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TESTEMUNHAS DE JEOVÁ: DIÁLOGO ENTRE A LIBERDADE DE CRENÇA E O DIREITO À VIDA JEHOVAH'S WITNESSES: DIALOGUE BETWEEN FREEDOM OF BELIEF AND THE RIGHT TO LIFE Hiago Leonardo Cioni Miotello Discente do curso de Direito do UniSALESIANO Lins Vinicius Roberto Prioli de Souza Docente do curso de Direito do UniSALESIANO Lins RESUMO O presente trabalho analisa a problemática que envolve a colisão entre os direitos fundamentais da vida e da liberdade religiosa diante da recusa às transfusões de sangue por Testemunhas de Jeová. O mencionado conflito gera diversas dúvidas nos profissionais médicos, bem como nos aplicadores do direito, devendo ser analisado cada caso concreto a fim de buscar uma solução eficiente para este entrave jurídico. Serão expostos, para tanto, preceitos constitucionais e suas modificações ao longo dos anos, retratando também a história e os fundamentos bíblicos das Testemunhas de Jeová; far-se-á, da mesma forma, uma breve explanação em relação aos métodos alternativos à transfusão, além analisar as responsabilidades dos profissionais e dos estabelecimentos de saúde, do paciente e de seus representantes legais quando instaurada entre eles uma relação jurídica de origem profissional, bem como as consequências jurídicas possíveis diante da recusa em realizar o tratamento vital. No decorrer do trabalho foram utilizados diversos arquivos da própria organização das Testemunhas de Universitári@ - Revista Científica do Unisalesiano – Lins – SP, ano 7, n.15, jul- dez de 2016

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TESTEMUNHAS DE JEOVÁ: DIÁLOGO ENTRE A LIBERDADE DE CRENÇA E O DIREITO À VIDA

JEHOVAH'S WITNESSES: DIALOGUE BETWEEN FREEDOM OF BELIEF AND THE RIGHT TO LIFE

Hiago Leonardo Cioni Miotello Discente do curso de Direito do UniSALESIANO Lins

Vinicius Roberto Prioli de SouzaDocente do curso de Direito do UniSALESIANO Lins

RESUMO

O presente trabalho analisa a problemática que envolve a colisão entre os direitos

fundamentais da vida e da liberdade religiosa diante da recusa às transfusões de

sangue por Testemunhas de Jeová. O mencionado conflito gera diversas dúvidas

nos profissionais médicos, bem como nos aplicadores do direito, devendo ser

analisado cada caso concreto a fim de buscar uma solução eficiente para este

entrave jurídico. Serão expostos, para tanto, preceitos constitucionais e suas

modificações ao longo dos anos, retratando também a história e os fundamentos

bíblicos das Testemunhas de Jeová; far-se-á, da mesma forma, uma breve

explanação em relação aos métodos alternativos à transfusão, além analisar as

responsabilidades dos profissionais e dos estabelecimentos de saúde, do paciente e

de seus representantes legais quando instaurada entre eles uma relação jurídica de

origem profissional, bem como as consequências jurídicas possíveis diante da

recusa em realizar o tratamento vital. No decorrer do trabalho foram utilizados

diversos arquivos da própria organização das Testemunhas de Jeová, visando

retratar fielmente a versão dos adeptos acerca do tema, bem como doutrinas,

jurisprudências, livros e artigos científicos que discorrem sobre a polêmica. Exigiu-

se, mais especificamente, uma avaliação da legislação constitucional,

infraconstitucional e ética, bem como do entendimento dos Conselhos de Medicina e

dos Tribunais. Vale ressaltar que foram criados vários métodos eficientes que

podem substituir a transfusão de sangue, sendo que a escolha por um meio

alternativo está dentro dos parâmetros legais, respeitando-se a liberdade de crença

e o direito à vida. O direito do adepto à religião em não se sujeitar a qualquer

procedimento sem sua concordância está previsto no Código Civil. Porém, em caso

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de eminente risco de morte, o Estado autoriza o médico a realizar a transfusão

mesmo contra a vontade do paciente, pois o bem violado (liberdade de religiosa) é

considerado menor do que o bem que poderia perder (a vida). Conclui-se com o

presente trabalho que as Testemunhas de Jeová ao se negar a transfusão de

sangue não violam o direito à vida, pois não desejam morrer, apenas querem um

tratamento que não entre em confronto com seus ensinamentos, encontrando

respaldo na Constituição Federal e no Código Civil para sua decisão, não podendo o

Estado intervir em suas crenças.

