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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO BRASILEIRA
MARIA DAS DORES ALVES SOUZA
A INFLUÊNCIA DO PENSAMENTO POLÍTICO-PEDÁGOGICO
FREIREANO NA PRÁXIS DE EDUCADORES POPULARES CEARENSES NA
DÉCADA DE 1960
FORTALEZA
2014
MARIA DAS DORES ALVES SOUZA
A INFLUÊNCIA DO PENSAMENTO POLÍTICO-PEDÁGOGICO
FREIREANO NA PRÁXIS DE EDUCADORES POPULARES CEARENSES NA
DÉCADA DE 1960
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora. Área de concentração: Educação. Linha de Pesquisa: Educação Popular Movimentos Sociais e Escola. Eixo: Educação de Jovens e Adultos, Dinâmicas Sociais no Campo e na Cidade e Políticas Públicas. Orientadora: Profª. Drª. Eliane Dayse Pontes Furtado
FORTALEZA
2014
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará
Biblioteca de Ciências Humanas __________________________________________________________________________________________ S716p Souza, Maria das Dores Alves.
A influência do pensamento político-pedagógico freireano na práxis de educadores populares cearenses na década de 1960 / Maria das Dores Alves Souza. – 2014.
127 f. , enc. ; 30 cm. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Educação, Programa de Pós-
Graduação em Educação Brasileira, Fortaleza, 2014. Área de Concentração: Educação. Orientação: Prof.ª Dr.ª Eliane Deyse Pontes Furtado. 1. Educação popular – Ceará. 2. Educadores – Ceará. 3. Alfabetização de adultos – Ceará. 4.
Conscientização. 5. Liberdade. 6. Anos 1960. I. Título.
CDD 370.11509813109046 _________________________________________________________________________________________________________________
MARIA DAS DORES ALVES SOUZA
A INFLUÊNCIA DO PENSAMENTO POLÍTICO-PEDAGÓGICO
FREIREANO NA PRÁXIS DE EDUCADORES POPULARES CEARENSES NA
DÉCADA DE 1960
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora. Área de concentração: Educação. Linha de Pesquisa: Educação Popular Movimentos Sociais e Escola. Eixo: Educação de Jovens e Adultos, Dinâmicas Sociais no Campo e na Cidade e Políticas Públicas.
Aprovada em: 28 / 11 / 2014.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Eliane Dayse Pontes Furtado (orientadora) Universidade Federal do Ceará (UFC)
___________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª. Ercília Maria Braga de Olinda Universidade Federal do Ceará (UFC)
___________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Ângela Maria Bessa Linhares Universidade Federal do Ceará (UFC)
___________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Sandra Maria Gadelha de Carvalho Universidade Estadual do Ceará (UECE)
_________________________________________________________________
Prof. Dr. José Álbio Moreira de Sales Universidade Estadual do Ceará (UECE)
Ao Guilherme Alves Souza Nunes, por me possibilitar renascer a cada amanhecer e pelas significativas aprendizagens no exercício cotidiano da relação dialógica entre mãe e filho. Aos meus pais, Manoel Alves Souza e Francelina Alves Souza (in memoriam), pelo exemplo de amor, humildade e sabedoria e por me permitirem exercitar a liberdade, deixando-me alçar voos inimagináveis em busca dos meus sonhos. Aos educadores e educadoras populares que participaram da pesquisa, pela disponibilidade em viajar no túnel do tempo para rememorar suas vivências em educação popular, possibilitando, assim, a concretização desta busca de natureza acadêmica. Aos educadores e educadoras que acreditam na capacidade de “ser mais” do homem e da mulher e vivenciam ações de educação popular, mesmo no contexto do século XXI, quando são testemunhadas, cotidianamente, a desumanização a desvalorização da vida, como consequência da negação dos direitos humanos, educacionais e sociais, pela sociedade de classes às camadas populares.
AGRADECIMENTOS
Ao concluir este trabalho, muitos são os agradecimentos a fazer. Ao longo do
período em que cursei o doutorado, tive a oportunidade de conviver com várias pessoas que
contribuíram, de forma direta ou indireta, para a elaboração desta tese. Lembrar de todas essas
pessoas seria humanamente impossível, mas não posso deixar de registrar os nomes daqueles
que estiveram mais próximos, que, mesmo sem o saberem, sempre me estimularam e
ajudaram nessa caminhada. Dentre essas pessoas, sou grata de maneira bastante especial, aos
educadores e educadoras populares que se dispuseram, de forma generosa e amorosamente, a
participar desta pesquisa, partilhando suas trajetórias profissionais e de vida: Irmã Francisca
Cândido, José Leunam Soares, Maria Nobre Damasceno, Rita Aciolly Tesser e Ruth
Cavalcante. Sem eles, este trabalho não teria sido possível!
À professora doutora Eliane Deyse Pontes Furtado, na condição de orientadora,
pelo compromisso e sensibilidade ao orientar objetos de estudos na área de educação popular,
pela confiança na minha capacidade de enfrentar os desafios e concluir o doutorado e pelas
contribuições teóricas e metodológicas no processo investigativo.
À professora doutora Ângela Maria Bessa Linhares, interlocutora no cotidiano, que
se interessou pelo objeto de estudo desta pesquisa, desde a seleção para meu ingresso no
doutorado. Obrigada, pela “escuta sensível”, pelo apoio e estímulo nos momentos de desânimo
e incertezas e, ainda, pelas valiosas contribuições teóricas na feitura deste ensaio.
À professora doutora Ercília Maria Braga de Olinda, pelas orientações na
constituição da abordagem teórica e metodológica na área da Historia Oral, as quais foram
imprescindíveis no processo investigativo.
À professora doutora Sandra Maria Gadelha de Carvalho, pela capacidade de
transmitir tranquilidade, pelas contribuições teóricas e valorização do objeto de estudo.
Ao professor doutor José Álbio Moreira de Sales, pela lucidez nas contribuições
para qualificação do texto. Obrigada pela disponibilidade em participar deste momento
significativo na minha vida acadêmica.
À professora doutora Juraci Maia Cavalcante, por despertar meu interesse e paixão
pela história e memória, o que foi determinante na elaboração do objeto de estudo desta
investigação.
Aos professores e professoras do Programa de Pós-graduação em Educação da
UFC, pelas valiosas contribuições na minha formação acadêmica.
À Coordenação do Programa de Pós-graduação em Educação Brasileira da UFC,
pela capacidade do diálogo sobre as normas e exigências institucionais. Obrigada, por
compreender que vivenciamos processos emocionais que, muitas vezes, dificultam o
cumprimento dos prazos das atividades acadêmicas. Pois, nem sempre, é possível conciliar a
subjetividade humana com a vida universitária.
Às funcionárias e funcionários do Programa de Pós-graduação em Educação
Brasileira da UFC, pelas orientações e amorosidade no atendimento.
Às amigas Eliacy Saboia, Elisangela André, Maria José Barbosa e Rejane Mary
Moreira, interlocutoras no cotidiano e nos momentos de angústia e desânimo. Obrigada pela
disponibilidade do diálogo sobre as inquietações e incertezas vivenciadas na elaboração desta
tese.
Não pode haver um caminho mais ético, mais
verdadeiramente democrático do que
testemunhar aos educandos como pensamos,
as razões por que pensamos desta ou daquela
forma, os nossos sonhos, os sonhos por que
brigamos, mas, ao mesmo tempo, dando-lhes
provas concretas, irrefutáveis, de que
respeitamos suas opções em oposição às
nossas. (PAULO FREIRE).
RESUMO
Os trabalhos educativos integrados à cultura popular, à crença na vocação ontológica do
homem de “ser mais” e à esperança de transformação social impulsionaram a constituição do
pensamento político-pedagógico freireano, que defende a leitura crítica da realidade e a
participação do oprimido como instrumentos de luta para superar a opressão em que vivia o
povo na sociedade brasileira. A investigação teve como objetivo geral compreender as
contribuições político-pedagógicas do pensamento freireano nas práxis dos educadores
populares cearenses na década de 1960. Fundamentou-se na abordagem qualitativa, por
privilegiar os significados, experiências, sentimentos, atitudes e valores dos participantes da
pesquisa. O método foi a História Oral, tendo como instrumento a entrevista semiestruturada
para registrar as memórias dos educadores sobre suas práxis. Os sujeitos foram cincos
educadores que vivenciaram ações de educação popular referenciadas em Freire. A
fundamentação teórica direcionou-se à compreensão dos pressupostos teórico-metodológicos das
reflexões freireanas, referenciando-se principalmente nas obras do próprio Freire (1967, 1980,
l987, 1994). As narrativas evidenciam que a práxis se entrelaçara a sonhos, a esperanças, ao
desejo de justiça social e à utopia de provocar mudanças sociais, políticas e culturais, almejadas
pelas camadas populares, no contexto de transição que vivenciava a sociedade brasileira na
década de 1960. Manifestam o compromisso dos educadores populares em desenvolver prática
de alfabetização vinculada à realidade socioeconômica e cultural dos educandos. A ação
pedagógica da leitura, escrita e compreensão crítica da realidade foi trabalhada como
instrumento de libertação das condições de exploração e desumanização que vivenciavam os
educandos no contexto da sociedade brasileira dos anos de 1960. Conclui-se que a práxis dos
educadores populares contribuiu para a elevação do nível de alfabetismo ampliação dos
processos de organização social e cultural dos educandos, tornando-se um marco histórico na
educação popular cearense.
Palavras-chave: Educação libertadora. Alfabetização-Conscientização. Libertação.
ABSTRACT
The educative work integrated into the popular culture, the belief in man's ontological
vocation of "being more" and the hope of social transformation led to the development of
Freire's political and pedagogical ideas, which defends the critical view of reality and the
participation of the oppressed as instruments of struggle to overcome the oppression suffered
by the people in Brazilian society. As general objective, the research intends to understand the
political and pedagogical contributions of Freire's thought in the praxis of popular educators
of Ceará, in the 1960s It was based on a qualitative approach to privilege the meanings,
experiences, feelings, attitudes and values of respondents. With the Historical Oral approach,
semi-structured interviews were instruments to record the memories of teachers on
professional practice. The subjects were five educators who have experienced popular
education activities referenced in Freire. The theoretical basis directed to the understanding of
the theoretical and methodological assumptions of Freire's thought, by referring mainly in the
works of the author (1967, 1980, l987, 1994). The narratives demonstrate that praxis
intertwine to dreams, hopes, desire for social justice and utopia to cause social, political and
cultural changes, required by popular classes in the transitional context that Brazilian society
in the 1960s was experiencing. The commitment of popular educators to develop practical
literacy linked to the socioeconomic and cultural reality of the students was impressive. The
pedagogical action, reading, writing and critical understanding of reality was worked as
liberation instrument of exploitation and dehumanization conditions that students were
experiencing in the context of Brazilian society in 1960s Thus, the praxis of popular educators
contributed to raising the literacy level and the expansion of social and cultural organization
processes of learners, making it a landmark in popular education of Ceará.
Keywords: Liberating Education. Literacy-awareness. Humanization.
RESUMEN
El trabajo educativo integrado en la cultura popular, la creencia en la vocación ontológica del
hombre de "ser más" y la esperanza de la transformación social condujo al desarrollo del
pensamiento político y pedagógico de Freire, que aboga por visión crítica de la realidad y la
participación de los oprimidos como instrumentos para luchar por la superación de la opresión
en que la sociedad brasileña vivió. La investigación tuvo como objetivo comprender las
contribuciones políticas y pedagógicas del pensamiento de Freire en la praxis de los
educadores populares de Ceará, en la década de 1960. Se basa en un enfoque cualitativo a
privilegiar los significados, experiencias, sentimientos, actitudes y valores de los
entrevistados. El método fue la historia oral, y como una herramienta para entrevistas semi-
estructuradas para grabar los recuerdos de los educadores acerca de su práctica. Los sujetos
fueron cinco educadores que han experimentado las acciones de educación popular que se
hace referencia en Freire. El fundamento teórico dirigido a la comprensión de los supuestos
teóricos y metodológicos del pensamiento de Freire, refiriéndose principalmente en las obras
del propio Freire (1967, 1980, l987, 1994). Los relatos muestran que la práctica entrelazó los
sueños, las esperanzas, las aspiraciones de justicia social y la utopía de causar almejadas
sociales, políticos y culturales de las clases populares en el contexto de transición que
experimentó la sociedad brasileña en la década de 1960. Se concluye que la práctica de los
educadores populares contribuyó a levantar el nivel educacional y la ampliación de los
procesos de organización social y cultural de los estudiantes, que se ha convertido en un hito
en la educación popular del estado de Ceará.
Palabras-clave: Educación liberadora. Alfabetización-conciencia. Humanizacion.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO........................................................................................................... 11
2 O CAMINHO SE FAZ AO CAMINHAR: VEREDAS PERCORRIDAS NA
INVESTIGAÇÃO........................................................................................................ 24
3 O POLÍTICO-PEDAGÓGICO NO PENSAMENTO FREIREANO:
HISTORICIDADE E EMANCIPAÇÃO HUMANA NA REFLEXÃO DA
EDUCAÇÃO COMO PRÁTICA DA LIBERDADE................................................ 33
4 EDUCAÇÃO POPULAR: HISTORICIDADE E CONCEPÇÕES ........................ 55
4.1 Incursão histórica: o percurso pelas trilhas da educação popular no Brasil........ 55
4.2 Arqueologia das ações de educação popular no Ceará, nos anos de 1960............. 69
4.3 Revisita as concepções e práticas de educação popular ........................................... 72
5 PRÁXIS FREIREANA: NARRATIVAS DE EDUCADORES POPULARES
CEARENSES ............................................................................................................... 83
5.1 Memória da práxis do Movimento de Educação de Base - MEB no Ceará: a voz
dos educadores populares ............................................................................................... 91
5.2 Alfabetização de adultos no bairro Pirambu: memória da práxis......................... 105
6 CONCLUSÕES............................................................................................................ 117
REFERÊNCIAS.......................................................................................................... 121
APÊNDICE A – SINDICATO DOS TRABALHADORES RURAIS DE
IPUEIRAS – CE........................................................................................................... 126
APÊNDICE B – ORIENTAÇÕES DE PROCEDIMENTOS PÓS-
ENTREVISTA ...........................................................................................................
126
11
1 INTRODUÇÃO
O tempo corrente, nossa matéria, solicita o trabalho da memória com os olhos do
presente, de maneira que a experiência com o passado possa evidenciar a produção de saber da
educação popular em sua rica história. Desse modo é que esta pesquisa se insere no campo da
Educação Popular e da História e Memória, objetivando capturar a influência do pensamento
político-pedagógico freireano na práxis de educadores populares cearenses que tiveram
inserção em experiências de educação popular no Estado do Ceará, em particular, na década de
1960.
O objeto de estudo desta investigação está relacionado à nossa história de origem
camponesa e à prática profissional, seja no contexto dos movimentos populares ou na
universidade pública. O sentimento de pertença às camadas populares esteve sempre presente
em nosso cotidiano e atuação profissional. A primeira experiência de participação deu-se no
grupo de jovens, atividade coordenada pela Igreja Católica de Monsenhor Tabosa Ceará1,
ligada à Diocese de Crateús, que tinha como bispo Dom. Ântonio Batista Fragoso, conhecido
por seu trabalho em defesa da libertação dos oprimidos, visto que postulava uma igreja
comprometida com os processos de organização da classe trabalhadora, dando, inclusive,
apoio irrestrito à criação de sindicatos rurais2. Este trabalho tornou-se objeto de perseguições
pelos políticos, que o denunciavam como subversivo e incentivador do comunismo na região.
Foi este contexto que originou a criação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Monsenhor
Tabosa, organização sindical onde trabalhei no período de 1976 a 1978 e que possibilitou meu
engajamento nos movimentos populares.
Minha trajetória de escolarização foi marcada por várias interrupções. Como esta
história foi vivenciada pela maioria dos filhos e filhas de trabalhadores em vítude do não
cumprimento do direito à educação às camadas populares, entendo ser necessário narrá-la. Aos
16 anos, concluí o curso ginasial. Na época, final da década de 1970, não existia escola de 2º
grau em Monsenhor Tabosa, realidade essa que determinou a interrupção de meus estudos
durante dois anos, período em que continuava trabalhando no Sindicato dos Trabalhadores
Rurais. O sonho era residir em cidade na qual funcionasse escola de 2º grau para continuar
estudando. Na época, fazia parte da cultura das famílias somente permitir que os filhos
1 Monsenhor Tabosa é a cidade em que nasci e vivi até os 18 anos, situa-se na serra das matas na região de
Crateús, Ceará. 2 Como exemplo, anexo A – Calendário do Sindicato dos Trabalhadores de Ipueiras Ceará, Entidade de classe
que, em seu aniversário de 50 anos, prestou homenagem ao Bispo D. Antonio Batista Fragoso pelo incentivo ao processo de organização dos trabalhadores mediante a Criação de Sindicatos, na década de 1960.
12
residissem em outra cidade quando atingissem a maioridade. Destarte, somente ao completar
18 anos, meus pais permitiram que eu residisse em Fortaleza, para estudar. Foi então que
cursei o 1º ano do Curso Científico, no Colégio Joaquim Nogueira. Neste ínterim, de um ano,
continuei em contato com os sindicatos. A Federação dos Trabalhadores na Agricultura do
Estado do Ceará (FETRAECE) descentralizou suas ações, com a criação de delegacias
regionais, objetivando atuação mais efetiva e participativa junto aos sindicatos. Em virtude de
minha experiência em sindicalismo, fui convida para a função de Assessora Sindical na
Delegacia de Crateús, passando a atuar junto a 11 sindicatos. Em Cratéus, concluí o 2º grau,
mas, infelizmente, a realidade de estudante trabalhadora me fez interromper os estudos mais
uma vez, pois estava trabalhando em uma cidade que não oferecia curso superior. Em meados
de 1980, ainda não existia faculdade em Crateús. O desafio, agora, era concretizar o sonho de
cursar uma faculdade, então, reinvindiquei à FETRAECE a transferência para uma cidade
onde houvesse faculdade. Assim, consegui transferência para trabalhar na Delegacia Regional
de Iguatu, cidade onde cursei Pedagogia, na Faculdade de Educação e Ciências de Iguatu –
FECLI, unidade da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Em 1984, houve mudança no
contexto político da FETRAECE, em virtude de ter sido eleita uma diretoria, digamos de
direita, “considerada pelega”, que fez mudanças na instituição de modo a interferir no trabalho
de assessoria sindical, resultando na demisssão de várias pessoas das equipes regionais,
inclusive na minha. Após alguns meses desempregada, ingressei na Organização das
Cooperativas no Estado do Ceará (OCEC), para atuar na equipe de educação cooperativista,
em uma cooperativa de pequenos produtores rurais, no Município de Caririaçu, região do
Cariri Cearense. O desafio durante a história profissional foi desenolver trabalho educativo
referenciado nos princípios da educação libertadora.
Trabalhar com sindicatos de trabalhadores rurais e com cooperativas de pequenos
produtores rurais foi importante para minha formação profissional. O engajamento nos
movimentos sociais possibilitou-me experiências que foram determinantes na decisão de
participar do concurso na Universidade Estadual do Ceará para a área de Educação Popular,
instituição onde sou professora desde 1993. Por compreender que a produção e a difusão do
saber sistematizado não devem se restringir “aos muros” da universidade e que a atuação nos
movimentos sociais é condição imprescindível para a “retroalimentação” do “laboratório” em
sala de aula e para a relação teoria e prática, busquei integrar à docência as ações de extensão.
Nesta perspectiva, atuei na coordenação do Projeto Vivendo e Aprendendo - Um Movimento
de Alfabetização e Cidadania em Quixadá-Ceará, desenvolvido por meio de uma parceria entre
a UECE e o Centro de Educação Popular Antônio Conselheiro. Esta experiência suscitou a
13
intenção do aprofundamento teórico das questões que orientavam a prática educativa – o que
motivou o meu ingresso, em 1998, no Mestrado em Educação Brasileira da Universidade
Federal do Ceará (UFC), na linha de pesquisa Movimentos Sociais, Educação Popular e
Escola.
A pesquisa realizada no mestrado – Os significados da alfabetização de jovens e
adultos para os trabalhadores – teve como objeto de estudo o Projeto Vivendo e Aprendendo,
ou seja, a experiência de alfabetização de jovens e adultos desenvolvida em Quixadá – Ceará,
no período de 1995 a 1998. Pretendia compreender a perspectiva dos educandos sobre o
processo de alfabetizção, no contexto específico de Quixadá, município do semiárido cearense.
Os achados da pesquisa revelaram que a aprendizagem da leitura e da escrita é muito
importante na vida dos trabalhadores, especialmente, quando a ação alfabetizadora considera
os saberes da experiência e a subjetividade humana: afetividade, autoestima, o partilhar do
grupo e, também, se integra ao contexto mais amplo da vida dos educandos. A prática
pedagógica foi fundamentada nos príncipios da educação libertadora, comprometendo-se com
uma aprendizagem que possibilitasse o desenvolvimento cognitivo, afetivo, cultural, social e
político dos trabalhadores, na perspectiva da compreensão das contradições sociais. Os
resultados da investigação suscitaram a necessidade de apronfundamento teórico e prático na
área da educação popular para compreender as práticas referenciadas na educação como
prática da liberdade proposta pelo educador Paulo Freire; perspectiva que direcionou esta
pesquisa para a história e memória de práxis freireanas vicenciadas na decada de 1960 no
Ceará.
A formação acadêmica durante o Mestrado fortaleceu ainda mais o entendimento
da necessidade de militância na área de educação popular. Ao concluir o curso, retomei meu
envolvimento com as atividades de extensão na universidade mediante a participação nas
ações que se seguem.
1) Programa Alfabetização Solidária (ALFASOL), funcionava por meio de uma
organização não governamental (ONG), criada pela professora e antropóloga Ruth Cardoso,
esposa de Fernando Henrique Cardoso, na época, presidente da República. A ONG funcionava
em parceria com segmentos da sociedade civil, principalmente com empresários que
contribuíam financeiramente por via do apadrinhamento de alunos. O programa era executado
pelas universidades. A Universidade Estadual do Ceará (UECE), por intermédio da Pró-
Reitoria de Extensão, atuou em vários municípios cearenses. Neste, participei como
coordenadora pedagógica do programa, no município de Eusébio.
14
2) A criação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária –
PRONERA- como resultado das lutas dos movimentos sociais, representou uma conquista do
direito à educação para as populações do campo. Executado pelas universidades públicas em
parceria com os movimentos sociais do campo, tem como objetivo atender a demanda de
escolarização de jovens e adultos. A Universidade Estadual do Ceará (UECE) atuou em
parceria com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) no primeiro segmento do
Ensino Fundamental e na formação de educadores de nível médio. Por ser vice-diretora do
Centro de Educação da UECE, participei ativamente da elaboração dessa parceria. Mesmo
tendo clareza de que uma parceria entre MST e UECE seria permeada de contradições
ideológicas, políticas e administrativas, as quais, certamente, dificultariam uma ação político-
pedagógica engajada na dinâmica do MST, não hesitei em me envolver na equipe de
coordenação do Programa. A execução desta foi acompanhada cotidianamente das dificuldades
referentes às questões buracráticas e administrativas dos recursos financeiros, as quais
interferiam diretamente na ação pedagógica. Esta experiência possibilitou-me aprendizagens
significativas no campo da educação popular, as quais também contribuíram para a
constituição do objeto de estudo desta pesquisa.
3) Em virtude da experiência na área de alfabetização de jovens e adultos,
concomitante à atuação no PRONERA, assessorei um projeto de alfabetização de jovens e
adultos, denominado Movimento de Leitura e Escrita, em Tamboril-Ceará,
TAMBORILENDO, ação de alfabetização e pós-alfabetização financiada com recursos do
Fazendo Escola, programa criado no primeiro Governo do Presidente Luiz Inácio da Silva –
Lula. O compromisso foi com a formação inicial e continuada de 120 alfabetizadores e,
também, com a formação da equipe da Secretaria de Educação do Município para acompanhar
ali as ações de educação de jovens e adultos (EJA). Esta experiência ensejou-me
aprendizagens significativas quanto à relação teoria e prática no processo de alfabetização,
especialmente, pelo trabalho integrado com a equipe de educação do Município.
4) O Plano de Valorização e Formação do Pescador, projeto de Governo Federal
coordenado pela Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca (SEAP) e executado pela UECE
no litoral dos Estados da Bahia, Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Tocantins e Pará,
atuou na formação profissional e na alfabetização de trabalhadores da pesca de lagosta. Por lei,
eles são proibidos de pescar de dezembro a fevereiro de cada ano, período denomindo como do
“defeso”; durante este tempo recebiam do Governo Federal a ajuda de custo de um salário-
minímo. Em contrapartida, teriam que participar das ações do plano de formação. No Ceará,
funcionaram 110 (cento e dez) turmas de alfabetização, as quais foram distribuídas em 19
15
municípios. Participar desta experiência como coordenadora pedagógica foi muito relevante,
por vivenciar os princípios da educação libertadora, direcionando a visão aos contextos
concretos da sala de aula, com a possibilidade de participar da formação docente “do lado de
quem aprende” – o discente.
5) A militância no Fórum de Educação de Jovens e Adultos do Ceará (FEJA),
desde sua criação, em 2002, constituí rico instrumento de formação política e pedagógica. O
FEJA-CE é um movimento plural de reflexão e elaboração coletiva no campo da EJA, que luta
por políticas públicas comprometidas com a formação emancipadora e política de seus agentes
sociais: educandos, educadores e gestores. Sua dinâmica de atuação envolve a participação de
segmentos da sociedade civil e de instituições públicas. Um dos eixos de atuação do FEJA é a
formação política e pedagógica do educador. Em outubro de 2008, criou-se um grupo de
estudo em parceria com o Núcleo de Educação Popular do Curso de Pedagogia da UECE para
dar ensejo a formação teórico e prática aos profissionais atuantes na EJA. O grupo realizava
encontros mensais, de que participavam equipes de EJA de vários municípios do Ceará,
instituições públicas e universitários. As temáticas de estudo direcionavam-se a atender os
interesses e as necessidades de formação política e pedagógica dos participantes do grupo. A
compreensão das contribuições do pensamento freireana para a formação do educador de
jovens e adultos foi o foco dos estudos. Abrangendo, também, temáticas direcionadas às
políticas públicas, propostas curriculares, aos processos de ensino e aprendizagem, aos marcos
legais da EJA e às pesquisas em EJA. Esses temas envolviam a compreensão desafios no
enfrentamento de dificuldades políticas e pedagógicas que interferem cotidianamente na
qualidade da ação docente de EJA. Durante o período de 2008 a 2012, assumi a coordenação
deste grupo de estudo.
6) Como pesquisadora na área de EJA, consolido minha formação pela
participação na pesquisa sobre a memória da EJA no Ceará desenvolvida pelo Núcleo de
Referência da Educação de Jovens e Adultos História e Memória (NEJAHM)3.
Em todas as experiências vivenciadas, o pensamento político-pedagógico freireano
é expresso como a principal referência da formação. As aprendizagens constituídas na
trajetória de vida pessoal e profissional foram determinantes na opção por estudar no
3 O Núcleo de Referência em Educação de Jovens e Adultos História e Memória (NEJAHM)
caracteriza-se pela constituição de uma rede interinstitucional em EJA, coordenada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Objetiva desenvolver pesquisas e atividades de extensão, contribuindo com a formação dos profissionais que atuam na EJA.
16
doutorado a influência do pensamento político-pedagógico de Paulo Freire na práxis de
educadores populares cearenses.
Os princípios que nortearam a escolha do objeto de estudo derivaram, não
somente, das opções teórico-metodológicas, mas também da relação da história de vida como
educadora e pesquisadora com a realidade a ser investigada, o que certamente determinará o
compromisso com o fazer científico. Desse modo, tanto as opções teóricas, quanto os
caminhos a serem percorridos para a explicitação da realidade investigada, estão enraizados no
contexto político e ideológico do tempo histórico conhecido como a ditadura militar brasileira
na década de 1960.
É na mediação da apreensão da prática político-pedagógica com o compromisso
estabelecido com o fazer investigativo que proponho estudar as contribuições do pensamento
de Paulo Freire na práxis educativa de educadores populares cearenses. Considerando a
escassez de fontes sobre a história da educação popular no Ceará, entendo ser necessário, no
percurso investigativo, fazer um mapeamento das ações desenvolvidas pelos movimentos
populares na década 1960.
Assim, por meio da história oral, pretendo conhecer como se processou a leitura do
pensamento freireano na prática de educação popular de um período histórico e político
significativo aos movimentos populares – o da resistência ao regime de exceção instalado no
Brasil no período de 1964 a 1975, ao que de horror se instala como arbítrio, no cenário político
e educacional brasileiro. Embora muitos autores já tenham descrito a relação entre a época da
ditadura, década de 1960, e a força dos movimentos sociais, cujo enfrentamento fez a história,
é necessário analisar como eram compreendidas as lições freireanas, em contexto cearense,
buscando a perspectiva dos educadores que atuaram nessa década. Eles realizaram
apropriações pessoais e, também, constituíram um circuito de interações, apontando nele
parâmetros sociais que se iam instaurando como leituras do pensamento freireano. A forma
como são apreendidas a obra e a vida de Paulo Freire pelos educadores cearenses que tiveram
atuação significativa nesta década traz-nos, não somente, o modo como a informação sobre o
Pensador pernambucano era convertida em prática, mas também como a informação se
alongava em formação, quando o informado se vai tornando sujeito do processo de produção
do conhecimento, que se transforma, por isso, em formação (FREIRE, 2003).
Paulo Freire foi um educador nordestino que analisou a educação com suporte nos
condicionantes econômicos, políticos, históricos, sociais e culturais, sem deixar de conectar o
que propunha como saber situado no seio de uma pedagogia da esperança. Em suas reflexões,
17
faz defesa veemente da chegada do sujeito à participação social, de maneira a pôr em prática a
“[...] vocação histórica e ontológica do homem em ser mais.” (FREIRE, 1987, p. 35).
Freire explorou intensamente a relação entre teoria e prática, fazendo, assim, do
processo de formação um percurso dialético, onde o sujeito, inacabado, se faz em seus devires
e nos contextos concretos dos ambientes sociais. Sua vida e obra são dedicadas a pensar e a
vivenciar a educação dos oprimidos, tentando reverter uma história caracterizada pelo
silenciamento da perspectiva popular, seu saber e linguagem. A memória articula-se formal e
duradouramente na vida social, embora com extratos de um inconsciente pessoal e coletivo,
mediante a linguagem. Ambas – memória e linguagem – constituem um fundo inseparável,
espécie de reproposição da busca de sentido permanente (BOSI, 1994, p. 28). Buscando uma
radicalidade concreta e simbólica, em contextos de resistência aos modos de reprodução que a
ditadura resulta por acirrar e aviltar de modo superlativo, Freire deixou clara sua indignação
ante o contexto de injustiça social de seu tempo, chegando ao exílio por seu posicionamento
inequívoco de questionamento ao regime de exceção em vigor. A velocidade com que a
arbitrariedade do regime de exceção se implanta naquela década é associada ao processo
histórico de acumulação das classes dominantes; a ausência de participação política do povo
brasileiro e o colonialismo em suas dimensões política, econômica, social e cultural deixaram
suas teias no modo como o descaso político se instituiu junto ao elevado índice de
analfabetismo na sociedade e baixo nível de escolaridade dos trabalhadores, em particular.
O trabalho e a esperança de transformação da realidade social brasileira
impulsionaram Freire a elaborar uma proposta político-pedagógica calcada no instrumento
teórico-metodológico que nomeou “leitura crítica da realidade” e assunção do sujeito à sua
palavra – aos sentidos que dão à luta pela transformação das condições de opressão coletivas;
lutas que também eram pela liberdade de “ser mais” e de ultrapassar situações-limite – as quais
exigem transformações em direção às possibilidades do inédito viável (FREIRE, 2003). Aqui
me refiro ao ambiente cultural criado com o apoio em suas ideias que contribuíram para um
processo de alfabetização em que a leitura do mundo e a leitura da palavra pudessem ser
compreendidas como imbricadas e constituidoras da formação crítica das populações
oprimidas.
Os contextos onde a alfabetização se situava, contudo, fizeram maturar uma
compreensão de saber popular e de educação inscrita na cultura e no cotidiano das lutas
populares, capaz de ultrapassar determinantes sociais vincados, difíceis de transpor. Ao
alimentar projetos educativos e culturais, norteando a formação de educadores e jovens que
vivenciavam ações de cultura e de educação popular nos anos de 1960, pergunto: como o
18
pensamento freireano fertilizava essa práxis? E, ainda: como percorreu essa longa travessia do
regime de exceção que se instalava no quadro político de nosso País? Na verdade, pretendo ver
como apreenderam e reinventaram essa travessia, os educadores cearenses atuantes
socialmente naquela década, no Ceará.
É inegável que a reflexão-ação sobre a alfabetização se inscreve no contexto do
pensamento de Freire como um todo e, nele, é situado como que por meio de rizomas, que vão
constituindo um campo de tensionamentos que devo examinar, focalizando a perspectiva de
sujeitos que fizeram a história desse tempo, no Ceará. Devo ver, nesse campo de reflexão-ação
educacional, como a problemática do analfabetismo se alarga na direção de pensar educação
como ação cultural de libertação e participação nas transformações políticas e sociais que
envolvem os povos oprimidos. O próprio Freire nos remete a sua recusa à inexorabilidade do
futuro e a transitoriedade da experiência de opressão, que deve ser mudada. Ao afirmar que é
na história que nos fazemos junto aos outros e que tomamos parte do tempo de viver e de criar
condições de transformação pessoal e coletivas, o educador “[...] marca o tempo histórico
como tempo de possibilidades e não de determinismo, asseverando-nos que para isso é preciso
a problematização do futuro e a recusa a sua inexorabilidade.” (FREIRE, 1983, p. 55).
Assim é que a compreensão dos pressupostos do seu pensamento ia se formando
ante os desafios concretos, em que a permuta com o povo, como Freire informa, fez com que
sempre rejeitasse “fórmulas doadas”, daí a necessidade de experimentar processos e métodos
onde a educação se faz como caminho de luta e transformação social, sempre com as
populações, em uma reversão copérnica do modelo de trabalho tradicionalmente feito junto às
classes populares.
Na obra de Freire, a centralidade que confere ao sujeito da educação, permite
entender por que, mesmo não sendo pedagogo de formação, fez opção pela pedagogia,
apropriando-se desta perspectiva como instrumento de luta pela libertação dos oprimidos.
A década de 1960 é um período que instaurou e matizou diversos caminhos na
história da educação brasileira e, em especial, na educação que se confrontava com o
pensamento dominante - daí o acréscimo popular a essa matriz de resistência. O saber que se
gestava nos contextos dos trabalhos que se inspiravam em Paulo Freire, articulava uma cultura
da educação, como nomeia Carlos Rodrigues Brandão. É desse modo, como uma cultura da
educação, que este estudo está centrado na atuação política e pedagógica dos educadores
cearenses que, nesse sentido, também puderam pensar e dar ensejo a práxis considerada
significativa pela forma como fazia germinar e eclodir movimentos que alimentavam uma
cultura do popular, será com suporte nas contribuições do pensamento de Freire que se irão
19
desconstituir as formas como até então eram trabalhadas as ideias dos popular e se irá propor
com esse termo, que traz ambiguidades desveladas na pesquisa, novas formas de se lidar com a
educação quando ela se acompanha do termo popular.
Vale lembrar que o pensamento freireano foi inspiração para o Movimento de
Cultura Popular (MCP) em Recife-PE; a Campanha de Educação Popular em João Pessoa-PB
(CEPLAP) e a Campanha “De pé no chão também se aprende a ler”, em Angicos-RN –
movimentos que fundamentavam sua práxis no sistema de alfabetização Paulo Freire e
produziam um conhecimento situado que constituíram uma cultura da educação. No Ceará,
também, ocorreram movimentos de cultura popular e em vários contextos educadores
cearenses abraçaram a perspectiva freireana como norteadora de suas ações. No início dos
anos de 1960, Paulo Freire veio a Fortaleza para ministrar um curso de formação de
educadores populares para que esses assumissem o processo de alfabetização de adultos no
Ceará (informação verbal)4.
