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Título original: Interpretatíon Theory: discourse and the surplus of meaning © 197.6 by Texas Christian Unversity Press Tradução de Artur Morão Capa Depósito legal n. o 18296/87 Direitos reservados para todos os países de língua portuguesa por Edições 70, Lda. EDIÇÕES 70, LDA. Av. Elias Garcia, 81, r/c - 1000 USBOA Telefs. 76 27 20 / 76 27 92 / 76 28 54 Fax: 761736 Telex: 64489 TEXTOS P DELEGAÇÃO NO NORTE: EDIÇÕES 70, LDA. - Rua da Rasa, 173 - 4400 VILA NOVA DE GAlA Telef. 370 19 12/3 NO BRASIL: EDIÇÕES 70, BRASIL LTOA. - Rua São Francisco Xavier, 224-A (Tijuca) ,CEP 20550 RIO DE JANEIRO RI Telef. 284 29 42 Telex 40385 AMU B Esta obra está protegida pela Lei. Não pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, _ incluindo fotocópia e xerocópia, sem prévia autorização do Editor. Qualquer transgressão à Lei dos Direitos de Autor será passível de procedimento judicial. . Paul Ric~ur TEORIA ,DA INTERPRETAÇÃO o DISCURSO E O EXCESSO DE SIGNIFICAÇÃO ~ed~6eS70 .,

TEORIA ,DA INTERPRETAÇÃO

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Page 1: TEORIA ,DA INTERPRETAÇÃO

Título original: Interpretatíon Theory: discourse and the surplus of meaning

© 197.6 by Texas Christian Unversity Press

Tradução de Artur Morão

Capa

Depósito legal n. o 18296/87

Direitos reservados para todos os países de língua portuguesapor Edições 70, Lda.

EDIÇÕES 70, LDA. Av. Elias Garcia, 81, r/c - 1000 USBOA

Telefs. 76 27 20 / 76 27 92 / 76 28 54Fax: 761736

Telex: 64489 TEXTOS P

DELEGAÇÃO NO NORTE:EDIÇÕES 70, LDA. - Rua da Rasa, 173 - 4400 VILA NOVA DE GAlA

Telef. 370 19 12/3

NO BRASIL:EDIÇÕES 70, BRASIL LTOA. - Rua São Francisco Xavier, 224-A (Tijuca)

,CEP 20550 RIO DE JANEIRO RI

Telef. 284 29 42Telex 40385 AMU B

Esta obra está protegida pela Lei. Não pode ser reproduzida,no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, _

incluindo fotocópia e xerocópia, sem prévia autorização do Editor.Qualquer transgressão à Lei dos Direitos de Autor será passível

de procedimento judicial. .

Paul Ric~ur

TEORIA,DA

INTERPRETAÇÃOo DISCURSO E O EXCESSO

DE SIGNIFICAÇÃO

~ed~6eS70

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INTRODUÇÃO

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Os quatro ensaios que constituem este volume baseiam--se em e ampliam as conferências que fiz na Texas ChristianUniversity de 27 a 30 de Novembro de 1973 como suas confe-rências centenárias. Podem ler-se ou como ensaios separados,ou também como aproximações graduais de uma soluçãopara um problema singular, o de compreender a linguagemao nível de produções como poemas, narrativas e ensaios,quer sejam literários ou filosóficos. Por outras palavras, oprograma central que está em jogo nos quatro ensaios é o dasobras; em particular, o da linguagem como obra.

Uma completa apreensão deste problema não se conse-g~e antes de chegar ao quarto ensaio, que se ocupa de duasatitudes aparentemente antagónicas que podemos assumir aolidar com a linguagem enquanto obra; quero dizer, o conflitoaparente entre a explicação e compreensão. Creio, porém,que tal conflito é apenas aparente e que pode vencer-se se forpossível mostrar que as duas atitudes se relacionam dialecti-camente entre si. Daí, pois que o horizonte das minhas liçõesseja constituído por essa dialéctica.

" Se se puder dizer que a dialéctica entre a explicação e acompreensão fornece a referência última das minhas observa-ções, o primeiro passo a tomar nesta direcção deve ser deci-sivo: devemos transpor o limiar para lá do qual a linguagemse apresenta como discurso. Por conseguinte, o tópico doprimeiro ensaio é o da linguagem como discurso mas, namedida em que só a linguagem escrita ostenta plenamente oscritérios do discurso, uma segunda concerne à amplitude dasmudanças que afectam o discurso quando já não é falado,mas escrito. Daí o título do meu segundo ensaio, "Fala eEscrita".

