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TESTEMUNHAS DE JEOVÁ: DIÁLOGO ENTRE A LIBERDADE DE CRENÇA E O DIREITO À VIDA
JEHOVAH'S WITNESSES: DIALOGUE BETWEEN FREEDOM OF BELIEF AND THE RIGHT TO LIFE
Hiago Leonardo Cioni Miotello Discente do curso de Direito do UniSALESIANO Lins
Vinicius Roberto Prioli de SouzaDocente do curso de Direito do UniSALESIANO Lins
RESUMO
O presente trabalho analisa a problemática que envolve a colisão entre os direitos
fundamentais da vida e da liberdade religiosa diante da recusa às transfusões de
sangue por Testemunhas de Jeová. O mencionado conflito gera diversas dúvidas
nos profissionais médicos, bem como nos aplicadores do direito, devendo ser
analisado cada caso concreto a fim de buscar uma solução eficiente para este
entrave jurídico. Serão expostos, para tanto, preceitos constitucionais e suas
modificações ao longo dos anos, retratando também a história e os fundamentos
bíblicos das Testemunhas de Jeová; far-se-á, da mesma forma, uma breve
explanação em relação aos métodos alternativos à transfusão, além analisar as
responsabilidades dos profissionais e dos estabelecimentos de saúde, do paciente e
de seus representantes legais quando instaurada entre eles uma relação jurídica de
origem profissional, bem como as consequências jurídicas possíveis diante da
recusa em realizar o tratamento vital. No decorrer do trabalho foram utilizados
diversos arquivos da própria organização das Testemunhas de Jeová, visando
retratar fielmente a versão dos adeptos acerca do tema, bem como doutrinas,
jurisprudências, livros e artigos científicos que discorrem sobre a polêmica. Exigiu-
se, mais especificamente, uma avaliação da legislação constitucional,
infraconstitucional e ética, bem como do entendimento dos Conselhos de Medicina e
dos Tribunais. Vale ressaltar que foram criados vários métodos eficientes que
podem substituir a transfusão de sangue, sendo que a escolha por um meio
alternativo está dentro dos parâmetros legais, respeitando-se a liberdade de crença
e o direito à vida. O direito do adepto à religião em não se sujeitar a qualquer
procedimento sem sua concordância está previsto no Código Civil. Porém, em caso
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de eminente risco de morte, o Estado autoriza o médico a realizar a transfusão
mesmo contra a vontade do paciente, pois o bem violado (liberdade de religiosa) é
considerado menor do que o bem que poderia perder (a vida). Conclui-se com o
presente trabalho que as Testemunhas de Jeová ao se negar a transfusão de
sangue não violam o direito à vida, pois não desejam morrer, apenas querem um
tratamento que não entre em confronto com seus ensinamentos, encontrando
respaldo na Constituição Federal e no Código Civil para sua decisão, não podendo o
Estado intervir em suas crenças.
PALAVRAS-CHAVE: Código Civil. Constituição Federal. Direitos fundamentais.
Medicina. Religião.
ABSTRACT
This undergraduate thesis analyzes the issues surrounding the collision between the
fundamental rights of life and religious freedom in face of refusal to blood
transfusions by Jehovah's Witnesses. The aforementioned conflict raises several
doubts in the medical professionals as well as the law professionals, should be
examined each case in order to seek an effective solution to this legal obstacle. Will
be exposed, therefore, constitutional provisions and their changes over the years,
also depicting the history and the biblical foundations of Jehovah's Witnesses; far It
will, likewise, a brief explanation regarding alternative methods for transfusion, in
addition to analyzing the responsibilities of professionals and healthcare facilities, the
patients and their legal representatives when established between them a legal
relationship of occupational origin as well as the possible legal consequences on the
refusal to carry out the vital treatment. During the work they were used several files
of own organization of Jehovah's Witnesses, seeking to faithfully portray the version
of the fans on the subject, as well as doctrines, jurisprudence, books and scientific
articles that discuss the controversy. Demanded is, more specifically, an assessment
of the constitutional law, infra and ethics as well as the understanding of the Medical
Council and the Courts. It is noteworthy that were created several effective methods
that can replace blood transfusion, and the choice of an alternative means is within
legal parameters, respecting the freedom of belief and the right to life. The right of
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the fan to religion not to be subjected to any procedure without their consent is
provided for in the Civil Code. However, in case of imminent risk of death, the State
authorizes the doctor to perform the transfusion against the will of the patient,
because the violated right (freedom of religion) is considered lower than the good
that could lose (life). It concludes with this work that Jehovah's Witnesses to refuse
blood transfusion does not violate the right to life, because do not want to die, they
just want a treatment that does not come into conflict with his teachings, is supported
by the Federal Constitution and the Civil Code for its decision, can’t the State
intervene in their beliefs.