Esta pesquisa, portanto, teve como objetivo geral compreender as contribuições
político-pedagógicas do pensamento freireano na práxis dos educadores populares cearenses
na década de 1960, buscando a perspectiva destes agentes sociais a fim de comprovar qual a
contribuição dos educadores para a educação popular cearense. Constituem objetivos
específicos: a) mapear as ações de educação popular no Ceará nos anos 1960; b) suscitar
avanços e dificuldades vivenciadas pelos educadores populares na efetivação de uma práxis
referenciada nos pressupostos político-pedagógicos de Paulo Freire; e, c) identificar os fatores
que influenciaram a opção dos educadores por uma práxis fundamentada no pensamento
freireano.
São comuns, na atualidade, discursos e análises que se referem de forma
equivocada, e até mesmo contraditória, aos construtos da educação libertadora, chamando
atenção para a necessidade de reinvenção do pensamento freireano no contexto das mudanças
ocorridas no século XXI. Tais discursos e análises me preocupam, sobretudo quanto à
dificuldade de compreensão dos princípios políticos, filosóficos e pedagógicos que norteiam
sua perspectiva educacional, nomeada educação libertadora. Neste sentido, questiono: como
uma pessoa pode reinventar um conhecimento do qual não se apropriou intelectualmente e
muito menos o vivenciou/praticou? Em geral, esses discursos provem de pessoas que não
dominam e/ou que não se apropriaram do pensamento freireano, apenas memorizaram falas do
4 Conversa informal com o prof. Lauro Henrique Santos de Oliveira Lima, filho de Lauro Oliveira de
Lima.
20
autor e as repetem inconsciente e/ou ideologicamente conscientes em situação e contextos que
divergem dos princípios defendidos por Paulo Freire.
Essas inquietações adquirem lugar e tempo em uma conformação histórico-cultural
cujas experiências de formação de educadores e práticas sociais são por demais ricas e
costumam se nomearem como referenciadas em Freire. Cresci como educadora ouvindo e
aprendendo a compreender Freire. Desvendar-me é desvendar o modo como foi se instaurando
essa consciência de si que os educadores elaboraram e que, ao remeterem a Paulo Freire suas
matrizes de pensamento, tanto se inscrevem em uma tradição quanto a reinventam.
Vem daí a necessidade de aprofundar estudos sobre o pensamento político-
pedagógico de Freire, na perspectiva de compreender suas contribuições para a práxis de
educadores populares no Ceará que atuaram, desenvolvendo, por sua vez, a vertente educação
como prática de liberdade em educação popular. A pergunta de pesquisa que faço, portanto, é:
que contribuições do pensamento político-pedagógico de Paulo Freire comparecem na práxis
de educadores populares cearenses na década de 1960?
A complexidade do tema abordado leva-me a esboçar questões norteadoras que me
ajudarão a apresentar o objeto de estudo em suas múltiplas faces, e evidenciam o modo como
educadores vivenciavam o dialogismo com o pensamento político-pedagógico freireano; ou
seja, como o pensamento de Freire comparece em sua formação e práxis. É nesse campo de
aprendizados envolvendo a formação e práxis que se deve atentar para perceber como os
sujeitos da pesquisa se apropriaram dos construtos teóricos e metodológicos freireanos nas
ações de educação popular que vivenciaram. Por compreender a necessidade de ver a
conjunção intrínseca das leituras da prática destes educadores e suas produções de saber sobre
o que foi vivido é que, certamente, atentarei também para a maneira como conjugam suas
trajetórias à reinvenção e abertura de caminhos da educação popular nas suas vidas.
Ao adentrar o núcleo deste trabalho, que envolve as matrizes freireanas e o seu
comparecimento no diálogo entre sujeitos históricos da educação popular no Ceará e o
pensamento de Paulo Freire, deve admitir que tem compreensão de memória embasando meu
estudo – a ideia de que há uma leitura feita pelo sujeito do vivido e isso é, em última instância,
uma das interpretações possíveis desses quadros sociais. Também hei de partir da ideia de que
terei, ao trazer a formação e práxis de educadores atuantes na década de 1960, a configuração
de uma comunidade imaginada – conceito que advém do pensamento de Benedict Anderson
(2008) ao estudar elaborações coletivas com origem na ideia de nação, nas sociedades
contemporâneas.
21
É importante ressaltar que os agentes chave da pesquisa, sujeitos em atuação
significativa com educação na década 1960, mobilizando ações, afirmando leituras
socioculturais do seu tempo e pertencendo a vários grupos e círculos sociais e educacionais,
demonstraram a conflitualidade de suas ações e escolhas, também permitindo um
estranhamento crítico fundamental para a pesquisa.
Para compor a tessitura deste estudo, portanto, delineio um campo discursivo capaz
de ofertar as condições de captura das reflexões dos sujeitos da pesquisa. Desse modo, busco
uma rede ou teia capaz de desenvolver um objeto de estudo, rede ou teia que teço com suporte
em pontos delineadores do corpus da pesquisa. Estas questões não são respondidas
isoladamente, porquanto compõem um todo e configuram um campo discursivo onde inscrevo
o terreno analítico da investigação. Relevantes são, nessa perspectiva, as seguintes questões
delineadoras:
a) quais as ações de educação popular desenvolvidas no Ceará, na década que se
pode conhecer com base nos educadores cearenses que atuantes na década de
1960?
b) Quais as influências do pensamento freireano na práxis de educadores populares
cearenses, segundo eles próprios?
c) Quais os significados da opção pelos pressupostos teórico-metodológicos
freireanos para a formação e a práxis dos educadores populares cearenses?
d) Como a história de vida de educadores populares se entrelaça com a opção pelo
pensamento freireano para referenciar suas decisões profissionais?
e) Que dificuldades foram vivenciadas pelos educadores populares na práxis
educativa referenciada pelos pressupostos filosóficos e pedagógicos da teoria de
Paulo Freire?
O percurso investigativo está fundamentado nos pressupostos teórico -
metodológicos da pesquisa qualitativa. A compreensão é de que essa abordagem se mostra
como apropriada ao meu objeto. O estudo situa-se no campo da Educação Popular e da
História e Memória, com raízes nas Ciências Humanas e Sociais. O método História Oral,
norteou a entrevista narrativa realizada com os seis educadores populares cearenses que
participaram da pesquisa.
As formulações teóricas e metodológicas produzidas durante o processo
investigativo estão sistematizadas da seguinte forma:
Na Introdução, primeiro capítulo, narro a origem pessoal de ser social situada
historicamente, com procedência em aspectos da trajetória particular, profissional e acadêmica,
22
refletindo sobre o entrelaçamento das experiências vividas por mim com o objeto de estudo.
Expresso a pesquisa com início na problemática e objetivos da investigação, como também das
opções epistemológicas que fundamentadoras do estudo.
No segundo capítulo, “O caminho se faz ao caminhar: veredas percorridas na
investigação” descrevo a investigação situando a abordagem qualitativa e o método da História
Oral. Retomo o problema e os objetivos de estudo e elaboro uma síntese sobre quem são os
sujeitos da pesquisa, situando-os perante sua práxis.
No terceiro capítulo, denominado “O pensamento político-pedagógico freireano:
historicidade e emancipação humana na reflexão da educação como prática da liberdade”, situo
o âmbito histórico e político em que se originaram as ideias freireanas e discuto os
pressupostos da educação como prática da liberdade.
No quarto capítulo, intitulado “Educação popular: historicidade e concepções”,
iniciamos situo a educação popular na história da educação brasileira, tecendo suas interações
com os movimentos de cultura popular. Diálogo com os teóricos que debatem a educação
popular na perspectiva freireana e revisito as concepções de educação popular que norteadoras
dos programas governamentais e as práticas dos movimentos de cultura popular do Nordeste.
No quinto, cujo título é ”Práxis freireana: narrativas de educadores populares
cearenses”, os sujeitos da investigação narram a práxis de educação popular eles vivenciada na
década de 1960, nas quais demonstram as apropriações do pensamento político-pedagógico
freireano.
Na conclusão, desenvolvo uma reflexão sobre os achados da pesquisa, suas
contribuições para a história da educação popular cearense, situando as aprendizagens no
percurso de investigação-formação, demonstrando a apropriação dessas aprendizagens no
redimensionamento da docência e da militância nos movimentos sociais cearenses.
A relevância deste estudo justifica-se pela importância que o pensamento freireano
representa, como teoria e prática educativa, que busca a perspectiva popular na elaboração
social de uma educação como prática da liberdade, e também pelo interesse de identificar o
modo como a educação popular no Ceará, em momentos-chave como os dos anos de 1960, se
embasou em matrizes refletidas por Paulo Freire. Por outro lado, é de vital importância
compreender como, historicamente, educadores cearenses de significativa atuação
estabeleceram práticas e desenvolveram reflexões segundo “liam” o pensamento freireano e as
práticas sociais gestadas sob essa inspiração.
A pesquisa justifica-se, ainda, pela relevância teórica dos ensinamentos de Paulo
Freire para o estabelecimento de uma práxis fundamentada nos princípios da educação como
23
prática de liberdade que propõe a intervenção do homem no mundo, mediada pelo diálogo e a
dimensão intersubjetiva de formulação do conhecimento.
24
2 O CAMINHO SE FAZ AO CAMINHAR: VEREDAS PERCORRIDAS NA
INVESTIGAÇÃO
Ninguém caminha sem aprender a caminhar; sem aprender a fazer o caminho caminhando; sem aprender a refazer, a
retocar o sonho por causa do qual a gente se pós a caminhar. (PAULO FREIRE)
À demanda de coerência, penso que a abordagem qualitativa situa os sujeitos da
pesquisa como agentes que falam desde o lugar em que se situam na história e na sociedade, e
o pesquisador, como sujeito situado histórica e culturalmente – e também afetivamente – em
relação com o objeto de estudo, daí derivando um texto construtivo-interpretativo. Esta
pesquisa foi desenvolvida, portanto, numa abordagem qualitativa que considera a subjetividade
dos sujeitos e pressupõe a não neutralidade do pesquisador. Privilegia experiências,
sentimentos, atitudes e valores éticos e também morais dos agentes sociais, os sujeitos
envolvidos com o fenômeno investigativo. Comporta, pois, a descritividade dos textos dos
sujeitos, corporificada em entrevistas temáticas, procedimento de pesquisa da história oral –
proposta metodológica desta investigação.
Nessa perspectiva, buscamos o trânsito de um paradigma cientificista calçado em
uma epistemologia da resposta, para um paradigma construtivista, que evidencia o tratamento
da alteridade em pesquisa. Na visão de Rey (2005), a abordagem qualitativa, por sua forma de
produzir conhecimento centrada no sujeito que fala, em sua produção significante, portanto,
permite se tenha acesso a novas “zonas de sentido” sobre o assunto estudado.
Bogdan e Biklen (1994), também, contribuem para se ampliar a compreensão do
que é a abordagem qualitativa de pesquisa, ao acentuarem que esta possibilita
[...] melhor compreender o comportamento e experiências humanos. [...] compreender o processo mediante o qual as pessoas constroem significados e descrever em que consistem estes mesmos significados. Recorrem à observação empírica por considerarem que é em função de instâncias concretas do comportamento humano que se pode refletir com maior clareza e profundidade sobre a condição humana. (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 70).
Defendo a posição de que a abordagem qualitativa se exprime como apropriada ao
objeto deste estudo, o qual se direciona à compreensão de como o pensamento político-
pedagógico freireano exerceu influência na práxis de educadores populares, inseridos em ações
de educação popular no Ceará, em particular, na década de 1960, considerando-se a
perspectiva destes agentes sociais.
25
O estudo, portanto, situa-se no campo da Educação Popular e da História e
Memória, com raízes profundas nas Ciências Humanas e Sociais. A investigação, no primeiro
momento, de cunho mais teórico, sem perder o vínculo com o real, buscou aprofundar a
compreensão dos pressupostos teórico-metodológicos do pensamento freireano. Para tanto, a
principal referência foram os escritos do próprio Pensador, dentre os quais: Educação como
pratica da liberdade (1980), Pedagogia do oprimido (l987) e Pedagogia de esperança (1994),
dentre outras.
A História Oral foi o método que orientou os procedimentos metodológicos do
trabalho empírico, para o que me apoio em Alberti (1990) e Freitas (2002), principais autoras
que referenciaram nossa opção teórico metodológica pela História Oral. Alberti (1990), na
introdução do Manual de História Oral, discorre acerca das dificuldades dos pesquisadores
que trabalham com história oral em definir “O que é história oral”. Segundo a autora:
Seus limites esbarram com categorias de diversas disciplinas das ciências humanas, como biografia, tradição oral, memória, linguagem falada, métodos qualitativos etc.; e sua definição não se estabelece facilmente: ora se constitui método de investigação cientifica, ora fonte de pesquisa, ora ainda técnica de produção e tratamento de depoimentos gravados [...] (ALBERTI, 1990, p. 10).
Continuando a discussão sobre a definição de História Oral, a autora em foco se
questiona sobre o que vem a ser, afinal, esse método-fonte tão impreciso. Para explicar a
questão, ela assim se posiciona:
Se podemos ariscar uma rápida definição, diríamos que a história oral é um método de pesquisa (histórica, antropológica, sociológica etc.) que privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma de se aproximar do objeto de estudo. Com consequência, o método da história oral produz fontes de consulta (as entrevistas) para outros estudos, podendo ser reunidas em um acervo aberto a pesquisadores. Trata-se de estudar acontecimentos históricos, instituições, grupos sociais, categorias profissionais, movimentos etc., a luz de depoimentos de pessoas que deles participaram ou testemunharam. (ALBERTI, 1990, p. 11-12).
Como ensina Freitas (2002, p. 19), História Oral “[...] é um método de pesquisa
que utiliza a técnica da entrevista e outros procedimentos articulados entre si, no registro de
narrativas da experiência humana.” Em outro momento, a autora enfatiza que a “[...]
preocupação da História Oral é garantir a visão de mundo, as ideias, os sonhos e as crenças dos
depoentes.” (FREITAS, 2002, p. 93).
26
Apesar das dificuldades de definição do conceito de História Oral, da amplitude e
abrangência do método, as elaborações teórico-metodológicas de Alberti (1990) e Freitas
(2002) possibilitaram-me a compreensão de que a história oral é o método apropriado ao
objeto deste ensaio, especialmente porque, memória, narrativa e oralidade estão sempre no
pensamento freireano.
Para exemplificar o uso da memória nos escritos de Freire (2003), recorro ao livro
Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis. Adriano S. Nogueira, ao
prefaciar esta obra, rememora a seguinte fala de Freire: “Voltar-me sobre o passado [...] é um
ato de curiosidade necessário. Ao fazê-lo, tomo distância do que houve, objetivo, procurando a
razão de ser dos fatos em que me envolvi e suas relações com a realidade social de que
participei.” (FREIRE, 2003, p. 13).
Por ser uma pesquisa em que o objeto de estudo – a práxis de educadores populares
na década de 1960 – insere-se num tempo histórico de 50 anos, a priori, não seria
recomendado estabelecer critérios de seleção para os possíveis sujeitos da investigação. Entre
os tantos atuantes na educação popular, à época, escolhi aqueles que, de seu ponto de vista,
tivessem práticas sociais educadoras referenciadas no pensamento político pedagógico de
Paulo Freire. À proporção em que os educadores da época eram localizados, assumiam-se
como freireanos e se disponibilizavam a participar da investigação, eram convidados a
constituir o grupo de sujeitos da pesquisa e recebiam o projeto da investigação
[...] temas contemporâneos, ocorridos em um passado não muito remoto, isto é, que a memória dos seres humanos alcance, para que se possa entrevistar pessoas que deles participaram, seja como atores, seja como testemunhas. É claro que com o passar do tempo, as entrevistas assim produzidas poderão servir de fontes de consulta para pesquisas de temas não mais contemporâneos. Mas o emprego do método, a realização de entrevistas, pressupõe o estudo de acontecimentos e/ou conjunturas ocorridas num espaço de aproximadamente 50 anos. (ALBERTI, 1990, p. 4).
Quem foram, pois, os sujeitos que participaram desta investigação? Para responder
a esta pergunta, convido os próprios sujeitos para que suas vozes nos permitam conhecer quem
são. Neste sentido, sugiro aos leitores que se imaginem ouvindo um jogral em que seus
enunciadores são os sujeitos desta investigação.
Inicio, então, convidando a “entrar em cena” uma educadora que foi a primeira
coordenadora do Movimento de Educação de Base (MEB) no Estado do Ceará.
Nasci em Guaiuba-CE, tenho 77 anos. Sempre fui assim, apaixonada pela educação. [...] Fiz o normal e pedagogia. Depois de concluir o curso de
27
pedagogia, imediatamente no ano seguinte fui integrante da 1ª turma de Orientação Educacional em Fortaleza. A partir daí, sempre trabalhando muito com educação. Na época que eu trabalhava no Justiniano de Serpa, a gente fazia um trabalho interessante e então, recebi o convite de Dom Delgado, que era o arcebispo de Fortaleza, para trabalhar no Movimento de Educação de Base – MEB [...] entrei de corpo e alma nesse movimento5. Durante a faculdade tive uma militância muito grande na Ação Católica através da Juventude Universitária - JUC. A gente tinha uma ação grande no Nordeste, viajava muito para fazer os encontros. Na Ação Católica abri os olhos para um monte de coisas: a questão política, a questão social. (RITA ACIOLLY TESSER, pedagoga, mestra em educação, funcionária pública estadual, aposentada, entrevista outubro de 2012).
Vejamos que, ao se identificar, mesmo antes de falar sobre sua trajetória como
educadora, ela enfatiza ser “apaixonada pela educação” e continua narrando as ações que
desenvolveu profissionalmente. Registra, inclusive, a militância na Juventude Universitária
Católica (JUC), experiência que, segundo a educadora, contribuiu significativamente no
trabalho que realizou no MEB.
Agora, convidamos a se apresentar um educador, que foi coordenador do MEB,
em Sobral, Ceará.
Eu nasci em Guaraciaba do Norte na Serra da Ibiapaba, numa época em que estudar era um privilégio muito maior do que hoje. Na minha cidade a gente só estudava até a quarta série. Terminada a quarta série estava diplomado. Não tinha mais o que estudar. E aquilo era coisa para poucas pessoas, quando os pais tinham muito interesse. Então, meu pai era muito interessado que eu estudasse e participasse da vida da comunidade. Muito cedo aprendi a ajudar a missa que era em latim. Quando eu terminei a quarta série o vigário indicou para eu ir para o seminário, estudar para ser padre. [...] Foi a grande alternativa que tive.6 (LEUNAN SOARES, Prof. da UVA, aposentado, entrevista outubro de 2012).
Continuando, participa do jogral, outra educadora que veio da zona rural do
Município de Morada Nova, Ceará, para estudar em Fortaleza. Igualmente, a educadora do
5 As narrativas da educadora demonstram uma trajetória de vida dedicada à educação popular, desde
os anos 50. Participou, em 2003, da equipe de coordenação do Programa Alfabetizar-se, em que, também assumiu voluntariamente uma turma de alfabetização localizada na comunidade de Flexeiras, região de praia no Município de Trairi Ceará. O Alfabetizar-se pertencia ao Programa Brasil Alfabetizado e foi executado pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
6 Este fragmento da fala do educador representa somente o inicio de uma historia de vida dedicada à educação. Dentre as várias experiências na educação cearense: foi secretário de Educação em Guaraciaba do Norte. Em sua gestão, implantou uma experiência pioneira no Ceará, que foi a adequação do calendário escolar nas escolas da zona rural, aos ciclos da natureza, ou seja, ao período de inverno, quando o camponês e sua família se dedicam ao trabalho na agricultura. O educador, também, foi pró-reitor de Extensão da Universidade Vale do Acaraú (UVA).
28
MEB, ao se apresentar, também se refere à sua ”paixão” pela educação, relata a trajetória de
educadora, enfatizando uma história de compromisso com a educação pública.
Eu me defino fundamentalmente como uma educadora. Minha história de vida é de total paixão pela educação, especialmente pela educação pública, pois realizei toda minha formação na escola pública, desde a escolinha simples no meio rural, passando pelo ensino fundamental, ensino médio, ensino superior, mestrado e doutorado todo feito na instituição pública, quer dizer, eu sou uma filha da educação pública e também tenho cinquenta anos dedicados à Educação Pública. A minha vida inteira, digamos assim, foi dedicada a essa paixão – a educação e especialmente a educação popular7. (MARIA NOBRE DAMASCENO, profª da UFC, aposentada, pesquisadora em educação popular, entrevista outubro de 2012).
Agora, convidamos para participar do jogral, uma educadora religiosa que veio do
Município de Crato, Ceará, para continuar seu trabalho de doação às populações carentes.
Sou Filha do Coração de Maria, nasci no Crato, Ceará. Cheguei em Fortaleza no ano de 1959, vim na vida religiosa. Foi na época da reforma no bairro Pirambu. Com quatro meses que estava em Fortaleza fui morar na congregação no Pirambu8. (IRMÃ FRANCISCA CÂNDIDO, Congregação Coração de Maria, professora da rede pública estadual aposentada).
E por último, convidamos a participar deste jogral, mais uma das educadoras que
participaram da pesquisa.
Nasci em Pedra Branca Ceará. Eu diria que minha descoberta pela educação popular, começou aos 7 (sete) anos de idade. Quando eu me alfabetizei, descobri que Terta (pessoa que trabalhava na minha casa) era analfabeta. Pensei: vou alfabetizá-la! Então, à noite, eu me sentava com ela e ia pelejar para passar para ela o que eu tinha aprendido na escola. Era um esforço muito grande, tanto meu, quanto dela. Por que, eu não tinha metodologia, uma criança de 7 (sete) anos de idade. É claro que não consegui alfabetizá-la. Era impossível. Mas, ela me deu o diploma de professora [...] porque ela acreditou que eu poderia alfabetizá-la. Essa experiência com Terta me direcionou para a educação.9 (RUTH
7 Educadora Popular com uma trajetória de vida comprometida com a educação publica no Ceará. No
ensino superior dedicou-se à formação de professores de graduação e pós-graduação. Pesquisadora e intelectual de projeção nacional com vasta produção acadêmica na área de educação popular e movimentos sociais.
8 Em sua trajetória de vida integrou o trabalho religioso à educação, sendo considerada como exímia alfabetizadora. A experiência de alfabetização de adultos no bairro Pirambu possibilitou a sua contratação como professora da rede estadual de ensino, em Fortaleza Ceará.
9 A menina que tentou alfabetizar sua “ama” tornou-se professora – locutora no MEB, sua primeira experiência profissional. Tem uma historia de vida comprometida com a educação das camadas populares. Quando estudante de Pedagogia na UFC, foi militante estudantil e assumiu a diretoria do Diretório Central dos Estudantes – DCE. Foi presa política e exilada do Brasil no período da ditadura militar. A abertura politica, permitiu seu retorno a Fortaleza, onde retomou suas atividades com
29
CAVALCANTE, psicopedagoga, coordenadora do Centro de Desenvolvimento humano e profª universitária, entrevista outubro, 2012).
É importante observar que um dos aspectos comuns aos sujeitos é o fato de que
todos são de origem de municípios do interior cearense e que iniciam suas apresentações
situando geograficamente suas origens. Tal fato é significativo e permite o entendimento de
que valorizam este elemento de suas identidades10.
As narrativas do educador e das educadoras registram, de forma singular,
dimensões objetivas e subjetivas de suas histórias de vida, que envolvem desde as origens de
nascimento a aspectos ligados à formação de suas identidades de educadores populares.
As apresentações feitas pelos próprios sujeitos demonstram que cada um tem
origem em uma região diferente, abrangendo, portanto, as cinco regiões do Estado do Ceará.
Os cinco sujeitos que participaram do processo investigativo, no período da pesquisa, se
encontravam na faixa etária de 70 a 80 anos. Estes, na década de 1960, assumiram ações de
Educação Popular no Ceará, e, mais especificamente, na alfabetização de adultos. Destes, três
atuaram no Movimento de Educação de Base (MEB), uma na Campanha de Educação de
Adolescentes e Adultos (CEAA/MEC) e a última na experiência de alfabetização de adultos
desenvolvida pela Congregação Coração de Maria, instituição filiada à Igreja Católica 11. Os
relatos destes agentes evidenciaram que suas práticas educativas foram referenciadas no
pensamento político-pedagógico freireano e, mais especificamente, no sistema de alfabetização
e conscientização.
Como estratégia de investigação da práxis dos educadores populares cearenses,
trabalhamos com entrevistas temáticas. Para tanto, nos apoiamos em Alberti (1990, p. 19)
quando lembra que “as entrevistas temáticas são aquelas que versam especificamente sobre a
participação do entrevistado no tema escolhido como objeto principal”. Para a autora,
[...] objeto de uma entrevista temática [...], não constitui a trajetória de vida do entrevistado, e sim uma parte de sua vida: aquela estritamente vinculada ao tema estudado. Seu depoimento é solicitado na medida em que possa contribuir para o estudo de determinado tema, e assim as perguntas que lhe serão dirigidas terão o objetivo de esclarecer e conhecer a atuação, as ideias e
educação popular, passando a atuar em várias experiências de alfabetização de jovens e adultos desde aquela época à atualidade. Também atua no Ensino Superior, desenvolvendo uma proposta de educação biocêntrica.
10 Nos demais capítulos desta tese os sujeitos da investigação, são identificados pelas letras iniciais do no me e sobrenome. 11 Estas ações estão contextualizadas no 3º capítulo deste trabalho, que traz uma arqueologia das ações
de educação popular no Ceará.
30
a experiência do entrevistado enquanto marcadas por seu envolvimento com o tema. (ALBERTI, 1990, p. 61).
O trabalho das entrevistas foi iniciado pela apresentação do tema da pesquisa e
explicitação dos objetivos, ensejando aos sujeitos a possibilidade de exporem suas impressões
sobre o projeto que haviam antecipadamente recebido. As entrevistas realizadas em outubro de
2012, tiveram, em média, de três a quatro horas de duração, e foram norteadas pelas temáticas
relacionadas na sequência.
a) Acesso ao conhecimento sobre o pensamento freireano.
b) Motivações para uma práxis referenciada em Paulo Freire.
c) Pressupostos político-pedagógicos norteadores da práxis vivida que se
coadunam com as referências freireana.
d) Relação da história de vida com a opção pela educação, dentro das perspectivas
educacionais eleitas por Freire.
e) Como as aprendizagens se efetivaram com origem em experiências.
f) Limites e dificuldades enfrentadas em virtude de opção pela educação popular.
g) Possibilidades de ações referenciadas no pensamento freireano, no contexto da
sociedade atual.
Durante as entrevistas, realizadas em outubro e novembro de 2012, estas temáticas
foram se entrelaçando como uma espécie de espiral e transformaram-se em longas narrativas,
trabalhadas no quinto capítulo da tese.
Os encontros com os educadores foram acompanhados por emoções inenarráveis.
Suas expressões fisionômicas e falas anunciavam prazer ao revisitarem o “livro de suas vidas”,
como diziam, para rememorar práticas educativas desenvolvidas no período em que atuaram
nos movimentos de educação popular no Ceará. Os sorrisos, as lágrimas de emoções, as
expressões e gestos, os sentimentos e os textos inter (ditos) marcaram a minha relação com os
sujeitos da pesquisa, os quais abriram as portas de seus lares com afabilidade e carinho,
possibilitando, assim, que os momentos de entrevistas consistissem em diálogo afetuoso entre
entrevistador e entrevistado, sobre as experiências vividas em educação popular.
Alberti (1990), ao discutir a relação entre entrevistador e entrevistado no processo
de pesquisa, ensina que esta relação pode envolver sensibilidade, sem, no entanto, esquecer o
rigor necessário à investigação científica. Vejamos como a autora se posiciona:
[...] a entrevista ganha maior dimensão quando resulta da cumplicidade entre entrevistador e entrevistado, cabendo ao pesquisador construir ao mesmo tempo com seu entrevistado, uma relação de sensibilidade e de rigor; de
31
adesão no processo de compreensão e de crítica atenta no processo de indagar; de reconstituição e de questionamento. É esta cumplicidade controlada, típica da sociologia qualitativa e dos métodos de história de vida, que garante a dimensão e a consistência do que é revelado. (ALBERTI, 1990, p. IX).
Freitas (2002), também, suscita a possibilidade de se estabelecer uma relação de
empatia e cumplicidade entre entrevistador e entrevistado. Neste sentido, lembra:
Geralmente, conseguimos atingir uma certa empatia e estabelecer alguma cumplicidade com os entrevistados na tarefa proposta. Enfim, a nossa intuição e sensibilidade, aliadas à experiência de escuta, ainda constituem os melhores instrumentos de que dispomos para a nossa finalidade de registrar narrativas orais, que tornam-se evidência e dão sustentação à memória histórica. (FREITAS, 2002, p. 94).
Em consonância com a orientação metodológica da História Oral, as entrevistas,
depois de transcritas na íntegra, devem ser enviadas ao participante da pesquisa para as devidas
correções. Como raciocina Freitas (2002), a entrevista com objetivos acadêmicos deve
necessariamente passar pelas etapas de transcrição, na íntegra, leitura e conferência do material
e, após digitação, o texto deve ser enviado ao depoente para correção de nomes próprios,
termos técnicos e, quando necessário, complementação de frases.
Fundamentando-me na orientação da autora em foco, a transcrição da entrevista foi
enviada a cada entrevistado com uma orientação (ANEXO B) de como deveriam proceder ao
realizarem a correção do texto. Lembro que a correção deveria garantir o máximo possível a
originalidade e a espontaneidade da entrevista. Todos os sujeitos aceitaram a solicitação de
revisitarem o texto de suas entrevistas e o fizeram atendendo à orientação metodológica do
método da História Oral. Registro a disponibilidade e o compromisso com que os sujeitos
assumiram esta atividade.
De posse da transcrição revista pelos sujeitos, comecei a análise do material. Todas
as entrevistas foram relidas com atenção. Nesta ação notei a singularidade com que cada
sujeito narrava sua práxis. Chamou-me a atenção a capacidade de uso da memória quando os
entrevistados se lembravam com detalhes as experiências por eles vividas.
Em seguida, mesmo que as narrativas sejam vistas como um todo, em sua
organicidade, procedi ao agrupamento, por temática geradora, do que se destacava, a fim de
enfatizar o que disseram esses agentes sociais.
No decurso da análise, procurei me aproximar das significações dadas pelos
sujeitos às temáticas norteadoras, objetivando, pois, potencializar o caráter construtivo-
32
interpretativo da pesquisa que, desse modo, dá ênfase às compreensões dos sujeitos estudados,
expressas oralmente, permitindo o desvelamento dos pontos oriundos de suas vozes.
Cada temática geradora foi sendo explorada com suporte em diálogo das falas dos
sujeitos com os teóricos que fundamentaram a investigação. Esta tessitura dialógica compõe o
quinto capítulo da tese, intitulado "Práxis freireana: narrativas de educadores populares
cearenses".
33
3 O POLÍTICO-PEDAGÓGICO NO PENSAMENTO FREIREANO: HISTORICIDADE E
EMANCIPAÇÃO HUMANA NA REFLEXÃO DA EDUCAÇÃO COMO PRÁTICA DA
LIBERDADE
A palavra de Freire é como uma fonte jorrando na praça da cidade: é
criação continua. E desse fluxo surgem, por vezes, fórmulas luminosa e evocadoras, como a condensar uma reflexão ou então a exprimir sua intuição súbita, fazendo sentir algo e pensar mais. Ora são flores que
desabrocham lentamente, ora são botões que espocam de modo repentino. (CLODOVIS BOFF).
O objeto de estudo desta pesquisa se insere no campo da História e Memória na
Educação Brasileira, focalizando o pensamento freireano e as práxis decorrentes desse legado,
chamadas pelas vozes de educadores cearenses. Sendo assim, neste capítulo, abordo o contexto
político e histórico da sociedade brasileira em que surge o pensamento político-pedagógico de
Paulo Freire, na perspectiva de compreendermos os pressupostos norteadores da educação
como prática da liberdade defendida por ele. Para tanto, é importante compreender algumas
das temáticas de significação política e educacional na formação teórica e na prática social do
educador, como: participação, diálogo, cultura popular, libertação, transformação social e
conscientização- temáticas centrais que sustentam o pensamento político-pedagógico sob
exame em sua vertente inicial, situada precipuamente na década de 60 do século XX.
No livro Educação como Prática de Liberdade, Freire (1980), ao analisar a
realidade brasileira, axprime também “os fios com os quais vai tecer a rede” de sustentação das
ideias que nortearão sua práxis e suas obras. O livro basilar vai funcionar como constelação
que ora nucleia, ora expande a leitura de conceitos fundamentais na formação do pensamento
freireano. Assim é que elejo como temáticas geradoras desta obra a educação como práxis
social transformadora, a educação figurada em ato político, a alfabetização como leitura de
mundo, a conscientização, e a ação popular e cultura popular na contituição do pensamento
freireano. Estes conceitos, que ensejam campos semânticos, se corporificam em temáticas que
são desaguadouros de onde se vê emergir outros temas, os quais, por sua vez, derivam da
práxis social 12 vivida nessas bases.
Desse modo, também vale assinalar a ideia de que teoria e prática confluem e
desenvolvem novos devires, constituindo e configurando diálogos entre vida e história,
12Práxis no sentido freireano é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. O
sentido essencial da práxis pedagógica em Freire é a libertação dos oprimidos. Sendo assim, a práxis é a pedagogia dos homens empenhados na luta por liberdade, uma pedagogia humanista e libertadora (FREIRE, 1987).
34
memória e presente no texto de Paulo Freire. Posteriormente, vou assinalar nas práxis de
educadores cearenses estes referenciais, vendo como os sujeitos se alimentaram dessas fontes.
Mesmo não sendo objetivo desta investigação descrever a biografa de Freire,
compreendo que, por vezes, é necessário situar fragmentos de sua significativa/rica e intensa
história de vida, considerando que em Freire, vida, obra e práxis são um contínuo circulante
em permanente imbricação, funcionando como uma espécie de espiral ou teia de relações que
vão se constituindo evolutivamente.
Sendo assim, não é possível estudar o pensamento político- pedagógico freireano
sem vincular Freire o seu tempo e a sua inserção histórica nas lutas pela libertação dos seres
humanos em processos de opressão na sociedade brasileira.
O significado do passado no tempo presente concede a certeza de que o ontem e o
hoje são indissociáveis na elaboração histórica das pessoas e da sociedade. Nesta perspectiva,
as realidades histórico-cultural, político-educacional e socioeconômica se entrelaçam,
constituindo condicionantes históricos que se deve ler para compreender as influências do
tempo passado no contexto dos desafios do presente.
A infância e juventude de Freire foram marcadas por dificuldades de sobrevivência
e morte do pai, acontecimento que o fez ingressar precocemente no mundo do trabalho para
contribuir na sobrevivência da família. 13 Em suas palavras,
[...] em tenra idade, já pensava que o mundo teria de ser mudado. Que havia algo errado no mundo que não podia nem devia continuar. Talvez seja uma das positividades da negatividade do contexto real em que minha família se moveu. A de, submetido a certos rigores que outras crianças não sofriam, ter-me tornado capaz de, pela comparação entre situações contrastantes, admitir que o mundo tivesse algo errado que precisava de concerto. Positividade que hoje veria em dois momentos significativos: 1) O de, experimentando-me na carência, não ter caído no fatalismo; 2) O de, nascido numa família de formação cristã, não ter me orientado no sentido de aceitar a situação como sendo a expressão da vontade de Deus, entendendo, pelo contrário, que havia algo errado no mundo e que este precisava de reparo. (FREIRE, 2003, p. 38).
Freire remonta, então, às origens de sua radicalidade, e parece mostrar que esta
posição engendra um movimento reflexivo, possível de se chamar hoje, utopia crítica, como se
percebe: “A minha posição, desde então, era a de otimismo crítico, isto é, a da esperança que
inexiste fora do embate.” (FREIRE, 2003, p.38). Era este um embate, como ele explicita,
emerso de contextos concretos de vida junto ao povo e que ele percebia se articular com um
13 Sobre a infância e juventude de Freire, consultar a Biografia de Freire, de autoria de Moacir Gadotti.
35
modelo capitalista acumulador de riquezas que configurava uma sociedade dependente, como
se cunhava àquele tempo:
Experimentei-me, enquanto menino, tanto quanto enquanto homem, socialmente e na história de uma sociedade dependente, participando, desde cedo, de sua terrível dramaticidade. Nesta, é bom sublinhar desde logo, é que se encontra a razão objetiva que explica a crescente radicalidade de minhas opções. (FREIRE, 2003, p. 39).
