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Textos em prosa publicados no blogue "Palavras..."
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PROSA Textos publicados no blogue “Palavras...”
SÉRGIO ARAÚJO
A noite, a estrada e o silêncio
A cidade, ao longe, flutua com suas pequeninas luzes. Presépio perdido e difuso dissolvendo-se na escuridão num jogo de esconde-esconde, colina após colina, com seus mistérios na frieza da noite alta.
Aqui, um cheiro forte de maçã. Além, os limites acesos da estrada sinuosa que em breve revelará, escondidas sob a neblina, as ruelas silenciosas que abrigam casas pequenas e sombrias, cheias de memórias.
Podia molhar os meus pés na relva úmida à beira da estrada e ficar ali a contemplar o céu aberto e brilhante imaginando histórias que nunca seriam escritas. Sentir apenas. Tatear o espaço, enxergar com a imaginação, degustar meus pensamentos como se fossem vozes varando o silêncio da minha solidão.
Por que não faço o que me pede o coração, posto que dorme a razão intransigente e nesse instante flutuo com a cidade ouvindo poesia na folha que agora cai sem rumo e perde-se para sempre no breu da curva.
Pé de vento
Tudo transcorria na mais absoluta simplicidade que a verdade encerra: Maria era casada com José, dois mais dois era quatro e o domingo era o dia do descanso. Havia uma paz celestial, azul como as cuecas do Papai Noel e serena como mãe d’água absorta a acariciar os cabelos sobre a pedra lisa na margem plácida do rio. Joaquim e sua amante; o tenente renitente e toda a gente supunham-se contentes em suas premissas verdadeiras. Não importava a ausência do seu filho mais valente, o José, que por caminhos impensáveis, andou riscando traços em terra e barro de longínquas plagas. Joana cabeleireira, migrante por inteira, voltou certo dia com mala, cuia e Sarita, filha das tardes livres no salão vazio, das vozes roucas e coisas poucas do amor de João. Menina aplicada, Isaura foi mandada, transferida, maculada. Da capital voltou fessora, cabo de vassoura, mais esperta que na ida. Para curar sua ferida fez palanque, voto e veto no caminho do poder e da fé. Para quem ficou sobrou assento, mas nenhum pé de vento. Tudo era lento, o cabra zangado, o fogo de Elvira, a febre do mato e pobre no relento. Tudo era igual como fora antes no mundo pequeno do desconsolo. E o rio manso, nas longínquas plagas de Joana que não tem o amor de João, que traiu José com Maria, que casou com Isaura por poder e toda a glória, corre agora colina abaixo entre pedras polidas, adentrando a mata, materno ventre.
O meu caderno de cinqüenta folhas
Uma velha mala de couro: livros, algumas fotos, uma lata de biscoitos com um daqueles rótulos vintage anos 30.
Ela, a mala, ficava guardada sob a cama dos meus avós e era sempre na ausência de ambos, que eu me aventurava a garimpar as relíquias que repousavam ali, há anos.
Tinha a latinha das quinquilharias do meu avô, a garrafinha de “Linimento de Sloan”, moedas antigas, parafusos, pregos tortos, um bilhete de Loteria Federal e as ferramentas do seu ofício de alfaiate.
Era muito interessante ver a destreza com que ele transformava um corte de tecido em um paletó; como, por linhas tortas, riscava com o seu giz azul e redondo o traço certo da costura e da elegância que vestia os coronéis e os doutores desde antes de ser meu avô.
O produto final era enrolado num papel pardo, atado com barbante de sisal e rotulado com um quadrado de papel pautado contendo o nome do freguês e o tipo de traje.
Ah, os livros. Tinha gibi de Tarzan, manuais de iniciação maçônica, Almanaque Fontoura e um exemplar do “Macaco Simão” que eu ganhei e coloquei ali, junto com o resto do tesouro.
Aquela casinha era a minha felicidade, meu exílio quando o tempo fechava lá pras bandas da minha casa, meu repouso e minha escola. Era uma casa de letras e palavras, de “estórias” antes de dormir.
Era uma casa de sonhos, de personagens fantásticos vindos do passado, com seus nomes estranhos: Belarmino, Camerino, Aristeu, Consuelo; e que brotavam carregados de significados nas conversas a meia voz que eu escutava atento, costurando os fragmentos e revivendo o que não vivi.
Ali, aprendi a criar histórias e a ouvir as palavras que eu pronunciava , metódico, para extrair imagens que se multiplicavam e voltavam a ser palavras no meu caderno de cinquenta folhas.
Claustrofobia
Não sei se me olhas, agora, sob esta abóbada uterina, claudicante e claustrofóbica. O certo é que te vejo letárgica, na imensidão do teu espaço ínfimo. Se não me atrevo a avançar sobre o teu tronco como um louco e sanguinário é porque não te atreves a me olhar nos olhos. Sequer moves as partes delgadas para jogar teu bote aéreo e certeiro, para depois sair em disparada tateando brechas para abrigar a tua casca repulsiva.
Das paredes desta cave, no lusco-fusco embrionário em que nos encontramos, brotam periféricas figuras em relevo, toscas, como tocos que são, a apontar seus dedos retorcidos, acusatórios.
Não há saída, como não há espaço para compartilhar em harmonia. Só pode haver um: o vencedor, posto que sejam inimigos naturais. Não há predação, contudo, tudo não passa de um processo de afirmação da posição que ocupamos no espaço.
Eu estou aqui e isso é mais do que eu posso suportar. Este não é o meu lugar, não posso compartilhar contigo as minhas fraquezas. É certo que não te importas, nem sabes o que sei; nem sabe quem és ou o que sou para ti. Todavia, cá estamos a nos perceber como presença indesejável.
Enquanto rastejas, inquieta, eu sou obrigado a curvar-me no máximo das possibilidades do meu corpo para evitar o contato. Sufoco e arregalo os olhos para antever teus objetivos, para mapear teus caminhos e, deliberadamente, fugir para dentro de mim, reduzindo espaços, encolhendo pensamentos, calando a voz.
Minha vingança é que não te deixo todo o espaço, tu ainda me tens e isto te incomoda, eu sei. Eu vi com que precaução elaborou teu plano de fuga, ou de ataque, quem sabe das táticas que formam a tua estratégia de eliminação.
Eu também tenho meus planos. Tenho método. Na insuficiência da memória elaboro, invento a partir do que tenho. Essa é a minha marca. Meu instinto me protege e minha cabeça me lança para frente como uma catapulta medieval. Eu sou vaso de guerra, flecha riscando o ar frio da manhã. É…
Festim antropofágico
Suspenso no fio tênue do seu sonho contingente, ele olhou em volta e
percebeu, com espanto, quão diferente era a realidade posta na mesa da
indiferente contagem dos dias.
Do alto, o olhar se expande e alcança surpreendentes formas que se insinuam
e contam histórias com tramas embebidas nas profundezas da agonia e da
dor. Neste caldo prenhe de solidão, apenas treva e vento inverso margeando
dunas esculpidas pelo som arredondado de um violino.
Como um acrobata ébrio no olho do furacão, conta riscos luminosos e sombras
obesas e vorazes que se avolumam ainda mais saciando sua fome num
banquete biológico, fagocitose pictórica e dominante.
Mesmo que todos os ventos soprem sobre sua cabeça metálica, vale a visão e
o conhecimento do fogo e da água, das pedras que andam, de todo o mais e de
todo o menos que os dedos podem alcançar nas cordas da guitarra.
E alguém grita:
Desce daí e vem ser fera,
Mas diligente
Como na última valsa
Que partilhamos na noite fria.
Desce para cantar
E contar
Em praça pública
Sob os olhares da turba
Que tudo é ilusão
É vento
Vulto
Vão.
Ouviu palavras ocas, cascudas, escorregadias, repulsivas como vômito. Não se
empenhou em procurar definições, ele espalhou sua embriaguez no festim,
assoberbado.
Liberto da fama e de todo o conteúdo singular, quer formar legiões trôpegas e
procissões nômades. Não mais o belo. O grotesco é o interregno das cores e
odores, das formas que nos fornos se formam em finos traços.
E na praça,
Sob as pedras da turba
Tudo é peso
Prisão,
Pó.
Limite
23:59
O cabo negro e estriado serpenteava pelo piso de madeira enroscando aqui e
ali nos móveis estragados pelo tempo e seguia mesa acima tão esticado que
perecia poder partir-se a qualquer momento.
Sobre a mesa jazia um copo de papel, vazio, desses de aniversário, com
motivos infantis: um palhaço com cabeleira colorida, serpentinas,confetes,
língua-de-sogra, tudo isso com muitas cores para fingir alegria e
comemoração. Adiante, refletindo a luz de uma lâmpada incandescente, como
uma serpente estreita e verde, escorria lentamente o líquido derramado do
copo em direção aos dedos finos e inertes de Teresa.
23:58
Um relógio despertador emoldurado por figuras de anjos barrocos cavalgava
uma mesinha de cabeceira com duas gavetas entreabertas. Mais adiante, em
diagonal, a sombra com gestos leves tingia a parede branca do quarto de
Teresa.
Como num sonho ruim, ela acordou sufocada pela secura do ar, os cabelos
molhados de suor que também escorria por todo o corpo e abriu os olhos a
tempo de ver-se através do espelho da penteadeira, flutuando como a
assistente do mágico no circo Eureka.