KEY-WORDS: Civil Code. Federal Constitution. Fundamental rights. Medicine.
Religion.
INTRODUÇÃO
O presente tema tem por objetivo expor informações sobre a polêmica da
recusa à transfusão de sangue pelas Testemunhas de Jeová, sendo que esse
pensamento é questionado há anos, suscitando inúmeros conflitos que são
levados aos Tribunais.
O Estado Brasileiro é laico, ou seja, não possui uma religião oficial,
englobando e amparando todas as religiões sem distinção. A liberdade de
crença pode ser exercida livremente pelos adeptos, desde que em consonância
com as normas legais, não podendo oferecer risco à vida ou afetar o direito de
terceiros.
O direito à vida detém suma importância, pois sem ele não seria possível
exercer os demais direitos. Desse modo, no que tange aos métodos abordados
pela medicina que podem oferecer riscos à integridade do paciente, o Estado
fica obrigado a fiscalizar tais práticas, porém, pode acabar adentrando no mérito
do direito à liberdade religiosa das pessoas, o que resulta, obviamente, em
muitas discussões.
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Diante das controvérsias envolvendo tanto o lado do paciente quanto o do
médico, surgem prós e contras acerca da utilização do sangue em cirurgias e
outros procedimentos. O presente trabalho abordará de maneira ampla ambos
os lados, seja analisando os fundamentos das Testemunhas de Jeová, seja
observando as normas constitucionais e a medicina, preocupando-se em
esclarecer alguns mitos e sanar eventuais dúvidas sobre o tema.
Com o passar do tempo, devido à intensa procura por métodos
alternativos, surgiram procedimentos eficientes que beneficiaram os fiéis,
consequentemente revolucionando a medicina por serem voltados a não
utilização do sangue. Mesmo com essas inovações, ainda se discute muito
sobre a crença escolhida pelas Testemunhas de Jeová, virando alvo de
acusações muitas vezes falsas.
Tal opção vem fundamentada na bíblia, a qual seguem fielmente. Por
essa razão, fazem algumas escolhas terapêuticas de certo risco, mesmo quando
há o envolvimento de menores de idade – questão ainda mais polêmica, uma
vez que a corrente contrária alega que não podem ser submetidos a técnicas
que envolvam o risco de morte, porque ainda não se decidiram sobre a religião
que irão seguir na vida adulta.
Quanto aos riscos supracitados, são rebatidos por muitos especialistas
que defendem a não utilização do sangue, pois afirmam que resulta em uma
recuperação mais rápida do que o enfermo que recebe a transfusão. Além de
englobar preceitos constitucionais e princípios que dão amparo a tal opção,
neste trabalho também serão abordadas opiniões contrárias, explanando o
ponto de vista de doutrinadores e também de médicos especializados na área.
No decorrer do trabalho foram utilizados diversos arquivos da própria
organização das Testemunhas de Jeová, visando retratar fielmente a versão de tais
adeptos acerca do tema, além de diversas doutrinas, jurisprudências, livros e artigos
científicos que discorrem sobre a polêmica.
1 ITENS DO DESENVOLVIMENTO
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Laicidade do Estado Brasileiro
A Constituição do Império editada em 1824, outorgada em nome da
“Santíssima Trindade”, trazia a religião católica romana como a oficial. Segundo
Teraoka (2010, p. 110) e Bastos (2000, p. 191), nessa época, era permitida a
liberdade de crença, porém só podendo exercê-la nos lares, sendo vedada qualquer
forma exterior de templo.
