Uma Genealogia Atlantica Da Possessao de Espiritos

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    ranslating the AmericasVolume 2, 2014http://dx.doi.org/10.3998/lacs.12338892.0002.003

    Uma genealogia atlntica da

    possesso de espritos1

    Paul Christopher JohnsonDepartamento de Histria, Centro para Estudos Aro-Americanos

    e Aricanos, e Programa de Doutorado em Antropologia e Histria,

    Universidade de Michigan

    Paul Christopher Johnson, An Atlantic Geneology o Spirit Possession,

    Comparative Studies in Society and History53, no. 2 (2011): 393-425.

    raduzido por Gabriel Banaggia

    A cada estase pertence tambm um para- onde para o qual se levado. Martin Heidegger, Being and ime (Ser e tempo[1962: 416])

    I

    Nem todos os espritos se retraram para metoras, mesmo na esera bastan-te pblica da poltica eleitoral dos EUA. Como aprendemos durante a ltimacampanha presidencial, a governadora Sarah Palin recrutou a ajuda do pastorqueniano Tomas Muthee durante a visita dele ao Alaska em 2005 para aastaros espritos que prejudicavam sua carreira. O New York imeselaborou: Palinpossui antigas associaes com lderes religiosos que praticam um [. . .] tipo de

    1. Agradecimentos: A pesquisa e a escrita desse ensaio tiveram apoio do Instituto para asHumanidades da Universidade de Michigan e da Fundao Memorial John Simon Guggenheim.Verses anteriores deste texto oram apresentadas no Conselho de Pesquisa em Cincia Social,em Nova York, no Centro de Estudos Aricanos da Universidade da Calirnia, Los Angeles,e no Centro para o Estudo da Religio, na Universidade Estadual de Ohio. Muito aprendi emcada um desses lugares. Agradeo a Michael Lambek, Webb Keane, Stephan Palmi, Hugh Ur-ban, omoko Masuzawa, Andrew Apter, Elizabeth McAlister, Karen Richman, Peter Fry, YvonneMaggie, Matthew Hull, Daniel Herwitz, David Cohen, Kathryn Lofon, Lauren Derby, SusanParrish, Andrew Shryock e Genevive Zubrzycki, os quais oereceram ao menos um comentrio

    ou crtica importante. Sou especialmente grato a David Akin, pela cuidadosa edio do originalem ingls publicado na Comparative Studies in Society and History, e aos pareceristas annimos,que oereceram desafios srios e comprometidos dos quais o artigo se beneficiou.

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    pentecostalismo conhecido como guerra espiritual. Seus aderentes acreditamque oras demonacas podem colonizar reas geogrficas e indivduos espec-ficos. [. . .] Crticos dizem que a meta do movimento de guerra espiritual criaruma teocracia (Goodstein 2008, minha nase).

    Deve ser pouco surpreendente que o trfico de Palin com espritos tenhasido noticiado como uma ameaa poltica. J que uma coisa entreter os espritossob as palmeiras, no exterior, ou mesmo recrutar seu auxlio para crises amoro-sas ou financeiras cotidianas; outra bem dierente ter um corpo, de agncia des-conhecida, danando com olhos arregalados e uma mo tamborilando no botoque aciona nossos arteatos nucleares. Isso pode ser um pouco de carisma de-mais os dons do esprito projetado nos domnios do carismapoltico, os lociconcentrados de atos srios (Geertz 1983: 122). Bruno Latour alegou que umasociedade purificada de agentes no humanos torna-se incompreensvel (1993:111), contudo muitos preeririam manter esses hbridos poltico-religiosos omais compartimentalizados possvel. Alguns chamaram o uso da guerra espi-ritual pelo pastor pentecostal queniano de atvico, especialmente quando apli-cado a candidatos polticos. Atvico um descritor recorrente para possesso;oi, por exemplo, a mesma palavra que Fernando Ortiz, o primeiro antroplogode religies aro-cubanas, aplicou para os brujosaricanos da Cuba de 1905, du-rante um perodo tenso de determinao de qual local civil, se que algum, asreligies aro-cubanas teriam na nao recm-independente (1973). Contudo apalavra pede algumas questes bvias: se a possesso de espritos um atavismo,da poca anterior a nossos avs, de quando, e de onde ela veio? Quais traos dapoca de manuatura ela retm? Por que deveria ser percebida como portadorade uma ameaa especificamentepoltica?

    Existem rupturas preocupantes nos modos como escrevemos e pensamospor meio de espritos. Por um lado, como Dipesh Chakrabarty descreveu, ascincias sociais esto predicadas na ideia de um tempo ateu, contnuo, vazio ehomogneo [. . .] desprovido de deuses e espritos (2000: 7576; ver tambmBenjamin 1968: 262). Por outro, espritos aparecem no campo regularmente.Como, pergunta Chakrabarty, mantermos os subalternos (em cujas ativida-des deuses ou espritos se apresentam) enquanto sujeitos de suas histrias (ib.:77)? Que tipos de tradues so plausveis, teis e ticas? Sua resposta con-siderar tradues tericas como uma orma de cmbio monetrio. raduesque arquivam duas entidades comparadas sob um terceiro termo so comomercadorias, ou transaes de valor de troca. Eis alguns exemplos: pani emhindi e gua em portugus so ambas variaes locais de H2O (ib.: 75); achuringaaborgine australiana e um toquede Santera so afirmaes de comu-nidade; a morosidade no trabalho dos escravos do Alabama no sculo XIX ea manuatura contempornea depaket-congono vodu haitiano so compara-dos como resistncia subalterna; as observaes de que um menino dinkanarica possui um antasma em seu corpo (Lienhardt 1961: 58) e um aldeo

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    tailands afligido por umphii paubgrita ou ri ruidosamente e ento escondeseu rosto (ambiah 1970: 321) so dois exemplo depossesso de espritos. Essastradues em terceiros termos artificialmente construdos so como mercado-rias que retomam o objeto de estudo com propriedades dierentes das que lhederam origem.

    Por contraste, tradues que investigam enmenos comparados por meiode sua contiguidade direta e de seus termos locais, de modo a buscar suas pro-priedades compartilhadas na experincia vivida, se assemelham ao escambo,ou a transaes de valor de uso. Devem ser preeridas, argumenta Chakrabarty,na medida em que no deormem os objetos de troca, mantendo algum grau deintertextualidade ontolgica (2000: 8287).

    Enquanto esse tipo de trabalho de escambo tem sido eito por muitos tri-butrios da ideia do primitivo na antropologia o etiche, o totem, o canibal ele no oi eito para apossesso. Sua emergncia enquanto traduo e classecomparativa nunca oi cuidadosamente examinada. Uma razo a ausnciade qualquer ponto de origem bvio quando se comparapossessoa outros ter-mos. otemismo, por exemplo, oi tomada de uma palavra ojibwae expandidapara um enmeno humano universal pelo comerciante John Long, em 1791(Murray 2007: 2122). Canibalpode ser rastreado num grau ainda maior a umtexto inicial (Hulme 1986: 17), sua primeira apario no dirio de Colombo,na entrada de 23 de novembro de 14922. Os pontos de partida do xamanismotambm oram produtivamente mapeados (e.g., Flaherty 1992)3. Comparadosa esses, o momento e o lugar de desencaixe da possesso de espritos so maisdiceis de localizar. Emergiram de uma mistura conusa de discursos popu-lares sobre demonismo, junto de novas ideias sobre pessoas, corpos, socieda-de civil e o primitivo, como encontrados em redes de troca comercial em ex-panso. Essa pode ser uma razo pela qual possesso de espritos permaneceem ampla circulao, enquanto os outros termos s respiram com um sistema

    2. Ainda que, como Hulme nota, seja quando muito um texto inicial bastante poroso: odirio uma transcrio de um resumo (eito por Bartolom de las Casas) de uma cpia de umoriginal perdido (1986: 7).

    3. O xamanismo requentemente ez papel de negativo da possesso de espritos, e vice-versa, justapostos enquanto tipos ideais em termos de xtase/enstase (e.g., em Eliade 1964) enviar o prprio esprito para ora em oposio a receber outros espritos dentro de si (DeHeusch 2006), com essa variada fisiologia de espritos por vezes entendida como uma expressode distintas ecologias de sociedades nmades contra sociedades agricultoras sedentrias (e.g.,Berti and arabout 2010) ou em termos do controle relativo sobre espritos em oposio aser sobrepujadoporespritos (e.g., Lewis 1989 [1971]). Enquanto a genealogia da categoria dexamanismo se cruza com a da possesso de espritos na produo do primitivo, a carreira dapossesso de espritos bastante distinta. Ela indexou a alta de controle, um corpo sem vonta-de, e, por extenso, a figura do escravo. Enquanto o xamtambm era um descritor do selvagem,em virtude da conotao da categoria de controle ao menos parcial mostrado por seu executante,

    o xamanismo veio a indexar primitivismo, mas no a alta de agncia. Sua imagem mitistricatornou-se o indgena norte-americano, que vaga to livre quanto os cavaleiros das estepes sibe-rianas [da saman, tungus], em contraste com o escravo aricano, que preso.

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    de suporte vida artificial, num modo mais ou menos orense. Essa mais umarazo pela qual a categoria de possesso deve ser investigada cuidadosamente.

    Para az-lo, ser necessrio recuarmos dos maos de manuscritos de pos-sesso de espritos, do antstico amontoado de monografias e artigos, ain-da que somente para nos orientarmos. Este ensaio, como tal, no se ocuparmuito da literatura da bibliografia do ltimo sculo. Em vez disso, irei mirara lente num ponto de entrada estratgico anterior, para o lugar e a poca departida da possesso de espritos como um descritor comparativo e uma coisagenrica. A investigao ser um experimento, o que ns poderamos chamarde uma incurso antropolgica nos princpios da filosofia moderna, para vercomo a possesso tomou orma em relao a novas ideias de Estados, a novasaspiraes de poder colonial, e a novos desideratos da religio civil que essesEstados e redes econmicas iriam exigir. A tarea menos a interpretao dacoisa, daqueles eventos rituais agrupados como possesso de espritos, do queum estudo das convenes, questes e termos pelos quais uma gama de aesoi conormada num grupo qualquer, e perguntar o que oi conjurado por essasconvenes (Jameson 1981: 35, 38). O ensaio no primariamente sobre osenmenos diversos aos quais os europeus se reerem como possesso de esp-ritos. , na verdade, sobre a ideiado corpo ocupado e da pessoa atravs da qualse ala, possesso enquanto uma episteme (Boddy 1994: 407; Smith 2006: 3)que serviu como um aparato-chave para se teorizar um projeto poltico moder-no particular, e um modelo particular de Religio que exerceu enorme poderdesde ento.

