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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA - SÃO PAULO DOUTORADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL O papel do Supremo Tribunal Federal na concretização do federalismo brasileiro JOSÉ ROBERTO ANSELMO SÃO PAULO 2006

O papel do Supremo Tribunal Federal na concretização … · JOSÉ ROBERTO ANSELMO O papel do Supremo Tribunal Federal na concretização do federalismo brasileiro Tese apresentada

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA - SÃO PAULO

DOUTORADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

O papel do Supremo Tribunal Federal na concretização do federalismo

brasileiro

JOSÉ ROBERTO ANSELMO

SÃO PAULO 2006

JOSÉ ROBERTO ANSELMO

O papel do Supremo Tribunal Federal na concretização do federalismo

brasileiro

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Direito, área de

concentração Direito Constitucional, sob a orientação do Professor Doutor Luiz Alberto

David Araujo.

SÃO PAULO 2006

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA

CURSO DE DOUTORADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

Tese intitulada “O papel do Supremo Tribunal

Federal na concretização do federalismo brasileiro”,

de autoria do doutorando José Roberto Anselmo,

aprovado pela Banca Examinadora, constituída pelos

seguintes professores:

Banca Examinadora: ________________________________ Prof. Dr. ________________________________ Prof. Dr........... ________________________________ Prof. Dr.......... ________________________________ Prof. Dr........... ________________________________ Prof. Dr..........

SÃO PAULO 2006

DEDICATÓRIA

A minha família: meu pai, senhor Ari, que Deus chamou para junto de si, e a minha mãe Maria, exemplos de honestidade e trabalho. Às minhas irmãs Margarete e Fátima; às minhas sobrinhas Tatiana, Michele e a Geovana, que com certeza, também, está no céu, e ao meu sobrinho Lucas; e, aos meus cunhados Jesus e Ari. À Ellen pelo amor, dedicação, carinho, compreensão e apoio.

AGRADECIMENTOS

Eu agradeço muito: A Deus, por tudo e por todos que passaram pelo meu caminho. Ao meu Mestre Dr. Luiz Alberto David Araujo, pelo apoio e oportunidade, que nunca me foram negados, e pela amizade cultiva, ao mesmo tempo, pelo respeito e temor reverencial que sinto. À Instituição Toledo de Ensino e a Pontifícia Universidade Católica, instituições sem as quais não seria possível a realização do meu trabalho. Aos meus amigos do escritório.

RESUMO

O presente trabalho é uma análise referente ao papel de desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal na manutenção do federalismo brasileiro. O estudo foi realizado tendo por base o federalismo e de todas as suas características, contudo o ponto principal é o que se refere à sobrevivência das ordens jurídicas federal e estaduais, por meio das decisões do Supremo Tribunal Federal.

A Constituição Federal de 1998 reservou ao Supremo Tribunal Federal a

atribuição de ser o seu guardião. Dentre os valores que nela foram inscritos, a forma federal é um dos mais importantes. Assim, freqüentemente, por meio dos instrumentos de controle de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal é chamado a exercitar seu papel.

Portanto, inicialmente, a forma federal é analisada sob ponto de vista

histórico e em todas as suas características, até chegarmos no estudo dos modelos utilizados pelo Brasil ao longo de sua história e na atual Constituição Federal de 1988.

A divisão de competências utilizada pela Constituição Federal, como uma

das características do federalismo, também foi objeto de estudo, a fim de que pudéssemos demonstrar a descentralização de competências.

Neste sentido, o ponto central do trabalho está em demonstrar que linha

divisória de competências estabelecida pela Constituição pode sofrer variações de acordo com a atividade jurisdicional do Supremo Tribunal Federal.

Finalmente, visando demonstrar como vem sendo a atuação do Supremo

Tribunal Federal e que ela pode determinar um elevado centralismo do Estado brasileiro, analisamos estudos de casos referentes às decisões deste órgão. Palavras-Chave: Supremo Tribunal Federal. Direito Constitucional. Federalismo. Estado Federal e Estado Unitário. Divisão de Competências. Centralização e Descentralização. Meio Ambiente. Interpretação.

ABSTRACT

The present work is an analysis refering to the role performed by Supreme Federal Court in the maintenance of the Brazilian Federalism. The study was done based on the Federalism and all its features, though the main point is the one that refers to the surviving of the Federal and State legal orderlines, through decisions of the Supreme Federal Court.

The Federal Constitution of 1998 reserved to the Supreme federal Court the

responsability of being its custodian.Among the values which were enrolled on it, the federal form is one of the most important. This way, generaly, through the constitutional control instruments , the Supreme Federal Court is called to exercise its role.

Therefore, at first, the federal form is analysed under the historic point of view and in all its features, till we reached the study of standarts used in Brazil, through its history and the current federal Constitution of 1998.