A teoria do texto que emerge desta discussão é apresen-tada mais à frent~ com a questão da plurivocidade, que per-tence não só às palavras (polissemia), ou mesmo a frases(ambiguidade), mas a obras inteiras de discurso como poe-

mas, narrativas e ensaios. O problema da plurivocidade, dis-cutido no terceiro ensaio, fornece a transição decisiva para oproblema da interpretação, redigido pela dialéctica da expli-cação e da compreensão, que, como indiquei, é o horizontede todo este conjunto de ensaios.

Desejo expressar a minha gratidão e o meu obrigado aoselementos da Texas Christian TTniversity pela oportunidadeque me ofereceram de dar as lições que formam a base destaobra e também pela sua graciosa hospitalidade, durantea minha estadia ali. Foi para mim muito aprazível poder con-tribuir para a celebração do seu centenário.

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mesma frase, isto é, o mesmo sentido, pode ou não referir-se,dependendo das circunstâncias ou da situação de um acto dediscurso (7). Nenhuma característica interna, independente douso de uma frase, constitui um critério f'1dedignoda denota-ção. Por conseguinte, a dialéctica de sentido e referência nãoé de todo irrelacionada com a dialéctica anterior de evento esignificação. Referir é o uso que a frase faz numa certa situa-ção e em conformidade com um certo uso. É, pois, o que olocutor faz quando aplica as suas palavras à realidade. Quealguém se refira a algo num certo tempo é um acontecimento,um evento linguístico. Mas este evento recebe a sua estruturado significado enquanto sentido. O locutor refere-se a algo nabase de ou mediante a estrutura ideal do sentido. O sentido é,por assim dizer, atravessado pela intenção de referência dolocutor. Deste modo, a dialéctica de evento e significaçãorecebe um novo desenvolvimento da dialéctica do sentido eda referência.

Mas a dialéctica de sentido e referência é tão originalque pode tomar-se como uma directriz independente. Só estadialéctica diz alguma coisa acerca da relação entre a lingua-gem e a condição ontológica do ser-no-mundo. A linguagemnão é um mundo próprio. Nem sequer é um mundo. Mas,porque estamos no mundo, porque somos afectados porsituações e porque nos orientamos mediante a compreençãoem tais situações, temos algo a dizer, temos a experiênciapara trazer à linguagem.

A noção de trazer a experiência é a condição ontológicada referência, uma condição ontológica reflectida dentro dalinguagem como um postulado que não tem justificação ima-nente; o postulado segundo o qual pressupomos a existênciade coisas singulares que identificamos. Pressupomos que algodeve existir para que algo se possa identificar. A postulaçãoda existência como base de identificação é o que Frege, emúltima análise, quis dizer quando afirmou que não nos satis.,.·fazemos apenas com o sentido, mas pressupomos uma refe-rência (8). E esta postulação é tão necessária que devemosacrescentar uma prescrição específica, se desejamos referir--nos a entidades ficcionais como as personalidades de umanovela ou de uma peça de teatro. Esta regra adicional de sus-pensão confirma que a função de identificação singular suscitade um modo originário uma questão legítima de existência.

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Mas este apontar intencional para o extralinguísticobasear-se-ia num mero postulado e permaneceria um saltodiscutível para além da linguagem se a exteriorização nãofosse a contrapartida de um movimento prévio e mais origi-nário, que começa na experiência do ser-no-mundo e avançadesde a s~a condição ontológica para a sua expressão na lin-guagem. E porque existe primeiramente algo a dizer, porquetemos uma experiência a trazer à linguagem que, inversa-mente, a linguagem não se dirige apenas para significadosideais, mas também se refere ao que é. .

Como disse, esta dialéctica é tão fundamental e tão ori-ginária que ela poderia dominar toda a teoria da linguagemenquanto discurso e fornecer-lhe mesmo uma reformulaçãoda dialéctica nuclear de evento e significação. Se a linguagemnão fosse fundamentalmente referencial, seria ou poderia elaser significativa? Como poderíamos saber que um signo estáem vez de alguma coisa, se não recebesse a sua direcção paraalgo em cujo lugar está em virtude do seu uso no discurso?Por fim, a semiótica aparece como uma mera abstracção dasemântica. E a definição semiótica do signo enquanto dife-rença interna entre o significante e o significado pressupõe asua definição semântica como referência à coisa, em cujolugar está. Assim, a definição mais concreta de semântica é ateoria que relaciona a constituição interna ou imanente dosentido à intenção exterior ou transcendente da referência.