Na sonolência que ainda sentia, zonza e surpresa pela insólita situação, Teresa
não sabia se flutuava pelo quarto como um astronauta ou se o quarto era uma
espaçonave que lhe acolhia com gentileza e a fazia sentir-se bem na incerteza
dos fatos. O certo é que agora sobrevoava a mesa da sala que ainda guardava
os restos da festinha de aniversário do seu único filho.
23:57
No televisor ligado, Tom corria desesperadamente atrás de Jerry e derrapava
numa esquina como um carro no asfalto molhado.
23:56
Teresa imóvel na cama, não sabia da noite e o que lhe trazia, não sonhava, não
cabia no tempo estreito que agora tinha.
23:55
A porta abriu com um leve estalo. Agigantando-se pela sala vazia, a sombra
com chapéu atravessou o corredor esfregando-se ora numa parede, ora na
outra empurrada pelas luzes dos outros cômodos que se alternavam ao longo
do caminho. Parou em frente à porta do quarto onde Teresa dormia,
empurrou-a devagar jogando uma tira de luz sobre as suas pernas brancas.
Como ondas num lago
Gostava de falar das coisas que, por um triz, escaparam do seu olhar atento e de toda a vivência que poderia encantá-lo e transformar os acontecimentos em sólidas cosntruções na memória. Mas, de qualquer forma, ele viu todas essas coisas e tinha delas uma saudade sublime.
Ele precisava delas para se achar. Não se achava em lugar algum sem os detalhes. Eles não são determinantes, mas fazem a conexão necessária ao estar ali. Era como se tentasse ocupar uma vaga antiga, algo como uma mossa num espaço vazio e plano que apesar de não ter existência concreta, física, permanecia intacta, à espera de um acoplamento que fizesse jus à sua existência.
E quando os ares impregnados de amargura comprimiam as coisas dos dias, ele procurava abrigo nos detalhes que, como uma chave mestra, lhe permitia abrir os momentos passados e recontar para si mesmo, restaurando migalhas das experiências como se fosse dar vida nova a uma obra de arte quinhentista vilipendiada por ignorância e desleixo.
Era assim, reencontrando-se e perdendo-se nos extremos das coisas, que ele fazia a sua arte para apartar-se de si mesmo. Nesse processo, encontrava o seu lugar, sua propriedade imaterial. Coisas de sentimento; signos inflados pela imaginação e arrumados para significar ampliando-se como as ondas bidimensionais se propagam num lago sereno.
O oitão
Era um caminho para o céu. Não. Não era um caminho, mas um túnel do tempo, uma passagem secreta para outra dimensão. Podia ser tudo isso se não fosse um simples oitão; estreito como deve ser um oitão que se preze. Aquele vão comprido e apertado tinha a sedução das coisas proibidas. Eu sabia que não podia entrar ali, mas queria aquilo como desejava aquela bola branca da promoção da Bombril.
Aquelas bolas brancas com a logomarca vermelha do fabricate estavam nos sonhos da molecada. A TV convencia e a gente pedia aos pais para comprar. Menos eu. Meu pai tinha um armazém e eu passava as tardes a desmanchar pacotes, escondido. Juntei cinco vales-brindes. Um cupom azul que dava direito a uma bola, trocado nas lojas Mesbla. Foi assim que eu consegui jogar em todos os bábas que se formavam depois da escola.
O campinho ficava em frente ao oitão e, volta e meia, a bola rolava em sua direção, escorregava pela pequena vala que parecia um leito seco de rio a se estender oitão adentro. E era assim nos tempos de chuva, as águas escorriam entre as paredes para desaguar no quintal de dona Miúda.
A bola teimava em correr para aquele lado. Além do claustrofóbico vão, naquele lado do campo também ficava a casa de Zé Amarelo, conhecido rasgador de bolas.
Naquele dia, a bola rolou devagar até perder-se oitão adentro. E lá estava eu, espremido entre as suas paredes. Sufocado, sangrando, em desespero, imaginando ficar preso ali para sempre, vendo as paredes comprimindo o meu corpo, o céu baixando, o chão fugindo e o ar faltando.
Foi ai que a vi, Sônia morena, parada no fim daquele túnel, aquele insuportável, longo e escuro túnel em que o oitão tinha se transformado. Não era a bola, esquecida no sufoco da situação; era a coisa mais linda que até então eu tinha visto. Como um holofote, um raio de sol iluminava a sua face e os seus cabelos que caiam displicentes sobre os ombros.
Compenetrado, como um herói dos seriados vespertinos, lancei-me para fora como que saindo do ventre materno, um parto difícil e exagerado nos movimentos para conferir valentia e superação diante do olhar enternecido da donzela.
Com o coração aos pulos, alcancei a rua, depois o campinho e nunca mais a vi. Nem a minha Sônia, nem a bola da Bombril que foi devidamente rasgada pelo implacável Zé Amarelo, tio da donzela encantada e dono do oitão das minhas desventuras.
Releituras
Cá estou embriagado de verde e suspenso no azul celeste que invade todas as manhãs o meu quarto infestado de palavras. Muitas antigas, umas tantas rebeldes e outras fantásticas como uma ilha perdida ou uma cidade do sol.
Muitas histórias que não escrevi, mas gostaria de Tê-las escrito. A noite fria sob um barco velho na beira do rio, os corpos solidários, o belo nascendo do feio, o particular ampliando-se nas paixões comuns a todos e em todos os lugares.
Viajo solitárias léguas num caminho sem fim para esperar numa estação o meu trem expresso. Sem pão e tostão, vagando no universo das minhas fantasias onde cidades se erguem após as colinas e se estendem pelos campos com seus campanários e edifícios alvos refletindo a luz calma das manhãs.
Admirável é a aurora que se anuncia ainda na torpeza do dia, assim como escolho a leitura na minha estante pela antevisão que o conhecimento da obra me permite.
Eu reconheço as palavras que injetei nas veias e entranharam-se em mim, em cada célula, em cada átomo que agora, aos poucos, vão revelando os processos e eu posso lê-los.
Capistrano e o vento
Capistrano, filho de Eliodoro e neto de Capistrano. Esse era seu orgulho. Lá para as bandas do Oricó não havia riqueza maior que uma descendência contada e recontada pelas honras do trabalho honesto. Sua força vinha daí, do amor de Madalena e do filho Elinho.
Naquele sábado, voltando da feira, Capistrano levava os pedidos de Madalena; um doce pra Elinho e uma canseira danada. Andava para poupar Cipó que já suportava dois panacuns cheios das coisas que comprara com o dinheiro do seu comércio.
- Eia! Cipó. - num grito entrecortado por um assobio - vamo, vamo!
A estrada se alongava perdida entre os cacaueiros que a margeavam. O sol estava a pino e o jumento cipó, de vagar, marchava com os olhos fechados e a cabeça baixa.
Caminhava há duas horas e ainda faltava mais duas para chegar em casa. Era um pedaço de estrada de terra, um tanto de roça de cacau, outro de manga, o último trecho de mata e a velha casinha de taipa se mostrava em sua humildade barro e palha.
A estrada era varrida pelos ventos de agosto. O farfalhar constante era às vezes tão intenso que amedrontava. Dava a nítida impressão de que a floresta ia engolir a todos como uma bolha verde e revolta com sua boca enrugada e amarga como a casca do pau d'arco.
Capistrano ia cantarolando em pensamento as velhas canções da Vó Minervina e, vez por outra, interrompia a cantoria para relembrar os causos de pé-de-fogueira em noite de lua, com a família reunida no terreiro varrido de véspera; prato de aipim com carne e a caneca de café pilado com cravo e rapadura.
Nessa distração ia Capistrano e nem reparou quando à sua frente, um jenipapeiro fino e alto envergou profundamente sobre a estrada soltando folhas como fogos de artifício na noite de São João.
O vento roçou o corpo de Capistrano e o fez estremecer! Sentiu um frio repentino e agarrou-se à cangalha de Cipó que cambaleava com as orelhas em riste. O vento cresceu como uma muralha à sua frente e despejou os restos da mata com seus cheiros e suas migalhas sobre seu corpo lento e insignificante.
- Eia, Eia. - tentava fazer Cipó obedecer enquanto puxava-o fortemente pelo cabresto.
Cipó fincou as patas no chão de terra e não arredava. Agora eram as compras que começavam a cair quando Cipó empinava ligeiramente para se livrar da fustigação. Foram as panelas, as fazendas, açúcar, café a garrafa de Jacaré.
- Velei-me meu São Benedito! Sussurrou apavorado.
- Eia, Cipó! Vamo, vamo... - implorava como se sua vida dependesse disso.
Cipó empacou e Capistrano agarrou-se a ele como se fora sua única salvação. O vento ficou mais forte a ponto de derrubar uma árvore a poucos metros dos dois. O estrondo fez Cipó relinchar e pular sem sair do lugar e, pulando, derrubava o conteúdo dos panacuns que rolavam estrada a fora.