Freire enuncia contexto de vida semelhante ao de milhões de brasileiros, o qual
perdura ainda. Lima (1981, p. 22) corrobora para a compreensão da história de vida de Freire,
ao lembrar que
Freire é um cientista social que cresceu experimentando a pobreza e a fome e foi sua realidade de vida que o fez compreender a fome dos homens e mulheres das classes populares, e a assumir o compromisso político com uma educação como instrumento de libertação do povo.
O contexto da vida de Freire, no Nordeste brasileiro, foi cenário para as
inquietações que desde a infância suscitaram interrogações sobre as condições sociais em que
vivia o povo brasileiro. Parece vir daí, então, a crítica à inexistência de um projeto político-
educacional voltado para a realidade das camadas populares e a necessidade de superar as
condições de opressão vividas por elas. Como assinala Freire (2003, p. 41), ao referir-se
concretamente à relação entre cultura e saber sistematizado,
Estou convencido de que as dificuldades diminuiriam se a escola levasse em consideração a cultura dos oprimidos, sua linguagem, sua forma eficiente de fazer contas, seu saber fragmentário do mundo de onde afinal transitariam até o saber mais sistematizado, que cabe à escola trabalhar.
Desse modo, ele vai enunciando que as fomes de sua infância o impulsionaram a
experienciar junto aos movimentos de cultura popular, ainda no início dos anos 1960, uma
proposta de educação como prática de liberdade.
Em virtude do recorte histórico proposto (anos de 1960) e, ainda, do entendimento
de que a participação de Freire no Serviço Social da Indústria e Comércio (SESI), no Recife,
foi determinante para a atuação nos movimentos de cultura popular, é, então, neste período,
que se elabora uma tessitura das suas contribuições político-pedagógicas para a educação
libertadora.
A admissão de Paulo Freire ao SESI, no Recife, onde assumiu o cargo de diretor
da Divisão de Educação e Cultura, ocorreu na metade dos anos 1940. Durante os 17 anos de
36
atuação na instituição, Freire desenvolveu intenso trabalho de formação de educadores de
crianças, tendo se dedicado, também, a criação de círculos de diálogos entre professores e pais
de alunos. Nesse período, travou intenso diálogo com os trabalhadores rurais e urbanos sobre a
educação dos seus filhos. A experiência desenvolvida no SESI significou fecunda iniciação à
história de educador popular de Freire. Esta foi fundamental para as primeiras ações de
alfabetização de adultos e, consequentemente, para a elaboração da proposta de alfabetização-
conscientização vivenciada nos movimentos de cultura popular do Nordeste.
No contexto político e educacional da época, a questão do analfabetismo era
rotulada como “chaga nacional.” Pessoas analfabetas eram vistas como incapazes,
incompetentes para atuarem no novo Brasil que se anunciava. O discurso sobre a necessidade
de “erradicação do analfabetismo” no País, ideologicamente defendia “erradicar o
analfabetismo”, como se arranca uma praga. Era comum à época a dito: “ou o Brasil acaba
com o analfabeto ou o analfabeto acaba com o Brasil.”
Para Lima (1981), o trabalho de Freire junto a quem foi negado o alfabetismo
levou-o a criar, no princípio dos anos 1960, o que veio a ser conhecido como “método Paulo
Freire” – uma abordagem da educação de adultos vivida em Angicos, Rio Grande do Norte,
onde se enunciava um trabalho básico com a aprendizagem do ler e escrever feito em 40 horas.
No 2º Congresso Nacional de Educação de Adultos, realizado no Rio de Janeiro,
em 1958, com a participação ativa de uma equipe de educadores pernambucanos, dentre eles
Paulo Freire, foram assumidos posicionamentos que se contrapunham ao estigma do
analfabetismo. Também, naquele momento, se fez a crítica da visão estigmatizadora aos que
não tiveram acesso à leitura e escrita e que resvalava para tomar como incapacidade, um limite
de classe social. O discurso de que o analfabeto era impedimento para o crescimento
econômico do Brasil passou a ser questionado, direcionando-se os esforços para a
compreensão das causas do analfabetismo. Vejamos:
O problema não era o analfabetismo e alfabetizar não era a solução. Na verdade, o problema era a miséria do povo, o meio rural sem escolas ou com um arremedo delas. Essa postura teve sua origem no relatório apresentado pela representação de Pernambuco, da qual fazia parte Paulo Freire. (FÁVERO, 1983, p. 19).
Pode-se ver como advém a prática de tomar os não alfabetizados como objetos
mudos, em uma ação educadora que mostrava quão marcados pelo colonialismo todos somos e
que denunciava a inexperiência democrática brasileira; o silenciamento do outro, então, como
era observado por Freire (1980), ao criticar a pedagogia tradicional que se assemelhava à
37
“educação bancária”, pois os alunos não tinham oportunidade de exercitar a criatividade e
tampouco a criticidade. Para ele, essa ideia de educação precisava ser superada para uma
educação capaz de estimular no homem sua vocação ontológica de ser mais, inserindo-o, no
entanto, em uma história e em uma cultura da qual ele é sujeito. Para Freire, o projeto de
humanização e emancipação humana possui sua face educacional. Para conseguir pensar
educação nessa perspectiva não bancária, dever-se-ia realizar a assunção dos educandos de
objetos a sujeitos de sua existência na história. Vejamos o edifício teórico freireano por ele
mesmo:
Na verdade, já é quase um lugar-comum afirmar-se que a posição normal do homem no mundo, visto como não estar apenas nele, mas com ele, não se esgota em mera passividade. Não se reduzindo tão-somente a uma das dimensões de que participa – a natural e a cultural. Da primeira, pelo seu aspecto biológico, da segunda, pelo seu poder criador, o homem, pode ser eminentemente interferidor. (FREIRE, 1980, p. 41).
E, alcançando um pensamento que mostra a transcendência humana e a assunção à
hominização como ação criadora e, pois, prática de liberdade, Freire assim se refere:
Sua ingerência, senão quando destorcida e acidentalmente, não lhe permite ser um simples espectador, a quem não fosse lícito interferir sobre a realidade para modificá-la. Herdando a experiência adquirida, criando e recriando, integrando-se ás condições de seu contexto, respondendo a seus desafios, objetivando-se a si próprio, discernindo, transcendendo, lança-se o homem no domínio que lhe é exaustivo – o da História e o da Cultura. (FREIRE, 1980, p. 41).
É essa nova atitude que vai nortear os estudos de Freire sobre educação e a
realidade brasileira, os quais resultaram na produção das obras: Educação e atualidade
brasileira; Educação como prática da liberdade; Ação cultural para liberdade; Pedagogia do
oprimido, entre outras. Nestas obras, desenvolve os fundamentos epistemológicos de seu
pensamento político-pedagógico, elaborando o que veio a ser tomado como metodologia do
sistema de alfabetização-conscientização, baseado na reflexão sobre a relação opressor-
oprimido na sociedade de classes. Ao propor o diálogo como princípio educativo, na dialética
da relação educador e educando, lança, então, as pilastras de sua prática educativa libertadora
como ontologia do ser humano como ser social.
Para Freire e Nogueira (1989, p. 19) “O compromisso, próprio da existência
humana, só existe no engajamento com a realidade de cujas ‘águas’ os homens
verdadeiramente comprometidos ficam ‘molhados’ – ensopados.” Esta fala demonstra a
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compreensão e defesa da imersão do educador popular na realidade social em que atua. Por ser
Freire um educador popular situado no espaço, no tempo e profundamente enraizado na
realidade brasileira, em especial, na nordestina, o estudo de seu pensamento político –
educacional e da práxis libertadora que propõe e vivenciou exige situar o contexto histórico,
político e educacional brasileiro em que se originaram seus estudos e deu-se o compromisso
com uma proposta de educação como práxis humana e instrumento de libertação dos homens e
mulheres oprimidas na sociedade de classes. O autor, ainda no livro Educação como Prática
da Liberdade, possibilita se compreender o contexto em que desenvolveu seu pensamento
político-educacional, permitindo reflexionar no campo filosófico, que põe como adstrito ao
político e ao antropológico:
Não há educação fora das sociedades humanas e não há homens no vazio. O esforço educativo desenvolvido [...], ainda que tenha validade em outros espaços e em outro tempo, foi todo marcado pelas condições especiais da sociedade brasileira. Sociedade intensamente cambiante e dramaticamente contraditória. Sociedade em “partejamento”, que apresentava violentos embates entre um tempo que se esvaziava, com seus valores, com suas peculiares formas de ser, e que “pretendia” preservar-se e um outro que estava por vir, buscando configurar-se. Este esforço não nasceu, por isso mesmo, do acaso. Foi uma tentativa de resposta aos desafios contidos nesta passagem que fazia a sociedade. Desde logo, qualquer busca de resposta a estes desafios implicaria, necessariamente, numa opção. [...], opção por esse ontem, que significaria uma sociedade sem povo, comandada por uma elite superposta a seu mundo, [...] ou opção pelo amanhã. Por uma nova sociedade, que, sendo sujeito de si mesma, tivesse no homem e no povo sujeitos de sua História. (FREIRE, 1980, p. 33).
Neste contexto da sociedade brasileira, Freire (1980, p. 36) chega a propor que “A
educação das massas se faz, assim, algo de absolutamente fundamental entre nós. Educação
que, desvestida da roupagem alienada e alienante, seja força de mudança e de libertação.”
A produção teórica e a práxis de Freire são testemunhos de que o Pensador foi um
brasileiro e nordestino profundamente enraizado no seu tempo, sendo suas reflexões situadas
historicamente. Suas ideias e práxis refletem o compromisso e a participação em um processo
de radicalização política na sociedade brasileira, sem, contudo, deixar de comportar, nessa
visão, a transcendência.
Por ser cristão convicto, atuou na ação católica, tornando-se um católico engajado
nas transformações sociais e nos enfrentamentos que, nessa época da ditadura, eram vividos
em sua radicalidade. Compartilhou com sua geração de intelectuais isebianos, que defendiam
um nacionalismo forjado na luta contra a opressão dos “esfarrapados da vida” e também se
posicionou veementemente contra a permanente desfiguração da cultura nacional. O estudo do
39
pensamento freireano, portanto, não pode ser desvinculado das circunstâncias da realidade
política, social e econômica brasileira, que o impulsionara a uma práxis capaz de contribuir
com a formação política e educacional das camadas populares, na perspectiva de
transformação da aviltada realidade nacional. Consoante expressa Lima (1981, p. 25),
O contexto histórico político da formação das ideias de Freire - o nordeste do Brasil durante a década de cinquenta e primeira metade da década de sessenta –, precisa ser compreendido dentro do processo de transformação, associadas ao desenvolvimento do capitalismo industrial brasileiro e manifestadas através da “experiência democrática” e da crise política iniciadas com a revolução de 1930 e encerradas com o golpe militar de 1964.
Esse autor chama a atenção, também, para o fato de que o período histórico
iniciado com a revolução de 1930 e vai até o golpe militar no Brasil, pode ser caracterizado
pelo aparecimento das classes populares no panorama político, ainda que o período Vargas
seja marcado pelo populismo, nacionalismo e por uma militância do catolicismo radical:
Aqui vê-se o surgimento das classes populares no cenário político, pela primeira vez na história do Brasil. Este fato ocorreu sob a égide política do populismo, desenvolveu-seno bojo da hegemonia ideológica do nacionalismo e resultou dos esforços deliberados de mobilização popular empreendidos por grupos militantes de diferentes orientações políticas, dentre os quais destacam-se os católicos radicais. (LIMA, 1981, p. 26).
É, portanto, no contexto do populismo e do desenvolvimento nacionalista que se
desenvolveu a trajetória de vida de Paulo Freire e prosperou o seu pensamento político-
pedagógico, ampliado e recriado para responder aos desafios político-pedagógicos de acordo
com o contexto político, socioeconômico, cultural e histórico de cada época da sociedade
brasileira.
A crença profunda no homem foi determinante para que ele elaborasse uma
epistemologia da educação, na perspectiva de que os oprimidos pudessem compreender seu
próprio valor como humanidade e desenvolvessem uma consciência crítica de sua
circunstância de opressão imersa na luta por transformação da realidade social concreta. Freire
(1980, p. 88) chama a atenção para o fato de que, neste contexto, “necessitávamos de uma
educação para a decisão, para a responsabilidade política e social”; uma educação que, ao se
fazer, mudasse, também, estruturas mentais dos sujeitos que se educam, como se pode
depreender de seu diálogo com Mannheim:
Nesse sentido, faz Mannheim afirmações que se ajustavam às condições que começávamos a viver. Textualmente diz ele: `Mas em uma sociedade na qual
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as mudanças mais importantes se produzem por meio da deliberação coletiva e onde as revalorações devem basear-se no consentimento e na compreensão intelectual, se requer um sistema completamente novo de educação; um sistema que concentre suas maiores energias no desenvolvimento de nossos poderes intelectuais e dê lugar a uma estrutura mental capaz de resistir ao peso do ceticismo e de fazer frente aos movimentos de pânicos quando soe a hora do desaparecimento de muitos dos nossos hábitos mentais. (FREIRE, 1980, p. 89).
Freire (1980), contudo, mostra que essa deliberação coletiva, a ser aprendida nos
processos educacionais, nesse “ser mais” da hominização, deveria se inscrever em uma ação
cultural para a liberdade, onde a palavra teria outro funcionamento – na verdade, deveria ter
uma vocação hominizadora. Assim, criticava uma cultura na qual a palavra não pronunciava as
transformações a serem feitas e mediadas pelo diálogo. Em seu pensamento,
A nossa cultura, fixada na palavra, corresponde a nossa inexperiência do diálogo, da investigação, da pesquisa, que, por sua vez, estão intimamente ligados à criticidade, nota fundamental da mentalidade democrática. [...] Ora, a democracia e a educação democrática se fundam ambas, precisamente, na crença no homem. Na crença em que ele não só pode mas deve discutir os seus problemas. Os problemas do seu país, do seu continente, do mundo. Os problemas do seu trabalho. Os problemas da própria democracia. (FREIRE, 1980, p. 96).
Educação na qual, o diálogo, como se vê, seria o pressuposto fundante do ensino e
aprendizagem, onde a prática político-pedagógica para se dar faça ascender - educadores e
educandos - ao lugar de sujeito. E, como se observa, a democracia seria um ensaio de
humanização e de inscrição na história coletiva. Dessa maneira, Freire, ao se referir à categoria
diálogo, lembra, também, aspectos subjetivos da educação, tradicionalmente alijados da
reflexão político-pedagógica; no entanto, isso fazia, afastando-nos de uma compreensão
paternalista dessa prática:
O diálogo não é discussão guerreira, polêmica, entre sujeitos que não aspiram a comprometer-se com a pronúncia do mundo, nem a buscar a verdade, mas a impor a sua. [...] A auto suficiência é incompatível com o diálogo. Os homens que não tem humildade ou a perdem não podem se aproximar do povo. [...] Não há diálogo, se não há uma intensa fé nos homens. Fé no seu poder de fazer e de refazer. De criar e recriar. Fé na vocação de ser mais, que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens. [...] Sem esta fé nos homens o diálogo é uma farsa. Transforma-se, na melhor das hipóteses, em manipulação adocicadamente paternalista. (FREIRE, 1987, p. 80-81).
O estudo do pensamento de Freire permite nomeá-lo como um “[...] pensador
comprometido com a vida: não pensa ideias, pensa a vida.” (FIORI, 1987, p. 9). É um cientista
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social, pois, cresceu experimentando a pobreza e as fomes; pensou na prática emergindo dela,
portanto, dialogando com as vozes dos sujeitos das classes populares, com quem assumiu o
compromisso político com uma educação como prática de liberdade. Freire tinha envolvimento
com o catolicismo brasileiro dos anos 1950 e o ideário das lutas sociais de seu tempo
constituía esse imaginário calcado nos enfretamentos com o Estado e nas lutas contra
opressões, encenadas pelo pensamento que veio se corporificar na Teologia da Libertação.
Dentre as críticas expressas (PAIVA, 1980), tem-se a pergunta pela congruência entre o
cristianismo e a crítica educacional e política que sustenta.
Ora, segundo Lima (1981, p. 22), Freire jamais negou seu cristianismo. Muito pelo
contrário, o afirmou em diversas ocasiões. Uma de suas declarações mais eloquentes foi feita
em Roma, em 1971, ao fim de uma palestra sobre a “conscientização como caminho para a
libertação”, onde ele assim se posiciona:
O cristianismo é para mim, uma doutrina maravilhosa. Algumas pessoas já me acusaram de ser comunista, porém nenhum comunista seria capaz de dizer o que acabei de dizer. Nunca me senti tentado a deixar de ser, a cessar de existir. A razão disto é que eu ainda não sou um católico completo, mas continuo tentando sê-lo mais integralmente dias após dias. A condição de ser é continuar a ser. Nunca senti que precisaria abandonar a igreja ou por de lado minhas convicções cristãs para poder dizer o que digo, ou ir para a prisão – ou, mesmo, recusar-me a fazê-lo. Apenas sinto, apaixonadamente, intimamente, orgânicamente, com todas as forças do meu ser, que a minha posição é de um cristão pois ela é 100 por cento revolucionária, humana e libertadora e, portanto, engajada e utópica. E esta, a meu ver, deve ser a posição de todos nós, a posição de uma igreja que nunca pode esquecer que se acha conclamada, por suas origens, a morrer tiritando no frio. Isto é uma utopia, uma denúncia e uma proclamação com compromisso histórico que acrescenta uma dimensão heróica do amor. (LIMA, 1981, p. 22-23).
É necessário se compreender que a formação e o desenvolvimento das ideias de
Paulo Freire são permeados por um período político e histórico complexo, iniciado com a
revolução de 1930 e vai até o golpe militar. Para Lima (1981, p. 26), essa fase pode ser
caracterizada pelo,
Surgimento das classes populares no cenário político, pela primeira vez na história do Brasil. Este fato ocorreu sob a égide política do populismo, desenvolveu-se no bojo da hegemonia ideológica do nacionalismo e resultou dos esforços deliberados de mobilização popular empreendidos por grupos militantes de diferentes orientações políticas, dentre os quais destacam-se os católicos radicais.
42
O autor destaca também o fato de o estudo do pensamento freireano não poder ser
deslocado do tempo histórico e do espaço geográfico – da geopolítica – de que se fez crítico.
Sendo assim, lembra:
O contexto histórico e político da formação das ideias de Freire - o nordeste do Brasil durante a década de cinquenta e primeira metade da década de sessenta – precisa ser compreendido dentro do processo de transformação associada ao desenvolvimento do capitalismo industrial brasileiro e manifestadas através da “experiência democrática” e da crise política iniciada com a revolução de 1930 e encerrada com o golpe militar de 1964. (LIMA, 1981, p. 25).
Brandão (2002), contemporâneo de Freire e estudioso de seu pensamento na
atualidade, chama atenção para peculiaridades de Freire que mostra uma forma de se situar no
tempo, transcendendo-o e fazendo história:
É um pensador de uma transbordante criatividade. Olhados no conjunto do campo das ideias de seu tempo, os seus escritos, a proposta de seu sistema de educação e seu método de alfabetização, possuem a qualidade do novo e do perene consistente, como a proposta que, uma vez estabelecida, renova tudo a sua volta e perdura. Trabalhando como educador de seu tempo (e este reconhecimento é muito forte em todos os seus gestos, em toda a sua obra) ele nos legou um tipo de pensamento sobre a pessoa humana, sobre a política das relações sociais, sobre a dimensão cultural desta política e sobre o ofício do educador, que certamente haverá de atravessar vários tempos de nossa história, e de outras. Outros povos e outras eras. (BRANDÃO, 2002, p. 14).
A ideologia do nacionalismo desenvolvimentista, contudo, assinalando o contexto
político, econômico, social e cultural dos anos 1950 e início dos anos 1960, embora
perpetuando as desigualdades sociais e a opressão aos destituídos de poder econômico,
veiculava possibilidades de desenvolvimento econômico, apoiando-se, para isso, na euforia
provocada pelo processo de industrialização que se iniciava no País. É nesse contexto,
denominado por Freire como o de “uma sociedade nacionalista em trânsito”, que se vão
agudizar as contradições que o pensamento educacional freireano vai expor, confrontando
temporalidades e tarefas educacionais tematizadoras de transformações sociais.
Nesse caminho, Freire (1980) vai desvelando a dramaticidade dessas imagens de
trânsito, quando se posiciona com sua práxis ante elas, sempre sublinhando o caráter
enfaticamente optativo das razões da radicalidade, em busca de um devir democrático. Nas
suas palavras,
A passagem de uma para outra época se caracteriza por fortes contradições que se aprofundam com o choque entre valores emergentes, em busca de
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afirmação, de plenificação, e de valores do ontem, em busca de preservação. Quando isso ocorre instala-se o trânsito. Verifica-se um teor preponderantemente dramático a impregnar as mudanças de que se nutre a sociedade. Porque dramático, fortemente desafiador, e o trânsito se faz então enfaticamente optativo. Daí que, nutrindo-se de mudanças, seja o trânsito mais do que estas. Ele implica realmente nesta marcha acelerada da sociedade à procura de novos temas [...]. Nestas fases, mais do que nunca, se faz indispensável a integração. Vive hoje o Brasil, exatamente o trânsito de uma para outra época. (FREIRE, 1980, p. 103).
Enfatizo, portanto, o fato de ser no âmago das transformações globais
acompanhantes do desenvolvimento do capitalismo na sociedade brasileira que podemos
entender criticamente o surgimento e a evolução do pensamento político-educacional
freireano.
Para Manfredi (1981), o autor chamava atenção para a importância da percepção
do vínculo da educação com as transformações de uma estrutura agrário-comercial para as
novas formações urbano-industriais, que trazem o universo das cidades, no País dos anos de
1950. Essas transformações, assentadas, então, em uma nova estrutura de classes no seio da
recomposição hegemônica do poder político, vão evidenciar a emersão das lutas pela
alfabetização de adolescentes e adultos: É [...] à luz dos processos sociais mais amplos, quais sejam, o desenvolvimento do modo capitalista de produção, a formação de uma nova estrutura de classes, a decomposição recomposição do poder político, que se pode entender de forma mais significativa os movimentos educacionais em prol da alfabetização de adultos e adolescentes. No plano econômico a industrialização é o marco histórico que caracteriza a ruptura das velhas bases da estrutura agrário-comercial e a formação de uma nova estrutura societária urbana industrial. (MANFREDI, 1981, p. 25).
Freire ainda chama a atenção para a importância da percepção do caráter dialético
destas transformações, enfatizando a não inexorabilidade do futuro e da necessidade de
romper-se uma visão fatalista dos processos sociais – e, então, que ele traz a ideia de crítica
esperança para com ela tecer sua reflexão sobre educação como ação cultural para a liberdade:
[...] que a realidade social é transformável, que feita pelos homens, pelos homens pode ser mudada; que não é algo intocável, um fato, uma sina, diante de que só houvesse um caminho: a acomodação a ela; [...] que o fatalismo vá sendo substituído por uma crítica esperança que pode mover os indivíduos a uma cada vez mais concreta ação em favor da mudança radical da sociedade. (FREIRE, 1980, p. 40).
Nesse período em estudo, o Brasil estava em transição, reitero, vivendo
mecanismos de recomposição do capitalismo, quando se passava pela transformação de
sociedade agrária para sociedade em decurso de industrialização, contexto no qual se destaca
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um modelo socioeconômico desenvolvimentista com estilo populista. Para Manfredi (1981, p.
18), este foi um período no qual se cuidava,
[...] prioritariamente de acelerar a ocupação do espaço produtivo nacional pelo recurso ao capital estrangeiro sem a preocupação com o aspecto do fortalecimento do empresariado nacional. [...] A industrialização era vista como a condição ao desenvolvimento; possibilidade de arrancar a nação desse estágio de economia subdesenvolvida (“50 anos em cinco”).
Pelandré (2005) também corrobora a compreensão do contexto histórico da
sociedade brasileira, considerando o início desse período como tempo em que medra o ideário
desenvolvimentista, mas observa os aspectos de resistência então esboçados, ao destacar, em
particular, aquilo por ele nomeado como movimento cristão:
O movimento político e social, no Brasil, era de muita efervescência, marcado principalmente, pelo desenvolvimento industrial. O clima de democracia instaurado fomentava o desenvolvimento de atividades culturais, propiciando a afirmação dos movimentos estudantis, por intermédio da Juventude Universitária católica (JUC) e da União Nacional dos Estudantes (UNE), que assumiram os movimentos populares, sob a hegemonia do movimento cristão. (PELANDRÉ, 2005, p. 50).
No campo político, o ano de 1960 foi marcado pela renúncia de Jânio Quadros, que
teve curto tempo no Governo, assumindo a Presidência da República, então, João Goulart, ao
dar continuidade à ideologia desenvolvimentista com bases populistas, alargando os pilares
onde se assentavam as ações sobre o trabalho do governo anterior. Pelandré (2005, p. 50) nos
lembra de que o governo de João Goulart propunha
Um desenvolvimento político nacionalista, independente da influência estrangeira, e buscava apoio junto a empresários, assalariados e à população de maneira geral. Enquanto ele se preocupava com o desenvolvimento econômico, procurando definir uma política que freasse a alta do custo de vida e o endividamento externo, a sociedade civil se organizava face à indignação com o estado de pobreza existente, às injustiças sociais e ao crescente analfabetismo.
Com efeito, onde se polarizavam hegemonia e resistência, no Recife, o educador
popular Paulo Freire esboçava sua indignação aos alarmantes índices de analfabetismo no País,
que chegavam, em 1958, a 50%, na população adulta, contexto no qual, a educação tradicional
e alienadora, se constituía nesse chão que e era agravado pela realidade de opressão vivenciada
pelos trabalhadores na sociedade de classes.
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A indignação de Freire o mobilizou a desenvolver uma práxis de alfabetização-
conscientização com os sujeitos das camadas populares – possibilitando a elaboração de uma
proposta político-educacional revolucionária, em que o processo de alfabetização era
trabalhado como instrumento de formação da consciência política e de "hominização", tecendo
a vocação do ser em uma práxis social transformadora e política. Assim, a educação não se
fazia sobre oprimidos, mas com eles, visando inclusive, auxiliá-los em sua intervenção no
mundo – na reversão do quadro de injustiça social e no enfrentamento à negação do direito à
educação.
A proposta político-pedagógica de Paulo Freire, portanto, ao objetivar o
compromisso com a formação sociocultural e política dos oprimidos, fazia-o auxiliando-os na
sua assunção como sujeitos históricos. A perspectiva do trabalho em educação com estes
sujeitos sociais era a de estimular e contribuir com a sua participação comunitária, cuja
vivência da esfera pública era ensaiada junto às lutas pela democracia. Neste sentido, a
preocupação de Paulo Freire centrava-se dualmente em uma ação social libertadora enraizada
em uma pedagogia crítica, cujas raízes histórico-culturais do silenciamento das vozes dos
oprimidos pudessem ser trabalhadas e modificadas educacionalmente, como exercício de
desvelar mundos e comprometer-se com ações coletivas de transformação. Assim, ensaiava-se
[...] encontrar uma resposta no campo da pedagogia às condições da fase de transição brasileira. Resposta que levasse em consideração o problema do desenvolvimento econômico, o da participação popular neste mesmo desenvolvimento, o da inserção crítica do homem brasileiro no processo de “democratização fundamental”, que nos caracterizava. Que não descurasse as marcas de nossa inexperiência democrática, de raízes histórico-culturais, em antinomia com a nova posição que o processo vinha exigindo do homem brasileiro. (FREIRE, 1980, p. 85).
Em relação ao compromisso com a educação popular e ao desafio de uma práxis
educacional, Paulo Freire propunha o desvelamento da opressão e seus símbolos, partejando a
experiência da participação como experiência de elaboração da democracia. Nesse percurso de
desvelamento do mundo, dever-se-ia passar de uma estrutura mental cuja transitividade
ingênua, passiva e fatalista, seria ultrapassada pela transitividade crítica. Articulava, então,
processos mentais a processos societários de transformação eu-mundo, dessa forma, mostrando
Paulo Freire:
A contribuição a ser trazida pelo educador brasileiro à sua sociedade em “partejamento”, ao lado dos economistas, dos sociólogos, como de todos os especialistas voltados para a melhoria dos seus padrões, haveria de ser a de uma educação crítica e criticizadora. De uma educação que tentasse a
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passagem da transitividade ingênua à transitividade crítica, somente como poderíamos, ampliando e alargando a capacidade de captar os desafios do tempo, colocar o homem brasileiro em condições de resistir aos poderes da emocionalidade da própria transição e armá-lo contra a força dos irracionalismos, de que era presa fácil, na emersão que fazia, em posição transitivante ingênua. (FREIRE, 1980, p. 86).
O educador João Francisco de Souza (2001), estudioso de Paulo Freire, ao se deter
na reflexão desse autor, evidencia o fato de que a humanização era uma das preocupações do
Pensador – e fazia essa leitura no contexto da saída de um mundo agrárioexportador para a
contemporaneidade urbana, calçada no capitalismo, nesse tempo, marcado pela inserção do
homem na industrialização em implantação no Brasil.
Face às transformações econômicas vividas pelo Brasil no final da década de 1940 até inícios da década de 1960 e diante dos contingentes humanos capazes de serem utilizados como mão de obra industrial, que exige outro tipo de compreensão e de habilidade, Freire se indaga sobre as possibilidades da humanização do ser humano nesses processos. A partir dessas indagações, amplia a compreensão do processo social e educativo e os interpreta na totalidade de suas exigências. (SOUZA, 2001, p. 34-35).
Os trabalhos de Paulo Freire, inicialmente, ao terem como enfoque central uma
educação libertadora com base na participação das camadas populares, sublinha o aprendizado
da democracia como tarefa histórica, que deveria ser amplamente vivenciada em todos os
âmbitos das práticas sociais e no próprio contexto educacional. Seria na participação que o
oprimido iria realizar sua assunção como sujeito de sua história pessoal e coletiva – como
observa Freire, fazendo-o não "espec-ator" do mundo, mas "ator-atuante" na feitura de uma
nova perspectiva de responsabilidade social e política:
Cada vez mais nos convencemos [...] de que o homem brasileiro tem que ganhar a consciência de sua responsabilidade social e política, existindo essa responsabilidade. Vivendo essa responsabilidade. Participando. Atuando. Ganhando cada vez maior ingerência nos destinos da escola do seu filho. Nos destinos de seu sindicato. De sua empresa, através de agremiações, de clubes de conselhos. Ganhar ingerência na vida do seu bairro. Na vida de sua comunidade rural, pela participação atuante em associações, em clubes, em sociedades beneficentes. Assim, não há dúvida, iria o homem brasileiro aprendendo democracia mais rapidamente. Assim é que conseguiríamos introjetar no homem brasileiro o sentido de nosso desenvolvimento econômico, fazendo-o, desta forma participante desse processo e não apenas expectador dele. (FREIRE, 2001, p. 15).
Para tanto, preocupava-se em formular uma concepção de educação vinculada às
necessárias transformações da realidade histórica e cultural brasileira, capaz de preparar o
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povo para uma participação ativa e critica nas transformações sociais a serem feitas por estes
novos sujeitos sociais. O "trabalho com a consciência" era trazido, nesse movimento do
conhecer em educação, para se erguer como consciência histórica. Sendo assim, o homem
necessitava de um “maravilhamento” advindo do “eu crio, eu me humanizo” e não da
reiteração do “eu fabrico”. Em suas próprias palavras:
De uma educação que levasse o homem a uma nova postura diante dos problemas de seu tempo e de seu espaço. A da intimidade com eles. A da pesquisa ao invés da mera, perigosa enfadonha repetição de trechos e de afirmações desconectadas das suas condições mesmas de vida. A educação do “eu me maravilho” e não apenas do “eu fabrico”. (FREIRE, 1967, p. 100).
Neste sentido, Freire situa uma educação capaz de ter ingerência – nas novas
demandas de transformação da sociedade brasileira; uma educação que pudesse fazer do agir
comunicativo uma ação solidária, cujo aprendizado ou formação se coadunasse com uma
teoria erguida como ação social, modificadora de "hábitos culturológicos de passividade".
Assim dizia:
[...] teria de ser, acima de tudo, uma tentativa constante de mudança de atitude. De criação de disposições democráticas através da qual se substituíssem no brasileiro, antigos e culturológicos hábitos de passividade, por novos hábitos de participação e ingerência, de acordo com o novo clima da fase de transição. Aspecto este já afirmado por nós várias vezes e re afirmado com a mesma força com que muita coisa considerada óbvia precisa, neste País, ser realçada. Aspecto importante, de nosso agir educativo, pois, se faltaram condições no nosso passado histórico-cultural, que nos tivessem dado, como a outros povos, uma constante de hábitos solidaristas, política e socialmente, que nos fizessem menos inautênticos dentro da forma democrática de governo, restava-nos, então, aproveitando as condições novas do clima atual do processo, favoráveis à democratização, apelar para a educação, como ação social, através da qual se incorporassem ao brasileiro estes hábitos. (FREIRE, 1967, p. 101).
Essa ideia de educação e o acúmulo de mais de 15 anos de experiências no campo
da educação de adultos em áreas urbanas e rurais foram determinantes no estabelecimento de
um edifício pedagógico ímpar, onde a crença tem lugar como material concreto de
humanização, a ser vivida no mundo, mediada pelo diálogo problematizador da transformação
do trabalho e da descrença no humano. Daí sua ênfase:
Daí a nossa insistência no aproveitamento deste clima. E, a partir dele, tentarmos o esvaziamento de nossa educação de suas manifestações ostensivamente palavrescas. A superação de posições reveladoras de descrença no educando. Descrença no seu poder de fazer, de trabalhar, de discutir. Ora, a democracia e a educação democrática se fundam ambas,
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precisamente, na crença no homem. Na crença em que ele não só pode mas deve discutir os seus problemas. Os problemas do seu País. Do seu Continente. Do mundo. Os problemas do seu trabalho. Os problemas da própria democracia. (FREIRE, 1967, p. 104).
Por ser um pensador e educador que ao longo de sua trajetória foi desenvolvendo
sua capacidade de ação-reflexão-ação, resultando na permanente coerência na relação teoria-
prática, também se faz necessário revisitar a história de algumas das experiências de educação
popular na primeira metade dos anos de 1960, que constituíram valioso campo de ação-
reflexão-ação para o desenvolvimento do pensamento educacional freireano. Assim é que
Rosas (2002) analisa as experiências desenvolvidas na época, relatando que elas tiveram para
si um caráter de escolha de tarefa social e política, mas, também, de eleição de um labor
civilizatório, de evolução da reflexão sobre o humano na teoria social.
Experiências pedagógicas inovadoras, que marcaram a história da educação no Brasil, [...] como um esforço deliberado de transformar a sociedade. Temos clara consciência de que a presença de Paulo Freire entre nós ultrapassou os limites das entidades nas quais ele atuou, para se estender, instigante, desafiadora e ao mesmo tempo, esperançosa, a instituições outras, a pessoas, que descobriram a originalidade do óbvio. Presença incomoda, para os que anteviam ameaças de perdas com as mudanças chegando. Mais de uma vez, Paulo Freire nos confidenciou, a mim e a Argentina, minha esposa e constante colaboradora: “não nasci para ajudar a direita; sinto como se estivesse cumprindo uma missão.” (ROSAS, 2002, p. 6, grifo do autor).
Nesse sentido é que Freire, no início dos anos de 1960, desenvolveu experiências
de alfabetização-conscientização com adultos, resultantes de uma proposta teórica e
metodológica denominada por ele como “sistema de alfabetização de adultos”, que,
posteriormente, ficou conhecida como “método de alfabetização Paulo Freire”. Em Angicos,
no Rio Grande do Norte, em 1963, juntamente com uma equipe de universitários que
participavam do movimento de cultura popular do Recife, sua experiência de alfabetização em
40 horas se projeta como proposta de alfabetização no País. Como é perceptível, contudo, era
uma reflexão educacional que tomava seu assento do Brasil para o mundo, como se vai
efetivar, em especial, quando Freire é exilado, após o golpe militar de 1964.
