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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA NILZE MAGALHÃES DE OLIVEIRA O PRAZER DO SUBLIME Salvador 2015

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA · princípio primordial, Burke parece fundar o sublime mais na dor do que no prazer, emoção que parece estar destinada a experiência do belo. Ora,

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

NILZE MAGALHÃES DE OLIVEIRA

O PRAZER DO SUBLIME

Salvador

2015

NILZE MAGALHÃES DE OLIVEIRA

O PRAZER DO SUBLIME

Trabalho de conclusão de curso de graduação em Filosofia,

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade

Federal da Bahia, como requisito para obtenção do grau de

Bacharela em Filosofia.

Orientadora: Profa. Dra. Sílvia Faustino de Assis Saes

Salvador

2015

OLIVEIRA, Nilze Magalhães de. O Prazer do Sublime. 29 f. 2015. Monografia (Graduação

em Filosofia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia,

Salvador, 2015.

RESUMO

O objetivo deste trabalho consiste em investigar as relações entre o sentimento de prazer

vinculado ao sublime e a experiência do sagrado. A problemática será levantada a partir da

leitura dos textos clássicos de Edmund Burke, que evidencia, na modernidade, o sentimento

do sublime como uma forma de prazer estreitamente relacionada ao sentimento de dor. Em

seguida, a partir das indicações conceituais encontradas em Longino e Kant – autores que

balizam a história dos conceitos investigados – tentaremos estabelecer a ligação conceitual

entre o sentimento do sublime e a experiência do sagrado ou divino.

Palavras-chave: Sublime. Prazer. Terror. Sagrado.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO…………………………………………………………………………….. 4

2 O BELO E O SUBLIME....................................................................................................... 6

3 O SUBLIME E A EXPERIÊNCIA DO SAGRADO......................................................... 15

4 CONCLUSÃO...................................................................................................................... 26

REFERÊNCIAS.................................................................................................................. 29

4

1 INTRODUÇÃO

O objeto deste trabalho consiste na ligação que o filósofo Edmund Burke faz entre os

sentimentos de terror e o de prazer na descrição do conceito de sublime, em seu livro Uma

investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo 1

, uma obra que

se tornou referência fundamental para os estudos da estética moderna.

A motivação maior é entender a relação que Burke faz entre a dor e o deleite, entre o

terror e o sublime. Afinal, como entender porque o sublime nos deleita mesmo depois de ter

causado certo terror? Isto é, nos assombra e ainda assim causa um êxtase suave e demorado,

uma satisfação — esse prazer íntimo que é o deleite? Burke afirma que “o terror, em todo e

qualquer caso, de modo mais evidente ou implícito, é o princípio primordial do sublime”2, ou

seja, a ideia de terror, assombro, é o que caracteriza o sublime. Mas ele também afirma que “o

terror é uma paixão que sempre gera deleite quando sua ação não é muito direta”3 e que “o

perigo ou a dor, [...] quando são menos prováveis ou de certo modo atenuadas, podem ser – e

são – deliciosas, como nossa experiência nos mostra.”4 Quando pensamos em terror,

imediatamente associamos a perigo, medo, pavor, espanto. Quando admite o terror como

princípio primordial, Burke parece fundar o sublime mais na dor do que no prazer, emoção

que parece estar destinada a experiência do belo. Ora, interessa-nos entender a especificidade

da experiência estética vinculada a essa modalidade de prazer que é significada pelo deleite

(delight), isto é, “dessa sensação que acompanha a eliminação da dor ou do perigo.”5 Burke

não chama de prazer justamente porque considera que nasce da dor, mas chama de sublime

tudo que incita esse deleite.6

Se objetivo geral é investigar o conceito de sublime em Edmund Burke, o objetivo

específico é investigar o aspecto sob o qual, na construção desse conceito, se estabelece a

vinculação entre esses dois sentimentos aparentemente opostos: o sentimento de terror e o

sentimento de deleite – entendido como uma forma de prazer – cuja a existência, para Burke,

1 BURKE, Edmund. A Philosophical Inquiry Into the Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful. New

York: P.F. Collier & Son Company, 1909–1914. Tradução brasileira: BURKE, Edmund. Uma investigação

filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. Tradução, apresentação e notas Enid Abreu

Dobránszky. Campinas, SP: Papirus: Editora da Universidade de Campinas, 1993. A numeração das páginas

seguirá a da tradução brasileira. 2 BURKE, 1993, p. 66.

3 Ibid., p. 54.

4 Ibid., p. 48.

5 Ibid., p. 46.

6 Ibid., p. 58.

5

como foi dito, está estreitamente vinculada à dor.7 Como essa ligação conceitual causa certa

estranheza, a busca pelo seu esclarecimento ajudará na compreensão do próprio núcleo da

experiência humana do sublime. Isso é necessário para, em seguida, tentar responder se é

possível, dentro dessa visão de Burke, estabelecer uma relação entre o conceito de sublime e a

origem de nossas ideias sobre o divino ou o sagrado. É nosso objetivo também buscar mostrar

o modo pelo qual Burke vincula o sublime a uma certa espécie de intenção divina – como um

ato de “nosso Criador” – de nos impressionar com aquilo que ultrapassa o nosso entendimento

e a nossa própria vontade. Caberia, então, perguntar: é possível que, na origem de nossas

ideias sobre o divino, esteja o sublime, como a descrição de Burke parece sugerir? Seria a

emoção do sublime precisamente aquela que é capaz de revelar o divino em nossa existência?

Para cumprir esses objetivos é preciso, antes de tudo, compreender a relação entre o belo e o

sublime, as importantes diferenças entre esses dois conceitos, e também a ligação do conceito

de sublime com a emoção de terror na obra de Burke – questões estas que serão apresentadas

no primeiro capítulo deste trabalho.

A outra face do problema que temos o objetivo de discutir – sobre uma possível

relação entre o sublime e o divino – será tratada no segundo capítulo.

7 BURKE, 1993, p. 45.

6

2 O BELO E O SUBLIME

O entendimento do senso comum costuma confundir o belo e o sublime – o belo

remete ao agradável, aprazível, harmônico; e o sublime é comumente pensado como o mais

alto grau de beleza artística, aquilo que é dotado de grande perfeição. Ou seja, em um

primeiro momento, o sublime parece apenas significar aquilo que é excepcionalmente belo. O

belo é facilmente definido como aquilo que desperta na alma os sentimentos de prazer e

admiração, mas de forma aprazível, feliz, serena. O sublime, por sua vez, está ligado a

definições tais como “elevação excepcional”, o “majestoso”, o “nobre”, enfim, o que há de

mais elevado nos sentimentos ou nas ações. A diferença é sutil, mas o sublime, na verdade, se

liga ao despertar de sentimentos diferentes daqueles que são sentidos diante do que é

simplesmente belo.

Por parecer ser sutil ou mesmo imperceptível essa diferença entre o belo e o sublime,

na linguagem ordinária do nosso dia a dia, é comum usarmos esses dois conceitos de forma

equivocada, confundindo seus significados. Um erro tão comum que quando se pensa no

sublime ligado a qualquer tipo de sentimento de dor, nos causa surpresa. Pensar o sublime,

então, ligado ao terror e ao medo parece uma extravagância de Edmund Burke. Por isso, para

entender a natureza do sublime para Burke, e essa relação entre o terror e o deleite, primeiro é

preciso ter clara a distinção entre o belo e o sublime para o autor.