O horizonte tinha sumido numa polpa marrom e o que era estrada virou céu e o que era céu virou estrada, o vento soprava de baixo pra cima, Cipó com as orelhas no chão, bufava e Capistrano flutuava sobre a Cajazeira que rodopiava e se encontrava com a estrada, ou era o céu? A casa de palha, o fogo as lembranças de Madalena, Elinho na escola, minha velha Minervina, meu pai Eliodoro, São Benedito rogai por nós. Bola de sebo Capistrano na idade de Jesus não pode morrer sem criar Elinho, Cipó já vai alto, o perfume de Madalena, minha sandália, aquele toco...
Aos poucos, deu-se a calmaria! A estrada virou estrada, o céu azulou, Cipó perdido nas entranhas do horizonte e Capistrano dormindo. Descansava, a final, Sob as folhas que ainda caiam, lentamente, sobre sua cabeça recostada no velho toco do Jequitibá.
Atrás do Trio Elétrico
Desceu do ônibus no Campo da Pólvora, em pleno sábado de carnaval. O tênis
novo, bermuda estampada com bolso secreto pra guardar dinheiro e
documentos, camiseta regata e três doses de conhaque só pra turbinar a
entrada na avenida. O Trio Elétrico dava a volta no Sulacap enquanto
Reginaldo deslizava São Pedro abaixo. Ele e uma multidão de mortalhas
molhadas, rasgadas, amarradas nas cinturas, arrastadas no chão lambuzado
de urina, cerveja e restos de folia.
Reginaldo sonhava encontrar Soninha. Tinha marcado um lero com ela nas
imediações do Clube de Engenharia. Ali rolava uma galera legal: a turma da
esquerda, alguns roqueiros que não foram pro festival, pra praia ou ficaram
em casa ouvindo Black Sabbath; os intelectuais que não pulavam e passavam
todo o carnaval discutindo com a turma da esquerda; alguns populares
(aqueles das crônicas nas edições de domingo), universitários, bichos-grilos
turbinados e, é claro, muita mulher bonita (dos outros).
Aquele pedaço era o local mais quente do carnaval no início dos anos 80. Por
ali passavam quase todos os trios e trecos que alegravam a galera. Reginaldo
fazia a ponte: um pé na Praça e outro na barraca de Valdir para uma cerveja
gelada e uma parada pra cantar as meninas e "se armar" pra mais tarde.
Naquele dia tava tudo certo. Soninha ficou de lhe esperar na mureta do Clube,
em frente à barraca de Valdir e nada poderia dar errado.
Enquanto passava por São Bento, Reginaldo ouvia os acordes de Dodô e
Osmar na Carlos Gomes e pensava em Soninha lhe esperando na mureta:
latinha de cerveja numa mão, um cigarro na outra, os cabelos dourados na
réstia do sol que morria na ilha, vermelho.
O Sulacap imponente derramava gente por todos as janelas. Pro lado da Rua
Chile, as luzes acabavam de ser acesas e iluminavam restos de Gandhis, aqui e
ali, como contas brancas que escapuliram dos colares dos Orixás.
Reginaldo dobrou a esquina. A multidão enchia a rua estreita como sardinha
na lata. Empurra pra lá, empurra pra cá e Redginaldo entrou na onda. Não
mais andava, era levado numa alegre correnteza que vez por outra se
transformava num furacão onde tudo rodava, os pés quase não tocavam o
chão e as mãos só tinham lugar acima das cabeças que passavam em profusão.
Não eram apenas cabeças, eram braços, rostos suados, latinhas, cigarros
acesos, peitos, mãos nos peitos, loló, ladrão, capacete de polícia, pisão no pé,
dedo no olho, sovaco na cara e um milagre pra sair dali antes da chegada do
próximo Trio Elétrico.
Quase esmagado contra a porta de ferro de uma loja de passagens aéreas,
Reginaldo avistou Soninha em cima do muro do Clube de Engenharia. Não se
importava mais com os pés encharcados na poça de mijo nem com o odor que
exalava da mistura dos perfumes e cheiros da multidão que impregnavam seu
corpo molhado de suor. Lá estava ela, linda, de shortinho azul, top colorido e
uma flor no cabelo.
Soninha dançava. Não! Não era dança. Era uma coreografia, ela pairava como
Francesca de Rimini sobre a multidão que imitava os movimentos de um
cavalo mecânico em ritmo acelerado. Seus cabelos escorriam sobre os ombros,
os olhos fixos no alto do Trio, as mãos levantadas.
Reginaldo mergulhou na multidão como se estivesse no Porto da Barra.
Queimou os cabelos moldados com óleo de coco da morena dos Pernambués
com o seu cigarro, atropelou o maluco que cheirava loló e nem se importou,
tropeçou numa muquirana e, por um instante, pensou não poder transpor a
barreira das bundas rebolantes e dos socos dos malhados. Mas lá estava
Soninha e estava perto. Só mais alguns metros.
Reginaldo foi cuspido pela multidão contra uma pilastra do Cine Bahia.
Atordoado, caminhou apertado contra o muro a tempo de ver Soninha em
cima do Trio, sorriso amplo a caminho do Campo Grande.
Pra Reginaldo a decisão: lavar as mágoas com as cervejas de Valdir ou se
deixar convencer pelo refrão que balançava o chão da Praça na voz de
Caetano: "atrás do trio elétrico, só não vai quem já morreu".
O artista da solidão embriagante
Oh! Senhor das colheitas e das flores que brotam nos jardins do fim do mundo.
Eu sou Severino. O servo aleatório. O penitente na terra violada. O artista da solidão embriagante.
O pórtico está aberto e a jornada vai começar.
Por hora vos digo: do nada nada se cria, exceto a fantasia! E desta sou o criador e curador.
Silibrina da face orvalhada, como Lady Godiva, embriagada até o gargalo, dissonha o que antes era aconchego e canto quente, para soltar do ventre em chamas, o rebento seco como o lajedo da capoeira.
Meu coração é de barro, das barrancas do rio, das pisadas do gado leve em pele e osso, sim senhor.
Quando cantou, "Joana flor das alagoas", o canto da terra, o lampião acendeu em noite ligeira e relampiou nas telas de zinco.
Naquele instante, eu nasci! Bezerro novo na poeira dos dias, arauto das primeiras horas, que ainda nas mãos da véa Aniceta, num choro embargado, risquei o espaço com o olhar duro para as frestas da taipa.
Na rabeira das palavras, cantei num canto salitroso as desditas dos couros secos no rol das plagas e resmunguei meus versos pros ouvidos rotos.
Canto, meu senhor, porque velado é o tempo que assombra minhas certezas e me impõe rolar o verbo na brancura calva do papel.
Oh! Senhor das colheitas e das flores que brotam nos jardins do fim do mundo.
Eu sou Severino. Servo já não sou.
Meu penar me fez crescido e nas artes me fiz príncipe.
Codinome voluntário pra espalhar letras miúdas e outras tantas graúdas nas folhas que correm mundo a fora.
Followers
Acordou cansado da fadiga do dia anterior e as sandálias não estavam no lugar de sempre. Teve que andar descalço o que era um verdadeiro martírio, uma coisa intolerável para qualquer hora do dia, quanto mais pela manhã. Tinha deixado o Desktop ligado quando fora dormir, ou melhor, quando
cochilou durante leitura telegráfica dos e-mails e não se lembrava como
chegou à cama. Era fato que não podia mais se permitir tamanha
inconsequência. Afinal, podia ter continuado ali mesmo, na cadeira, à toa como
um bêbado, à mercê da intempérie e das emissões eletromagnéticas.
O importante é que isso tudo deixou, repentinamente, de ter importância
diante daquelas palavras em fonte "Arial" que manchavam de preto a parte
central do display.
Sentou-se vagarosamente sem tirar os olhos da tela. Minimizou-a em seguida,
como que tentando dispersar uma alucinação repentina ou um mal entendido
qualquer. Mas, sem êxito, retornou o olhar para aquelas palavras.
- O café está servido, amor, venha logo!
- Já vou! - disse, automaticamente, sem pensar em sair dali naquele momento.
Enquanto ganhava tempo por ter respondido ao apelo da esposa, vasculhou a
memória recente, listou mentalmente o estoque de palavras que pudessem
refletir o que estava vendo. Aquilo não era, necessariamente, uma surpresa
para ele. Já sabia de tudo.
Paralisado, pensava na repercussão do fato. Os descasos, os casos e acasos, as
mudanças e, quem sabe, uma surpreendente aceitação.
- Já vou, já vou... - repetiu enquanto se recompunha para o café da manhã de
domingo.
Sentou-se para comer meio perdido em projeções e pensamentos
contraditórios. Tomou o café como um autômato e vomitou na mesa.
Quando esticou o braço e deslizou a mão sobre a cama, sentiu que estava mais
fria do que de costume. Abriu os olhos, estava escuro.
Acordou cansado e as sandálias não estavam no lugar de sempre. Andou nas
pontas dos pés até a escrivaninha onde brilhava enevoado o display com
moldura preta e pequenas luzes verdes.
No centro de tela uma janela, um quadrado em flash, que exibia
silenciosamente um quarto escuro, uma mesa posta, um casal à mesa; a
fartura do breakfast e aquela frase que piscava em arial sublinhado: Follow
me.
Raso
O sol tostava a minha pele. Os meus olhos, impregnados de azul, com muito esforço reconheciam o marrom que manchava a aridez do chão. Acolá, testemunhas das agruras da terra, calangos assentiam solenemente sobre a rocha agressiva.
