro. Moncorvo diz-me que Passos e Bandeira sero obrigados a resignar e a desaparecer e que Barreto Feio e homens do seu teor suceder-lhe-o no cargo; bem, se o fizerem, veremos apenas outra converso, e Feio tentar provavelmente encher os bolsos to depressa quanto puder, e manter a monarquia at estar satisfeito nesse sentido, o que seria dar monarquia longa vida(42).

    No restam dvidas de que a burguesia mercantil do Porto navegara em guas propcias com o governo anterior ao setembrismo. A 15 de Junho de 1835, diversos scios da Associao Comercial propunham um

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    agradecimento ao sr. Jos da Silva Carvalho(43) pelos servios prestados durante o tempo que fora ministro e secretrio de Estado dos Negcios da Fazenda: ... j com a lei de 22 de Maro de 1834 que declarou francos os portos de Lisboa e do Porto, com a de 28 de Abril do mesmo ano que igualou os direitos de entrada para consumo e j com a de 23 de Julho para a extino do papel moeda mas com muita especialidade o servio que fez ao Comrcio desta cidade com o Decreto de 30 de Maio de 1834 que com a Companhia a destruiu os seus odiosos exclusivos e sua opressiva administrao fiscal... e ... que com pontualidade desusada por seus predecessores satisfez todas as dvidas e encargos contrados com os negociantes do Porto durante o longo e terrvel assdio...(44).

    Uma outra medida que geralmente atribuda poltica setembrista, e nomeadamente a Passos Manuel, a do fomento associativista nas actividades econmicas assim como da agricultura e da indstria. Real-mente, Passos Manuel, a 23 de Setembro, expediu a todos os prefeitos distritais uma portaria recomendando a convenincia de empregarem todos os esforos no sentido de conseguirem a formao de associaes agrcolas, comerciais e fabris, as quais ao mesmo tempo que com os seus meios dessem impulso a estes mananciais de riqueza pblica, com suas luzes coadjuvassem o governo na difcil tarefa de que se acha encarre-gado. Considerava este o melhor meio de cobrir as fontes da pblica prosperidade(45).

    Ora acontece que j a 18 de Fevereiro de 1835 a Prefeitura do Douro desejando o Governo ouvir a opinio dos Negociantes Nacionais do Porto, e dos Proprietrios de Fbricas e Estabelecimentos de Indstria nesta Herica Cidade sobre as medidas que convir adoptar para promover os interesses comerciais e industriais do pas, por meio tanto de providncias internas como de negociaes com os governos estrangeiros..., pede que a Associao nomeie tanto as pessoas do comrcio como da indstria, em nmero de 9, e que com a Direco estude o assunto. Sugere mesmo que sejam cinco da Classe Comercial e quatro da Classe Fabrical(46).

    Perante o caso das pautas como deste, do fomento industrial, at que ponto se poder creditar ao setembrismo uma poltica prpria, quando certo, no ter feito mais do que dar sequncia a projectos provenientes do governo anterior?

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    Bem certo ser o setembrismo informado por um esprito diferente, particularmente manifestado frente Inglaterra, tentando a independncia econmica nacional. Isso mesmo ficou patente na questo da abolio do trfico da escravatura, concomitantemente na das pautas aduanei-ras, como j referimos no primeiro captulo. De qualquer maneira, os personagens envolvidos, pela sua extraco classista, e mesmo pelo seu comportamento, permitem-nos duvidar de que o setembrismo naquilo que se possa considerar como mais tpico se tivesse saldado, exclusivamente, numa luta frontal e clara entre a burguesia industrial incipiente e a bur-guesia mercantil opulenta.