Burke faz uma comparação entre o sublime e o belo, e vai pontuando os contrastes. O

sentimento do sublime desperta sentimentos ligados a altos valores morais, estéticos ou

intelectuais, sendo também capaz de elevar o espírito e transportá-lo para fora de si. Isso é o

que ocorre quando percebemos o sublime como o que é grandioso, ilimitado ou aquilo que

ultrapassa toda a medida dos nossos sentidos. O sentimento do sublime está ligado às ideias

de infinito e eternidade. Se somos capazes de ver os limites do que admiramos – se

enxergamos onde começa e onde termina certo objeto, não será despertado o sentimento do

sublime, pois o que nos entusiasma é aquilo que provoca a imaginação para além de qualquer

limitação. Se nossa visão ou mesmo nossa imaginação consegue apreender todo o objeto, não

será o sublime que estaremos contemplando, será, no máximo, uma contemplação do belo.

Uma linha reta nos leva a pensamentos de infinitude, como, por exemplo, uma estrada

reta sem fim, onde não se vê mais nada além dessa mesma estrada no horizonte – isso tem

relação com o sublime e continuará sendo sublime se essa estrada, de repente, chegar ao alto

de um penhasco, a beira de um precipício. Para despertar o sentimento do sublime, o elemento

7

do desconhecido, da surpresa, daquilo que não dominamos precisa estar presente. E são as

trevas e as sombras que melhor induzem a esse estado de insegurança e de incerteza na

sensação do sublime. Uma sombra ao sol do meio dia está longe de causar a mesma impressão

de quando percebemos uma sombra na penumbra da noite. Um uivo ou qualquer grunhido nos

acordando na calada da noite – rompendo o silêncio da madrugada – desperta em nós um

certo terror, alimenta nossa imaginação e nossos medos tal qual um filme de suspense. O

escuro, incerto, confuso, terrível, está absolutamente ligado ao sublime.8

O sentimento do belo, por sua vez, está sempre associado à clareza, à harmonia, à

limpidez e à luminosidade, também ao que é liso, macio, delicado, leve e a tudo o mais que

nos cause sensações agradáveis e aprazíveis, que desperte sentimentos de ternura e afeto – o

belo é o amor tranquilo e feliz – longe de qualquer ligação com a dor e o sofrimento. Mas

quando falamos em amor muitos irão lembrar a dor – ou o que denominamos como dor – que

está presente em tantas histórias amorosas e daí surgir uma questão: podemos relacionar a

“dor de amor” com os sentimentos considerados sublimes? Não, não podemos. Burke, em sua

investigação, nem ao menos chama de dor esse sentimento porque ele considera que é uma

dor ligada a um prazer real9. Ou seja, essa “dor de amor” não é uma “dor sublime” – é de uma

natureza diferente, pois que está relacionada ao prazer, nasce de um prazer real. E o sublime

tem sua origem, seu fundamento, na dor – em um sentido bem diferente e contrário a qualquer

tipo de perda amorosa, pois que é uma dor acompanhada do terror e do medo e não surge de

nenhum prazer.

A dor, o medo e o terror parecem, muitas vezes, estarem sendo usados quase como

sinônimos – e, em uma certa medida, talvez realmente possam ser pensados assim. O medo é,

para todo animal racional ou irracional, o alerta de uma ameaça iminente. E o terror também é

medo, um grande medo, uma espécie de pânico, de pavor, diante de um perigo imediato, real

ou não. É a paixão do medo que nos faz correr do perigo que ameaça a nossa vida, é sempre

um querer fugir da dor e do sofrimento, mesmo que imaginários. Ou seja, é sempre medo – ou

terror – de sentir dor. E quando dizemos sentir dor, estamos falando de uma experiência

física, através dos nossos sentidos. Mas também podemos falar de dor associada a uma

experiência emocional “desagradável”. E quando a dor é intensa se reflete claramente no

corpo de diversas formas: “os dentes cerram-se, as sobrancelhas contraem-se fortemente, a

fronte enruga-se, olhos encovam-se e reviram com violência, a boca emite gritos e gemidos

8 BURKE, 1993, p. 67.

9 Ibid., p. 58.

8

entrecortados e o corpo inteiro treme”.10

E essas reações físicas provocadas por uma dor

intensa são as mesmas reações físicas causadas quando o sentimento de terror se apossa de

nós. Essa expectativa da ameaça da dor ou mesmo da morte, o perigo que pressentimos –

ainda que sejam meras fantasias – provocam reações físicas idênticas à dor. Ou seja, o medo

da dor tem os mesmos efeitos corporais de uma forte dor efetiva, provoca reações semelhantes

– uma tensão anormal dos nervos bem real. E o terror age sobre o indivíduo de tal modo que o

pânico que se instala na alma toma conta do corpo. Burke diz que o medo ou o terror, que é

uma percepção da dor ou da morte, manifesta-se exatamente pelos mesmos efeitos, com uma

violência proporcional à proximidade da causa e à fragilidade do indivíduo.11

Como se vê, a diferença vai estar na intensidade que cada indivíduo será capaz de

perceber e expressar sentimentos de dor ou de medo. Alguns serão capazes de suportar mais

corajosa e tranquilamente uma dor e outros, mais frágeis e assustadiços, se entregarão ao

medo e ao pânico mais facilmente. Mas a sensação da proximidade do perigo, real ou

fantasioso, vai produzindo no indivíduo uma excitação crescente e cada vez mais violenta dos

nervos, resultando nas sensações físicas acima descritas e, assim, podemos concluir que a dor

e o medo agem sobre as mesmas partes do corpo e de maneira semelhante. Para Burke a

diferença entre a dor e o terror consiste em que as coisas que causam dor agem sobre o

espírito pela intervenção do corpo, ao passo que as coisas que produzem o terror geralmente

afetam os órgãos do corpo pela ação do espírito, que o adverte do perigo.12

Consideremos, agora, a tese de Burke que vincula o prazer ao conceito de belo e a dor

ao conceito do sublime – o deleite. Burke faz uma diferenciação importante, para que não haja

equívocos, entre o prazer e o deleite, pois que são de naturezas distintas. O que ele chama de

prazer, é um prazer simples, positivo, sem nenhuma ligação com outro sentimento e tem

relação com o que é belo; o deleite, por sua vez, está necessariamente ligado à dor – uma

espécie de tranquilidade toldada de horror13

– e a dor está justamente ligada ao sublime.

Quando nosso espírito está dominado pelo terror, quando pensamos ou estamos

verdadeiramente em perigo e nossa sensibilidade está tomada pelo pânico, paralisados com o

medo da morte, incapazes de qualquer ação ou raciocínio, nestes momentos de forte emoção,

quando não temos controle algum sobre nosso destino, não há espaço para mais nenhum outro

sentimento além da dor ou do medo da dor. No momento em que se vive o tormento não

existe nenhum deleite ou qualquer tipo de juízo estético, nada mais importa – nenhum outro 10

BURKE, 1993, p. 137. 11

BURKE, loc. cit. 12

Ibid., p.137-138. 13

Ibid., p. 44.

9

tipo de sentimento ou pensamento além do horror e do medo é capaz de persuadir a atenção

de quem vive o drama. Nada mais compete com a tensão dos nervos provocada pela paixão

da autopreservação. A sensação de deleite só acontece quando o perigo e a dor deixam de ser

riscos reais, quando são “pouco prováveis ou atenuadas”14

e a alma se liberta dos medos – é

neste instante que ocorre a sensação que acompanha a experiência do sublime: o deleite.

Burke resume o que se disse:

As paixões relativas à autopreservação derivam da dor e do perigo; elas são

meramente dolorosas quando suas causas afetam-nos de modo imediato; são

deliciosas, quando temos uma ideia de dor e de perigo, sem que a elas

estejamos realmente expostos; não chamei esse deleite de prazer porque ele

nasce da dor e porque é muito diferente de uma ideia de prazer positivo.