PALAVRAS-CHAVE: Código Civil. Constituição Federal. Direitos fundamentais.

Medicina. Religião.

ABSTRACT

This undergraduate thesis analyzes the issues surrounding the collision between the

fundamental rights of life and religious freedom in face of refusal to blood

transfusions by Jehovah's Witnesses. The aforementioned conflict raises several

doubts in the medical professionals as well as the law professionals, should be

examined each case in order to seek an effective solution to this legal obstacle. Will

be exposed, therefore, constitutional provisions and their changes over the years,

also depicting the history and the biblical foundations of Jehovah's Witnesses; far It

will, likewise, a brief explanation regarding alternative methods for transfusion, in

addition to analyzing the responsibilities of professionals and healthcare facilities, the

patients and their legal representatives when established between them a legal

relationship of occupational origin as well as the possible legal consequences on the

refusal to carry out the vital treatment. During the work they were used several files

of own organization of Jehovah's Witnesses, seeking to faithfully portray the version

of the fans on the subject, as well as doctrines, jurisprudence, books and scientific

articles that discuss the controversy. Demanded is, more specifically, an assessment

of the constitutional law, infra and ethics as well as the understanding of the Medical

Council and the Courts. It is noteworthy that were created several effective methods

that can replace blood transfusion, and the choice of an alternative means is within

legal parameters, respecting the freedom of belief and the right to life. The right of

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the fan to religion not to be subjected to any procedure without their consent is

provided for in the Civil Code. However, in case of imminent risk of death, the State

authorizes the doctor to perform the transfusion against the will of the patient,

because the violated right (freedom of religion) is considered lower than the good

that could lose (life). It concludes with this work that Jehovah's Witnesses to refuse

blood transfusion does not violate the right to life, because do not want to die, they

just want a treatment that does not come into conflict with his teachings, is supported

by the Federal Constitution and the Civil Code for its decision, can’t the State

intervene in their beliefs.

KEY-WORDS: Civil Code. Federal Constitution. Fundamental rights. Medicine.

Religion.

INTRODUÇÃO

O presente tema tem por objetivo expor informações sobre a polêmica da

recusa à transfusão de sangue pelas Testemunhas de Jeová, sendo que esse

pensamento é questionado há anos, suscitando inúmeros conflitos que são

levados aos Tribunais.

O Estado Brasileiro é laico, ou seja, não possui uma religião oficial,

englobando e amparando todas as religiões sem distinção. A liberdade de

crença pode ser exercida livremente pelos adeptos, desde que em consonância

com as normas legais, não podendo oferecer risco à vida ou afetar o direito de

terceiros.

O direito à vida detém suma importância, pois sem ele não seria possível

exercer os demais direitos. Desse modo, no que tange aos métodos abordados

pela medicina que podem oferecer riscos à integridade do paciente, o Estado

fica obrigado a fiscalizar tais práticas, porém, pode acabar adentrando no mérito

do direito à liberdade religiosa das pessoas, o que resulta, obviamente, em

muitas discussões.

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Diante das controvérsias envolvendo tanto o lado do paciente quanto o do

médico, surgem prós e contras acerca da utilização do sangue em cirurgias e

outros procedimentos. O presente trabalho abordará de maneira ampla ambos

os lados, seja analisando os fundamentos das Testemunhas de Jeová, seja

observando as normas constitucionais e a medicina, preocupando-se em

esclarecer alguns mitos e sanar eventuais dúvidas sobre o tema.

Com o passar do tempo, devido à intensa procura por métodos

alternativos, surgiram procedimentos eficientes que beneficiaram os fiéis,

consequentemente revolucionando a medicina por serem voltados a não

utilização do sangue. Mesmo com essas inovações, ainda se discute muito

sobre a crença escolhida pelas Testemunhas de Jeová, virando alvo de

acusações muitas vezes falsas.

Tal opção vem fundamentada na bíblia, a qual seguem fielmente. Por

essa razão, fazem algumas escolhas terapêuticas de certo risco, mesmo quando

há o envolvimento de menores de idade – questão ainda mais polêmica, uma

vez que a corrente contrária alega que não podem ser submetidos a técnicas

que envolvam o risco de morte, porque ainda não se decidiram sobre a religião

que irão seguir na vida adulta.