Também vi o tempo escondido na tez ressequida das crianças, enquanto ouvia o grito desafiador do carcará que pairava solene sobre a terra inóspita e agreste.
A sede ardia. Uma cadela manca, em pele e osso passou alheia à intromissão desajeitada dos tênis empoeirados. O Raso é tão profundo na amplidão da paisagem.
O espinho não fura o couro do gibão. A cavalgada é lenta entre galhos secos. A terra de Lampião, luz, fifó. Terra de repetição, jagunço, morte na curva da cova.
Seu Rufino, ainda menino viu as retiradas e viajou as léguas do Santo, cumpriu promessa, gesso e cera pro museu das lapas.
O sol ardia no azul e amarelava o chão de pó. Continuou assim até desfazer-se em silêncio dourando tudo, silêncio profundo cortado por grilos e pios.
A Praça
Jazia ali, cinematograficamente estendido sobre os paralelepípedos da rua. Ao
seu redor, uma pequena multidão de curiosos. Eram donas de casa sujas das
suas rotinas diárias e incansáveis na repreensão às traquinagens dos filhos, os
feirantes estabelecidos no marcado municipal e que, na correria, traziam
ainda nas mãos calosas, as mercadorias
que comercializavam no exato instante em que o fato acontecera.
Para lá acorreram também os populares, cidadãos sem rostos e de história
comum. Gesticulavam enquanto davam fim a um assunto banal antes de se
apresentarem ao local da tragédia.
O cego cantador levantou de sua esquina predileta, esbarrou no crente
Deusdeth que atirou para longe a Bíblia Sagrada como um pássaro preto
alçando voo no coqueiral.
Até o mascate abandonou às pressas a sua mala da cobra e pôs-se em marcha
paralela aos dois soldados rasos e um delegado que avançavam autoritários
rompendo a multidão.
O Dr. Sócrates, médico respeitado mais pelo seu caráter que pelos
conhecimentos da medicina, caminhava apressado segurando a velha valise
de couro preto puída e de alças redondas.
Nessa altura, garrafas de cachaça corriam de mão em mão sobre as cabeças na
praça.
Sobre a marquise da padaria acotovelando-se, um bando de edis tresloucados
pela quantidade de eleitores ali presentes, exortava o povo a ouvir um
improviso de oito páginas que já começava a se dissolver em palavras toscas
tecendo uma peça tragicômica que só a ignorância e a rudeza da vida
interiorana pode revelar.
Num instante, o círculo se fecha mais e mais, a multidão aproxima-se do corpo
inerte, o murmúrio aumenta. De repente o silêncio. As cores se desmancham
desaguando em sépia, a cena retida numa pequena superfície retangular
rotaciona para a direita flutuando sobre um fundo escuro.
Azul
Capítulo XXII
O anúncio fixado na porta de entrada da casa de V escrito em fonte Old English
informava, solenemente, a chegada do casal, em lua de mel há uma semana.
Pela porta semiaberta penetrava um réstia de luz do sol que imprimia, em
tons dourados, um triângulo retângulo no chão de madeira polida.
Sentada, bordando um pano qualquer para matar o tempo, V suspirava
enquanto pensava na recepção: flores do campo, cheiro de jasmin, música
alegre, bebida farta e borbulhante, salgados e doces, ah! muitos doces.
Iluminado, o jarro de porcelana verde refletia a luz do sol em raios frios e
animados projetando na parede uma infinidade de pequenas partículas
multicoloridas.
V não era bonita como a noiva. V tinha sonhos românticos como toda jovem de
sua idade. Mas V não era bonita como a noiva. Era inteligente! Na verdade, era
muito mais inteligente que sua irmã. Não fosse pelo "defeito", como
costumavam dizer referindo-se ao fato dela não poder andar, coisa de
nascença, V certamente seria a preferida do, agora, marido de sua irmã.
Em sua insignificância aparente, ela era extremamente produtiva. Além dos
cuidados da casa, ela escrevia. Amante nenhum nesse mundo teria escrito
cartas e poemas tão belos quanto os que V moldava com lágrimas, na matéria
indiferente do papel, em suas eternas noites de insônia.
V é tão jovem!
Mesmo que os verões esbanjassem claridade e velocidade às vidas daquela
casa, V era inverno! Não que deixasse a alguém perceber a sua tristeza, ela
simplesmente congelava em sua solidão enquanto ria e conversava sobre os
dias e as coisas. No seu exílio, criava. Escrevia sobre vales verdes e serenos,
sobre montanhas cujos picos alcançavam as nuvens e as águias faziam ecoar
seus gritos pelos ares, descrevia terras imaginárias, lagos tão extensos,
oceanos tão profundos, pessoas tão belas e boas quanto ela.
V é tão bela!
Bordando, ia criando. Criando uma festa de casamento, um amor delicado,
uma figura que escapava do seu pensamento toda vez que tentava vislumbrar
um rosto, uma mão, cabelos ao vento, sol no rosto, sorriso. Via sem detalhes,
como quem adivinha. Mas, mesmo assim, ela queria poder dizer que amava,
que sonhava e vivia.
Não importa se eram tantos os presentes que enchiam o seu quarto de uma
graça comprada aqui e ali, sem identidade, apenas coisas brilhantes, felpudas
e sonoras. V queria viver para além daquele quarto e sentir-se plena nas
coisas do mundo.
V é frágil!
Diluindo a triângulo e espalhando luz por todos os cantos da sala, entra o casal
em plenos sorrisos e conversas. Acorrem todos, o som se espalha como a água
sobre a toalha da mesa, reluzem os metais, gestos e frases, palavras e
respingos
Distante daquilo tudo, lenta e silenciosamente, a mão escorrega sobre o peito
e repousa suavemente sobre o pano. Fechados os olhos, V agora jaz, pequena
flor sobre uma rocha bruta.
Fecho o livro e vou dormir, sereno, como uma melodia de Bossa Nova.
Upload
Sentado em frente ao monitor com os olhos fixos no centro da tela esperando algo ou alguém, absorto. Só, em sua inutilidade semanal, não percebeu a vigilância fria e panótica da Webcam que penetrava em seu corpo como um raio-X e, sondando os seus mais remotos pensamentos, impingia-lhe uma alienada exposição.
- Alô! - rompendo o silêncio - uma voz aveludada, um sussurro de fêmea etérea.
Como quem desperta de um sono profundo, foi, aos poucos, se acostumando com o ambiente nebular do display até sentir o impacto das mãos com o teclado, abaixo.
Digitou alguma coisa, sem nexo, meio parecido com o vernacula utopiensium e virou-se em plano médio americano procurando a webcam que, agora, deslizava tranquilamente num ângulo de 180º.
- Alô - repetiu a voz etérea. - Alô senhor! Favor digitar seu user name e password enquanto confirmamos o contato visual. Lembramos: esta fase do processo é muito importante para preservar o link enquanto fazemos à transliteração dos dados. Aguarde, por favor.
Atordoado, ele tentava corresponder às exigências da máquina enquanto se maldizia por não ter lido os "Termos de Uso" e a "Política de Privacidade", agora era tarde, o dedo ágil digitara as últimas letras da senha resvalando num clic instintivo para enviar.
Enquanto aguardava novas instruções minimizou a janela do Player e pôs-se a observar atentamente o caos alfanumérico que enchia a tela e contornava um pequeno campo retangular, quase um banner oco, revelando o branco excessivo do cristal líquido.
- Agora, senhor, por favor digite uma frase qualquer para que possamos iniciar o download - carinhosamente pedia aquela voz serena que, de maneira alguma podia ser uma gravação dessas que existem aos montes nas telecomunicações.
- Mas que raios de frase eu devo escrever? - pensou! Estendeu os dedos sobre o teclado e permaneceu nessa posição até que, como um relâmpago, cortando os seus pensamentos desordenados, surgiu: " o que você quer de mim?" Então, com os dedos pesados de ansiedade, digitou.
Voltou os olhos para o monitor que parecia mais Gaussian Blur do que estava antes.
- Senhor? Agora permaneça imóvel para possibilitar uma melhor performance do scanner.
Pela primeira vez, enquanto permanecia congelado numa pose de 3x4, irritou-se com aquela situação. Afinal, o que queriam com ele? Não bastavam os updates daquela semana? Acaso não teria solucionado os problemas de instalação do novo pack? Não teria reportado aquele bug? Nada parecia estar "batendo".
- Senhor? The key, the end, the answer!
Foi então que entendeu tudo aquilo. Claro, só podia ser o sinal que esperava. Imediatamente iniciou o upload a partir das memórias mais remotas da sua vida que agora eram transmitidas através de um raio caleidoscópico para a ávida lente da webcam que se aproximava num zoom ótico
Vamos acordar
Tocou o chão com os pés descalços e retirou-os imediatamente, estava fria demais aquela manhã e ainda não era junho. Com muito esforço, sonolento, endireitou-se na cama e fixou os olhos no telhado baixo e escuro para ver se já havia amanhecido. Inclinou-se um pouco para frente e ligou o rádio de três faixas que ficava sobre uma mesa improvisada com cavaletes de construção.
- Vamos acordar! - dizia a vinheta do programa numa voz meio caipira, de quem diz porque diz, seguida por uma canção sertaneja das antigas, tipo Cascatinha e Inhana.
