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Viviane Carvalho Bejarano AS RELAr;:OES ENTRE LlNGUAGEM, PENSAMENTO E CONSTRUr;:Ao DO SUJEITO EM VIDAS SECAS Traball10 de Conclusao de Cursa al1resentacio aa Cursa de Licenciatura em Letras portugu€s-Ingles da Faculdade de letras da un ivers ida de Tuiuti do parana, como requisito parcial para a obtencao do titulo de Ucenciado em Letras. Orienladora: Prol~Ora. Isadora Dutra CURITIBA 2010

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Viviane Carvalho Bejarano

AS RELAr;:OES ENTRE LlNGUAGEM, PENSAMENTO ECONSTRUr;:Ao DO SUJEITO EM VIDAS SECAS

Traball10 de Conclusao de Cursaal1resentacio aa Cursa de Licenciaturaem Letras portugu€s-Ingles daFaculdade de letras da un ivers ida deTuiuti do parana, como requisitoparcial para a obtencao do titulo deUcenciado em Letras.

Orienladora: Prol~Ora. Isadora Dutra

CURITIBA2010

SUMARIO

l.

2.

INTRODU~iiO ...

FUNDAM ENTA~iio TEO RICA ..

. 7

.. 11

2.1 BRASIL, L1TERATURA BRASILEIRA Ii GRACI LlANO RAMOS 11

2.2 o HOM EM, A SOCIEDADE, A L1NGUAGEM EO PODER... .. 14

.............15

.. 1B

A sociologia de Pierre Bourdieu 22

2.2.1

2.2.2

2.2.3

A PSicologia Historico-Cultural de Lev Vygotsky ...

A analise do discurso de Michel FOUGlUlt ....

3.

3.

ANALISE 27

II REALIDADE SOCIO-HISTORICA DE VIDAS SECAS.. .. 28

3.2

3.3

3.4

LlNGUAGEM E PENSAMENTO EM VIDASSECAS .. ......31

o PAPEL DA LINGUAGEM Nil CONSTRU~Ao DO SUJEITO 3:.

A LlNGUAGUEM E A ORGANIZA~Ao DA VIDA SOCIAL ..40

4. CONSIDERA~OES FINAlS 45

REFERENClAS:. .. 49

RESUMO

Esle trabalho explora as relac;:6es entre linguagem, pensamento e construc;:8.odo sujeilo no romance Vidas Secas (1938). de Graciliano Ramos.Especificamente, objetivou-se analisar a realidade s6cio-hist6rica retratada naobra e invesligar 0 papel da linguagemna conslru,30 desta realidade e dospersonagens, par1indo-se da hip6tese de que e passive1 recuperar na obra aconcepc;:ao linguistica do autor. A analise do trabalho eSla fundamentada naobra de Ires autores de diferentes campos do conhecimento que contribuirampara urna maior compreensao do papel da linguagem na formac;:aodo indivfduoe da sociedade: Lev Vygolsky. Michel Foucault e Pierre Bourdieu. Amelodologia empregada e analise do conteudo e pesquisa bibliografica. Apesquisa e de natureza qualitativa. A analise permite concluir que Vidas Secasconfigura-s8 como um encontro pertelto, na literatura, da obra dos Ires te6ricos- no ponto em que a linguagem e urn tema dominante, explicada e sentida emsuas diversas facetas: como organizadora do pensamento 16gico, comoformadora do sujeito psicossocial e, como elemento cultural atraves do qual seconstroem as relayoes de poder, mecanismo de dominayao e exclusao social

Palavras-chave: Vidas-Secas; linguagem e pensamento em Vidas e Secas.

1. INTRODU<;:AO

A obra Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, retrata 0 homem

sertanejo que sobrevive na adversidade. E a historia de uma familia de

retirantes que resiste a implacabilidade da seea - uma hist6ria circular, sem

comeyo nem tim, como e a pr6pria seea: as sertanejas empreendem uma

andanya continua, procurando apenas escapar ao sol escaldante e talvez

conseguir algum trabalho e com ida no trajeto.

Os personagens de Vidas Secas inserem·se em urn momento 11istorico

em que 0 Brasil come9ava a despontar como uma sociedade moderna, mas na

qual boa parte da popula9ao permanecia em condi90es de subdesenvolvimento

e pobreza extrema. Fabiano, Sinha Viloria e as filhos do casal exemplificam 0

perpetuo drama do trabalhador rural nordestino - suas vidas, secas como

tan las outras que vieram antes e depois deles, sao caracterizadas pela aridez

do meio sertanejo e encurtadas pela talta de tudo: de comida, de moradia, de

educayao, de saude, de saneamento basico e ate mesmo de comunicayao,

pois, em um ambiente on de tudo e minguado, a linguagem tambem e curta e

econ6mica.

Do come,o ao tim da obra, Graciliano Ramos aponta para as

dificuldades de comunica98o dos personagens - gente simples, sofrida, a

quem 0 acesso a escola foi negado e cuja linguagem e quase primitiva.

Fabiano, persanagem principal da obra, sabe ser esta uma deficiencia que a

coloca em desvantagem social - ele sequer conl1ece as palavras para se

defender de uma injustic;a safrida, nao tem Voz para lutar por si au pel os seus.

Por outro lado, preocupa·se com a curiosidade de seus tilhos por conhecer

palavras novas, pais percebe que, de alguma maneira, sua linguagem - ou sua

precariedade linguistica, seu quase emudecimento - as identifica com Qutros

de sua ciasse social.

o objeto de estudo deste trabalho a a explora9ao da linguagem em

Vidas Secas e sua ligac;ao com 0 homem nordestino e seu contexto social

na decada de 30 QU, mais especificamente, a articulac;8.oentre 0 contexto

socio-historico e a linguagem - que constitui, tanto naquele cenario retratado

por Graciliano Ramos, como nos dias de hoje, um elemento de poder ou de

submissao. 0 objetivo, portanto, e analisar as relac;oes que se estabelecem

entre a linguagem, 0 pensamento e a construc;ao do sujeito no romance

Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Os objetivos especfficos sao:

• Delimitar, na obra literaria, a realidacle socio-historiea que 0 autor

apresenta.

• Investigar - atraves de inferencias em relac;ao as dificuldades

lingOislicas de seus personagens - a concep9ao de linguagem do autor

e 0 papel que esta exerce na construc;ao dos personagens e da

sociedade retratada.

• Avaliar 0 impacto da linguagern na constru<;:aodos sujeitos de Vidas

Secas - e como sua auto-imagem esta relacionada a sua capacidade

linguistica.

De acordo com as objetivos citados, uma prirneira analise curnpre

delimitar a realidade socio-historica relratada pelo autor e sua rela9ao com a

produl'ao literaria do inicio do saculo XX e com sua propria biograiia.

Em um segundo momento, busca-se investigar a concepgao lingOlstica

do autor. que perpassa Vidas Secas atraves de seus personagens. Esta

analise se faz a partir de um campo te6rico multidisciplinar e esta em basad a na

obra de tres autores de diferentes campos do conhecimento que, sob

perspectivas diversas embora convergentes, contribufram para uma maior

cornpreensao do papel da linguagem na formag8.o do indivfduo e da sociedade:

o psic61ogo bielo-russo Lev Vygotsky (1896-1934), 0 fil650fo frances Michel

Foucault (1926-1984) e 0 tambem frances, fil6sofo de forma<;aoe sociol6go,

Pierre Bourdieu (1930-2002). 0 unico destes te6ricos, no entanto, que poderia

haver influenciado Vidas Secas (publicada em 1938) teria side Vygotsky:

Foucault e Bourdieu tinham, respectivamente, 12 e 8 anos quando 0 livro foi

lan9ado. Quanto ao psic610go russo, dificilmente Graciliano Ramos tenha tido

contato com sua obra ate a decada de 30 - divulgada anos depois de sua

morte pelos colaboradores Alexandre Luria e Alexei Leontiev e traduzida muito

tardiamente para 0 ingles, 0 espanhol e 0 portugues.1 Apesar disto, Vidas

Secas configura-se como um encontro perteito, na literatura, da obra dos tres

te6ricos - no ponto em que a linguagem e explicada e sentida em suas

diversas facetas. Sob a otica destes mesmos autores, e posslvel tambem

avaliar 0 impacto da linguagem na constru9ao dos personagens do romance.

A metodologia a ser empregada e a analise de conteudo e pesquisa

bibliografica. A pesquisa e de natureza qualitativa, ja que os dados analisados

nao podem ser interpretados quantitativamente: como ressaltou Minayo (2004,

p. 74), destaca-se, na analise de conteudo, "a fun,ao de descobrir 0 que esta

1 A primeira traduyao de Pensamento e Linguagem fol lan<;adanos Estado Unidos em 1962 e aprimeira publica~ao na America Latina data de 1964, na Argentina. No BrasH, ioram traduzidosForma98o social da mente em 1984 e Pensamento e Linguagem em 1987 (PINO, A. S.;MAINARDES. 2000).

10

par tras dos conteudos manifestos, indo alam das aparencias do que esta

sendo comunicado".

Para maior clareza na exposi98.0, este trabalho divide-se em 4 partes:

esta introduc;:ao, au parte 1, introduz as objetivos e a metodologia do trabalho; a

fundamenla,ao teorica, ou parte 2, divide-se em 2 partes: a primeira trata do

momento brasileiro da literatura no infcio do secula XX e da obra do autor

inserida neste contexto cultural e a segunda resume as contribuiyoes de

Vygosky, Foucault e Bourdieu. A analise, constante da parte 3 do trabalho, esta

dividida tambem em duas paries - a primeira, destinada a descrigao do

contexto s6cio-hist6rico e literario da obra; a segunda dedica-se a investigayB.o

da concep,ao de linguagem - e sua fun,ao social - em Vidas Secas. As

considera90es finais perfazem a parte 4 do texto.

II

2. FUNDAMENTACAO TEORICA

Esta fundamentac;:ao teoriea esta dividida em duas partes, a fim de

cumprir as objetivos de analise propostos na introduyao do texlo de maneira

16gica: a primeira parte delimita concisamente a produc;ao litera ria do inicio do

seculo XX, relacionando-a com 0 autor, seu pr6prio momento historico e sua

obra; a segunda parte resume as principais contribui90es de Lev Vygotsky.

Michel Foucault e Pierre Bourdieu para a compreensao das relaGoes entre

sociedade, linguagem e poder.

2.1 BRASIL', LlTERATURA BRASILEIRA E GRACI llANO RAMOS

No inicio do seculo XX, 0 Brasil vivia praticamente em funt;ao do cafe -

produto que representava 75,6% do valor das exportac;:6es brasileiras e cuja

exportac;ao constituia a grande riqueza do pais desde 0 fim do seculo XIX. Os

produtores de cafe detinham enorme poder econ6mico e tambem politico, pois

haviam apoiado a ProclalTla,ao da Republica Brasileira (15 de novembro de

1889, Rio de Janeiro) e ajudado a instaurar 0 regime republicano, derrubando a

monarquia,

A classe dominante no infcio do sEkulo XX, portanto, era primeiramente

composta de cafeicultores, cujo poder estava concentrado majoritariamente em

Sao Paulo. 0 segundo estado mais poderoso em termos econ6micos e

populacionais era Minas Gerais, que possuia 0 maior rebanho bovina do pais.

o acorda entre os dois estados previa sua alternancia no poder, dar a perfodo

2 Os dados historicos constantes desta analise foram adaptados de Passaporre para a Historia,de Renato Mocellin e Rosiane Camargo (Vol. IV. Sao Paulo: Editora do Brasil, 2004).