    Decirar a palavra possesso no meu nico objetivo, j que estou tam-bm interessado em como a possesso se alarga (Boddy 1989; 1994: 414) dequestes de espritos em relao a corpo e pessoa para questes de sociedade,contrato e governana. Contudo, a carreira da palavra possesso de ato pedeateno especial, na medida em que serviu como um piv central, e erramentade torque, entre os primeiros discursos clssicos e posteriormente cristos so-bre demonologia, num lado, e relatos de possesso entre selvagens, no outro4,e, a partir do incio do perodo moderno, entre discursos do corpo possudo ouocupado, num lado, e a posse material de coisas, no outro. A possesso serviucomo um ulcro para discursos modernos sobre liberdade e autonomia, colo-cados em relevo por meio de imagens divididas dos possudos aqueles queso como coisas e dos possuidores aqueles que possuem coisas. Meu ponto

    4. Por exemplo, j no primeiro relato publicado da rica, o History and description oArica, de Leo Aricanus (1600 [1550]), l-se das mulheres de Fez possuindo a si mesmas comuma variedade de demnios brancos, vermelhos e pretos; elas fingem o diabo alar dentro delas(1600: 14849). Aqui o vocabulrio cristo (e clssico) de possesso por demnios usado paraclassificar e traduzir as prticas de Fez. No processo, a possesso comea a se expandir numa

    classe antropolgica. Considero digno de nota que essa rotulao inicial da possesso na rical a mesma em termos de agncia, em vez da alta dela, como uma orma de fingimento estrat-gico.

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    de entrada nessa histria o momento inicial moderno quando a possesso sedestaca do discurso demonolgico cristo para se tornar uma categoria pro-toantropolgica universal da experincia.

    O argumento segue, grosso modo, assim: discursos e aes legais nomeandoe constrangendo a possesso de espritos ao longo dos ltimos quatro scu-los ajudaram a criar as noes duais do indivduo racional e do sujeito civil dosEstados modernos. A silhueta do cidado com posses e indivduo livre tomouorma entre a ideia do autmato um corpo-mquina sem vontade e a ameaado primitivo ou animal, corpos sobrepujados por instintos e paixes (ou os doisundidos, como no autmato da natureza de Descartes, animais-enquanto-mquinas [2003: 24, 29, 66])5. O equilbrio entre a ausncia de vontade e seuexcesso incontido tem sido considerado pelo prisma dos perigos de espritos emrelao a pessoas e objetos pelo menos desde a metade do sculo XVII.

    A possesso de espritos oi de ato encontrada virtualmente no mundotodo. Enquanto seu alcance se expandia, ela indexou questes sobrepostas depropriedade de territrio e de corpos (Matory 2009: 243, 258) ou, dito de outromodo, o problema de interpretar e controlar vidas interiores de pessoas en-contradas em terras recm-ocupadas. Apesar de sua extenso global, propon-ho que o problema da possesso de espritos tenha sido enunciado de modomais minucioso e indelvel em relao s religies aricanas e aro-atlnticas, arespeito das quais, mesmo hoje em dia, a literatura sobre possesso mais cres-ce. Nessa arena, o prospecto de corpos-mquina irracionais (o problema daausncia de vontade) e do renesi religioso irrestrito (o problema da vontadeexcessiva) oram conjugados, com a ameaa deste, em ltima anlise, justifi-car a promoo daquele, a criaode corpos-mquina autmatos, ou escravos.Susan Buck-Morss argumentou que a escravido oi a metora-raiz da filoso-fia poltica ocidental (2000: 821). Aqui oereo uma sugesto paralela de quea possesso de espritos oi a metora-raiz da categoria iluminista Religio, etento escavar as relaes entre as duas afirmaes.

    A palavra possesso, claro, no emergiu primeiramente ou apenas deprocessos coloniais. Possesso um termo bastante antigo do latim, derivadodas razes de potis, ser capaz, e sedere, sentar. Apesar de ter sido h bastantetempo aplicado imagem da ocupao dos corpos por espritos, o que im-portante para meus propsitos simplesmente a observao de que noesde propriedade precederam, e guiaram, noes da capacidade dos espritos desentarem na carne. Eu gostaria de tecer consideraes sobre como os termosde propriedade o lugar onde se pode, por direito, sentar oram transeridospara ideias sobre o corpo humano, sua posse e sua volio6, e o papel que a

    5. Mas o que vejo para alm de chapus e casacos, debaixo dos quais pode ser o caso de

    haver autmatos ocultos? (Descartes 2003: 29).6. Jack Goody documentou que os termos de propriedade oram aplicados a escravos

    antes de terem sido aplicados terra na histria humana (en Palmi 1996: ix).

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    Religio exerceu nesse projeto. Como uma caracterstica universal h poucocunhada do recm-nascido homem universal em torno da metade do sculoXVII, a Religio emergiu como uma classe genrica do pensamento e da aohumanos por meio de um processo de purificao, o exorcismo de espritosvindo a deixar um ser propriamente amortecido, impenetrvel e senhor de si(Asad 2003; De Certeau 2000; aylor 2007), algum que poderia ento acredi-tar livrementeem Deus, ou ao menos nas leis naturais de Deus7.

    O novo homem universal e sua nova Religio genrica simultaneamentemarcaram e ajudaram a criar as condies para se concluir um sculo e meiode guerras, seguindo a Reorma. Mas a ideia de Religio verdadeira, e de sobe-rania verdadeira, ainda estava sendo elaborada nas entrelinhas de acaloradaspolmicas catlico-protestantes. O ritualismo selvagem, em particular, oirequentemente utilizado por protestantes como um negativo para se queixardo cerimonial papista. Outros purificadores oram mais ecumnicos em seusataques. Hobbes, a saber, oi devastador com respeito a toda pretenso clerical,osse ela puritana, presbiteriana ou catlica. Contudo, quase uniormemente,os purificadores da Religio estavam preocupados com o para-onde do x-tase adaptando aqui a rase de Heidegger da epgrae. Foi empurrado paraalm-mar, para lugares lidos como crontopos da humanidade selvagem ouantiga (primitiva) (Fabian 2002; Keller 2002: 57)8. No processo, a possesso deespritos, em torno da qual oram dispersos descritores discrepantes de excessoervente paixes, entusiasmos e, em sua orma social, a horda oi ela prpriatornada um conceito aglutinador estvel. A categoria de religio da metade dosculo XVII, uma religio propriamente civil, oi purificada em dilogo comuma noo protoantropolgica de possesso de espritos enquanto perigo civil.

    Por meio do trabalho do negativo, a possesso de espritos definiu o in-divduo racional, autnomo e senhor de si imaginado como a undao doEstado moderno, em textos cannicos de Hobbes, Jean Bodin, Locke, Charlesde Brosses, Hume, Kant, e muitos outros, j que esses textos construam o indi-vduo e cidado livre contra um pano de undo de horizontes coloniais e escra-vido9. No que se segue, traarei alguns dos temas, encontros e textos a partir

    7. Espritos oram bsicos na vinculao de prticas aricanas a europeias no interior do qua-dro comparativo da Religio. Por exemplo, considere-se como o principal mercador da Compan-hia Holandesa das ndias Ocidentais, Willem Bosman, descreveu o porto de Ouidah, na ricaOcidental, no fim do sculo XVII: Para concluir o ema de sua Religio, devo acrescentar que elespossuem um tipo de Ideia de Inerno, o Divel, e a Apario de Espritos. E suas Noes, no queconcerne a estes, no so muito dierentes daquelas de algumas Pessoas entre ns (1705: 384).

    8. Enquanto a possesso de espritos uncionou requentemente como um crontopoda rica, a pessoalidade racional, como Locke a considerava, utpica, ou anticronotpica.Consiste em um ser pensante inteligente, que possui razo e reflexo, e considera a si mesmoenquanto si mesmo, a mesma coisa pensante, em dierentes pocas e lugares. . . (Ensaio sobre o

    entendimento humano, Livro II, cap. XXVII: Parte 9, minha nase).9. Hobbes tinha dinheiro investido na Companhia da Virgnia de 1622 at 1624, quando se

    tornou a Colnia Real de James I, e compareceu a trinta e sete reunies de seu corpo de governo.

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    dos quais a possesso de espritos, enquanto termo e tropo, oi orjada, e entodestacada e universalizada, e finalmente reaplicada em histrias, etnografias ena prtica religiosa em si.

    O desenlace que vislumbro no o de que a possesso de espritos seraposentada para a terra dos termos alidos, como ocorreu com o toteme, aindaque incompletamente, com o etiche. Ao contrrio, ao mostrar como a cate-goria primeiro emergiu dos domnios sobrepostos da religio, das economiascoloniais em expanso, das ideias emergentes de corpo poltico nacional, e daconstruo do cidado individual, espero prover a serra velha com dentes no-vos e mais afiados. Isso exigir complicar argumentos existentes sobre as ori-gens da categoria de possesso.

    O argumento existente segue, grosso modo, assim: a possesso de espritosenquanto um aparato conceitual do Ocidente descende da nomenclatura dademonologia crist, comeando com o Novo estamento e tendo seu auge dosculo XV primeira metade do XVII (Caciola 2003; Sluhovsky 2007), comas amosas possesses em massa em Loudun (1634), Louviers (1647) e alhu-res, marcando em um sentido o pice, e em outro a exausto da legitimidadedo paradigma demonaco10. A prpria Igreja Catlica comeou a disciplinar epoliciar cuidadosamente invocaes de demnios e seu exorcismo com o Rito

    Ele tambm tinha investimentos na Companhia das Ilhas Somers, que organizou o povoamentodas Bermudas. Ambos oram adquiridos por meio de seu empregador William Cavendish, o

    Conde de Devonshire (Malcolm 1996: 20). O trabalho de Locke para seu patrono Lorde As-hley (posteriormente o Conde de Shafesbury) implicou servir como secretrio para os LordesProprietrios das Carolinas de 1668-1671, perodo durante o qual escreveu uma Constituiodando aos proprietrios poderes absolutos sobre seus escravos. Ele tambm possuiu aes naCompanhia Real da rica e nos Aventureiros das Bahamas, duas companhias que comerciali-zavam escravos (Uzgalis 2002: 82; Farr 2008). Kant escreveu muitas passagens enquadradas emtermos de hierarquia racial, entre as quais a da Geografia sica(1804): A humanidade est emseu pice na raa dos brancos. Os ndios amarelos de ato possuem um talento parco. Os negrosesto muito abaixo deles, e no ponto mais baixo esto uma parte dos povos Americanos (emBernasconi 2002: 147). Ele no se maniestou quanto escravido, exceto para comentar que osnegros s so aptos para cultura escrava.

    10. A tradio do judasmo ela prpria rica e variada, ornecendo um vocabulrio de ruah,vento, e uma palavra padro para espritos; maggid, um mentor celestial concedido a grandescabalistas; o ibbur, uma alma reta adicional normalmente despercebida, que veio para ajudara retificar os pecados de algum;gilgul, uma alma que se move de corpos mortos para vivos; e,mais recentemente, dybukk, um esprito malvolo, geralmente de uma pessoa morta, que aderea e controla uma pessoa relutante (Goldish 2003: 1213). A prolierao de termos de possessono judasmo , grosso modo, comparvel ao idioma da possesso no cristianismo, ou, na leiturade Hobbes, lhe precedeu e inormou. Na Septuaginta, a verso grega das escrituras hebraicas,ruah traduzido como pneuma, e distinto de daimon. O bom sopro de Deus (in-spirao) associado sabedoria, sofia, contra os entusiasmos perniciosos, requentemente violentos, doDiabo, daimon. O desafio dos especialistas em rituais era distinguir entre as possesses positivase negativas, sofiacontra daimon, o que exigia uma desenvolvida hermenutica dos sinais corpo-

    rais e seus possveis reerentes interiores (Heron 1983: 3335). O isl, claro, possui sua prprialinhagem. Aqui estou tentando pensar por meio das regras dxicas do Ocidente, que por sua vezinormaram tradues de eventos rituais diversos no problema da possesso de espritos.