Cambaleou até o fogão de lenha, pegou o querosene numa prateleira, restos de palha de milho e varou o lusco-fusco com a chama do fósforo, num estalo.
Lá fora os primeiros sons da passarada anunciavam o dia. Um cheiro de fogueira acesa tomou conta do ambiente. Cheiro quente que logo se fundiria com o bafo de café barato e de pão dormido esquentado sobre a chapa de ferro.
- Vamos acordar! - repetia desafiando, o locutor.
Naquela manhã, despertara com a lembrança de um sonho ou talvez fosse uma impressão, um sobressalto capaz de deixá-lo pensativo e meio triste. Não era tristeza, mas nostalgia. Era uma lembrança sem se lembrar, um perfume que persistia e não se dissolvia na água que agora banhava o seu rosto.
- Eu sou tão jovem! - Que lembranças pesam em minha mente? Que portas deixei de abrir? - Pensou enquanto sentava-se para engolir o café com pão.
Talvez seja ela. De quem não vejo o rosto. Vejo apenas os longos cabelos, a atmosfera alegre e onírica, uma cumplicidade, ternura.
- Quero voltar ou seguir? O que procuro está no passado ou no futuro? - pensou enxugando uma lágrima.
O rádio agora transmitia as notícias do dia.
Enquanto se olhava no espelho, tentava afastar aqueles sentimentos. O sol tomou conta da pequena sala vazia. Lá fora as pessoas passavam, alguns meninos fardados iam para a escola e o pára-brisa do automóvel no lado oposto da rua refletia o sol em seus olhos a ponto de não ver mais nada.
- Acordei! - disse com voz de locutor de rádio e bateu a porta.
O velho professor
Destacava-se suspenso nos ares como uma janela para o passado. Liberto das
agruras do tempo em sua carne, o rosto impecável em óleo sobre tela, parecia
alegrar-se com o olhar mais atento do visitante curioso. A seus pés, uma
pesada mesa de jacarandá reluzente de óleo de peroba, suportava velhos
maços de papel, um porta lápis de metal prateado e uns poucos livros
encadernados à moda antiga, com letras douradas em papel escurecido.
Teve o seu tempo. Fertilizou-o com suas letras envergadas pelo peso dos
sentimentos e, acolá, esvoaçantes como um bando de serenatas ao luar.
Construiu versos bêbados, outros encantados e sonoros como o dedilhar das
cordas de um violão numa melodia vaga e veloz.
Ele sabia e repetia para quem o pudesse ouvir que o tempo é uma agulha
arteira e tece com eficácia o texto dos dias. O velho professor sorri de soslaio e
acena imperceptível para os olhos incautos dos visitantes. Naquela sala, o
antigo divã roça seus fios arrepiados pelo desgaste, no pé-direito que se ergue
solene em grossa camada de tinta azul entrecortada pelas estantes robustas
que transpiram leitura, conhecimento em forma de nuvens de palavras, que
ainda circulam alterosas pelo ambiente.
Teria sido em São Petersburgo, naquele passeio, do lado direito da Nevski,
olhando as belas vitrines numa tarde de verão? Ah! Sim. Com certeza! A
paixão foi fulminante e nada nem ninguém poderia tirar-lhe das mãos, aquele
livro. Daquele encantamento, brotaram versos e prosas que encheram páginas
e mais páginas do seu caderno de capa dura.
O velho professor que agora sustenta um sorriso matizado percorreu mundos
e destrancou portas; modernizou-se nos bulevares de Paris. Em seus intensos
devaneios, ele percorreu os meandros dos edifícios populosos de Praga para
desvendar os mistérios das Moiras.
Se pensas que o pote estava cheio a derramar palavras como a banheira de
Arquimedes, estás enganado, meu caro amigo. Aquele velho didata sabia que,
como as areias do Saara, o conhecimento não tem fim. Deleitava-se a recordar
blowup e aquela cena; não, não era uma cena de cinema, mas uma obra de
arte; uma hélice enclausurada no enquadramento em preto e branco; luz e
sombra.
Vez por outra, matava a sede revisitando séculos, passeando pelos jardins da
Academia e sentando-se à mesa com Sofia, a bela dama, sempre espantada
diante da simplicidade mas, carinhosa, em cujo colo suspirou olhando a noite
estrelada, sem respostas.
Estava tudo ali, para quem quisesse ver: as histórias, as memórias e, mais que
tudo, aquele metasorriso. É isso mesmo! Um metasorriso, um sorriso em si
mesmo, encharcado de orgulho intelectual que a modéstia resguardava ante a
imprecisão das opiniões alheias.
Desbravador implacável, exímio conhecedor dos caminhos nas estepes;
saltador de montanhas e explorador de florestas tropicais. Por onde quer que
andasse a imaginação dos poetas, lá estava ele, crítico mordaz, doce agnóstico
a comover-se diante da beleza.
Suspenso estará sempre, nos ares, como as nuvens a apreciar contente a gente
que ali aprende e que, como ele em sua infância, sonha um dia saber as
respostas escondidas nas coisas e admira aquela figura suspensa, retratada
em cores sóbrias. O velho professor, que não morre nunca, pois sobrevive não
apenas na memória dos aprendizes, mas nos sonhos que brotam dos poetas.
Blue and Green
A noite caiu pesada como chumbo sobre sua cabeça. No cais, à espera de Penélope, observava a dança das luzes da cidade refletidas na água. Pensava nas desilusões que a vida lhe trouxe e como aquela mulher havia penetrado fundo no seu coração. Como era serena aquela paixão, como se assemelhava a "Blue in Green" que outro dia tivera a felicidade de ouvir no Café Solano.
O cheiro da noite, o frio da madrugada e a espera. O último cigarro ainda queimava entre seus dedos e novamente aquela melodia.
Intrigava-lhe a maneira como ela entrou na sua vida. Um táxi em plena avenida frenética numa tarde de verão. Os prédios refletiam a intensa luz do sol e do lado oposto da rua: cabelos ao vento, sorriso pleno, decote generoso, mas comportado, quase sincero.
Não tomou o táxi, correu como um louco entre os carros para acompanhá-la. Numa disputa enlouquecida e unilateral com os transeuntes que caminhavam à sua frente, apostava com um depois do outro, pontos de chagada determinados pela proximidade com ela. Era uma maneira divertida de vencer terreno e se aproximar do alvo.
Podia vê-la chegando, podia sentir o seu perfume mesmo embaralhado nos diversos cheiros da rua naquela tarde. Enquanto se aproximava, cada vez mais rápido, pensava se devia falar-lhe, contar da sua paixão imediata, das loucuras que seria capaz de fazer para lhe agradar, das noites incontáveis de amor e vinho.
Penélope caminhava como quem avança para os braços do primeiro amor. Dir-se-ia que flutuava sobre sua felicidade. Não pisava as pedras portuguesas da calçada e ele estava ali, do seu lado, calado, olhando de vez em quando para merecer um sorriso que não se apagasse quando ela, por fim, se voltasse para ele.
O néon meio apagado e avermelhado do bar se avolumava através da chuva fina e Penélope não chegava. O som estridente da rotina policial podia ser ouvido misturando-se ao trompete de surdina que vagava sonolento na bruma do cais.
- Senhor M? - perguntou-lhe o homem de chapéu à sua frente.
Não respondeu. Atirou o cigarro na poça à sua frente e acenou indicando que o seguiria. Fez todo o trajeto em silêncio: o carro veloz deslizando no asfalto molhado, o prédio branco, a sala de espera, o corpo.
Um vulto vagou perdido, quase invisível diante das luzes das vitrines vazias até perder-se na escuridão. No bar da esquina que acabara de dobrar tocava Blue in Green, onde muitas Penélopes iluminavam o ambiente como notas musicais na noite fria.
A casa de Manuela Olhando do alto, ela ocupava um retângulo estreito entre duas casas maiores. Telhado de duas águas frente e fundo com muitos anos de sol e chuva, emaranhado de barandões, sacos plásticos e um kichute que só Deus sabe com foi parar ali. A rua se alongava numa reta após uma curva leve ,cujo côncavo pertencia à vista da janela muito baixa e estreita que, quando aberta, emoldurava uma parede azul e, no canto, à direita, a madeira torneada do braço do sofá. Daquela casa, quase que não se podia dizer-lhe a cor. Talvez um branco levemente azulado ou um azul claro esbranquiçado com manchas cor de rosa aqui e ali, em algumas partes via-se um verde aguado denunciando as diversa pinturas por que passara através dos anos. Chapéu–de-couro, margarida, onze horas, erva cidreira, boldo e outras tantas que se misturavam às ervas daninhas, papéis de balas e tocos de cigarros que formavam um conjunto colorido à entrada da casa, tudo isso margeando um caminho de cimento sobre a terra, rachado e enegrecido pelo tempo. Pelas frestas, via-se o interior humilde e limpo. Do conjunto de som de duas caixas grandes com tweeters, soava forte, Me and Bob Mcgee e, de vez em quando, os sucessos do momento, mas apenas no rádio. Na sala, um sofá coberto com uma colcha de chenile cor de abóbora, uma mesinha de madeira encostada à parede, num canto, coberta com uma toalha branca sob um vaso com flores artificiais. Na parede, um quadro com moldura ovalada de pintura barata retratando três crianças com trajes antigos. Um cheiro leve de parquetina inundava o ambiente. O ar era frio, mas não úmido, refrescado pelo vento constante que, numa corrente invisível, lambia sem pudor as paredes lisas, o chão de cimento vermelho e o telhado suspenso nos caibros de madeira fina. Manuela quase nunca estava lá. Trabalhava como professora primária num bairro distante e fazia bicos em outras atividades. Diziam que tinha uma vida obscura, para além dos muros da escola estadual. Sussurravam as fofoqueiras que Manuela era isso e aquilo. Diziam que tinha um filho, ninguém sabe onde nem com quem. O certo ou quase certo é que o menino era criado pela mãe que morava sozinha no subúrbio. Manuela gostava de música. Quando abria a casa e estendia os lençóis na janela, um festival dava início. As canções não tinham pátria, as línguas se misturavam como numa Babel sinfônica, quintessência do bom gosto: blues, rock, samba de Cartola, Adoniram e Batatinha; Chico Buarque, Rita Lee, Caetano, Pink Floyd , Yes, Led Zeppelin, B. B. King, Beatles, Piazola, Bessie Smith e Miles Davis.