12

da Republica Velha (1894-1930) ficar conhecido como "Republica do cafe com

leite"

Desde a inicio de sua hist6ria, 0 Brasil teve a divisao de terras baseada

em grandes propriedades - em 1920, 63,4% das areas agricolas do pais era

de latifundios - 0 poder polftico, social e econ6mico estava, portanto, nas maos

das oligarquias regionais (nordestinas, gauchas) dos baroes do cafe e dos

pecuaristas mineiros. As oligarquias regionais, par sua vez, eram comandadas

par "coroneis": a patente de Coronel da Guarda Nacional, criada durante a

regencia, deixou de S8 relacionar com 0 exercito e passou a ser usada para

destacar as chefes polfticos estaduais e municipais, au seja, os "coroneis"

brasileiros passararn a ser as proprietarios de muitas terras.

A crise de 1929, nos Estados Unidos, teve serios reflexos economicos

no Brasil, ocasionando a queda dos preyos dos principais produtos que 0 Brasil

exportava -- cafe e a9ucar. Neste periodo de crise, Q poder econ6mico dos

coroneis come9a a declinar (apesar disto, muitas das grandes fortunas do

Brasil e os detentares do poder foram, durante todo 0 seculo XX, descendentes

dos "coroneis"· a exemplo das familias de ACM na Bahia e de Jose Sarney no

Maranhao, que somente em 2008 perderam elei90es em seus estados). A

perda do poderio economico resultou em uma redistribui<;aodo poder politico e,

em varios estados, uma serie de revoltas - lideradas por oligarquias opostas ao

governo de Washington Luis - culminou com a Revolu<;ao de 1930, que

colocou fim a republica do cafe-com-Ieite e deu infcio as mudanyas

consolidadoras da modernizay8.o do Brasil.

o inicio do seculo xx no Brasil foi marcado, portanto, pela crise no

modele economico vigente e par contesta<;oesdo poder da oligarquia: revoltas

I.l

tenentistas, dissidencias oligarquicas (as oligarquias que estavam fora da

republica do cafe-com-Ieite ansiavam per ampliar seus poderes), lutas

operarias e greves - reprimidas violentamente pelo governo.

Paralelamente as fermentayoes politicas no cenario nacional, surgiram

as propostas de renov8yao estetica nas artes, que - influenciadas pelas

vanguardas europeias - teriam como momento inaugurador a realiZ8y8.0 da

Semana de Arte Madema de 1922. Embora naquele primeiro momento as

renov890es propostas nao tenham resultado em IJrn8 tendencia literaria

"engajada", a partir da decada de 30 come,a a emergir no Brasil uma literatura

de carater social e regionalista. 0 marco hist6rico desta tendencia toi 0

Congresso Regionalista de Recife, de 1926, em que foi lido 0 Manifesto

Regionalista3 - uma proposta de literatura social e regional que, a um s6 tempo,

polemizava e complementava as formulagoes modernistas propostas sobretudo

em Sao Paulo, clamando para ° terreno das artes a valorizagao das

singularidades e dos problemas regionais, do homem comum - 0 sertanejo - e

das tradi,oes legadas pelas diversas culturas que compunham 0 Brasil.

A literatura, a partir desse eneontro, passa a refletir uma postura de

comprometimento com a problematica social e, prineipalmente, corn a realidade

do nordestino, que (sobre)vivia a uma economia e politica arcaicas em um

universo corrupto, em que 0 coronelismo e os latifundios juntavam-se a seea

para desenhar um quadro social miseravel. A visao social eritiea ecaraeteristica comum da prosa regionalista de 30 e notavel nas obras de seus

maiores names: os nordestinos Graciliano Ramos, Jose Lins do Rego, Jorge

"3 Disponfvel online:hllp:llwV!.'!;Lflrq.ufsc.br/arq5625/rnodulo2rnodernidade/rnanifeslos/manifesloreqionalisla.htm

14

Amado, Rachel de Oueirez e Jose Americo de Almeida e 0 gaucho Erico

Verfssimo.

Alagoas, provincia elevada a estado com a Proclama,ao da Republica e

ber<;o dos dais primeiros presidentes republicanos - Deodoro da Fonseca e

Floriano Peixoto - toi tambem a terra natal de Graciliano Ramos, 0 maior

represenlante do romance de 30. No entanto, masma durante 0 perlodo

republicano, Alagoas manteve as caracteristicas econ6micas e sociais do

Brasil colonial: economia basicamente agricola, baseada na produyB.o

canavieira (Zona da Mata) e algodoeira (Agreste),

Nascido em 1892, a escritor cresceu durante as primeiros anos da

instaurac;:ao da Republica e viveu os grandes acontecimentos mundiais e

nacionais do seculo XX: a Grande Guerra, a crise mundial de 1929, a

Revolu,ao de 30 e a Segunda Guerra Mundial. Sua obra revela certo

pessirnismo em relac;:aoa natureza humana, comUIl1 aquele periodo de tantos

conflitos, e desnuda os problemas sociais pelos quais 0 Brasil (e mais

especificamente 0 nordeste) passava nesse periodo histerico: as mazelas de

uma estrutura agraria em declinio, 0 regime de trabalho que continuava sendo

escravo, as relac;6es soeiais de dominac;ao, a seea - enfim, a situayao limite do

homem nordestino, a quem Graciliano Ramos confere voz e sentimento.

2.2 0 HOMEM, A SOCIEDADE, A L1NGUAGEME 0 PODER

A sistematiza,ao da obra de qualquer dos tres autores estudados a

seguir - Vygotsky, Foucault e Bourdieu - seria impossivel dentro do escopo

deste trabalho, considerando-se que dezenas de milhares de paginas tem sido

escritas sobre cada uma de suas contribui,6es, sem que se tenha pretendido

exaurir os temas de estudo por eles propostos, 0 que se segue, portanto, sao

15

apenas recortes de suas contribui90es - especial mente no tangente as rela90es

entre sociedade, poder e linguagem - que servirao de embasamento para a

posterior analise de Vidas Secas sob 0 olhar multidisciplinar (Ia Psicologia, da

Filosofia e da Sociologia dos autores citados.

2.2.1 A Psicologia Hist6rico-Cultural de Lev Vygotsky

A corrente psicologica que busea explicar 0 desenvolvimento e 0

aprendizado humanos com base nos principios do materialismo hist6rico4 tern

suas origens na obra de Lev Semenovitch Vygotsky e e amplamente

denominada "historicQ-cultural".

Para Vygotsky (1993), em Pensamento e Linguagem, 0 desenvolvimento

individual do ser humano S8 da em um contexto que nada tern de natural, mas

e deterrninado par condic;:6es histcrieas e socia is (8 vida material), as quais

moldam a consciencia e 0 cornportamento. Esta media<;ao social do

conhecimento S8 da, primordialmente, at raves de instrumentos e at raves dos

signos (VYGOTSKY, 1987, 1993). Em termos simples, os instrumentos

representam a forma externa de rela<;:8.o com a mundo, as signos, a forma

interna.

Mais especiflcamente, os instrumentos representam a a<;:ao

transformadora do homem sabre a natureza: a machado, par exemplo, e urn

instrumento, a faca, outro. 0 ser humane dominou a natureza com a inven<;:B.o

4 Compreende-se por materialismo historico 0 metodo de analise da sociedade, da economia eda historia. elaborado por Marx e Engels. que propoe que a reaiidade deve ser estudada apartir da analise das estruturas e superestruturas que circundam urn determinado modo deproduc;ao. Nesse senlido, a hisloria deve seT analisada a partir das condi(fOes concretas devida e. portanlo. tern sua base fincada nas raizes do mundo material, organizado par lodosaqueles que compoem a sociedade. Nas palavras de Marilena Cl1aui: "Materia/ismo, porquesomos 0 que as condit;oes maleriais (. .. J nos delerminam a ser e a pensar. Hist6rico porque asociedade e a po/ilica mio surgem de decre/os divinos nem nascem da ordem natural, masdependem da 8980 cancre/a dos seres humanos no tempo". (Chaui. M. 1995, p. 214).

16

de inslrumenlos - inven,6es que Ihe conferiram uma capacidade adaplativa

maior que a de Qutros anima is. Assim como as instrumentos ajudaram as

humanos a dominar uma quantidade cad a vez maior de ac;oes sobre 0

ambiente, os sistemas de signos - que tam bern forarn criados pela sociedade

ao longo do Cllrso da hisloria - possibilitararn 0 dominio da linguagem falada e

escrita, bern como as sistemas numericos, essenciais na constituic;ao das

sociedades.

Tanto instrumentos como signos, no entanto, sao transmitidos

culturalmente - a funl;ao de um machado, por exemplo, como instrumento

usado para dominar 0 ambiente, s6 e conhecida porque este instrumento foi a)

concebido pelos ancestrais humanos e b) utilizado em algum momento na

intera<;:aoem grupos sociais, de modo que sua finalidade foi fixada.

o signo, par sua vez, tambem e socialmente lransmitido - at raves do

cantata social aprende-se que uma fruta com certo formata tern 0 nome "mac;a"

em certa cullura e em certa lingua. Dentro desta perspectiva, as linguas

humanas nada mais sao que sistemas de signos produzidos socialmente e

repassados atraves de gerac;5es. Para Vygotsky, a internaliza,ao dos sistemas

de signos - a 8quisiC;ao da linguagem - propulsion a transformac;6es mentais e

comportamentais que possibilitam 0 desenvolvimento individual. A linguagem e,

assim, uma func;:aopSicol6gica superior, que distintivamente ajuda 0 homem a

organizar internamente seu mundo exterior.

Essas proposic;6es de Vygotsky ace rca do processo de internaliza,ao de

signos - ou de formac;ao conceituaJ, em um sentido mais amplo - remetem a

uma questao que foi e e de extrema importancia para a Psicologia e para

outros campos do conhecimento (como a filosofia e linguistica, por exemplo): a

17

relaC;aoenlre pensamenlo e linguagem. Para Piagel (1896-1980), um dos mais

influentes psic61ogos de todos as tempos, a linguagem, como qualquer Dutra

tarefa cognitiva, e construfda a partir do desenvolvimento interno do raciocfnio

da crianc;a em sua relac;:aocom 0 meio - entendido como 0 rnundo "natural" -

que desafia e complementa os processos inlernos. Apesar de Piagel

considerar 0 meio ambiente em sua proposta construtivista da aquisi9ao da

linguagem, esla partiria de um processo interno. Ja Vygolsky, conhecedor,

admirador e critico de Piaget, elaborou sua teoria partindo nao do

desenvolvimento interne influenciado par urn meio "natural", mas de uma

aprendizagem que primeiro e externa, em urn meio muitas vezes intermediado

pelo Irabalho e conhecimento humanos.