Chamo de sublime tudo que incita esse deleite.15

O prazer sentido com o que é belo se relaciona com aquilo que é suave, delicado,

amoroso. De natureza contrária à tensão causada pelas emoções do sublime, o belo

proporciona imediatamente sentimentos de amor, paz, calma, tranquilidade, além de um

relaxamento dos nervos e do corpo – este é o prazer gerado pelo belo. Burke considera o belo

como uma qualidade distinta do sublime e examina a beleza como aquela qualidade ou

aquelas qualidades dos corpos que despertam amor. E distingue o amor como aquele

contentamento que o espírito sente ao contemplar um objeto belo seja qual for sua natureza.16

Dizendo com precisão: o sublime, para Burke, se funda na dor; o belo, no prazer.

Segundo Burke, dor e prazer são ideias simples, não passíveis de definição e que não

precisam de maiores explicações. Consideramos que não há engano em nosso espírito:

sabemos dizer claramente se estamos sentindo dor ou sentindo prazer. Burke concorda que

não há engano sobre os sentimentos, o equívoco acontece quanto aos nomes que lhes damos e

aos raciocínios sobre eles.17

Ao contrário do que parece a muitos, o prazer não é simplesmente

ausência de dor nem a dor, uma ausência de prazer. Há os que pensam que o prazer acontece

com o fim de uma dor e que a dor, por sua vez, surge com término de um prazer. Porém,

Burke defende que dor e prazer “não devem sua existência a uma dependência mútua”.18

Fica

mais evidente essa independência entre dor e prazer, quando pensamos que temos medo de

perder a saúde, mas ter saúde não é suficiente para nos dar prazer. Ou que, para garantir a

14

BURKE, 1993, p. 48. 15

Ibid., p. 58. 16

Ibid., p. 99. 17

Ibid., p. 42. 18

BURKE, loc. cit.

10

reprodução humana, o homem é impelido à busca por um prazer muito intenso: a luxúria. Mas

a falta desse prazer não causa dor; não causa nem mesmo aquela sensação de medo e aflição

que sentimos com a mera possibilidade de perder a saúde – pois esta, sim, é uma possiblidade

que nos leva, necessariamente, pelo instinto da autopreservação, a pensar em dor e morte.

Quando não estamos sentindo nenhuma espécie de dor positiva – que Burke também

chama de dor real; nem sentindo, por exemplo, o prazer real e positivo de saborear uma barra

de chocolate, nosso espírito se encontra em uma disposição que ele denomina de estado de

indiferença – e este é o nosso estado na maior parte do tempo, nem de dor, nem de prazer:

apenas indiferença. Pois que não vivemos em nenhum tipo de “dor intermediária” até que

possamos sentir algum prazer real ou, ao contrário, em uma espécie de “felicidade

permanente” até que alguma crise de pedra no rim – um exemplo de dor bem real – venha nos

tirar desse “prazer indolente” imaginado por alguns. Segundo Burke, se anteriormente à dor

não se sente nenhum prazer real, não existe motivo algum para julgar que tal coisa exista, uma

vez que o prazer somente é prazer quando sentido; e pode se dizer o mesmo quanto à dor e

por razão idêntica.19

O que existe são três estados: de prazer, de dor e de indiferença.

Voltando a falar sobre as diferenças entre o sublime e o belo, elas poderiam ser

resumidas nos seguintes itens:

1. Se o sublime é caracterizado por possuir dimensões muito grandes, o belo é

comparativamente pequeno;

2. Enquanto o sublime possui relação com que é áspero e rústico, a beleza se relaciona

com o que é liso e polido;

3. Enquanto o sublime condiz com a linha reta ou com desvios acentuados, o belo

deve sempre evitar a linha reta ou fazê-lo imperceptivelmente;

4. Se para o sublime as trevas e as sombras são essenciais, a obscuridade é inimiga do

belo;

5. O sublime requer polidez e grandes massas compactas, a beleza é leve e delicada;

6. O sublime é reconhecido na dor, o belo, no prazer.

Burke faz uma observação quanto aos contrastes que ele elenca entre o belo e o

sublime, deixando claro que não os encontramos no mundo de forma tão pontuada e distinta:

“na infinita variedade de combinações naturais é bastante provável encontrar unidas no

19

BURKE, 1993, p. 43.

11

mesmo objeto qualidades que julgamos as mais distantes possíveis”20

, o que não invalida suas

diferenças. Ele justifica:

O preto e o branco podem suavizar-se, podem fundir-se, mas não são,

contudo, a mesma coisa. Nem quando são assim suavizados e fundidos um

com o outro, ou com cores diferentes, o poder do preto como preto, ou do

branco como branco é tão grande como quando cada um permanece

uniforme e distinto.21

O homem busca o sublime, entendido como aquilo que vai muito além do belo.

Primeiro queremos (ou pensamos querer) aquilo que nos agrada, que nos “tranquiliza” o

espírito – aquilo que nos deixa felizes. Mas facilmente nos cansamos e ficamos indiferentes a

essa “tranquilidade”. A dor e o prazer é o que nos tira do nosso estado de indiferença natural,

é o que move nossas paixões. A emoção violenta, entendida como “perigo iminente, espécie

de paixão mesclada de terror e de surpresa”22

, causa uma impressão mais duradoura do que

aquilo que nos é agradável. O medo da dor e, mais ainda, o medo da morte, são emoções

muito mais fortes que qualquer sentimento de belo. São mais poderosos até do que os próprios

sentimentos de prazer. Temos um sentido muito grande de autopreservação – de

sobrevivência – e qualquer coisa que ameace a vida nos causa enorme emoção. Prova disso é

que ainda ficamos, por um tempo, emocionados, abalados, mesmo depois de ter cessado o que

provocou tal emoção violenta. Voltamos ao nosso estado de indiferença, mas agora com o

sentimento de consternação, de deleite – “a sensação que acompanha a eliminação da dor ou

do perigo”.23

Podemos dizer que o terror impressiona muito, mesmo à distância:

Tendo considerado o terror como gerador de uma tensão anormal e de certas

excitações violentas dos nervos, conclui-se facilmente do que acabamos de

dizer que tudo que está propenso a produzir uma tal tensão necessariamente

dá origem a uma paixão semelhante a ele, e consequentemente, é uma fonte

do sublime, ainda que não esteja ligado a nenhuma ideia de perigo.24

Provoca-nos mais emoção o sofrimento que a fortuna – independente de serem

histórias reais ou não. Como negar o prazer que as tragédias e sofrimentos (ficção ou não) nos

causam – desde que estejamos, claro, a salvo do perigo? A tragédia grega que, não por um

acaso, entre todas as artes miméticas, é considerada a arte por excelência, muito bem

20

BURKE, 1993, p. 130. 21

Ibid., p. 131. 22

Ibid., p. 44. 23

Ibid., p. 46. 24

Ibid., p. 139.

12

representa o exemplo de como o terror, o medo, podem ser transformados em alívio e deleite

e como o espectador se apraz com essa emoção. É possível fazer uma comparação entre o

conceito de deleite aqui defendido e o objetivo da tragédia grega na visão de Aristóteles, pois

que as emoções que a tragédia busca despertar no espectador – justamente, a piedade e o

medo – são intensas e, no entanto, a “catarse” ou “purificação”, que se realiza durante e após

a representação da tragédia está ligada ao sentimento do sublime. A definição de tragédia nas

palavras de Aristóteles:

É, pois, a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de

certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de

ornamentos distribuídas pelas diversas partes, não por narrativa, mas

mediantes atores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a

purificação dessas emoções.25

A tragédia suscita o terror e a piedade visando à catarse ou purificação das emoções,

ou seja, em outras palavras, uma das finalidades da tragédia consiste, justamente, em produzir

no espectador a catarse através das emoções de terror, medo e, também, de piedade – uma

espécie de purificação da alma experienciada através dessas diversas emoções transmitidas no

drama da tragédia.