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    Romano oficial de 1614 (Sluhovsky 2007: 63)11. A Igreja Anglicana descartouoficial e completamente a possesso em 1604 (Cnone 72), tomando a posiode que a idade bblica dos milagres havia passado (Tomas 1971: 485). Con-orme comeou a ser racionalizada e policiada no Ocidente, a possesso deespritos se libertou de uma aplicao religiosa especfica, por volta da me-tade do sculo XVII, e oi estendida para enmenos percebidos similares delongnquas partes do mundo medida que relatos coloniais eram filtrados devolta s metrpoles europeias. Isso terminou por gerar uma classe morolgicaobjetiva autnoma com o fim de se avanar comparaes de rituais e crenasentre grupos. As comparaes alimentaram antropologias nas quais a naturezado ser humano era, primeiro, uma questo de tipos estticos geograficamen-te distribudos, e depois, uma questo de ordem temporal e desenvolvimentoprogressivo. Possesso de espritos era um dos marcadores bsicos do estgioprimitivo na evoluo das civilizaes. Chegando ao sculo XIX, esse proces-so culminou na reificao da categoria enquanto uma classe de ao totalmentegenrica, um termo undacional na disciplina da antropologia, de orma maisamosa na teoria do animismo de E. B. ylor: Para as mentes das raas maisbaixas parece que toda a natureza possuda, permeada, abarrotada, por seresespirituais (1958 [1871], II: 271), uma mxima aplicvel tanto a um lavradoringls como a um negro da rica Central (ib., I: 7).

    Esse um registro plausvel, cujos contornos mais gerais no contesto. Naverdade, o desenho dessa histria, que no oi adequadamente contada, par-te daquilo que esse ensaio em seus termos mais amplos busca executar. Maseu tambm quero embaraar essa verso. Derrida cunhou a rase duplicidadeespectral para perguntar do que o esprito , ele mesmo, possudo (1989: 6;Heidegger 1962: 74, 92, 132). Aqui comeo a desembrulhar o corolrio: do queapossesso possuda? Isto , se a possesso de espritos ela prpria um ei-tio, uma coisa eita, tambm um entreposto onde ideias sobre pessoalidade,vontade, ao, coisas e poder oram depositadas e negociadas. Isso ocorreu emrelao a pelo menos trs questes: (1) a emergncia das filosofias europeias eestratgias civis de relacionar pessoas e propriedade; (2) o processo colonialbaseado na escravizao e as questes de natureza humana e vontade, que essesprocessos evocaram; e (3) o encontro geogrfico com religies que incluamagentes no vistos alando por meio de outras pessoas, em terras imaginadas,

    11. Concomitantemente, como argumentou Marion Gibson (1999), o gnero ingls depanfleto de bruxaria, que havia florescido de 1597 a 1602, comeou a ser purgado da questoda possesso, aps 1612. Panfletos de bruxaria, depois disso, pouco alam de possesso, como seesta tivesse deslegitimado todo o gnero bruxaria, talvez por enatizar a vitimidade do perpetra-dor enquanto sujeito aos espritos invasores, em vez de seu comandante. De Certeau, contudo,mostra como registros dos eventos posteriores em Loudun ainda circulavam amplamente em

    brochuras populares que, em seu gnero, estavam situadas entre os livretos devocionais e osprimeiros jornais (2000: 9).

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    interpoladas e ocupadas, sobretudo, por razes relacionadas ao ganho comer-cial.

    Outra complicao do argumento convencional que no basta sugerirque a possesso de espritos meramente derivoudas (ms) tradues daquiloque missionrios e comerciantes encontraram, porque esses agentes tambmtomaram parte, criando condies sociais que podem ter acelerado aquilo queencontraram (Mayes 1995: 5). Por exemplo, a possesso de espritos ganhouora e requncia nas Amricas aricanas durante e depois dos regimes deescravido, mesmo em comparao rica em si (Mattoso 1986: 127), emtal medida que, no Brasil, escravos nascidos na rica se surpreendiam coma proeminncia e requncia da possesso em prticas crioulas que, de outromodo, consideravam similares s da terra natal (Rodrigues 1935: 101; Harding2000: 155). Para tomar um caso contemporneo, a possesso ocorre, entre osmigrantes haitianos nos Estados Unidos, com crianas, que no seriam candi-datos legtimos possesso em seu pas de origem (Brown 1991: 253; Richman2005). Isso no implica que a possesso possa ser reduzida a uma resposta privao, ainda que seja requentemente elencada dessa orma. Ao contrrio,isso afirma que a possesso de espritos envolve sensibilidades no somenteterritoriais, mas tambm diaspricas, a conscincia de separao de um lugar,de uma vida ou de uma pessoa deixada para trs. J. Lorand Matory (2009: 258)sugeriu que as religies de possesso de espritos prosperam e se expandementre os desprovidos de poder territorial, entre os que mais dependem da es-perana de ajuda de Outros Lugares. Michael Lambek (2009) observou quenem todos os espritos possuem hospedeiros humanos, e os espritos que oazem em geral no so de lugares estveis. Espritos, ele argumenta, indexammobilidade, deslocamento, migrao, chegadas e partidas, entradas e sadas decorpos; tornar-se presente e deixar para trs. Se espritos so sobrechegadase partidas, no de se surpreender que pessoas em movimento talvez sejam,hipoteticamente, mais engajadas em ativar e acelerar prticas de possesso queaqueles com poder territorial, aqueles que permanecem no lugar12. Esse con-junto de ideias sugere como os estilos de prticas de possesso, os espritos queengajam e as necessidades que mitigam, esto eles mesmos sempre em fluxo,em resposta a condies sociais dadas. Certamente, em todo caso, a coisa noest desvanecendo; pelo contrrio, como uma arte de compresso de espao/tempo, e convocando poder de outro lugar, a techneda possesso parece maisproeminente do que nunca (Johnson 2007).

    Uma terceira complicao da narrativa convencional que o arco narrativo

    12. Freud aludiu mobilidade da alma como simbolizadora da dimenso espacial da prpriaconscincia: Sua [da alma animista] qualidade voltil e mvel, seu poder de deixar o corpo e de

    tomar posse, temporria ou permanentemente, de outro corpo essas so caractersticas que noslembram inequivocamente da natureza da conscincia (1950: 117).

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    da possesso de espritos no era meramente descritivo, ou mesmo terico; aomenos inicialmente, era inteiramente pragmtico, exercendo eeitos prticosnos modos em que religies subalternas anteriormente secretas se tornavampblicas e sujeitas a regulao legal (Johnson 2002). Sua canonizao antro-polgica oi enormemente influente no estudo das religies aro-atlnticas. Apossesso de espritos oi um mecanismo de triagem para se construir mode-los da boa sociedade e do comportamento civil adequado, e sua duradouraassociao com religies de origem aricana colocou grandes barreiras legais,polticas e sociais para os ex-escravos nas novas repblicas do Brasil e de Cuba(e.g., Dantas 1988).

    Por fim, h uma quarta complicao com a narrativa convencional, apesarde eu ter espao aqui apenas para assinal-la: na medida em que os prpriosadeptos religiosos comeam a adotar a alcunha de possesso como um termode primeira ordem em suas prticas, isso traduziu enmenos corporais previa-mente descritos em mltiplas outras maneiras nos termos de ocupao e posse,

    potis sedere. Aprender a desempenhar certas ormas de experincia ritual comoser possudo transorma a prtica religiosa e a experincia em si.

    II

    Na medida em que a possesso de espritos tomou orma como uma classecomparativa genrica no sculo XVII, ela serviu simultaneamente como umamedicalizao da demonologia na Europa, e uma demonizao de prticas ri-tuais na rica e nas Amricas que anteriormente eram moralmente neutras.Isso engendrou uma hermenutica original do eu. Determinar quem, e o que,possui voc exigiu um sistema articulado da vida interior (Foucault 1999). Mas, medida que essa vida interior era moldada na Europa, a possesso oi cadavez mais encontrada no exterior, e esses dois processos oram relacionados.Nos sculos XVI e XVII, os possudos eram principalmente ndios. Recorde-se a longa trajetria do tupi brasileiro no pensamento europeu de Montaignea Shakespeare a Rousseau13. odas essas citaes se articulavam, em seu princ-pio, com as descries rivais do cosmgrao real rancs, o ranciscano AndrTevet (1986 [1575]), e do huguenote Jean de Lry (1578). O canibalismo era ocentro espetacular de ambas as descries, mas a possesso vinha perto, em se-gundo. Tevet, a saber, relatou que mais de cem vezes ele agarrou os corpos de

    13. As entrevistas de Montaigne com trs tupis por volta de 1560 oram a base de um deseus mais amosos ensaios, De Caniballes (1993 [1580]). Apenas algumas dcadas depois, Sha-kespeare usou o texto nas descries de Gonalo da comunidade ideal, emA empestade(ato 2,

    cena 1). No sculo seguinte, Rousseau se apoiou ortemente nele, terminando seu Discurso sobrea origem da desigualdadecom as palavras do tupi de Montaigne, poca j to amosas, a pontode no precisarem de citao (1992 [1755]).

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    ndiospossudos(usando precisamente esse termo) e, recitando o Evangelho deSo Joo e outros textos, conquistou todos os demnios tudo isso em dez se-manas. Esses repetidos eventos de possesso orneceram ao mesmo tempo umalegado domnio de intersubjetividade religiosa que vinculou os ranceses aostupis j que usaram um repertrio sobreposto de ideias e atos para comunicarum corpo ocupado por espritos (de Lry encontrou nas possesses dos ndiosum palanque do qual ulminava contra os ces ateus da Europa) e umademonstrao grfica de hierarquia religiosa, cristos no topo (1990 [1578]).

    Um sculo aps os relatos de de Lry e Tevet, a possesso comeou a servista menos como um problema do selvagem e mais e mais como uma perigosapropenso geral de toda a humanidade. O espetculo da vitria sobre os espri-tos se tornaria menos aquele da mente crist sobre a selvagem e, cada vez mais,um do civil sobre a turba. Religies indgenas continuavam a azer o papel denegativo, mas a geografia do Outro possudo se deslocou das Amricas para arica e o Caribe. No incio dos anos 1700, os lugares possudos por excelnciaeram a rica e cada vez mais as Amricas aricanas14.