The sharing of competences used by the Federal Constitution, As a feature of the federalism, was also an object of study, in order to make us able to demonstrate the decentralization of competences.

In this sense, the central point of the work lays on demonstrating that the sharing line of competences stablished by the Constitution can suffer variations according to the jurisdictional activities of the Supreme Federal Court.

Eventually, aiming to demonstrate how the acting of the supreme Federal Court is has being done and that it can determine a high centralism of brazilian state, we analysed studies of cases refering to this organ's decisions. Key Words: Supreme Federal Court. Contitutional Law. Federalism. Federal State And. State single. Sharing Of Competences. Centralization And Decentralization. Enviroment. Interpretation

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 09

1. O ESTADO......................................................................................................................... 13

1.1 Origens do Estado ......................................................................................................

1.2 Elementos de Composição do Estado.........................................................................

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1.2.1 População ou povo............................................................................................... 20

1.2.2 Governo............................................................................................................... 23

1.2.2.1 – Poder e a Soberania........................................................................................ 39

1.2.3. Território.............................................................................................................. 47

2. FORMAS DE ESTADO.................................................................................................... 56

2.1. Estados Unitários...................................................................................................... 62

2.1.1. Características dos Estados Unitários..................................................................

2.1.2. Estados Unitários Simples...................................................................................

2.1.3. Estados Unitários Desconcentrados....................................................................

2.1.4. Estados Unitários Descentralizados....................................................................

2.1.5. Estados Regionais................................................................................................

2.1.6. Estado Autonômico.............................................................................................

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2.2. Estados Federais..................................................................................................... 69

2.2.1. Espécies de Federalismo.....................................................................................

2.2.2. Formas de Federalismo.......................................................................................

2.2.3. Formas Simétricas e Assimétricas deFederalismo.........................................................

2.2.4. Características do Estado Federal ......................................................................

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85

3. O FEDERALISMO BRASILEIRO................................................................................. 118

3.1. Características do Estado Federal Brasileiro............................................................. 123

3.1.1. Ordens governamentais distintas e sua coexistência...........................................

3.1.2. Repartição de competências................................................................................

124

126

3.1.2.1. Competências Materiais................................................................................. 128

3.1.2.2. Competências Legislativas............................................................................. 129

3.1.3. Repartição de Rendas.......................................................................................... 130

3.1.4. Rigidez Constitucional........................................................................................ 133

3.1.5. Pacto Federativo e indissolubilidade do vínculo................................................. 136

3.1.6. Intervenção Federal............................................................................................... 137

3.1.7. Poder Legislativo................................................................................................... 139

3.1.8. Poder Judiciário..................................................................................................... 140

3.1.9. Constituições Estaduais......................................................................................... 141

3.1.10. Vedações Federativas.......................................................................................... 141

4. O PODER JUDICIÁRIO E O FDERALISMO..............................................................

4.1. Controle de Constitucional........................................................................................

4.2. Poder Judiciário como interprete da Constituição ....................................................

4.3. Das Decisões do Supremo Tribunal Federal em sede de controle da forma Federal

4.3.1. A centralização das decisões do STF..................................................................

4.4. Estudo de caso específico: O meio ambiente e a centralização das decisões

do Supremo Tribunal Federal..........................................................................................

4.4.1. Conceito de Meio ambiente.................................................................................

4.4.2. Proteção Constitucional do Meio ambiente.........................................................

4.4.3. Conteúdo do art. 225 da Constituição Federal....................................................

4.4.4. Distribuição de Competência em matéria de meio ambiente..............................

4.4.4.1. Da competência material ambiental.............................................................

4.4.4.2. Da competência legislativa em matéria ambiental.......................................

4.4.5. Das decisões do Supremo Tribunal Federal em matéria ambiental....................

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203

5. CRITÉRIOS PARA MANUTENÇÃO DA LINHA DIVISÓRIA DE

COMPETÊNCIAS ...............................................................................................................

5.1 O princípio federativo ................................................................................................

5.2 Proteção da forma federativa em relação às alterações do poder constituinte

derivado e pelo processo de mutação........................................................................

5.2.l Mutabilidade da Constituição e a Preservação do Federalismo...........................

5.2.2 Mutação constitucional........................................................................................

5.3 Interpretação que mais favoreça a descentralização...................................................

CONCLUSÃO.......................................................................................................................

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235

BIBLIOGRAFIA................................................................................................................... 239

9

I - INTRODUÇÃO

O federalismo se constitui em verdadeira obra de engenharia estrutural

de um Estado, sendo definido por uma série de características, que são consideradas

verdadeiras vigas de sua sustentação. A existência dessas características serve para

indicar que o Estado adotou a forma federal. A mais importante característica da forma

federal é a coexistência, simultânea, de um ordenamento jurídico nacional, uniforme e

aplicável em todo território do Estado, e de um ordenamento jurídico de cada Estado-

membro da federação, que, por sua vez, é variável e aplicável apenas ao território

estadual. Os ordenamentos jurídicos nacional e estadual nascem a partir da divisão de

competências estabelecida constitucionalmente entre os membros da federação.