    Mesmo relativamente s pautas ainda h que se diga quanto ao com-portamento de S da Bandeira e de Passos. Quando, a 12 de Outubro de 1841, na Cmara dos Senadores, foi discutido um projecto de lei para aboli-o do prmio de 15 % concedido pelo art. 1. do Decreto de 16 de Janeiro de 1837, a favor dos gneros, mercadorias e manufacturas importados em navios portugueses, despachados nas alfndegas do Reino e das Ilhas adjacentes, ambos os setembristas, ento na oposio, votaram contra. Defendendo que se devia proteger a indstria da navegao tal como as outras indstrias, e apesar de o mesmo projecto prever o agravamento dos direitos para produtos importados de onde a bandeira portuguesa no tivesse entrada, assim como outro tipo de aumentos pautais(47). A manuteno deste prmio navegao nacional, concedido pelo governo anterior ao setembrista, devera-se a diligncias das associaes comerciais e foi insistentemente solicitado pela burguesia mercantil do Porto, onde se integravam os armadores locais. O projecto foi votado e provocou grande consternao nos meios comerciais.

    O que Silbert afirma como outro testemunho desta hostilidade feroz contra o setembrismo, a atitude da Associao Comercial do Porto, resoluta e sistematicamente contrria ao governo setembrista durante a crise comercial, enquanto a de Lisboa procurava uma aproximao(48), para tal baseando-se no que considera como o protesto, at s ltimas energias, contra as medidas tomadas para remediar a crise financeira, deve, por igual, ser detalhadamente analisado.

    Da maneira como apresentada, esta questo parece no ter sido inteiramente dissecada, de molde a retirar-lhe o que, realmente, tinha

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    de anti-setembrista e o que tinha de defesa de direitos lesados, se como se nos afigura, a tal distino se pode chegar. que, se a Associao Mercantil de Lisboa acabou por tomar uma posio colaborante com o Governo, e com esse gesto, ao contrrio da do Porto, mostrou estar disposta a contribuir para o restabelecimento das finanas caticas, por outro lado tambm tomou uma atitude de oposio no que respeita ao que classificmos de interesses lesados, o mesmo acontecendo com o que considerado como rgo setembrista, A Vedeta da Liberdade. Uma coisa o que foi designado pela bancarrota e outra a proposta de financiamento ao governo feita pela burguesia mercantil e bancria de Lisboa. Embora decorrente esta daquela.

    De facto, a Associao Comercial do Porto vinha, de h muito, a insistir pela garantia da converso em metal do papel moeda que existisse no dia 1 de Janeiro de 1838 e conforme s disposies do Decreto de 23 de Julho de 1834. E solicitou da congnere lisboeta a interveno nesse sentido(49). A 20 de Setembro de 1837, representavam junto dos deputados para que fossem tomadas providncias, pois tudo indicava que a converso no viria a ser feita(50). Logo a 21 de Dezembro, o deputado Faustino da Gama apre-sentou um projecto, segundo o qual, em vez da extino do papel-moeda, conforme decretado a 1 de Setembro de 1834, se propunha que, no prazo de 60 dias, se entregasse na Junta de Crdito Pblico esse papel existente, em troca de inscries pelo valor nominal das quantias entregues, com um juro anual de 6 % e amortizao de 2 % da soma total convertida, igualmente, em inscries. Foi este projecto que A Vedeta da Liberdade, ao noticiar o teor da proposta, classificou de brbaro e injusto. Na sesso das Cortes de 15 de Janeiro, j se dizia que h bem pouco tempo que nas Provncias do Norte se tem querido persuadir que ns estamos aqui em completa dissoluo e anarquia(51). Alm daquela proposta, feita pelo representante da Associao Mercantil e do Banco de Lisboa, que deve ter sido quem obteve a colaborao destas duas instituies, como veremos, foram apresentadas outras, que o jornal anti-setembrista resumiu desta maneira: O Ministro da Fazenda vai propor s Cortes uma bancarrota com vrias classes de credores do Estado, a emisso de 600 contos de notas do contrato, e de 3 mil contos em bilhetes de novo papel-moeda, umas e outras com curso forado at nos pagamentos entre particulares: a Comisso

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    de Fazenda rejeita o curso forado entre particulares e prope como Lei o resto com algumas modificaes: e seis deputados ousam propor uma bancarrota nua e crua(52).