A significação universal do problema da referência é tãoampla que mesmo o significado do locutor se tem de exprimirna linguagem da referência enquanto auto-referência do dis-curso, isto é, como a designação do seu locutor pela estruturado discurso. O discurso refere-se ao seu locutor ao mesmotempo que se refere ao mundo. Esta correlação não é fortuita,porque ultimamente é o locutor que, ao falar, se refere aomundo. O discurso na acção e no uso tem uma referênciaretrógrada ou anterretrógrada ao locutor e ao mundo.

Tal é o critério último da linguagem como discurso.

Algumas Implicações Hermenêuticas

É possível, mesmo no estádio inicial da nossa indagação,antecipar algumas implicações da análise precedente para anossa teoria da interpretação.

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TOSHIBA
Nota
Ler a partir daqui...
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Dizem sobretudo respeito ao uso e ao abuso do conceitode evento linguístico na tradição romântica da hermenêutica.A hermenêutica, tal como deriva de Schleiermacher e Dilthey,tendeu a identificar a interpretação com a categoria de "com-preensão" e a definir a compreensão como o reconhecimentoda intenção de um autor do ponto de vista dos endereçadosprimitivos, na situação original do discurso.

A prioridade concedida à intenção do autor e ao auditó-rio original tendia, por seu turno, a fazer do diálogo omodelo de toda a situação de compreensão, por conseguinte,a impor o enquadramento da intersubjectividade sobre ahermenêutica. Compreender um texto é, pois, apenas umcaso particular da situação dialógica em que alguém respondea mais alguém.

Esta concepção psicologizante da hermenêutica teve umagrande influência na teologia cristã. Alimentou as teologiasda Palavra-Evento, para as quais o acontecimento por exce-lência é um evento linguístico e este evento linguístico é oquerigma (kerygma), a pregação do Evangelho. O significadodo evento original dá testemunho de si mesmo no aconteci-mento presente pelo qual o aplicamos a nós mesmos numacto de fé.

Esforço-me aqui por impugnar os pressupostos destahermenêutica a partir de uma filosofia do discurso a fim delibertar a hermenêutica dos seus preconceitos psicologizantese existenciais. Mas o meu objectivo não é opor a esta herme-nêutica, baseada na categoria do envento linguístico, umahermenêutica que seria apenas o seu oposto, como seria umaanálise estrutural do conteúdo proposicional dos textos. Umatal hermenêutica sofreria da mesma unilateralidade não dia-lógica. Os pressupostos de uma hermenêutica psicologizante- como os da sua hermenêutica antagónica - provêm deum duplo mal-entendido que leva, por sua vez, a atribuir umatarefa errónea à interpretação, uma tarefa que se exprimebem no famoso slógan "compreender um autor melhor doque ele a si mesmo se compreendeu". Por conseguinte, o queestá em jogo nesta discussão é a definição correcta da tarefahermenêutica.

Não pretendo dizer que o presente ensaio baste por simesmo para eliminar todo o mal-entendido. Sem uma inves-tigação específica da escrita, uma teoria do discurso ainda

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não é uma teoria do texto. Mas, se conseguirmos mostrar queum texto escrito é uma forma de diScurso, discurso sob aforma de inscrição, então, as condições da possibilidade dodiscurso são também as do texto. Como mostrou a nossadiscussão destas condições, a noção de evento Iinguístico nãoestá cancelada, antes se encontra submetida a uma série depolaridades dialécticas condensadas no duplo título de eventoe significação e de sentido e referência. Tais polaridades dia-lécticaspermitem-nos antecipar que os conceitos de intençãoe diálogo não se devem excluir da hermenêutica, mas devemantes libertar-se da unilateralidade de um conceito não dialéc-tico de discurso.

Deste modo, o presente ensaio, é, se não o cerne de todaa série, pelo menos verdadeiramente o ensaio inicial, no sen-tido forte da palavra.