A piedade, esse outro sentimento suscitado pela tragédia, tem relação direta com

sublime na medida em que é considerada como uma dor indireta: se sente piedade da dor ou

do medo que o outro está sentindo – “uma participação emocional do espectador que se

identifica com o protagonista do drama”.26

Sentimos pena daqueles que não mereciam passar

por certas situações difíceis, trágicas. Nos colocamos no lugar do outro e pensamos, ou

melhor, de certa forma chegamos mesmo a sentir, o tamanho do seu sofrimento, do seu medo,

da sua dor. É como se a dor que afeta o outro, não estivesse afetando somente aquele

indivíduo ou personagem, estivesse nos afetando também. Sentimos como se o sofrimento do

outro, fosse o nosso próprio sofrimento, pois que nas tramas da vida qualquer um de nós

poderia realmente estar naquela posição, passando por aquelas dores. É o que Burke vai

chamar de simpatia:

Pois a simpatia deve ser considerada uma espécie de substituição, mediante a

qual colocamo-nos no lugar de outrem e somos afetados, sob muitos

25

ARISTÓTELES. Poética. Tradução, comentários e índices analítico e onomástico de Eudoro de Souza. São

Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 447. 26

PUENTE, Fernado Rey. A Kátharsis em Platão e Aristóteles. OUSIA - Estudos em Filosofia Clássica, Rio de

Janeiro, 2002, p. 20. Disponível em: <http://www.pec.ufrj.br/ousia/verb/artigo_rey.pdf>. Acesso em: 10 jun.

2015.

13

aspectos da mesma maneira que eles; de modo que essa paixão pode ou

partilhar da natureza daquelas relacionadas à autopreservação e, derivando-

se da dor, ser uma fonte do sublime.27

Burke observa, também, que o que provocaria aversão na realidade são, nas ficções

trágicas, fontes de prazer. É preciso, claro, estar a salvo de um desastre iminente para sentir

algum deleite dos sofrimentos alheios, mas não que essa imunidade seja a causa do deleite,

pois que não pensamos “friamente”, a paixão não acontece de modo tão ordenando: primeiro

tomamos consciência de forma clara que estamos a salvo do perigo para, em seguida, somente

depois desse “raciocínio lógico”, nos compadecermos dos males dos outros – certamente não

é assim que acontece, pois que a razão, na realidade de nossas emoções, não tem grande poder

nas incitações das nossas paixões28

– a compaixão e a simpatia nascem instintivamente. O

espectador pode sentir a dor, o terror e ao mesmo tempo, sentir o deleite de não precisar, na

realidade da sua vida, viver aquela tragédia. É uma purificação dessas emoções de medo e

piedade: a tragédia provoca um sentimento de alívio que seguramente é acompanhado de

certo prazer. O alívio produzido na alma ao se perceber – de um modo instintivo, não racional

– que o objeto de seu medo não poderá fazer nenhum mal, que se está a salvo de qualquer

perigo. O alívio de quem desperta de um pesadelo, que “vivendo” um grande perigo ou

“passando” por uma situação de terror, por um grande sofrimento, simplesmente acorda

daquele sono desesperador e descobre, com grande satisfação e alívio, que tudo não passou de

um pesadelo, nada daquilo foi ou é real na sua vida. A catarse é como o ponto alto da

tragédia.

Aristóteles considera o medo como uma característica da tragédia, definido pelo

próprio, na Retórica, como um tipo de dor, uma situação aflitiva ou uma perturbação derivada

da representação de um mal iminente, ruinoso ou penoso29

; e já sabemos que, para Burke, o

sublime se funda na dor. O sublime e a tragédia aparecem como fundamentadas em uma

mesma origem – a dor – e um mesmo resultado ao final – o prazer que nasce dessa dor. O

prazer no terror, ou seja, o deleite – esse é o sentimento que verdadeiramente permanece

gravado em nossa alma. Elevando, assim, a tragédia ao estatuto do que é sublime.

A tragédia, arte já milenar, parece não deixar dúvidas de como o terror pode nos

causar deleite – deleite este quase inconsciente, como um instinto que a razão não interfere.

Diz Burke:

27

BURKE, 1993, p. 52. 28

Ibid., p. 53 e 55. 29

ARISTÓTELES. Retórica. Tradução e notas Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do

Nascimento Pena. 2. ed. rev. Lisboa: Impressa Nacional-Casa da Moeda, 2005.

14

O deleite que auferimos dessas cenas de grande sofrimento impede-nos de

evita-las, e a dor sentida induz-nos a consolar-nos a nós próprios ao fazê-lo

àqueles que sofrem; esses impulsos ocorrem anteriormente a qualquer

raciocínio, por um instinto que age sobre nós, segundo seus próprios

desígnios, sem o concurso de nossa vontade.30

E aqui chegamos a próxima questão, o sublime se relaciona com o inconsciente, com o

não racional, com o próprio instinto.

30

BURKE, 1993, p. 54.

15

3 O SUBLIME E A EXPERIÊNCIA DO SAGRADO

O que se pretende tratar nesse capítulo é a possível relação do sublime com a

experiência do sagrado, através de uma análise das impressões que a natureza pode nos

causar, abordando também a própria natureza humana, com seus instintos e inclinações ao que

é dito ser sublime. Na tentativa de esclarecer e melhor responder a questão do sublime –

levantada inicialmente por ocasião da leitura de Burke – descobriu-se que em outros autores,

há mais elementos que ajudam nas respostas à pergunta aqui formulada. E não por acaso,

tratam-se de Longino e Kant, cuja importância e influência na inclusão e discussão do

conceito do sublime na filosofia é amplamente reconhecida. Longino representa aspectos da

questão em sua abordagem mais antiga do conceito de sublime; e Kant representa o pensador

que de fato formulou a questão do sublime que elaboramos durante a primeira leitura de

Burke.

Longino escreveu Do Sublime31

, uma importante e inspiradora obra para toda e

qualquer investigação do significado do conceito de sublime. O tratado tem o mérito de,

provavelmente já no Século I d.C., abordar e aprofundar tal conceito, em um contexto de

análise sobre a retórica e a poesia, ligando-o à grandeza e ao êxtase que a natureza do sublime

é capaz de conduzir os ouvintes.32

É em uma abordagem da arte literária que ele vai buscar as

prováveis fontes do sublime e fazer uma reflexão a respeito da natureza inata do gênio e da

técnica aprendida. Longino pensa o sublime na linguagem da literatura – prosa ou poesia –

para ele a arte suprema.33

Segundo a tradutora Filomena Hirata, a natureza do sublime, na obra de Longino, se

liga ao que sempre ultrapassa a medida, ou antes, ao que é sem medida.34

Pode ser concebido

como a experiência de “um choque que surpreende o julgamento e faz-nos sair de nós

mesmos, mergulha-nos no êxtase.”35

E o próprio Longino vai ainda mais longe na sua

descrição, afirmando que, sob o efeito do verdadeiro sublime, nossa alma se eleva, enche-se

de alegria e exaltação.36

Em Longino, o sublime é tratado em relação à literatura: ao que na poesia e na retórica

desperta em nós o sentimento de êxtase e exaltação. Mas nesse caminho Longino também vai

31

LONGINO. Do Sublime. Tradução Filomena Hirata. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 32

Ibid, p. 44. 33

Ibid., p. 10. 34

Ibid., p. 38. 35

Ibid., p. 37. 36

Ibid., p. 51.