    A articulao principal no deslocamento para a rica oi a publicao deUma nova e precisa descrio da costa da Guin, do holands Willem Bosman.Composto por uma srie de 22 cartas escritas entre 1701-1702, oi publicadoem holands em 1704, e ento traduzido imediatamente para o rancs e oingls, em 1705, e para o alemo, em 1706. As cartas de Bosman oram o textodefinitivo sobre a rica da poca, e a onte primria para Do culto dos deuses

    etichesde Charles de Brosses (1970 [1760]), que aplicou o etiche pela primeiravez como uma classe muito mais ampla, A religio do etichismo (18). Suasideias influenciaram Hume, que trocou cartas e manuscritos com de Brosses(David 1981). Subsequentemente, Kant usou o etichismo em seu Religio noslimites da simples razo (1960a [1791]: 168), Hegel o invocou na Filosofia dahistria(1956: 94), e Auguste Comte declarou o etichismo como um estgiouniversal do desenvolvimento ainda que com aricanos como exemplares(e.g., 1891: 260) na ascenso ao conhecimento positivo. Marx o adotou, desua leitura de de Brosses em 1842, mas tambm por meio de suas leituras deHegel, e do Cultura primitivade ylor (1958 [1871]). ylor subsumiu o eti-

    14. Contudo, relatos de possesso das Amricas tambm continuaram ao longo do sculoXVIII. O Relaes jesutasda Nova Frana descreve a experincia de ser possudo pelo espritode Deus, e a possesso pelo demnio iroquesa (Twaites 1896: 387, 206). Ao final do sculoXVIII, enmenos de possesso comearam a aparecer mais requentemente como um compo-nente da escrita orientalista sobre a sia Meridional (Hugh Urban, comunicao oral, 16 de abrilde 2009). Em termos cronolgicos, ento, pareceria que escrever sobre possesso de espritossempre indexou terras coloniais como possudas. Frederick M. Smith argumenta que, na ndia, apossesso de espritos sempre oi marginalizada por esoros purificadores pelos brmanes para

    gerar valores de controle, autoconscincia e um eu discreto (2006: 48, 12), apesar de raramenteser dirigido um ataque rontal possesso de espritos, mesmo por autoridades coloniais brit-nicas (ib.: 23).

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    chismo no interior da categoria ainda mais englobante do animismo. Muitodisso terreno amiliar (e.g., Pietz 1985; 1987; 1988; 1994; Masuzawa 2000).

    O que no oi notado como, na maior parte desses usos, um agrupado determos descrevendo eventos aparentados possesso (denotados diversamentecomo renesi, loucura, gesticulao selvagem) aparece como companheiroleal do etichismo. Na Filosofia da histriade Hegel, para citar um exemplo, asduas caractersticas notrias da magia aricana so o etichismo objetos in-discriminadamente dotados de agncia independente e cerimnias especiaiscom todo tipo de gesticulaes, danas, balbrdia e gritaria (1956: 94). Naausncia de qualquer ideia desenvolvida de uma histria ou um eu respons-veis porque isso que est indexado por tais descries de renesi, anatismoe entusiasmo meramente sico (98) o homem s uma coisa. por isso que,argumentou Hegel, pelo menos nesse texto, a escravido to natural para osaricanos quanto sua escravizao o para os europeus.

    O vnculo entre eles oi aplicado at a descries da cristandade aro-americana do fim do sculo XIX, nas quais danas etichistas e excitaoanimal permaneciam como descritivos paralelos (Chireau 2003: 12526). Oslivros etnogrficos pioneiros sobre religies aro-brasileiras e aro-cubanasigualmente atrelavam o etichismo firmemente possesso: Raimundo NinaRodrigues se reeriu possesso etichista (1935 [1896]: 109), e FernandoOrtiz (1916 [1906]: 84, 26) sugeriu possesso do dolo (posesin del dolo) eetichismo con maniestaciones animistas. Esses novos hbridos uniram a de-eituosa ontologia dos objetos dos primitivos a uma perda de controle indivi-dual em estados extticos. Contudo, esse articio como um todo, o vnculoentre ideias sobre a percepo equivocada de coisas (etichismo), uma pessoa-lidade de agncia indeterminada (possesso), e uma qualidade social (a hordaem renesi), oi, de certa orma, uma inveno de Charles de Brosses.

    Aquilo que no relato de Bosman tinham sido questes relativamente dis-tintas de propriedade e xtase contratos de ouro negociados em territrioaxnti em torno do orte de Elmina, e a loucura do culto da serpente nos reinosAja e Fon de Ouidah, distantes quase 500 quilmetros ao longo da costa oci-dental da rica de Brosses arrastou para uma moldura nica. A uso or-neceu os alicerces para a rica ser vista como o local antimoderno modelo depossesso, um lugar onde os contedos internos de objetos e pessoas oram re-conhecidos equivocadamente de maneiras similares, e onde as eseras de aoeconmica e religiosa estavam incorrigivelmente conundidas15.

    15. David Hume ez um movimento similar ao vincular superstio e entusiasmo como asduas corrupes da religio verdadeira, em seu ensaio de 1741: Que a corrupo das melhorescoisas produz as piores, torna-se uma mxima, e comumente provado, entre outros casos, peloseeitos perniciosos da superstio e do entusiasmo, as corrupes da religio verdadeira. Em l-

    tima anlise, entretanto, ele colocou superstio e entusiasmo como oras opostas, com somentea primeira levando tirania poltica: Minha terceira observao nesse tema que a superstio uma inimiga da liberdade civil, e o entusiasmo, seu amigo (1741). A associao da rica com

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    III

    Qual eraa viso adequada das coisas16? Com quais vises de pessoa e proprie-dade de Brosses estava se envolvendo, at ajudando a construir, por meio dajustaposio com a descrio de coisas e pessoas possudas? E por que a des-crio de Bosman e, em seguida, a teorizao de de Brosses oram to ressoan-tes e atraentes? Parte da resposta repousa no ato de que as religies aricanasoram interpoladas num nexo de ideias sobre propriedade, contrato, pessoali-dade e sociedade no qual a possesso de espritosjestava em destaque em de-bates sobre a ordem civil necessria para terminar a era de guerras de religio epara embasar uma economia colonial em expanso. Discuto brevemente cadaum desses vetores a seguir.

    Propriedade

    O prospecto de possesso por espritos, de ser tornado posse ou ocupa-do, era uma metora retirada de descries de propriedade e de direito depropriedade e atribuda como uma propenso humana geral. Do cidado(1642) e depois Leviat(1651) oram, a meu ver, os textos-chave nos quaisa possesso de espritos primeiro recebeu esse carter protoantropolgicogenrico17. Para Hobbes, a possesso de espritos apresentava um grave pe-rigo tanto individualmente quanto para o prospecto da vida civil sob o So-berano; esse problema comeou com os judeus, que cometeram o grandeerro de transormar uma religio de Comando em uma de Possesso (1985:144). Hobbes descreve espritos enquanto loucura e alucinao; o homemna verdade no possudo por ningum que no seu Esprito Corpreo(661), o esprito de si mesmo. Locke afirmou algo parecido quando descre-veu o homem enquanto proprietrio de sua prpria pessoa, a premissa b-sica por meio da qual as undaes da propriedade em geral oram colocadas(2003 [1680]: 119). Nessa verso das primeiras teorias polticas modernas,pessoas deviam ser imaginadas como sua prpria propriedade, donos desi mesmos. Isso s era verdade em termos ideais, claro, j que a rica e oexpansivo sistema deplantationdas Amricas orneciam um pano de undo

    uma alta de pessoalidade desenvolvida oi ocasionalmente invertida, como no ratado a respei-to do Juzo Final e da destruio da Babilniade Swedenborg, de 1758, no qual ele identifica asterras do interior da rica a pessoas de maior interioridade, precisamente porque elas recebemcomunicaes espirituais de orma no mediada, dierentemente de muulmanos ou catlicos,ou: Os aricanos so um povo mais interior que os demais (inRotberg 2005: 234).

    16. Fui muito auxiliado na articulao dessa questo pelo trabalho de Webb Keane (2007).17. Por exemplo: E para essa parte da Religio, que consiste em opinies a respeito da natu-

    reza dos Invisveis Poderes, no h quase nada que tenha um nome, que no tenha sido estimadoentre os Gentios, em um lugar ou outro, um Deus, ou Diabo; ou por seus Poetas, simulado serinanimado, habitado ou possudo por um Esprito ou outro (Hobbes 1985: 173).

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    chiaroscurodesse retrato.Se questes sobre o lugar e aes de espritos eram essenciais para se defi-

    nir o indivduo autnomo, essa determinao oi por sua vez vista como crucialpara a construo de uma sociedade civil, que dependia de regras de proprie-dade e troca previsveis e reguladas. A propriedade oi dotada por Hobbes comnada menos que a magia da transormao social: propriedade a razo para separticipar de, ou para se transormar em uma sociedade. Ela move uma pessoada liberdade abstrata para a liberdade poltica concreta; ela salva a humanida-de do Estado de Natureza; ela une gerao a gerao, construindo uma ordemtemporal e uma histria; e, finalmente, ela demarca escravos e no-escravos,e assim ajuda a construir uma ordem social significativa18. A sociedade civilemergente seria uma relao de indivduos livres, uma troca entre possuidoreslivres e aquilo que possuem. A semntica da possesso, movendo-se atravs denoes de propriedade e de espritos, era mais do que um jogo de palavras in-teligente. Hobbes reconhecia e jogava com os sentidos duplos de possesso e asrelaes que os vinculavam. A possesso pelos espritos errados apresentavaum risco sociedade civil porque agncia e vontade, expressas na aquisio, ahabilidade de tomar posse, eram comprometidas (1985: 93, 236, 344, 366, 371).

    Essas questes merecem explicao adicional, mas aqui proponho o se-guinte, como uma observao bsica: a categoria de possesso de espritos oiinteranimada desde o incio pela questo do ponto at o qual seres humanospodem ser vistos como propriedade enquanto um recurso econmico elegitimamente mantidos em servido. A possesso de espritos e a possesso depropriedade no deveriam ser vistos como opostos, e ento, enquanto assuntosespirituais versusmateriais, mas sim como campos ideolgicos e semnticoscompletamente emaranhados.

    Contrato

    O problema do contrato surge porque a autenticidade, a identidade e o acor-do sobre a mediao da autoridade so todos tornados opacos pela ocupaode corpos por espritos. A sociedade civil dependia da transerncia legtimae reconhecida de direitos sobre terras, bens ou trabalho. Contratos, por suavez, exigem ao menos essas trs virtudes: autenticidade, a segurana de querealmente expressam as vontades reais dos parceiros contratantes; identidade,a segurana de que contratos eitos hoje continuaro a subsistir no uturo; eautoridade, um consenso quanto ao poder comum compelindo e assegurandoo cumprimento do contrato. A possesso por espritos coloca todas essas, e

    18. Durante o mesmo perodo, a salvao crist oi requentemente traduzida em termos depropriedade. Por exemplo, o quakerRichard Vickris escreveu um tratato em 1697 sobre comoadquirir e manter a Posse Divina (1697).

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    portanto o Contrato em si, em questo19. Autenticidade e identidade so aban-donadas se uma pessoa composta de agentes mltiplos, possivelmente confli-tantes. Paixes apresentam um risco similar, ainda que menor (Hobbes 1985:196), j que o contratante pode ou no ser ele mesmo no momento em queum convnio eito (ver tambm Lry 1990: 138; Hegel 1956: 23, 27; Lienhardt1961; Lambek 1993: 312; 2010; Kramer 1993; Palmi 2004: 255). Em suma,contratos s podem ser adotados entre agentes que concordam a respeito danatureza, e dos limites, da sua agncia. por isso que nenhum contrato podeser acilmente consumado, escreve Hobbes, com eras, por um lado, e comDeus, por outro (1985: 197)20.