Tanto Vygotsky quanto Piaget sao charnados interacionistas, par

considerarem a intera<;ao entre 0 meio e os fatores biol6gicos au inatos.

Porem, na abordagem do psicologo russo, a linguagem tem UI11 papel de

conslrulora e de propulsora do pensamento. A linguagem seria 0 motor do

pensamento, contrariando assim a concep<;:aodesenvolvimentista Piagetiana

que considera 0 desenvolvimento a base para sua aquisic;ao:Vygotsky atribuiu

impartancia fundamental a fatores externos, interpessoais, no desenvolvimento

da lingua gem e da aprendizagem.

Deste modo, se para Piaget 0 pensamento organizava a linguagem, para

Vygotsky pensamento e lingua gem constroem-se em urn movimento dialetico:

a linguagem surge da capacidade de internaliza<;aode signos5, capacidade que

auxilia na organizac;ao de ideias e de pensamento abstrato, que par sua vez s6

!o A leor~a.doaprendizado de Vygotsky.e chamada lal:nbem de "inl~racionismosocial", "sOcio-const(U'IVIS~llO" ou "construtivismo social", pois a crranya internallza, em sua a~ao com 0mundo. a Imguagem de seu grupo social e ao mesmo tempo constroi seu conhecimento domundo pela hnguagem.

IS

e passive I at raves da organiza<;:ao em urn sistema logleD coerente - a

linguagem. mediada pelo intercambio material com 0 Qutro. 0 homem S8 reeria

em todas suas capacidades cognitivas atraves do seu meio socia-cultural - as

funyoes que sao tipicamente 11urnanas (memoria, pensamento abstrato,

intencionalidade de a,ao), ctlamadas de fun,oes superiores do ser humano,

sao organizadas e desenvolvidas atraves da linguagem e mediadas pelo meio

socia-cultural. Este posicionamento teorico implica em que e a qualidade total

das tracas culturais disponiveis ao individuo que determinam sell modo de

pensar e seu desenvolvimento - distanciando. em muito, 11psicologia historico-

crftica das correntes psicol6gicas que explicam 0 comportamento humane a

partir de v;soes un;d;mens;ona;s: Freud atraves do inconsciente, Skinner

atraves do comportamento e Piaget atraves da cogni<;ao.

2.2.2 A analise do discurso de Michel Foucault

Se Vygotsky pensou a [ela,ao entre pensamento e linguagem em

termos psicossociais, ou seja, como esta rela~ao se constr6i nas trocas entre

individuo e sociedade, 0 frances Michel Foucault foi urn dos precursores da

abordagem da linguagem em termos de "discurso" - no qual estao em jogo nao

somente 0 sujeito e a hist6ria, mas tambem 0 poder. 0 campo de estudos

denominado Analise do Discurs06 tem origem na Fran,a da decada de 60 e

propoe, em linhas gerais, que todo enunciado pode ser analisado atraves de

suas constru<;6es ideol6gicas.

6 As considera90es sabre a Analise do Discurso constanles desla se~ao do Irabalho foramfundamentadas nas obras: Introdu9ao a Analise do Oiscurso, de Helena H. Nagamine Brandao.7~ ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp. 1998 e Analise do discurso. Principios eprocedimentas. de Eni Pulcinelli Orlandi, Campinas, SP: Editora Ponies. 2000.

19

Foucault (1969) concebeu 0 conceito de discurso como um conjunto de

enunciados que S8 apoiam na mesma formay8.o discursiva - coneeito mais

tarde desenvolvido por Pecheux (1975) para nomear tambem 0 ponto de

articulay8.o entre discurso e ideologia: tad a forma~ao discursiva e governada

par uma formac;ao ldeologica e e marcada por regularidades, ou seja, por

regras que delerminarn 0 que pode e deve ser dilo a partir de ceria posi,ao na

vida social.

o discurso, portanto, nao S8 confunde meramente com a expressao de

ideias e pensamentos ou com formulac;oes de frases - ele vincula-s8 a urn

conjunto de regras anonimas, hist6ricas, sempre determinadas no tempo e no

espac;o, que definem, em uma dada epoca e para uma determinada area

social, economica, geografica ou lingliistica, as condic;oes de exercfcio da

funyao enunciativa.

Em Dutras palavras, todo discurso _. pensamento, toda tala, todo 0

conhecimento de uma epoca - e coordenado por urn grupo relativamente

pequeno de ideias fundamentais - os enunciados. 0 enunciado e uma especie

de sintese do pensamento intelectual e, como 0 discurso, muda com 0 tempo:

o que e enunciado, ou "anunciado", 0 que e dito ou expresso, ° que da

significado ao que e dito, e circunstancial.

A identificac;ao do sujeito falante com sua forma,ao discursiva. no

entanto, ocorre de mane;ra quase sempre inconsciente: 0 falante tern a

impressao, ou a falsa "certeza", de ser 0 autor de seu proprio discursa, quando

em realidade seu discurso e apenas uma fun<;aode sua forma<;aodiscursiva ou

ideoI6gica7·"O discurso nao e fecllado em si mesmo, nem e do dominio

7 A forma(fao ideologica e constituida por um conjunto complexo de atitudes e representat;:6esque nao sao nem individuais, nem universais, mas dizem respeito. mais ou menos diretamenle,

20

exclusivo do locutor: aquila que S8 diz significa em relac;ao ao que naG S8 diz,

ao lugar social do qual se diz, para quem se diz, em relac;ao a outros discursos"

(ORLANDI,2000).

Foucault trac;a 0 papel do discurso a processos socials mais amplos de

legitimac;ao de poder, enfatizando a conslru<;8o de verdades - e como estas

sao mantidas. 0 discurso, propos Foucault, tern uma funlfao essencial no

poder, urna vez que e urn elernenlo de rnanulen,ao de poder e de exclusao' -

sendo esta a principal razao pela qual certos textes ficam sempre inalcanc;8.veis

para urna grande parcela da popula,ao (Iexlos lecnicos, lexlos lileri"ios cullos,

textos juridicos, textos de especialistas. medicos. economicos e a maior parte

dos lexlos acadernicos).

Sao poucos as privilegiados com acesso ao entendimento de discursos

variados. e mais reduzido ainda e 0 numero dos que se podem pronunciar, po is

o discurso e controlado, em diversas epocas, em diversas areas, de modo mais

ou menos sutil - ha assuntos tabus para cada epoca, para cada area de

conhecimento e para 0 que e ace ito como "verdade", como notou Foucault:

o importante, creio. e que a verdade nao existe lera do poder ausem poder (nao e - nao obstante um mito, de que seria necessariaesclarecer a hist6ria e as lunyoes - a recampensa dcs espfritoslivres, a IiIho das longas solidoes, 0 privilegio daqueles quesouberam se libertar). A verdade e deste mundo; ela e produzidanete grayas a nlullip!as coeryoes e nele prorJuz eleitasregu!amentados de poder. Cada sociedade tern seu regime deverdade, sua "politica geral" de verdade: isto e, as !ipas de discursaque ela acalhe e laz luncianar como verdadeiros; os mecanismos eas instimcias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros doslalsos, a maneira como se sanciona un.:;e oulros; as tecnicas e osprocedimentos que sao valorizados para a obtenyao da verdade; 0

estatuto daqueles que tern 0 encargo de dizer 0 que lunciana comoverdadeiro. (FOUCAULT, 2008, p. 10)

as posic;oes de classe em conflito umas com as aulras. Gada lormacao ideol6gica podecompreender varias lormac;Oesdiscursivas interligadas (BRANDA-O,1998, p.90).

(J Para 0 aprofundamento das discussoes sabre saber e poder. ver: Foucault, M. A arqueologiado saber. Rio de Janeiro: Forense. 1997.

21

Por iS50 mesmo, certos enunciados remetem imediatamente a certas

fonna<;:oes discursivas - 0 discurso do professor e diferente do discurso do

aluno, 0 discurso do patrao dilere do discurso do empregado. Os sujeitos deste

universe de discursos que se cruzam estao sempre "sujeitos" a varios

discursos, alguns mais familiares que os outros: 0 discurso publicitario, 0

economico, 0 politico, 0 religioso, 0 feminista, 0 pSiquiatrico, 0 medico, 0

pedag6gico, etc.; e, de modo geral, e possivel reconhecer ern cada um deles 0

conjunto de enunciados que sao proprias de seus sistemas de forma~ao

discursiva. Ou seja: eada uma deslas areas do saber tern uma linguagem que

funciona como uma matriz de sentido - as falantes destas "lfnguas" se

reconhecem dentro de S8US discursos. as que nao as dominam fieam amargem dessas matrizes de senlldo.

Compreender os enunciados - 0 Que e dito, a forma como e dito e

mesmo 0 que nao e dito - e a via de acesso f.l compreensao do discurso (em

suas mais variadas manifesta90es) e de sua ideologia. E entender os discursos

e, par sua vez, compreender tambem os processos mais amplos de legitima98.0

do poder que estes discursos encerram. lrata-se de urn esfo,,;o de interrogar a

linguagem, de se perguntar par que algo e dito aqui, desle modo, nesta

situagao - e nao em outro tempo e lugar, de forma diferente - e de investigar

sobre as posigoes necessarias ao falante para que ele, efetivamente, possa ser

sujeito daquele enunciado.

Para Foucault e a Analise do Discurso, assim como para Vygotsky, 0

homem se constitui sujeito atraves da lingua gem, quando se apropria dos

modos de signilicar que Icram estruturados pela lingua de seu grupo social. 0

discurso, como pratica social (e nao individual), deve ser tambem analisado

22

dentro de seu contexto hist6rico-social. Foucault, no entanto, relaciona a

apropria<;aodos mais distintos modos de signifiear ao poder: saber e podeL

2.2.3 A sociologia de Pierre Bourdieu

Urn dos obituarios de Pierre Felix Bourdieu, escrito por Douglas Johnson

para 0 jornal britanico The Guardian, sumariza bern a importancia que 0

socialogo frances teve no cenario intelectual do sEkula XX:

Como pensador, e!e fol tao importanle para a segunda metade dosecu!o quanto Sartre 0 fo! para a primeira (...) sua morte priva aFran~a de urn de seus maiores intelectuais do pas-guerra, urnpensador do rnesmopeso de Foucault. Barthes e I..acan (.JOHNSON,2002).

Detenninado a criar uma Sociologia fundamentada na pesquisa

empirica, que fosse embasada na vida diaria e tambem selVisse ao propasito

de hazer maior compreensao dos problemas socials para soluciona-Ios,

Bourdieu influenciou as mais diversas areas do conhecimento, incluindo

educa<;ao,arte. literatura, lingLiistica, cultura, politica e mfdia. 0 tema do poder

fOi, para a 80ciologia de BOllrdieu assim como para a filosolia de Foucault, de

importancia central: as conceitos de capital cultural, capital simbalico e

violencia simb6lica (BOURDIEU, 1986), por exemplo, foram desenvolvidos por

ele para explicar a dinamica do poder nas diferentes esferas sociais.