Quanto aos riscos supracitados, são rebatidos por muitos especialistas

que defendem a não utilização do sangue, pois afirmam que resulta em uma

recuperação mais rápida do que o enfermo que recebe a transfusão. Além de

englobar preceitos constitucionais e princípios que dão amparo a tal opção,

neste trabalho também serão abordadas opiniões contrárias, explanando o

ponto de vista de doutrinadores e também de médicos especializados na área.

No decorrer do trabalho foram utilizados diversos arquivos da própria

organização das Testemunhas de Jeová, visando retratar fielmente a versão de tais

adeptos acerca do tema, além de diversas doutrinas, jurisprudências, livros e artigos

científicos que discorrem sobre a polêmica.

1 ITENS DO DESENVOLVIMENTO

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Laicidade do Estado Brasileiro

A Constituição do Império editada em 1824, outorgada em nome da

“Santíssima Trindade”, trazia a religião católica romana como a oficial. Segundo

Teraoka (2010, p. 110) e Bastos (2000, p. 191), nessa época, era permitida a

liberdade de crença, porém só podendo exercê-la nos lares, sendo vedada qualquer

forma exterior de templo.

Após a Proclamação da República de 1889, Ruy Barbosa redigiu o Decreto n°

119-A de 7 de janeiro de 1890, separando definitivamente o Estado e a Igreja; até

então não havia menção de Deus no preâmbulo da Constituição (TERAOKA, 2010,

p. 111).

Com a criação da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil em

1934, houve a primeira menção à figura de Deus no preâmbulo, também sendo

reconhecida a liberdade de culto, com a ressalva de que não contrariasse a ordem

pública e os bons costumes. Em 1937 a Constituição estabeleceu que o Estado não

estabelecerá, subvencionará ou embaraçará o exercício dos cultos religiosos

(TERAOKA, 2010, p. 115-117).

A Constituição de 1946 inovou na época ao prever a imunidade tributária

para as associações religiosas, sendo que não possuíam fonte de renda para arcar

com os impostos. Houve também a previsão da “escusa de consciência”, a qual a lei

estabelecia prestações alternativas para aqueles que recusassem, por motivos

religiosos, a cumprir obrigações impostas a todos; assim, o Estado reconheceu

descansos remunerados em dias de feriados religiosos, bem como conferiu efeitos

civis ao casamento religioso e o facultou o aprendizado de ensino religioso

(TERAOKA, 2010, p. 118-119).

A escusa de consciência foi vedada pela Constituição de 1967, deste modo,

se alguém se recusasse a cumprir as obrigações impostas durante sua vigência,

perderia consequentemente seus direitos políticos.

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Na referida Constituição havia também clara menção de que era assegurada

a liberdade de consciência e o exercício de cultos religiosos, desde que não

contrariassem a ordem pública e os bons costumes e, no Capítulo “Dos Direitos e

Garantias Individuais”, estava disposta a afirmação de que todos são iguais perante

a lei, sem distinção de credo religioso (TERAOKA, 2010, p. 120-121).

Após diversas modificações em relação à liberdade religiosa, a atual

Constituição de 1988 em seu preâmbulo faz menção à proteção de Deus.

Liberdade de crença significa que o cidadão tem a liberdade de escolher

determinada religião, assim como mudar para outra se quiser, ou, se preferir, não se

submeter a nenhuma crença, podendo inclusive optar pelo ateísmo (ou seja, não

acreditar em Deus), não havendo qualquer forma de discriminação. Porém, da

mesma forma, não poderá embaraçar o exercício de qualquer religião.

A religião é exteriorizada com a prática dos ritos, cultos, cerimônias ou

reuniões, ou seja, exercendo-se as tradições e hábitos de acordo com a

particularidade de cada seita, não sendo, portanto, realizada com a simples

contemplação ou adoração a Deus (SILVA, 1999, p. 252).

Essa liberdade de culto vem prevista na Constituição Federal, em seu art. 5º,

VI, que assegura o livre exercício dos cultos religiosos. Sobre o referido tema, Silva

(1999, p. 252) doutrina que o dispositivo que trata sobre a liberdade de culto divide-

se em duas partes.

A primeira parte visa a proteção ao exercício dos cultos religiosos na forma da

lei, sendo as próprias pessoas que escolhem os locais onde serão praticados os

cultos, respeitados alguns lugares públicos – pois são de uso comum do povo e não

para um grupo específico.