    Considere as ormulaes tardias de Kant sobre o princpio de posse, emsua Doutrina do direito deA metasica da moral(1996 [1797]). Aqui, a pro-priedade oi especificada como sendo aquilo com o que eu estou to conecta-do que o uso disso por outra pessoa sem meu consentimento me aria injustia(6: 245). A posse legtima deve ser a posse de um objeto sem segur-lo, demodo que o uso do objeto por outra pessoa sem meu consentimento me firamesmo quando eu no sou fisicamente aetado ou no estou de ato usando oobjeto. esse esprito de posse que circula e liga cidados em uma unidade po-ltica, postulada na onipresena do princpio de posse21. Esse esprito de posse uma parte da priorizao dos fins pblicos sobre privados, que Kant comeoua trabalhar em seus primeiros escritos (2002 [1766]) sobre o visionrio mstico,Swedenborg. Sua queixa contra Swedenborg, simplificadamente, ocava o riscodo interesse privado e a revelao especial. O esprito pblico de Kant, emcontraste, uma ora social e moral capaz de sustentar a sociedade: [. . .] umavontade estranha, por assim dizer, est ativa em ns, e assim nosso querer

    19. Hobbes afirma que as duas coisas que asseguram contratos so o medo de EspritosInvisveis e o orgulho (1985: 194200).

    20. Aqui Hobbes ecoa a justaposio de Aristteles (2000) das necessidades polticas dohomem contra as necessidades de animais ou deuses: Mas aquele que incapaz de viver em so-ciedade, ou que no tem necessidade alguma por ser suficiente para si mesmo, deve ser ou umaera ou um deus: ele no parte de um Estado.

    21. Na descrio de Kant, se um objeto no propriedade de ningum, esse objeto ani-quilado, do ponto de vista prtico; torna-se nada. Kant prossegue discutindo propriedades detrs tipos (1996 [1797], 6: 24748, 260): o primeiro o direito a uma coisa, a objetos corpreosno espao, ou terra. O segundo o direito contra uma pessoa, o direito de coagir essa pessoa aazer uma ao, ou direito de contrato. O terceiro o direito a uma pessoa semelhante ao direitoa uma coisa, incluindo cnjuges, filhos e servos (c. Hobbes 1985: 253). Aqui vemos como ideiaslegais e civis sobre posse implicam tambm uma teoria social da relao.

    Marx ornece um argumento similar sobre a metasica e a cultura da posse: o homemtoma posse de objetos ora, mas para que esses objetos possam entrar em relao uns com osoutros enquanto mercadorias, seus guardies devem se colocar em relao uns aos outros, en-quanto pessoas cuja vontade reside nesses objetos, e devem se comportar de tal modo que cada

    um no se aproprie da mercadoria do outro. [. . .] Eles devem, ento, reconhecer mutuamenteum no outro o direito de proprietrios privados e o nome jurdico para esse reconhecimento o contrato (1921: 96).

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    sujeito condio do consentimento externo. Um poder secreto nos compele aadaptar nossa inteno ao bem-estar de outrem (em Zammito 2002: 205). Demodo similar a Hobbes, ele props que verses particularistas do Iluminismo,ou imaginado intercursooculto com Deus (1960a: 189), subvertem a espe-rana de uma religio pblica e de um padro compartilhado de moralidade everdade (2002 [1766]: 29, 108).

    A eodiceiade Leibniz, de 1710 (1998), um texto que Kant seguia de perto,tinha ormulado a questo de modo similar. A moralidade depende no firmeestatuto do eu, undamentado no livre arbtrio. al livre arbtrio, para Leibniz,exigia trs caractersticas: (1) a espontaneidade da ao, a segurana de que aao se origina daquele que age; (2) a contingncia da ao, o ato de que outroscursos de ao no tomados eram possveis; e (3) a racionalidade da ao, a ga-rantia de que ela decorre da deliberao de alternativas. Somente a manutenodessas trs qualidades da ao pode assegurar a manuteno da lei. A lei in-clui, de modo mais importante, a lei das recompensas e punies eternas, querequerem um eu continuamente responsvel. Escravos por definio carecemtal eu. Nos escritos legais de Grotius sobre a escravido, que bem inormaramas ormulaes de Locke, por exemplo, escravos so descritos como capazessomente de virtudes necessrias ao propsito de servir, exatamente porquecareciam da aculdade deliberativa (1950 [1604]: 76). Eis o beco sem sadadefinitivo: ao serem orosamente privados de uma aculdade deliberativa e,portanto, de um eu responsvel e da possibilidade de contrato, eles se tornaramno-pessoas, autmatos corpo-mquinas que poderiam ser legitimamentees-cravizados e postos a trabalhar.

    Foucault (1999) chamou ateno para como a possesso clamava umanova ateno interioridade de modo a identificar o agente possessor, maspodemos dizer mais. O eu exigia uma interioridade continuamente aeridapor sua identidade ao longo do tempo. Isso parte do que Locke queria dizercom o significado orense da pessoalidade: somente por meio da atribuiode aes mesma entidade no tempo que a preocupao e a responsabilizao(civis) so criadas (2004: XXVII, pt. 26). al mensurao de identidade en-volvia o clculo de aes pessoais contra recompensas eternas, mas tambmde questes mais imediatamente prementes de confiana interpessoal. Econo-mias de mercado emergentes conduzindo negcios a distncias e nmeros demediadores crescentes requeriam uma confiana enorme, especialmente antesda abertura dos primeiros bancos nacionais, na Inglaterra e nos Pases Baixos,no apagar do sculo XVII. Mesmo depois disso, a confiana comercial era umenigma poltico e social a ser resolvido, um jogo de confiana (e assim per-manece at hoje). Exigia, por exemplo, confiar que notas de banco na verdaderepresentavam dinheiro em ouro ou prata, como se alegava. Mas o mediadorda crena de que o dinheiro era possuidor de presena real era o banqueiro. Asolidez do dinheiro, ou a representao persuasiva dessa solidez, exigia uma

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    personalidade persuasivamente slida. Essa era uma questo sublinhada, entreoutros, pelo amigo leal de Hume, Adam Smith: Quando o povo de um pasqualquer tem tamanha confiana na ortuna, probidade e prudncia de umbanqueiro particular, de modo a acreditar que ele est sempre pronto a pa-gar sob demanda quantas de suas notas promissrias sejam provveis de lheser a um momento qualquer apresentadas; essas notas passam a ter o mesmovalor do dinheiro em ouro e prata, com base na confiana de que tal dinheiropode a qualquer momento ser obtido por elas (1976, I, II.ii.28, p. 292). Coma expanso da circulao do papel moeda, seu valor dependia de sua uturacompensabilidade por metais preciosos. A promessa do uturo se sustentava,por sua vez, na suposta integridade presente e utura dapessoaemitindo anota de papel. Os imbudos por espritos eram a anttese dessa confiana dignade contratos. Kant escreveu sobre sua desconfiana daqueles alegando extraor-dinrio saber de espritos em sua linha final do Religio nos limites da simplesrazo: Mas at agora ns no vemos aqueles que, em sua prpria opinio, soextraordinariamente avorecidos (os escolhidos) ultrapassarem, por menosque seja, o homem naturalmente honesto, em que se pode confiar no intercursosocial, nos negcios, ou em dificuldades[. . .] (1960a: 18990, minha nase).

    Alm disso, a confiana era radicalmente complicada quando contraindonegcios com parceiros de uma ormao religiosa inteiramente desconhecida.Em So Jorga da Mina, o primeiro e mais importante orte de comrcio deouro e escravos na costa da rica Ocidental, por exemplo, o holands Pieterde Marees escreveu sobre as conusas intersees entre economia e religio daCosta do Ouro, em 1602: Se o Rei no recebe Pedgios o bastante para suamanuteno, devido a um nmero insuficiente de Comerciantes, ele vai atuma rvore que considera como seu Fetissoe lhe traz comida e bebida. Entoos Feiticeiros vm e adjuram essa rvore Fetissopara saber se Comerciantesviro ou no. [. . .] Mas pouco tempo depois uma voz se ar ser ouvida: esse o Esprito maligno, que lhes diz alguma coisa, e com isso eles vo para casa erelatam aquilo que seu Fetissodisse (1987: 69).

    A ideia do etiche oi tocada ao longo desses domnios econmicos e reli-giosos, mas o mesmo se deu com a possesso, o esprito alando atravs do eiti-ceiro. Ambos apresentaram crises de transparncia, traduo e confiana. Aquioram encontradas pessoas de interioridade desconhecida trocando metais deliga duvidosa, com os dois problemas de transparncia interligados. Mais tardeem seu relato, De Marees, nomeadamente, descreveu manter um Negro cativoa bordo para se redimir de negociar ouro also; enquanto aprisionado, o Negrorealizou rituais, um monte de buonaria Macaca. Ns perguntamos a ele porque ele ez isso (ib.: 73). A justaposio entre ouro abundante e o mistrio decomo obt-lo com segurana conrontava comerciantes na rica com umaurgncia hermenutica. ambm dotava a rica de um ascnio particular-mente antstico, selvagem. Da noMtodo para a cil compreenso da hist-

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    ria, de Jean Bodin, j podermos ler sobre a rica como o lugar do ouro, de umlado, e de monstros humanos-animais, de outro (1945 [1566]: 105). Esse era oproblema do comrcio nas costas aricanas: contratos exigiam a produo deequivalncia, no apenas no sentido de valor de troca entre metais dierentese coisas, mas tambm os meios de traduzir ideias de pessoas e seus poderesinternos, a autoria de seus atos. A possesso de espritos marcou e emergiu comrelao ao problema do parceiro digno de contrato22.

    Nesse momento, proponho uma segunda tese: a categoria de possessode espritos enquanto a posse ou ocupao do corpo por agentes no vistosemergiu de uma relao analgica com posses materiais e terras, contudo apossesso por espritos percebida complicou a troca lcita regulada de possese terras ao tornar opacas as identidades dos agentes contratantes.

    Pessoa

    Hobbes argumentou que os agentes contratantes agem em nome de Autores,ou diretores, ao longo de vastas distncias e ao longo do tempo. a garantia daautoria, a confiana nos agentes serem de ato legitimamente capazes de res-ponder por transaes das quais no so os Autores que ornece as noes deFuturos e do que Hobbes chamou de Fiadores, a habilidade legal de assumirdbito. A promessa da entrega de bens distantes ou uturos bem dierente dasimples entrega de uma coisa, e exige o desenvolvimento da confiana numarede de indivduos constantes.