Segundo Bourdieu, cada indivfduo ocupa urn espa<;o social que emultidimensional e nao simplesmente estabelecido por sua filia930 em uma

classe social, uma vez que esta nao e a unica esfera a definir 0 sujeito. Este

espa,o social multidimensional e determinado por distintas formas de capital

que a individuo pode articular. As redes de relacionamento social (os hoje

famosos "networkings"), por exemplo: constituem lima forma de capital - 0

23

capital social9 - que, conforme Bourdieu procurou rnostrar, e usado para

produzir, manter ou reproduzir desigualdades. Oeste modo, duas pessoas da

mesma cia sse social, mas com capital social distinlos, ocupam espa<;os sociais

dislintos.

A cada urn dos multiplos "papeis" que a individuo desenvolve atraves de

sua filia,30 nos mais diversos campos (dai 0 sentido de multidimensional),

correspondem habitos10 especificos - uma opiniao, urn modo de falar, um

conjunto de maneirismos proprio daquele campo, par exemplo - que sao

tipicos de sua POSi,30 no espa:;:o social (BOURDIEU. 2007). Estes M.bilos a

urn so tempo legHirnam 8 reproduzem as relac;:oes de poder estabelecidas entre

indivfduos que ocupam espa<;os socia is distintas.

Se, par urn lado, as hcibitos mostrarn e reafirmam a posi<;ao social do

individuo, sao as mais variadas formas de "capital" que determinam esla

POSiC30. No texto The Forms of Capital, Bourdieu (1986, p. 241-258) explica

estas diferentes formas de capital:

o 0 capital economico, que e irnediatamente e diretamente convertido 8m

dinheiro e pode ser institucionalizado na forma de direitos de

propriedade;

9 Bourdieu definiu capital social como "a soma dos recursos reais ou vinuais que individuos augrupos de individuos adquirem devido ao lata de possuirem redes duraveis de relacionamentossociais mais au menos institucionalizados de reconhecimento e conhecimento mutuos"(BOUflDIEU. 1986. p. 249).oOs termos habito e campo foram desenvolvidos por Bourdieu para explicar a forma como 0ser social se desenvolve. Em termos simples, habitos, como a palavra sugere. saocomportamentos aprendidos em sociedade - esquemas adquiridos desde as primeiros dias devida. que envolvem percepGao. pensamento e ar;:ao(as formas aprendidas de pensar. fazer,ver 0 mundo, em suma). Os hahir05 sao moldados nos campos - ambientes sociaisestruturados, com regras, esquemas de dominar;:ao.legitimac;aode opinioes - e servem paradistinguir e afirmar socialmente os indivfduos. Para um aprofundamenlo destes conceitos e dosmecanismos de ?istinr;:aosocial atraves de habitos, vef a obra A distint;ao: critica socia! doJulgamento - publ1cadaem 1979 e traduzlda para 0 porlugues em 2007 (BOURDIEU, 2007).

24

o 0 capitat cultural, que compreende nao somente 0 aprendido e

internalizado desde a mais lenra infancia, mas tambem 0 acesso a bens

culturais concretos que facilltam a aprendizagem - como Ilvros, acesso a

obras de arte e produyoes culturais, instrumentos e maquinas e, ainda.

na forma institucionalizada de capital cultural, como diplomas e titulos

(que conferem ao portador propriedades que presumem garantir);

o 0 capital social, que corresponde ao conjunto de recursos, reais au

potenciais, ligados a rede de rela~6esinterpessoais em que 0 sujeito

esla inserido ou constr6i em torno de si com 0 prop6sito deliberado de

aumentar seus recursos.

A obra de Bourdieu enfatiza a importancia do capital cultural: sao as

diferenyas de capital cultural que verdadeiramente marcam as posic;:6es entre

classes e intra-classes. Em larga escala, a aquisi~ao do capital cultural

depende do aprendizado que ocorre desde as primeiros dias de vida - 0

aprendizado imperceptivel, insidioso, atraves do qual as familias passam sua

heranya de atiludes culturais aos tilhos.

Oeste modo. 0 capital social e 0 capital cultural, embora possam ser

adquiridos com 0 tempo, sao largamente determinados pela origem social, ou

seja, pelo capital economico e cultural de nossos ancestrais. Para Bourdieu, as

classes socia is, especialmente as classes intelectuais e dominantes,

preservam seus privilegios socia is - ou seu poder - par gerac;:oes, atraves da

manipula,ao dessas variadas formas de capital. Embora, como notou 0 proprio

autor, 0 mito da era pas-industrial alarde igualdade de oportunidade atraves

dos rnecanismos da educayao formal.

25

Uma das transmiss6es socio-culturais mais importantes, segundo

Bourdieu, e a transmissao da lingua - sotaque, proficiencia gramatical e

linguistica e estilo sao parte do capital cultural do individuo e formam, tambem,

um fator de mobilidade social, inclusive acesso a melhores empregos e maior

status social.

Bourdieu escreveu extensamente sobre a linguagem11 e sua relaGao

com 0 poder e a politica, sendo urn critico tanto do posicionamento

estruturalista de Saussure sobre a linguagem quanto do posicionamento

rnentalista e inatista de Chomsky. Para Bourdieu, a linguagem deveria ser vista

nao apenas como um meio de comunicaGao,mas como urn campo de exercicio

de poder. atrav8s do qual individuos perseguem seus interesses e demonstram

suas cornpetencias praticas:

A estrulura da relacao de producao linguistica depende da relacaode for41a simb61ica entre os dois locutores, islo e, da importancia deseu capital de autoridade (que nao e redulivel ao capitalpropriamenle lingDistico): a compelencia e tarnbem. portanto,capacidade de se fazer escular. A lingua nao e sornente urninstrumenlo de comunica41ao ou mesmo de conhecimento, mas uminstrumenlo de poder. Nao procuramos somenle ser compreendidos.mas tambem obedecidos, acreditados, respeitados. reconhecidos.Oai a defini41ao completa da competencia como direito a palavra. isloe. a linguagem legftima como linguagem aulorizada, como linguagemde auloridade. A compelencia implica 0 poder de impor a recepcao.Vemos aqui. navamenle, 0 quanta a definicaa IingO[stica decompetencia e abstrata: 0 lingOista tem por assente a que. nassituacoes da existencia real. canstilui 0 essenciat. islo e, ascondi90es de instaura~ao da comunica9ao. Ele se outorga 0 maisimportanle - a saber, que as pessoas !alam e se falam (estao emspeaking terms). que os que falam cansideram os que escutamdignos de escutar e os que esculam consideram os que falam dignosde falar. (BOURDIEU. 1977, p. 149)

Os falantes da lingua utilizam seus recursos linguisticos acumulados e

implicilamente adaptam suas palavras as necessidades sociais circundantes -

11 A economia das trocas fingiifsficas: 0 que (afar quer dizer (Sao Paulo, EdHora da USP. 1996)e 0 Poder Simb6lico (Tradw;ao Fernando Tamaz. 2.ed. Rio de Janeiro. ed. Berlrand Brasil1998).

26

assim. cada interaC;30 lingufstica, embora pessoal au aparentemente

insignificante, traz as marcas das estruturas socia is que estao par tras de sua

produc;ao. Isto quer dizer, em termos simples, que quanta mais recursos

lingOisticos temos, maior nosso capital cultural e maior nossa poder.

Qutros dais conceitos discutidos par Bourdieu sao ainda essenciais para

a analise proposta na introdu,ao deste texto: 0 de capital simb6lico e 0 de

violencia simb6lica. 0 capital simb61ico12 constitui uma fonte subjetiva de poder,

relacionada a outras formas de capital, e inclui recursos disponfveis a urn

individuo com base no prestfgio au reconhecimento, percebido atraves de

esquemas inculcados culturalmente. 0 reconhecimento do capital simb6lico

pode se dar, par exemplo, atraves de insignias - como as do uniforme militar,

as vestimentas sacerdotais, os brasoes de familia - simbolos que ligam 0

sujeito a uma forma de poder. Em uma sociedade como a norte-americana, por

exemplo, constilui capita! simb61ico 0 sujeito haver sido combatente de guerra-

este capital e frequentemente manipulado em campanhas politic as.

A violencia simb6lica, par sua vez, e a capacidade, usada em interesse

pr6prio, de fazer com que a arbitrariedade da ordem social seja au ignorada ou

passada como natural, justificando assim a legitimidade da estrulura social

existente. 0 usa de qualquer forma de capital para coagir qualquer pessoa em

situag8.o de inferioridade social constitui violencia simb6lica: dominar uma

lingua e parte do capital cultural de um individuo; quando, porem, 0

desempenho linguistico e utilizado por um individuo para 0 exercicio do poder

sobre alguem com menor desempenho, a violencia simb61ica esta em a98.0.

12 0 conceilo loi apresentado pela primeira vez em A Distin9ao: critica social do julgamento,Porto Alegre, Editora Zouk, 2007, e expandido em oulras obras do aulor.

27

3. ANALISE

o enredo de Vidas Secas gira em torno da fuga da seca do sertao -

"gira" porque realmente a narrativa e circular: inicia-se com urn andar rumo a

uma sombra, agua e com ida e term ina no mesma ponto. A circularidade da

narrativa revela a situac;ao do sertanejo, que tem sua vida organizada e

determinada pelo cicio da seca - 0 drama social dos 11abitantes do Nordeste.

as protagonistas, membros de uma unica familia de retirantes, sao

apresentados ja no primeiro capitulo:

Na planicie avermelhada as juazeiros alargavam duas manchasverdes. Os infelizes linharn caminhado 0 dia inteiro. estavamcansados e faminlos( ...) Sinha Viloria com 0 filho mais novoescanchado no quarto e 0 ball de lolha na cabeya, Fabiano sombrio,cambaio, 0 aia a liracolo, a cuia pendurada nua correia presa aocinturao, a espingarda de pederneira no om bro. 0 menino mais velhoe a cachorra Baleia iam alras (p. 9).

A Mudanp a que se refere 0 titulo do primeiro dos 13 capitulos da obra

- os quais, alias, estao relacionados apenas tematicamente - e quase uma

ironia: Fabiano e Sinha Vit6ria arrastam-se em algum lugar do nordeste

brasileiro, sem propriamente "mudar" nada ou mudar para lugar nenhum. A

seca persegue estes personagens nomades, que denunciam as condi~5es

sociais da maioria da popula~a.o nordestina da primeira metade do seculo xx.