A lei poderá estabelecer locais próprios para a prática religiosa, impondo

alguns critérios para a associação que consequentemente farão jus a alguns

benefícios, dentre eles a imunidade fiscal, prevista no art. 150, VI da Constituição

Federal.

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A segunda parte preconiza que os poderes públicos não poderão embaraçar

os exercícios dos cultos religiosos (art. 19, I da Constituição Federal), mas sim

possuem o dever protege-los, impedindo que terceiros os obstruam.

Dessa forma, observa-se que a religião é exercida de forma livre entre as pessoas, desde que tais atividades não venham atingir os direitos de outras pessoas, agindo o Estado como ente fiscalizador.

2 Liberdade de crença

A liberdade de crença foi inserida no âmbito jurídico por meio da Declaração

de Direitos da Virgínia, editada em 1776. Referido dispositivo mencionava que

“todos os homens têm igual direito ao livre exercício da religião, segundo os ditames

da consciência”. Com o passar do tempo, foram surgindo diversas modificações com

relação ao tema, conforme o exposto a seguir.

Com a vigência da primeira emenda à Constituição americana de 1789, houve

a expressa proibição do livre exercício dos cultos, não se permitindo que o

Congresso passasse leis que visassem estabelecer determinada religião (MORAES,

1998, p. 126).

Conforme entendimento de Ferreira (1998, p. 102), a França editou a

Declaração de Direitos do Homem em 1789, estabelecendo no art. 10 do referido

dispositivo que “ninguém deve ser inquietado por suas opiniões mesmo religiosas,

desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei”.

Com a Convenção Nacional ocorrida em 1795, ordenou-se a separação da

igreja do Estado. Em 1802 foi assinada por Napoleão uma concordata com a igreja

católica, tornando-a a igreja oficial, posteriormente confraternizando a mesma com

as igrejas protestantes em 1803. Em 1905 foi novamente votada a separação entre

Igreja e Estado.

O regime da concordata instaurou-se em 1801, com acordo entre Bonaparte e

o Papa Pio VII. O objetivo do documento era fixar o estatuto da igreja católica na

França pós-revolucionária. Com o passar do tempo, as leis posteriores transferiram

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esse regime para as Igrejas protestantes e para o culto israelita (RIVERO, 2006, p.

528).

Com o advento da Constituição Brasileira de 1824, previu-se que a religião

católica iria continuar sendo a religião oficial do império, porém era autorizado o

culto das demais religiões desde que fossem praticados no âmbito dos lares

(CARVALHO, 2009, p. 783).

Professa Karam (2009, p. 4-6) que o catolicismo foi retirado do status de

religião oficial com a Proclamação da República em 1891, tornando o Brasil um

Estado neutro (ou laico), permitindo o indivíduo adotar ou não determinada religião.

Após diversas transformações em todas as partes do mundo e ao longo das

décadas, a liberdade de crença foi se estruturando de acordo com as necessidades

dos indivíduos, que cultuavam religiões não consideradas oficiais pelo Estado.

Entende-se, portanto, que o dever do Estado deverá ser apenas de ente

fiscalizador das atividades religiosas, não permitindo que sejam desrespeitadas por

qualquer indivíduo e devendo ser exercidas nos limites da ordem pública. Para

Moraes (1998, p. 127), a neutralidade estatal inserida na Constituição prevê

intrinsecamente o direito à liberdade de pensamento, pois permite que o indivíduo

escolha livremente a religião que lhe é mais conveniente, sendo também respeitado

o ateísmo.

3 Fundamentos bíblicos para negar a transfusão de sangue, posicionamento contrário e possível solução

Segundo as Testemunhas de Jeová, o sangue é considerado “líquido que

circula no sistema vascular dos humanos e da maioria dos animais multicelulares,

suprindo nutrientes e oxigênio de todas as partes do organismo”.

Consequentemente, tem objetivo de levar embora resíduos e desempenha função

de proteção contra infecções. É considerado uma composição química

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extremamente complexa, tendo diversas características que os cientistas ainda

desconhecem.

A bíblia diz que a alma (a vida que uma pessoa ou um animal possui) está no

sangue, pois este está intimamente envolvido nos processos vitais. Em Levíticos

17:11 está explicito: “A alma da carne está no sangue, e eu mesmo o

pus para vós sobre o altar para fazer expiação pelas vossas almas, porque é o

sangue que faz expiação pela alma nele.”