É sabido que, mesmo consciente de que sua história de educador popular ocorreu
de modo concomitante à propagação do “método de Alfabetização de Jovens e Adultos” e,
também, sem a intenção de menosprezar o significado de um caminho – método – para o
desenvolvimento da Educação de Jovens e Adultos no País, Paulo Freire não se entendia ou
não se considerava somente como criador de um método de alfabetização. Na verdade, ele
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compunha uma espécie de "epistemologia da pergunta", uma perspectiva teórico-prática que
situava o ato de ensinar sob a perspectiva de um aprendizado permanente, o movimento do
aprender engendrando a experiência de ser um sujeito "aprendente" em relação com o "fazer-
no-mundo". Neste sentido, destaca:
[...] foi aprendendo socialmente que, historicamente homens e mulheres descobriram que era possível ensinar – depois, preciso trabalhar maneiras, caminhos, métodos de ensinar. Aprender precedeu ensinar ou, em outras palavras, ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender. (FREIRE, 1987, p. 26).
Ao conceder entrevista a Pelandré 14, Paulo Freire ressalta, quando questionado
sobre o método de alfabetização, que estava sempre a tentar compor uma perspectiva crítica e
dialética da educação e que, para isso, “um certo modo de conhecer” - poder-se-ia dizer, “uma
epistemologia” – seria necessário pôr em prática. Assim falava:
Eu preferiria dizer que não tenho um método. O que eu tinha, quando muito jovem [...] era a curiosidade de um lado e o compromisso político do outro, em face dos renegados, dos negados, dos proibidos de ler a palavra, relendo o mundo. O que eu tentei fazer, e continuo fazendo hoje, foi ter uma compreensão que eu chamaria de crítica ou de dialética da prática educativa, dentro da qual, necessariamente, há uma certa metodologia, um certo método, que eu prefiro dizer que é um método de conhecer, e não um método de ensinar. [...] Eu prefiro me compreender como um homem curioso e pesquisador de uma certa concepção democrática, radical e progressista de prática educativa. (FREIRE, 2005, p. 54-55).
À medida que Freire vai questionando visões ingênuas de educação, possibilitando
uma epistemologia da pergunta, também avança no entendimento de que a elaboração de uma
"epistemologia da experiência", em educação, exige necessariamente a percepção de que o
contexto político socioeconômico, histórico e cultural da sociedade de classes são
condicionantes das práticas sociais, e também uma práxis comprometida com a libertação
precisaria desvelar estes condicionantes que submetem o ato de conhecer. Para tanto o autor
destaca:
O conhecimento, ao contrário, exige uma presença curiosa do sujeito em face do mundo. Requer sua ação transformadora sobre a realidade. Demanda uma busca constante. Implica em invenção e em reinvenção. Reclama reflexão crítica de cada um sobre o ato mesmo de conhecer e os condicionamentos a que está submetido seu ato. (FREIRE, 1987, p. 27).
14Entrevista concedida a pesquisadora que elaborou tese sobre a experiência de Angicos, publicada na
obra Ensinar e Aprender com Paulo Freire:40 horas, 40 anos depois (PELANDRÉ, 2005).
50
Souza (2001) conferia a Paulo Freire o lugar, no Brasil, de um pensador e educador
popular que conectou uma perspectiva educacional ao exercício da resistência à opressão –
expressão de um exercício histórico-cultural de assunção do oprimido a sujeito das
transformações sociais, que devem ser feitas desde o campo educacional. Com toda a ênfase
assevera:
Em sua busca do desenvolvimento cultural dos setores explorados, oprimidos, subordinados e subalternizados das sociedades nacionais e da sociedade internacional para garantir seu crescimento humano, formulou uma contribuição significativa no campo educacional. Seu pensamento se torna uma das propostas pedagógicas mais analisadas, debatidas, acatadas, atacadas e rejeitadas na própria época histórica em que viveu seu elaborador/propositor, como uma expressão desse mesmo momento histórico-cultural. Consegue nesse processo, se fazer clássico em sua própria contemporaneidade. Isso é raro na história das ciências sócias e das culturas. [...] Por outro lado, como qualquer pensamento clássico, origina muitas interpretações, deformações, alcances, aplicações diversificadas, paixões e iras. Talvez seja essa a garantia de sua duração histórica e de seu caráter clássico. (SOUZA, 2001, p. 46).
Este autor possibilita o entendimento de que o pensamento político pedagógico
freireano possui dimensão filosófica inequívoca, que remete a uma concepção mais inteira dos
sujeitos sociais que se educam, onde a dimensão da práxis, junto à grandeza do emocionar-se,
se vinculam à constituição do sujeito, em educação. Tal agir
[...] nos leva à redescoberta da integridade do ser humano. Na verdade, um pensamento que provoca mudança não apenas na cabeça (o conhecimento); destina-se a contribuir com a construção da integridade do ser humano, quer atingir também o coração (o emocionar-se) e as mãos (o agir). (SOUZA, 2001, p. 5).
Enfim, o pensamento político-educacional freireano instiga educadores, filósofos,
sociólogos, antropólogos, psicólogos e demais profissionais a uma compreensão de que as
contribuições teóricas e metodológicas envolvendo o que se veio chamar de método de
alfabetização de adultos são parte de uma visão de educação que se amplia. Isso adquire maior
significação em um tempo no qual escolarização era habitualmente pensada como isolada da
ação cultural e social de transformação das condições históricas que determinam a opressão e,
em última instância, a vida pessoal e coletiva. O pensamento de Freire vai gestar nos
educadores uma práxis que conduzirá reflexões-ações capazes de cunhar o termo popular junto
a uma educação que busca a perspectiva do oprimido.
51
João Francisco de Souza (2001) contribui com essa compreensão, ao trazer a ideia
de humanização junto a essa perspectiva freireana.
O pensamento de Freire tem sido muito fecundo [...], origina uma proposta de Educação Popular (no Brasil e na América Latina), uma metodologia da organização social e política e ainda de educação escolar [...]. Foi resposta para angústias existenciais, sociais, pessoais, políticas individuais e coletivas em diferentes partes do mundo. Gerou uma perspectiva de vida e de engajamento sócio-humano para muitas gentes. Colocou pessoas, no mundo inteiro, em processo de humanização e de engajamento na luta pela construção de humanização de todos os seres humanos e de uma sociedade humana. (SOUZA, 2001, p. 29).
Os pressupostos do pensamento freireano, como visto, se direcionam para uma
concepção filosófica e epistemológica de política e educação que estão além da alfabetização.
É que Freire desenvolveu um pensamento pedagógico que possibilita compreender a
politicidade da educação e sua inserção na história das culturas humanas. Faz crítica à
pedagogia tradicional, esquadrinha seus mecanismos de sujeição; denomina de “educação
bancária” certo modo de tomar processos de conhecer em educação e ergue o diálogo como
espaço relacional e geopolítico.
Para superar a educação como forma de domesticação, como ele nomeia, propõe
que uma educação libertadora “[...] deve ser compreendida como um movimento, um processo,
ou uma prática, onde estimulamos as pessoas a se mobilizar ou a se organizar para adquirir
poder.” (FREIRE, 1987, p.170). A educação propositiva de Paulo Freire é calçada em uma
problematização das relações de opressão construídas na sociedade de classes e em sua
transformação – mas não se ergue em uma vazia de sentido sobre o ser mais, que denomina
como a vocação dos sujeitos de “humanizar o mundo”.
Alargando seu olhar para processos colonialistas outros, no exílio, como em
Guiné-Bissau, na África, Paulo Freire, em suas produções teóricas, analisa as relações de
opressão que constituem a estrutura da sociedade capitalista, inscritas também na linguagem,
assim politizando desde o ato mínimo da aprendizagem da linguagem da escrita e da leitura,
então ampliado para a leitura de mundo. Seu conceito de educação bancária, problematizadora,
que elege o diálogo como princípio dialético de uma práxis libertadora, mostra uma ideia de
formação que não se reduz a “depósitos” nem a informação; questiona o autoritarismo e o
fosso que se aprofundou historicamente entre teoria e prática, ciência e transformação social,
saber sistematizado e saber popular, abrindo espaço para uma dialética do pensamento e da
aprendizagem mais plena da complexidade do mundo.
52
Ora, desde a Pedagogia do Oprimido, Freire interroga como a educação pode
realizar a abertura de caminhos para recuperar a humanidade dos sujeitos sob regime de
sujeição, no sentido de uma construção de liberdade viabilizada também no processo
educacional:
[...] aquela que tem que ser forjada com ele e para ele, enquanto homens, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto de reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará. (FREIRE, 1987, p. 32).
A Pedagogia do Oprimido se expressa, pois, como base da Educação como Prática
de Liberdade, uma adensando-se na outra obra, ambas referências imprescindíveis para um
entendimento cristalino sobre educação popular. Ao começar discutindo a intencionalidade do
ato educativo na formação do sujeito e na transformação do mundo, Freire chega à dimensão
utópica, partindo da "inconclusão" do ser e do mundo, seguindo em direção à Pedagogia da
Esperança. A ação de humanização, dialógica, de sujeitos que se educam, mediatizada pelas
práticas sociais concretas, funda-se, então, na perspectiva da educação popular, como
consciência intencionada ao mundo, operante e transformadora:
A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres “vazios” a que o mundo “encha” de conteúdos, não pode basear-se numa consciência especializada, mecanicisticamente compartimentada, mas nos homens como “corpos conscientes” e na consciência como consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo. (FREIRE, 1987, p. 67).
Alargando-se na ação transformadora de mundo, tece-se como utopia crítica,
pondo em pauta a esperança como princípio educativo. Gadotti (2005), contemporâneo de
Freire, estudioso do seu pensamento, efetiva um chamamento aos educadores populares para
não perderem de vista a dimensão utópica, tratada por Freire, de maneira mais específica, na
Pedagogia da Esperança. De certo modo, pode-se dizer que Freire trata a utopia no plano de
um princípio de trabalho, o princípio esperança. Lembra o estudioso da obra e vida de Freire
que
Não se pode entender o pensamento pedagógico de Paulo Freire deslocado de um projeto social e político. Por isso, não se pode ser freireano apenas cultivando suas idéias. Isso exige, sobretudo comprometer-se com a construção de um “outro mundo possível. (GADOTTI, 2005, p. 22).
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Fundamentando-se neste pressuposto, o autor conclama aos educadores que
buscam referenciar sua práxis na pedagogia libertadora, para atentarem na elaboração
necessária de uma espécie de contra narrativa, que deve comportar o saber constituído nas
lutas sociais populares, mas que, também, se ergue como ciência. Aqui aparece com um
aspecto precioso da epistemologia freireana – o da relação do saber da ciência com o saber
cotidiano que se gesta nas práticas sociais das lutas dos oprimidos e se concretiza como saber
de experiência feita. Assim pronuncia:
Paulo Freire colocou o oprimido no palco da história, pelo seu engajamento político e pela sua teoria como contra-narrativa ao discurso dos poderosos e privilegiados. Ele valorizava, além do saber científico elaborado, também o saber primeiro, o saber cotidiano. Sustentava que o aluno não registra em separado as significações instrutivas das significações educativas e cotidianas. Ao incorporar conhecimento, ele incorpora outras significações, tais como: como conhecer, como se produz e como a sociedade utiliza o conhecimento, enfim o saber cotidiano do seu grupo social. (GADOTTI, 2005, p. 22).
Carlos Rodrigues Brandão, educador popular que participou dos Movimentos
Culturais na década de1960, juntamente com Freire, propõe que se perceba o edifício
pedagógico da vida e obra de Paulo Freire como herança cultural, elaborando nesses termos
essa ideia do legado freireano:
Ele viveu a sua presença política, ele praticou a sua educação, ele escreveu sobre ela e seu destino, como uma espécie de criativa e crítica “mente de síntese” de um circulo de idéias e de ações à volta da cultura e da educação, de que estava empapado o seu mundo mais próximo de trabalho. De alguma maneira ele foi a melhor síntese de todos nós. Por isso, ontem como hoje, companheiros de caminho e herdeiros do horizonte de Paulo Freire, mais do que apenas compreendê-lo como um pensador da educação, nós nos reconhecemos nele. [...] Somos todos herdeiros da herança que criamos juntos e que ele compartilhou conosco, assumindo o encargo de pensá-la e escrevê-la com a melhor transparência. (BRANDÃO, 2002, p. 14-15).
A crença profunda no homem foi determinante para que Freire desenvolvesse uma
epistemologia da educação na perspectiva de que os oprimidos pudessem compreender seu
próprio valor como humano e desenvolvessem uma consciência crítica e criadora no processo
da sua humanização, sendo mesmo o da luta por transformação da realidade social e
educacional, em seu ato mínimo. Essa substância teórico-prática de Paulo Freire, constituindo-
se como uma cultura da educação, tenho encontrado nas falas de educadores cearenses que nos
54
cenários dos movimentos populares dos anos de 1960 se fizeram sujeitos dessa herança,
refazendo-a, tornando-a vida e viva. É sobre essa herança que, a seguir, me debruço.
55
4 EDUCAÇÃO POPULAR: HISTORICIDADE E CONCEPÇÕES
Continuo na luta por uma educação que, enquanto ato de
conhecimento, não apenas se centre no ensino dos conteúdos, mas, que desafie o educando a aventurar-se no exercício de
não só falar da mudança do mundo, mas de com ela realmente comprometer-se. (PAULO FREIRE).
Neste capítulo, fazemos uma retrospectiva histórica da trajetória da Educação
Popular no Brasil, levantando seus marcos teóricos. Para tanto, discuto as concepções que
nortearam as ações dos movimentos populares no contexto histórico dos anos sob estudo,
1960, e situo as correntes de pensamento que constituem marcos da educação popular.
A literatura na área demonstra que as contribuições do pensamento freireano foram
determinantes para o desenvolvimento e fortalecimento da práxis de educação popular no
Brasil e, em especial, no Nordeste, pela opção epistemológica comprometida com os processos
de libertação, politização e emancipação das classes populares baseadas em uma práxis de
caráter transformador e dialógico, em que a alfabetização-conscientização se vinculava à
experiência nos movimentos de cultura popular.
4.1 Incursão histórica: o percurso pelas trilhas da educação popular no Brasil
Em que momento da história educacional se pode situar a origem da educação
popular no Brasil? São muitos os pontos de partida para refletir-se sobre essa indagação. Ora
eles se distanciam ora se cruzam e se encontram. Existem entre esses pontos de partida
interseções e, também, divergências que, certamente, não serão dirimidas nesta investigação.
Inicio, então, nos referenciando em Carlos Rodrigues Brandão, teórico que ao
longo de sua trajetória de educador popular estudou e atuou na área, e cuja vida e trabalho
educacional estão vinculados a Paulo Freire.
Em seu livro “O Que é Educação Popular?” ao discutir a origem da Educação
Popular, Brandão (1983) retorna a um tempo histórico bem longínquo, para situá-la no
processo geral de construção do saber. A princípio, o educador interroga-se como teria sido a
construção do saber antes de as populações dominarem a escrita. Nesta busca, o autor diz que “
[...] não ficaram marcas e tudo que os investigadores encontram são sinais efêmeros, de que
constroem suposições.” (BRANDÃO, 1983, p. 6).
Nesse enquadramento teórico, Brandão (1983) mostra como sua reflexão deriva
para outro ponto-chave: o que atenta para como o saber surge e circula. Para explicitar esse
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ponto, Brandão desenvolve uma discussão antropológica sobre a evolução do homem,
envolvendo desde os aspectos físicos, aos inteligíveis e afetivos para deslindar assim a
necessidade de formação de conhecimentos vinculados à vida e à produção simbólica das
culturas, em particular. E assim nos explicita:
Desprotegidos de força e armas do corpo para matar ou fugir, e, inicialmente, desprovidos de um saber necessário que pudesse passar de um corpo a outros, os pequenos seres humanos atravessaram longos períodos da vida convivendo em companhia de iguais no interior de grupos cada vez mais estáveis e, ao longo do tempo, cada vez mais complexos: bandos errantes, hordas, famílias, parentelas, clãs, aldeias, tribos, onde por sobre as tarefas de reprodução da vida física, os homens aprender a criar a vida simbólica. A criar um tipo absolutamente novo de trocas onde entre um ser e outro não há apenas eles e a natureza, mas também objetos – o produto do trabalho do homem sobre a natureza – sinais, símbolos, instituições e significados – o produto do homem sobre si mesmo – a cultura. (BRANDÃO, 1983, p. 7).
O autor em foco, de certa forma, recorre à Antropologia para possibilitar a
compreensão de que foi com base nas necessidades próprias do homem, transformando seu
fazer em cultura, compreendida como modelo de direção do agregado social, como se está a
ver, que ocorreram as aprendizagens humanas. Sendo assim, continua o autor:
Como ensinar-e-aprender torna-se inevitável para que os grupos humanos sobrevivam agora e através do tempo, é necessário que se criem situações onde o trabalho e a convivência sejam também momentos de circulação do saber. Entre mundos e homens muito remotos, onde sequer emergira ainda a nossa espécie – o homo sapiens sapiens – este é o primeiro sentido em que é possível falar de educação e de educação popular. As primeiras situações em que a convivência estável e a comunicação simbólica transferem intencionalmente tipos e modos de saber necessários à reprodução da vida individual e coletiva. (BRANDÃO, 1983, p. 9-10).
Nesse contexto reflexivo, Brandão (1983, p. 9-10) focaliza o trabalho produtivo
humano e lembra:
Enquanto o trabalho produtivo não se dividiu socialmente e um poder comunitário não se separou da vida social, também o saber necessário não teria existido separado da própria. Fora alguns poucos especialistas de artes e ofícios, como os da religião primitiva, em algumas tribos, com pequenas diferenças todos sabiam tudo e entre si se ensinavam-e-aprendiam, seja na rotina do trabalho, seja durante raros ritos onde, solenes e sagrados, os homens falavam aos deuses para, na verdade, ensinarem a si próprios quem eram eles [...]. Esta foi uma primeira educação popular.
Somente um teórico e educador popular comprometido com a história próxima da
realidade humana seria capaz de um retorno tão longínquo com o objetivo precípuo de
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identificar a educação popular em sua origem, como um saber situado no trabalho, na
espiritualidade e na vida de comunidades tribais.
Se com Brandão foi necessário um longo retorno à história, dou então um longo
salto para que situemos no Brasil-Colônia, onde me reporto, neste cenário, a experiência de
ensino das primeiras letras aos adolescentes e adultos, ministrado pelos Jesuítas, ou seja: a
educação chamada de catequese, que trouxe as contradições do movimento colonialista.
Estariam, então, as raízes históricas da educação popular no Brasil fincadas no
período da colonização? Fernando de Azevedo assim supõe, quando se refere ao trabalho
pedagógico dos primeiros missionários no Brasil. E mais: associa o ensino escolar que os
Jesuítas deram a crianças indígenas, mestiças e brancas como o embrião de uma educação
popular no País:
Atraindo os meninos índios às suas casas ou indo-lhes ao encontro nas aldeias; associando numa mesma comunidade escolar, filhos de nativos e de reinóis – brancos, índios e mestiços – e procurando na educação dos filhos conquistar e reeducar os pais, os jesuítas não estavam servindo apenas à obrada catequese, mas lançavam as bases da educação popular. (AZEVEDO, 1987, p. 15).
Beisiegel (1974), por sua vez, situa historicamente a educação popular no Brasil,
desde as primeiras tentativas do ensino primário para todos os cidadãos. Segundo ele,
As ideias a respeito da educação de todos os cidadãos e as suas manifestações nos trabalhos dos constituintes em 1823, na constituição de 1824 e, logo depois, nas discussões que resultaram na Lei de 15 de Outubro de 1827, na verdade nada mais representam do que a dimensão educacional das formulações liberais que prevalecem no país nesse período. As razões da inclusão destes temas da educação popular nos debates e nos textos legais da época e, principalmente, o limitado alcance das primeiras tentativas de instrução do povo, por isso mesmo só se esclarecem mediante a análise dos significados e das limitações do liberalismo em suas origens e durante o seu florescimento no Brasil. (BEISIEGEL, 1974, p. 35).
O autor, ao discutir os primórdios da instrução do povo na legislação brasileira,
considera que,
Uma vez inscrita no projeto de constituição de 1823, na Constituição de 1824 e na Lei de 15 de 1827, as ideias adquirem maior legitimidade e, aos poucos, das hesitantes formulações iniciais, caminha-se para a franca necessidade de instrução do povo. (BEISIEGEL, 1974, p. 65).
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Chamando atenção ainda para a forma como na colonização se deixava a ação do
ensino elementar da criança e do adulto para a iniciativa privada, com a isenção total do
Estado, ele ensina que,
Afora a epopéia jesuítica dos primeiros tempos da colonização e também de alguns outros exemplos da ação privada, no ensino elementar de crianças, adolescentes e adultos a educação “popular” sempre se apresentou como uma tarefa da iniciativa privada. Por isso mesmo, tanto as suas origens quanto os momentos mais significativos de sua evolução, no país apenas se esclarecem quando analisadas no contexto das orientações globais da atuação do Estado. (BEISIEGEL, 1974, p. 65).
As análises do autor em foco sobre a educação popular possibilitam o
entendimento de que ela surge da necessidade de instrução para o povo, mas que, desde sua
origem, se inscreve na história da educação sua faceta de produto ideológico do contexto
político, socioeconômico e cultural da sociedade brasileira.
As referências citadas remetem ao entendimento de que a óptica de educação
popular que aparece no período colonial está associada à instrução elementar para o povo, fato
que também percebo ter sua dominância no início da República.
Fávero também contribui para se compreender a história da educação popular. Para
o autor, o entendimento de educação popular, na segunda metade do século XX, era de
educação primária para crianças pobres e classe média baixa, senão vejamos:
Até a segunda metade dos anos 1940, não há nenhuma ação muito intensa nem do Estado, nem da Igreja, nem de organizações da hoje chamada sociedade civil. E quando se falava em educação popular, estava-se falando em ensino primário para crianças das camadas populares: classe média baixa e população pobre. Basicamente, todos os textos que encontramos até meados dos anos 1940, falam em educação popular para crianças. (FÁVERO, 1983, p. 7).
Por sua vez, Fávero, ao sistematizar a memória das campanhas e movimentos de
educação popular, focaliza a educação de adultos, no período de 1947 a 1960, lembrando que
essa reflexão sobre instrução elementar e de educação de adultos, questões que desde aí se
articularam, só se tornaram visíveis como questão educacional no século XX, como se pode
conferir:
A educação de adultos e, particularmente, a alfabetização de adultos tem uma história longa no Brasil, embora somente seja assumida como um problema nacional a partir de meados dos anos de 1940. [...] Nos anos 1920-1930 há experiências importantes em educação de adultos. Dentre elas, destaca-se o ensino supletivo para adultos, organizado por Paschoal Lemme, durante a
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gestão de Anísio Teixeira na Secretaria de Instrução Pública do Distrito Federal, hoje município do Rio de Janeiro. (FÁVERO, 1983, p. 9).
O Censo Populacional de 1940 constatou que 56% da população maior de 15 anos
era de analfabetos – índices alarmantes para um país que tinha como uma das suas metas
fundamentais de crescimento econômico a aceleração da industrialização. Neste âmbito, a
ênfase dos discursos políticos passou a ser o analfabetismo, entendido como “chaga social”,
fato incompatível com o novo Brasil que se anunciava.
Embora se reconheça o fato de que todos os períodos históricos, do período
colonial à República, são importantes para a compreensão da historiografia da educação
popular no século XX, não é minha intenção, agora, dissertar sobre a densa retrospectiva
histórica desta temática, mas situá-la politicamente, partindo do pressuposto de que política e
história estão imbricadas nas ações de educação popular e que seria importante ver como esse
duplo se instaura e é vivenciado no Brasil.
Destarte, retomo essa trajetória histórica, tendo como referência agora os anos de
1950, em virtude de que os acontecimentos neles ocorridos vão informar o recorte do objeto de
estudo: a educação popular que se fez nos anos de 1960, pela leitura de seus protagonistas.
Com tal ação, poderemos capturar um momento fundamental da reflexão freireana sobre a
educação das camadas populares, em seus aspectos teórico-práticos.
A história da educação popular, então, no período de 1950 a 1960, está entrelaçada
à história das campanhas de alfabetização de adultos, aos movimentos de cultura popular e à
Teologia da Libertação, aspectos que amparam em certa medida a tessitura de ações do poder
público em confronto, quase sempre, com a atuação dos movimentos populares rurais e
urbanos.
As referências teórico-práticas na área de educação popular, pois, incidem na
compreensão de que as ações dos movimentos de cultura populares são marco significativo na
história da educação popular, por superarem as concepções de educação popular direcionadas
para a instrução elementar do povo, do modo como se vinha de conceber desde a colonização.
De cunho, não raro, preconceituoso e estigmatizador, os fundamentos destas
práticas, antes deste período de 1950, ressentiam-se de um caráter campanhista bastantemente
sazonal, quer dizer, com periodicidade instável, influenciada pelos interesses eleitoreiros.
As iniciativas do Estado, portanto, nessa perspectiva, se calcavam em projetos e
campanhas para atender às demandas da população por instrução elementar, de um modo que
se poderia caracterizar como sendo um dispositivo da “ideologia do favor”.
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O contexto econômico da época exigia a industrialização no País, realidade que
demandava uma formação mínima do operariado quanto ao domínio de rudimentos da leitura e
da escrita e de técnicas de trabalho voltadas à indústria. É neste contexto que surgem os cursos
técnicos, à época, na escola primária – objetivando ensinar os primeiros ofícios. Também, o
ensino noturno e o sistema supletivo foram gestados, desse modo, para atender à demanda da
população que, em virtude do contexto socioeconômico e cultural, não dispunha de condições
de frequentar a escola em sua oferta “regular”.
As iniciativas ora referidas integram-se às primeiras campanhas de alfabetização
de adultos, desenvolvidas no final dos anos 1940 e durante os anos 1950, referenciados na
ideia de educação que entendia o analfabetismo como “uma praga” que deveria ser erradicada,
porque representava uma vergonha nacional e um dos impedimentos para o desenvolvimento
socioeconômico de País.
Em contraposição ao sistema de educação para o “povo”, sedimentado na
pedagogia tradicional e na ideologia de fortalecimento do capitalismo, no final dos anos 1950
e início da década seguinte, desse século, intelectuais e educadores da classe média
questionaram o sistema de educação vigente e propuseram reflexões sobre a realidade
educacional brasileira.
O material reflexivo exposto aguçava as discussões em torno das oportunidades de
educação para as camadas populares. Defendia uma proposta de educação para o Brasil que
tivesse como base a cultura popular e a realidade do povo. Neste contexto, Paulo Freire se
torna um dos principais expoentes. Sua indignação com o sistema educacional brasileiro e a
“[...] crença na capacidade antológica do homem de ser mais [...]” (FREIRE, 1987, p. 32) são
determinantes para a problematização da realidade do País, na perspectiva de formulação de
uma proposta de educação como prática da liberdade.
Paiva (1984), pesquisadora que historicamente contribui na sistematização de
conhecimentos na área de educação popular, registra a participação de Freire nos movimentos
populares, ao se referir à educação popular no Brasil. Para ela,
Paulo Freire, juntamente com outros educadores, sugeriu: a revisão dos transplantes que agiram sobre o nosso sistema educativo, a organização de cursos que correspondessem à realidade existencial dos alunos, o desenvolvimento de um trabalho educativo com o Homem e não para o Homem, a criação de um grupo de estudo e de ação dentro do espírito de autogoverno, o desenvolvimento de uma mentalidade nova no educador, que deveria passar a sentir-se participante do trabalho de soerguimento do país; e, finalmente, a renovação dos métodos e processos educativos com a rejeição daqueles exclusivamente auditivos, substituindo o discurso pela discussão e
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utilizando as modernas técnicas de educação de grupos com a ajuda de recursos audiovisuais. (PAIVA, 1984, p. 210).
Boff (1989) situa com propriedade a menção a Paulo Freire, clarificando sua
posição epistemológica, que não pode reduzir sua contribuição à de um inventor de um
método, embora ele diga que essas questões são da maior importância.
[...] a ideia de Educação Popular vem infalivelmente associada ao nome de Paulo Freire. Não porque Paulo Freire tenha inventado não que “teoria” ou “método” de educação. Nada mais falso e nada mais contrário ao pensamento do próprio Paulo Freire. Mas não há dúvida de que este tem o mérito histórico de ter sido o que melhor interpretou e com mais felicidade formulou uma verdadeira pedagogia do oprimido, uma autêntica “educação libertadora” que se busca praticar em diferentes áreas de trabalho popular seja em nível sindical e partidário, seja nas mais diversas associações e movimentos sociais. (BOFF, 1989, p. 9).
Para Boff (1989), portanto, a ideia de Educação Popular em Paulo Freire parece
incluir ao mesmo tempo a consciência e o mundo, a palavra e o poder, o conhecimento e a
política, a teoria e a prática. Tem-se por consequente, a articulação rica, em Freire, entre as
dimensões da (inter)subjetividade e as que se pode denominar como sendo as que dão lugar
concretamente às realidades objetivas.
Streck, também, se refere a Freire como um marco histórico no campo da educação
popular brasileira. Destaca a intencionalidade revolucionária da Pedagogia freireana, sem
retirar o valor e a sua inserção no campo metodológico, mostrando, contudo, que esta
articulação, na obra e práxis de Freire, alcança dialogar com os substratos teóricos das
compreensões de educação. Lembra que, no Brasil:
[...] os movimentos de cultura popular, o método Paulo Freire e as lutas clandestinas no período das ditaduras militares são sem dúvida fatores que marcam a emergência de um campo que se pauta por determinados princípios e por uma perspectiva metodológica distinta a partir de onde começa a dialogar com outras compreensões de educação. (STRECK, 2006, p. 52).
Damasceno (2005), ao situar o campo da educação popular em suas demarcações,
mostra-o capaz de gerar todo um campo de saber político, além de um saber que implica a
assunção de sujeitos sociais como sujeitos de direitos. Em seus estudos, pronuncia-se a esse
respeito, ressaltando que “A educação popular vem historicamente assumindo um papel
fundamental, no sentido de garantir os direitos básicos das camadas desprivilegiadas.”
(DAMASCENO, 2005, p. 60). A autora enfatiza:
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Neste campo de estudo, o maior expoente e referência certamente é o grande educador Paulo Freire que, ao longo de sua trajetória, experimentou diversos modos de “quefazer” educativo, caracterizada por uma história reconhecidamente muito rica. Cabe destacar que, em nossa sociedade, tanto a prática quanto a reflexão concernente à educação popular têm contribuído significativamente para elucidar as questões relativas à ligação entre a educação e a democratização da sociedade, para a compreensão da cultura do povo, e apontando para a possibilidade de criação de relações sociais mais participativas e democráticas, quer dizer mudanças na estrutura de poder. (DAMASCENO, 2005, p. 61).
Essas discussões parecem gravitar à órbita de um centro evidente: reafirmam o
quão são vigorosas as contribuições teórico-práticas do educador Paulo Freire na construção
histórica do campo da educação popular. Não se pode deixar de assinalar esse campo da
educação popular como lugar teórico-prático de reflexão educacional, de onde se ressalta o
fato de essas semeaduras terem partido de um espaço e tempo específicos, o Nordeste
brasileiro, tendo chegado a se amplificarem até alcançarem reflexionar sobre a educação
brasileira como um todo, antes de influenciarem povos de outras culturas.
Parto, então, da relevância teórico-prática do pensamento freireano, considerando
sua referência no entendimento, ainda que plural, da sua reflexão sobre educação popular
como prática da liberdade que possibilita uma reflexão radical, rigorosa e profundamente
humana sobre a educação dos oprimidos na sociedade brasileira, em sua especificidade.
A história da educação popular nos anos de 1950/1960 está, como ora assinalo,
entrelaçada à história das campanhas de alfabetização de adultos, aos movimentos de cultura
popular e à Teologia da Libertação, aspectos que amparam, em certa medida, a tessitura de
ações do Poder Público em confronto, quase sempre, com a atuação dos movimentos populares
rurais e urbanos.
É articulando-se a uma inserção histórica na educação de adultos junto aos
movimentos de cultura popular e à Teologia da Libertação, no País, que o ideário freireano
alcança a magnitude vivida. E assim vão sendo vivenciadas nos movimentos culturais ações
que se tornaram os pilares para a elaboração de um projeto político-pedagógico calçado em
uma educação popular comprometida com a participação, a democracia, o diálogo e a
transformação da realidade socioeconômica dos oprimidos na sociedade de classes.
O que possibilita à educação popular ser um território de reinvenção do modo de
vida das camadas populares e, portanto, de transformação do mundo, parece ser o fato de estar
organicamente vinculada aos princípios da educação libertadora proposta por Paulo Freire
(1987), como se está a conferir.
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Ora, já no II Congresso Nacional de Educação de Adultos, em 1958, educadores
manifestaram distintas posições relacionadas à nova perspectiva educacional. Entre essas
concepções, destacava-se o pensamento de Paulo Freire, que conseguiu aglutinar produções
de ampla e significativa diversidade, entre seus adeptos, situando-se educadores, artistas,
intelectuais críticos de inserção social diversa, estudantes e sujeitos comunitários de todo o
País, que lutavam por uma educação popular que, para Beisiegel (1989, p. 15), deveria ser
aquela que “[...] preconizava a alfabetização e a conscientização de todos.”
Weffort (2005), ao referir-se ao contexto histórico no Brasil no período em que se
desenvolveu a experiência de alfabetização-conscientização, destacava o aspecto de
mobilização e participação social que sua reflexão-ação educacional instigava e alimentava. E,
como outros, evidenciava a articulação da educação com cultura:
O movimento de Educação Popular foi uma das numerosas formas adotadas no Brasil. É possível registrar numerosos procedimentos de natureza política, social e cultural de mobilização e de conscientização das massas, a partir da crescente participação popular por meio do voto [...] até o movimento de cultura organizado pelos estudantes. (WEFFORT, 2005, p. 19).
Se Freire constituiu uma história da educação popular ligada aos interesses próprios
das camadas populares, história esta não desvinculada dos opressores, mas que se constrói com
origem na luta política e do embate constantemente travado entre oprimidos e opressores, disso
deriva uma visão da necessária vinculação teoria e prática em educação.
Em seu conceito de práxis, Freire (2003) mostra que são dialéticos os processos de
educação e, em sua historicidade mutantes; também aponta que, se invertida essa práxis,
criando realidades opressivas, é da natureza humana buscar transformar as condições que
produzem a opressão. Com suas palavras,
A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são produtores desta realidade e se esta, na “inversão da práxis”, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens. (FREIRE, 2003, p. 37).
Nessa perspectiva, o autor adentra a compreensão filosófica apontando a
inconclusão humana como pressuposto e a tarefa dialética de transformação pessoal e social,
ínsitas na ação histórica e coletiva dos homens sob a forma de intervenção no mundo.
O aspecto freireano da intervenção humana nas realidades opressivas se tece no
concerto dialógico que insere as redes de conversações na ação concreta de mudar o mundo.
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Fávero, já observava este aspecto, ao rememorar a história dos movimentos de cultura popular,
argumentando que,
Dentre as formas de luta popular que surgiram naqueles anos de (1960), ou que neles conseguiram se fortalecer, uma delas se chamou cultura popular; e ela subordinava outra: a educação popular. Nesse campo, tudo se refez e tudo se imaginou criar ou recriar, a partir da conscientização e da politização – ou seja, da organização das classes populares. O que se pretendia? Transformar a cultura brasileira e, através dela, pelas mãos do povo, transformar a ordem das relações de poder e a própria vida do país. Os instrumentais? Círculos de cultura, centros de cultura, “praças de cultura”, teatro popular, rádio, cinema, música, literatura, televisão [...] sindicatos, ligas [...] com para/sobre o povo. Instrumentos que se convertiam em movimentos. (2009, p. 9)
O discurso de Fávero demonstra sua compreensão do pensamento de Freire, onde
se percebe a relação intrínseca entre as transformações da cultura brasileira e a mudança das
relações de poder, mediadas pelo construto freireano nomeado de conscientização – fenômeno
operado na ação para a liberdade. Nomeia Fávero os Círculos de Cultura, os Centros de
Cultura, as Praças de Cultura, o Teatro Popular, o Rádio, Cinema, Música, Literatura,
Televisão [...] Sindicatos, Ligas [...] como instrumentos pedagógicos que se convertiam em
movimentos com/ para/sobre o povo. E é mediada por uma perspectiva da educação popular
onde se evidencia a relação entre educação popular e cultura popular, que, aponta o autor, se
desenvolveu a perspectiva teórico-prática freireana, no seio mesmo da sociedade brasileira.