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des analíticas: descontinuidade, número finito e poder combi-natório. O triunfo do alfabeto fonético nas culturas ocidentaise a subordinação aparente da escrita à fala, que deriva dadependência das letras relativamente aos sons, não deve,porém, fazer-nos esquecer as outras possibilidades da inscri-ção, expressas pelos pictogramas, hieróglifos e, acima de

. tudo, pelos ideogramas, que representam uma inscrição directados significados do pensamento e que podem ler-se diferen-temente em idiomas diferentes. Estes outros tipos de inscriçãoexibem um carácter universal da escrita, igualmente presentena escrita fonética, mas que a dependência em relação aossons tenderia a dissimular: a estrutura espacial não só dosuporte, mas também das próprias marcas, da sua forma,posição, distância mútua, ordem e disposição linear. A trans-ferência do ouvir para o ler está fundamentalmente ligada àtransferência das propriedades temporais da voz para as pro-priedades espaciais das marcas inscritas. Esta espacializaçãogeral da linguagem é completa com o aparecimento daimprensa. A visualização da cultura começa com a privaçãodo poder da voz na proximidade da presença mútua. Os tex-tos impressos atingem o homem na solidão, longe das ceri-mónias que reúnem a comunidade. As relações abstractas, astelecomunicações no sentido próprio da palavra, conectam osmembros espalhados de um público invisível.

Tais são os instrumentos materiais da iconicidade daescrita e da transcrição da realidade mediante a inscriçãoexterna do discurso.

Inscrição e Distanciação Produtiva

Estamos agora preparados para um passo final. Levar--nos-á a descobrir no próprio processo da interpretação a jus-tificação última da exteriorização do discurso.

O problema da escrita torna-se um problema hermenêu-tico quando se refere ao seu pólo complementar, que é a lei-tura. Surge então uma nova dialéctica, a da distanciação eapropriação. Por apropriação entendo a contrapartida daautonomia semântica, que separou o texto do seu escritor.Apropriar-se é fazer "seu" o que é "alheio". Porque existeuma necessidade geral de fazer nosso o que nos é estranho,

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há um problema geral de distanciação. A distância não é,pois, simplesmente um facto, um dado, o efectivo hiato espa-cial e temporal entre nós e o aparecimento de tal e tal obra dearte ou de discurso. É um traço dialéctico, o princípio de umaluta entre a alteridade, que transforma toda a distância espa-cial e temporal em alienação cultural, e a ipseidade, pela qualtoda a compreensão visa a extensão da autocompreensão. Adistanciação não é um fenómeno quantitativo; é a contrapar-tida dinâmica da nossa necessidade, do nosso interesse eesforço em superar a alienação cultural. O escrever e o lertomam lugar nesta luta cultural. A leitura é o pharmacon, o"remédio" pelo qual a significação do texto é "resgatada" doestranhamento da distanciação e posta numa nova proximi-dade, proximidade que suprime e preserva a distância cultu-ral e inclui a alteridade na ipseidade.

. Esta problemática geral está profundamente radicada nahistória do pensamento e na nossa situação ontológica.

Falando historicamente, o problema que estou a elabo-rar é a reformulação de um problema a que o Iluminismo doséculo XVIII deu a sua primeira formulação moderna porcausa da filologia clássica: como tornar mais uma vez pre-sente a cultura da antiguidade, não obstante a intervenção dadistância cultural. O Romantismo alemão deu um giro dra-mático a este problema perguntando: como podemos nóstornar-nos contemporâneos dos génios passados? De ummodo mais geral, como deve alguém utilizar as expressões devida fixas pela escrita a fim de se transferir para uma vidapsíquica estranha? O problema surgiu de novo após o colapsoda pretensão hegeliana de superar o historicismo pela lógicado Espírito Absoluto. Se não existe nenhuma recapitulaçãodos legados culturais passados num todo omni-englobante,liberto da unilateralidade dos seus componentes parciais,então a historicidade da transmissão e da recepção de taislegados não se pode vencer. Por conseguinte, a dialéctica dadistanciação e apropriação é a última palavra na ausência deum conhecimento absoluto.

Esta dialéctica pode, pois, expressar-se como a da tradi-.çãoenquanto tal, entendida como a recepção de legados cul-turais historicamente transmitidos. Uma tradição não suscitaproblemas filosóficos enquanto nela vivemos e habitamos, naingenuidade da primeira certeza. A tradição só se torna pro-

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Ler a partir daqui...
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blemática quando a primeira ingenuidade se perde. Temos,então, de recuperar o seu significado através e para além daalienação. Doravante, a apropriação do passado prossegue aolongo de uma luta interminável com a distanciação, A inter-pretação, entendida filosoficamente, nada mais é do que umatentativa de tomar produtivas a alienação e a distanciação (6).

Confrontada com o pano de fundo da dialéctica da dis-tanciação e apropriação, a relação entre a escrita e a leituraacede ao seu sentido mais fundamental. Ao mesmo tempo, osprocessos dialécticos parciais, descritos separadamente nasecção primeira deste ensaio, no seguimento do modelo decomunicação proposto por Jakobson, fazem sentido comoum todo.