No mesmo sentido, em Levíticos 17:14: “Pois a alma de todo tipo de carne é

seu sangue.” Já em Gênesis 9:4: “Somente não comam a carne de um animal com

seu sangue, que é a sua vida”. Novamente, em Levítico 17:10:  “Se algum homem

da casa de Israel ou algum estrangeiro que mora entre vocês comer o sangue de

qualquer criatura, eu certamente me voltarei contra aquele que comer o sangue, e o

eliminarei dentre seu povo”.

Também prega Deuteronômio 12:23: “Apenas esteja firmemente decidido a

não comer o sangue, porque o sangue é a vida; não coma a vida junto com a carne”.

Diante tais considerações é evidente que tanto a vida como o sangue são

considerados extremamente sagrados.

Dentro do tema existem diversos mitos sobre as Testemunhas de Jeová,

como por exemplo a alegação de que não utilizam nenhum tipo de remédio ou

tratamento médico, uma vez que acreditam que a fé pode curar doenças, evitando

assim as transfusões, pois são muito caras, consequentemente havendo muitas

mortes – incluindo as de crianças.

Tais afirmações não condizem com a natureza dessa religião, já que as

Testemunhas de Jeová sempre procuram o melhor tratamento possível, buscando

médicos especializados em realizar tratamentos e cirurgias sem utilizar sangue.

Com o passar do tempo, houveram inúmeros avanços na medicina em

relação ao tratamento sem sangue, que na maioria das vezes ocorreram em prol das

Testemunhas de Jeová, hoje sendo utilizadas em pessoas que não querem se

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submeter ao risco de serem, por exemplo, contaminadas por doenças transmitidas

pelo sangue, ou desencadear reações do sistema imunológico ou sofrerem com erro

humano.

Nos dias atuais é comum médicos realizarem procedimentos cirúrgicos

complexos, como operações cardíacas, cirurgias ortopédicas e transplante de

órgãos sem o uso da transfusão de sangue. Pessoas que se submetem ao

procedimento sem o uso de sangue se recuperam tão bem ou até melhor do que

aqueles que aceitam a transfusão, sendo, portanto, incerto alegar que ao negar a

transfusão de sangue o paciente virá a óbito ou se aceitar o procedimento irá

sobreviver.

Para as Testemunhas de Jeová a questão do sangue é de ordem bíblica,

tendo em vista que acreditam que Deus entende melhor o funcionamento do corpo

humano, sabendo o que é melhor para as pessoas.

Para a corrente contrária a recusa da transfusão de sangue por motivos

religiosos, argumenta-se que o direito à vida é irrenunciável sob qualquer aspecto,

pois é considerado base para a existência de todos outros direitos. Como menciona

Moraes, “[...] o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se

constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos.”

(2005, p. 31).

No mesmo sentido Silva (2005, p. 198), afirma que a vida é fonte primária de

todos os outros direitos. Mendes, Coelho e Branco (2009, p. 398) afirmam que se

trata de um direito e não uma mera liberdade, sendo que não se inclui a opção de

não viver. Desse modo, os poderes públicos deverão proteger o bem da vida mesmo

com a oposição de seu titular.

Os mesmos autores concluem que nos casos em que a vida estiver

correndo risco de ser violada, o Estado deverá defendê-la se utilizando das medidas

necessárias, mesmo que as ações supracitadas atinjam os direitos fundamentais e a

liberdade dos indivíduos (BRANCO; COELHO; MENDES, 2009, p. 400). Segundo o

Código Penal, no art. 146, §3º, I, não configura crime de constrangimento ilegal a

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intervenção médica ou cirúrgica sem o consentimento do paciente ou seu

representante legal, se neste caso for justificada por eminente perigo de vida.

CONCLUSÃO

Através do presente estudo foi possível ter ideia do quão discutido é o

assunto relativo a recusa de se submeter à transfusão de sangue. O objetivo foi

expor as opiniões de ambos os lados, os prós e contras referentes à transfusão de

sangue. Na maioria das vezes, as Testemunhas de Jeová são criticadas pelo

procedimento escolhido, sendo que não raro são críticas infundadas ou até mesmo

ocasionadas por falta de conhecimento.

Com o passar dos anos, a Constituição foi se adequando às transformações

da sociedade, tendo acolhido a liberdade de crença, que pode ser exercida por

qualquer pessoa, desde que em consonância com as normas legais e que não

violem direitos de outrem.