    Logo a 10 de Janeiro de 1838, perante os projectos apresentados pelo ministro da Fazenda, em 9 e 22 de Dezembro de 1837, a Direco do Banco Comercial do Porto reagiu energicamente contra qualquer hiptese em que se encontre a desastrosa inteno e o infausto princpio que permitissem a emisso com curso forado de qualquer papel de crdito do Governo, de qualquer denominao. Afirmava os males j patentes s pela admisso da possibilidade de tal emisso. E o muito que sofreria o Comrcio, Agricultura e Indstrias Nacionais, em todas as suas relaes internas e externas, pelo ataque directo da propriedade e da Moral Pblica e Particular. E, finalmente, o Banco declarava estar unido e conforme com as razes expendidas pela Direco do Banco de Lisboa, e pela Asso-ciao Mercantil Lisbonense, nas suas respectivas representaes sobre este objecto(53). Como se v, fica claramente expressa, nesta fase do conflito, a identidade de interesses da burguesia mercantil do Porto e de Lisboa e a simultaneidade da sua defesa.

    Mas a exploso de indignao no Porto surgiu, sobretudo, a partir da proposta apresentada por Jos Estvo, a 15 de Janeiro. Comeou o depu-tado por fazer a histria das finanas do pas, desde a sua restaurao pelo Duque de Bragana, e deu conta da causa da ltima revoluo, que era a reforma das finanas, o que se no conseguiu, e que, por isso, a revoluo no estava completa(54). As bases da sua proposta indicavam diferir por um ano o pagamento de todas as antecipaes sobre os diversos rendimentos do Estado e a capitalizao com juros e amortizao corrente de todo o papel moeda e dvida flutuante, desde Agosto de 1833, at Julho de 1837. A 16, noticiava-se de Lisboa: A Banca Rota. A notcia do projecto da bancarrota que se est discutindo em Cortes, excitou a indignao geral. Como ofende direitos e interesses de todas as classes da sociedade, todos gritam e se queixam. Ontem de tarde, a fermentao chegava a ser ameaadora(55).

    A correspondncia prosseguia descrevendo o estado de esprito pe-rante o facto: no Congresso Constituinte catorze deputados propuseram sem corar a subverso daquilo mesmo que ainda h pouco haviam solene-mente garantido. E que A Associao Mercantil acaba de ter uma reunio

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    com os seus membros, em a qual, entre outros oradores, se distinguiu o Dr. Emauz, estigmatizando a substituio apresentada ultimamente nas Cortes. A 18, fora o Banco de Lisboa que reunira em assembleia geral e o cronista informa que se no estivesse prevenido ver-se-ia agora mesmo nos maiores embaraos para fazer frente ao pagamento das suas notas. E, de Lisboa, insinuava-se: No Porto, o abalo que deve produzir a notcia da apresentao da substituio inqua no deve ser menor; que vista das circunstncias em que se acha o comrcio naquela cidade, no possvel prever at onde iro as cousas.

    As exposies da Associao Comercial sucederam-se. Uma a 16 de Janeiro; no dia seguinte, uma correspondncia do Porto, em O Peridico, insurgia-se contra os deputados por no terem, a tempo, tratado da soluo da carncia de metal para a converso do papel. A 20, nova representao da Associao Comercial do Porto, esta nos termos mais incisivos e que se refere, exactamente, ao chamado projecto da bancarrota, sintonizando com Lisboa, se bem que de uma maneira muito mais violenta. Uma catstrofe vulcnica que rebentasse no meio da cidade de Lisboa, e seguidamente no meio desta pobre e desgraada cidade do Porto, no causaria em seus habitantes to terrficas impresses como a substituio ao Projecto n. 115, transcrito no Dirio do Governo n. 15!!!, apresentada pelos snrs. de-putados Jos Estvo e M. A. de Vasconcelos! Que horror, que imoralidade, que funesto parto da desordem social! Se no h Propriedade, j no h F Pblica, ainda est pouco carregado o Comrcio destes Reinos, onde vai isto dar, quem nos h-de valer eis as meditaes tristes e melanclicas, que se esto fazendo agora em todos os crculos da Praa do Comrcio desta cidade, e que a Mesa da Direco da Associao Comercial desta Cidade se apressa a fazer presente ao Congresso, o que assim cumpre sem ter cabea para dar alinho a suas ideias, nem falar mais que a linguagem da dor, do medo, do pavor e da perturbao em que se acha submersa!! Ah, Senhores, aonde est a Nao Portuguesa! Pretende-se acaso acabar com a classe dos Proprietrios, e com a dos Comerciantes que so as nicas que restam derrocar!! Ah, Senhores, suspendei esse ltimo raio que est fulminando a infeliz Ptria!!!(56)