Graciliano Ramos utiliza 0 discurso indireto livre (tecnica narrativa em

que 0 narrador reproduz indiretamente falas e pensamentos dos personagens)

para dar voz e humanidade a esses seres que se confundem com a paisagem

e que tern dificuldades em se expressar verbalmente. Muitas vezes a voz do

narrador se funde com a voz de Fabiano, articulando os pensamentos do

personagem:

28

Se pudesse economizar durante alguns meses, levantaria a cabe9a.Forjara pianos. Tolice, quem e do chao nao 5e trepa (p. 98)

Passar a vida inleira assim no toco. entregando 0 que era dele demao beijada! Estava direito aquila? Trabalhar como negro e nuncaarran jar carta de alfarria! (p. 99)

E 8ssa voz dada ao nordestino oprimido em Vidas Secas que permite ao

leitor refletir sabre 0 embate entre 0 homem e a natureza, entre 0 homem

"bruto" e 0 homem "civilizado", entre 0 sertao e a cidade, entre 0 univerSD do

letrada e do naG letrada, entre as que detem 0 poder e os que vivem

submetidos a ele. 0 tempo e 0 espa90 da narrativa sao fragmentados, como

sao Iragmentados os pensamentos de Fabiano na prosa engajada que chama

a atenc;:ao para a antftese do titulo: a seca S8 opoe a vida.

A seca, porem, e apenas 0 opositor mais imediato - aquele que Fabiano

consegue divisar mais claramente: embora de modo inarticulado, ele

compreende tambem que vive em uma ordeln social injusta, calcada na

explora9ao do trabalho sertanejo. E esta ordem social que Graciliano Ramos

delata e critica atrav8S de Fabiano e sua familia.

3. 1 A REALI DADE SOCIO-HISTORICA DE VIDAS SECAS

Escrita em 1938 por um filho legitimo do agreste, esta obra insere-se no

momento da Iiteratura brasileira em que S8 comec:;ava a valorizar 0 homem

comum, a linguagem e os costumes regionalistas e a abordagem de problemas

socia is. A realidade delineada no romance vai multo al8m das decom§ncias da

seca e a obra revela·se como urna critic a a economia e as relac;:oes de trabalho

que vigoravam no sertao que 0 autor conhecia bern:

Consumidos os legumes. roidas as espigas de milho. recorria agavela do amo, cedia por pre90 baixo 0 produto das sortes.Resmungava, resingava, numa afiic;ao. tenlando espichar os

29

recursos minguados, engasgava-se, engolia em seeo. Transigindocom Qutro, nao seria roubado tao descaradamente. Mas receava 5erexputso da fazenda. E rendia-se. ( ...) Pouec a paueD 0 ferro doproprietario queimava as bichos de Fabiano. E quando nao tinharnais nada para vender, 0 sertanejo endividava-se. Ao chegar apartilha. estava encalacrado, e na hara das conlas davarn-the umaninharia."(RAMOS, p. 98)

Em Qutras palavras, Fabiano sabia-se explorado e roubado. A dura vida

de trabalho semi-escravo somavam-se ainda uma polltica arcaica e uma paHda

corrupta e abusiva: em ulna visita a cidade, Fabiano e convidado por urn

soldado do governo a participar de um jogo de cartas; e enganado no jogo,

perde 0 pouco dinheiro que tem e se afasta irritado. 0 soldado, inconformado,

vai atras do vaqueiro, pisa-Ihe 0 pep ernpurra-o, prende-o:

Fabiano caiu de joelhos. Repetidamente, uma lamina de facaobaleu-Ihe no peito, outra nas costas. Em seguida abriram uma porta,deranHhe um safanao que 0 arremessou para as trevas do carcere.(p.32)

Mas Fabiano, em sua ingenua ignorancia, duvida de que um

representante do governo pudesse agir com tamanha arbitrariedade,

prendendo um inocente como ele:

E por mais que forcejasse, nao se convencia de que 0 soldadoamarelo fosse governo. Governo. coisa dislante e perfeita, nao podiaerrar. (p. 35)

A frase acima revela a fina ironia do autor, urna vez que ele, Graciliano

Ramos13, sabia 0 quanto 0 governo errava e 0 quanto 0 poder do estado

poderia ser arbitrario e injusto. Demonstra-o atraves de Fabiano que, na cela

da prisao, concentra suas faculdades mentals na analise de sua situac;ao e

considera que deveria se insurgir contra 0 poder do soldado, mas pondera:

I."l Graciliano Ramos esteve presQ de maryo de 1936 a janeiro de 1937, sem Ilenhuma

acusat;:ao lormal a nao ser rumores de que participara no malsucedido levanle com un isla de1935. Por con1a desses mesmos rum ores, lora demitido. preso, despachado primeiro a Recifee depois ao Rio de Janeiro, onde passou par varias prisoes.

30

( ... ) havia a mulher. havia os filhos. havia a cachorrinha ( ... ) tinhaaqueles camb6es pendurados no pescOQo. Deveria continuar aarrasl~-Ios? Sinha Vitoria dormia mal na cama de varas. Os meninoseram uns brutos, como 0 pai. Quando crescessem, guardariam asreses de um palrao invisivel, seriam pis ados, mallralados,machucados par um soldado amarelo. (p .. 40)

o patrao - 0 coronel - soma-se ao estado e a seca para aumentar 0

tormento do matuto: "Tudo seco em redor. 0 patrao era seco tambem,

arreliado. exigente e ladrao, espinhoso como um pe de mandacaru" (p.26).

Fora da catinga, na cidade, 0 ambiente apresenta-se ainda mais hostil:

Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior.Por isso desconfiava que as outros mangavam dele. 56 the falavamcom a lim de tirar-the quatquer coisa. Os negocianles furtavam namedida. no pre90 e na conla. 0 patrao realizava com pena e lintacalculos incompreensiveis ( ...) Todos the davam prejuizo. Oscaixeiros, os comercianles e 0 proprietario liravam-the 0 couro, e asque mi0 tin ham neg6cio com ele riam vendo-o passar nas ruas.tropec;:ando (p.80-81).

Se ha verdade na afirma9ao de Alvaro Lins, no posfacio da 40' Edi9ao

de Vidas Secas, de que "Existem homens que explicam as suas obras, como

ha obras que explicam seus autores. No caso do Sr. Gracifiano Ramos, e a

obra que exp/ica 0 homem", muito se pode deduzir do que pensava 0 autor

sobre 0 governo, a economia agraria e latifundiaria, 0 coronelismo e a

sociedade hierarquizada que imperava no nordeste brasileiro de sua epoca.

Nao resta duvida de que 0 sertao nao detimitado geograficamente na

obra seja 0 agreste nordestino: a bolandeira de Seu Tomas, que 0 identifica no

livre, tanto pode ser uma maquina usada no processamento de algodao (a

principal atividade econ6mica do agreste do inicio do seculo de XX, como

discutido na fundamentacao te6rica deste trabalho) ou aroda utilizada nas

moendas dos engenhos de cana-de-a<;ucar(atividade econ6mica rnais comum

na Zona da Mata, mas tambem praticada no agreste).

31

o contexte s6cio-hist6rico que Vidas Secas apresenta, portanto, e 0 do

subdesenvolvimento econ6mico brasiieiro, que atingia grande parte da

popula,ao nordestina - e brasileira - da decada de 30 e que ate hoje nao foi

plenamente superado. Graciliano Ramos rendeu sua homenagem aos seus

conterraneos mais pobres - aqueles que, como Fabiano, nao conseguiam fugir

as condiGoes que a seea exacerbava e eram vitimados pelas falhas de

ocupa~ao da regiao, pela rna utilizag3.o dos recursos e pela manutenc;ao da

estrutura social injusta. Em tada a obra, esta estrutura social esta relacionada.

direta ou indiretamente, com a linguagem.

Graciliano Ramos delineia, ainda que sem teorizar, uma teoria da

linguagem, apontando claramente para a questao das rela,ces entre

pensamento e linguagem, entre linguagem e construgao do sujeito, e entre

linguagem e sociedade - que sao os temas do restante desta analise.

3.2 LlNGUAGEM E PENSAMENTO EM VIDAS SECAS

Uma das premissas deste trabalho e a de que, atraves da analise das

dificuldades comunicativas dos persanagens de Vidas Secas, seria passivel

formular uma ideia da cancepgao do autor quanto ao papel da linguagem

humana na organizagao do pensamento. As relagoes entre a deficiencia

lingOlstica e as dificuldades na ordenagao dos pensamentes des personagens

sao estabelecidas na obra principalmente atraves de Fabiano, mas estao

presentes tambem entre os demais membros da familia - uma familia

praticamente muda. Sua mudez e t6pico ja das primeiras paginas do romance,

no momento ern que 0 narrador nos conta da morte do papagaio:

32

( ... ) resolvera de supetao aproveita-Io como alimenlo e justificara-sedeclarando a si mesma que ele era muda e inutil. Nao podia deixarde ser muda. Ordinariamente, a familia falava pauec. E depoisdaque\e desaslre viviam calados, raramente soltavam palavrascurtas. (po 12)

o autor estabeleGe, nestas linhas, a ideia de que 0 aprendizado da

lingua se da atraves do convfvio com ela, au da exposic;8.0 a fala - 0 papagaio

era mudo porque nao tivera a oportunidade de aprendizado: seus convivas

humanos eram tambem pratiGamente mudos. A no,ao de que tanto a

linguagem quanta outros aprendizados uteis ao ser humane sao aprendidos em

sociedade perpassa a obra:

A cabeg8 inclinada. 0 espinha<;:o curvo, agitava as bragos para adireita e para a esquerda. Esses movimentos eram inute is, mas avaqueiro. 0 pai do vaqueiro, 0 avo e oulros anlepassados maisanligos haviam-se acostumado a percorrer veredas afastando 0malo com as maos. E as filhos ja come~avam a reproduzir 0 gesto.(p.18)

o gesto de "afastar 0 mato com as maos" perdurara, apesar da ausencia

de um mato que se pudesse afastar - era um gesto imitado, de gera,ao a

gera9ao, conforme a passagem demonstra. Do mesmo modo, a extrema

difiGuldade de expressao verbal de Fabiano e tambem um reflexo do

emudecimento de seus ancestrais. 0 autor repete, na literatura, as palavras de

Vygotsky: a aquisi9aOda linguagem nao ocorre no vacuo, nem e determinada

par falores congenitos, mas e resultado de praticas sociais.