Após a Proclamação da República de 1889, Ruy Barbosa redigiu o Decreto n°
119-A de 7 de janeiro de 1890, separando definitivamente o Estado e a Igreja; até
então não havia menção de Deus no preâmbulo da Constituição (TERAOKA, 2010,
p. 111).
Com a criação da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil em
1934, houve a primeira menção à figura de Deus no preâmbulo, também sendo
reconhecida a liberdade de culto, com a ressalva de que não contrariasse a ordem
pública e os bons costumes. Em 1937 a Constituição estabeleceu que o Estado não
estabelecerá, subvencionará ou embaraçará o exercício dos cultos religiosos
(TERAOKA, 2010, p. 115-117).
A Constituição de 1946 inovou na época ao prever a imunidade tributária
para as associações religiosas, sendo que não possuíam fonte de renda para arcar
com os impostos. Houve também a previsão da “escusa de consciência”, a qual a lei
estabelecia prestações alternativas para aqueles que recusassem, por motivos
religiosos, a cumprir obrigações impostas a todos; assim, o Estado reconheceu
descansos remunerados em dias de feriados religiosos, bem como conferiu efeitos
civis ao casamento religioso e o facultou o aprendizado de ensino religioso
(TERAOKA, 2010, p. 118-119).
A escusa de consciência foi vedada pela Constituição de 1967, deste modo,
se alguém se recusasse a cumprir as obrigações impostas durante sua vigência,
perderia consequentemente seus direitos políticos.
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Na referida Constituição havia também clara menção de que era assegurada
a liberdade de consciência e o exercício de cultos religiosos, desde que não
contrariassem a ordem pública e os bons costumes e, no Capítulo “Dos Direitos e
Garantias Individuais”, estava disposta a afirmação de que todos são iguais perante
a lei, sem distinção de credo religioso (TERAOKA, 2010, p. 120-121).
Após diversas modificações em relação à liberdade religiosa, a atual
Constituição de 1988 em seu preâmbulo faz menção à proteção de Deus.
Liberdade de crença significa que o cidadão tem a liberdade de escolher
determinada religião, assim como mudar para outra se quiser, ou, se preferir, não se
submeter a nenhuma crença, podendo inclusive optar pelo ateísmo (ou seja, não
acreditar em Deus), não havendo qualquer forma de discriminação. Porém, da
mesma forma, não poderá embaraçar o exercício de qualquer religião.
A religião é exteriorizada com a prática dos ritos, cultos, cerimônias ou
reuniões, ou seja, exercendo-se as tradições e hábitos de acordo com a
particularidade de cada seita, não sendo, portanto, realizada com a simples
contemplação ou adoração a Deus (SILVA, 1999, p. 252).
Essa liberdade de culto vem prevista na Constituição Federal, em seu art. 5º,
VI, que assegura o livre exercício dos cultos religiosos. Sobre o referido tema, Silva
(1999, p. 252) doutrina que o dispositivo que trata sobre a liberdade de culto divide-
se em duas partes.
A primeira parte visa a proteção ao exercício dos cultos religiosos na forma da
lei, sendo as próprias pessoas que escolhem os locais onde serão praticados os
cultos, respeitados alguns lugares públicos – pois são de uso comum do povo e não
para um grupo específico.
A lei poderá estabelecer locais próprios para a prática religiosa, impondo
alguns critérios para a associação que consequentemente farão jus a alguns
benefícios, dentre eles a imunidade fiscal, prevista no art. 150, VI da Constituição
Federal.
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A segunda parte preconiza que os poderes públicos não poderão embaraçar
os exercícios dos cultos religiosos (art. 19, I da Constituição Federal), mas sim
possuem o dever protege-los, impedindo que terceiros os obstruam.
Dessa forma, observa-se que a religião é exercida de forma livre entre as pessoas, desde que tais atividades não venham atingir os direitos de outras pessoas, agindo o Estado como ente fiscalizador.