É que, nos inícios dos anos 1960, surgem no Nordeste os movimentos voltados para
a promoção da cultura popular, dos quais Freire participou. É possível depreender dessas
reflexões a noção de que a educação popular é gestada, essencialmente, da produção e saber
dos movimentos populares – movimentos sociais –, e dessa matriz, parte para dialogar em
diversos campos onde o tem curso, em particular, uma epistemologia da experiência. Quando
Freire fundou e participou do Movimento de Cultura Popular do Recife (MCP), que pretendia
não apenas levar a cultura ao povo, mas, principalmente, resgatar nas pessoas o seu potencial
criador e transformador de realidades, vivenciava ações que reafirmavam, na prática, a ideia de
que todo ser humano produz cultura na sua relação com o outro e com o mundo.
Brandão (2001), ao analisar o movimento de cultura popular, destaca sua
importância para as camadas populares, representada com a participação de vários segmentos
da sociedade civil. E observa ter havido
[...] um movimento que reuniu professores e artistas. Ele não existia só nas escolas e nem era um trabalho só da educação [...] as pessoas que faziam o MCP (Movimento de Cultura Popular) queriam que tudo o que é bom, e está
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nas palavras, nas cantigas, e nas ideias que as pessoas criam, fosse levado para a gente pobre também. (BRANDÃO, 2001, p. 35).
É inegável, pois, que a educação popular pode ser considerada uma corrente de
pensamento e de resistência cultural desenvolvida na América Latina, surgida na emergência
de várias formas de organização e lutas populares. Desde seu nascedouro, se afirma como
instrumento de luta contra a hegemonia do capitalismo, de crítica ao colonialismo cultural e
educacional, se pronuncia como propositivo com relação à urgência da democracia e a negação
da inexorabilidade do futuro. Afirmando existir o “inédito viável” e a importância do diálogo
em uma epistemologia centrada na experiência popular, mostra o autoritarismo das elites na
história do País e na da educação, propondo novo padrão de relação com o outro e com o saber
em educação. É dentro dessas balizas que, no Brasil, a Educação Popular se desenvolve em um
contexto de efervescência dos movimentos populares, que fundamentam suas lutas na cultura
popular e nos saberes da experiência do povo.
Neste percurso teórico-prático, que também se pode qualificar como um caminho
de uma vida de militância política em educação, Freire critica o que nomeia como “educação
bancária” e propõe uma educação dialógica, que se constitua como ação cultural para a
liberdade – como escrevi, instrumento de transformação da opressão às camadas populares e
de esperança no potencial humano para a reversão do quadro perverso de estratificação social.
A educação popular, pois, situa-se no campo da emancipação humana, não dicotomizando as
dimensões técnica e política da humana, bem como a afetivo e a espiritual, mas situando-as no
campo propositivo de um “esperançar”, como ele diz. Concretiza-se, por conseguinte em
procedência numa mobilização organizada e intencional, calcada na participação ativa dos
agentes sociais em seu processo histórico e dialético de libertação.
Se a formação humana é processo de “ser mais”, tanto no aspecto da humanização
quanto no da politização, também é devir histórico de sujeitos coletivos, de tal modo que a
educação popular, alimentada dessa vertente freireana, se referenda, também, nas referências
que a constituem como projeto comprometido com a transformação social e política dos
oprimidos.
Este projeto possibilitou a intelectuais, educadores, estudantes e líderes sindicais a
esperança de que as camadas populares tivessem uma educação comprometida com o domínio
da leitura e da escrita como instrumento de compreensão crítica da realidade. É no âmbito de
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utopias 15, efervescência política e cultural vivenciados no período histórico abrangendo o
início dos anos 1960 até março de 1964, que se desenvolvem ações de educação popular
ligadas aos movimentos de cultura popular no Nordeste. Inicialmente, foram situadas no
Recife, onde Freire sistematizou e experimentou o sistema de alfabetização-conscientização,
quando coordenava o Serviço de Extensão da Universidade de Pernambuco. O próprio mestre
nos fala como foi a trajetória da Educação Popular nos movimentos de cultura popular.
Vejamos:
Esse processo não surgiu do nada, ele vinha sendo gestado há um certo tempo. Há mais de 15 anos vínhamos acumulando experiências no campo da educação de adultos, em áreas proletárias e sub proletárias, urbanas e rurais. [...] Sempre confiávamos no povo. Sempre rejeitávamos fórmulas doadas. Sempre acreditávamos que tínhamos algo a permutar com ele nunca exclusivamente a oferecer-lhe. Experimentamos métodos, técnicas, processos de comunicação. Superamos procedimentos. Nunca, porém, abandonamos a convicção que sempre tivemos de que só nas bases populares, e com elas, poderemos realizar algo sério e autêntico para elas. (FREIRE, 1980, p. 102).
A crença nas utopias de transformações sociais e a ação-reflexão de Freire
acalentaram sonhos de uma sociedade igualitária e a renovação da esperança na força das lutas
dos movimentos populares. Assim, começaram a se formar grupos, equipes, organizações de
educadores, artistas, militantes políticos, estudantes e outros profissionais que, em pouco
tempo, se aglutinaram em movimentos denominados de “cultura popular”.
A organização desses movimentos possibilitou ações de educação popular que se
concretizaram em processos educativos, no âmbito dos quais aprendizagem da leitura e da
escrita era vivenciada como instrumento de compreensão da realidade política e social por
trabalhadores do campo e da cidade, os quais lutavam pela formação de um projeto de
transformação social. Esta foi a realidade em que foram gestadas as ações dos movimentos de
cultura popular no Nordeste. Procedo, então, a uma síntese do que representa cada um desses
movimentos na historia da educação popular no Nordeste.
O Movimento de Cultura Popular (MCP), no Recife; que teve raízes na concepção
de que o trabalho educativo deveria ser “com o homem e não para o homem”, concepção esta
defendida pelos educadores pernambucanos no II Congresso Nacional de Educação de
Adultos, em 1958, no Rio de Janeiro. Esta foi, sem dúvida, a ideia propulsora para a gestação
15Na concepção freireana, utopia é entendida como o sonho possível, que ajuda a todos a compreender
o mundo como realidade inacabada (FREIRE; NOGUEIRA, 1989). Utopia não é idealismo, é a dialetização dos atos de anunciar e denunciar, o ato de denunciar a estrutura desumanizante e anunciar a estrutura humanizante.
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do Movimento de Cultura Popular no Recife, culminando com sua criação, em 1960, como um
movimento da sociedade civil, o qual contou com o apoio da Prefeitura Municipal de Recife, à
época administrada por Miguel Arraes. Segundo Góes (1991, p. 51), o principal objetivo do
MCP foi “[...] conscientizar as massas [...] e incorporar à sociedade os milhares de proletários
e marginais do Recife.” O autor lembra também que,
Os meios informais da educação parecem ser o cerne do MCP, e desses a expressão mais eloquente são as praças de cultura que, com parques infantis, bibliotecas, auditório para teatro, teleclube, cineclube, debates concha acústica – trabalho junto a associações de bairros, centros esportivos e recreativos grupos escolares, templos etc. – constituem em dado inovador da maior importância. (GÓES, 1991, p. 52).
O MCP foi também o berço onde se consolidaram as experiências de alfabetização
e conscientização que vinham sendo gestadas por Paulo Freire, as quais, posteriormente, se
expandiram para os Estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte.
A campanha “De Pé no chão também se aprende a ler” é considerada como
importante movimento de educação popular desenvolvido pela Prefeitura de Natal-RN, que
funcionou do início de 1961 a março de 1964, período em que as camadas populares se
organizavam em defesa de uma educação fundamentada na realidade dos oprimidos, na
sociedade de classes. Consoante Germano (1998), a campanha nascia da reivindicação
popular. Neste sentido, frisa que,
A Campanha de Pé no chão também se aprende a ler, representa a resposta de um povo que se levantava par lutar contra a miséria, contra a espoliação [...]; por uma escola consciente crítica e participativa. O objetivo imediato da campanha era o de erradicar o analfabetismo. Desde seu início, a campanha recebeu o apoio de setores intelectuais e dos meios de comunicação. (GERMANO, 1998, p. 101-102).
No contexto das ações de educação popular no Nordeste, a experiência de
alfabetização e conscientização, desenvolvida em Angicos-Rio Grande do Norte, cidade natal
do então governador do Estado, Aluísio Alves, certamente, na época, foi considerada como a
experiência de maior significação no campo político e pedagógico em virtude da eficácia em
alfabetizar 300 homens e mulheres em “40 horas”. Tal ação possibilitou, assim, que o sistema
de alfabetização-conscientização de Paulo Freire ficasse conhecido em âmbito nacional e,
posteriormente, no contexto internacionalmente.
Lobo (2013), jornalista que acompanhou a experiência de Angicos, rememora o
posicionamento de Freire quando da preparação da equipe de universitários que assumiram o
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processo de alfabetização. Insistia ele: “Vocês vão aprender tanto quanto ensinar e devem
ficar bem abertos para os ensinamentos do povo, porque ele é sábio.” (LOBO, 2013, p. 126).
Esta preocupação de Freire em relação à abertura que os universitários deveriam ter para
aprender com o povo reafirma a valorização dos saberes das camadas populares, como ponto
de partida para a construção do conhecimento.
O autor em foco relata outro momento significativo da experiência de Angicos,
que ocorreu por ocasião da solenidade de encerramento das “40 horas, onde estava presente
João Goulart, então Presidente da República. Os cerimonias da Presidência da República e do
Governo do Estado decidiram que não haveria fala de alfabetizado, no entanto, um dos
alfabetizados desobedeceu a ordem:
O Sr. Antônio se levantou depois dos discursos e pediu a palavra a Sua Majestade. João riu. E ouviu um agradecimento, porque, de todos os presidentes da República, só Getúlio Vargas havia estado no Nordeste, na época da fome da barriga. João Goulart foi o primeiro a ir, na época da fome na cabeça. Foi o mais aplaudido. (LOBO, 2013, p. 128).
A atitude de desobediência do alfabetizado confirma a coragem e ousadia do povo
nordestino, que não desiste facilmente. E demonstra, ainda, que a importância da participação
e do “dizer a palavra”, defendido por Freire no processo de alfabetização, se concretizou na
fala do Sr. Antônio.
O movimento de cultura popular inspirou, igualmente, o surgimento da Campanha
de Educação Popular da Paraíba (CEPLAR), em 1963. Criada por estudantes universitários e
profissionais recém-formados, a campanha inicialmente funcionou em João Pessoa e,
posteriormente, se expandiu para o Estado da Paraíba. A CEPLAR foi um dos movimentos de
educação popular no Nordeste empenhados na alfabetização da população adulta e que
referenciou sua prática político-pedagógica no sistema de alfabetização-conscientização
freireano. A campanha foi assessorada pelo próprio Paulo Freire, que teve apoio de sua equipe
do Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife.
Outra iniciativa, o Movimento de Educação de Base (MEB) foi, sem dúvida, uma
ação de educação popular que possibilitou importante contribuição no campo da alfabetização
de adultos e da organização comunitária no Brasil. Criado em 1961, com suporte nos
entendimentos entre o episcopado brasileiro e a Presidência da República, inicialmente, atuou
no Norte, Nordeste e Centro-Oeste, regiões brasileiras consideradas, naquele contexto
socioeconômico, como subdesenvolvidas. Tinha como objetivo contribuir no processo de
alfabetização de adultos, mediante a utilização da rede de emissoras católicas. E promoveu,
69
dessa forma, a valorização do ser humano e o desenvolvimento das comunidades. Góes (1991,
p. 54), em estudos sobre o MEB, frisa que esse movimento foi
Fruto da experiência acumulada por parte da Igreja Católica a partir do final dos anos 50, cujo marco mais importante foi a expansão do SAR (Serviço de Assistência Rural) do Rio Grande do Norte, com as escolas radiofônicas criadas por Dom Eugênio Sales.
Wanderley (1984), em seus estudos sobre o MEB, remete ao entendimento de
que, entre os movimentos que se inseriam no contexto da cultura popular, somente o MEB
consegue sobreviver no período pós-1964, embora paulatinamente tenha redimensionado as
suas ações.
Os resultados das experiências de educação popular no Nordeste chamam a
atenção de Paulo de Tarso, à época ministro da Educação, no Governo de João Goulart, que
convida Freire para assessorar a elaboração de uma proposta nacional de alfabetização de
adultos. E, assim, em 1964, nasce o Plano Nacional de Alfabetização. Este plano, em sua fase
inicial, desenvolveu experiência-piloto em Ceilândia, cidade-satélite de Brasília, no Rio de
Janeiro e em São Paulo. Também houve toda a preparação para implantação do Plano
Nacional de Alfabetização em todas as regiões do Brasil, inclusive a formação de dois mil
alfabetizadores para assumirem o processo de alfabetização. As ações do PNA foram
interrompidas com o “golpe militar” de 1964, quando Paulo Freire foi preso e exilado.
Iniciava-se, então, uma fase de muita repressão aos movimentos de cultura popular: muitos
líderes foram presos e os que conseguiram fugir passaram a viver na clandestinidade.
4.2 Arqueologia das ações de educação popular no Ceará, nos anos de 1960
Para ampliarmos a compreensão sobre o objeto de estudo desta investigação,
entendo ser importante um resgate das ações de educação popular ocorridas no Ceará. Sou
consciente, no entanto, do desafio que é resgatar, nem que seja com base em fragmentos
narrados pelos sujeitos da pesquisa, a história da educação popular no Ceará, nos anos de
1960, recorte histórico desta pesquisa. Esta preocupação tem justificativa: a escassez de fontes
bibliográficas e documentais que retratem este período histórico. Tal fato ocorre porque, como
sabido, nos anos de 1960 foram marcados por um contexto de repressão política que exigiu o
silenciamento das vozes dos agentes sociais e o apagamento de registros significativos da
história coletiva, especialmente, daquela que registrou os processos de organização e lutas das
camadas populares em prol de uma educação libertadora junto aos trabalhadores. Sendo assim,
70
o resgate histórico das ações de educação popular desenvolvidas no Ceará, neste período, se
dará com base no que foi possível registrar nas lembranças narradas pelos sujeitos desta
investigação que, sem dúvida alguma, também foram formuladores desta história.
Inicio, então, indagando sobre a existência de ações de educação popular no Ceará
na década de 1960. Quais foram os movimentos de alfabetização de adultos que ocorreram no
início da década? Em que medida os educadores populares deste Estado foram conquistados e
contagiados pela crença na força da organização dos movimentos populares? De que modo os
educadores cearenses foram influenciados pelos movimentos de cultura popular do Recife?
Para aproximar-me das respostas a estas indagações, recorro à memória dos sujeitos
desta investigação, os quais, em seus relatos, demonstram que os ventos da utopia e da
esperança que sopraram no Nordeste brasileiro, vindos do Recife, chegaram a embalar os
sonhos de educadores cearenses engajados em contribuir com a educação das camadas
populares, no sentido de intervir nos altos índices de analfabetismo no Ceará, como também,
trabalhar na perspectiva de elevação do nível de compreensão da realidade social, política e
cultural em que vivia a classe trabalhadora cearense.
As narrativas dos sujeitos desta pesquisa registram as experiências de alfabetização
de adultos por eles vivenciadas no início dos anos de 1960, as quais foram: o Movimento de
Educação de Base (MEB), que atuou em Fortaleza e nas regiões de Sobral, Crato e Limoeiro
do Norte; outra experiência, que ocorreu somente em Fortaleza, no bairro Pirambu, ligada à
Congregação Coração de Maria, filiada à Igreja Católica e, ainda, a experiência do bairro da
Piedade, em Fortaleza, vinculada à campanha de alfabetização adultos (CAA), do Governo
Federal 16. Segundo os educadores populares que nelas atuaram, o pensamento freireano e,
mais especificamente, o sistema de alfabetização e conscientização de Paulo Freire, foi a
referência principal dessas experiências.
No Ceará, o MEB começou a funcionar em 1961 com uma equipe de coordenação
estadual que acompanhava o trabalho das regiões – Sobral, Crato e Limoeiro do Norte. A
coordenadora pedagógica do MEB – Ceará explica de forma detalhada como funcionava o
trabalho educativo:
O trabalho era feito através de escolas radiofônicas. Tratava-se de um sistema rádio-educativo, que compreendia uma rede de recepção organizada das emissoras radiofônica. Para a implantação de uma unidade de uma recepção organizada era necessário: o estudo da área; a escolha do monitor; a
16As experiências citadas são narradas no 5º capítulo: A práxis freireana: narrativas de educadores
populares cearenses.
71
instalação de um receptor cativo, alimentado a pilhas, ajustado à frequência da emissão que transmitia os programas e por fim, a escolha do local de funcionamento da escola. O monitor voluntário, reunido com os alunos e escutava a professora locutora que ficava dando todas as orientações para ele durante o tempo de emissão da aula. As informações eram intercaladas com um fundo musical, ocasião em que os monitores aproveitavam para atender aos alunos individualmente ou discutir a temática sugerida pela comunidade e/ou pela professora locutora. (TESSER, 2007, p. 88).
A seguir, damos voz a uma das primeiras educadoras do bairro Pirambu, para que
ela própria situe sua prática em alfabetização de adultos na comunidade.
Cheguei em Fortaleza em 1959, eu vim na vida religiosa. Aí foi a reforma no Pirambu, com quatro meses que estava aqui, fui para lá com Lindalva Miranda que era professora antiga. [...]. Entrei na comunidade em maio de 1959 e sai de lá em agosto de 85. Padre Hélio Campos esteve no Pirambu e descobriu que tinha lugar na congregação, então ele me levou para lá [...]. Fizemos um galpão muito grande e neste galpão a gente tinha a escola durante o dia para criança e a noite para os adultos. (F. C, entrevista, novembro de 2012).
A Campanha de Educação de Adolescentes e adultos (CEAA) é considerada como
a primeira iniciativa do Governo Federal para intervir nos altos índices de analfabetismo no
Brasil. O objetivo era levar a “Educação de Base” a todos os iletrados do País, nas áreas
urbanas e rurais. Para execução da Campanha, o Ministério da Educação e Saúde criou o
Serviço de Educação de Adultos. A CEAA funcionou no período de 1947 a 1963.
Vejamos, então, como a educadora se posiciona sobre o contexto político-social
em que vivenciou sua primeira experiência na área de educação de adultos no Ceará.
Minha primeira experiência de alfabetização [...], nasce no bojo dos movimentos de pré 1964, é preciso entender que havia todo um contexto, digamos social e político de busca pela mudança, voltado para a mudança social, inclusive mediante as chamadas reformas de base etc. que é importante ser situado, mas enfim, naquele momento no início dos anos sessenta (estava ainda terminando o ginásio) quando começou uma experiência com alfabetização de adultos no Ceará. [...] essa experiência era voltada para educação principalmente dos adultos, que não tinham tido oportunidade de passar pela escola e também naquele momento [...] havia a preocupação dos políticos em ampliar o eleitorado, naquele tempo analfabeto não podia votar. No Ceará essa experiência era coordenada pela Campanha de Alfabetização de Adolescentes e Adultos (CEAA), que me parece era ligada ao MEC (M. N. D, entrevista outubro de 2012).
72
Continuando, a educadora rememora a forma como ingressou na Campanha de
Alfabetização de Adolescentes e Adultos (CEAA): “O prof. Lauro Oliveira Lima 17 foi até
nossa turma que estava concluindo o ginásio no Colégio Justiniano de Serpa e nos convidou
para ser monitora de educação de adultos. Então nós passamos a participar dessa experiência”.
Evoca, também, as responsabilidades assumidas para iniciar o trabalho de
alfabetização e de como sua experiência de trabalho comunitário foi importante.
A gente tinha que procurar um local, os alunos etc. Já integrava o grupo de jovens na paróquia onde morava, fazia uns trabalhos comunitários ligados à Igreja da Piedade na favela Frei Marcelino, de sorte que, assim, adquiri experiência. Visitava as famílias de uma favela. Foi quando apareceu a possibilidade de trabalhar com educação de adultos. Como já conhecia as famílias falei para dar aula à noite na Escola Pe. Diniz do Circulo Operário, que ficava próximo. Fiz a matrícula de 30 alunos, quase todos operários da construção civil. Então nós passamos a participar dessa experiência, um trabalho por demais interessante. (M. N. D, entrevista outubro de 2012).
E continua sua narrativa, identificando quem eram os homens e as mulheres que
participaram deste trabalho de alfabetização.
Essa experiência eu ainda lembro, sou capaz de fechar os olhos e ver meus alunos, tinham poucas mulheres (domésticas), a maioria era composta por homens, quase todos trabalhadores da construção civil, normalmente servente de obras e pedreiros, eram homens calejados, de rostos marcados pelo sol, pela dureza da vida, mas, pessoas que queriam aprender, pessoas que tinham a ânsia para poder aprender e nós então nos encantamos com aquela experiência. (M. N. D, entrevista outubro de 2012).
Vejamos, também, a riqueza de detalhes quando a educadora rememora sua vivência com
a alfabetização como os adultos.
Eu lembro que havia o pessoal que fazia supervisão que naturalmente já conhecia o trabalho de Paulo Freire, pois ele já tinha estado aqui e na verdade devia ter participado de algum tipo de formação, então a supervisão ficava encantada com o trabalho que era realizado e comentava - como essa menina, que não teve nenhuma formação pode fazer este trabalho tão bom, consegue ter uma intuição pedagógica tão forte (no ano seguinte foi que eu entrei no curso normal). Realmente era um trabalho muito interessante, eles se mostravam muitíssimo interessados e eu conseguia já naquela época aliar a
17 Lauro de Oliveira Lima, natural de Limoeiro de Norte Ceará, professor com uma trajetória de vida
dedicada à educação brasileira. Estudioso da psicogênese e autor de obras neste campo. Foi o primeiro delegado do MEC no Ceará e o responsável pela reforma do ensino normal do Estado do Ceará. Disseminou as ideias de Freire e implantou a campanha nacional de erradicação de analfabetismo no Estado. Em 1964, foi preso, cassado, torturado e aposentado compulsoriamente quando ocupava a direção do Ensino Secundário em Brasília época em que trabalhava com Darci Ribeiro, Anísio Teixeira e Paulo Freire.
73
alfabetização propriamente dita com noções de matemática, visto que quase todos eram ligados a construção civil e eu imaginava pela minha experiência de vida que eles precisavam também de noções de matemática, embora não necessariamente isso fizesse parte do programa, mas eu já introduzia noções de matemática, porque naquela época Piaget já era bastante divulgado pelo Lauro O. Lima. (M. N. D, entrevista outubro de 2012).
Continuando a narrativa, ela explicita como o pensamento de Paulo Freire
influenciava a sua práxis.
[...] havia também a ideia de conscientização de que essas pessoas pudessem conforme Paulo Freire passar da fase de transição como ele chama, da fase de consciência mítica para a consciência crítica. (M. N. D, entrevista outubro de 2012).
As fontes que possibilitaram essa arqueologia das ações de educação popular que
constituíram nosso objeto de estudo foram as narrativas dos sujeitos da investigação.
Possivelmente, existiram outras experiências no Ceará, na década em estudo , entretanto, a
dificuldade de localizar fonte documental sobre outras ações de educação popular,
desenvolvidas na época, limitaram a elaboração desta arqueologia histórica.
4.3 Revisita as concepções e práticas de educação popular
A discussão sobre as concepções que subsidiam e norteiam as práticas de educação
popular, em geral, são sistematizadas considerando as ideologias que predominam em cada
momento histórico da educação brasileira. Assim pressupondo, a compreensão é de que se
vinculam diretamente ao tipo de homem que se pretende formar e em que espécie de sociedade
o homem deve se adaptar. No caso do Brasil, os instrumentos ideológicos que subsidiam a
educação se constituem na perspectiva de formar um homem, alienado de sua realidade
socioeconômica, política e cultural, passivo, sem sonhos, sem esperança e, principalmente,
desvinculado de um projeto político-pedagógico coletivo de intervenção na realidade da
sociedade de classes. Por consequência, a concepção que se perpetua historicamente é aquela
de que a educação para o povo é uma doação das elites e, por conseguinte, deve se limitar à
instrução elementar, à escola primária, visão que subsidiou as práticas de educação popular no
século XX.
74
Corroborando essa compreensão, Pereira e Pereira (2010), ao situarem
politicamente a Educação popular no Brasil, trazem como marco a influência das ideias
democráticas no mundo desde o final da II Guerra Mundial.
[...] a conjuntura internacional interferiu nas mobilizações nacionais da época que acabaram dando ênfase ao movimento pela educação das massas. Na medida em que se buscava o progresso social e econômico da nação, tornava-se necessário pensar em uma política de Educação de base, na qual, além da alfabetização, a população tivesse acesso a um ajustamento social, ou seja, buscava-se a adaptação dos desfavorecidos ao mundo moderno. A atenção principal voltava-se para o homem do campo, que até então só conhecia uma experiência basicamente rural. Era preciso que ele tivesse acesso a noções de leitura, escrita, convivência social e até mesmo de higiene, para poder conviver com as exigências da vida moderna, tornando-se, assim, mais apto para a produção e até mesmo para a defesa da nação. Naquele momento viveu-se no Brasil, formal e constitucionalmente, uma democracia. Aliás, foi muito cedo que as elites brasileiras, [...] aprenderam a lidar com os mecanismos formais da democracia liberal. O populismo é uma dessas estratégias, ou melhor, um mecanismo real de controle de todas as instâncias de democracia pelos membros das camadas dominantes, ainda que, diferentemente dos períodos anteriores, o povo tivesse o direito formal de participar. (PEREIRA; PEREIRA, 2010, p. 75).
O Brasil vive o contexto das reformas de base, realidade política e econômica que
vai exercer influência direta na educação do ”povo”. Para o cumprimento de tais ações, seria
necessária uma educação que instrumentalizasse a pessoa a se adaptar às necessidades de
instrução elementar no País. Assim,
A educação de base era entendida como o processo educativo destinado a proporcionar a cada indivíduo os instrumentos indispensáveis ao domínio da cultura de seu tempo, em técnicas que facilitassem o acesso a essa cultura − como a leitura a escrita, a aritmética elementar, noções de ciências, de vida social, de civismo, de higiene − e com as quais, segundo suas capacidades, cada homem pudesse desenvolver-se e procurar melhor seu ajustamento social. (BEISIEGEL, 1989, p. 54).
Foi essa concepção de educação que direcionou as iniciativas governamentais nas
primeiras décadas do século XX. Surgem, então, os cursos técnicos para ensinar os primeiros
ofícios, à época, na escola primária e, também, o ensino noturno e o sistema supletivo para
atender a demanda da população que, em virtude do contexto socioeconômico e cultural, não
dispunha de condições de frequentar a escola em sua oferta “regular”. Essas iniciativas
integram-se às primeiras campanhas de alfabetização de adultos desenvolvidas no final dos
anos de 1940 e durante os de 1950, as quais, como vimos, se referenciam na concepção de
educação que entendia o analfabetismo como “uma praga” que deveria ser erradicada porque,
75
como já expressei, representava uma vergonha nacional e um dos impedimentos para o
desenvolvimento socioeconômico de País.
Contrapostos a essa concepção de educação para o “povo”, sedimentada na
pedagogia tradicional e na ideologia de fortalecimento do capitalismo, no final dos anos de
1950, e início da década seguinte, intelectuais e educadores da classe média questionam o
sistema de educação vigente e propõem reflexões sobre a realidade educacional brasileira, as
quais vão aguçar/ampliar as discussões em torno das oportunidades de educação para as
camadas populares. Assim, Paulo Freire torna-se um dos principais expoentes. Sua indignação
com o sistema excludente da educação brasileira, bem como e a “crença na capacidade
ontológica do homem de ser mais”, são determinantes na problematização da realidade
educacional na perspectiva de desenvolver uma proposta de educação como prática da
liberdade. Para tanto, consoante Freire e Nogueira (1989, p. 60-61), seria necessário:
[...] criar formas de educação que não fossem domesticadoras da Cultura Popular. Tentava-se reinventar a escola: não haveria alunos silenciados, nem haveria gestos sufocados, nem haveria pessoas excluídas. Em resumo, não haveria pessoas analfabetizadas pela evasão escolar. [...] Não haveria deposito de conhecimento dentro da inteligência silenciada de educando. Ninguém seria considerado apenas carente, mas haveria um tipo de estudo que pedisse aos professores e alunos a participação e a criatividade. Educação não seria acúmulos de conhecimentos (60,61). Essa tentativa queria inovar o poder da escola burguesa, queria inovar o acesso ao conhecimento da ciência e da técnica.
A crítica de Freire aos pressupostos de educação e de escola fundamentados na
pedagogia tradicional é apoiada por intelectuais e educadores populares. Suas vozes ecoam em
vários recantos do Nordeste e do Brasil. Com efeito, Freire propõe um modo de educação em
que a cultura popular e a realidade do povo seriam os eixos propulsores da formulação do
saber popular. Para tanto, seria necessário repensar a concepção de cultura que, historicamente,
fundamentou as práticas educativas, a qual se sedimentava nos princípios da visão burguesa de
cultura, que, para a elite, estava vinculada a teatro, concertos musicais e cultura erudita,
enquanto que, para o povo, a cultura se transformava somente em sinônimo de folclore. Esta
em uma concepção equivocada, que desrespeitava a diversidade de saberes a permearam as
atividades culturais praticadas pela população brasileira.
76
Freire, em um diálogo com Nogueira sobre seu entendimento de cultura, assim se
posiciona:
Cultural entendida dentro de movimentos e relações sociais dos homens, [...] os gestos das pessoas se esforçando nos grupos e no trabalho. Cultura é o que dá sentido nas relações humanas. [...] esse conceito ajudou a inovar os caminhos de acesso ao conhecimento. Ajudou o trabalho educativo a ganhar espaço. Era disso que se tratava: substituir o velho esquema educação-evasão-expulsão; isso supunha inovarmos o jeito de entender a cultura, mudar o jeito de compreender a realidade. (FREIRE; NOGUEIRA 1989, p. 61).
Brandão (2001, p. 14), ao se referir às ideias vigentes no início dos anos de 1960,
relembra:
Entre tantas, as ideias mais próximas aos círculos onde Paulo Freire foi iniciado como educador popular partiam de uma revisão da palavra cultura e do conjunto de teorias e de práticas que tradicionalmente contem. Do mesmo modo que a história, também a cultura, na sua pluralidade, é uma criação social do ser humano. Do saber humano, do fazer humano, do criar humano.
Partindo desse entendimento, vejamos, então, como o autor concebe cultura:
É um processo e, ao mesmo tempo, uma infinidade de produtos do trabalho. Tanto do trabalho realizado pelo homem em suas relações como a natureza (isto fica muito claro nas “fichas de cultura” do Método Paulo Freire), quanto do trabalho que se volta sobre si mesmo, ao criar os mundos sociais em que vive o sujeito (BRANDÃO, 2001, p. 14-15).
Continuando, Brandão (2001, p. 61-62), expressa que:
[...] educação popular nasceu nesse movimento de conquistar e inovar espaços. Aquilo que se chamava “educação de adultos” foi sendo melhorado por alguns grupos que pelejavam e conquistavam uma “legitima” educação que não descuidasse da cultura popular. E a educação popular nascia não apenas da cultura dos livros e dos museus; ela nascia da cultura que os movimentos populares usam e criam em suas lutas.
Supondo, que as práticas de educação popular são referenciadas por concepções
inerentes ao contexto histórico, as quais vão se configurando de acordo com os interesses
subjacentes ao tipo de homem que se pretende formar e para qual tipo de sociedade o homem
vai atuar, indubitavelmente, as ações dos movimentos de cultura popular do final dos anos de
1950 redimensionaram conceitos educacionais, dentre os quais o de educação popular.
Vejamos, então, como Freire (1989) vai conceber a educação popular neste novo cenário.
77
Entendo educação popular como o esforço de mobilização, organização e capacitação das classes populares: capacitação cientifica e técnica, entendo que esse esforço não se esquece, que é preciso poder, ou seja, é preciso transformar essa organização do poder burguês que estar aí, para que se possa fazer escola de outro jeito. [...] Há uma estreita relação entre escola e vida. [...] depois que a entendo como mobilização, depois que a entendo como organização popular para o exercício do poder que necessariamente se vai conquistando, depois que entendo essa organização também do saber [...] compreendo o saber que é sistematizado ao interior de um “saber fazer”. (FREIRE, 1989, p. 19).
A concepção de educação popular de Paulo Freire demanda um projeto-político
pedagógico de educação em que o saber sistematizado se desenvolve numa relação dialógica
entre educadores e educandos, em um processo circular, onde ambos ensinam e aprendem na
“ação-reflexão-ação” do quefazer educativo. Neste sentido, “Os projetos de Educação popular
são os que implicam ao mesmo tempo maiores desafios e maiores potencialidades, tanto
educacionais como sociais.” (WERTHEIM, 1985, p. 60).
Wertheim (1985, p. 22) contribui com os referencias da concepção de educação
popular libertadora, quando defende o argumento de que esta “[...] tem como princípio a
participação popular, a solidariedade rumo à construção de um projeto político de sociedade
mais justo, mais humano e mais fraterno.” Para ela,
A Educação popular acompanha, apóia e inspira ações de transformação social. Nela, o processo educativo se dá na ação de mudar padrões de conduta, modos de vida, atitudes e reações sociais. Portanto, se a realidade social é ponto de partida do processo educativo, este volta a ela para transformá-la. (WERTHEIM, 1985, p. 22).
Paiva (1980) concebe a educação popular como instrumento de fortalecimento das
classes populares.
Considera [...] como aquela que atende aos interesses das classes populares é uma educação que se passa fora do sistema formal de ensino, sendo, portanto, basicamente a educação de adultos (seja aquela que visa à aprendizagem de conteúdos específicos diversos, vinculados aos anseios e iniciativas da população e à sua educação política, seja a que se realiza através de diferentes formas de luta social: luta sindical, luta pela terra, pelos terrenos urbanos para habitação e luta sindical. (PAIVA, 1980, p. 80).
A concepção dessa autora explicita que a educação popular está intrinsecamente
ligada aos movimentos populares, entretanto, postula a noção de que essa não deve se
restringir a ações não formais, mas, também, incorporar aquelas ações desenvolvidas pelas
instituições governamentais, definindo ainda que a
78
[...] educação popular é aquela que ocorre no bojo do movimento popular. Isto porém, não nos deve impedir de ver que a educação popular não se restringe a ela, mas engloba toda a educação que se destina às classes populares: a que se vincula ao movimento popular de forma direta, mas também à que é organizada pelo Estado, incluindo-se aí o ensino através do sistema de educação formal destinada aos adultos e também à população em idade escolar. (PAIVA, 1980, p. 80).
Mello (2008, p. 100), estudioso do pensamento freireano, em seu entendimento de
educação popular, chama atenção para a necessidade de manter pulsante e viva a dimensão
utópica dos processos educacionais. Para tanto, assevera que:
A Educação Popular está a serviço de uma pertença coletiva, de um sentimento de pertencimento ao mundo, de uma identidade coletiva em torno de um projeto utópico, resgatando as raízes históricas dos sujeitos, as memórias coletivas e sua relação com o presente. (MELLO, 2008, p. 100).
Damasceno (2005), ao refletir sobre educação popular, reafirma que seu campo de
atuação repousa nos grupos populares, neste sentido, ressalta as discussões que apontam para a
compreensão de que
A reflexão gestada a partir da prática vem contribuindo para a elaboração de novas concepções e novas práticas de educação popular no contexto latino americano hoje: um pressuposto chave consiste em entendê-la, como a aquela educação que atende aos interesses dos grupos populares. (DAMASCENO, 2005, p. 61).