Entretanto, a simples divisão constitucional de competências, no momento da

construção do sistema, não é suficiente para garantir uma convivência pacífica entre

esses dois ordenamentos. Assim, houve a necessidade da criação de um controle capaz

de garantir a sobrevivência da estrutura federal. O objeto desse trabalho é a análise do

papel do Poder Judiciário na manutenção dessa moderna forma Estado.

No Brasil o trabalho de manutenção e equilíbrio da forma federal

adotada, assim como em outros países, é reservado ao Poder Judiciário. O Supremo

Tribunal Federal, guardião da Constituição Federal de 1988, é o responsável pela

definição da linha que separa as competências da União e as dos Estados-membros, o

que é realizado por meio de seus inúmeros julgados. Essa tarefa é tão importante para

manutenção do federalismo, que o deslocamento da linha divisória de competências,

por força das decisões do Supremo Tribunal Federal, pode significar a

descentralização ou a centralização do Estado brasileiro.

Nos Estados Unidos, as decisões da Suprema Corte foram

fundamentais para a implantação de uma nova forma de federalismo, o que demonstra

a importância do papel desempenhado pelo Poder Judiciário dentro dessa estrutura de

Estado.

10

Assim, visando apresentar um panorama geral da matéria a ser tratada,

inicialmente, analisaremos a origem do Estado e todos os seus elementos de

composição. Tal estudo se prende ao fato de que na organização do Estado, desde as

sociedades primitivas, encontramos diversos elementos que tiveram que ser adaptados

para a estruturação do Estado federal. O território no federalismo deixou de ser objeto

de disputas entre os diversos povos que compunham um Estado, já que os conflitos

territoriais passaram a ser resolvidos internamente. O povo teve que se adaptar para

respeitar, ao mesmo tempo, os ordenamentos jurídicos nacional e estaduais.

Finalmente, o governo deixou de ser centralizado, dividindo seus poderes com

governos locais.

Apresentaremos durante o nosso estudo, levando-se em consideração

uma escala que vai da centralização total à máxima descentralização, os tipos de

Estado Unitário (simples, desconcentrado, descentralizado, regionais e autonômicos) e

o Estado Federal.

Em seguida, analisaremos o início do Estado Federal, ocorrido após o

processo de independência das colônias britânicas na América do Norte, que decidiram

se unir para a formação de um único Estado, mas que mantiveram as conquistas de

independência de cada uma daquelas colônias que, a partir da unificação, se

transformaram em Estados-membros. Ante aos resultados obtidos pelos Estados

Unidos, a engenhosa engrenagem federal passou a ser utilizada por uma série de outros

Estados que passaram por processos de independência, o que demonstra a importância

do estudo histórico da formação do federalismo.

A forma federal conduz à coexistência de duas tendências conflitantes:

a unidade e a diversidade. Isso se explica pelo fato de que os Estados Federais buscam

manter a unidade do todo, preservando as diversidades locais. A adoção do

Federalismo, em muitos Estados, ao invés de fomentar a luta pela independência de

determinado território, acabou levando ao fortalecimento dos laços de unidade, na

11

medida em que aquela idéia perdia força frente à autonomia conquistada de forma

pacífica.

A análise do processo de formação do Estado Federal não poderia vir

desacompanhada do estudo de suas características; mesmo porque, o principal ponto

desse trabalho, como dito acima, se refere a uma delas. A relação de coordenação entre

governo nacional e os governos regionais nasce da atribuição constitucional de

competências para cada uma dessas esferas. As técnicas de distribuição de

competências evoluíram do federalismo dual para o federalismo contemporâneo e não

deixaremos de analisá-las.

Na seqüência do processo de formação do federalismo e de suas

características, estudaremos o federalismo brasileiro, que de início foi dual, mas que

evolui para o federalismo contemporâneo, a exemplo do que aconteceu nos Estados

Unidos. Durante processo histórico do federalismo nacional é possível, até mesmo,

observar que em determinados momentos a sua existência era apenas formalmente

presente na Constituição, mas sem qualquer aplicabilidade.

Atingindo o ponto principal do nosso estudo, chegaremos à análise do

federalismo frente às decisões do Supremo Tribunal Federal. O principal desafio do

trabalho é o de demonstrar como a atuação do Supremo Tribunal Federal pode

influenciar na existência do federalismo nacional. É que, com freqüência leis estaduais

são colocadas à prova perante o Poder Judiciário, que, por força de sua interpretação

constitucional, pode determinar que a matéria tratada se enquadra ou não na esfera de

competência da União. Nesse sentido, selecionamos e analisamos uma série de

julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle de

constitucionalidade.