2 Liberdade de crença
A liberdade de crença foi inserida no âmbito jurídico por meio da Declaração
de Direitos da Virgínia, editada em 1776. Referido dispositivo mencionava que
“todos os homens têm igual direito ao livre exercício da religião, segundo os ditames
da consciência”. Com o passar do tempo, foram surgindo diversas modificações com
relação ao tema, conforme o exposto a seguir.
Com a vigência da primeira emenda à Constituição americana de 1789, houve
a expressa proibição do livre exercício dos cultos, não se permitindo que o
Congresso passasse leis que visassem estabelecer determinada religião (MORAES,
1998, p. 126).
Conforme entendimento de Ferreira (1998, p. 102), a França editou a
Declaração de Direitos do Homem em 1789, estabelecendo no art. 10 do referido
dispositivo que “ninguém deve ser inquietado por suas opiniões mesmo religiosas,
desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei”.
Com a Convenção Nacional ocorrida em 1795, ordenou-se a separação da
igreja do Estado. Em 1802 foi assinada por Napoleão uma concordata com a igreja
católica, tornando-a a igreja oficial, posteriormente confraternizando a mesma com
as igrejas protestantes em 1803. Em 1905 foi novamente votada a separação entre
Igreja e Estado.
O regime da concordata instaurou-se em 1801, com acordo entre Bonaparte e
o Papa Pio VII. O objetivo do documento era fixar o estatuto da igreja católica na
França pós-revolucionária. Com o passar do tempo, as leis posteriores transferiram
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esse regime para as Igrejas protestantes e para o culto israelita (RIVERO, 2006, p.
528).
Com o advento da Constituição Brasileira de 1824, previu-se que a religião
católica iria continuar sendo a religião oficial do império, porém era autorizado o
culto das demais religiões desde que fossem praticados no âmbito dos lares
(CARVALHO, 2009, p. 783).
Professa Karam (2009, p. 4-6) que o catolicismo foi retirado do status de
religião oficial com a Proclamação da República em 1891, tornando o Brasil um
Estado neutro (ou laico), permitindo o indivíduo adotar ou não determinada religião.
Após diversas transformações em todas as partes do mundo e ao longo das
décadas, a liberdade de crença foi se estruturando de acordo com as necessidades
dos indivíduos, que cultuavam religiões não consideradas oficiais pelo Estado.
Entende-se, portanto, que o dever do Estado deverá ser apenas de ente
fiscalizador das atividades religiosas, não permitindo que sejam desrespeitadas por
qualquer indivíduo e devendo ser exercidas nos limites da ordem pública. Para
Moraes (1998, p. 127), a neutralidade estatal inserida na Constituição prevê
intrinsecamente o direito à liberdade de pensamento, pois permite que o indivíduo
escolha livremente a religião que lhe é mais conveniente, sendo também respeitado
o ateísmo.
3 Fundamentos bíblicos para negar a transfusão de sangue, posicionamento contrário e possível solução
Segundo as Testemunhas de Jeová, o sangue é considerado “líquido que
circula no sistema vascular dos humanos e da maioria dos animais multicelulares,
suprindo nutrientes e oxigênio de todas as partes do organismo”.
Consequentemente, tem objetivo de levar embora resíduos e desempenha função
de proteção contra infecções. É considerado uma composição química
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extremamente complexa, tendo diversas características que os cientistas ainda
desconhecem.
A bíblia diz que a alma (a vida que uma pessoa ou um animal possui) está no
sangue, pois este está intimamente envolvido nos processos vitais. Em Levíticos
17:11 está explicito: “A alma da carne está no sangue, e eu mesmo o
pus para vós sobre o altar para fazer expiação pelas vossas almas, porque é o
sangue que faz expiação pela alma nele.”
No mesmo sentido, em Levíticos 17:14: “Pois a alma de todo tipo de carne é
seu sangue.” Já em Gênesis 9:4: “Somente não comam a carne de um animal com
seu sangue, que é a sua vida”. Novamente, em Levítico 17:10: “Se algum homem
da casa de Israel ou algum estrangeiro que mora entre vocês comer o sangue de
qualquer criatura, eu certamente me voltarei contra aquele que comer o sangue, e o
eliminarei dentre seu povo”.