A autora lembra, entretanto, que esta é suficientemente abrangente para englobar
as principais concepções ou vertentes de educação popular, quais sejam:
a) A primeira vertente advoga que esse tipo de educação por ser realizada com o apoio governamental, desde que vise a aprendizagem de conteúdos vinculados aos anseios e iniciativas da população e esteja a serviço de sua prática política. Isto significa entender a “educação pública popular” como espaço conquistado no interior do Estado. Esta tendência parte do pressuposto que negar o papel e a responsabilidade de Estado neste processo é entendê-lo como algo monolítico, não perpassado pela sociedade civil. Tal perspectiva implica em negar a força das lutas e a própria dialética social. [...] b) A segunda modalidade de educação popular ocorre no bojo do movimento popular, de forma direta, em função” dos seus interesses” e que se realiza através de diferentes formas de luta social (luta pela terra, pelos terrenos urbanos para habitação, luta sindical, luta pela concretização dos direitos civis, partidos populares, organização não governamental etc.). (DAMASCENO, 2005, p. 61).
79
Concordo com Damasceno quanto ao entendimento de que as duas principais
concepções de educação popular expressas, norteiam as ações dos movimentos populares junto
à população brasileira, ora sob a tutela do Estado, ora com maior independência. Ambas
concedem norte as práticas educativas que disputam espaços de participação e de afirmação de
suas ideologias na sociedade brasileira. Os avanços e/ou retrocessos dessas práticas dependem
da correlação de força dos movimentos sociais com o poder político e socioeconômico de cada
época histórica.
Os estudos contemporâneos apontam que o conceito de educação popular é
repensado e ampliado na perspectiva de incorporar as mudanças decorrentes do atual contexto
socioeconômico, cultural e político, ora produtor de outras necessidades e, portanto, novas
demandas e lutas, especialmente, no interior dos movimentos sociais. Para corroborar esse
entendimento, novamente recorro às contribuições de Mello (2008, p.102), quando lembra que:
A Educação Popular hoje se depara com a vertigem da amplitude. Isto é: a assunção de um compromisso ético-ontológico e político com os subalternos (de toda ordem), a coloca em uma rica e desafiante tarefa: recolher na diversidade de sujeitos e processos aquilo que passa a acumular para uma vida mais plena. Não podemos em um projeto que estimule e crie condições de exercício da cidadania, legitimar uma tendência dominante de deixar na invisibilidade, no anonimato, os grupos étnicos, culturais e etários ou considerados em estado de minoridade.
A preocupação de Mello com a assunção do compromisso ético-ontológico junto
aos oprimidos remete-me à necessidade de um repensar em torno das experiências em curso na
práxis histórica da educação popular, na perspectiva de uma compreensão mais ampla desta
categoria analítica, inscrita na história dos movimentos populares, chegando à intervenção na
atual conjuntura política, educacional e social brasileira, carreando sua vertigem de amplitude
para os novos desafios do presente.
Assim, convidamos para participar deste diálogo Arguelo (2005), Fiallos (2005),
Holliday (2005), Picon (2005) e Vargas (2005), estudiosos da educação popular na América
Latina, que exprimem diálogos com perspectivas histórico-culturais diversas e fazem uma
discussão do que se conceitua como refundamentação das concepções de educação popular na
atualidade latino-americana.
Arguelo (2005) assinala, pois, o aspecto ético-moral, profundamente humano da
educação popular, questionando as visões que buscam reduzi-la ou tomá-la como metodologia.
Afastando-se dessas possibilidades, o autor concebe educação popular como
80
[...] uma opção moral e ética, não é uma metodologia, não é um método, não é uma técnica. É uma causa, uma militância, uma maneira de entender a vida. É uma forma de vida, testemunho, um convite, sonho, motivação, criatividade, esperança, participação, libertação. É profundamente humana, respeitosa e carinhosa. É uma maneira permanente de inserir-se na realidade para transformá-la. É uma forma de vida que tem consequências pedagógicas, econômicas, sociais, políticas, familiares etc. (ARGUELO, 2005, p. 232).
Picon (2005) colabora com a concepção de Arguelo (2005), ao defender o
pressuposto de “[...] o que tipifica a educação popular não é um método, mas sua concepção e
intenção transformadora.” (ARGUELO, 2005, p. l71). Já Holliday (2005) chama atenção para
o fato de que a educação popular deve ser compreendida como fenômeno sociocultural, para
compor um novo paradigma educacional, capaz de superar o modelo de educação autoritário,
que dissocia teoria e prática, senão vejamos:
A “educação popular” é, ao mesmo tempo, um fenômeno sociocultural e uma concepção de educação. Como fenômeno sociocultural, a educação popular faz referência a uma multiplicidade de práticas com características diversas e complexas, que têm em comum uma intencionalidade transformadora. [...] Como concepção educacional, a educação popular não possui um corpo de categorias sistematizado em todos os seus extremos. Entretanto, podemos afirmar que aponta à construção de um novo paradigma educacional, que se opõe a um modelo de educação autoritário, de reprodução, predominantemente escolarizado e que dissocia a teoria da prática. (HOLLIDAY, 2005, p. 241-242).
Vargas (2005), por sua vez, também colabora com essa discussão, ao lembrar a
noção de que,
Sendo a educação popular uma ação cultural, é pertinente perguntar como é possível capitalizar na sociedade o sentido ético de solidariedade, promover uma nova imagem de sociedade justa e abrir uma porta para a reflexão a respeito do significado atual de construir o bem comum em uma sociedade fragmentada pelas dinâmicas neoliberais. (VARGAS, 2005, p. 196-197).
Para esse autor, a educação popular constitui ação cultural na perspectiva de uma
esfera moral pública, assentada na alteridade e diversidade dos direitos humanos:
A expressão de uma moral pública que cria confianças entre sujeitos e os habilita ao respeito à diversidade do outro, a seus direitos, aberta a processos voluntários orientados à criação e potencialização de vínculos e capacidades sociais, que permitam que os sujeitos de tal educação se tornem competentes, autônomos e bons gestores dos recursos de seu desenvolvimento. (VARGAS, 2005, p. 196-197).
81
Fiallos (2005, p. 165), ao refletir sobre o que continua vigente das propostas
centrais da educação popular no tempo de agora, defende a posição segundo a qual
O paradigma do bem comum, da justiça, da equidade, da liberdade, do respeito, da democracia e da solidariedade ainda está vigente, não por ter sido conquistado, mas por causa da democratização e modernização de nossos países, e que ainda é utopia.
Para o autor em foco, a Modernidade e o desafio de inscreverem-se nela os
processos democráticos trazem singularidades que possuem nova configuração no tempo
presente.
No raciocínio de Picon (2005), as ações de educação popular devem se referenciar
na concepção metodológica dialética na perspectiva de compreender de forma ampliada os
desenvolvimentos que ela implica:
Possibilitará uma construção ampliada do desenvolvimento metodológico da educação popular no século XXI, com firme identidade orientada ao compromisso com a transformação social e cujo posicionamento permite livremente e seletivamente alguns insumos conceituais, bem como técnicas, procedimentos e ferramentas de aprendizagens permanentes, provenientes dos mais avançados enfoques pedagógicos vigentes no mundo. (PICON, 2005, p. l70-171).
As análises das concepções defendidas pelos teóricos da atualidade permitem a
percepção de que são mantidos aspectos significativos defendidos na década de 1960, mas que
se acrescentam novas leituras pautadas nos desafios atuais.
Quanto aos aspectos que representam o contexto atual, constata-se que foram
incorporadas novas categorias como moral pública, direitos humanos, respeito à diversidade,
processos voluntários, criação e potencialização de vínculos pessoais e sociais, capacidades
sociais e espiritualidade – categorias que buscam dialogar com os aspectos centrais do
pensamento freireano. Deste, ressalto: transformação, utopia crítica, compromisso, autonomia,
solidariedade, liberdade, ação cultural, esperança, participação e diálogo.
Na atualidade, pensar os movimentos sociais como categoria analítica (MELUCCI,
1989) leva a se entender como esses, nos enfrentamentos de hoje, inscrevem em suas ações
saberes produzidos desde a década de 1960, dentro de experiências vividas no contexto do
ideário freireano. Assim, se observa que, conceitualmente, é possível estabelecer diálogos
nesse campo de sentidos intergeracional, que embasam novas leituras dos fenômenos da
educação popular, os quais, desde os anos de 1960, possibilitam um veio fértil que se insere na
complexidade a envolver o cenário socioeconômico, político e cultural do século XXI.
82
Não obstante, mostra o educador Paulo Freire os compromissos da educação com o
devir histórico que, em seu caráter mutante, solicita de todos não só compreensões de mundo,
mas, também, compromissos com as transformações da consciência e da história – vocação
ontológica do humano. Assim, recusa às explicações mecanicistas da história e da consciência
reafirmando,
[...] me encontro onde sempre estive. [...] tão decido quanto antes na luta por uma educação que, enquanto ato de conhecimento, não apenas se centre no ensino dos conteúdos, mas que desafie o educando a aventurar-se no exercício de não só falar da mudança do mundo, mas de com ela realmente comprometer-se. Por isso é que, para mim, um dos conteúdos essenciais de qualquer programa educativo [...], é que possibilite a discussão da natureza mutável da realidade natural como histórica e veja homens e mulheres como seres não apenas capazes de se adaptar ao mundo, mas, sobretudo de mudá-lo. Seres curiosos, atuantes, falantes, criadores. (FREIRE, 2000, p. 96).
A compreensão do ato de conhecimento como transformação de mundo – base do
pensamento freireano, pois, é pilar onde assenta sua inserção no contexto histórico-cultural da
educação brasileira. Ver como esse movimento crítico e de criação de mundos se concretiza na
polifonia das vozes dos educadores que viveram nos anos de 1960 e dialogaram com sua
prática social e pensamento é o objetivo deste trabalho, que parte desses acúmulos de saber a
circunscrever um ideário educacional cuja perene fonte a todos alimenta.
Postas estas vigas, aporto à narrativa dos educadores cearenses, nesse território que
se ergue no campo de sentidos que anuncio.
83
5 PRÁXIS FREIREANA: NARRATIVAS DE EDUCADORES POPULARES
CEARENSES
Desde o começo, na prática democrática e crítica a leitura do mundo e a leitura de palavra estão dinamicamente juntas. O
comando da leitura e da escrita se dá a partir de palavras e de temas significativos à experiência comum dos alfabetizandos e
não de palavras e temas apenas ligados à experiência do educador. (PAULO FREIRE).
Este capítulo se debruça sobre as narrativas de educadores populares que
desenvolveram práxis referenciadas nas ideias freireanas. Os relatos demonstram que eles se
apropriaram do pensamento político-pedagógico de Paulo Freire em suas práxis de educação
popular.
Para tanto, estabeleço dialogo com os educadores populares que, mediante suas
narrativas, rememoram os movimentos de educação popular em que atuaram nos anos de
1960, no Ceará, e por meio delas fazem referências às contribuições do pensamento freireano
em suas práxis. No seio mesmo dessas narrativas, realizo contraposições entre o vivido e
falado pelos sujeitos da pesquisa e a própria obra freireana, desse modo, sublinhando
categorias que balizam a relação indicada pelos sujeitos dessa história.
Participam deste diálogo, portanto, os educadores populares que, inicialmente,
falam sobre a forma de acesso aos estudos que Freire desenvolvia no que concernte à educação
de adultos vivida nos movimentos de cultura popular no Recife. Um dos coordenadores do
Movimento de Educação de Base (MEB), no Município de Sobral, professor Leunan Soares,
observa, de partida, a conexão entre o Movimento de Cultura Popular de que ele participava e
do qual era animador, e o trabalho do Movimento de Cultura Popular - MCP, desenvolvido no
Recife. A relação feita por esse Educador permite uma visão sobre a relação entre cultura e
educação como patamar inicial da reflexão dos sujeitos da pesquisa:
Comecei a dar aulas em colégios, quando estava no seminário. Coincidentemente, também, foi a época em que Dom Helder Câmara veio ser Arcebispo de Olinda em Recife [...] e em que Paulo Freire estava começando o Movimento de Cultura Popular. Tínhamos muita convivência com o Movimento de Cultura Popular e com o Teatro Popular do Nordeste. Essa convivência com aquele movimento político do Recife e ao mesmo tempo com o Movimento de Cultura Popular, de Paulo Freire - que criou aquele movimento na época quando Miguel Arraes era prefeito de Recife -, nos ajudou a ir conhecendo a realidade. (F. L. S, entrevista em outubro 2012).
A fala do Educador aponta que as posições assumidas pelos sujeitos educadores
em sua formação, junto aos movimentos e grupos populares, demonstram visão crítica e
84
curiosidade epistemológica que dialogam com as situações escolares de ensino mais formais.
Posso inferir, então, que a convivência, como fala o educador popular, com o Movimento de
Cultura Popular e com o Teatro Popular do Nordeste criava o solo onde fazia sentido a leitura
do movimento político-educativo intitulado Movimento de Cultura Popular, do Recife,
pensado por Freire.
É possível observar, ainda, que a ideia de cultura da educação, como propõe
Brandão (2002), envolve uma educação que se alimenta da cultura dos sujeitos, fazendo
dialogar o saber experiencial das classes populares com o saber sistematizado à disposição do
corpo social. Já alguns estudiosos (KLEIMAN, 2005; RIBEIRO, 1999) haviam atentado para a
ideia de que o saber sistematizado no ensino formal é permeado por valores constituídos
afetiva e socialmente, o que põe em questão a ideia da existência de uma maneira única de dar
sentido às experiências advindas do ensino formal. Pensa-se, tradicionalmente, que a intenção
didática das propostas pedagógicas é percebida desse modo pelos educandos, mas, no
complexo jogo de experiências culturais, outras referências se superpõem à diretriz formativa
que parece clara aos educandos. Dessa forma é que se há de considerar os aspectos
multidimensionais em pauta numa ideia de formação – valores familiares; aspirações
constituídas nos embates sociais; representações sociais comuns à cultura local e de classe
social, condicionantes de gênero, entre outras. Assim, o educador popular se reporta à sua
trajetória:
Meu pai era muito interessado que eu estudasse e participasse da vida da comunidade, me mandou muito cedo para ajudar na missa, que era em latim. Aí comecei a ajudar na missa, na igreja. Quando eu terminei a quarta série, o vigário indicou para eu ir para o Seminário, estudar para ser padre. A opção, claro, não foi minha, mas poderia ter sido. Eu, hoje, raciocinando com a cabeça de hoje, digo que criança não decide, mas ela gosta de imitar quem aparece, quem se destaca. Então, fazendo uma comparação, na minha cidade, quando passava um circo, depois que ele ia embora, a gente ia brincar de circo; brincava-se de soldado porque na comunidade era o cara que aparecia; brincava-se de professor porque era uma pessoa que se destacava na comunidade; brincava-se de padre, também. Então, eu fui estudar no Seminário para ser padre. (F. L. S, entrevista em outubro 2012).
“Foi a grande alternativa que tive” – observou, ainda, o educador. E explicitou essa
formulação da seguinte maneira:
No Seminário de Sobral, passei sete anos. A formação era muito rígida, sob a orientação de Dom José Tupinambá da Frota, que foi o primeiro bispo de Sobral. Ele tinha muito cuidado com a formação intelectual, com a formação humana, com a formação literária e no nosso caso especifico, com a formação
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litúrgica dos seminaristas. Então, eu estudei 7 anos, no seminário de Sobral, terminei lá o equivalente ao Científico. Naquela época a gente tinha uma alternativa que era continuar os estudos no Seminário da Prainha, em Fortaleza, mas, coincidentemente estava havendo uma crise no próprio seminário, uma crise de gestão e tinha sido aberto, em Olinda, o Seminário Regional do Nordeste que acolhia alunos dos seminários do Norte e Nordeste todinho. Então, eu aproveitei essa alternativa e fui estudar Filosofia e Teologia em Olinda. (F. L. S, entrevista em outubro 2012).
A narrativa do educador deixa ver, então, em uma leitura da formação de
seminaristas em seu tempo – que era, por vezes, a única saída de pessoas das classes
empobrecidas para estudar além das primeiras letras, além de sinalizar que havia nas ideias de
trabalho de comunidade e de ação pastoral referências que davam sentido ao trabalho como
engajamento social.
Para a minha formação pessoal foi importantíssimo, porque Pernambuco tinha uma abertura maior para o social. No seminário de Olinda a gente não tinha a rigidez do Seminário de Sobral em que se vivia em rígido regime de internato. Em Olinda era internato. Onde a gente estudava, a gente rezava, como em todo canto se fazia. No entanto, a gente tinha chance de fazer algum trabalho pastoral, junto às comunidades ou junto aos colégios. Comecei a dar aulas em colégios. (F. L. S, entrevista em outubro 2012).
Eu diria que minha descoberta pela educação popular começou aos 7 (sete) anos de idade. Por incrível que pareça, tínhamos em nossa casa uma senhora chamada Terta [...] Era uma negra filha de escravos; fomos praticamente tendo-a como uma segunda mãe. A Terta foi que tirou de nós todo preconceito racial, preconceito com relação à classe, porque, ela tinha uma força muito grande sobre nós. Quando eu me alfabetizei descobri que a Terta era analfabeta. Imaginei: como pode uma pessoa que vive em uma casa de pessoas letradas continuar analfabeta. E disse: - Terta, vou lhe alfabetizar. Eu, com 7 (sete) anos de idade. À noite, eu me sentava com ela e ia pelejar, literalmente, pelejar para passar para ela o que eu tinha aprendido na escola. Era um esforço brutal, tanto meu quanto dela, coitada, por que cadê a metodologia que eu tinha, uma criança de sete (7) anos de idade! É claro, que não consegui alfabetizá-la, era impossível. Mas, ela me deu o diploma de professora porque ela acreditou que uma criança de sete (7) anos de idade poderia alfabetizá-la, e ela sempre achou que eu ia alfabetizá-la. Então, essa imagem da Terta direcionou todo meu rumo de educadora. Com quem eu quero trabalhar? Quem são as pessoas que me mobilizam sentimentalmente para que eu seja uma professora? (R. C, entrevista em outubro de 2012).
Na narrativa da professora, por sua vez, parece haver uma ruptura com a
descolonização do lugar social de objeto dos sujeitos populares, o que possibilita uma
recolocação do lugar de sujeito das pessoas com quem dialogo. Para a Professora, o contato
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com a educação popular deu-lhe, ainda na infância, este lugar de sujeito pensante que ela
adquiriu quando conferiu a uma mulher simples esta possibilidade de aprendizagem da leitura
e da escrita, de sair de uma posição de objeto e atuar como sujeito na convivência com pessoas
letradas.
Vê-se, no relato da educadora, que o ser humano parece extrair de si e de suas
interações quando se abre para a experiência de educar-se, como diz Freire, uma sobre-
humanidade (FREIRE, 2003). Pode-se inferir, ainda, com o apoio no relato aa professora que,
após ser instigada como sujeito, na reflexão educacional feita desde criança, passou a criar vias
de acesso ao conhecimento das perguntas fundamentais do ato de ensinar-aprender.
Ruth Cavalcante, na direção de Freire, observava que as condições desfavoráveis
da aprendizagem não significariam incapacidade dos sujeitos aprendentes (FREIRE, 2003),
pois situou em si mesma, menina de sete anos, o descompasso do desejo e confiabilidade de
Terta em sua em sua ação possível de ensiná-la com as possibilidades que tinha como criança
de se improvisar como ensinante a uma filha de ex-escravos.
Sobre a alfabetização, Freire (2005, p. 55) assim se posicionou: “Eu diria que,
necessariamente a alfabetização é capítulo importante, um dos primeiros capítulos da prática
docente, prática educativa.” O Pensador chama atenção para o fato de que
Aprender a ler e escrever deve se constituir numa oportunidade para que os homens conheçam o verdadeiro significado da expressão dizer a palavra: ato humana que implica reflexão e ação. Como tal, trata-se de direito humano primordial, e não privilégios de uns poucos. Dizer a palavra não é um ato verdadeiro, a menos que esteja simultaneamente associado ao direito de auto-expressão e expressão do mundo, de criar e recriar, de decidir escolher e, em última análise, de participar do processo histórico da sociedade. (FREIRE, 1987, p. 12).
Posso levantar, aqui, uma reflexão que subjaz ao texto – a da negação, que Terta
vivera, do direito à educação e que a menina Ruth queria fazer superar. Nessa percepção, vale
evidenciar existirem condições sociais concretas que fazem da história dos oprimidos também
uma história de negação desse saber do alfabetismo. Vejamos como Freire mostra essa
compreensão das dificuldades sociais vividas pelos oprimidos, chegando a focalizar a expulsão
feita, nos processos de escolarização, da cultura do oprimido:
Ao referir-me, porém, à relação entre condições concretas desfavoráveis e dificuldades de aprendizagem, devo deixar clara minha posição em face da questão. Em primeiro lugar, de maneira nenhuma aceito que estas condições concretas sejam capazes de criar em quem as experimenta uma espécie de natureza incompatível com a capacidade de escolarização. O que vem ocorrendo é que, de modo geral, a escola autoritária e elitista que aí está não
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leva em consideração, na organização curricular e na maneira como trata os conteúdos programáticos, os saberes que vêm se gerando na cotidianidade dramática das classes sociais submetidas e exploradas. [...] Estou convencido de que as dificuldades referidas diminuiriam se a escola levasse em consideração a cultura dos oprimidos. (FREIRE, 2003, p. 41).
É possível depreender a ideia de leitura que a Professora faz de sua história de vida
o fato de ser professora, à época, tinha relevância social e seu pai a estimulava para a
profissão. Ressalte-se, esse estímulo paterno encontrava eco em si mesma e criava condições
de abertura para experiências de natureza educativa, senão vejamos:
Papai também valorizava muito a professora. Ele dizia: “cresça minha filha para poder dar aula”. Ele achava que professora era a melhor profissão que existia. Então, nós crescemos ouvindo e sentindo isso. E dos 20(vinte) filhos dele,14(quatorze) são professores. Porque era um valor muito grande.Depois eu entrei no Colégio Imaculada Conceição. Na época, tinha a opção de se fazer o cientifico, o clássico ou o normal. Eu fui fazer o normal; sem a menor dúvida de que eu queria ser professora. Fiz o curso normal, exatamente para sair do curso secundário como professora. (R. C, entrevista em outubro de 2012).
Esse caminho de abertura para o outro essa docente encontraria no Movimento de
Educação de Base – MEB, suas primeiras e determinantes referências formadoras, segundo a
própria entrevistada:
Quando decidi entrar na faculdade, eu já fazia parte do Movimento de Educação de Base – MEB. Entrei sem fazer cursinho; e passei porque eu já tinha a experiência do MEB. Eu entrei no MEB no ano do golpe militar; eu estava fazendo o treinamento sobre a orientação de Paulo Freire. Ele não estava presente porque eram muitos treinamentos que estavam acontecendo nesta época; ele já estava provavelmente até muito sobrecarregado, então, era a equipe nacional do MEB que assumia. Toda a orientação do treinamento era freireana e eu estava sendo preparada neste momento, no dia 01 de abril de 1964. Quando acordamos – a gente estava num local da Arquidiocese de Fortaleza – a Comissão Nacional chamou e disse: – Nós temos que suspender o treinamento porque houve um golpe. Todos pensávamos que era brincadeira porque foi era primeiro de abril. Eles tinham passado a noite inteira gravando tudo que tinha acontecido em relação ao golpe, suspenderam o treinamento e eu só fui entrar mesmo, no MEB, em agosto de 64. A ditadura ainda estava muito desorganizada para compreender o que era o MEB. A nossa formação toda era com a concepção de Paulo Freire. (R. C, entrevista em outubro de 2012).
Sabe-se que a proposta político-pedagógica de Paulo Freire ia se dando com origem
na inserção concreta dos educadores nos movimentos populares, como o MEB. Iniciava-se por
uma formação na qual o participante, ao ingressar no movimento, começava a trabalhar. “A
nossa formação era toda com a concepção de Paulo Freire [...] Os treinamentos do MEB eram
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assim de uma fundamentação incrível. Foi aí que começamos de fato a estudar Paulo Freire” –
observou.
Se a professora, ao escutar o mandato paterno, o ancorou em sua eleição pessoal
mais profunda, atentando em se construir professora – já visto que isso vinha se inscrevendo
em si mesma desde a convocação de Terta – mediante uma prática social que ia ao encontro do
oprimido, essa escolha se sedimentou quando de sua inserção nos trabalhos educativos do
MEB.
Outra entrevistada também explicita que o acesso ao conhecimento sobre a
proposta político-pedagógica freireana possuía essa face consciente de estudo e inserção social
concreta. Esta, minuciosamente, nos conta como se deu esta inserção na prática educativa com
adultos:
O prof. Lauro Oliveira Lima foi até nossa turma, que estava concluindo o ginásio no Justiniano de Serpa e nos convidou para ser monitora de educação de adultos. Então, nós passamos a participar dessa experiência. O trabalho era feito à noite. Essa experiência eu ainda lembro; sou capaz de fechar os olhos e ver meus alunos. Tinham poucas mulheres (domésticas); a maioria era composta por homens, quase todos trabalhadores da construção civil, normalmente servente de obras e pedreiros. Eram homens calejados, de rostos marcados pelo sol, pela dureza da vida, mas pessoas que queriam aprender, pessoas que tinham a ânsia para poder aprender e nós, então, nos encantamos com aquela experiência. Eu lembro que havia o pessoal que fazia supervisão e que naturalmente já conhecia o trabalho de Paulo Freire, pois ele já tinha estado aqui. Na verdade, as pessoas daqui já deviam ter participado de algum tipo de formação. (M. N. D, entrevista em outubro de 2012).
Os relatos evidenciam que o contato com o pensamento freireano envolvia
formações que eram parte de uma inserção em práticas educativas concretas. A participação
em atividades de formação, debruçadas sobre o sistema de pensamento de Paulo Freire,
portanto, ia concedendo ensejo a estudos sobre os pressupostos do pensamento freireano que,
por sua vez, possibilitavam uma leitura da prática pedagógica sob a qual os educadores
atuavam.
McLaren frisa que a formação envolve aspectos subjetivos e a crítica às estruturas
de formação social onde se inscrevem. Observa o autor, ao referir-se ao pensamento de Freire,
que formação exige a crítica social e a das “formações de afeto” que ajudam a promover uma
práxis crítica; e que a crítica às subjetividades se une às necessárias transformações das
relações sociais de produção, das configurações ideológicas e das condições materiais
responsáveis pela exploração das classes subordinadas (MCLAREN, 1999).
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Os relatos de todos os entrevistados demonstram que a identificação e o
encantamento com a proposta político-pedagógica freireana, que iniciava uma formação em
trabalho, se transformaram em compromisso com a educação na perspectiva do oprimido
possibilitando, assim, que os educadores fossem aprofundando o entendimento da concepção
de educação como ato político, à proporção que iam incorporando os ensinamentos de Freire
em suas vivências e atividades profissionais em educação.
Vejamos como a entrevistada, é convocada para aprofundar o que ela nomeia de
“concepção teórica educacional freireana”, constituída com base na experiência do MEB. Na
verdade, estimulada pelo trabalho concreto com a alfabetização na perspectiva de Freire e do
MEB, a Professora ia tornando complexa sua formação, dentro dessa opção político-
pedagógica que se iniciava mesmo antes da inserção na faculdade:
Os treinamentos do MEB eram assim de uma fundamentação incrível. Foi aí que nós começamos de fato a estudar Paulo Freire. Entrei no MEB em agosto de 64 e só fui entrar na faculdade em 66, um ano e meio depois. Eu já entrei direto para o curso de pedagogia, porque já foi uma necessidade. Nunca iria imaginar entrar para a faculdade - porque eu não tinha motivação para isso. Mas o próprio MEB me deu essa motivação para eu poder ter um espaço de aprofundar mais minha concepção teórica educacional, ao estudar mais diretamente, porque ainda se estudava nesta época Paulo Freire na Universidade. (R.C, entrevista em outubro de 2012).
No que se refere ao início da formação da Educadora, observo que foi na práxis de
alfabetização que se conectava ao MEB, movimento que a impulsionava para uma reflexão
mais profunda. Debrucemo-nos, então, sobre esse movimento.
O Movimento de Educação de Base (MEB), criado em 1961, pela Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), era uma das organizações que trabalhavam com a
alfabetização de adultos através da radiodifusão. Entre outras, era constituída por progressistas
católicos, que se dedicavam à cultura popular, nos anos de 1960. Estava também diretamente
ligado ao Método Paulo Freire que adquiriu forte impulsão e que acabou, por si só, produzindo
um Movimento por seu caráter de democratização, embora que de curta duração, uma vez que
expressava a filosofia de educação de Paulo Freire que mesmo sendo católico, o gerou de
forma independente da Ação Popular, movimento político de destaque que atraía jovens
estudantes católicos, embora não se caracterizasse como um movimento confessional cristão.
No sentido de se compreender a proposta educativa do MEB, convidamos o leitor a
revisitar a história da radiodifusão na educação brasileira. As escolas radiofônicas constituíram
o ponto alto da experiência, tendo sua oficialização, no Brasil, ocorrida já no final dos anos de
90
1950. Mediante análise de algumas experiências bem-sucedidas no País, o então Ministério da
Educação e Saúde criou o Sistema de Radiodifusão Educativa Nacional (SIRENA), com a
produção radiofônica centralizada na Rádio Nacional no Rio de Janeiro. Neste período foram
instaladas milhares de escolas radiofônicas no Brasil.
As emissoras católicas mantinham convênios com o MEC, para a transmissão dos programas distribuídos nos antigos discos de acetato. [...] no que diz respeito a alfabetização, esses programas eram acompanhados de material didático, a Radiocatilha, também elaborada no Rio de Janeiro e distribuídas para todo país. (FÁV ERO, 2009, p. 11).
Em Natal, também neste período, ocorriam experiências de escolas radiofônicas, só
que, a partir de um percurso diferente da proposta do MEC, quando da criação do SIRENE. A
fonte inspiradora da experiência de Natal foi o modelo de base paroquial criado em 1947, pelo
Padre José Salcedo, em Sutatenza, na Colômbia, que foi visitado, em 1950, por Dom Eugênio
Sales, na época, administrador apostólico da Diocese de Natal. A experiência de Natal serviu
de inspiração para a criação de escolas radiofônicas em Sergipe-Aracaju.
Osmar Fávero (2009), ao narrar as campanhas e movimentos de educação de
jovens e adultos no período de 1947 a 1966, confirma essa versão histórica. Ele relata:
As primeiras experiências de utilização do rádio pela Igreja, para fins pastorais e educativos, foram inspiradas por Sutatenza, na Colômbia, onde havia sido montada uma emissora radiofônica,com subestações em paróquias, para a transmissão de programas catequéticos e educativos, a serem recebidos por uma rede de “receptores cativos” (sintonizados apenas para uma estação), fornecidos pela Philips. Dom Eugênio Sales, na ocasião administrador apostólico de Natal, visitou Sutatenza e implantou esse modelo em sua diocese, a partir de uma pequena emissora, passando a desenvolver uma ação social, inclusive com escolas radiofônicas, de base paroquial. Dom José Vicente Távora, arcebispo de Aracaju, logo depois, dispondo de uma emissora mais potente, ampliou a experiência de Natal, implantando um sistema radio educativo para todo o estado de Sergipe. (FÁVERO, 2009, p. 21).
Wanderley (1984) também colabora para a compreensão da origem do MEB no
Brasil, ao lembrar haver sido com o apoio das experiências desenvolvidas nas dioceses de
Natal e de Sergipe que
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) elaborou um plano de um movimento educativo em plano Nacional, que ganhou caráter oficial pelo decreto 50 370 de 21 de março de 196l, mediante o qual Governo Federal forneceria recursos - através de convênios com órgãos da administração federal - para serem aplicados no programa da CNBB, através do MEB e
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utilizando as emissoras católicas para as áreas do Norte, Nordeste e Centro-Oeste do País. (WANDERLEY, 1984, p. 16).
O autor em foco, fundamentando-se em análise conceitual sobre o conteúdo e os
significados dos processos de educação popular vivenciados no MEB, evidencia:
A educação de base pretendida, e em parte desenvolvida pelo Movimento, foi, juntamente com o Sistema Paulo Freire, a que mais se aproximou progressivamente de sua concretização, produzindo efeitos eficazes, através de suas múltiplas atividades de alfabetização, conscientização, politização, educação sindicalista, instrumentalização das comunidades e animação popular, o MEB desenvolveu uma original pedagogia popular, engrenando subsídio concretos para uma efetiva integração da teoria com a prática, para a investigação militante, para a educação libertadora. (WANDERLEY, 1984, p. 16).
No Estado do Ceará, o trabalho do MEB teve também considerável repercussão,
visto que suas ações contribuíram, ao mesmo tempo, na alfabetização e na conscientização dos
camponeses, conforme narrativas dos educadores então atuantes no movimento.
Certamente que, ao longo de suas trajetórias de vida, os educadores que viviam a
experiência educacional junto ao MEB foram ampliando a compreensão sobre os pressupostos
freireanos, com sua atuação em uma prática educativa que não se limitava somente à
alfabetização de adultos. Isso, não significou, entretanto, menosprezo pela alfabetização de
adultos, e tampouco ausência de entendimento da importância e necessidade da alfabetização
para os milhões de brasileiros que, no contexto da época, continuavam excluídos do domínio
da leitura e da escrita na sociedade grafocêntrica. Até mesmo porque, ao longo da trajetória de
vida desses educadores, como se vai constatando, a maioria continuou envolvida em atividades
de alfabetização de jovens e adultos. Percebe-se, contudo, que havia aprofundamentos e
alargamentos de visão que necessitavam serem feitos dentro da própria matriz do pensamento
freireano.
5.1 Memória da práxis do Movimento de Educação de Base – MEB no Ceará: a voz dos
educadores populares
Freire, ao prefaciar o livro “Educar para transformar”, de Luiz Eduardo, W.
Wanderley, assim se pronuncia:
A leitura de seu livro virou razão de alegrias. A de ter nas mãos o resgate necessário e inadiável de um dos mais sérios movimentos de nossa recente história da Educação: a ação do MEB é uma dessas alegrias. A maior, ao lado
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de outras como, por exemplo, a de me ter feito intensamente reviver, ao lê-lo, pedaços de tempo que tanto me marcaram também. (FREIRE, 1984, p. 9).
A emoção demonstrada por Paulo Freire, ao rememorar a história do MEB,
evidencia o quão fora significativa a práxis desse movimento de educação popular
desenvolvida no Brasil. Essa significação é expressa na ação de alfabetização-conscientização
de camponeses que acreditaram no domínio da leitura e da escrita associado à compreensão
crítica da realidade política, social e cultural, como instrumento de libertação do estado de
exploração humana que vivenciavam no País.
A fala de Freire também me impulsiona ao desafio de registrar a história do MEB
no Ceará, com suporte na oralidade de educadores que, com suas práticas educativas,
possibilitaram processos de movimentos de cultura popular e de desenvolvimento
comunitários que acalentaram sonhos e esperança; especialmente de camponeses, quando da
luta por conquistas no campo das transformações sociais.
No sentido de melhor compreender e revisitar a história do trabalho desenvolvida
pelo MEB, mais uma vez, convido os educadores para narrarem sua atuação neste movimento
histórico, ocorrido no Ceará. As falas explicitam a prática educativa do MEB, iniciando pela
formação da equipe e dos monitores, envolvendo, também, os objetivos, a proposta
pedagógica, a mobilização das comunidades para implantação do trabalho e as vivências
cotidianas nos círculos de cultura.
E então, dou continuidade a esse diálogo, discutindo a temática formação do
educador e, para tanto, recorro aos depoimentos explicativos de como foi a formação
ministrada pela equipe do MEB nacional, para os educadores que atuariam na equipe estadual
e assumiriam o trabalho.
A equipe do Ceará foi selecionada pela equipe Nacional do MEB, por ocasião de um treinamento intensivo, em que as pessoas da direção nacional informavam sobre as bases teóricas do trabalho e sobre seus mecanismos de funcionamento. Desse treinamento saíam as pessoas que coordenariam a equipe em nível estadual e seus núcleos. O Paulo Freire era o teórico que referenciava a formação. Osmar Fávero, por exemplo, fez parte da formação. Eram pessoas assim, muito competentes que vinham. A Vera Jaccoud, [...] era respeitadíssima, de uma capacidade incrível. Era toda na metodologia freireana; nada era "dado"assim, as coisas "feitas", entende? (R. A. T, entrevista outubro de 2012).
Vê-se que a formação da equipe do MEB parecia mover-se elaborando sua
reflexão continuada. Quando a coordenadora estadual menciona que “nada era dado”, se refere
93
à saída do assistencialismo e do espontaneísmo, nas tarefas educacionais, para uma formulação
consciente e coletiva.