Fabiano domina a linguagem a que foi exposto, nada mais, e seus filhos

ja comec;am a demonstrar trac;os desla mesrna defasagem IingOfstica - nao

tem condi90es de freqOentar a escola e seu convivio social esta quase que

inteiramente restrito a familia. Em outras palavras, a hist6ria da sociedade na

qual se desenvolvem - e suas condi,oes materiais - vao aletar nao somente

sua linguagem, mas tambem sua forma de organizar 0 mundo, ou seu

33

conhecimento cognitivo, tal equal 0 proposto par Vygotsky em Pensamento e

Linguagem (t993). 0 que deseja "0 menino mais novo", portanto, na verdade

nao e mais do que a conseqLiencia do que dita seu convivio social:

Precisava crescer. licar lao grande como Fabiano, malar cabras amao de pilao, trazer uma faca de ponta a cintura. la crescer.espichar-se numa eama de varas, fumar cigarros de palha. cah;arsapatos de couro cru (p. 56)

o papel crucial que a linguagem tern na organiZ898,O do pensamento e

no desenvolvimento mental - rela,ao defendida explicitamente por Vygotsky - ecentral na obra e parte da construg8o do personagem Fabiano:

Falava uma linguagem cantada, monossiiabica e gutural que 0companheiro entendia ( ... ) as vezes. utilizava com as pessoas amesma lingua com que se dirigia aos brutos - exclamag6es,onomalopeias. Na verdade, falava pauec. Admirava as palavrascompridas e dificeis da genIe da cidade, tentava reproduzir algumas,emvao (p.21)

Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, nao sabia explicar-se.Estava presQ por isso? Como era? Enlao mele-se um homern nacadeia porque nao sabe falar dire ito? Que mal fazia a brutalidadedele? Vivia trabalhando como um escravo (... ) 0 fio da ideia cresceu,engrossou - e partiu-se. Diffcil pensar. Vivia lao agarrado aosbichos ... Nunca vira uma escola. (p. 38)

Nas horas de aperto dava para gaguejar. embarac;:ava-se corno ummenino, cOQava as cotovelos, aperreado (... ) as vezes dizia urnacoisa sem intengao de olender, entendiam outra, e 1<'1.vinharnquesloes ( ... ) 0 unico vivente que 0 cornpreendia era a mulher. Nernprecisava falar: baslavarn os gestos (p.103-104)

Alem de praticamente nao saber falar e de nao conseguir organizar

verbalmente seus pensamentos, Fabiano provavelmente s6 sabia contar ate

cinco:

Saciado, caiu de papa para cima, olhando as estrelas, que vinharnnascendo. Urna, duas, Ires. qualro, havia muitas eslrelas, havia rnaisde cinco estrelas no ceu (... ) e ele, Fabiano, era corno a bolandeira.Nao sabia par que, mas era. Urna. duas, Ires, havia rnais de cincoestrelas no ceu. (p 15)

34

Mais uma vez, estas informac;oes corroboram a teoria de Vygotsky sabre

o papel organizador e propulsor que a linguagem exerce no pensamenlo.

Percebe-se tambem, nos trechos acima, que as dificuldades cognitivas de

Fabiano nao sao independenles da sua dificuldade linguistica - quando seu

vocabulario termina, a confusao mental S8 instaura e 0 pensamento S8

fragmenta, perdendo direcionamento.

A falla de dominio lingiiistico da familia fica bastante evidente no sexto

capitulo, intitulado a menino mais ve/ho, no qual 0 menino pede, primeiramente

a mae, depois ao pai, depois novamente a mae, que Ihe expliquem 0

significado da palavra "inferno". Tentando articular uma explica9aO, a mae Ihe

fala de um lugar "ruim demais", de "espetos quentes e fogueiras". 0 menino,

sentindo que ainda nao apreendera 0 significado, devolve: ". A senhora viuT

(p. 59). A mae, acuada e sem poder se explicar melhor, da-Ihe um "cocorote'"

o pequeno senlou-se. acomodou nas pernas a cabe9a da cachorra,p6s-se a con\ar uma hist6ria. Tinha 0 vocabultuio quase tao minguadocomo 0 do papagaio que morrera no tempo da seca. Valia-se. pois, deexclal1lagoes e de gestos. e Baleia respondia com 0 (abo, com alingua, com movimentos faceis de entender. (p. 63)

Fica evidente, uma vez mais, nao apenas uma teoria sobre a forma

como a crianQa desenvolve a linguagem e a relayao desta com as formas mais

avan<;adas de pensamento - pois as formas mais primitivas de linguagem

todos na familia dominam -- mas tambem a papel da palavra, ou seja, do signo,

que e vefculo transmissor de ideias. Para Vygotsky, e a internaliza<;ao dos

signos que possibilita a linguagem, e esta e que engendra as transforma,oes

rnentais necessarias ao desenvolvimento individual: sao as palavras que

ajudam 0 homem a organizar internamente 0 mundo exterior, e e esta a

35

frustraGaodo menino mais velho, que fica sem compreender a palavra, ouvida

incidentalmente.

Ern condi90es normais de convivencia social, 0 significado de "inferno" ja

haveria sido internalizado pelo menino, que 0 teria captado atraves de

sulicientes e esclarecedores contextos. Na obra, entretanto, este convfvio ecomprometido pela eonjuntura eeon6miea e social preearia. Ern outras

palavras, 0 autor pareee deixar claro que 0 desenvolvimento intelectual dos

filhos de Fabiano esta (como 0 do proprio Fabiano) atrelado as suas condi96es

de vida e intera90es sociais - ou a intelectualidade daqueles que os eeream .

principio basico da corrente da psicologia de Lev Vygotsky, calcada no

rnaterialisrno hist6rieo.

3.3 0 PAPEL DA lINGUAGEM NA CONSTRUCAO DO SUJEITO

Outra premissa deste trabalho e a de que 0 auter de Vidas Secas

constroi, atraves da linguagem, certo sujeito, e que este sujeito so e quem e

devido ao reconhecirnento, por parte do leitor, das regras que deterrninam as

eondi90es de exercfcio da fun930 enunciativa. Fabiano e sua familia sao

reconhecidos atraves de seus diseursos e dos diseursos cireundantes (da

policia, do patrao, da soeiedade da epoca), nos quais ficarn evidentes as

posi<;6essociais, as cren9as que Ihe sao caracteristicas e as rela96es de poder

que S8 eSlabelecem entre elas:

Enfim. contallto ... Seu Tomas daria informa90es. Fossem perguntara ele. Homem bom. Seu Tomas da bolandeira, homem aprendido.Cada qual como Deus 0 fez. Ele, Fabiano, era aquilo mesmo, umbruto. (p. 38)

Hit varios "enunciados" facilmente identificaveis acima, todos

corroborando para a imagem que Fabiano faz de si mesmo e dando ao leitor

36

dicas de sua posi9ao social e de suas cren9as: Seu Tomas da bolandeira tem

estudo, Fabiano nao - razao pela qual Seu Tomas seria auvida e Fabiano nao.

Fabiano e bruto, Seu Tomas nao. Ademais, ha uma ordem divina - "causa"

inconteste - que determina aquilo que somos: Fabiano e bruto porque Deus

asSim 0 fez, Seu Tomas da bolandeira e "homem aprendido" pelo mesmo

motivo. 0 nao dito pode ser deduzido: se Deus quis assim, as coisas sao como

sao e nao ha porque ou como tentar modifica-Ias. Fabiano resigna-se. Ha mais

nao dito, mas dedutlvel: todos os que sao como ele resignam-se.

Continuando a analise dos enunciados de acordo com a perspectiva de

Foucault, percebe-se que 0 discurso de Fabiano de lato legitima os processos

sociais de manuten9ao do poder: a "verdade" internalizada por Fabiano e a de

que a ordem social que 0 mantem excluido da sociedade deve ser baseada em

uma 16gica;como ele nao compreende a 16gica,atribui a Deus a fato de ser

"bruto" enquanto 0 outro e "aprendido". Este e um exemplo do que Foucault

chamou de "verdade construida" passando-se por 'verdade natural' - alinal,

ninguem e "bruto" ou "aprendido" por natureza.

A exclusao social e tao marcada que Fabiano nao sabe ao certo se ehomern au se e bicho - quando ele busca S8 afirmar como homern, a analise

de sua situa<;ao0 faz rever seu julgamento e reclassificar-se:

-- Fabiano. voce e um hom em _. exclamou em voz alta. Conleve-se.nolou que as meninos eslavam perlo, com cerleza iam admirar-seouvindo-o falar s6. E, pensando bern. ele nao era homem: era apenasum cabra ocupado em guardar coisas do oulros. Vermelho, queimado,tinha as olhos azuis, a barba e os cabelos (uivos: mas como vivia emlerra ailleia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se napresen9a dos brancos e julgava-se cabra.

Olhou em lorna, com receio de que, fora as meninos, alguem livessepercebido a !rase imprudente. Corrigiu-a, murmurando: - voce e umbichol Fabiano (p.19)

37

Fabiano tinha olhos azuis, barba e cabelas ruivos - era branco, portanto.

Mas nao se julgava branco - "na presen,a dos brancos, julgava-se cabra". 0

significado de cabra, na sentenc;a, e 0 de "mestlyo indefinido, de negro, indio

ou branco de pele morena" (Dicionilrio Houaiss, l' Ed. Rio de Janeiro, 2001),

fazendo oposi<;8.o ao branco. Novamente 0 dite, mas nao dite: sua condi<;8o

social 0 igualava aqueles que eram excluidos automaticamente por serem

realmente mulatos, negros ou de pele morena. Fabiano teme ser ouvido, teme

ser censurado talvez, par haver aventado a possibilidade de ser homem - ele

sa be 0 lugar que os brancos reservam aDs "cabras"

Compreende que, como bicho submisso, obediente, poderia continuar

na fazenda que encontrara abandonada durante a seca:

Apossara-se da casa porque nao linha onde calr morto, pas sara unsdias mastigando raiz de imbu e semenles de mucuna. Viera aIrovoada e com ela. 0 fazendeiro. que 0 expulsara. Fabiano fizera-sedesenlendido e of ere cera seus pre-slim os, resmungando. c09ando oscolovelos. sorrindo aflito. 0 leilo que tinha era ficar. E a patraoaceitara-o, enlregara-Ihe as marcas de ferro. Agora Fabiano eravaqueiro. Aparecera como um biello, entoeara-se como um bicho.mas criara raizes. eslava planlado. (p.20)

o patrao "ace ita" Fabiano - uma concessao que deixa a vaqueiro

orgulhoso, sentindo-se um pouquinho mais gente - jil pode inclusive ir a cidade

comprar um pouco de querosene e um corte de chita para Sinha Vitoria, alE~m

de alguns mantimentos. A internaHzal,(ao do discurso do patrao e essen cia I na

manuten,ao do poder, segundo a concep,ao de Foucault, e Fabiano e urn

sujeito que conhece as regras e reconhece a autoridade e 0 dire ito do patrao:

enquanto for explorado e roubado em silencio, pode ficar na fazenda.

Fabiano tem claramente internalizados as discursos de seus

exploradores - os discursos mantenedores do poder, da autoridade do patrao e

do governo:

38

Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas asvioh§!ncias, a todas as injuslir;:as. E aos conhecidos que dormiam notronco e aguentavam cipo de boi of ere cia consola<;:oes: _.. Tenhapaciencia. Apanhar do governo nao e desfeila.

Como propos Foucault, e preciso que S8 f898 a distinc;ao entre discurso

e mera expressao de ideias - seria err6neo julgar que as ideias que Fabiano

expressa sabre a justi98 endossem realmente a injustiy8 sofrida como algo

natural. Pelo contrario, atraves de uma sutl! ironia, Graciliano Ramos a todo 0

momento utiliza-s8 de Fabiano para expor as regras an6nimas de manutenQao

do poder atraves do discurso: 0 vaqueiro e um discurso assimilado, destitufdo

de voz propria com a qual poderia tentar lugar pelos seus direitos, e enterrado

sob diversas camadas de enunciadas que cimentam sua submissaa.