16

igualar a natureza, dita humana, dos mais virtuosos, ao que se considera sublime – nos

sentimentos e ações – porque considera que os grandes homens, dignos de uma natureza

sublime, e que podemos considerar como homens realmente virtuosos, são aqueles capazes de

ter os pensamentos mais elevados e nobres, pois que “o sublime é o eco da alma.”37

Ou seja,

Longino vai confirmar o sublime como uma virtude elevada e nobre da alma, ainda que essas

naturezas totalmente sublimes e muito excepcionais, sejam encontradas só raramente.38

Por sua vez, Kant, um autor do Iluminismo, influencia profundamente o pensamento

romântico e a formação de uma concepção romântica da imaginação, com as suas ideias sobre

o sublime.39

Em sua fase considerada pré-crítica, escreve, em 1764, um ensaio abordando o

tema do sublime: Observações sobre o sentimento do belo e do sublime40

, em uma

perspectiva psicológica – e solidária à de Burke – diferindo bastante do tipo de investigação

que fará do mesmo conceito posteriormente, na Crítica da Faculdade do Juízo, em 1790.

Segundo a escritora Eva Schaper, o livro A Philosophical Enquiry into the Origin of

our Ideas of the Sublime and Beautiful de Edmund Burke era bem conhecido de Kant e,

seguindo a linha do pensamento do século XVIII, ele utilizou esse par de conceitos em seu

pequeno ensaio sobre o sublime.41

Nesse texto, em que levanta pela primeira vez a questão do sublime, Kant parece

concordar com a ideia de que tudo que está além do entendimento e da razão humana é

sublime. Isso pode ser depreendido da descrição que Kant vai apresentar como referência do

sublime: “a representação matemática da imensurável grandeza do universo, as considerações

da metafísica sobre a eternidade, a providência, a imortalidade da nossa alma, todas têm uma

certa sublimidade e dignidade”.42

Pode-se dizer que nessa afirmação Kant opera uma ligação

do conceito de sublime com vários sentidos do que ele próprio considerou como

suprassensível e, especialmente, com o sentido daquilo que costumamos considerar como

divino. Eva Schaper concorda que em Kant há passagens nas quais o sentimento do sublime

aparece como uma indicação da realidade noumenal43

, pois que sublimidade transcende os

limites dos sentidos e do entendimento.44

37

LONGINO, 1996, p. 54. 38

Ibid., p. 105. 39

SCHAPER, Eva. “Taste, sublimity, and genius: The aesthetics of nature and art”. In: GUYER, Paul (ed). The

Cambridge Companion to Kant. Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 384. 40

KANT, Immanuel. Observações sobre o sentimento do belo e do sublime. Tradução Vinicius de Figueiredo.

Campinas: Papirus, 1993. 41

SCHAPER, op. cit., p. 381. 42

KANT, op. cit., p. 30. 43

Apesar de em Kant, o conceito de um númeno ser considerado problemático, podemos considerar como a

representação de uma coisa acerca da qual não podemos dizer, mas também não podemos negar. Podemos

17

Com essas brevíssimas indicações do conceito de sublime em Longino e Kant,

podemos retomar as considerações sobre o poder exercido pela experiência humana com o

sublime. Parece incontestável que esse poder se exerce sobre as nossas emoções. Trata-se de

um poder que parece ameaçar a nossa própria existência, pois coloca – ou parece colocar – em

risco a nossa vida e se refere a coisas que envolvem as nossas emoções diante desse risco. O

instinto de sobrevivência, que desperta a paixão do medo, o assombro de estar à frente de um

perigo iminente, domina todo o nosso ser: tanto na mente quanto no corpo. E após esse

primeiro momento que remete à dor, eis que surge, paradoxalmente, o sentimento de prazer,

êxtase ou deleite, que também acompanha a experiência em tudo aquilo que consideramos e

reconhecemos como sublime.

Ora, e em que ocasiões nos deparamos com o sublime? Já nos referimos ao sentimento

do sublime despertado em alguns momentos da experiência com a arte como, por exemplo, na

tragédia grega. Mas salientamos que é na natureza que vamos encontrar a maior motivadora e

provocadora de tudo o que pode despertar o sublime em nossas almas. Pois que a natureza

tanto nos remete a imagens do belo, como um rio, de águas límpidas e cheio de peixinhos,

como a imagens que podem ser sublimes, como a cena clássica de uma tempestade em alto

mar. Quando falamos de natureza: de florestas, animais, estrelas, oceanos, vulcões, terremotos

ou tempestades, não estamos falando de meras ideias fictícias, são situações e imagens reais,

de uma realidade possível, muito próxima de nós. Kant, por exemplo, sustenta que somos

atordoados pela grandeza e pelo poder da natureza.45

O que faz da natureza a fonte mais

evidente e objetiva do medo ou terror, mas que pode ser transformada em um cenário do

sublime.

E por que sentimos deleite com o que nos causou certo terror? Burke não explica a

relação entre o sentimento do sublime e o terror por nenhuma causa “mística” – ele encontra

um motivo fisiológico. Ele justifica essa ligação como uma espécie de exercício físico

necessário, tal como acontece quando precisamos de qualquer outra atividade física, como,

por exemplo, praticar esportes ou caminhar para ter uma boa saúde do corpo. Seria como um

tipo de ‘ginástica’ fundamental aos nossos órgãos mais delicados e refinados – aqueles sobre

os quais age a imaginação; pois que, provavelmente, segundo Burke, o próprio entendimento

entender como uma maneira especial de intuição, isto é, a intuição intelectual que ultrapassa nossas

possibilidades de entendimento, na medida em que postula objetos independentes da sensibilidade. ‘Númeno’

é conceito oposto ao de ‘fenômeno’, que se refere aos objetos dos sentidos, ou seja, objetos só podem ser

pensados na medida em que estes se apresentam às formas da nossa sensibilidade. 44

SCHAPER, 1992, p. 384. 45

SCHAPER, loc. cit.

18

utiliza-se desses instrumentos físicos delicados – embora o que estes sejam e onde se

localizem não possam ser determinados exatamente.46

Então, para que tenhamos esses ‘órgãos

mais delicados’ em bom estado, é preciso exercitá-los e estimulá-los até um grau

satisfatório.47

E esse exercício ou labor que podemos ter com a experiência de viver o

sentimento do sublime, segundo Burke, mantém a melancolia, o abatimento e uma visão

sombria das coisas longe do nosso espírito. O melhor remédio para todos esses males, aos

quais estamos sujeitos se nos deixamos ficar em estado de relaxamento ou inércia total, é

realmente o exercício ou labor, entendido como uma superação de dificuldades, um ato de

poder de contração dos músculos semelhante mesmo à dor, que consiste na tensão e na

contração.48

Burke explica isso dessa maneira:

Assim como o labor comum, que é um modo de dor, consiste no exercício

das partes mais grosseiras do organismo animal, o exercício das mais

delicadas é um modo de terror, e se um determinado modo de dor [...] e

terror estão moderados a ponto de não serem realmente nocivos, se a dor não

é levada a uma intensidade muito grande e se o terror não está relacionado à

destruição iminente da pessoa, dado que essas emoções livram as partes,

quer as mais delicadas, quer as grosseiras, de um obstáculo perigoso e

perturbador, elas têm a faculdade de produzir deleite.49

Burke considera que seja efeito de uma determinação da ‘Divina Providência’ que o

estado de repouso, de inação e indolência causem tantos inconvenientes e transtornos,50

com o

objetivo de obrigar o homem a se movimentar, a recorrer a algum esforço tal como se busca

por algo absolutamente necessário à vida. Esta não é – ou não parece ser – uma justificativa

que possa ser afirmada como uma intenção de Burke em dar uma explicação pela via do

sagrado da inclinação natural que o homem tem de buscar a experiência do sublime. Porém,

parece que fica entendida como uma espécie de motivação natural, necessária e, podemos

dizer, até saudável do espírito humano em buscar o que vai além dele, além dos limites da

razão, além de suas forças, de qualquer limite físico ou mental. Pois não se poderia negar que

o homem esteja sempre buscando o que está além desses limites e provoque o espanto.