Também prega Deuteronômio 12:23: “Apenas esteja firmemente decidido a
não comer o sangue, porque o sangue é a vida; não coma a vida junto com a carne”.
Diante tais considerações é evidente que tanto a vida como o sangue são
considerados extremamente sagrados.
Dentro do tema existem diversos mitos sobre as Testemunhas de Jeová,
como por exemplo a alegação de que não utilizam nenhum tipo de remédio ou
tratamento médico, uma vez que acreditam que a fé pode curar doenças, evitando
assim as transfusões, pois são muito caras, consequentemente havendo muitas
mortes – incluindo as de crianças.
Tais afirmações não condizem com a natureza dessa religião, já que as
Testemunhas de Jeová sempre procuram o melhor tratamento possível, buscando
médicos especializados em realizar tratamentos e cirurgias sem utilizar sangue.
Com o passar do tempo, houveram inúmeros avanços na medicina em
relação ao tratamento sem sangue, que na maioria das vezes ocorreram em prol das
Testemunhas de Jeová, hoje sendo utilizadas em pessoas que não querem se
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submeter ao risco de serem, por exemplo, contaminadas por doenças transmitidas
pelo sangue, ou desencadear reações do sistema imunológico ou sofrerem com erro
humano.
Nos dias atuais é comum médicos realizarem procedimentos cirúrgicos
complexos, como operações cardíacas, cirurgias ortopédicas e transplante de
órgãos sem o uso da transfusão de sangue. Pessoas que se submetem ao
procedimento sem o uso de sangue se recuperam tão bem ou até melhor do que
aqueles que aceitam a transfusão, sendo, portanto, incerto alegar que ao negar a
transfusão de sangue o paciente virá a óbito ou se aceitar o procedimento irá
sobreviver.
Para as Testemunhas de Jeová a questão do sangue é de ordem bíblica,
tendo em vista que acreditam que Deus entende melhor o funcionamento do corpo
humano, sabendo o que é melhor para as pessoas.
Para a corrente contrária a recusa da transfusão de sangue por motivos
religiosos, argumenta-se que o direito à vida é irrenunciável sob qualquer aspecto,
pois é considerado base para a existência de todos outros direitos. Como menciona
Moraes, “[...] o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se
constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos.”
(2005, p. 31).
No mesmo sentido Silva (2005, p. 198), afirma que a vida é fonte primária de
todos os outros direitos. Mendes, Coelho e Branco (2009, p. 398) afirmam que se
trata de um direito e não uma mera liberdade, sendo que não se inclui a opção de
não viver. Desse modo, os poderes públicos deverão proteger o bem da vida mesmo
com a oposição de seu titular.
Os mesmos autores concluem que nos casos em que a vida estiver
correndo risco de ser violada, o Estado deverá defendê-la se utilizando das medidas
necessárias, mesmo que as ações supracitadas atinjam os direitos fundamentais e a
liberdade dos indivíduos (BRANCO; COELHO; MENDES, 2009, p. 400). Segundo o
Código Penal, no art. 146, §3º, I, não configura crime de constrangimento ilegal a
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intervenção médica ou cirúrgica sem o consentimento do paciente ou seu
representante legal, se neste caso for justificada por eminente perigo de vida.
CONCLUSÃO
Através do presente estudo foi possível ter ideia do quão discutido é o
assunto relativo a recusa de se submeter à transfusão de sangue. O objetivo foi
expor as opiniões de ambos os lados, os prós e contras referentes à transfusão de
sangue. Na maioria das vezes, as Testemunhas de Jeová são criticadas pelo
procedimento escolhido, sendo que não raro são críticas infundadas ou até mesmo
ocasionadas por falta de conhecimento.
Com o passar dos anos, a Constituição foi se adequando às transformações
da sociedade, tendo acolhido a liberdade de crença, que pode ser exercida por
qualquer pessoa, desde que em consonância com as normas legais e que não
violem direitos de outrem.
As Testemunhas de Jeová, ao se absterem da transfusão, não significa que
querem correr o risco de falecer, mas sim buscar meios alternativos de tratamento
de qualidade, mantendo a dignidade destas pessoas. Nesse sentido, foram criados
vários métodos eficientes que podem substituir o procedimento em comento, sendo
que se feita tal escolha, ela estará dentro dos parâmetros legais, respeitando-se a
liberdade de crença e o direito à vida.