Algumas vezes, Fabiana sente raiva par perceber 0 quanta e submetido

e sua vontade e de falar, de gritar - de apropriar-se de seu verdadeiro

enunciada e insurgir-se contra 0 poder vigente:

5e pudesse mudar-se, gritaria bern alto que a roubavam.Aparentemente resignado. sentia Utll 6dio imenso a qualquer coisaque era ao mesmo tempo a campina seca, a patrao, as soldados eos agentes da prefeitura. Tudo na verdade era contra ele. Estavaacostumado, tinha a casca muito grossa,mas as vezes se arreliava.Nao via paciencia que suportasse tanta coisa. - Um dia um homemfaz besteira e se desgraQa.

Mas imediatamente seus pensamentos se voltam para a estabelecido,

para tudo que foi aprendido atraves da doutrina,iio ideol6gica de muitos anos e

que, partanto, deve ser 0 "natural":

Tinha obrigaQao de trabalhar para as outros, naturalmente, conheciaa seu lugar. Bem. Nascera com esse destino, ninguem tinha culpa deele haver nascido com um destino ruim. Que fazer? Podia mudar desorle? 5e Ihe dissessem que era possivel melhorar a situaQao,espantar-se-ia. Tinha vindo ao mundo para amansar brabo, curarferidas com rezas, consertar cercas de inverno a verao. Era sina. 0pai vivera assim, 0 avo tambem. E pra tras nao existia familia. Cortarmandacaru, ensebar lategos - aquila estava no sangueConformava·se, nao pretendia mais nada. Se Ihe dessem 0 que eradele estava cerIa. Nao davam. Era desgraQado, era como umcachorro, s6 recebia ossos.

39

Nesses enullciados mesclam-se 0 religioso (a cren,a religiosa em um

destin~), 0 determinismo social (0 homem e 0 que foram 0 pai e 0 avo) e 0

determinismo biologico (esla no sangue de Fabiano "ser" como "e"). Os

enunciados indicam que, por mais que Fabiano perceba-se injusti,ado, ele

mesmo justifica sua condic;ao com base nos discursos que the foram

inculcados e com aS quais ele nao consegue romper. No entanto, seu intelecto

resiste, ainda que a resistencia resulle apenas em maior isolamento.

A sociedade oprime 0 vaqueiro enormemente. Quando veste roupas e

sapatos apropriados para a visita a cidade, seu desconforto fisico 56 nao emaior que seu desconforto psicol6gico:

Fabiano eslava silencioso, olhando as imagens e as velas acesasconstrangido na roupa nova. 0 pescoco eslicado, pisando em brasas.A multidao apertava-Q mais que a roupa, embara<;:ava-o. De pereiras.gibao e guarda-peito, andava metido numa caixa, como tatu (... ) naopodia virar-se: mao e brac;:os r~avarn-Ihe 0 corpo. Lembrou-se dasurra que levara e da noite passada na cadeia. A sensac;:ao queexperimenlava nao diferia muito da que tinha lido ao ser preso. Eracomo se os brac;:os da mu1tidao fossem agarra-Io, subjuga-Io,esprem{Ho num canto de parede. ( ... ) sentia-se rodeado de inimigos,temia envolver-se em quesloes e acabar mal a noile.

Em sociedade, Fabiano leme dizer ou fazer qualquer coisa - "Iemia

envolver-se em questoes", pois tern completa no<;:aode sua desvantagem

social e de que sua dificuldade expressiva poderia ate mesmo coloca-Io em

apuros:

Sinha Terta e que se explicava como gente da rua. Muito born umacriatura ser assim, ter recurso para se defender. Ete nao linha. Setivesse, nao viveria naquete eslado. (p. 104)

Fabiano e sua familia sao destiluidos de qualquer poder nao somente

pela precariedade de sua siluac;ao socioeconomica, mas lambem por sua

defasagem linguislica. E esta defasagem, em Vidas Secas, e parle constituinte

40

do sujeito que Fabiano representa: 0 sertanejo - sujeito que naD tern posivao

social ou poder para dizer OU ser ouvido, e cujo discurso reproduz a ideologia

dominante, com a qual seu status quo e a ordem social sao mantidos.

3. 4 A L1NGUAGUEM E A ORGANIZA<;;Ao DA VIDA SOCIAL

Conforme 0 proposto na introduc;ao deste trabalho, Graciliano Ramos

construiu em Vidas Secas urna sociologia proxima a de Bourdieu (embora 0

soci61ogo frances tenha exposto suas ideias muito tempo depois da esc rita do

romance brasileiro), inclusive no tangente ao papel determinante da linguagem

118 organizac;ao da vida social. 0 aular aponta para 0 funcionamento dos

mecanismos de legitimizac;ao das diversas formas de domina<;:ao social,

inclusive atraves da linguagem, e sua narrativa contem exemplos vfvidos dos

conceitos de capital cultural, capital simb61ico e viol€mcia simb61ica -

desenvolvidos anos mais tarde pelo soci61ogo frances para explicar a dinamica

do poder na sociedade.

A pobreza de Fabiano e sua familia e exlrema nao somente pela falla do

capital financeiro: em tennos de outras formas de capital - social, cultural,

simballco, e que se constr6i sua mise ria. Alem de nao terem cnde morar e 0

que comer, eles nao tern amigos ou parenles a quem recarrer - sua rede de

relacionamentos e inexpressiva.

Quanlo ao capilal cullural, nao e que Fabiano e sua familia nao 0

possuam, mas a lorma deste capital que possuem nao e valorizada no contexlo

s6cio-historica apresentado na obra. Saber consertar cercas, cui dar dos

anima is. ordenhar vacas, montar animals selvagens e adestra-Ios, conhecer

ervas, amarrar varas com cip6 e plantar rocta sao, indiscutivelmente, form as de

41

comportamento aprendidos em sociedade - ou habitosl4 - que equipam 0

sujeito para a sobrevivencia em um certo ambiente au campo, mas que,

durante a seea e numa sociedade ern vias de urbaniza~ao e em plena crise do

seu modelo economica, foram esvaziadas de valor. 0 que a sociedade em que

Fabiano esta inserido valoriza e a posse de terra, a propriedade e a exploray8..o

do Irabalhador do campo para 0 enriquecimenlo proprio - nao a capacidade de

trabalho do vaqueiro au 0 conhecimento que ele passui para executa-Ia.

Em algumas ocasi5es, entretanto, Fabiano deixa claro que sabe passuir

urn conl'lecimento especifico que, embora desvalorizado - inclusive durante a

seea - pode conferir, a 5i e aos seus, vanta gens estrategicas de sobrevivencia:

Lembrou-se de Seu Tomas da bolanc!eira. Dos homens do sertao 0mais arrasado era Seu Tomas da bolandeira. Por que? S6 se eraporque lia demais. Ele, Fabiano, muilas vezes dissera: .. "SeuTomas, vossemece nao regula. Para que lanto papel? Quando adesgraya chegar. Seu Tomas se es\repa, igualzinho aos oulros."Pois viera a seca, e 0 pobre do vel110, lao born e lao lido, perderatudo, andava par ai. mole. Talvez ja tivesse dado a couro as varas,que pessoa como ele nao podia agGenlar verao puxado.

o persona gem sente-se superior per alguns instantes, per pensar que a

educa<;ao nao era 0 bem mais privilegiado naquelas paragens - e sim a arte de

sobreviver com muito pouco, a qua! ele e sua familia dominavam. Seu Tomas

da bolandeira detinha um capital cultural - representado por seus livros, sua

leitura, seu vocabulario, sua educaQ8.o no trata com os demais - que Fabiano a

um s6 tempo admirava procurando imitar e desdenhava descartando como

inulil no campo eslrulurado pela seca. 0 proprio Graciliano Ramos - lido e

educado como Seu Tomas da bolandeira - nem sempre p6de defender-se

Htraves da linguagem. Mais que isso, Seu Tomas da bolandeira era

incompreendido em seu meia:

I': Os ICfIlWS /UliJilO (' ellll/JlO csliio ~cndo utilizados. ncsta analise. com os sentidos proposto par l3ourdicu.confolllK' cxplicitado~ na fund:ullclllllyiio tcolica dCSiC trabalho.

42

Seu Tomas da bolandeira falava bern, eslragava as olhos em cimade jornais e de Ilvres, mas nao sabia mandar: pedia. Esquisitice urnhomem remediado ser corles. Ale 0 povo censurava aquelasmaneiras. Mas lodos obedeciam a ele. Ah! Quem disse que naoobedeciam? (p 24)

Apesar disso, 0 sertanejo almeja poder lalar bonito como Seu Tomas:

Em haras de maluqueira Fabiano desejava imila-Io: dizia palavrasdiliceis, truncando tudo, e convencia-se de que melhorava. Tolice.Via-se perleitamente que um sujeito como ele nao linha nascido parafalar certo. (p. 24)

Assim como 0 conhecimento de Fabiano, no entanto, 0 conhecimento de

Seu Tomas da bolandeira nao e a lorma de capital mais valorizada no contexto

social da obra. 0 realmente valorizado e, explicitamente, possuir terras, saber e

poder rnandar:

Os Quiros brancos eram direrenles. 0 palrao alual, par exemplo.berrava sem precisao. Quase nunca vinha a fazenda, s6 bolava aspes nela para achar tudo ruim. 0 gada aumentava, 0 serviQo ia bern.mas 0 proprietario descompunha 0 vaqueiro. Natural. Descompunhaporque podia descompor, e Fabiano ouvia as descomposturas com 0

chapeu de couro debaixo do bra<;:o, desculpava-se e prometiaemendar-se. (p. 24)

Fabiano, como Seu Tomas (destituido) da bolandeira, nao possui capital

que possa ser diretamente convertido em dinheiro - a um, calam 0 patrao e a

sociedade, ao outro, calou a seca:

Coilado. Para que Ihe servira lanto livro, tanto jornal? Morrera parcausa do eslomago doente e das pernas fracas.

A lingua gem insere-se na lorma de capital cultural que Fabiano e sua

familia nao possuem - como acesso a livros, escola, ou qualquer educac;:ao

formal - e e tambem urn subsidio basico para 0 sucesso escolar e profissional.

a dominio da lingua, neste sentido, tern uma funQ80 de manutenc;:ao das

relay6es de poder - 0 lalar e escrever bem e concliyao sine qua non para a

43

materializa<;80da posse dos bens culturais e, portanto, urn elemento de

exclusao social.

Qui,a por isso Fabiano, de quando em quando, reflita sobre os filhos e

organize mentalmente uma preOCUpal;:80 com a "educa9iio" deles, adiada para

quando terminado 0 problema da S8ca:

Livres daquele perigo, as meninos poderiam falar. pergunlar. encher-se de caprichos. Agora, tinham obrigayao de comporlar-se comogenie da laia deles," (p. 27)

Atrav8S da obra, esta preocupac;:ao vai S8 transformando em

planejamento e a educa,ao se apresenta como esperan,a de mudan,a real.