Será a tarefa de uma discussão aplicada aos conceitoscontroversos de explicação e compreensão apreender comoum todo os paradoxos do sentido autoral e da autonomiasemântica, do endereçado pessoal e do auditório universal, damensagem singular e dos códigos literários típicos, e da estru-,tura imanente e do mundo exibido pelo texto; discussão queempreenderei no meu quarto ensaio.

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3METÁFORA E SÍMBOLO

Este terceiro ensaio intercala-se entre as palavras finaisdo ensaio precedente e a discussão decisiva dos conceitos deexplicação e compreensão, que se proporá no seguinte porduas razões específicas, as quais dizem respeito à extensão docampo da teoria da interpretação.

A primeira razão concerne ao funcionamento da signifi-cação das obras da literatura enquanto opostas às obras cien-tíficas, cujas significações se devem tomar literalmente. Aquestão aqui é se o excesso de sentido, característico dasobras literárias, é uma parte da significação ou se deveentender-se como um factor externo, que é não cognitivo esimplesmente emocional. Considerarei a metáfora como apedra de toque do valor cognitivo das obras literárias nasobservações que se seguem. Se puderinos incorporar o excessode sentido das metáforas no domínio da semântica, consegui-remos então dar à teoria da significação verbal a sua maiorextensão possível.

Mas é a significação verbal toda a significação? Nãoexiste aí um excesso de sentido que vai além do signo linguís-tico? Nos dois primeiro escritos, especialmente na Simbólicado Mal e Da Interpretação (1), defini directamente a herme-nêutica mediante um objecto que parecia ser tão amplo e tãopreciso quanto possível, isto é, o símbolo. No tocante ao sím-bolo, defini-o em seguida mediante a sua estrutura semânticade duplo sentido. Hoje, estou menos certo de se poder abor-dar o problema assim tão directamente, sem primeiro se tertomado em consideração a linguística. Parece-me agora que,no interior do símbolo, há algo de não semântico e tambémalgo de semântico, e tentarei justificar esta afirmação no iní-cio da segunda parte do presente ensaio. Mas, supondo poragora que tenho razão, segue-se que uma melhor hipóteseseria abordar o símbolo em termos de uma estrutura deduplo sentido, que não é uma estrutura puramente semântica;como veremos, é o que acontece com a metáfora. Mas se a

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Nota
Esta parte não interessa...
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CONCLUSÃO

Para concluir o último ensaio e toda a série de ensaios,quero agora regressar ao problema levantado no final dasegunda conferência acerca da dialéctica de distanciação eapropriação. Semelhante dialéctica tem um harmónico exis-tencial. A distanciação significava, antes de mais, estranha-mento e a apropriação visava-se como o "remédio" que podia"resgatar" heranças culturais do passado da alienação da dis-tância. Esta permuta entre .distância e proximidade definia ahistoricidade da interpretação na ausência de qualquer conhe-cimento absoluto hegeliano. Mas, ao mesmo tempo, eu defen-di um conceito de distanciação produtiva, segundo o qual acondição da distância cultural se transformaria num instru-mento epistemológico. Mas, como pode a distância tomar-seprodutiva?

A dialéctica de explicação e compreensão pode forneceruma resposta, na medida em que contitui a dimensão episte-mológica da dialéctica existencial. Como base em tal dialéc-tica, a distância produtiva significa distanciação metodoló-gica.

Esta distanciação metodológica activa encontra umaexpressão apropriada na tendência geral da crítica literária eda crítica bíblica, a ponto de se entregar à reacção anti--historicista influenciada por Frege e Husserl- pelo menos oHusserl das Investigações Lógicas. O que se rotulou de "his-toricismo" é o pressuposto epistemológico de que o conteúdodas obras literárias e, em geral, dos documentos culturaisrecebe a inteligibilidade da sua conexão com as.bondlçõessociais da comunidade que o produziu ou a que se destinava.Explicar um texto significa, pois, primariamente considerá-locomo a expressão de certas necessidade socioculturais e comouma resposta a certas perplexidades bem localizadas noespaço e no tempo.