A crítica entre dominação e poder cultural, educação e ideologia eram feitas, pois,
na prática, buscando-se sair da estreita vinculação entre práticas escolares e linguagem política
dominante. É que, como bem observava Gadotti (1984, p. 95): “a leitura puramente ideológica
é também limitante”, e “uma leitura verdadeiramente crítica leva da fala à ação.” Dessa forma,
a articulação teoria e prática é, neste tempo, pelo que se pode aprender com a história da
educação popular, uma experiência com o povo – com as populações consideradas oprimidas
social e politicamente. E, no que podemos vislumbrar, esta experiência era formativa por
excelência.
O interessante foi que muitas das pessoas que participaram dos movimentos de ação católica, posteriormente, se integraram no trabalho do MEB, constituindo uma verdadeira família, unida pelos ideais comuns e muita paixão pelo trabalho de alfabetização de adultos. A dedicação era tão grande que mesmo aos sábados, domingos e feriados, continuávamos atuando, uma vez que realizamos viagens constantes para diferentes cidades do interior. As aulas radiofônicas acompanhadas também pelas famílias davam conta de nosso paradeiro e revelavam o apoio familiar à nossa militância. (R. A. T, entrevista outubro de 2012).
Propondo que “a educação é uma totalidade”, Gadotti (1984, p. 158-159) assume
sua função social como de se envolver criticamente com os “grandes problemas nacionais”,
daí a necessidade de o educador “tornar-se agente de mobilização social e consciência crítica”
da sociedade. Veja-se, acima, como dentro do próprio MEB os sujeitos e suas equipes de
atuação se articulavam nacionalmente para as ações que se faziam no País. É nessa acepção
que o ethos dos educadores pensa a caminhada para a democratização do conhecimento como
um passo da articulação entre pensar e agir.
Álvaro Vieira Pinto, participante do Instituto Superior de Estudos Brasileiros
(ISEB), fonte filosófica em que Paulo Freire referenciou muitas de suas reflexões, em sua
obra Ciência e Existência (1979), mostrava a natureza dupla da cultura – de um lado, bem de
consumo (o que se chama costumeiramente, hoje, de produto mercado de bens simbólicos) e
de outro lado, bem de produção, no sentido de que com suporte nas capacidades culturais
humanas exercitadas na produção cultural se faz o novo na humanidade.
Para Hall (1997) ao discutir cultura, já observava que, com relação ao século XX,
a expansão da cultura não tem precedentes na história e mostrava, também, que desde então,
se começou mais fortemente a perceber seu lugar na constituição da subjetividade, nas
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identidades das pessoas. Há, na ideia de ambos, um ponto comum: a compreensão das
possibilidades de elaboração do novo com origem no sujeito – o que não implicava que o
sujeito se constituía como esfera pairando sem realidade, sem suas injunções concretas.
A coordenadora do MEB mostra que, após constituída e formada a equipe estadual,
se iniciava o processo de articulação com as pessoas das comunidades para implantação das
salas de aula. Vejamos, então, como o processo era realizado:
A chegada dos supervisores na comunidade, previamente escolhida, com a ajuda do vigário responsável pela região, era muito interessante. A equipe usando carro de som e alto falante, convocava as pessoas para uma reunião no local escolhido, e explicava o que era o MEB. Em geral, era na frente da igrejinha ou de um lugar indicado por eles. Essa reunião era feita a luz de lampião. A gente subia no carro e com alto falante fazia aquele discurso para eles todos, dizíamos que estávamos ali para trazer uma experiência de educação para eles. Depois de explicar, a gente se realmente aquilo interessava. Eles diziam que interessava e depois de bem dizer em que consistia a escola, que não era aquela escola só para aprender, mas para discutir com eles os problemas, dizíamos que e a gente queria que eles indicassem uma pessoa para ser monitor, que deveria ser uma pessoa que já sabia ler e que aceitasse realizar um trabalho voluntário. (R. A.T, entrevista outubro de 2012).
A intenção “fazer uma experiência educacional” está muito clara no texto deste
relato. Sublinha-se, muito, na ideia de pertencer à esfera da vida cotidiana dos sujeitos. Vê-se
que uma experiência proposta, nos termos destes relatos, parece remeter a uma concepção de
vivência repartida; requer um compromisso, como se vai ver em seguida, implica
conhecimento partilhado a ser constituído e acolhido a uma educação de base, vista como
processo de leitura do cotidiano e das necessidades primeiras do ser humano.
Após a escolha e indicação dos monitores pelas comunidades, eles participavam de
uma formação inicial para que pudessem assumir o trabalho de alfabetização de adultos nas
suas comunidades. Assim falou a educadora:
O mesmo trabalho a que fomos submetidas na formação com a equipe do MEB nacional, fizemos com os monitores. Partia-se da experiência de cada um; tinha aquela tempestade de ideias e os trabalhos de grupo. Os grupos estudavam, voltavam e iam para a conclusão e o que era produzido por todo mundo é o que era o resultado final, com a supervisão intensa dessa equipe. Fazia dramatizações, tinha um momento onde eles eram os monitores e nós éramos alunos. Nós levávamos o script das aulas para eles poderem seguir; tudo bastante praticado era um treinamento muito participativo. Na medida do possível, a gente contava também com as lideranças locais, seja na área de artesanato, seja na área de pessoas que eram líderes comunitários. Os monitores indicavam e a gente convidava pessoas que gostavam de cantar. Várias vezes, nós convidamos Patativa do Assaré na região do Cariri, que fez
95
versos sobre as escolas radiofônicas e que ficou com a gente nesse caminho. (R.A.T, entrevista outubro de 2012).
Observa-se, novamente, a ideia de experiência como um ponto de partida e a
ênfase conferida à cultura popular, nas formações vividas no MEB, sempre com base no que
acreditava Freire: a alfabetização se inseria no âmago dos problemas existenciais das pessoas,
pois ela se dava ao mesmo tempo em que a sua conscientização gradativamente ia emergindo.
Mediante "situações existenciais", da vida cotidiana, o debate era conduzido, de tal modo que
os alunos iam se tornando conscientes do seu próprio contexto, de como é, e de como poderia
ser; isto é, "[...] uma experiência susceptível de tornar compatível sua existência de trabalhador
e o material que lhes era oferecido para aprendizagem." (FREIRE, 1980, p. 41). Isso se
fundamenta nos pressupostos explícitos no III capítulo da Pedagogia do Oprimido, e, ainda,
quando diz que "O homem não pode participar ativamente na história, na sociedade, na
transformação da realidade, se não é auxiliado a tomar consciência da realidade e da sua
própria capacidade de transformá-la." (FREIRE, 1980, p. 40).
É possível ver que, quando a educadora diz que o movimento se propunha,
também, à busca aos líderes comunitários e suas práticas, e ainda ao artesanato e à arte – no
caso, menciona mesmo Patativa do Assaré e seu cantar – parece referir-se a uma concepção de
experiência que vale refletir mais sobre ela. Como exemplo, posso tomar experiência como
cultura, claramente percebida, como luta social e, também, como um movimento histórico que
se dá no presente e problematiza o futuro, nas “Cartas a Cristina”, de Paulo Freire (2003, p.
149):
Fazia parte, também, da natureza do movimento uma compreensão crítica do papel da cultura no processo de formação como no da luta política pelas necessárias mudanças de que a sociedade brasileira precisava e continuava a precisar. Da cultura em geral e da cultura popular em particular, como da educação progressista, de crianças, de jovens e de adultos.
Superando a concepção mecanicista da cultura como superestrutura, que segue a
reboque da infraestrutura, Freire detalha a dialeticidade do papel da cultura, na constituição da
experiência de transformação que sedimenta toda educação:
Na concepção mecanicista da história, em que o futuro desproblematizado, é algo conhecido por antecipação, o papel da educação é transferir pacotes de conhecimentos previamente sabidos como úteis à chegada do futuro já conhecido. Na concepção dialética, por isso mesmo não mecanicista da história, o futuro eclode da transformação do presente como um dado dando-se. Daí o caráter
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problemático e não inexorável do futuro. O futuro não é o que tem de ser, mas o que façamos com e do presente. (FREIRE, 1994, p.23).
A não inexorabilidade do futuro se articula, portanto, com uma visão de
experiência com as classes populares, o que implica na percepção da dialeticidade dos
processos históricos e da cultura como educação. No percurso formativo que ora me refiro, vê-
se que, ao retornarem da formação, os monitores iniciavam o trabalho nas comunidades,
considerando o objetivo do MEB de fazer uma educação popular. Vejamos a perspectiva dessa
visão, com base neste depoimento explicativo do tipo de trabalho que o MEB objetivava:
O MEB tinha um trabalho de Educação Popular para atingir as pessoas da zona rural; daí que o instrumento principal era o rádio. Os nossos programas eram escutados e discutidos por várias comunidades rurais. Era alfabetização de adultos pelo rádio (F. L. S, entrevista outubro de 2012).
Para aprofundamento da compreensão sobre a necessidade e importância da
formação do educador, recorro ao posicionamento de Freire, quando, em entrevista à Pelandré
(2005, p. 63), o Pensador lembra:
A formação é absolutamente chave. A formação para nós é permanente. Isso é uma coisa que aprendi [...] trabalhando no Sesi, nos anos 40. Para mim a formação permanente se faz a partir da reflexão sobre a prática. É pensando criticamente a prática que você desembute dessa a teoria que você conhece ou não. (FREIRE, 2005, p. 63).
O autor assevera que a formação do educador deve ser um processo, isto é, sem
intermitências, e também chama atenção para o significado de o educador desenvolver a
capacidade de reflexão crítica sobre a prática educativa que desenvolve. Associa, pois, reflexão
crítica à ação em um conceito de práxis – ação-reflexão-ação que deve embasar uma óptica de
formação na perspectiva freireana.
Foi exatamente no SESI, como uma espécie de contradição sua que vim aprendendo, mesmo quando ainda pouco falasse em classes sociais, que elas existem em relação contraditória. Que experimentam conflitos de interesses, que são permeadas por ideologias diferentes, antagônicas.A dominante, surda à necessidade de uma leitura crítica do mundo, insiste no treinamento puramente técnico da classe trabalhadora, com que esta se reproduz como tal; a dos dominados ou ideologia progressista que não separa formação técnica de formação política, leitura do mundo de leitura do discurso. A que desvela e desoculta. (FREIRE, 1994, p. 118).
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Observo, com Freire, que a ideia de formação, como se vê na práxis do MEB,
mostra que formação técnica e formação política estão intimamente imbricadas, nas práxis
educativas, e a leitura de mundo permeia a leitura do discurso.
Os próximos relatos demonstram como o MEB realçava o cuidado com a formação
do educador e a necessidade de clareza sobre os pressupostos que fundamentavam a práxis dos
que atuavam na educação de base. Vejamos os relatos neste sentido:
Ao ingressar no MEB, pelo que eu observava, algumas coisas eram feitas por convicção de uma ou outra pessoa dentro da equipe, mas a maioria não tinha consistência filosófica do que fazia. Fiz a proposta de que o primeiro trabalho nosso fosse estudar o livro “Educação como Prática da Liberdade” de Paulo Freire. Dividi as tarefas e cada grupo ficou com um trecho e a gente discutia. Aquilo deu uma nova visão para a equipe. As pessoas começaram a entender porque estavam fazendo aquilo que faziam. (F. L. S, entrevista outubro de 2012). Periodicamente, a cada semestre, nós fazíamos um encontro com esses monitores, onde a gente estudava Paulo Freire para fundamentar porque se estava trabalhando aquela metodologia. (R. A. T, entrevista outubro de 2012).
A narrativa demonstra que não havia separação entre metodologia e
fundamentação teórica, pois a prática era trabalhada concomitante à compreensão teórica que a
embasava; muito diversa da ideia de formação como mera informação, da qual se extirpam as
experiências vividas como inserções demoradas na realidade.
Freire, ao participar vivamente deste diálogo com os sujeitos que viviam as
experiências populares, discorre sobre a epistemologia da prática educativa e, para tanto,
chama atenção de um dos principais pressupostos do seu pensamento político-pedagógico, o
entendimento da educação como ato político.
A prática educativa é um ato político. Quer dizer, nunca houve, não há, e se os homens e as mulheres continuarem sendo mais ou menos o que são hoje, daqui a quinhentos anos, se a gente não sofrer uma radical mudança, a gente vai continuar epistemologicamente curioso. Então, a curiosidade não é gratuita, a curiosidade não é neutra. O Conhecimento a que esta curiosidade nos leva compromete a base de uma opção, de um sonho, de uma utopia que são políticos. Então, nunca houve uma educação neutra. A educação é uma prática política. (FREIRE, 2005, p. 55).
A não neutralidade da ciência e, também, da educação, implica concretamente uma
não neutralidade da formação dos educadores. Sendo assim, é compreensível o fato de que não
se pode ignorar a natureza transitiva da prática pedagógica, tomando-se transitiva no sentido
do transbordamento da prática pedagógica. Assevera Freire, conforme entrevista transcrita por
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Pelandré (2005), ser preciso superar a forma não transitiva da educação e propõe-se que a
prática libertadora em educação deve conduzir, também, a uma relação com a não
inexorabilidade do amanhã:
A natureza da prática pedagógica, [...] é sempre uma prática transitiva, quer dizer ela é uma prática que não cabe dentro dela mesma, é uma prática que implica sujeitos que são o educador e os educandos, que implica métodos e técnicas com que se trata o objeto e que implica também e sobretudo um amanhã – a que essa prática pretende chegar. E esse amanhã não um amanhã inexorável porque ele é problemático. Nesse amanhã estão postos valores, estão postos os sonhos do educador, da educadora e dos que pensam a prática educativa de outra maneira. (FREIRE, 2005, p. 56).
Nas próximas narrativas os educadores explicitam como funcionavam as aulas pelo
sistema radiofônico que o MEB trabalhava.
A aula mesmo era dada pelo rádio. Cada núcleo recebia um radinho de onda cativa, que era um rádio que só pegava aquela rádio, era a Rádio Educadora de Sobral. Aqui em Fortaleza só pegava a Rádio Assunção. Aquele líder, previamente treinado, botava o radinho num lugar que todo mundo pudesse ouvi-lo bem, o pessoal se sentava em círculo, semicírculo e a aula vinha pelo rádio. Eram trinta minutos de aula pelo rádio aí a gente terminava a aula geralmente com uma sugestão de atividade que seria feita pelo grupo sob a orientação daquele coordenador que era chamado de Monitor. Era assim que era a aula, e a gente fazia visitas às comunidades rurais para orientar e complementar as informações do rádio. Ficávamos hospedados na casa das pessoas da comunidade. Era um trabalho empolgante demais, porque a gente via a realidade das pessoas. Para mim foi um impacto muito grande, eu até digo que eu fui começar aprender a falar depois que comecei a trabalhar no MEB. Não que me faltasse o conteúdo, o conhecimento, mas a forma de falar era que não se adequava às pessoas que tinham que me escutar. (F. L. S, entrevista outubro de 2012).
Nesta narrativa, está a confirmação do que Freire sempre evidencia em suas obras:
“educador aprende no ato de ensinar”, e também de que o programar – planejar – deve ser
necessariamente com a participação dos sujeitos envolvidos no ensino-aprendizagem.
Para o Educador do MEB, as visitas às comunidades para complementar as
informações do rádio, exprimem a ideia clara de que a experiência popular precisava ser
ouvida, e examinada, para fornecer os elementos de uma reapropriação da cultura.
Quando fui trabalhar no MEB é que comecei a aferir o que eu dizia com a forma de falar das pessoas. Eu fui tendo o maior cuidado e me adaptando para falar o linguajar das pessoas. A partir daí que comecei a detectar que só existe comunicação se houver identificação. Se a gente se tornar parecido a gente se comunica. Se a gente não se tornar parecido a gente não se comunica. Se eu quiser mostrar só erudição, sabedoria competência, eu não
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digo nada para quem está me escutando. Eu tinha, de certa forma, que me assemelhar no linguajar com as pessoas para que eu pudesse falar uma linguagem que elas entendessem. Tudo isso baseado no pensamento de Paulo Freire, na filosofia de Paulo Freire de trabalhar o círculo de cultura, que naquela época foi algo revolucionário, porque a aula tradicional era aquela aula que o professor ficava lá na frente dando aula para quinze ou vinte pessoas... Fazendo alfabetização naquele processo. Lá não. A gente pegava o orientador que era um deles também. Era uma pessoa daquelas dali da comunidade. Não era formado, não tinha nem grau de instrução, talvez no máximo soubesse ler. Mas, tinha certa facilidade de conduzir o grupo e nessa condução coletiva do grupo eles iam construindo o conhecimento, embora não tivesse uma cartilha pré-estabelecida, porque o círculo de cultura pressupunha o levantamento do universo vocabular. (F. L. S, entrevista outubro de 2012).
O Educador ao observar que a sua forma de falar não se coadunava às pessoas que
tinham de escutá-lo, assinalava, ainda, que a noção crítica de ideologia não era suficiente sem
esse movimento pedagógico que exigia um fazer concreto junto às populações com quem se
trabalhava, (re)conhecendo-as.
A inter-relação da ideologia, como conhecimento e o poder é tocada a todo tempo,
sem que o sujeito desapareça, com seus devires. A pedagogia não era reduzida a uma lógica
de operar com o ensino, mas se assentava em um constante deslocamento de lugar entre
educador e educando, por meio do diálogo, que ensinava a aprender.
A ideia de consciência política no centro da leitura crítica de mundo, visando
transformações concretas das condições de vida do povo, ensinava, desde então, a colocar a
ação defronte à utopia, como baliza dos caminhos a seguir.
É dele, Paulo Freire a ideia de que a linguagem tem concretude simbólica e
precisa situar-se como expediente de transformação, para isso devendo auxiliar a saída da
pessoa de um lugar de objeto de sua vida, para a assunção do sujeito que, então, devia se
apropriar das mudanças a serem feitas, individual e coletivamente.
Sendo assim, posso dizer que se está diante de uma base que poderá ser lida como
uma espécie de Política da Cultura para ser estudada pelos educadores como forma de orientar
a ação pedagógica; uma ação pedagógica que pensa política na dialogicidade da vida repartida
e, portanto, critica o princípio da subjetividade como alienação que se restringe à participação
na política da representação.
Santos (1996) já se pronunciava sobre essa redução do princípio da subjetividade:
O princípio da subjetividade fica restrito à participação política, que faz depender do voto a participação política; e redunda em individualismo, pelo modo como vai sendo vivida a liberdade e a autonomia. Já o princípio da cidadania também se vincula fortemente à questão da participação política e,
100
esta à questão da representação. [...] a representação democrática assenta na distância, na diferenciação e mesmo na opacidade entre representante e representado”. E mais diz o autor: “Por via do caráter não problemático da representação e da obrigação política em que ela assenta, a base convencional do contrato social acaba por conduzir à naturalização da política, à conversão do mundo numa entidade onde é natural haver Estado e indivíduos e é natural eles relacionarem-se segundo o credo liberal. A naturalização do Estado é o outro lado da passividade política dos cidadãos; a naturalização dos indivíduos é o fundamento da igualdade formal dos cidadãos [...] (SANTOS, 1996, p. 238, grifo meu).
Pode-se supor, mais, que hoje se estaria frente a frente com duas ordens de
aprendizagens, quando articulados o social e o singular, a vida coletiva e o sujeito: as
aprendizagens experienciais e as aprendizagens reflexivas, ambas se articulando com as
aprendizagens relacionais e as do fazer.
Isso parece significar, para os sujeitos que ora escuto, na pesquisa, que há uma
ligação profunda entre práxis social e pedagogia, que, depois de Freire, tomou um acento
exclusivamente voltado para o fazer dialógico de transformar mundos, mediado por saberes
de experiência; e que esse campo de tensões não se separa da cultura, implicando “que o
educador deve sair do lugar que está para ir ao encontro do outro” e, também induz a ideia de
uma dialética da cultura que deve conduzir a uma compreensão de totalidade.
Como observa Santos (1996), a chamada, por ele, constelação ideológica-cultural
hegemônica, na Modernidade, submete a emancipação:
Se é complexa a relação entre subjetividade e cidadania, é-o ainda mais a relação entre qualquer delas e a emancipação. Porque a constelação ideológica-cultural hegemônica do fim do século parece apontar para a reafirmação da subjetividade em detrimento da cidadania e para a reafirmação desigual de ambas em detrimento da emancipação [...] (SANTOS, 1996, p. 235).
E anota mais, referindo-se ao projeto da Modernidade:
[...] o projeto da modernidade é caracterizado, em sua matriz, por um equilíbrio entre regulação e emancipação, convertidos nos dois pilares sobre os quais se sustenta a transformação radical da sociedade pré-moderna. O pilar da regulação é constituído por três princípios: o princípio do Estado (Hobbes), o princípio do mercado (Locke) e o princípio de comunidade (Rousseau). O pilar da emancipação é constituído por três dimensões da racionalização e secularização da vida coletiva: a racionalidade moral-prática do direito moderno; a racionalidade cognitivo-experimental da ciência e da técnica modernas; e a racionalidade estético-expressiva das artes e da literatura modernas. (SANTOS, 1996, p. 236).
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Freire parecia, sempre, sugerir, desse modo, pelo que se escuta na formação
vivida pelos educadores que estamos a ouvir, que se chega à totalidade, agudizando-se o aqui
e agora com o outro – um outro unido dialogicamente a um nós; a uma coletividade em
diálogo mediado por um fazer concreto, uma ação libertadora. Libertando-se de uma falsa
consciência, então, o sujeito realiza a assunção de si como sujeito de sua história individual e
coletiva, alçando-se ser da práxis.
Prosseguindo, o Educador do MEB assinala a rica tarefa de alfabetizar, tendo
como referência o pensamento freireano:
[...] Tudo baseado no pensamento de Paulo Freire, na filosofia de trabalhar o círculo de cultura, que naquela época foi algo revolucionário. [...] porque o círculo de cultura pressupunha o levantamento do universo vocabular. Partia-se das palavras geradoras que são do uso comum daquelas pessoas, que tem peso afetivo, peso emocional para aquelas pessoas e peso que tem importância na vida daquelas pessoas. (F. L. S, entrevista outubro de 2012).
Era percebida a necessidade de se trabalhar sobre temas sociais trazidos pelos
educandos, os quais se transformavam em temas geradores, nas salas de aulas vinculadas ao
MEB. Os temas geradores deveriam buscar a perspectiva dos sujeitos e sua cultura, das
realidades vividas por eles nos cotidianos de suas comunidades. Muitas vezes se resvalou para
a compreensão de que o tema gerador se restringia a se trabalhar nos termos do universo
vocabular dos sujeitos aprendentes. Na verdade, havia um mote – temas sociais a serem
trabalhados e encaminhados para problematizações – e, também, a compreensão do aspecto do
alfabetismo como linguagem; daí a necessidade de se ater, também, ao universo vocabular das
pessoas:
A aula radiofônica tinha um script: na hora de fazer o dever, orientava-se a escrever no quadro; ele escrevia. Na hora dos alunos copiarem ou fazer o exercício, entrava aquela música para dar o tempo para eles fazerem aquela atividade. Tinha também a parte da discussão mesma do tema. Geralmente tinha um tema social, nunca era só a questão da escrita e da leitura não. Tinha um debate e sempre eram eles que davam o mote. [...] Por exemplo, saúde: o cuidado com a água, a questão da limpeza, da higiene e a questão deles começarem a se reunir em torno de alguma coisa. Eles não ficavam restritos ao MEB, à escola radiofônica, mas tentavam sair de dentro da escola e se organizarem, e a partir daí eles começavam... (R. A.T, entrevista outubro de 2012). Teve gente que se organizou... que se sindicalizavam... Até esse debate sobre as questões mais fundamentais do ser humano, da questão da saúde, do direito a escola, isso tudo eram temas que na cabeça dos militares era instigar a uma
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subversão. Essa questão já de se reunir para discutir, para levar isso aí, já não era bem visto, não era mesmo. (R. A.T, entrevista outubro de 2012).
Continuando sua narrativa, a Coordenadora contextualiza a realidade vivida pelos
camponeses que participavam das aulas do MEB:
Os camponeses eram muito sofridos. Não tinham nenhuma orientação no sentido de se reunir, de se agregar, de discutir os problemas deles, de achar que eles tinham contradições, de fazer valer esses direitos como cidadão, de ter acesso a escola e a saúde, por exemplo. Então, era esse o objetivo do MEB – fazer com que o camponês despertasse para a importância de aprender a ler, mas num contexto maior. (R. A. T, entrevista outubro de 2012).
Lembra, ainda, que, nas aulas eram discutidas questões ligadas as condições
concretas de sobrevivência, como, por exemplo:
Como é que está a saúde? Vocês tem médico? Vocês tem escola? Como está o trabalho? De que é que vocês vivem? O que é que vocês comem? Todas essas questões eram objeto de discussão nas nossas aulas. Tem toda uma história sobre a questão da conscientização, que era um termo muito usado pelo Paulo Freire e pelo MEB. A gente começou a estudar e a se preocupar com a metodologia, porque a grande preocupação da equipe e do próprio projeto do MEB era ensinar a ler não só no sentido de aprender a escrever e a fazer uma leitura, mas, num sentido de um aprendizado engajado com a realidade, uma realidade que à época era muito difícil. (R. A. T, entrevista outubro de 2012).
A memória sobre a metodologia utilizada nas aulas demonstra que os educadores
atuantes no MEB vivenciaram em sua práxis um dos pressupostos fundamentais do
pensamento político-pedagógico freireano, que é o diálogo, defendido por Freire como um
princípio dialético da educação como prática da liberdade.
Vejamos com detalhes como por sobre uma ambiência de precariedades se
constituía um ideário de formação junto ao povo:
Era muito precária a situação em alguns lugarejos, porque quando tinha escola eles iam para a classe da escola existente, à noite. O monitor levava o lampião, levava o material e dava a aula dele. Quando não tinha escola, era num alpendre cedido. Ali eles botavam um banco e uma tábua em cima da perna para se apoiar e escrever. Era assim, que eles faziam o trabalho. Mas, eu nunca fiz o registro disso, não sei se alguém fez, escreveu sobre as coisas bonitas dessas aulas, da participação. (R. A. T, entrevista outubro de 2012) . Teve uma escola que visitamos onde o quadro negro era a porta da casa do monitor. Ele escrevia com carvão a palavra geradora. Trazíamos essas dificuldades para direção do MEB, para quem subsidiava o trabalho. Que além do rádio, tínhamos que dar um quadro. Ou seja, dar as mínimas
103
condições para que o trabalho acontecesse. (R. C, entrevista outubro de 2012).
Nestes depoimentos, consto que as dificuldades relacionadas às condições de
funcionamento da sala de aula não constituíam impedimentos para o trabalho pedagógico. A
partir das dificuldades vivenciadas no processo tanto das lutas sociais quanto no acesso à
educação, em particular na alfabetização, se seguia fortalecendo os sujeitos em sua educação
libertadora.
Os estudos sobre a produção teórica e a prática freireana em educação mostram,
com seu conceito de conscientização, o lugar da cultura como formulação social e seus
condicionantes no mundo das pessoas. Por meio do diálogo, no entanto, parece conferir lugar
de transformação ao que a esfera intersubjetiva pode fazer em termos de mudança social, não
ficando esta a reboque da estrutura social que a influencia.
Os relatos permitem a compreensão de que as práticas educativas comprometidas
com a aprendizagem dos que dela participam dão-lhes lugar de sujeito no processo. Foi visto
no depoimento acima que os sujeitos da educação davam o mote, discutiam as palavras
geradoras e os temas que problematizavam: a participação nas aulas ia conferindo lugar de
sujeito das lutas sociais.
Nessa direção, as aprendizagens eram desenvolvidas numa sistemática de
acompanhamento pedagógico que levavam a análise da práxis vivida. Nesta análise da
realidade, eram redimensionadas as práxis das lutas sociais. Como dizia uma das educadoras:
“teve gente que se organizou... E se sindicalizou...” Não é possível esquecer que o MEB foi
fundado sob a égide da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que de alguma
forma promovia a ideia de sindicatos rurais apoiados pela Igreja. O MEB, por essa razão, era
visto como instrumento educacional para a fase preparatória do Movimento. Suas escolas
radiofônicas cobriam a maior parte da área onde os sindicatos estavam sendo criados. Segundo
Emanuel De Kadt (2007, p. 189),
O MEB representava para a hierarquia excelente meio de assegurar a penetração da doutrina social cristã no campo. Os camponeses com os quais eles já haviam estabelecido contato deviam ser educados pelo Movimento para atividades sindicais e preparados para o momento em que os sindicatos de orientação cristã pudessem ser instalados.
Na perspectiva freireana, a práxis comporta reflexão da ação e este processo ocorre
com tomada de consciência, pelos educadores e educandos, sobre a importância da permanente
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reflexão crítica sobre a prática educativa. O caráter não espasmódico ou pontual da crítica é
assinalado; enfatiza-se, como se vê, o aspecto permanente da práxis, que deve transitar dos
processos coletivos de análises das salas de aula para os processos da vida comunitária. Essa
concepção é explicitada também nas narrativas que demonstram como funcionava a
sistemática de acompanhamento da ação didática nas salas de aula em sua conexão com a
cultura.
A gente tinha certo cuidado porque as supervisões elas chegavam assim de momento, não era preparado o aluno para receber a visita. A gente [...] entrava e pedia licença ao monitor e dizia: olha você fique bem à vontade, mas é porque a gente gostaria de vê como é que os alunos estão reagindo. Para nós que fazemos parte da equipe, que acompanhamos, é muito importante saber se o trabalho está dando certo. Se você está conseguindo. Se os alunos estão realmente respondendo; se está sendo fácil para eles. E aí a gente ficava num canto lá atrás onde podia e assistir a aula. E ouvia muito também os depoimentos deles; a gente perguntava, eles diziam. É difícil lembrar textualmente assim, o que eles falavam, mas era um entusiasmo! A gente sentia um astral bom do monitor, dos alunos também, as pessoas num esforço muito grande, pessoas idosas, crianças também, tinha gente depois de onze, doze anos... Eles estavam todos juntos, não tinha idade; era quem quisesse. (R. A. T, entrevista outubro de 2012).
Este depoimento tem um traço importante a mais, em relação ao acompanhamento
pedagógico: a alegria e o entusiasmo dos sujeitos envolvidos no trabalho de alfabetização de
que participavam fazendo perguntas, como também, o envolvimento dos que acompanhavam o
processo coletivo. Isso, em boa parte, resultava dos círculos de cultura, que "[...] trazia a
cultura popular, a situação de vida do povo, com suas verdadeiras crenças e valores que
haviam sido obscurecidos pela imposição de elementos da cultura alienada." (DE KADT,
2007, p. 132). Por sua vez, Freire (1994, p. 83) referia-se ao assunto desta maneira:
O ato de estudar, de ensinar, de aprender, de conhecer é difícil, sobretudo exigente, mas prazeroso. Como nos adverte George Snyders, “é preciso, pois, que os educandos descubram e sintam a alegria nele embutida, que dele faz parte e que está sempre disposta a tomar todos os que a ele se entregam.
O trabalho da Professora-locutora, na compreensão de uma professora, como se vê
em seu depoimento, devia-se abrir para uma supervisão, também, na medida em que
supervisão era entendida como aproximação com os educandos e da sistematicidade do
acompanhamento pedagógico. A função supervisora tem, na concepção freireana que
embasava e orientava as ações do MEB, este movimento de “imersão” que não descuidava o
afastamento crítico.
105
Nós tínhamos, também, o trabalho do supervisor que acompanhava in loco como é que estava. [...] Eu não fazia muito esse papel de supervisora porque eu era professora-locutora, mas, exatamente para poder obedecer toda a concepção de Paulo Freire, de que a gente tem que estar imerso na realidade; nesse sentido, eu também fazia supervisão periodicamente. Era interessante que, quando eu chegava era uma surpresa - porque eu era muito jovem? Qual é a imagem da professora? Mais velha, gorda, de óculos. Chegava uma jovem que não tinha essas características, eles estranhavam. Como eu sempre tive uma voz mais gutural, aparentava ser uma pessoa bem mais velha do que eu era. Era muito rico, quando eu chegava para estar neste espaço onde eles trabalhavam. (R. C, entrevista outubro de 2012).
No trabalho empírico da pesquisa, procurei, também, entender como era percebida
a evolução do educando em relação ao processo de aprendizagem da leitura e da escrita, no
sentido estrito.
Havia uma metodologia, e essa metodologia possibilitava a aprendizagem. Uma das coisas muito utilizadas foi a questão das palavras geradoras. Eles escolhiam a palavra, por exemplo, a palavra “pote” [...]. Eles acabavam lendo; havia leitura; a formação de novas palavras e tudo ligado a uma discussão em torno da água, no caso do “pote”, em torno do trabalho artesanal. Era uma coisa puxando a outra. A professora-locutora ia levando o monitor a desdobrar aquelas palavras e formar novas palavras, frases e a escrever. (R. A. T. entrevista outubro de 2012).
Aí residia o cerne do método, que não era de responsabilidade só do professor, pois
o aluno tomava parte ativa no direcionamento das discussões. Para Freire (1980, p. 41), isso
significava uma alfabetização que era,
[...] ao mesmo tempo um ato de criação capaz de gerar outros atos criadores; uma alfabetização na qual o homem, que não é passivo nem objeto, desenvolvesse a atividade e a vivacidade da invenção e da reinvenção, característica dos estados de procura.
E, continua a Professora locutora, comentando:
Na época, a gente trabalhava [...] através do rádio com 4 (quatro) meses eles se alfabetizavam, porque estava muito voltada para aquilo que Paulo Freire mais defendeu: que se aprende a ler com mais facilidade se a alfabetização trabalhar com o que está ligado diretamente com a vida, com o cotidiano, com a existência. Então, se nós trabalhávamos, por exemplo, a palavra “enxada”, tinha um conteúdo simbólico, emocional e cultural para aquele camponês que, rapidamente, tinha acesso aos símbolos da leitura e da escrita. Claro que a partir do conceito de conscientização, de qual é o lugar em que você vive, qual é a identificação que você tem com aquele lugar e as palavras geradoras. Isso aprofundava a consciência crítica e a conscientização da situação vivenciada. Mas, paralelamente a isso, tinha-se o interesse profundo do aprendizado da leitura e da escrita e eles faziam cartas todos os sábados. Nós tínhamos um programa especifico que era respondendo as cartas que eles
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faziam, e nós líamos as cartas neste programa, cartas de pessoas que chegavam completamente sem dominar a simbologia da leitura e da escrita; então, o programa do sábado era um retorno desse aprendizado. (R. C, entrevista outubro de 2012).
Com estas características, o método buscava que o processo de alfabetização se
desse pelo próprio analfabeto, de dentro para fora, ajudado pelo educador, numa dinâmica em
que o conteúdo e o processo de aprendizagem se identificavam, na medida em que havia aí
muito mais do que "[...] o simples domínio mecânico de técnicas para escrever e ler."
(FREIRE, 1980, p. 72).
Eu me lembro, por exemplo, quando trabalhava as palavras geradoras, uma palavra geradora fortíssima era a palavra “vida”. Essa palavra, eu me lembro da surpresa que eles tinham, que hoje é provado isso no construtivismo. Como é que uma palavra com o peso emocional que essa, a palavra vida era tão pequena? Eles conseguiam formar mais de 10 (dez) novas palavras com a palavra vida a partir da junção dos fonemas. Esse método, claro que hoje a concepção é outra, mas naquela época de fato funcionava... Numa região profundamente castigada pela seca, pelo subdesenvolvimento, pela pobreza, onde as pessoas iam pra aula à noite, depois de um dia inteiro na roça e nós presenciávamos isso à medida que a gente fazia a supervisão. (R. C, entrevista outubro de 2012).