Quando tal decisão envolve riscos à saúde ou à vida, que são direitos
invioláveis, pode-se estar diante de uma afronta à Constituição Federal, devendo o
Estado zelar pela proteção destes bens.
Vários especialistas e médicos da área afirmam que, ao negar a transfusão
de sangue, o paciente tem mais chances de se recuperar comparado aos que
aceitaram o procedimento; decorre-se desta afirmação que o sangue tem muitas
propriedades ainda desconhecidas, podendo posteriormente causar até mesmo
infecções se não for submetido a uma análise rigorosa.
O direito do adepto à religião em não se sujeitar a qualquer procedimento sem
sua expressa concordância vem previsto no Código Civil. Porém, em caso de
eminente risco de morte, o Estado autoriza o médico a realizar a transfusão mesmo
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contra a vontade do paciente, pois o bem violado (liberdade de religiosa) é
considerado menor do que o bem que iria perder (a vida).
Quando o paciente se recusa aceitar a transfusão, o médico pode buscar
inclusive autorização judicial para a realização do procedimento. Desse modo, é
possível observar que o Estado confere liberdade ao enfermo de escolher o
tratamento que lhe é mais conveniente, desde que não esteja sofrendo risco de
morte; caso contrário, o médico é obrigado a salvar sua vida, podendo recorrer ao
método que mais achar adequado.
Nessa seara, a maior parte dos conflitos judiciais são os que envolvem
menores de idade, visto que os pais têm o dever de zelar por sua integridade física
em primeiro lugar, não podendo submeter os filhos aos preceitos religiosos pré-
escolhidos. Além disso, os menores ainda não têm capacidade para exercer suas
escolhas religiosas, consequentemente, o risco de morte nesses casos deve ser
evitado o máximo possível.
A afirmação de que o paciente faleceu por não ter se submetido a transfusão
de sangue é considerada falsa por especialistas e médicos da área, pois a utilização
do sangue não garante a sobrevivência e, como já mencionado, pode até mesmo
agravar a situação do paciente em certos casos.
Os médicos devem respeitar as normas do Conselho Nacional de Medicina,
de modo que farão o que for necessário para salvar a vida do paciente em caso de
iminente risco de morte. Não menos importante, é preciso respeitar a vontade do
paciente quando esse se encontra consciente e sua integridade não esteja em risco,
caso contrário, o mesmo agirá em estado de necessidade de terceiros.
Diante tais conflitos, as Testemunhas de Jeová têm um grupo de apoio que
age para mediar possíveis controvérsias envolvendo médicos e pacientes, buscando
seus direitos perante a autoridade judiciária. Devido a busca incansável dos
membros da organização, foram surgindo diversos métodos antes desconhecidos
pela medicina, que hoje são utilizados até por pessoas que não seguem a religião
mas desejam ter um tratamento de qualidade e sem a utilização de sangue.
Desse modo, conclui-se que as Testemunhas de Jeová ao negar a transfusão
de sangue não estão violando direito à vida, pois não desejam morrer, mas sim
querem ter um tratamento digno e de qualidade que não entre em confronto com
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seus ensinamentos, consequentemente evitando possíveis doenças advindas do
uso de sangue; para tanto, encontram respaldo na Constituição e no Código Civil,
não podendo o Estado intervir em suas crenças.
Mesmo com tais considerações, tem-se que respeitar as normas
estabelecidas pelo Estado no que tange à garantia da vida e a sua proteção.
O assunto abordado pode ser interpretado de várias maneiras, não tendo um
lado certo ou errado, pois ambos visam proteger os direitos à vida e à liberdade
religiosa das pessoas, devendo sempre perscrutar o equilíbrio a fim de garantir o
princípio da dignidade humana. Sobretudo, deve o aplicador do direito e o
profissional médico analisar cada caso concreto, agindo com razoabilidade e
respeitando as decisões de ordem religiosa dos cidadãos que vivem em
consonância com suas convicções.
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