A réplica "logicista" semelhante a "historicismo" proveiode uma refutação racional do pressuposto epistemológicodo

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U2010-OQO CANOAS - ltS

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historicismo. Para Frege e Husserl, um "significado" (e elestinham em mente não o sentido de um texto, mas de umafrase) não é uma ideia que alguém tenha na sua mente, não éum conteúdo psíquico, mas um objecto ideal que pode seridentificado e reidentificado por diferentes indivíduos emtempos diferentes como um só e o mesmo. Por idealidadequeriam eles dizer que o sentido de uma proposição não énem U1pa realidade física nem psíquica. Nos termos de Frege,Sinnnão é Vorstellung, se chamarmos Vorstellung (ideia,representação) ao evento mental associado à actualização dosentido por um dado locutor numa dada situação. A identi-dade do sentido na série infinita das suas actualizações men-tais constitui a dimensão ideal da proposição.

De um modo semelhante, Husserl descreveu o conteúdode todos os actos intencionais como objectivos noemáticos,irredutíveis ao lado psíquico dos próprios actos. A noção deum Sinn ideal tirado de Frege foi assim estendido por Husserla todas as realizações psíquicas, não só aos actos lógicos, mastambém aos actos perceptivos, volitivos e emocionais. Parauma fenomenologia objectiva, todo o acto intencional semexcepção se deve descrever pelos seus lados noemáticos enquan-to correlato de um acto noético correspondente.

Esta inversão na teoria dos actos proposicionais temimplicações importantes para a hermenêutica, porquanto taldisciplina é entendida como a teoria da fixação das expres-sões vitais pela escrita. Após 1900, o próprio Dilthey fez osmaiores esforços por introduzir na sua teoria da significaçãoo tipo de idealidade que encontrara nas Investigações Lógicasde Husserl. Nas últimas obras de Dilthey, a conexão interna(Zusammenhang), que dá a um texto ou a uma obra de arteou a um documento a capacidade de ser compreendida poroutra pessoa e de ser fixada pela escrita é algo de semelhanteà idealidade que Frege e Husserl reconheceram como o sen-tido de uma proposição. Se esta comparação se mantém,então o acto do verstehen é menos geschichtlich e maislogisch do que o famoso artigo de 1900, Die Entstehung derHermeneutik, afirmara que era (13). Toda a teoria das Geiste-swissenschaften foi afectada por este importante deslocamento.

Em correspondência com esta inversão da historicidadeem logicidade na explicação geral das expressões culturais,podemos assinalar um movimento similar no campo da crí-

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tica literária, tanto na América como no continente europeu.Aos anteriores excessos de explicações psicológicas e socioló-gicasseguiu-se uma onda de "anti-historicismo". Para a novaatitude explicativa, um texto não é primordialmente umamensagem dirigida a um âmbito específico de leitores e, nestesentido, não é um segmento numa cadeia histórica; na medidaem que é um texto, constitui uma espécie de objecto atempo-ral que, por assim dizer, cortou os seus laços com todo odesenvolvimento histórico. a acesso à escrita implica a supe-ração do processo histórico, a transferência do discurso parauma esfera de idealidade que permite um alargamento indefi-nido da esfera da comunicação.

Devo confessar que tomo em consideração nos meuspróprios esforços esta tendência anti-historicista e que con-cordo com o seu pressuposto principal, em relação à objecti-vidade da significação em geral.

Primeiramente, está em consonância com os principaisconceitos do presente estudo: a autonomia semântica do dis-curso escrito e a existência autónoma da obra literária fun-dam-se, em última análise, na objectividade da significaçãodo próprio discurso oral. Em segundo lugar, o anti-historicis-mo é o pressuposto implícito dos procedimentos "explicati-vos" aplicados pela crítica literária e pela crítica bíblica, maisou menos sob a influência do estruturalismo. Confrontadocom o fundo da dialéctica entre a explicação e compreensão,o conceito existencial de distanciação recebe um desenvolvi-mento epistemológico. a texto - objectivado e desistorici-zado - torna-se a mediação necessária entre o escritor e oleitor.

a conceito existencial de apropriação não é menos enri-quecido pela dialéctica entre a explicação e a compreensão.De facto, nada deve perder da sua força existencial. "Apro-priar-se" do que antes era "estranho" permanece o objectivoúltimo de toda a hermenêutica. A interpretação no seu últimoestádio quer igualizar, tornar contemporâneo, assimilar, nosentido de tornar semelhante. Este objectivo consegue-se namedida em que a interpretação actualiza a significação dotexto para o leitçr presente.

A apropriação permanece o conceito para a actualizaçãodo sentido enquanto endereçado a alguém. Potencialmente,um texto dirige-se a quem quer que possa ler. Na realidade,

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é-me dirigido a mim, hic et nunc. A interpretação é levada acabo como apropriação, quando a leitura produz algo desemelhante a um evento, um evento do discurso, que é umevento no momento presente. Enquanto Jpropriação, a inter-pretação torna-se um acontecimento.