    Hobbes viu a possesso de espritos como uma ameaa civil, j que, mesmodada a diversidade da representao (personificao) exigida por contratos eoutras transaes sociais, a Autoria particular alando por meio de qualquercorpo especfico obscura. A questo dos espritos oi tornada ainda maiscomplexa no Ensaio acerca do entendimento humano, de Locke (2004), no ca-ptulo intitulado Sobre identidade e diversidade, onde ele apresenta um expe-rimento mental de possesso de espritos: se a alma (e a conscincia) de umprncipe osse inserida no corpo de um sapateiro, depois da alma do prprio

    22. Mas o que podemos dizer sobre outros movimentos religiosos entusisticos, como ometodismo? Ainda que Hersokovits tenha interpretado o metodismo (e outros movimentos pro-testantes de avivamento) como uma verso norte-americana da possesso de espritos aricana(1941: 212, 271), Max Weber chamou o metodismo de um estilo de religio emocional, masainda asctico; uma converso inicial emotiva, metodologicamente induzida, era seguida poruma busca racional pela pereio (1930: 89, 92). O entusiasmo metodista combinava com a ex-panso do capitalismo. Voluntarista, disciplinado, austero e moralmente diligente, o movimentocolocava um grande valor na narrao escrita e alada da experincia exttica (Hempton 2006:46, 52). Economicamente, a expanso metodista dependia de linhas de crdito a juros baixos de

    bancos holandeses (ib.: 46). O entusiasmo metodista parece ter acentuado o eu responsvel emvez de t-lo ameaado.

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    sapateiro ter partido, o ser resultante seria o prncipe ou o sapateiro? A respostapara Locke clara o prncipe23. O que az a pessoa a conscincia, no a alma(substncia pensante, ou aquilo que pensa em ns) ou o corpo. Mais espe-cificamente, a conscincia atravs do tempo, ou memria, a srie de aesconsiderada em relao a suas consequncias, que define a conscincia racio-nal. Essa delimitao precisa da conscincia parecia crucial. A alma muitovolvel; no podemos ter certeza de reter a mesma alma quando dormimos ouquando num estado de embriaguez. Corpos, igualmente, ornecem no mximouma undao inconstante; uma criana se torna um ancio, o magro engor-da, algum perde uma mo num acidente. O eu que anteriormente estendiasua empatia at a ponta dos dedos agora se ajusta para que termine no cotoco(exemplo de Locke), e a conscincia ocupando esse corpo alterado continuaa acumular memria e experincia, pelas quais responsvel no uturo. Esseltimo parece ser o ponto crucial. A lei, incluindo a lei eterna de recompensase punies, depende de tal contabilidade. A participao civil eetiva, exigindocomportamento ordeiro, deve ser ancorada napessoaindividual em vez de naalma ou no corpo.

    Intrigante para meus propsitos o ato de essa discusso no ter sido en-quadrada somente como uma bula de prncipe e sapateiro. Locke se apoiavanos termos e estrias do mundo colonial para construir sua verso da pessoaracional. Na quarta edio do Ensaiode Locke (1975 [1700]: 44647; Livro II,cap. 27), por exemplo, ele acrescentou a seu argumento o conto de um papagaiobrasileiro possudo24. O governador colonial holands de Pernambuco (a prin-cipal regio produtora de acar do Brasil do sculo XVII), Prncipe Mau-rcio (Johan Maurits van Nassau-Siegen), tinha ouvido alar de um amosopapagaio alante. Ao entrar no aposento para ser apresentado ao governador,o papagaio primeiro notou, Que comitiva de brancos temos aqui!. Quem esse prncipe?, perguntaram ao papagaio, a respeito do Governador; Um

    23. Os Novos ensaiosde Leibniz (1704) reutaram o experimento mental do prncipe e dosapateiro de Locke com seu prprio experimento em metempsicose: vamos dizer que voc setorna o Rei da China, no processo perdendo todas as suas memrias atuais. Continuaria voc a

    existir enquanto pessoa? Contra Locke, a resposta de Leibniz oi no; a pessoalidade insepar-vel do corpo apreensor. Recompensas e punies uturas no poderiam ter sentido, assim comoqualquer carter sistmico sem a preservao da memria e da identidade pessoa, logo qualquerideia de justia depende da firme unio de conscincia e corpo (em Perkins 2007: 145).

    24. Locke cita a estria extensamente das Memrias do que se passou na Cristandade, deWilliam emple: [. . .] veio minha cabea perguntar-lhe uma questo indolente, porque penseino ser muito provvel v-lo novamente, e eu queria saber de sua prpria boca, o relato de umahistria comum, mas muito acreditada, que eu tinha ouvido com tanta requncia de muitosoutros, sobre um velho Papagaio que ele tinha no Brasil, durante seu Governo l, que alava, eperguntava, e respondia perguntas comuns como uma criatura razovel; tanto que aqueles deseu Comboio l, de modo geral, concluram ser Bruxaria ou Possesso; e um de seus Capeles,

    que viveu bastante tempo depois na Holanda, nunca mais, depois daquele tempo, pode suportarum Papagaio, mas dizia, odos eles tinham o Diabo neles (emple 1692: 7677).

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    general qualquer, ele respondeu. Perguntaram ento ao papagaio de onde eleera (Marignan), a quem ele pertencia (um portugus) e o que ele azia, Je

    garde des poulles (eu vigio as galinhas).Locke cita a estria de William emple, que a havia oertado como nada

    mais que uma curiosidade, uma questo indolente que lhe veio cabea.Locke, por sua vez, tambm usou a estria para divertimento, uma boa estria,e uma digresso de uma cena agitada. Mas ele tambm tinha um propsito:poderia um papagaio ser possudo por uma identidade pessoal? Na seoseguinte, Locke parece dizer que no, pois a identidade pessoal depende derazo e reflexo, da habilidade de se considerar como a mesma coisa pensanteao longo de dierentes tempos e lugares da um eu que pode ser continuadoem substncias idnticas ou diversas. Locke parece decidir que um papagaio somente um mmico, capaz de papaguear racionalidade, mas no de ger-la.

    Certamente, entretanto, tem mais nessa digresso do que Locke admite.O pano de undo da estria depende da pista racial que d incio ala dopapagaio, Que comitiva de brancos temos aqui!. O papagaio da Europa,Marignan, e enquanto ele mesmo possudo por um portugus, trabalha comosupervisor das galinhas. Alm disso, o Prncipe Maurcio de Nassau no ape-nas governou Pernambuco de 16371642, mas tambm liderou a misso paratomar controle do Castelo de Elmina (So Jorge da Mina), na Costa do Ouro,o mesmo local a partir do qual outro holands, Willem Bosman, comps suahistria de comrcio de ouro e escravos, muitas dcadas depois. Locke pareceestar escrevendo sobre o prospecto de pessoas que do a impresso de serem omesmo homem ou um papagaio genuinamente racional, mas so na verdadeentidades desconhecidas, como um ouro-etiche que imita o brilho externo,mas internamente composto de cobre e erro. Porm o papagaio acusa o go-vernador de ser no muito mais que um mmico ele tambm, representandoum papel designado a ele, um general qualquer. Na troca, Pernambuco, acolnia aucareira brasileira, se torna o stio do interldio cmico. A piada o animal representando o humano: um ser por meio do qual s se pode a-lar atravs alegando alar por si mesmo, enquanto Autor; ou, possivelmente, oescravo representando um humano livre sendo possudo por uma aculdadegenuinamente deliberativa25.

    Apessoato cuidadosamente destilada por Locke numa srie de experi-mentos mentais de possesso o papagaio possudo, ou o sapateiro ocupadopela alma de um prncipe mensurado contra aqueles carentes de crdito in-terno genuno. Ou seja, o homem que no autopossudo, que um mero m-mico, pardia ou papagaio. Religiosamente, ele algum de -etiche, como

    25. O ensaio de Hume Sobre carteres nacionais (1748) tambm evocou um papagaio do

    mundo da escravido: Na Jamaica, de ato, eles alam de um Negro como um homem talentosoe instrudo; mas provvel que ele seja admirado por realizaes mais parcas, como um papa-gaio capaz de alar algumas palavras claramente (1825: 52122).

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    Kant viria postular posteriormente a colocar (1960a: 181), o entusiasta que a-naticamente imagina que sente os trabalhos especiais da graa no interior de simesmo, de modo que a virtude surge para excitar seu desprezo (189).

    Como Hume descreveu, ele mesmo, no ratado da natureza humana, en-tretanto, o eu permanece elusivo, apesar do esoro cuidadoso: De minhaparte, quando entro o mais intimamente naquilo que eu chamo de eu mesmo,sempre tropeo em uma ou outra percepo particular. [. . .] Eu nunca possoalcanar a mim mesmo[. . .] (2006b [1739]: I.iv.6). Se o tipo correto de pessoacivil no podia ser simplesmente encontrado, ele tinha que ser eito, e instru-do. Esse era o propsito do para-onde do xtase. De longe, o mais importantetratado pedaggico ingls de seu tempo, oAlguns pensamentos reerentes edu-cao, de Locke, tornou essa lio pereitamente clara: endo [. . .] estabele-cido uma tal ideia de Deus em sua mente [. . .] reprima qualquer discurso deoutros espritos [. . .](1997 [1692]: pt. IX, se. 137).

    Para retornar aos termos de Hobbes, quando o idioma religioso de Co-mando superado por um de Possesso, a virtude cvica morre (1985: 144). Avitalizao da virtude cvica, por conseguinte, deve ser cultivada por meio deum idioma religioso moderno do banimento de espritos.

    Sociedade

    Prticas de possesso perigosas poderiam levar a multides desregradas e des-ordem civil. Em pouco tempo, a pessoa inspirada passa a se considerar comouma distinta avorita da Divindade; e quando esserenesitoma lugar uma vez,o que o cmulo do entusiasmo, todo capricho consagrado, escreveu Hume(2006a: 75, minha nase). Ou Hobbes, Muitos reunidos so possudos pelanatureza de uma multido (1991: 76). Ou Spinoza, em rase amosa, A turba aterrorizante, se destemida (1996: 144). Sociologicamente, o escrito de Kantsobre Swedenborg, ao lado de outros, veicula uma preocupao similar comdistines de classe; o iluminismo est ligado ao perigo das massas, da mul-tido ervilhando eneitiada (1960a: 168).

    A sociologia encontrou a geografia medida que o corpo possudo, irracio-nal, mudou do estado de natureza que Hobbes tinha localizado nas Amricaspara representaes de religies aricanas. poca do Observaes sobre o sen-timento do belo e do sublimede Kant, de 1764, os selvagens norte-americanoseram representados como plenamente redimidos: confiveis, honestos, hon-rados, sublimes, livres, uma nova repblica espartana. Por contraste, os ne-gros aricanos por natureza, no tm sentimento algum que se eleve acima dorvolo, e at escravizam suas esposas. Esse carter rvolo exemplificado porsua religio de etiches (1960b [1763]: 11013). Com o selvagem americanoenobrecido, o aricano e o aro-americano eram distinguidos como os etichis-tas e os possudos.

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    anto Hume como Kant adotaram algo da descrio de de Brosses sobreno somente a irracionalidade individual, mas tambm sobre os modos sociaisquestionveis, onde cada capricho consagrado. O renesi da possesso oentusiasmo pululante da horda,Schwrmerei(Kant 1960b: 107, 123) torna-seo resultado sociolgico da -etiche na prtica. Um risco das ormas de reli-gio entusisticas o de conundir o Esprito Santo com outros espritos. Nostermos de Hobbes, no lugar dessa cacoonia metasica, a prpria ideia do Le-viat, do Soberano, o Deus mortal que possuidor de todos os seus sditos,deve ser espelhado por um nico Deus divino englobando todos os espritosrivais, o ser que Kant mais tarde nomearia o Primeiro Possuidor (Kant 1960a:74). Na escrita de Hegel que se seguiu, a horda pululante retratada sobretudona religio aricana de etiches (e.g., 1956).