Longino observa a importância na vida do homem esse “esforço” em se buscar o que

vai além de si mesmo, a busca do ilimitado e da eternidade, como condição importante da

46

BURKE, 1993, p. 140. 47

Ibid., p. 141. 48

Ibid., p. 140. 49

Ibid., p. 141. 50

Ibid., p. 140.

19

saúde da alma. Ele reclama que os homens, já no seu tempo, não olham mais para o alto e não

dão importância ao renome na posteridade e, como consequência disso, a destruição da vida

(dos homens) se completa pouco a pouco e a grandeza das almas fenece, enfraquece e isso é o

que acontece, ainda segundo Longino, quando se reserva sua admiração às partes mortais de

si mesmo, negligenciando fazer crescer as partes imortais.51

Ou seja, quando os homens não

mais buscam o sentimento próprio do sublime e simplesmente se entregam, prisioneiros

“enfaixados nos mesmos costumes e mesmos hábitos”52

, o homem se deixa cair na

indiferença, absorto pela indolência, corrompido pelo amor à riqueza e o amor aos prazeres, e

assim, terminam por perder a capacidade – ou mesmo a coragem – de buscar aquilo que

liberta a grandeza da alma humana, que tem em sua natureza o potencial para o sublime – e

isso, para Longino, seria a ‘destruição’ do homem.

Kant, quando escreve sua Crítica da faculdade do juízo53

, parece se aproximar de

Burke quanto à ligação do sublime com a inclinação do homem em superar os limites, como

uma inclinação da própria natureza humana. Kant parece mesmo concordar que a busca do

sentimento sublime pode afastar os males da alma, como a covardia e a indolência, não só de

um indivíduo como de um povo, podendo até mesmo uma guerra ser considerada como algo

sublime:

Mesmo a guerra, se é conduzida com ordem e com sagrado respeito pelos

direitos civis, tem em si algo de sublime e ao mesmo tempo torna a maneira

de pensar do povo que a conduz assim tanto mais sublime quanto mais

numerosos eram os perigos a que ele estava exposto e sob os quais tenha

podido afirmar-se valentemente; já que contrariamente uma paz longa

encarrega-se de fazer prevalecer o mero espírito de comércio, com ele,

porém, o baixo interesse pessoal, a covardia e a moleza, e de humilhar a

maneira de pensar do povo.54

E Kant vai além, ele afirma a ‘destinação’ do homem em superar a própria força da

natureza como parte da condição humana. Apesar do medo e da impotência diante dos

fenômenos naturais, o homem encontra no ânimo uma faculdade de se sentir superior à

natureza, “sobre a qual se funda uma auto conservação de espécie”.55

E ao exercer o potencial

de sua racionalidade, o homem é impulsionado para a busca da experiência do sentimento

sublime. Nas palavras de Kant: 51

LONGINO, 1996, p. 107-108. 52

Ibid., p. 106. 53

KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Tradução Valerio Rohden e Antonio Marques. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 1993. 54

Ibid., p. 109. 55

Ibid., p. 107.

20

[...] e de bom grado denominamos estes objetos [da natureza] sublimes,

porque eles elevam a fortaleza da alma acima de seu nível médio e permitem

descobrir em nós uma faculdade de resistência de espécie totalmente diversa, a

qual nos encoraja a medir-nos com a aparente onipotência da natureza.56

Kant encontra na natureza o motivo de inspiração do homem em superar os limites.

Para ele o homem é livre ao sentir que tem potencial para superar a força da natureza, e esse

esforço da humanidade em sobreviver, contornando as dificuldades e obstáculos naturais

aparentemente impossíveis, é o que promove a evolução da razão humana. O prazer do

sublime aparece quase como uma afronta à nossa imaginação e esse sentimento do sublime só

pode ser explicado, em Kant, como um triunfo da razão sobre a imaginação, o poder da mente

humana de elevar-se acima daquilo que ameaça aniquilá-los.57

Se para Burke parece ser da

natureza do homem o esforço em busca do sentimento do sublime; para Kant, o exercício da

racionalidade, do potencial humano está em sentir, nos fenômenos da natureza, a sua própria

sublimidade, pois se sente capaz de resistir e sobreviver a ela – ainda que, assim como em

Burke, esse sentimento só possa surgir se o indivíduo estiver longe do alcance do perigo.

Segundo Kant:

Portanto, a natureza aqui chama-se sublime simplesmente porque ela eleva a

faculdade da imaginação à apresentação daqueles casos nos quais o ânimo

pode tornar capaz de ser sentida a sublimidade própria da sua destinação,

mesmo acima da natureza. Esta autoestima não perde nada pelo fato de que

temos de sentir-nos seguros para sentir essa complacência entusiasmante.

[...] a complacência concerne aqui somente à destinação de nossa faculdade

que se descobre em tal caso, do modo como a disposição a esta encontra-se

em nossa natureza, enquanto desenvolvimento e o exercício dessa faculdade

são confiados a nós e permanecem obrigação nossa. E isso é verdadeiro por

mais que o homem, quando estende sua reflexão até aí, possa ser consciente

de uma efetiva impotência atual.58

É importante aqui fazer uma observação: Kant associa essa destinação ao sentimento

moral, como parte integrante do seu conceito de dever moral. Para Kant, um sujeito pode ter

na sensibilidade a sensação de obstáculos, mas ao mesmo tempo de superioridade sobre a

sensibilidade pela superação dos mesmos para modificação do seu estado - este é o

sentimento moral que pode representar as leis da ação como sublime.59

Mas isso não parece

56

KANT, 1993, p. 107. 57

SCHAPER, 1992, p. 382. 58

KANT, op. cit., p. 108. 59

Ibid., p. 113.

21

contrariar a ideia de Burke, pois que, ao final, Kant e Burke parecem concordar quando se

referem a essa busca de superação como um exercício necessário à humanidade.

Quanto à questão da relação do sublime com a natureza, Kant e Burke fazem distintas

ênfases. Para Kant nos expressamos incorretamente quando denominamos sublime o objeto

da natureza.60

Se vemos na natureza aquilo que chamamos de “sublime” é só porque, como

vimos acima, descobrimos em nosso espírito uma superioridade em relação a ela, mesmo que

pareça algo descabido pensar alguma forma de superioridade nossa em relação à natureza.

Segundo Kant:

A sublimidade não está contida em nenhuma coisa da natureza, mas só em

nosso ânimo, na medida em que podemos ser conscientes de ser superiores à

natureza fora de nós. Tudo o que suscita esse sentimento em nós, a que

pertence o poder da natureza que desafia nossas forças, chama-se então

sublime.61

Kant ao invés de atribuir sublimidade ao objeto – no caso, a natureza – defende que a

sublimidade é uma ideia da razão, “pois que o verdadeiro sublime não pode estar contido em

nenhuma forma sensível, mas concerne somente a ideias da razão”62

. Assim, para Kant, o

“extenso oceano revolto por tempestades” não pode ser denominado sublime, mas o ânimo

diante de tal visão dispõe-se a um sentimento que é, ele mesmo, sublime, enquanto o ânimo é

incitado a abandonar a sensibilidade e ocupar-se com ideias que, por seu turno, possuem uma

conformidade a fins superiores.63

O que vivenciamos na natureza como incomensurável ou

absolutamente grande excede o poder de nossa imaginação, e não pode ser apreendido como

um todo sensível e nos sentimos desamparados até que uma ideia da razão, a ideia da nossa

agência moral, nos eleva para além do sensível às alturas de nossa própria superioridade da

natureza como seres morais.64

Burke, por sua vez, salienta o poder do sublime na natureza:

A paixão a que o grandioso e o sublime na natureza dão origem, quando

essas causas atuam de maneira mais intensa, é o assombro, que consiste no

estado de alma no qual todos os seus movimentos são sustados por um certo

grau de horror. Nesse caso, o espírito sente-se tão pleno de seu objeto que

não pode admitir nem um outro nem, consequentemente, raciocinar sobre

aquele objeto que é alvo de sua atenção. Essa é a origem do poder do

60

KANT, 1993, p. 91. 61

Ibid., p. 110. 62

Ibid., p. 91. 63

KANT, loc. cit. 64

SCHAPER, 1992, p. 382.