Mas o conceito de apropriação necessita de uma contra-partida critica, que só o conceito de compreensão pode tra-zer. Sem tal complemento epistemológico, a apropriação estáem perigo de ser erradamente concebida e isso pode acontecerde diversas maneiras.

Segundo o primeiro equívoco, a apropriação surge comoum retorno à exigência romântica de uma coincidência "con-genial" com o "génio" do autor. Um regresso à análise centraldo ensaio presente basta para nos impedir de aceitarmos estepreconceito hermenêutico. Efectivamente, o que é que numtexto se deve compreender - e, por conseguinte, apropriar?

Não é a intenção do autor, que se encontra suposta-mente oculta por detrás do texto; não é a situação históricacomum ao autor e aos seus leitores originais; não são asexpectações ou sentimentos desses leitores originais; nemsequer a autocompreensão que de si tinham como fenómenoshistóricos e culturais. Aquilo de que importa apropriar-se é osentido do próprio texto, concebido de um modo dinâmicocomo a direcção do pensamento aberta pelo texto. Por outraspalavras, aquilo de que importa apropriar-se nada mais é doque o poder de desvelar um mundo, que constitui a referênciado texto. Desta maneira, estamos o mais longe possível doideal romântico de coincidir com uma psique alheia. Se sepode dizer que coincidimos com alguma coisa não é com avida interior do outro ego, mas com o desvelamento de ummodo possível de olhar para as coisas, que é o genuíno poderreferencial do texto.

O laço entre o desvelamento e a apropriação é na minhaopinião, a pedra angular de uma hermenêutica que pretendasuperar as deficiências do historicismo e permanecer fiel àintenção origianal da hermenêutica de Schleiermacher.

Compreender um autor melhor do que ele a si próprio sepoderia entender é exibir o poder de desvelamento implicadono seu discurso para além do horizonte limitado da sua pró-pria situação existencial. O processo de distanciação, deatemporalização, a que associei a fase da Erklãrung, é o pres-

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suposto fundamental para o alargamento do horizonte dotexto.

Neste sentido, a apropriação nada tem a ver com qual-quer tipo de apelo de pessoa a pessoa. Aproxima-se antes doque Hans Georg Gadamer chama a fusão de horizontes(Horizontverschmelzung): o horizonte do mundo do leitorfunde-se com o horizonte do mundo do escritor. E a ideali-dade do texto é o vínculo mediador neste processo de fusãode horizontes.

De acordo com um segundo equívoco, a tarefa herme-nêutica deveria reger-se pela compreensão do endereçado ori-ginal do texto. Semelhante tarefa é, como convincentementedemonstrou Gadamer, concebida de um modo totalmenteerrado. As cartas de Paulo não são menos dirigidas a mim doque aos Romanos, aos Gálatas, aos Corintios e aos Efésios.Só o diálogo tem um "tu", cuja identificação precede o dis-curso. O sentido de um texto está aberto a quem quer quepossa ler. A omnitemporalidade da significação é o que aabre a leitores incógnitos. Por isso, a historicidade da leituraé a contrapartida desta omnitemporalidade específica; porqueo texto se subtraiu ao seu autor e à sua situação, subtraiu-seigualmente ao seu endereçado original. Por conseguinte, podepara si providenciar novos leitores. O alargamento do âmbito,de leitores é a consequência da transposição inicial do pri-meiro evento para a universalidade do sentido. Nesta acep-ção, a escrita é a mediação paradigmática entre dois eventos--palavra: um evento-palavra gera um novo evento-palavracom a condição de superar o evento na universalidade dosentido; só esta universalidade pode gerar novos eventos dediscurso.

Segundo um terceiro equívoco, a apropriação do sentidode um texto por um leitor efectivo colocaria a interpretaçãosob o império das capacidades finitas da compreensão desteleitor. Semelhante objecção fez-se muitas vezes contra todasas variedades de hermenêutica "existencial". Contrapôs-se aoconceito heidegeriano de Vorverst ãndnis e à reformulação do"círculo hermenêutico" de Bultmann. Se devemos "crer" para"compreender", então não há diferença alguma entre a pré--compreensão e a mera projecção dos nossos preconceitos.