    Essa se tornou uma descrio padro aplicada de ato na governana. Con-sidere o seguinte relato do Conselho Central de Sade da Jamaica, de 1852,um entre as dezenas de exemplos que eu poderia apresentar: Exposio ao arnoturno muito prevalecente entre as classes mais baixas; sob vrias descul-pas, eles se encontram aos montes [. . .] nos desempenhos de viglias dos mor-tos, e tambm em suas estas de John Canoe. [. . .] [E]les do plena extensoao prazer animal; e no arremesso da excitao das paixes prevalecentes, seusgestos e atos lembram mais aqueles de demnios do que de seres humanos(Trasher 1856: 5960). O que impressionante a conjuntura em um nicopargrao curto de aro-jamaicanos se encontrando aos montes, rituais, prazeranimal, paixes excitadas e demnios. Similarmente, no registro missionriomais amplamente lido da rica na virada do sculo passado, lemos, O mdi-co etiche e a crena etiche eram um vis a tergoda horda nativa (Nassau 1904:127).

    Para Kant, a acusao de - etiche tinha se reerido principalmente aocerimonialismo vazio, ao atrelar a crtica da religio aricana crtica do pa-pismo. Contudo, lendo cuidadosamente, Kant tambm a usou para descreveruma alta de ateno a distines sociais(1960b: 110). Um pouco abruptamen-te, por razes de espao, oereo neste momento uma terceira tese geral: des-cries de possesso de espritos indexavam no somente a ausncia de umeu propriamente delimitado, mas tambm uma sociedade inadequadamenteestruturada, a anti-plis. A rica possuda se tornou o crontopo no somen-te do renesi o irracional e incontrolado mas tambm da horda, a turbasocialmente indierenciada.

    IV

    Mudo agora para uma discusso das Amricas, especialmente Brasil e Cuba,em uno da sucesso prxima nesses lugares entre abolio e a gerao de

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    novas repblicas (para o Brasil, Abolio em 1888, Repblica em 1889; paraCuba, Abolio em 1886, Repblica em 1902). Nessas naes, a governana, aregulao e o estudo acadmico da possesso de espritos no que haviam sido,inicialmente, religies de escravos, mas abruptamente se tornaram, ao menospotencialmente, as religies dos cidados, oram colocados em orte evidn-cia. Discursos sobre o problema poltico da possesso de espritos, portanto,tornam-se proveitosamente claros em seus registros histricos (ver, inter alia,Romn 2007; Giumbelli 1997). Na esteira das emancipaes dos escravos nasAmricas, as religies aro-atlnticas oram interpoladas por Estados nos ter-mos das literaturas que eu estive examinando at agora. No que se segue, mededico especialmente aos principais estudiosos iniciais da possesso de espri-tos, que ajudaram a colocar em vigor as terminologias que oram usadas pelasnovas repblicas.

    anto o trabalho inovador do criminologista Nina Rodrigues sobre re-ligies aro-brasileiras em seu O animismo etichista dos negros bahianos, de1896, quanto o estudo inaugural de Fernando Ortiz sobre a religiosidade aro-cubana, Los negros brujos, de 1906, para tomar os dois exemplos mais bvios,oram engajamentos alargados com a noo de animismo de ylor. Enquantodebates sobre a poltica da teoria podem, por vezes, parecer rustrantementeemeros, nesses casos, o impacto poltico das ideias de ylor, como redigi-das por Rodrigues e Ortiz, oi agudo e direto: os dois estudos serviram comoportes de entrada para as prticas religiosas de ex-escravos nas associaesreligiosas civis de repblicas incipientes. Esse era um momento rgil, o rom-pimento da tranquilidade hierrquica (Sodr 1988: 43) da escravido pelasmos de uma proximidade social desconhecida entre brancos e ex-escravosnos espaos pblicos em expanso do Rio de Janeiro e de Havana. As regrasde engajamento eram at aquele momento incertas, ossem as normas de tratointerpessoal ou as questes legais, tais como a jurisdio do Estado sobre opluralismo religioso expandido de seus cidados. Quando a Constituio bra-sileira de 1891 declarou a liberdade de religio, por exemplo, j era bvio que oartigo no incluiria o candombl aro-brasileiro sob suas protees. A razo daobviedade era que o candombl e outras religies de possesso j haviam sidosubordinados ao Cdigo Penal de 1890, que regulamentou o espiritismo e amagia em nome da sade pblica. Administrar a religio aricana e outrasreligies desviantes aps a abolio exigiu uma reimaginao da nao, de seuperfil religioso, de suas regras proxmicas e de seu estilo regulador26.

    Para o Ortiz inicial (j que sua compreenso vis--vis s religies aro-cubanas mudou dramaticamente ao longo de sua carreira [e.g., Palmi 1998;2002]), a mala vida cubana da virada do sculo, a zona cinzenta de prosti-tuio, crime e depravao, definida em oposio vida honrada e vida

    26. Cuba passou por processos bastante parecidos (ver Bronman 2004; Romn 2007).

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    buena (1916: 1), oram apresentadas como consequncias diretas de espri-tos aricanos persistentes. Apesar de ser a cada dia mais assimilvel (ib.: vii),o aricano continuava escravo de suas paixes (55), preso a seu atavismomoral e a seu parasitismo social (21), evidenciado, sobretudo, em ritos depossesso. Nina Rodrigues, por sua vez, recapitulou a linhagem inteira, de Bos-man a de Brosses a ylor, em sua luta com o problema republicano do Brasil,e destacou mltiplos riscos civis relacionados ao candombl aro-brasileiro:primeiro, a religio interrompe a regularidade do trabalho e justifica a vadia-gem (1935: 18). Segundo, a teologia iorub da rica Ocidental, proeminenteno Brasil, copiada de uma orma de governo estrangeiro: o rei correspondeao deus superior, postos mediadores de nobres correspondem s divindadesmediadoras chamadas orixs e da em diante. Portanto, aqueles que praticamreligio iorub praticam um sistema poltico rival. Rodrigues declarou que eletinha at ouvido alar do poder da possesso em motivar batalha e sedio daa razo de se proibir a imigrao aricana (112). erceiro, os aro-brasileiros es-to num estado de transio do etichismo para a idolatria, e dada sua religiohbrida(15), enquanto mestios do esprito(28), no so passveis de conversoa uma orma de catolicismo purificada ou propriamente nacional. Ou seja, ba-seado na religio, no claro que os aro-brasileiros de ato seriam assimilveis repblica brasileira, de qualquer modo. Quarto, a religio envolve possesso a perda da personalidade individual, da memria e da responsabilidade (99,11617), mas o que ainda pior, envolve o fingimento da possesso (1013,130; ver tambm Ortiz 1916: 84)27. Quinto, o candombl j tomou posse dopas; ele penetrou no nimo pblico, e ameaa expanso adicional por cont-gio, como Ortiz comunica com uma dramtica estria de uma menina brancapossuda (12326; Ortiz 1916: 17).

    As classificaes permitidas pela possesso de espritos oram no so-mente um projeto antropolgico, mas tambm um projeto legal aplicado e im-posto na construo de naes de acordo perfis religiosos preerenciais. A ter-minologia de Rodrigues, indo da possesso ao esprita sonmbulo, apareceem relatrios policiais processando casos de religio ilegal (charlatanismo)no final do sculo XIX e nas primeiras dcadas do XX, conorme a repblicabrasileira tomava orma. Seus estudos, e seu vocabulrio, orneceram a gram-tica para o controle legal da religio durante as primeiras dcadas depois daEmancipao, enquanto a religio dos escravos seria reormada como partee parcela de um projeto religioso civil. sob essa luz que devemos ler novasleis de sade pblica mobilizadas no Brasil de 1890, que declaravam ser ilegalcativar e subjugar a credulidade do pblico (Artigo 157 [Dantas 1988; Maggie

    27. Rodrigues e Ortiz igualmente insistem que podem distinguir possesses reais de al-

    sas. Aqui vemos o papel da possesso na constituio do antroplogo profissional, distinto porsuas habilidades hermenuticas singulares de separar desempenhos culturais autnticos de inau-tnticos.

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    1992]), ou os esoros de 1930, pelo Estado brasileiro, para sujeitar mdiunsespirituais triagem psicolgica e a procedimentos de licenciamento.

    O espiritismo oi inicialmente reprimido sob o mesmo regime legal decdigos penais das religies aro-brasileiras, e inicialmente todas as religiesde possesso eram por vezes mesmo classificadas como espiritismo. Porm,como uma tradio distinta, o espiritismo era um movimento predominante-mente branco, instrudo e de classe mdia/alta. Nunca encarou o mesmo graude represso policial como o candombl, com as invases de seus templos e adestruio de seus bens, em parte porque os espritas construram e geriramhospitais psiquitricos, ornecendo um servio pblico e, simultaneamente,impregnando crenas espritas com o prestgio crescente da psicanlise (Hess1991: 15660; Giumbelli 1997: 16573, 24448). Os espritas j estavam se de-endendo eetivamente no tribunal por volta dos anos 1910, e ainda que sobas leis brasileiras, revisadas de 1934, os templos espritas, como os templos decandombl, precisassem ser registrados com a polcia, por volta de 1942, oramisentados da regulamentao ederal. O candombl, ao contrrio, permaneceusujeito a invases policiais at os anos de 1970 (Capone 2010: 199), exceo detemplos especficos da elite, com poderosos aliados polticos, que oram reor-mulados como locais legitimamente religiosos (Dantas 1988; Capone 2010).

    Por que essa dierena no risco civil percebido das duas religies de pos-sesso? O espiritismo, como seu primo anglo-americano espiritualismo, era al-tamente cientificista, se utilizando de metoras da eletricidade, do magnetismoe do telgrao (aves 1999: 172). Era praticado principalmente em sales silen-ciosos, e seus veculos humanos contavam mais requentemente com a ormacorprea do torpor imvel do que do movimento rtmico. Poderamos dizerque seus rituais pareciam comunicar progresso tecnolgico e a diminuio docorpo em vez de, como nas representaes que deram origem categoria depossesso de espritos, o irracional e rentico primitivo. Em seguida, assimcomo o metodismo comeou, em parte, de um anglicismo populista, o espiri-tualismo no contexto anglo-americano tinha sado, em parte, de igrejas crists(ainda que no ortodoxas) os unitrios, quakers e universalistas (ib.: 167).Fazia uma grande dierena uma dada religio de possesso ter comeadode uma posio de legitimidade de direitos polticos e da atribuio de aoracional versus, como no caso da religio aro-brasileira, de uma posio deilegitimidade e hostilidade oficial. Por fim, no Brasil, os transes do espiritismo,em sua esmagadora maioria, mediavam espritos iluminados do Ocidente, dobudismo, de indgenas nobres (ib.: 196). Aricanos raramente eram incorpora-dos (de modo bem distinto do espiritualismo dos Estados Unidos [Polk s.d.]).No Brasil, a mediao por certos espritas de espritos aricanos, nos anos 1920,no Rio de Janeiro, significou sua ragmentao numa nova religio chamadaumbanda, mantendo assim a pureza do panteo esprita. Essa dimenso racialda paisagem mnemnica e da geografia espiritual (Shaw 2002: 46) bvia,

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    mas digna de ser recordada. A imaginao do espiritismo brasileiro percorriao mundo na misso otimista por conhecimento destacvel, cincia espectral,deixando o mundo terreno e suado das religies aro-atlnticas para trs. Eleadotou sua prpria nomenclatura, os termos de transee mediunidade, e os apli-cou s encarnaes de uma tropa que vai de filsoos Iluministas a cientistasa pintores impressionistas ranceses, para ormar um roteiro evolucionista eocidentalista durvel (Aubree and Laplantine 1990). A possesso de espritospermaneceu bem abaixo (o prprio Kardec especificamente repudiou o termo[Hess 1991: 79]), para os antroplogos especialistas colherem.