Fabiano, aos poucos, abandon a a ideia de que os filhos continuem como ele,

"brutos", para imagina-Ios expandindo seu capital cultural nas escolas do sui do

pais:

Mudar-se-iam depois para uma cidade. e as meninos frequenlariamescolas. seriam di/erenles deles ( ... ) e andavam para 0 Sui. metidosnaquele sonho. Os meninos em escolas, aprendendo coisas dificeise necessanas.

Em Vidas Secas a linguagem Ii correntemente abordada como campo

de exercicio de poder, atraves do qual as sujeitos afirmam seus interesses e

posic;:ao social:

Neste ponto urn soldado amarel0 aproximou-se e baleulamiliarmenle no ombro de Fabiano:- Como e, camarada? Vamos jogar um trinla-e-um 180 denlro?Fabiano atentou na farda com respeito e gaguejou, procurando aspalavras de Seu Tomas da bolandeira:Islo e. Vamos e nao vamos. Quer dizer. Enfim, conlanto. etc. econforme.Levantou-se e caminhou alras do soldado arnarelo, que eraaUloridade e mandava. Fabiano sempre havia obedecido. (p. 29)

No dia seguinte Fabiano vollou a cidade, mas ao fechar 0 negocionolou que as opera<;:oes de Sinha Viloria, como de costume, diferiamdas do patrao. Reclarnou e obteve a explica<;:80 habitual: a diferen9aera provenienle de juros. (p. 99)

44

Tanto 0 soldado amarelo quanto 0 patrao sabiam que Fabiano nao

estava em posiyao de contestar, de dizer nao: quando enfrenta 0 sold ado, 0

vaqueiro termina na cadeia; quando enfrenta 0 patrao, e ameaQado de ser

despedido. A explica,ao de "juros" revolta Fabiano, que reune toda sua

coragem e desafia as contas do patrao, apoiado nos calculos feitos por Sinha

Vito ria com sementes no chao:

Nao se conformou: devia haver engano. Ete era brulo, sim senhor,via-se perfeitamente que era bruto, mas a mulher linha miolo. Comcerteza havia um erro no papel do branco. Nao se descobriu 0 erra,e Fabiano perdeu as estribos. (p. 99)

Os trechos acima constituem exemplos do que Bourdieu denominou

viol€mcia simb6lica, ne5se casa operando atrav8S da linguagem, que e utilizada

para intimidar 0 outro. Alem disso, 0 poder simb61ico do soldado e

representado pelo uso do uniforme amarelo, que faz com que 0 vaqueiro 0

associe 0 soldado ao proprio "governo". Nos dois casas, vencem os rna is

poderosos - Fabiano e obrigado a aceitar a autoridade do soldado ease

retratar com 0 patrao frente a possibilidade de ficar desempregado:

Ai Fabiano baixou a pancada e amunhecou. Bem, bem. Nao erapreciso barulho nao. Se havia dilo palavra a loa, pedia desculpa. Erabrulo. nao fora ensinado. AlrevimenlO nao tinha, conhecia 0 seulugar. Um cabra. la la puxar queSlao com genie rica? Brulo, sim,senhor, mas sabia respeilar os hom ens Devia ser ignorancia damulher, provavelmenle devia ser ignorancia da mulher. Aleestranhara as contas dela. Enfim. como nao sabia ler (um bruto, simsenhor). acredi\ara na sua velha. Mas pedia desculpa e jurava naocair noulra. (p. 100)

Vitima de varias formas de violencia simb6lica, Fabiano acostuma~se a

recuar sempre - como proposto por Bourdieu, as estrategias tacitas de

domina<;ao cultural e social mantem sob controle os grupos dominados.

45

4. CONSIDERAC;:OESFINAlS

A narrativa que acompanha 0 casal de retirantes nordestinos e expoe a

problematica da miseria causada pela estrutura social e agravada pela seca econstrufda como uma serie de representac;6es simb6licas, principalmente

atraves dos personagens que sao tipicos de uma parcela da popula9ao

rnundial: Fabiano e as membros de sua famflia representam aqueles sem

acesso a conclic;oes mfnimas de sobrevivencia, violentados pelas instituic;6es

sociais e rna is afeitos aos bicl10s que aos humanos, que as humilham e

escravizam; Seu Tomas da Bolandeira simboliza 0 homem culto e born, mas

fraco frente as agruras do sertao; 0 fazendeiro e 0 dono dos bens de prodw;:ao,

simb61ieD da opressao do capitalismo; 0 soldado amarelo representa 0 poeler

de qualquer Estado arbitrario. repressor e autoritario.

Devido a tecnica narrativa, em que predomina 0 discurso indireto livre,

fundem-se na obra 0 discurso do narrador onisciente e 0 dos personagens:

embora muito do vocabulario identifique e reflita a condi9ao social dos

personagens fictlcios, a materia narrada e a profundidade reflex iva que a

narrativa propoe apontam diretamente para Graciliano Ramos e para sua

capacidade de conlar uma historia verossimil em qualquer espa90 e qualquer

tempo em que os poderes do capital e do Estado se unam aos desastres

ambientais para oprirnir 0 homem do povo, que sequer entende os mecanisrnos

sobre os quais se fundamenta sua opressao.

A linguagem e mostrada na obra como um desses mecanismos: Fabiano

e sua familia eslao a margem da sociedade nao apenas por sua precariedade

socioecon6mica, mas tambem e, principalmenle. porque seu desempenho

linguisfico estancou nos resrnungos, nos gestos e nas exclama90es guturais. A

46

marginaliza,ao dos personagens de Vidas Secas esta ligada ao nao dominio

da lingua, sem a qual a exclusao social e exacerbada. A verdadeira tragedia de

homens como Fabiano naG e a seea: sao as mal-entendidos, a falta de

conhecimento, a naG com preen sao de sua situaC;30 e, portanto, a n8.o-

visualizac;8.ode uma saida.

A cOnCep98.0 de linguagem em Vidas Secas e claramente vinculada a

organizaQ8.o do pensamento - em diversos trechos da obra, 0 narrador

relaciona 0 aprendizado da linguagem a condic;oes historic as e sociais e 0

desempenho lingOfslico a capacidade de organiZ3c;8.0 logiea do mundo exterior,

ilustrando algumas das principais formula90es da teo ria hist6rico-crftica de

Vygotsky, inclusive a de que a aquisi,ao da linguagem e resultado de praticas

sociais.

o mutismo involuntario da familia de retirantes e simb61ico do silencio do

oprimido - daquele que, como propos Foucault. nao se encontra em condi<;:ao

de dizer e sente+se inferiorizado em rela<;:ao aos que dominam a lingua,

elemento cultural atrav8s do qual se constroem as rela<;:oes de poder. Fabiano

compreende que s6 poderia enfrentar a desigualdade com maior domfnio

lingufstico e que a linguagem aprofunda 0 abismo que 0 separa dos detentores

do poder ~ as dificuldades causadas pela seca sao pequenas diante das suas

dificuldades comunicativas 0 expressivas.

o tema do poder, central tanto na lilosolia de Foucault como na

sociologia de Bourdieu, perpassa a narrativa de Vidas Secas, desenvolvida em

torno dos conllitos que produzem, mantem ou reproduzem desigualdade

socioeconomica e cultural. 0 espa<;:o social - 0 campo - que 0 cidadao

representado por Fabiano habita tornou-se hostil devido a a,ao conjunta dos

47

poderes do patrao e do Estado, que somados as fo,,;as da natureza impelem 0

matuto para as gran des centros urbanos. 0 sujeito que surge e marginalizado,

oprimido, humilhado, espoliacto e convencido de que seu lugar na ordem

natural das eoisas e justa par ser determinado pelo destina au per uma ordem

divina que ele tambem nao compreende, mas que aprende a aceitar: em Vidas

Secas, 0 governo, a Igreja e 0 patrao cimentam sua superioridade em torna da

palavra, de discursos elaborados para calar qualquer questionamento e

reprodutores da ideologia mantenedora do status quo.

A condi9ao social de Fabiano nao e determinada pela seca

exclusivamente, pois 0 proprietario sobrevive a seca. Graciliano aponta,

portanto, diretamente para 0 problema da posse de terra, sem 0 qual 0

trabalhador rural e sempre urn andariillo que vale tanto quanto uma "res" no

quintal do padrao. Destituido de tudo, de capital real ou simb6lico, este sujeito

e impelido a retirar-se para a cidade, que surge como uma esperanc;a de vida

melhor -- 0 sonho do retirante nordestino que migrou para 0 sui massivamente

durante a maior parte do seculo xx.

Se a obra explica 0 homem, e possivel que Vidas Secas seja a obra de

Gracitiano Ramos que melhor expoe as cren<;asdo autor quanto ao papel da

linguagem - tanto na constru<;aodo pensamento e na forma<;aodo individuo

quanto em sua rela<;aocom a poder e a sociedade. A compreensao que 0 autor

tinha da linguagem revela-se extremamente atual e interdisciplinar, podendo

ser analisada da perspectiva de te6ricos que s6 vieram a influenciar 0

pensamento ocidental muitos tempo depois da publica<;aoda obra, entre eles

Vygotsky, Foucault e Bourdieu. Eo como se sua fic<;aofosse parte de um projeto

politico e social maior, ao traduzir, na Iileratura, 0 silencio que e discurso,

48

registrando a violencia simb61ica e a importancia das condic;6es materiais de

existencia no desenvolvimento psicossocial do indivfdua, antes mesma que

esses temas viessem a ser tratadas em profundidade nos rnais diversos

campos do conhecimento.

A narrativa de Graciliano Ramos constroi, peta fic,ao - fora do discurso

academico da Psicologia, da Filosofia e da Sociologia e ate mesma da Historia

- urn registro de conflitos sociais reais, permitindo 0 reconhecimento de

sujeitos emudecidos, legitimando·os. Ao narrar os pensamentos e sentimentos

dos personagens de Vidas Secas, 0 autar transforma discurso em ac;ao - sua

escrita registra suas observa<;oesdas desigualdades sociais calcadas

principalmente na ignorancia, que silencia e marginaliza e que justifica a

opressao desqualificando 0 oprimido.

As linhas finais do romance apontam para uma tenue esperan<;:a de

melhora nas condir;oes de vida da familia:

Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos emescolas, aprendendo coisas dificeis e necessarias. Eles daisvelhinhos, acabando-se como uns cachorros, inuteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos.Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariampresos nela. E 0 sertao continua ria a mandar genie para la. 0sertao mandaria para a cidade hom ens fortes. brutos, comoFabiano, Sinha Viloria e os dois meninos (p. 134)

Essa esperan,a e que a educa,ao - a apropria,ao, petos filhos do

sertanejo. das "coisas dificeis e necessarias", 0 conjunto de conhecimentos

valorizados socialmente - pudesse combater a atrofia da lingua e a

desorganizac;ao do pensamento.

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