    Esta representao foi lida na sesso das Cortes de 20 de Janeiro. Faustino da Gama deu esclarecimentos sobre a atitude da Associao e

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    do Banco lisboetas, dispondo-se a fazer da sua parte o que pudesse para valer Fazenda Nacional(57). E recomendou cuidado nas expresses a usar pelos deputados quando se referissem a corporaes. Um deputado pediu desculpas por expresses que pudesse ter usado e tomou a palavra Jos Estvo: o primeiro obsquio que no agradeo em minha vida, e de que at me ofende O sr. Faustino da Gama acalmou o ressentimento do nosso colega e dos seus scios. No temo, repito, e desprezo-o; eles so tenazes em defender os seus interesses, e eu em defender os interes-ses do pas: eles podem cansar, mas eu no. Sua Senhoria imputou-me expresses que eu no proferi (...). Esses cavalheiros do Banco e da Associao Mercantil, podem vomitar injrias contra mim, eu j as espe-rava, e desprezo-os, no s porque desprezo a origem mas porque um dia h-de dizer-se que cada real que apareceu para salvao do pas custou ao deputado Jos Estvo milhares de insultos e ataques que ele soube sofrer com valor e nobreza(58).

    A 22, o que tudo indica ser o porta-voz da burguesia, publicava a seguinte correspondncia do Porto, datada da vspera: O sofrimento transborda todos os limites; os Ministros por uma parte, e Deputados por outra, no h dia que no descarreguem golpe sobre o msero Portugal com as Pautas principiaram por ferir de morte o Comrcio para lisonjearem a Agricultura e a Indstria, e os agricultores e os artistas gritam de fome; tudo misria nas cidades, nas vilas e nas aldeias; o Douro est a ficar inculto, e o comrcio dos vinhos a dar o ltimo alento: um emprstimo e adiantamentos os mais usurrios se multiplicam, e cada vez os paga-mentos em maior atraso; os empregados pblicos a pedirem esmola, a indisciplina introduzida nos corpos militares, que vo pedir o po com as armas na mo: tributos e mais tributos a serem decretados, e cada vez mais a mngua no Tesouro; e os credores estrangeiros que arriscaram seus cabedais para restaurar a Carta e o Tesouro, escarnecidos com lhes darem em pagamento do dividendo solenemente contratado, bilhetes de crdito de um Governo desacreditado(59).

    A 21 e 22 reuniram as assembleias-gerais da Associao Comercial do Porto e do Banco Comercial, que enviaram outra representao Cmara dos Deputados. Volta-se a protestar, a considerar ofendido o carcter portugus, e a classificar as propostas como atentatrias da propriedade,