Manuela não era bonita nem feia. Manuela era Manuela. Não gostava de ser vista nem ouvida. Dizem que era feliz à sua moda; que namorava um garoto de dezesseis para contrastar com os seus 37 e não dava bola pra ninguém. Manuela, sua casa e sua música. Assim foram-se os anos de Manuela e dos amigos de Manuela e dos gatos malhados rondando e roçando na porta para entrar. Certamente existe um tempo e um lugar fora dos tempos e dos lugares para onde vão as Manuelas, suas casas e suas músicas; para onde vão as as palavras iluminadas pela poesia da vida. Strawberry fields forever, Manuela!
Janelas
As janelas sempre me intrigaram. Há janelas para a escuridão, janelas para
uma luz intensa, janelas que permitem vislumbrar recortes do ambiente, como
num quebra-cabeças.
As janelas estreitas são como ranhuras na solidão do ambiente; as janelas
longas não mostram nada, são espelhos que resguardam o interior das
torpezas do dia.
Há ainda as quadradas; as quebradas; as consertadas de última hora; as
definitivamente sem conserto.
Mais intrigante ainda são as pessoas às janelas: uma velha solteirona e
magricela,um senhor de bigodes largos e poucas esperanças, uma lâmpada
amarela, lembranças, crianças.
As janelas das meretrizes,dos aprendizes… Há silêncios que dizem tudo.
Discussões acaloradas, brigas, intrigas, velórios.
Um pai angustiado, um marido traído, um filho que chora num canto qualquer;
um taco de pão, migalhas no chão, sangue e lágrimas.
A música não pára, taças, vultos coloridos, sorrisos, gritos agudos, um seio
suado, um beijo roubado.
As janelas são cicatrizes!
Noturno Uma pequena chama navegava tranquila sobre o óleo transparente da lamparina. A penteadeira, além da claridade, exibia orgulhosa um vidro de Diamente Negro, um pente de tartaruga, duas borboletas de porcelana azul e um velho almanaque do Biotônico Fontoura. Era um pequeno quarto, com cama colada à parede branca, um colchão de palha coberto com o lençol amarelado pelo uso, um urinol e as roupas de ontem penduradas num prego atrás da porta. - É no pé da máquina - dizia orgulhosa, referindo-se ao trabalho que sustentava o casal. Justiça seja feita, era a melhor modista da cidade. Mas, se o fato de costurar bem lhe trazia fama e freguesia boa paga, ela andava cansada, resmungando pelos cantos e nem sentia mais vontade de frequentar a casa de Dona Miúda nos domingos à tarde para um café com bolo e recordações. Sentia-se triste e solitária entre velhos e novos amigos. Até para ele, seu primeiro amor, não mais contava os causos da infância, as aventuras no pomar do avô e tudo o mais que fazia a alegria daquela vida tosca. Um dia, cansada de tudo, olhou para as estrelas naquela noite sem lua como se fosse pela primeira vez e soluçou, como numa ladainha, aqueles versos de criança que fizera há muito tempo numa noite como aquela. Sozinha, recitou bem baixinho até que, lentamente, fez-se em palavras pequeninas e frágeis como nuvens de letras que agora voavam ligeiras com suas asas leves de libélula em direção à Via Láctea.
A estrada A estrada era permanentemente coberta por um céu anterior. Logo que chegou por alí, avistou o vasto deserto com o seu clima ameno, levemente aquecido e acolhido por uma brisa alegre e perene. Não desejava caminhar, apenas queria sentir o ar acariciando sua pele enquanto divisava ao longe um arbusto verde em folha, em cujos galhos calados, suspirava a ave noturna. Não havia caminhos outros que acorressem às impávidas construções monolíticas que erguiam-se à sua frente, pois o tempo é efêmero e corre numa velocidade de mãos unidas, numa luz igual e envolvente, pactuando com a natureza onírica do lugar. Não! Definitivamente ele não era um ator confuso dizendo as falas soltas enquanto o pano caía e o espectador mais atento dormitava sobre um colo prateado. - Come este fruto seco em plena terra com cheiro de terra - disse-lhe o guia e continuou - seus planos foram desfeitos pois o rumo é infinito e a incerteza é o destino. - E aquele velho calendário? - Indagou. - O tempo é agora! Sentenciou - embora as luzes artificiais atenuem teu desencanto, esta estrada é deserta o suficiente para te prender em suas léguas sinuosas. Foi! Devagar caminhou entre veredas. Viu alhures as crianças no terreiro, os pregoeiros a soluçar maravilhas e as mulheres nos afazeres coletivos. Agora posso voltar - pensou. Mas viu-se novamente imóvel, perdido em pensamentos enquanto um cão rosnava, sonolento, ao seu redor. Virou-se, olhou em volta e sorriu.
Cartão Postal Aquele era um dos poucos museus da cidade que ainda não havia visitado. Portas abertas, casarão centenário, fachada neoclássica. Como tantos, perdido nos corredores estreitos da cidade católica, caótica e bizarra. Era uma noite como outra qualquer, exceto pela quantidade de curiosos, cantores, atores, poetas concretos e anexos. No meio de tudo, o poeta e sua musa: uma nota perdida da sinfonia de Wagner. E a ela, diz-lhe à moda de Goethe: "Vinde, doces ilusões que tanto amei na clara manhã da minha vida"! Um olhar irrompeu o frio néon e atingiu em cheio, por entre as mechas que teimavam em esconder seus olhos, o brilho sonoro de um sorriso fresco e simples. As luzes vermelhas das lanternas de freios corrompiam o cristal abarrotado de Frau milch. - O que você quer dizer quando diz que já fez de tudo e só lhe resta fazer de nada? - Zaúm! - Você me entende Fräulein? Venha me ver amanhã e te darei as vozes da Bahia. As vozes dos antigos poetas, dos prédios abandonados, das igrejas frias, das águas que escorrem pelas encostas e molham os meninos, descalços à beira mar. Do púlpito, o velho poliglota fala as suas palavras. O agro vitral desdenha do flash e sobre as cabeças da assistência, reluz de viés. Do outro lado da rua, a tua lua segue os transeuntes com agilidade e indica o itinerário: vai pela vitória... Mais tarde, era só reler aqueles poemas antigos que diziam de tudo e de nada e, como num encanto, a doçura voltava. Aquela era uma das poucas memórias da cidade que ainda não havia contado. Holzstatuette mit Goldüberzug. Der König Tutanchamun
O gesto
Parou em plena avenida. À primeira vista, apenas podia distinguir três lumes
que incidiam brancos. Mesmo que recortadas, essas pequenas e nervosas
formas, fundiam-se num corpo ao fundo que se dissolvia, branqueado,
branqueagudo sob um céu enegrecido em escuro contraste com a
luminosidade pueril: como uma corexplosão no abismo, uma imagem ritmada,
quase espasmocênica.
Pensou que podia voltar para casa e escrever sobre aquele gesto novo que
nenhum ser humano ainda havia experimentado e que em seu íntimo sabia
que existia. Precisava apenas explorar as dobradiças.
Sim! Todo corpo é único e preciso, mas diverso no “eu” que generaliza e
submete a determinados signos universais.
Ah! Um gesto cerebral!
Como pode ser? Pensou enquanto gesticulava ligeiramente. Codificar, Eis a
solução.
Todo esse gestual concreto pode libertar, - pensou.
Não! Não é possível fazer-se claro aos cidadãos agônicos que em vão
perambulam, reticentes em suas retículas ácidas, diagramadas, cada um
ocupando o seu espaço programado.
Tentou ouvir sua própria voz, mais uma vez, para saber se ainda podia falar.
Olhou em volta e prosseguiu vasculhando rostos, perfis, silhuetas, diodos e
dióxidos.
Disse? Não!
Lentamente, como quem é conduzido pela falta de luz, escorregou como um
relógio de Dali entre a multidão ácrata e continuou até dissolver-se
completamente num ponto.
Codificado, mensurável, agora estava livre para continuar imune aos apelos de
um sentimento humano. “Demasiadamente humano”.