22

sublime, que, longe de resultar de nossos raciocínios, antecede-os e nos

arrebata com uma força irresistível. O assombro, como disse, é o efeito do

sublime em seu mais alto grau; os efeitos secundários são a admiração, a

reverência e o respeito.65

Em todo caso, o sublime como existente na natureza ou como uma ideia da razão que

a natureza desperta em nós – uma ou outra concepção do sentimento do sublime – não destitui

da natureza sua importância como uma grande e inspiradora fonte de força, grandeza, poder e

uma ideia conforme a “fins superiores”. Pois, afinal, Kant também parece estar de acordo com

Burke em relação ao sublime e à natureza, quando faz a seguinte descrição:

Rochedos audazes sobressaindo-se por assim dizer ameaçadores, nuvens

carregadas acumulando-se no céu, avançando com relâmpagos e estampidos,

vulcões em sua inteira força destruidora, furacões com a devastação deixada

para trás, o ilimitado oceano revolto, uma alta queda d’água de um rio

poderoso etc. tornam a nossa capacidade de resistência de uma pequenez

insignificante em comparação com o seu poder. Mas o seu espetáculo só se

torna tanto mais atraente quanto mais terrível ele é, contanto que, somente,

nos encontremos em segurança.66

Na natureza está a possiblidade de materialização daquilo que podemos considerar

sublime, uma vez que o sentimento do sublime pode ser encontrado facilmente no espanto,

que os mais variados fenômenos da natureza nos provocam. A natureza pode ser concebida

como o avatar do sublime. E é justamente essa grandeza que encontramos em alguns dos

fenômenos naturais que vai aproximar o sublime das nossas ideias de um ser ou seres

supremos, já que é o poder e grandeza na natureza que mais e melhor nos desperta para o

sentimento do sublime. Por exemplo, terremotos e tsunamis despertam em nós, certamente, o

terror. Kant nos diz que “a natureza em seu caos ou em suas mais selvagens e desregradas

desordem e devastação, suscita as ideias do sublime quando somente poder e grandeza podem

ser vistos”.67

O assombro que nos provoca o sublime, principalmente o sublime que dizemos haver

na natureza, é um temor que acaba por nos levar a uma reflexão sobre o que existe por trás

dessa mesma natureza. O poder que não somos capazes de dominar – o que não controlamos –

aquilo sobre o qual não temos o domínio nem da situação, do fenômeno em si, muito menos

temos o controle de nossas próprias emoções. Nessas demonstrações do poder da natureza,

somos levados a considerar que existe uma força além de nós, que ultrapassa todos os limites

65

BURKE, 1993, p. 65. 66

KANT, 1993, p. 107. 67

Ibid., p. 92.

23

humanos e é então, neste momento, que nos aproximamos da ideia do divino. Para Longino,

por exemplo, a natureza fez nascer em nossas almas um amor invencível a tudo que é

eternamente grande e àquilo que, comparado conosco, é mais divino.68

Aquilo que pode ser considerado apenas tranquilo, tido como “normal” ou “natural”,

parece nos deixar logo indiferentes – o que reforça e amplia o que já foi dito neste capítulo.

Longino diz que seguramente por toda parte, acompanhado do choque, o maravilhoso sempre

supera o que visa persuadir e agradar69

. Longino relata ainda a admiração e respeito que o

homem sente pela natureza, quando esta exibe sua grandiosidade e nos mostra como a

natureza humana sempre busca “mais”:

[...] levados de alguma forma pela natureza, não são, por Zeus, os pequenos

cursos de água que admiramos, apesar da limpidez e da utilidade, mas é o

Nilo, o Danúbio ou o Reno e, mais ainda, o Oceano; e a pequena chama que

acendemos, que conserva puro o seu brilho, choca-nos menos que os fogos

do céu, [...] e pensamos que ela é menos digna de admiração que as crateras

do Etna, cujas erupções projetam rochas das profundezas e montanhas

inteiras e, às vezes, derramam rios desse fogo famoso nascido da terra e que

segue sua própria lei.70

A tranquilidade e a falta de desafios facilmente levam a falta de interesse e não

conseguem causar o sentimento do sublime. Burke constata que “onde quer que encontremos

a força e sob qualquer ângulo que consideremos o poder, veremos sempre o sublime

acompanhado do terror e o desprezo ligado à força submissa e inofensiva”.71

O que nos causa verdadeira comoção é aquilo que transcende, ultrapassa, em poder e

força, de forma até mesmo violenta, o limite humano. Burke confirma a nossa disposição em

darmos atenção apenas ao que nos emociona de modo não racional:

Todas as vezes que nosso Criador, em sua sabedoria, visou que algo nos

impressionasse, não confiou a execução de seu intuito à atuação lenta e

incerta de nossa razão, mas dotou-a de poderes e de propriedades que obstam

o entendimento e até mesmo a vontade, pois, apoderando-se dos sentidos e

da imaginação, cativam a alma antes que o entendimento esteja apto ou a

aderir ou a opor-se a eles.72

68

LONGINO, 1996, p. 94. 69

Ibid., p. 44. 70

Ibid., p. 95. 71

BURKE, 1993, p. 73. 72

Ibid., p. 113.

24

Para Burke, não é de uma forma clara e racional que admiramos o que nos causa

espanto ou medo – o sublime. Ele chega a evocar o poder do Criador para descrever esse

sentimento sublime ligado ao que é grandioso e impressionante, a admiração e ao medo, pois

que não é a razão que controla esses sentimentos. Longino, por sua vez, na sua análise da

literatura e da metáfora, fala como o que é sublime pode nos mobilizar a atenção: “é que, no

tumulto do arrebatamento, por natureza, eles [...] impõem a ousadia como absolutamente

necessária e não dão ao ouvinte folga para contar as metáforas, tanto ele partilha o entusiasmo

do orador.”73

É isso: o ouvinte não consegue raciocinar a respeito do que ouve, nenhuma

reflexão naquele momento é possível, o sujeito apenas é levado pela emoção, sem se

preocupar se o que é dito tem algum fundamento racional – esse ouvinte foi arrebatado pelo

sublime do discurso.

Kant, quando aproxima a sublimidade às ideias da razão, que não se referem a nada

diretamente sensível, não parece convencer que a emoção que acompanha o sentimento do

sublime seja despertada de forma racional pelo sujeito que vive a experiência. Ele diz

textualmente que “sublime é o que apraz imediatamente por sua resistência contra o interesse

dos sentidos”.74

O que se sente não pode ser simplesmente contrariado por nenhum argumento

– apraz imediatamente, sem intermédio de nenhuma operação determinada da razão, já que o

juízo sobre o sublime não é determinante. Por exemplo, diante do espetáculo de um furacão –

mesmo assistido na segurança de um “camarote”, mesmo sabendo o que vai encontrar pela

frente – a visão da força destruidora de tal furacão certamente provocará emoções as mais

imprevisíveis, que não dependem simplesmente da vontade de quem sente. É mais que apenas

querer sentir – ou não sentir – não há um controle das emoções. O sublime é mais do que uma

mera vontade de se sentar diante de um quadro trágico e pensar mecanicamente em um roteiro

determinado e planejado de emoções. Pois se formos capazes de dominar e controlar tais

emoções, definitivamente este não seria um quadro sublime.

Se o que admiramos é algo realmente sublime, primeiro sentimos a emoção, só depois

– muito depois – temos alguma condição para qualquer tipo de reflexão sobre tal sentimento.