A tradução de Aneignung por apropriação reforça estadesconfiança: não estamos a pôr o sentido do texto sob o

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poder do sujeito que o interpreta? Tal objecção pode elimi-nar-se se nos lembrarmos de que o que se faz "apropriaçãonossa" não é algo de mental, não é a intenção de outrosujeito, presumivelmente escondido por trás do texto, mas oprojecto de um mundo, a proposição de um modo do ser nomundo, que o texto desvela diante de si mesmo, mediante assuas referências não ostensivas. Em vez de afirmar que umsujeito ~ senhor do seu próprio modo de estar-no-mundoprojecta o - priori da sua autocompreensão no texto e ajulga descobrir no texto, digo que a interpretação é o pro-cesso pelo qual o desvelamento de novos modos de ser - ou,se preferirmos Wittgenstein a Heidegger, de novas formas devida - proporciona ao sujeito uma nova capacidade de a simesmo se conhecer. Se a referência do texto é o projecto deum mundo, então, não é o leitor que primeiramente a simesmo se projecta. O leitor é antes alargado na sua capaci-dade de autoprojecção, ao receber do próprio texto um novomodo de ser.

A apropriação deixa assim de surgir como uma espéciede posse, como um modo de agarrar as coisas; implica antesum momento de despojamento do ego egoista e narcisista.Este processo de despojamento é obra do tipo de universatili-dade e temporalidade realçada nos procedimentos explicati-vos. E, por seu turno, semelhante universalidade está ligadaao poder desvelante do texto como distinto de qualquer tipode referência ostensiva. Só a interpretação que obedece àinjunção do texto, que segue a "flexa" do sentido e que tentapensar em conformidade com ela, inicia uma nova autocom-preensão. Nesta autocompreensão, eu oporia o Si mesmo,que parte d~ compreensão do texto, ao ego, que pretendeprecedê-to. E o texto, com o seu poder universal de desvela-mento de um mundo, que fornece um Si mesIllo ao ego.

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NOTAS

ENSAIO 1

(1) Ferdinand de Saussure, Cours de Iinguistique générale (Paris: Payot,1971).

(2) V. Propp, Morphology of lhe Folktale (Bloornington, Indiana:Indiana University Press, 1958).

(3) Edmund Husserl, Logical Investigations, trad. J.N. Findlay (Londres:Routledge & Kegan Paul, 1970),2 vols.

(4) Este ponto ·foi relevado convincentemente por Paul Grice. Ver o .seu"Meaning", Philosophical Review, 66 (1957): 377-88; "Utterer's Mearung,Setence-Meaning,and World-Meaning", Foundations of Language, 4 (Agos-to 1968):225-45;"Utterer's Meaning and Intentions", .lfhi/osophical Review,78 (1969): 147-77.

(5) John Searle, Speech Acts: An Essay in the Philosophy of Language(Nov.alorque: Cambridge University Press, 1969).

(6) G. Frege, "On Sense and Reference", trad. Max Black, in Transla-tions from the Philosophical Writings of Gottlob Frege, Peter Geach eMax Black (eds.) (Oxford: Basil Blackwell, 1970),pp. 56-78.

(7) P. F. Strawson, "On Referring", Mind, 59 (1950); 320-44. yer tam-bém Bertrand Russell, "On Denoting", Mind, 14 (1905):479-93, reimpressoin Logic and Knowledge: Essays 1901-1950 (Londres: George Allen &Unwin, 1956),pp. 39-56.

(8) Frege, op. cit., p. 61; ver também p. 63.

ENSAIO 2

(1) Jacques Derrida, La voix et le phénoméne (Pa~s; Pres.sesUniversitai-res de France, 1967); L'écriture et Ia différence (Pans: Seuil, 1967); De ~agrammatologie (Paris: Les Editions de Minuit, 1967); "La .Mytholo~eblanche", Rhétorique et philosophie, Poétique, 5 (1955); reimpresso mMarges de Ia philosophie (Paris: Les Editions de Minuit, 1972), pp.247-324.

(2) In T. A. Sebeok (ed.), Style in Language (Cambridge: MassachusettsInstitute ofTechnology Press, 1960),pp. 350-377. .

(3) Martin Heidegger, Being and Time. trad. J ohn Macquarne &Edward Robinson (Nova lorque: Harper & Brothers, 1962).

(4) Fedro, 274e-277a. . . .(5) François Dagogaet, Ecriture et iconographie (~ar:s: Vnn, 1973).. .(6) Para uma discussão do conceito de distanciação na .hermen~utIca

contemporânea, ver o meu artigo, "The Hermeneutical Function of Distan-ciation", Philosophy Today, 17:2(Verão de 1973): 129-41.

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