Jacaré aparece na rede depois de 22 anos amarelando numa gaveta Causou espanto aquela banhista com um sumaríssimo dental-life, mastigando um doce(vida é mel), á procura do jacaré que cruzou a baía de todos os lixos e, tranquilamente, comeu o caruru da bela hóspede do Mediterranéé. De Mar Grande ao grande mar de Caixa-pregos, ele pregou fundo o prefixo, o sufixo e o interfixo das efeemes locais. A saber: Eu sou negão! E, boca de 09 pra valer, não recusa um convite sargaçado de uma gata com os pés arregaçados pela "larva migrans", para fazer tatoo surrealista ao sol do meio dia, enquanto você procura um otário pra tomar o resto da sua tubaína. Agora o sol derrete as bordas do asfalto e o mar avança sobre os banhistas com botas de acrílico fumé. Não. Não se espante se um jacaré usando óleo de gergelim se deitar ao seu lado em qualquer praia da ilha. Apenas retire os óculos escuros, relaxe e deixe-se embalar pelo mais recente sucesso da dupla Moisés e Messias e sua banda "Mentes em eclipse", enquanto o jacaré degusta a sua galinha assada com farofa.
O jogo "Temos vagas". Era apenas o que se podia ler por entre a neblina que se avolumava em volta da pequena lâmpada acesa sobre a placa suspensa à porta de um prédio velho e ainda em construção. Duas batidas na porta e uma mocinha magra de olhos escuros, vivos e longos cabelos pretos, deu passagem para uma sala sombria e iluminada à luz de duas lamparinas colocadas nas extremidades de um balcão de madeira, longo e corroído pelo tempo. - Quanto tempo o senhor vai ficar? - Apenas esta noite — respondeu o hóspede noturno. A moça conduziu o hóspede até o terraço, passando por uma escada sem corrimão. - Então não há leitos individuais? - perguntou o hóspede. - Não senhor! Como pode ver, este é o único quarto que existe e aqui estão todos os nossos hóspedes. Dezenas de corpos sonolentos, arrumados em fileiras ao longo das paredes, enfiados em sacos suspensos verticalmente por argolas presas a ganchos de metal. Um único e enorme cobertor suspenso acima das cabeças por fios de nylon, protegia-os contra as intempéries pois não havia teto algum, apenas a noite escura sobre suas cabeças. - Quem são essas pessoas? - indagou perplexo o novo hóspede. - O senhor não sabe? - respondeu a jovem calmamente. - São os jogadores do tempo. Chegam aqui aos montes e aqui permanecem até que o jogo recomece na manhã seguinte. - mas que jogo é este? – quis saber o novo hóspede. - Ora, ora... Não vá me dizer que o senhor veio aqui por acaso, eu tenho certeza que não. – afirmou a jovem, categórica. -Nesse instante, como se já tivesse estado ali por muitas vezes, o hóspede reconheceu o seu lugar junto aos demais, declarou suas marcas e viu-se suspenso, em seu saco de dormir, pronto para fazer daquela noite o ponto de partida para novas vitórias no jogo.
Canto I
Aquela terra era assim: rasgada pelo vento. Correnteza na solidão de palha e
barro das margens empoeiradas.
Do homem, do contador de histórias tristes; do homem cortado pela metade, o
andarilho de um só caminho de seixos afiados, em pele e osso; do mapa do
mundo desenhado nas curvas da picada; na lama e na fumaça pálida dos fins
de tarde.
Daqui e dali, numa e noutra voz o lamento das rezadeiras, porque a morte é
sina ou bônus de vida para os que ficam e não choram, apenas cantam
ladainhas.
De todos os que olham, apenas as crianças enxergam em cada olho que lhes
espantam, que lhes condenam, um sofrimento calado e uma dor que sara no
correr com as rodas na estrada estreita.
Para quem o dia é coisa que se pode contar, mais um tanto vem juntar-se a
todos os outros e seus filhos ainda dormem sobre folhas.
Suas mulheres apenas pertencem a alguém e não falam porque não ousam
falar, sorriem! E na timidez entreaberta das bocas murchas, mostram um
taquinho de beleza que não aceitam possuir, pois são as mulheres do rio, do
carvão e das ervas que crescem sob as sombras das saias em solo fértil.
Seus meninos e meninas, prole comum dos terreiros, das camas de um quarto
frio e escuro; até que seja dia e esperem sentados, num canto, que o desejo de
crescer lhes corrompa e lhes atire cegos, tortos ou dilacerados para os confins
de um mundo feito de pau, lata e garrafas vazias.
Assim apagam-se os dias e, com eles, vão os velhos para as sombras das
paredes sujas de memórias; vão para dentro e se recolhem nas lembranças
intercaladas na chama agonizante das lamparinas que lhes acendeu na
infância, incendiou na juventude e transformou em cinzas os sonhos loucos de
voar com os pássaros, que ainda cantam ao longe.
Galinheiro
Quando criança, ele estreou no "galinheiro" do Circo São Jorge.
Era uma daquelas peças, capaz de provocar lágrimas até nos cachorrinhos
amestrados.
Pantomimas à parte, a arte de representar afrouxou os corações e escancarou
as goelas para os festins encharcados de vinho amargo de ponta de balcão.
O palhaço nem sempre tinha razão na graça de esconder sob a espessa
maquiagem, um espírito de criança.
Lindalva, a moça das cordas e dos arcos, desfez casamentos, provocou duelos
ao amanhecer e fugiu com o anão para não ceder aos apelos eróticos do
apresentador espanhol.
A música abafada da velha clarineta inspirou farmacêuticos, padeiros e
aposentados; criou filarmônicas e construiu maestros que, rapidamente,
voltaram ao anonimato dois meses após a rumba fatídica que pôs fim à cíclica
lona verde.
Como era gostoso aquele lenço estampado a deslizar carinhosamente sobre o
ombro, vindo daquela mão doce, pequena, que convidava a bailar numa tenda
de ciganos ao som de singelos violinos e terminar perdidos, enamorados,
sobre um rochedo qualquer, à luz da lua, acariciando aquele corpo dengoso de
dançarina dos trópicos.
Fantástico seria viajar com a moça do trapézio; morar em sua barraca e, à
noite, furtivamente, olhar seu rosto de perto e enfim acreditar que aquela que
ali estava era a mesma musa aérea que com um simples gesto fazia sangrar as
unhas do domador.
Subir e descer ladeiras era muito fácil, ainda mais se acreditássemos poder
subir nos ombros do homem com as pernas de pau e, lá do alto, mijar na
cabeça do inimigo predileto.
Agora, a vida pôs-se a andar de muletas, põe seus óculos de ponta de nariz e se
dedica a contar histórias de quando estreou no "galinheiro" do Circo São
Jorge.
Aiabá
Aiabá é sempre um galho entre o Nilo e o Amazonas, subiu aos céus em seu
espelho caboclo-terra e forjou das ondas da FM-cordas, o cordel satírico do
Assaré. Um índio, filho de Funai-mata-mata, requer alforria e bate
tam,tam,tam na pedra Içu-cabeça de pau oco. Aiabá sorri no V.T. e arriba...
Lá das nuvens açoprateadas, ela nos conta a história de como sua mãe
sobreviveu à tribo do feiticeiro Edi-pô.
Arequenas, trombeteiros, galopam seus cavalos marinhos na correnteza
bosta-arquivelhas do rio das tripas.
Eis Aiabá, maravilhoso cidadão dos out-doors. Contam que Aiabá, ao nos
visitar, teria feito voar sobre o Abaeté, as cuecas molhadas do tio Sam. Abá
Kura-kura. Fogo nos cabelos verde wave e aqui jaz um piro-piro que em vida
cruzou o atlântico em busca da palha de aço dos Jesuítas.
Aiabá visitou o ano 1274 e rasgou a Suma Teológica em ato puro. Antes,
estivera com Heráclito e Éfeso lhe era cara e bela. Podia-se ainda passear, ir às
olimpíadas ou participar dos freqüentes concursos de charada promovidos
pelo Comitê Executivo do Templo de Ártemis e no ano 500 a.C., ganhou o
concurso em parceria com Heráclito. Eis a charada: “Concorda o que de si
difere: harmonia de movimentos contrários, como do arco e da lira”.
Saá-Ká-Tá – certa vez viu Ianomâmi sentado, meditando. Era meio-dia e
Ianomâmi, primogênito do Pau d`arco, crispando a água brilhante com as
garras de uma onça pintada, disse-lhe, citando Maiakovski:
- “Os jovens lutam contra esta canonização dos escritores-guias, que pisam
com o bronze pesado dos monumentos a garganta da palavra nova que liberta
a arte”.
Riscando a areia com um osso de preguiça, Aiabá respondeu:
- a palavra em movimento é minha borduna em riste e minha palavra e a
minha borduna são um.
- Pois bem – disse Ianomâmi – eu corri a minha mão sob a terra, pisei a lama e
moldei com cuspe este pote à minha frente.
Vê? Eu o atirarei ao rio e daqui há dez anos eu o reconhecerei. Ele sou eu!