A narrativa da Professora-locutora confirma a ousadia e a inovação proposta por
Freire quanto a desenvolver o processo de alfabetização com suporte em palavras geradoras do
universo social e cultural dos educandos que, associadas à problematização das palavras no
contexto existencial destes, possibilitava a aprendizagem da leitura e da escrita, não somente
nos aspectos da codificação e decodificação, mas, também, a compreensão crítica da realidade
em que estavam inseridos. Sobre a alfabetização, Freire assim se posicionou: “Eu diria que,
necessariamente a alfabetização é capitulo importante, um dos primeiros capítulos da pratica
docente, pratica educativa.” (FREIRE, 2005, p. 55). O Pensador chama atenção para a ideia de
que,
Aprender a ler e escrever deve se constituir numa oportunidade para que os homens conheçam o verdadeiro significado da expressão dizer a palavra: um ato humano que implica reflexão e ação. Como tal, trata-se de um direito humano primordial, e não privilégios de uns poucos. Dizer a palavra não é um ato verdadeiro a menos que esteja simultaneamente associado ao direito de auto-expressão e expressão do mundo, de criar e recriar, de decidir escolher e, em última análise, de participar do processo histórico da sociedade. (FREIRE, 1987, p. 12).
Este diálogo tem continuidade com outra protagonista desta história, que narra sua
práxis de alfabetização de adultos no bairro Pirambu localizado em Fortaleza.
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5.2 Alfabetização de adultos no bairro Pirambu: memória da práxis
Nesta sessão, é analisada a experiência desenvolvida pela Congregação Coração de
Maria, instituição ligada à Igreja Católica. Fundamenta-se nas narrativas de uma cratense. Esta
professora pertencia à referida Congregação e, ao chegar a Fortaleza, foi convidada pelo Padre
Hélio Campos para residir e atuar no trabalho de organização comunitária no bairro Pirambu.
Por ser a proposta político-pedagógica freireana profundamente enraizada na
realidade sociocultural, histórica e política dos sujeitos pertencente às camadas populares, não
é possível trabalhar a experiência de alfabetização em foco sem antes situar a realidade em
viviam seus atores socias.
A história de constituição do bairro Pirambu, de certo modo, metaforiza a própria
história do povoamento dos bairros da periferia de Fortaleza, que foi se dando, em parte, com
o chamado êxodo rural.
A população de Fortaleza é composta por um número significativo de pessoas
provenientes de cidades do interior do Ceará, principalmente, por camponeses que eram
expulsos das cidades em que nasciam em virtude da situação de extrema pobreza em que
viviam, agravando-se nos períodos de seca. Esses camponeses eram denominados/conhecidos
como os “retirantes da seca”, realidade que se transformava no conhecido fenômeno do êxodo
rural.
Na realidade, a “história nova” que Capistrano de Abreu trabalha em seu livro
“Capítulos da História Colonial” (1963), no qual dá voz aos excluídos e, nesse objetivo,
recorre a narração da história dos sertões. Nesse sentido, pode-se pensar a povoação do Ceará
com origem nesse movimento de territorialização, que tem na migração campo-cidade uma
chave de compreensão importante, sustentando que o sujeito da história do Brasil não é o
Estado Imperial, mas o povo brasileiro, Capistrano devolve a dignidade ao sertanejo e ao
sertão, lugar de base da povoação brasileira.
Deste contexto de reflexão, parte-se para ver nos camponeses que se deslocavam de
suas cidades interioranas, cheios de esperança de encontrar opções de sobrevivência na
Capital, sujeitos históricos de uma história do Ceará, e, também, de um povo - o povo
brasileiro, malgrado o pluralismo dos grupos sociais diversos, heterogêneos, que compõem a
história.
Assim, os sertanejos que chegavam a Fortaleza para sediarem-se nos anos 1930 nos
chamados “campos de concentração” (RIOS, 2006), dentro de algumas décadas, passaram a
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inverter o sentido do povoamento, de modo que, nos anos 1960, o fenômeno da inchação das
cidades e da inserção dos migrantes advindos do sertão para o mundo urbano era uma
realidade.
Aqui chegando, os sertanejos vindos do interior do Ceará se abrigavam em
localidades próximas ao mar, pela possibilidade de sobrevivência mediante a pesca ou, então,
se achegavam aonde vislumbravam opções de trabalho, de modo que muitos bairros de
Fortaleza iam sendo assim constituídos. Pirambu é um destes, situado na zona oeste, à beira-
mar entre o Arraial Moura Brasil e a Vila Santo Antônio, na periferia de Fortaleza. A maioria
de sua população foi constituída de “retirantes da seca”.
O fluxo de pessoas das camadas populares na orla marítima, espaço inicialmente
ocupado por colônias de pescadores, vai sendo paulatinamente se transformando em grande
favela. Nesse espaço de migração intensa, os retirantes acabaram deixando a condição de
flagelados, passando a viver como favelados.
A história do bairro Pirambu, assim como a de muitos bairros de Fortaleza, não
deve ser conhecida somente pela óptica do conteúdo ideologizado, comum às formas
noticiosas veiculadas pelos meios de comunicação, que silenciam sobre os processos de vida e
luta das populações da periferia. Não se há de esquecer que as pessoas que lá residentes foram
expropriadas de seus direitos sociais e vieram, de certo modo, expulsas de suas cidades pela
ausência de condições dignas de sobrevivência e trabalho.
Mesmo neste contexto de negação de direitos, os retirantes não se acomodavam
diante dos limites que lhes eram impostos pela sociedade capitalista e estabeleciam alternativas
de intervenção na realidade social em que viviam.
Freire (1987), em sua Pedagogia do Oprimido, possibilita se faça uma reflexão
sobre as “situações-limite” vivenciadas pelos homens e mulheres na sociedade de classes,
asseverando que as situações-limite são aquelas que exigem transformações a serem feitas com
atos–limite. A reflexão da Pedagogia do Oprimido articula linguagem e sentido de luta,
fazendo com que a apropriação dos significados aprendidos na reflexão educacional possa ser
conteúdo e fala de vida, capaz de enfretamentos na direção das transformações dos limites – os
“destacados percebidos”, como observa Freire.
Para ele, a percepção dos limites expressos por um determinado momento histórico
deveria impulsionar ações de superação dos limites da realidade concreta – e é nessa medida
que o exercício da linguagem e do pensamento se constitui práxis histórica, senão vejamos:
109
[...] não são as “situações-limites”, em si mesmas, geradoras de um clima de desesperança, mas a percepção que os homens tenham dela num dado momento histórico, como um freio a eles, como algo que eles não podem ultrapassar. No momento em que a percepção crítica se instaura, na ação mesma, se desenvolve um clima de esperança e confiança que leva os homens a se empenharem na superação das “situações-limites”. Esta superação, que não existe fora das relações homens mundo, somente pode verificar-se através da ação dos homens sobre a realidade concreta em que se dão as “situações-limites”. (FREIRE, 2003, p. 90-91).
No Pirambu, a existência da Congregação Coração de Maria, filiada à Igreja
Católica, possibilitou que fosse instaurado, um trabalho de alfabetização de adultos, em meio
mesmo àquele contexto onde a população migrante estava desprovida de condições de vida
dignas. O trabalho educacional, nesse quadro de penúria e necessidades, passou a mobilizar a
população para participar de ações educativas, atividades potentes para estimular o renascer da
esperança na perspectiva de melhores condições de vida.
Uma das primeiras educadoras popular do bairro, protagonista desta história
rememora o início desta experiência de alfabetização ora refletida.
Padre Hélio Campos esteve no Pirambu e descobriu que tinha lugar na congregação, então ele me levou para lá [...]. Fizemos um galpão muito grande e neste galpão a gente tinha a escola durante o dia para criança e a noite para os adultos. Funcionava com lampião de gás, naquela época não tinha energia. Então, nós começamos a visitar as famílias e conseguimos cinquenta e tantos adultos interessados em se alfabetizar. Primeiro, fizemos uma reunião para ver como fazer esse trabalho. Eles queriam mesmo aprender! Começamos o trabalho de alfabetização em 1961, com os pescadores, operários da indústria oiticica e os que trabalhavam nas fábricas da Francisco Sá. (F. C, entrevista novembro de 2012).
Se, na atualidade, ainda constatadas dificuldades relacionadas à infraestrutura e à
carência de recursos pedagógicos na educação de jovens e adultos, como seriam, então, as
condições de uma experiência realizada em 1961, em um bairro de extrema pobreza e carência
cultural? Imaginemo-nos, doravante, entrando num túnel do tempo e nos transportando ao
início da década de 1960, e provavelmente tomaremos um enorme susto ao depararmos as
condições em que ocorria a prática educativa na comunidade. Vejamos:
A gente não tinha carteira, não tinha mesa, não. E começamos a pegar papel bem simples, papel jornal e começamos a recortar jornal, aquelas palavras grandes nas manchetes; pegávamos também nomes de alimentos, profissões; eles queriam também placa de carro, imóveis e nós formamos uma cartilha pelos interesses deles. Os interesses eram o centro de tudo. (F. C, entrevista novembro de 2012).
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Nesse “não tinha mesa, não tinha carteira” ficam implícitas a riqueza das pessoas e
a clareza com que os educadores freireanos vão trazer para o centro da vida os interesses das
classes subalternas. Nesse tempo, como disser, essa “dupla via” – a dos que estudam e a dos
que trabalham – vai se mostrando sem véus, e se percebe, também, a chamada
“espacialização” da pobreza, que vai se corporificar nos espaços de segregação vividos nas
cidades. Canário assim se pronuncia sobre o que nomeia de “processos de dualização social”:
A dualização social que decorre das alterações no mundo do trabalho é complementada por processos de dualização social decorrentes da “espacialização” dos problemas sociais, expressos nas sociedades ricas por verdadeiros fenômenos de segregação social e de criação de ghettos. [...]. A “metamorfose” da questão social aparece, assim, ligada a um fenômeno não desconhecido que marcou a primeira fase da modernidade e que, para usar a terminologia de Castel [...], corresponde ao regresso da “vulnerabilidade de massa” (CANÁRIO, 2009, p. 77).
A ausência de condições de infraestrutura e a dificuldade de acesso aos recursos
pedagógicos para o trabalho de alfabetização, relatadas pela educadora, confirmam o ambiente
dessa década no que concerne à falta de compromisso político dos governantes para com a
educação. Contrariamente, o compromisso e o desejo da Educadora de realizar o trabalho de
alfabetização, a direcionaram à busca de opções de intervenção para a ausência de recursos
didáticos, quando da elaboração de possibilidades de aprendizagem da leitura e da escrita,
reutilizando materiais que a princípio se transformariam em lixo.
Tinha um pessoal que veio do interior. Isso para mim foi o melhor, porque eles ensinavam coisas que eu não sabia. O jeito que puxava engenho, a manilha, os jumentos que carregavam as cargas, enfim, saiu enxada, saiu picarete, saiu cana de açúcar e até pilão. Em três meses a gente alfabetizava, era um método excelente. Então, para mim, isso é uma educação de base. Eu descobria e aprendia. (F. C, entrevista novembro de 2012).
Este relato demonstra como havia consciência do processo de alfabetização com
relação às referências freireanas, que defendia o respeito aos saberes da experiência de vida
dos educandos. E, também, foi visto acima que a relação entre educador e educando deve ser
de respeito mútuo e diálogo, para que o ensino-aprendizagem seja de permanente troca de
saberes.
Dentro desse ideário, Álvaro Vieira Pinto, filósofo brasileiro e contemporâneo de
Paulo Freire, compunha um diálogo de rica significação com o pensamento freireano.
Buscando uma reflexão que situava a filosofia dentro da tarefa histórica crítica de edificar a
111
educação brasileira, Pinto (1979) mostrava a necessidade de se deixar a situação que ele
chamava de cultura vegetativa, emprestada e imitativa, para uma “nova fase histórica” em que
o sujeito tenta compreender a si e ao mundo. Em suas palavras,
Para o país que precisa libertar-se política, econômica e culturalmente das peias do atraso e servidão, a apropriação da ciência, a possibilidade de fazê-la não apenas por si mas para si, é condição vital para a superação da etapa da cultura reflexa, vegetativa, emprestada, imitativa, e a entrada em nova fase histórica que se caracterizará pela capacidade, adquirida pelo homem, de tirar de si as ideias de que necessita para compreender a si próprio tal como é para explorar o mundo que lhe pertence, em benefício fundamentalmente de si mesmo. (PINTO, 1979, p. 104).
Essa reflexão do sujeito sobre si mesmo para se descobrir no seu mundo constitui
forma da realização da consciência, o que perfaz um estranhamento para se compreender e
compreender o que no mundo se posta como independente dela, como realidade objetivante.
senão vejamos:
A descoberta de si como fonte e executor do método de descobrir o desconhecido da realidade objetiva constitui a forma mais perfeita da realização da consciência pois a revela como simultânea unidade do pensar o ser existente independente dela e do pensar a si mesmo como centro do qual emana a ação inteligível capaz de refletir o ser objetivo. (PINTO, 1979, p. 502).
Mostrando, contudo, contradições no seio do povo, a Professora continua o seu
pronunciamento da seguinte forma:
Nós pegamos aquelas pessoas que se poderia supor das mais ignorantes que você possa imaginar. Às vezes eles bebiam tanto que eu dizia: - Será que eles vêm para a aula? Mas, na hora de vim para a aula, tomavam banho, trocavam a roupa e se perfumavam, você precisava ver. Eu achava aquilo muito interessante. Fazíamos o trabalho de cuidar do bairro: eles limpavam a rua, tiravam o lixo da rua, enterravam os buracos, era um trabalho de base. E o estudo vinha na ação de cuidado, na luta pela escola. A luta política começava aí. (F.C, entrevista novembro de 2012).
Mais uma vez, o relato da Educadora explicita a sua prática educativa, permitindo
a compreensão de que pertencer a um grupo e sentir-se partícipe de um processo de
alfabetização é estar implicada com a luta política da comunidade.
Isto também só era possível porque os educandos se sentiam valorizados como
seres humanos, o que, acredito desenvolvia neles o sentimento de pertença à comunidade.
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Neste sentido, pode-se dizer que o aspecto singular do sujeito humano não se diluía no pensar
coletivo, ao contrário, aí se gestava o exercício da pertença a esfera pública, onde o sujeito se
alça à sua largueza como humanidade.
A Educadora do Pirambu, então, destaca o fato de que, no trabalho de
alfabetização com adultos, o mais importante é: “contribuir para o crescimento da pessoa, fazer
a pessoa se descobrir e se valorizar. No trabalho de alfabetização na comunidade do Pirambu
eles lutavam para crescer”. Emocionada, ela rememora acontecimentos marcantes,
significativos, ocorridos na ação educativa que desenvolveu no bairro. Dentre eles, relata:
Eu me lembro que a primeira pessoa do bairro Pirambu que entrou na universidade; um repórter perguntou o que ele dizia para o público. Ele disse que: “a maior felicidade foi ter trocado uma peixeira por uma caneta”. Isso foi marcante, “trocar uma peixeira por uma caneta”, gente isso é demais. (F. C, entrevista novembro de 2012).
Eram imagens daquele tempo – diz a Professora entrevistada. A Educadora
acrescenta, também, que os alunos se orgulhavam de suas experiências de vida. Confirmando,
ela rememora um dos depoimentos dos educandos ocorridos durante o processo de
alfabetização:
Olha, eu sou pescador. Eu faço canoa, mas nem um de vocês vai me dizer com quantos paus se faz uma canoa. Você sabe com quantos paus se faz uma canoa? Era esse o diálogo que a gente tinha com o aluno. Alunos que dialogavam com a gente, tinham a linguagem deles. A linguagem é muito importante, faz parte da cultura. Essas pessoas que vêm bem da base, que vêm do interior, ou de tribos - muita gente vem, vinha de família de índios -, eles têm muita riqueza para passar para a gente, agora nós é que não sabemos aproveitar. (F. C, entrevista novembro de 2012).
Os depoimentos dos educandos, e também da Educadora, vão delineando, de um
lado, a esfera da práxis política – da ação concreta que se vivia junto às populações com quem
se atuava com educação; e, do outro lado, se ia corporificando uma visão de linguagem que
ligava intimamente a ação política à prática educativa alfabetizadora.
Junto a essa forma de questionamento da linguagem como ação política e da
alfabetização como leitura de mundo, segue-se todo um fazer de textos vinculados à realidade
local (na verdade, partindo dela, como queria Freire), que resultavam em uma prática de
elaboração de cartilhas no seio da vida concreta das populações com as quais se trabalhava.
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Neste sentido, se vê na formação pedagógica, que a Educadora recebeu para
desenvolver o trabalho de alfabetização com adultos, falas que apontam essa direção: “O
primeiro curso sobre o Método Paulo Freire foi com o professor Lauro de Oliveira Lima. Para
trabalhar com Freire, a gente mesmo fazia a cartilha conforme os interesses dos alunos.”
A Educadora continua recorrendo à memória para lembrar-se de outros cursos que
fez durante o período em que atuou como alfabetizadora de adultos, dentre os quais lembra:
Participei de vários cursos. Participei de um que foi na escola do Liceu. Teve um outro, na rua Antônio Pompeu. Um desses cursos foi dado pela Itelvita e mais quatro ou cinco professoras. Fizemos também um treinamento no colégio Flávio Marcílio; lá, acho que foram dois cursos também. Teve também os cursos que ocorreram no colégio São José. Todos os cursos foram em Fortaleza. (F. C, entrevista novembro de 2012).
Continuando, indagamos sobre os temas estudados nos cursos de formação
pedagógica de que ela participou.
Primeiro, a abordagem da realidade brasileira era de uma qualidade que você precisava ver. A gente via também português, porque havia mudança na nomenclatura, gramática - eu me lembro demais. Depois foi a questão da matemática, porque todo mundo sabia ler, mais não sabia fazer conta. (F. C, entrevista novembro de 2012).
Ao questionarmos sobre as aprendizagens constituídas pela Educadora ao
desenvolver um trabalho de alfabetização de adultos orientado pelo sistema de alfabetização e
conscientização de Paulo Freire, a Professora assim se posiciona:
Paulo Freire descobriu o valor da pessoa. A pessoa deve se desenvolver e a gente deve tentar trabalhar os saberes delas. Isso abriu um pouco para os conhecimentos. Saber também denunciar, e anunciar. Havia muitas coisas que as pessoas tinham medo de falar. (Pausa.) O medo de falar era muito forte! (F. C, entrevista novembro de 2012).
Posso dizer que havia na fala da Professora “zonas de sombra”, interditos,
silêncios, como observa Pollack (1989), que é moldada pela angústia – “é a vigia da angústia”
– mas, ao tentar organizar o distanciamento do que se quer por a distância, resulta por trazê-lo
de volta, por meio de um discurso interior, que se pôde ver nas entrelinhas, nas pausas:
114
Por conseguinte, existem nas lembranças de uns e de outros zonas de sombra, silêncios, "não-ditos". As fronteiras desses silêncios e "não-ditos" com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento. Essa tipologia de discursos, de silêncios, e também de alusões e metáforas, é moldada pela angústia de não encontrar uma escuta, de ser punido por aquilo que se diz, ou, ao menos, de se expor a mal-entendidos. No plano coletivo, esses processos não são tão diferentes dos mecanismos psíquicos ressaltados por Claude Olievenstein: "A linguagem é apenas a vigia da angústia.... Mas a linguagem se condena a ser impotente porque organiza o distanciamento daquilo que não pode ser posto à distância. É aí que intervém, com todo o poder, o discurso interior, o compromisso do não-dito entre aquilo que o sujeito se confessa a si mesmo e aquilo que ele pode transmitir ao exterior." A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa, em nossos exemplos, uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar e impor. (POLLACK, 1989, p. 3).
Aqui existe uma memória oficial – de grupos majoritários, que sustentaram o golpe
militar – e que se quer parecer uniforme, em suas lembranças, como que se forjando alia a uma
memória nacional. Há, contudo, outra operação da memória, que acontece sem subterrâneos,
que fica silenciada e sustenta as lembranças de outros grupos sociais que definem posições e
justificações, nem sempre escutadas socialmente. Pollack (1989) já observava essa “função do
lembrar e do esquecer” e associava a esta vontade de salvaguardar o vivido, o sentimento de
pertença que mantém a coesão interna de um grupo que sustenta uma memória comum.
Vejamos:
Estudar as memórias coletivas fortemente constituídas, como a memória nacional, implica preliminarmente a análise de sua função. A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também as oposições irredutíveis. Manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que um grupo tem em comum, em que se inclui o território (no caso de Estados), eis as duas funções essenciais da memória comum. Isso significa fornecer um quadro de referências e de pontos de referência. Todo trabalho de enquadramento de uma memória de grupo tem limites, pois ela não pode ser construída arbitrariamente. Esse trabalho deve satisfazer a certas exigências de justificação. (POLLACK, 1989, p. 5).
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Estamos vendo que o grupo atuante com o pensamento de Paulo Freire tece uma
memória comum, e o pensamento freireano calça, sustenta esta face coletiva do lembrar que
“não pode ser construída arbitrariamente”.
No discurso da Professora, ela segue mostrando que mesmo diante do
impedimento de falar, mesmo admitindo que nesse tempo as pessoas oprimidas tinham medo
de falar,por ocasião da solenidade de entrega de certificado da primeira turma que conclui o
processo de alfabetização, um dos alunos se encoraja e fala para o governador do Estado do
Ceará, nesta ocasião solene. Vejamos como a educadora rememora o discurso do aluno e
relembra o esforço da fala do aluno nesse tempo difícil:
Exmo. Sr. Governador, eu quero dizer ao Sr. que nós aqui do Pirambu não estamos disposta a receber essas pitombas que os políticos mandam para cá, sabe? Nós somos livres. Não pense que o Sr, vai ganhar votos aqui, não. Nós agradecemos o que foi nos dado, agradecemos os esforços das professoras, o material que vocês ofereceram para a gente... Mas sabemos que isso é uma obrigação que vocês têm. Vocês não fizeram favor nenhum a nós. Nós estamos fazendo a cidade. Nós vamos invadindo terras, depois o branco vem e toma e vai empurrando a gente para longe, tomando conta da cidade. Nós é que somos os colonizadores, nós é que somos os donos da terra. (F. C, entrevista novembro de 2012).
Também, aqui, vemos que o que está em jogo na memória é o sentido da
identidade individual e do grupo que faz a urdidura de suas memórias subterrâneas
(POLLACK, 1989). Vemos que a Professora “chama um tempo na memória” e pessoas (Lauro
de Oliveira Lima, entre outros), bem como posições de um grupo que vivenciava as referências
de Paulo Freire em sua prática educadora. Ao refletir, na entrevista dada a mim, sobre o
discurso do aluno, a Educadora assim se posiciona arregimentando lembranças: “- Isso para
mim foi excelente; deu uma lição sem ninguém explicar. Para mim, isso foi tudo, achei muito
grande.” A fala continua e ela vai trazendo como lembrança mais uma atividade na
comunidade, em que outro aluno se pronunciou – tecendo “atos-limites (atos que superam
condicionamentos e começam a realização de transformações)”:
Depois, em outra oportunidade, quando o Governador Virgílio Távora esteve na comunidade por causa de uma enchente, que inclusive ele ajudou muito, um aluno reivindicou condições para o bairro falando o seguinte: - Agora, doutor, está faltando o saneamento. O Sr. descobriu nosso valor, agora vamos fazer calçamento, vamos alinhar nossa rua. Vamos colocar energia, vamos colocar ônibus. Será que não temos direito a isso? (F. C, entrevista novembro de 2012).
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Em relação a esse pronunciamento, a professora demonstrou muita surpresa com a
coragem do aluno:
Era muita coragem do aluno, porque qualquer um tinha medo de falar. Estávamos em um tempo de silenciamentos. E esse era um trabalho que todos nós educadoras fazíamos – o de fazer o oprimido dizer sua palavra – e fazíamos isso com muito carinho e com muito cuidado também. (F. C, entrevista novembro de 2012).
Todo esse trabalho tomou proporções mais drásticas com o golpe militar de 1964.
Vejamos então como a educadora se refere a esse período da história e sua ressonância no
trabalho político-educacional no Brasil.
Aí veio a história da Revolução. Então, foi o tempo de dar uma parada para cuidar de outras coisas. Em 1964, esse período a gente era visada demais. Na época da Revolução foi um tempo que houve muita perseguição, muita coisa proibida, o pessoal sumiu! [...] Eu lia muito e me lembro de que nasci na revolução de 1930, na época do Getúlio Vargas. Então, assim tenho uma simpatia, gosto muito quando eu percebo que o povo está interessado numa mudança. Como a gente vê a vida de Dom Helder Câmara... [...] Estamos hoje numa perspectiva de mudanças boas... Mas não sei se vocês já visitaram algumas periferias por ai, e viram a questão das escolas. No ano passado não tiveram nem três meses de aula. Embora tenhamos colégios belíssimos como, por exemplo, aquele Dom Aloísio Lorscheider, os Liceus também são muito bons... Mas não há segurança; há brigas de alunos armados, as ameaças, a violência na sala de aula. Problemas que naquela época a gente não tinha. A gente não contava com isso, não. Quando eu lembro que Pirambu era o lugar que se dizia que tinha mais marginal. Mas nunca se falou de aluno agredir professor. (F. C, entrevista novembro de 2012).
Destarte, mesmo sob a repressão da ditadura militar, as práticas de Educação
Popular conseguiram eclodir e sobreviver, constituindo-se em sementes que vão germinar nas
décadas seguintes. Essas práticas se tornam referência ética, epistemológica, política e
metodológica, para grupos populares, movimentos sindicais, muitos religiosos e partidos de
esquerda que, vivenciando os princípios da Educação Popular, se fortalecem nas lutas pelos
direitos da classe trabalhadora e das utopias críticas. Essas utopias críticas vão gestando
saberes capazes de alimentar os processos de educação popular em curso no País – junto aos
percursos das lutas populares – e, na medida em que os alimentam, são retroativamente
alimentadas por eles.
117
6. CONCLUSÕES
Este estudo, que ora concluo, situa-se no campo da Educação Popular e da
História e Memória, com raízes profundas nas Ciências Sociais e Humanas. O interesse em
ampliar nossos conhecimentos teóricos e práticos sobre o pensamento político-pedagógico
freireano levou-me a realizá-lo direcionando-o à compreensão da influência desse pensamento
na práxis de educadores populares desenvolvida no início dos anos de 1960, no Ceará.
Paulo Freire foi um educador popular que pensou à frente de seu tempo. Suas
experiências em alfabetização e conscientização possibilitaram contribuições teórico-práticas
que mudaram o percurso da história da educação popular no Brasil, em especial, no Nordeste.
Sua capacidade de indignação com a opressão que determinava as relações de exploração
entre os homens e as mulheres na sociedade capitalista o impulsionaram à assunção de um
compromisso político-pedagógico com a educação das camadas populares; compromisso esse
que o direcionou a uma práxis comprometida com a libertação dos oprimidos.
A questão central que norteou a pesquisa foi: de que forma os pressupostos
teóricos e metodológicos do pensamento político-pedagógico freireano compareceram na
práxis de educadores populares que atuaram nos anos de 1960, no Ceará?
Foi, portanto, objetivo deste estudo, compreender as contribuições político-
pedagógicas do pensamento freireano na práxis dos educadores populares cearenses que
atuaram na década de 1960, buscando a perspectiva destes atores sociais a fim de comprovar
qual a contribuição dos educadores para a educação popular no Ceará.
No sentido de concretização do objetivo geral e de responder à questão norteadora
da investigação, percorri uma trilha metodológica fundamentada na abordagem qualitativa e,
como método de investigação do campo empírico, trabalhei com a História Oral.
No campo teórico, as referências primeiras foram as obras do próprio Paulo Freire,
com base nas quais, desenvolvi um diálogo profícuo de Freire com estudiosos da Educação
Popular que foram seus contemporâneos e companheiros na comunhão de sonhos, utopias,
esperança e de luta pela concretização da educação como prática da liberdade para e com as
camadas populares, proposta político-pedagógica que alicerçou práxis dos movimentos de
cultura popular no Nordeste alargando-se para os diversos rincões do Brasil.
O recorte histórico da pesquisa, a década de 1960, remeteu-me ao entendimento de
um tempo histórico, marcado por intenso movimento político, ideológico e cultural na
118
sociedade brasileira, em especial, no Nordeste. Foi no contexto, em que emergem
mobilizações do movimento estudantil, de organizações políticas e dos movimentos de cultura
popular buscavam legitimar projetos socioeducativos e culturais alternativos junto às camadas
populares.
As ações educativas e culturais desenvolvidas com as camadas populares, no
início dos anos de 1960, foram determinantes quanto ao considerarmos que esse foi um dos
períodos mais significativos na história da Educação Popular no Brasil. As práxis vivenciadas
neste período, certamente, deixaram um legado político e pedagógico e, indubitavelmente,
devem ser consideradas não somente como memória histórica mas, principalmente, como
importantes referencias para a consecução de projetos de educação quer na esfera pública,
quer no campo das práticas de educação popular nos movimentos sociais, e, também, na
constituição de políticas públicas de educação de jovens e adultos na atualidade.
A concepção de educação popular que referenciava as ações neste tempo trazia
em muito a ideia de conflitualidade em vez de adaptabilidade, na medida em que politizava o
processo educativo e ampliava a compreensão da sua prática para além da escolarização como
aquisição instrumental de saberes. Uma das contribuições mais importantes da educação
popular, nesse processo histórico, foi o desenvolvimento de um conceito de ação educativa –
práxis – que traz a educação para a vida comum do povo – e sua cultura, para junto da luta
política e da pedagogia como instrumento que ia sendo instituído processualmente nas lutas
pela libertação.
O entendimento da educação popular, então, possui esse legado: fica desde Paulo
Freire ligada à ideia de um trabalho educativo voltado às classes populares, onde a dimensão
da transformação se faz na ação concreta junto aos que buscam humanização e libertação.
Observei que, no pensamento freireano, havia uma marca da dimensão utópica muito intensa.
A utopia crítica, sua elaboração, como se chamaria contemporaneamente, é que deveria fazer
da compreensão do educar um caminho de vida cultural. Assim é que a educação popular
passa a se constituir como referencial teórico e instrumental para práticas educativas voltadas
ao fortalecimento dos processos de organização de vários atores sociais e políticos, sobretudo
movimentos sociais, no terreno da sociedade civil. Incorpora novos aspectos e adentra outras
complexidades, principalmente aquelas referidas à natureza cultural e às novas condições de
democracia e participação social vividas nos países da América Latina, e do Brasil, em
particular.
119
Freire parecia, sempre, sugerir, pelo que se registrou das narrativas sobre a
formação política e pedagógica vivida pelos educadores – sujeitos nesta investigação, que se
chega à totalidade agudizando-se o aqui e agora com o outro – um outro que se une
dialogicamente a um nós. A uma coletividade em diálogo mediado por um fazer concreto,
uma ação libertadora. Libertando-se de uma falsa consciência, então, o sujeito realiza a
assunção de si como agente de sua história individual e coletiva, alçando-se ser da práxis.
É nessa articulação entre pensar e agir, ou teoria e prática, que se organizava,
concretamente, uma visão pedagógica que unia produção de saber – focalizando a leitura e
escrita, em suas bases – interpretação de mundo e efetividade dos significados na luta política
e na ação de partilhar a constituição da vida coletiva. A reflexão não é sinônimo, sozinha, de
luta política satisfatória, devendo-se fazer a distinção da crítica ideológica pura e uma crítica
que elegia o “chão” das experiências junto ao povo como campo para instaurar e transformar
um processo pedagógico que pudesse produzir significados políticos de transformação social.
Na formação do educador, fazia-se, na prática, uma crítica vigorosa da educação que
Freire chamava mecanicista e que alijava o saber popular do processo de educação e da
cultura do povo, que era expulsa do caminhar pedagógico. Mesmo a coordenação da ação
pedagógica – a supervisão era algo pensado nesse sentido – comungava do mesmo ideário de
fazer com o povo sua formação, na escuta e composição de um saber de vida e luta social.
Em relação à prática de alfabetização desenvolvida pelos educadores populares
que atuaram no início dos anos de 1960, no Ceará, as narrativas evidenciam que a práxis
referenciada no sistema de alfabetização e conscientização freireano foi exitosa quanto à
aprendizagem da leitura e da escrita e da participação comunitária e sindical, em virtude da
vivência de uma ação pedagógica comprometida com o desenvolvimento cognitivo, efetivo,
cultural e político dos educandos.
As narrativas possibilitam, ainda, a compreensão de que, à práxis dos educadores
populares se entrelaçaram as suas histórias de vida, sonhos, esperanças, desejo de justiça social
e utopia de provocar com a alfabetização e conscientização mudanças sociais, políticas e
culturais, almejadas pelas camadas populares, no contexto de transição que vivenciava a
sociedade brasileira nos anos de 1960.
Evidencia-se o fato de que havia efetivo compromisso com a formação política e
pedagógica dos educadores populares, tanto daqueles que assumiam atividades de coordenação
pedagógica, quanto dos que assumiam o processo de alfabetização. Os monitores eram
selecionados dentre as pessoas da comunidade que dominavam a leitura e a escrita.
Participavam de uma formação inicial com o objetivo de orientação sobre o sistema de
120
alfabetização e conscientização de Paulo Freire. A proposta pedagógica que seria desenvolvida
na de alfabetização era vivenciada durante a formação, primando-se pela relação teoria e
prática. Havia, também, formação continuada ao logo do processo ensino e aprendizagem.
Um dos fatores importante na práxis dos educadores era o estimulo à participação
dos educandos nas atividades socioeducativas que aconteciam na comunidade, as quais se
relacionavam a questões ligadas à saúde e à organização comunitária. As experiências de
participação possibilitaram que em alguns municípios fossem criados sindicados rurais e
cooperativas de camponeses.
Quanto ao domínio da leitura e da escrita, as narrativas demonstram que, com três
meses de aulas, os educandos estavam lendo e escrevendo. A ação didática considerava a
realidade social, política e cultural dos educandos, e primava por uma relação dialógica entre
educador e educando.
Demonstram, ainda, o compromisso desses educadores populares em desenvolver
uma prática de alfabetização vinculada à realidade dos educandos e que contribuísse para o
processo de conscientização. Isso se revelava com a formação da equipe de coordenação e dos
monitores, mediante participação da comunidade, da preocupação com o domínio da leitura, da
escrita e da compreensão crítica da realidade como instrumento de libertação das condições de
exploração e desumanização que vivenciavam os educandos. Neste sentido, evidencio que as
experiências de alfabetização e conscientização – objeto de análise nesta pesquisa contribuíram
para a elevação do nível de alfabetismo de homens e mulheres das camadas populares e para a
ampliação dos processos de organização social e política em inúmeras comunidades rurais e
urbanas do Ceará. Consequentemente, essas experiências se tornaram um marco histórico na
educação popular cearense.
121
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126
APÊNDICE A – CALENDÁRIO DO SINDICATO DOS TRABALHADORES
RURAIS DE IPUEIRAS – CE
127
APÊNDICE B – ORIENTAÇÕES DE PROCEDIMENTOS PÓS-ENTREVISTA
ORIENTAÇÕES DE PROCEDIMENTOS PÓS-ENTREVISTA.
Síntese elaborada com o objetivo de orientar os entrevistados, na revisão do texto.
Segundo Freitas (2002, p. 100-102), a entrevista com objetivos acadêmicos deve
necessariamente passar pelas etapas:
a) Transcrição na íntegra da entrevista gravada;
b) Leitura e conferência do material
c) Após digitação, o texto deve ser enviado ao depoente para correção de nomes próprios,
termos técnicos e, quando necessário, complementação de frases.
ATENÇÃO:
1) É necessário garantir o máximo possível à originalidade e a espontaneidade das
entrevistas;
2) Ser o mais fiel possível ao que foi gravado, dando mais importância ao conteúdo e
menos à forma, entendida como estilo. Isto, não significa que deixamos de retirar
das transcrições as redundâncias e vícios de linguagem em comum acordo com os
depoentes;
3) a)- Na transcrição do discurso oral para o escrito deve-se, então suprimir as
palavras ou expressões repetidas, ou aquelas que forem retificadas pelo
entrevistado.
b)- No discurso oral é muito comum as pessoas recorrerem a palavras ou
expressões de função fática, que não têm um valor semântico no discurso: por
exemplo, quer dizer, entendeu, justamente, realmente, assim, aí, sabe, não é, então
– são vícios de linguagem ou palavras de apoio. São comuns e recorrentes na
comunicação verbal;
4) Às vezes, por deficiência na construção de frases, o entrevistado omite o termo
fundamental da oração. Neste caso, deve-se acrescentá-lo quando este estiver claro
no contexto.
REFERÊNCIA:
FREITAS, Sônia Maria de. História oral: possibilidades e procedimentos. São Paulo: Humanistas: Imprensa Oficial do Estado, 2002.