E nesse sentido podemos dizer que o sentimento sublime de terror e deleite, antecede qualquer

raciocínio. Porque, certamente, se tivéssemos tempo para elaborar longos pensamentos acerca

do que se apresenta aos nossos sentidos, tempo para analisar e racionalizar o fenômeno, o que

definimos como sublime não existiria, não nos emocionaria, não nos libertaria da indiferença

diante da vida.

73

LONGINO, 1996, p. xx. 74

KANT, 1993, p. 114.

25

A natureza humana, instintivamente, está em busca do que ultrapassa a sua própria

razão. E sente prazer, em deparar-se com uma força superior capaz de causar terror, temor

reverencial e respeito e é nesse sentido que se pode dizer que a procura do sublime se mistura

e confunde com a via do que é sagrado e divino.

26

4 CONCLUSÃO

O homem busca o sublime. Segundo Aristóteles, a tragédia busca a catarse suscitando

terror e piedade. As melhores tragédias provocam reações de terror e prazer e, assim, nos

fazem reconhecer, perceber o significado da nossa existência humana, mortal – um

entendimento profundo da nossa condição. A tragédia é uma boa demonstração do que o

sublime pode despertar em nós, a purificação das emoções e dos sentidos, nos levando a

eliminar nossos sentimentos de arrogância e dominação diante da vida, nos transformando. O

sublime que nos conecta diretamente com a nossa submissão involuntária a uma realidade

maior, que nos amedronta, mas que também, por fim, nos acalma – emoções contraditórias

onde a prepotência da racionalidade humana simplesmente não consegue interferir. Não

naquele momento sublime.

O sublime que Burke apresenta é uma busca incansável do homem. E o movimento

em busca do sublime só acontece por causa do terror e do deleite que necessariamente

provoca. É assim que vai conseguir satisfação. Somente por isso é possível que algo que

provoque terror possa depois nos causar deleite: pois é por um tipo de instinto que o homem

busca. E por isso, não escapa dessa atração magnética: terror, deleite. É como se fosse uma

necessidade.

Com o conceito da experiência do sublime que Burke apresenta é possível pensar o

terror e o sublime, e a origem de nossas ideias do sagrado – que podemos associar ao sublime

na natureza. Com a caracterização que Burke fez do conceito de sublime – como o sentimento

de um misto de medo, terror, admiração, reverência e o prazer do deleite – e com as

indicações conceituais de Kant podemos fazer uma ligação da origem de nossas ideias sobre o

divino com os sentimentos que a natureza desperta em nós e, assim, imaginar uma

combinação da natureza e do sagrado como uma única possibilidade do pensamento racional

primitivo: uma natureza poderosa, misteriosa, que ameaça e destrói sem piedade a vida é ao

mesmo tempo fonte de vida. Uma natureza “sagrada” que pode, por exemplo, alimentar o

homem com a caça, a pesca, a água e pode, da mesma forma, ameaçar a vida deste homem

com a caça, a pesca, a água... O homem, já nos primórdios, está diante de sentimentos

contraditórios: tem o sublime da natureza diante de si, ou seja, tem o terror e o deleite, que é o

tal do “prazer que acompanha a eliminação do perigo”75

. Uma natureza “sagrada” que nos

livra do perigo, nos salva a vida, que pode demonstrar todo o seu esplendor com o brilho do

75

BURKE, 1993, p. 46.

27

sol e toda a sua fúria nas tempestades, raios e trovoadas. Esse sentimento sublime que mistura

terror e reverência, é o mesmo sentimento sublime que mistura natureza e sagrado, e, assim,

com essa linha de pensamento, não é preciso muita imaginação para transformar o sol no

“deus sol”. E dessa união original da divindade e o sublime da natureza, temos todos os mitos,

rituais e inúmeras formas de religiosidade ligadas à natureza e aos primeiros passos da razão

humana.

O sentimento de sublime despertado pela natureza provoca em nós emoções e um

entendimento da própria natureza humana anterior a qualquer manifestação da razão humana

– desde quando se tem notícia da humanidade, desde o tempo em que a mitologia era o

fundamento do pensamento humano, onde a racionalidade humana, tal qual a entendemos

hoje, ainda se formava; o sublime da natureza que perpassa toda a evolução da história

humana até chegar ao conhecimento atual. E ainda hoje é essa mesma natureza que mais

claramente nos remete a uma experiência do sublime – a uma experiência do sagrado – pois

que transcende forças e possibilidades humanas.

E se a natureza pode ser a origem remota de nossas ideias sobre o divino, poderia se

pensar que depois que o homem substituiu seus mitos pela ciência e tecnologia – cada vez

mais desenvolvidos – esse sentimento sublime a que nos eleva a natureza poderia ter

desaparecido junto com o mito.

Mas o sublime que há na natureza persiste em nossas emoções mesmo nos dias atuais,

pois que ainda é capaz de nos provocar sentimentos de assombro. Mesmo quando o homem já

é capaz de prever muitos fenômenos da natureza, de entender suas causas e seus efeitos,

mesmo tendo sido capaz de inventar a pólvora ou fazer pousar uma sonda em um cometa a

509 milhões de quilômetros da terra, não deixa de ser surpreendido pelo poder e força

incontroláveis da natureza. Não detém um tsunami ou paralisa a força de um terremoto ou um

vulcão, nem, ao menos, deixa de se maravilhar com a extraordinária beleza de uma aurora

boreal. Ou seja, por maior que tenha sido o avanço da ciência e tecnologia, o homem, ainda

assim, precisa se dobrar em profundo respeito diante da Natureza. É o sublime que se mostra,

se apresenta – através da natureza – como uma força grandiosa e incontrolável, digna de

admiração e reverência, que nos causa temor reverencial e prazer – este é o sublime que

associamos ao divino “desde sempre” na história da Humanidade.

Jaa Torrano, em seu estudo e tradução da obra de Hesíodo, a Teogonia: Origem dos

Deuses, afirma que o mundo que este poema arcaico revela, está vivo de um modo

28

permanente e – enquanto formos homens – de um modo imortal.76

Ele, diz, em outras

palavras, que o sublime, a experiência do divino, que se sentia e se vivia ali é o mesmo de

hoje; é o passado, mas também é presente e estará sempre presente, pois que o sublime é uma

emoção que permanece. Torrano continua falando desse mundo arcaico e a nossa ligação com

ele, pois que é “um mundo mágico, mítico, arquetípico e divino, que beira o Espanto e o

Horror, que permite a experiência do Sublime e do Terrível, e ao qual o nosso próprio mundo

mental e a nossa própria vida estão umbilicalmente ligados.”77

Em Edmund Burke a relação entre o sublime e a origem de nossas ideias sobre o

divino não é o objeto específico de sua investigação – não é sua preocupação primeira.

Embora se possa encontrar várias menções no seu texto acerca do nosso “nosso Criador”, não

é possível depreender de tais menções relações conceituais bem determinadas e desenvolvidas

do sublime com o sagrado. Mas seguindo suas pistas, este trabalho conduziu-se a obra de

Kant onde se encontra de maneira muito mais clara, elaborada e enfatizada a relação do

sublime com o sagrado.

Portanto, pode-se concluir dizendo que o sublime partilha da mesma origem das

nossas ideias do divino, na medida em que tais ideias representam aquilo que na natureza

parece estar além dos limites da nossa capacidade de explicação.

A força da natureza que causa medo causa também admiração. É a ideia do poder

sagrado que causa espanto e provoca ao mesmo tempo atração e deleite, pois que há uma

união de temor e reverência em relação aos poderes divinos. Portanto, o significado do

sublime se liga ao significado de Deus, de alguma maneira.

76

HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Estudo e tradução Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2001, p.

19. 77

HESÍODO, loc cit.

29

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