Aiabá partiu e arrastou consigo a louca dança da poeira, veio ver o Robot-rato
do novo século e embora não houvesse tempo para entregar-se a brincadeiras
pueris,entortou três antenas, quando sobrevoou o cinza-morto da aldeia
próspera. Aiabá bateu em ré-tirada e agora que nos deixou, ainda vive na
matéria pretoquente das ruas, dos becos, sobrevivem ainda os seus átomos-
cor-silábica a repetir eternamente, onde quer que haja sol, o “Da” que escapou
dos lábios do poeta noite a dentro.
- Boa noite.
Responderam aliviadas, as pessoas que se acotovelavam na pequena janela do
sobrado. Era tarde e já não havia mais o que fazer na rua, a menos que se
queixe ser notado por quase todas as pessoas em suas janelas ou pelas velhas
barulhentas e pouco amáveis diante de um estranho que, de passagem,
ensaiou um cumprimento. Decididamente aquela era a polis cor de esmeralda
com seus raros aros de marfim.
Um grupo de meninos jogava sinuca com bolas de gude num tabuleiro
inclinado. Escureceu: dois guénos próximos ao muro pintado com flores do
jardim de Montezuma, entendiam a situação com seus pequenos olhos tardios.
Aiabá Pensou:
- Mas como pode um poema atravessar as cordas do tempo?
Neste instante, interveio uma de olhos negros como os raros cristais da
Salmônia e com seu corpo, sua flauta e seus cabelos, voou para pegar com os
dedos livres, cada resto de cor que jazia nas cordas. Eram duas a tirar as cores
das cordas, Nuas. A noite levou os aprendizes e seus martelos para além das
bigornas reluzentes, e se podia cantar.
Aiabá concordou e ouviu o poeta que dizia:
- eu sou limalha em plena vida. Desejo apenas a insensatez, não me é dado
participar de tua falsa segurança, nem quereria eu correr tal risco.
- Sim, és um louco! – disse-lhe Aiabá. Mas, Quem te julgará, Se os autos do teu
processo ainda não foram lavrados?
- Pobre diabo! Que a justiça te seja cega e desejará mil vezes ter sido
condenado.
E Aiabá visitou mais uma vez o cenário em que tudo começou. Ali, bem ali,
onde o sol penetra entre as colunas e incendeia as pedras do chão.
Sobre o mar, duas ou três nadas sopram as espumas das ondas.
O sol está bem alto, na praia ouve-se o vento e vê-se as pegadas que não levam
a lugar algum. Entardeceu: a noite explodia sobre sua cabeça como um balão
de gás e espirrava confetes maduros em sua roupa de domingo.
Naquele tempo ainda se podia andar pelas ruas sem despertar a cólera dos
homens da noite. Um guarda noturno vigiava as fortalezas decadentes e
apitava para merecer suas migalhas postas às portas: um pouco de vinho,
dinheiro e as nozes recusadas por alguma criança. Por algum tempo, deixou
seu pensamento voar em meio às impressões daquela noite. Revirar as pedras
e andar pelas ruas para celebrar a Katharsis enquanto as Bacantes erguem-se
dos bancos de pedra à beira dos igarapés, douradas e sonolentas a reclamar
cada uma à sua maneira, suas porções de paraíso, suas noites de sonhos.
Alguém declamava:
- Ah! Viajante maldito. Jamais poderão acorrentar-te a esta nau que conduz a
todos por caminhos conhecidos, tua carroça é a minha. Ei-la à deriva,
disparada pelos campos, cidades, vilas, rios que não te prendem em seus leitos
de argila. Solta estas rédeas, atira-as ao vento e grita para que te ouçam: eu
possuo o tempo bem aqui na minha mão. Ah! Vrêmia maldito, não te
conhecem nem conhecerão antes do tempo.
As lâmpadas dos velhos postes de madeira iluminavam aqui e ali, luz métrica e
volátil como os capinzais das orlas das estradas e lá está ele, quando ressoa
pelos quatro cantos:
Creia-me, tua imagem, eu a vi projetada ainda ontem, como uma sombra em
plástico transparente. Que tens a dizer?
Aiabá caminha agora, atreve-se a chutar uma lata vazia sobre as pedras da
calçada e fala baixinho:
- Que faço aqui?
É como se estivesse apoiado num parapeito estreito a olhar sobre a marquise.
Atrás, sob a mesa, estão os pés de ontem nos chinelos de amanhã. Continua a
sua caminhada que agora ganha ritmo com o bater dos pés em marcha. Ouve
alguém que passa com muita pressa e passa, passa, passa...
Certas vozes conhecidas, murmúrios que o tempo não dissipara, ondulavam
em sua mente. Restos de diálogos entrecortados por visões há muito
esquecidas, batiam como tambores, pulsavam até deixá-lo tonto.
Contam que poetas são loucos
Contam que poetas são loucos seres alados, vindos de um mundo fantástico
onde as flores brotam das pedras e o leito dos rios, do puro brilhante, refletem
as maravilhas que, estampadas na paisagem são o deleite diário desses seres
levados.
Desde antes das cordas e das dobras do tempo, desde que a luz se desfez em
pingos leves e coloriu o espírito do mundo, esses seres de outro planeta que
jamais morrem, continuam suas vidas habitando nos corpos luminosos e,
volta e meia, conversam com o mundo através da poesia. A poesia que o
mundo transpira e que só pode ser vista nas pequenas coisas, nas
intervivências.
Lá onde existe um oceano cheio de perigosos piratas malvados e heróis
vingadores, onde as naus errantes singram incertas vagas e tremem nas
calmarias. Saga de titãs a navegar no mar de silêncios.
Um corte no pé, ataque de sanguessugas e, de vez em quando, uma espiadela
nas meninas tomando banho enquanto suas mães lavam roupas batendo nas
pedras e cantarolando alguma modinha dos tempos de menina-moça.
Ultraman, super-heróis das figurinhas de chiclete, calça coringa e um dia todo
para brincar de Bang-Bang com direito a coldre e revolver com espoletas de
papel. Entender a língua do “P”, a língua falada em Alfa de Centauro ou em
algum planeta visitado por Flash Gordon. Com ela faço e desfaço. Escuto
segredos, construo cochichos, mando recados para o próximo passo.
Piso de barro é mais legal e, se chover, melhor ainda. Nada como uma bela
falta, daquelas que nos atira para o ar e nos faz deslizar pelo terreno molhado,
arranhado, sangrando e sinceramente convencido de que craque é craque!
Uma passadinha naquela calha do telhado da vizinha. Que maravilha! Ainda
muito frio, mas daqui a pouco passa. É só correr, abrir os braços e sair
chutando a água empossada aqui e ali.
Outra bica mais forte e logo aparecem os amigos para festejar. Depois, um
banho quente acompanhado de um falatório interminável e a promessa de
uma surra que nunca vem.
Em breve voaremos arrastados pela ventania dos domingos, em fins de tarde
e poderei dizer-lhe de tudo o que sei da existência do universo, da causa das
desgraças do mundo, dos medos e das injustiças; dos pensamentos ainda não
pensados e da possibilidade de sonhar sonhos impossíveis, realizá-los na
imaginação e escrevê-los para que outros possam sonhar os seus sonhos.
Sonhos de papel, de carne e osso, de sorrisos e lágrimas.
Não contei as estrelas naquela noite, porque os sapatos machucavam os meus
pés. A lua? Escorregou sobre mim com o nariz inchado e me proibiu de sair de
casa. Mas eu queria apertar as estrelas inchadas com os sapatos da lua.
Naquela noite, o universo desabou sobre mim em um milhão de microscópicas
partículas coloridas. Muitas cortaram a escuridão do meu corpo
nervosamente posto sobre os sapatos metálicos da noite.
Outro dia, eu estava a sonhar sonhos de claridades e as infinitudes, quando
três lumes incidiram brancos, recortados num corpo branco ao fundo,
Branqueado. Branqueagudo sobre o mar enegrecido. Escuro contraste,
corexplosão no abismo onde os pés passeiam rijos e calmos a percorrer
caminhos na areia, descalços.
Não enviei aquela carta que te escrevi. Carteiro algum percorreu a nossa
distância, mas você há de ter lido aquelas palavras distantes e tão próximas
que enroscavam em sua pele como o corpo de um felino.
Contei de mim e de como eu sou o texto base de um plano simples, tão simples
como a expansão de um astro milenolítico; que costumo destronar os Reis e
passa-lhes a navalha sem pedir licença ao barbeiro. Contei sobre felicidade e
como reparava quando tu dançavas sobre as pedras quentes com braços e
pernas de serpente.
Eram montes, roças, verde perene, a casa estava no alto de uma colina.
Decorei toda a geografia que havia no caminho, todas as serras e plantações
de banana. Ao fundo, o rio amarelado pelas águas da chuva parecia querer
cortar caminho subindo pelas margens altas.
Faz tempo que não te vejo. Há pouco era uma palavra: “Blanc”, uma metade do
que hoje sou e o sonho de que numa avenida ensolarada eu pudesse deitar-me
contigo sobre as flores da calçada.
Todo aquele vale era de um intenso verde metálico, com suas flores de
auroras esquecidas nas incomensuráveis janelas e portas pintadas com as
cores do amanhecer.
Ao longe, nas sombras do firmamento, pequenas nuvens furavam o céu como
facas de ponta, velhas e afiadas.
Por toda aquela terra, de portas entreabertas ouve-se, silábico, monótono, o
som das tépidas manhãs que se descortinam, clarisônicas!