As Testemunhas de Jeová, ao se absterem da transfusão, não significa que

querem correr o risco de falecer, mas sim buscar meios alternativos de tratamento

de qualidade, mantendo a dignidade destas pessoas. Nesse sentido, foram criados

vários métodos eficientes que podem substituir o procedimento em comento, sendo

que se feita tal escolha, ela estará dentro dos parâmetros legais, respeitando-se a

liberdade de crença e o direito à vida.

Quando tal decisão envolve riscos à saúde ou à vida, que são direitos

invioláveis, pode-se estar diante de uma afronta à Constituição Federal, devendo o

Estado zelar pela proteção destes bens.

Vários especialistas e médicos da área afirmam que, ao negar a transfusão

de sangue, o paciente tem mais chances de se recuperar comparado aos que

aceitaram o procedimento; decorre-se desta afirmação que o sangue tem muitas

propriedades ainda desconhecidas, podendo posteriormente causar até mesmo

infecções se não for submetido a uma análise rigorosa.

O direito do adepto à religião em não se sujeitar a qualquer procedimento sem

sua expressa concordância vem previsto no Código Civil. Porém, em caso de

eminente risco de morte, o Estado autoriza o médico a realizar a transfusão mesmo

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contra a vontade do paciente, pois o bem violado (liberdade de religiosa) é

considerado menor do que o bem que iria perder (a vida).

Quando o paciente se recusa aceitar a transfusão, o médico pode buscar

inclusive autorização judicial para a realização do procedimento. Desse modo, é

possível observar que o Estado confere liberdade ao enfermo de escolher o

tratamento que lhe é mais conveniente, desde que não esteja sofrendo risco de

morte; caso contrário, o médico é obrigado a salvar sua vida, podendo recorrer ao

método que mais achar adequado.

Nessa seara, a maior parte dos conflitos judiciais são os que envolvem

menores de idade, visto que os pais têm o dever de zelar por sua integridade física

em primeiro lugar, não podendo submeter os filhos aos preceitos religiosos pré-

escolhidos. Além disso, os menores ainda não têm capacidade para exercer suas

escolhas religiosas, consequentemente, o risco de morte nesses casos deve ser

evitado o máximo possível.

A afirmação de que o paciente faleceu por não ter se submetido a transfusão

de sangue é considerada falsa por especialistas e médicos da área, pois a utilização

do sangue não garante a sobrevivência e, como já mencionado, pode até mesmo

agravar a situação do paciente em certos casos.

Os médicos devem respeitar as normas do Conselho Nacional de Medicina,

de modo que farão o que for necessário para salvar a vida do paciente em caso de

iminente risco de morte. Não menos importante, é preciso respeitar a vontade do

paciente quando esse se encontra consciente e sua integridade não esteja em risco,

caso contrário, o mesmo agirá em estado de necessidade de terceiros.

Diante tais conflitos, as Testemunhas de Jeová têm um grupo de apoio que

age para mediar possíveis controvérsias envolvendo médicos e pacientes, buscando

seus direitos perante a autoridade judiciária. Devido a busca incansável dos

membros da organização, foram surgindo diversos métodos antes desconhecidos

pela medicina, que hoje são utilizados até por pessoas que não seguem a religião

mas desejam ter um tratamento de qualidade e sem a utilização de sangue.

Desse modo, conclui-se que as Testemunhas de Jeová ao negar a transfusão

de sangue não estão violando direito à vida, pois não desejam morrer, mas sim

querem ter um tratamento digno e de qualidade que não entre em confronto com

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seus ensinamentos, consequentemente evitando possíveis doenças advindas do

uso de sangue; para tanto, encontram respaldo na Constituição e no Código Civil,

não podendo o Estado intervir em suas crenças.

Mesmo com tais considerações, tem-se que respeitar as normas

estabelecidas pelo Estado no que tange à garantia da vida e a sua proteção.

O assunto abordado pode ser interpretado de várias maneiras, não tendo um

lado certo ou errado, pois ambos visam proteger os direitos à vida e à liberdade

religiosa das pessoas, devendo sempre perscrutar o equilíbrio a fim de garantir o

princípio da dignidade humana. Sobretudo, deve o aplicador do direito e o

profissional médico analisar cada caso concreto, agindo com razoabilidade e

respeitando as decisões de ordem religiosa dos cidadãos que vivem em

consonância com suas convicções.

REFERÊNCIAS

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BRANCO, P. G. G.; COELHO, I. M.; MENDES, G. F. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.

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