    Durante o mesmo perodofin de sicle, a possesso de espritos comeou aocupar um lugar central nas narrativas dos undadores intelectuais das cinciassociais do sculo XX. A ideia do indivduo racional que havia sido to cuida-dosamente construda ao longo de vrios sculos oi abruptamente reescritacomo ela prpriauma colonizao. Nietzsche caricaturou a rejeio superficialde filsoos da importncia da ao inconsciente ao lhes imputar a rase Aque-le que possui possudo (2003: 78); Marx descreveu o homem como inusopelo esprito do Estado (Marx e Engels 1978: 3435); Durkheim escreveu sobreaquele que at mesmo se sente possudo por uma ora moral maior que ele,a saber, a sociedade (1995: 212); Freud usou a possesso por espritos comouma imagem da composio mltipla da personalidade pelo consciente e peloinconsciente, eus latentes e maniestos (1950: 11618); para William James, apossesso de espritos ornecia ora pragmtica contra os excessos da cincia(1920 [1902]: 19)28. As transormaes sociais da modernidade tardia oramrepetidamente apresentadas em termos de possesso de espritos, j que as or-mulaes de Nietzsche, Marx, Freud, Durkheim e muitos outros oram inor-madas por, e recorriam a, relatos etnogrficos de religies primitivas chegandoen massedo mundo colonial. Para nomear a selvageria da modernidade-tardiaela prpria, eles se utilizaram da linguagem da possesso de espritos comouma crtica do cidado racional e do indivduo senhor de si. Se anteriormentea possesso de espritos tinha servido como um marcador negativo de livrearbtrio, agora apontava para a vertigem experimentada pelo novo homem in-dustrial civilizado, porm alienado. A possesso de espritos ainda indexava

    28. O espectro da possesso no era s um veculo para construir o sujeito individual ra-cional em crculos letrados. Ele tambm oi organizado para exposies populares espetacularesde cincia, sobretudo por meio da trajetria que vai de espetculos de palco de demnios aventrloquos. Como Leigh Schmidt (1998) documenta, o momento-chave nessa mudana veiocom a publicao, em 1772, de Le Ventriloque, ou LEngastrimythe, de Joannes Baptista de LaChapelle, um texto que sistematicamente pretendeu desmascarar a histria de espritos alandoatravs de pessoas. Ele se tornou a ncora de entradas enciclopdicas como a Britnica (1797) eoi apressadamente traduzido para mltiplas lnguas. Se a onda de espetculos desacreditadoresque se seguiu na Europa e nos Estados Unidos do sculo XIX oi, antes de tudo, uma vitrine das

    relaes de gnero, com homens cientficos expondo mulheres enganadoras, Schmidt mostracomo o novo teatro de evidncia tambm interpolou rapidamente religies selvagens, dos xamsesquims aos perturbados encontros de reavivamento negros.

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    servilismo e escravizao, mas agora era escravizao pela sociedade. Como opapagaio brasileiro, esses pensadores inverteram a balana: o general racio-nal quem possudo, quem o autmato inumano ou boneco de ventrloquo.So os civilizados que so sem liberdade, todos possudos.

    A possesso de espritos tambm se infiltrou na escrita antropolgica dosculo XX de maneiras importantes. Antroplogos comearam a escrever so-bre si mesmos enquanto possudos, dando um passo adicional do diagnsticoda possesso pelos undadores da cincia social como um mal-estar genricoda modernidade tardia. Os primeiros relatos publicados do estudioso possudocom os quais eu sou amiliarizado vm das mos de Michel Leiris, em seusdirios de 1931-1933, publicados comoA rica antasma, e Zora Neale Hurs-ton, em seuMule and Men, de 1935. Suas motivaes eram bastante dierentes,j que s Hurston entendia sua experincia em relao questo da descen-dnciaaro-americana29. Para Leiris, pelo contrrio, a esperana era escaparde toda restrio histrica, obliterar qualquer noo de eu na extica rica,usando a possesso como um veculo surrealista para retornar perdida joieanimale (Albers 2008: 277). Sua viso era bastante sculo XVII, em certo sen-tido, com a exceo de que, dierentemente da repulsa moderna inicial e dastentativas de purificao, o desejo irresistvel de Leiris pelo joie animale olevou em direoquilo que ele via como ritos primitivos. A intertextualidadeque desde Hobbes havia vinculado possesso de espritos aos diagnsticos desociedade, poltica e do eu haviam chegado ao antroplogo, mas agora a valn-cia oi invertida: a possesso de espritos indexava no servilismo ou escravi-zao, mas ao contrrio, liberao da conveno, da represso, da produo, doindividualismo, das posses materiais. Ser ocupado por dentro suspenderia ajaula, pressionando pelo lado de ora.

    Depois de Leiris e Hurston, a tendncia de escrever o etngrao-possudose expandiu, e hoje, j se tornou banal, pelo menos na antropologia das reli-gies aro-atlnticas. Certamente os motivos mudaram desde Leiris. O movi-mento pode uncionar como uma subverso de noes positivistas de objeti-vidade, como uma expresso de criatividade epistmica, ou como uma oertade autenticidade etnogrfica bona fide. Ele pode ser uma descrio apropriadada crtica da autoidentidade que o bom trabalho exige. Ele expe a ideia doindivduo autnomo como uma raude flagrantemente de gnero; ns vemosa especificidade masculina e a completa contingncia do tropo na existnciano-autnoma de mulheres, ou de escravos, ou de ambos (Lukes 1985: 299). um modo de se colocar resistncia, ou ao menos alternativas ao individua-lismo possessivo do Ocidente (MacPherson 1962). Com esse movimento, osantroplogos tambm admitem que seus prprios papis cambiantes se devemao ato de que agir antropologicamente envolve a ocupao do corpo tanto

    29. Para citar Godrey Lienhardt, a prpria queda tem um valor proundamente religioso(1985: 154).

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    quanto em outras personificaes. Como Katherine Dunham coloca em IslandPossessed, Em vez de sentir o deus em posse de mim, o cientista calculadorassumiria o controle (1994 [1969]: 105).

    Ainda que nem todos os etngraos aam esse movimento retrico, quasetodos agora precisam pelo menos lidar com o prospecto de sua possesso, res-ponder a ele, se desculpar por sua alta, de algum modo dar contadele, enquan-to constroem sua posio autoral em relao ao trabalho dos espritos (Keller2002: 23; c. Capone 2010: 2729). Penso que isso para melhor, com a ressalvade que os etngraos no deveriam nunca conundir suas prprias possesses,ou sua proximidade questo, com a experincia de seus inormantes (Rich-man s.d.), um erro ingnuo e, inelizmente, requente. A relao dos etngraoscom os espritos serve como uma via de crtica para um conjunto particular dequestes o que um indivduo integrado, o que identidade, o que autoria,ou um eu racional, delimitado pelo menos o bastante para ser capaz de inter-pretar outras pessoas. Isso sugere como a possesso de espritos continua aser assombrada pelas questes inicialmente colocadas por Hobbes e Locke, e aproduo moderna inicial da categoria.

    V

    Por fim, o que dizer das visitaes da teoria na prpria prtica ritual? Seria as-sim to absurdo afirmar que as primeiras filosofias modernas de propriedade epessoalidade habitam no somente a terminologia, mas tambm as encenaesrituais da possesso de espritos? Vivem Hobbes e Locke de algum modo nosdeuses (orixs) do candombl quando esses deuses possuem seus devotos?Penso que sim, pelo menos nos casos das religies aro-atlnticas que comea-ram no contexto da escravido de plantation, ainda que isso de modo algumexclua outros significados da possesso. Como coloca o historiador Joo Reis,na iniciao ao candombl, os escravos tinham que aprender a ser escravospor uma segunda vez (2011)30. Uma nova iniciada de candombl cuja cabeaser governada por um deus da rica Ocidental vendida no fim, numaimitao de leiles de escravos; ela deve pagar pelo cho que ela ocupou du-rante o processo ritual, enquanto ela adquiriu um novo dono de sua cabea.Os tropos do corpo-enquanto-propriedade, expressos no ausentar da vontadee no valor econmico dessa evacuao, infletem o processo do incio ao fim.Ser possudo , em pelo menos um sentido, se tornar um escravo, ou emprega-

    30. Reis (2011) documenta um caso legal surgido na Bahia do sculo XIX, de um sacerdotede candombl nascido na rica chamado Candeal, que supostamente tentou vender o escravo

    que, apesar de pertencer a outra pessoa, estava no momento sob sua autoridade ritual. Aqui, arelao escravo-mestre oi contestada, mas no por qualquer aquisio simples de livre arbtrioou liberdade de movimento.

  • 7/25/2019 Uma Genealogia Atlantica Da Possessao de Espiritos

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    do tercerizado (Palmi 2002)31. No vodu, para tomar outro exemplo contem-porneo, a imagem do zumbi uma reprise do escravo, um corpo possudo eocupado ainda que simultaneamente vazio e sem agente, movimento menosvontade (McAlister 2002; Richman 2005). Como uma sacerdotisa de umbandano Rio de Janeiro o expressou, Eu no tenho livre escolha, eu no tenho. Euno possuo minha prpria vida: sou uma escrava (Hayes 2011)32. Se a prticareligiosa aro-brasileira apresentou, em certo sentido, resistncia escravido,pelo menos por colocar o oximoro do escravo que livrepara se envolver emrituais que orjavam fidelidades que suplantavam aquela do escravo com o sen-hor (Reis 2011), e nesse sentido construo de corpos livres (Harding 2000:158), essa era uma espcie complexa de autonomia recuperada. Uma autono-mia bastante kantiana, se assim se quiser: liberdade enquanto conormidade auma regra, ou humanizao pela prpria subordinao (Matory 2008: 367).Dizer isso no reduzir as prticas rituais chamadas possesso de espritos aum tipo de alsa conscincia ou also reconhecimento. Pelo contrrio, dizerque os poderes de possesso, pelo menos no contexto aro-atlntico, so libe-rados ao trabalharem na e por meio dahistria da escravido, por vezes cons-cientemente, por vezes no, em vez de por meio de sua eliso ou superao.

    O que deendi aqui que nossas prticas acadmicas deveriam tentar refle-tir aquelas dos atores rituais no sentido modesto de se trabalharpor meiodas