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    e mpias. Afirma estar a dar-se uma corrida espantosa aos bancos a sacar dinheiro! Onde ir parar a roda da desgraa pblica!... A Assembleia-Geral da Associao Comercial pronuncia com toda a veemncia um voto de execrao contra os autores e colaboradores de to hediondos e horrveis projectos!(60) Afirma no dispor a classe de dinheiro e hav-lo por emprstimo uma concesso risvel quando aparece uma moo para canonizar uma bancarrota. Entende que o crdito pblico renascer quando se lanar o antema civil aos nomes, e to-somente aos nomes dos compndios modernos de leis ou princpios fundamentais derrogando-se todas aquelas medidas que tm sido empregadas para sustentar Revolu-es... E finaliza, confirmando cabalmente ser a grande questo, a de uma ordem ameaada: Cumpre sobretudo apelar para a Religio em ordem a corrigir a Moral Pblica, e adornar o Trono com o esplendor que lhe prprio, para manter o equilbrio da ordem social. Ento, quando o Universo vir que a Nao Portuguesa cura de seus interesses verdadeiros, e que na Assembleia Nacional se ocupa s e essencialmente em reformar suas Finanas, renascero os belos dias em que os capitalistas preferiro confiar seus dinheiros ao Governo antes que aos particulares(61).

    Seria na sesso de 27 que as Cortes viriam a discutir vivamente a representao da Associao portuense cuja classe foi muito atacada. Jos Estvo (Jos dos ovos moles no peridico onde lemos a notcia!) afirmou ter recebido cartas de alguns amigos do Porto a denunciar ter a representao fins particulares e que, em oposio ao seu teor, a cidade estava desejosa de apoiar as medidas financeiras por ele propostas. Um deputado acrescenta o jornal viu logo na representao uma cons-pirao cartista e acrescentou (o que notvel, no s como observao, mas ainda na coincidncia com a tese de Silbert) que os fabricantes e artistas so o maior nmero de habitantes teis do Porto(62).

    E a 24 que a Associao Mercantil de Lisboa dirige do Porto o con-vite para colaborar no Emprstimo ao Governo, projecto j apresentado s Cortes. A Associao Comercial do Porto invoca o que j disseram tanto a sua como a assembleia-geral do Banco Comercial e que se reduzia a que tanto uma como outra corporao entenderam que no convinha ao comrcio desta praa, nem aproveitava ao crtico estado da Nao o Emprstimo projectado. Dum lado foi dito que semelhantes transaces

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    eram opostas ao estatuto deste Banco, do outro foi ponderada a falta de meios e de garantias e de ambos foi manifesta a desconfiana e em tais termos no pode a Praa de Lisboa contar para o fim proposto com a desta cidade(63). No entretanto, a proposta foi levada a Assembleia-Geral da qual se concluiu no haver entre os associados capitalistas, negociantes e proprietrios que foram presentes quem quisesse concorrer para o em-prstimo em questo(64). E deu as razes: ...que o emprstimo proposto era uma rigorosa antecipao das Dcimas e mais impostos que entram nas recebedorias do Reino, vencidas e a vencer at ao fim do corrente ano econmico; mas (...) o Congresso por sua resoluo solene de 19 do corrente reprovou o sistema das antecipaes: que ainda quando se no considere antecipao, ou este emprstimo fosse exceptuado da re-provao do Congresso, que ningum garante que daqui a poucos meses quando do Governo j tivesse distribudo o dinheiro que recebesse no tornasse a ressuscitar o filho do sr. Deputado Jos Estvo. Mas quando no fossem convincentes as razes apontadas, o estado de penria do Comrcio desta Praa, a estagnao em todos os seus ramos, finalmente a misria pblica que se manifesta por toda a parte no permitiam que outra fosse a resoluo desta Associao, alis animada dos melhores e mais patriticos sentimentos...

    Sem, de qualquer maneira, conseguirmos aqui deixar esclarecido o que ainda representa um enigma na nossa histria de oitocentos (mas que significa, afinal, o setembrismo nas suas implicaes nacionais? interroga Joel Serro no Dicionrio de Histria, entrada Passos Manuel), pretendemos apenas alguma coisa adiantar sobre o comportamento da burguesia mercantil do Porto nesse perodo decisivo da histria portu-guesa moderna e colocar algumas dvidas sobre a concluso de Silbert, segundo a qual, esse movimento poltico e social se reduziria a uma luta entre as burguesias industrial e comercial. Certos porm de que sem um levantamento generalizado de toda a documentao disponvel, nome-adamente da imprensa da poca, dificilmente se poder avanar uma opinio definitiva.

    Um aspecto, porm, se nos afigura claro, perante a anlise da docu-mentao de que dispusemos. Aquando da fundao da sua associao, em 1834, a burguesia mercantil do Porto no somente constitua uma classe

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    perfeitamente demarcada na sua actividade e prossecuo de interesses prprios, como estava de posse da conscincia respectiva. Conscincia de classe perfeitamente assumida e manifestada a cada passo, algumas vezes duma maneira surpreendentemente hbil e subtil. E mesmo conscincia de classe agudizada por conflitos sociais. Entre outros, especialmente significativo um documento produzido no seio da Associao e a que nos vamos referir detalhadamente, pela importncia de que, no sentido apontado, se reveste.

    Aconteceu que, a 25 de Maio de 1838, Luciano de Carvalho ofereceu Associao uma proposta de candidatos s Cortes: sabido que na cidade hoje se formam diferentes reunies que todos tratam dos seus candidatos. E sabido desgraadamente que o Corpo do Comrcio e Fabricantes desta cidade nem tem sido representado em Cortes, nem para isso se tem tomado a mais pequena diligncia)(65). D o exemplo da Associao Mercantil de Lisboa que j apresentara candidatos e alguns tinham sido votados. Sugeria que a Associao propusesse os seus, recomendando-os ao comrcio, aos fabricantes e ao povo em geral, como dignos de os representar em Cortes. De facto, a 25 de Junho, recebeu igualmente a Associao do Porto uma carta da congnere lisboeta com a lista dos candidatos que propunha e convidando-a a fazer o mesmo(66).

    Antes de passarmos anlise do documento que foi a resposta da Associao Comercial, chamamos a ateno para o facto de Luciano de Carvalho, dirigente da Associao, ter proposto a ideia em termos de re-presentao do comrcio e indstria conjuntamente. Por a se deduzindo, a par com outros factos j apresentados, como nem sempre descoincidiam, ou pelo menos como nem sempre havia essa conscincia, os interesses prprios de cada das actividades. Por outro lado, como, a partir da presena de uma representao, nas Cortes, da burguesia comercial e financeira de Lisboa, se pode, pelo menos parcialmente, explicar a colaborao desta com o governo setembrista, ao contrrio da do Porto. Se bem que res-tasse por explicar porque que as duas burguesias diferiam frontalmente quanto representao parlamentar. De facto, parece poder admitir-se ter-se colocado a burguesia mercantil do Porto na posio obstrucionista mais radical, pretextando a inadmissibilidade da luta de classes que essa representao significaria. E passemos ao documento(67) em causa.

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    Como era hbito, perante a proposta do associado, foi criada uma comisso destinada a estud-la. Embora o seu parecer comece por consi-derar no ser a efectivao do preconizado anti-estatutria, entende, no entanto, que semelhante interveno de modo nenhum se compadece com os seus (da Associao) verdadeiros interesses.

    Reconhecendo embora que mal representados tm sido at agora em Cortes os interesses Comerciais e Fabris, interesses estes que so os da grande maioria desta herica cidade, porque sendo esta convico generalizada as prprias eleies se encarregariam de escolher os homens adequados para o efeito. Mas conquanto seja para desejar que compa-ream nas Cortes homens conhecedores dos males que sofre o Comrcio, e dos remdios que lhe so aplicveis, no por certo levantando uma Bandeira de Classe(68) e adjudicando-se a totalidade ou mesmo uma parte dos representantes deste crculo que melhor poder conseguir a reparao a que alis tem direito! Excitaria nas outras classes um princpio de riva-lidade e emoluo. Reproduziria qui entre ns as ridculas disputas e contendas das antigas corporaes e mesteres. Tornaria, enfim, cada vez mais impossvel o restabelecimento da ordem neste desgraado pas j de sobejo dividido por desinteligncias, dios, e at baixas invejas pessoais! O interesse geral o nico princpio que deve dirigir o voto do cidado probo, e a vossa Comisso no hesita em afirmar que este princpio est profundamente gra