Além disso, a fim de comprovarmos nossa tese, realizamos um estudo

específico sobre a divisão de competências referentes à matéria do meio ambiente na

Constituição Federal e o posicionamento do Supremo Tribunal Federal sempre que

12

houver a possibilidade de um aparente conflito de competências entre a União e os

Estados.

Finalmente, realizamos o estudo de eventuais critérios que podem ser

utilizados pelo Supremo Tribunal Federal para preservar a forma federal do Estado

brasileiro.

Por tudo isso, o tema em questão é de suma importância para

avaliarmos qual tipo de federalismo está sendo adotado pelo Brasil, sob o ponto de

vista das decisões do Supremo Tribunal Federal. Assim, será que o federalismo

descrito na Constituição Federal, realmente encontra correspondência nos julgados do

órgão que é o responsável pela sua manutenção?

13

1 - O ESTADO

A fim de conduzirmos a um bom entendimento do tema proposto

neste trabalho, que é o estudo do federalismo existente no Brasil e a sua manutenção

por meio das decisões do Supremo Tribunal Federal, devemos inicialmente analisar o

fenômeno do Estado e os seus elementos de formação. Este estudo proporcionará uma

visão geral do fenômeno: “Estado”.

O Estado tem conotação de unidade de poder, que se molda a partir da

existência de um ordenamento jurídico composto, basicamente, por normas de conduta

impostas a todos os indivíduos e normas de organização que também são impostas a

todos, mas que definem a estrutura do Estado – cabe observar, que uma mesma norma

pode conter regras de conduta e de organização. Assim, é possível distinguir entre

normas jurídicas organizadoras, com referência a preceitos e situações jurídicas

particulares, e normas organizadoras, com respeito à ordem jurídica como totalidade.

Essas últimas, são as que atribuem – métodos e condições – a certos indivíduos a

capacidade de determinar em última instância o que é Direito, as condições de sua

aplicação e execução.1

A função primordial do Estado é patrocinar a convivência pacífica

entre os indivíduos e grupos que o formam, buscando o bem comum de toda

coletividade. A consciência internacional dessa finalidade, determina que o bem

comum não deve servir apenas aos cidadãos de um determinado Estado, mas ao bem

comum de toda humanidade, ou seja, qualquer atitude ou medida de um Estado, não

pode servir apenas em proveito de seus habitantes. Seria, portanto, possível estabelecer

um paralelo entre o Estado e a sua função social interna e externa.

1 Manuel García-Pelayo. Derecho Constitucional Comparado. Espanha, Madri: Alianza Editorial, S.A., 1984,

pg. 19.

14

A regulação por meio de normas de conduta está diretamente ligada às

normas de organização do Estado, assim como essas estão ligadas àquelas, pois uma

não consegue efetividade sem a outra.

Segundo Manoel García-Pelayo, o Estado se manifesta como unidade

de poder, mas tal poder deve ser exercido por alguém e, para ser eficaz, estar

organizado segundo certas regras que devem estabelecer: (a) quem são os chamados a

exercer tal poder; (b) em conformidade com quais princípios orgânicos; (c) segundo

quais métodos; (d) com quais limitações. O conteúdo dessas regras forma o Direito

Constitucional do Estado.

O estudo do federalismo deve responder a essas regras, pois é a forma

pela qual o Estado organiza o seu poder internamente. Portanto, não há como estudar o

federalismo sem abordar as relações desse com o povo, com o governo e com a divisão

territorial, ou seja, com todos os elementos formadores do Estado.

No campo das relações individuais o federalismo pode ser

considerado como instrumento de patrocínio da igualdade, na medida em que preserva

o particularismo regional e aproxima o povo da política local.

O governo, órgão natural de proteção dos mais fracos, conservador da

paz e da justiça, no federalismo apresenta-se dividido em duas partes, com uma

relação coordenada de divisão de poder.

No campo do território, por mais paradoxal que possa parecer, a

adoção do federalismo serve para manter a unidade nacional por meio da divisão

territorial.

Portanto, antes de entramos no tema de nosso trabalho, analisaremos

as origens e os elementos de composição do Estado, o que nos proporcionará a

15

visualização da evolução dos modelos assumidos por essa organização social até o

aparecimento da sua forma federal.

1.1 – Origens do Estado

Segundo Giorgio Del Vecchio o uso da palavra “Estado”, no sentido

de sociedade politicamente organizada, é relativamente moderno, pois foi iniciado ao

tempo de Nicolau Maquiavel. Os gregos usavam os termos πολις, πολιτεια; os

romanos “res publica, civitas”. A frase “status rei publicae”, e outras similares (p.

exemplo, “status rei romanae”), já usadas na antiguidade, conduziram provavelmente

a adoção do termo “Estado”, no senso atual.2

O estudo das origens do Estado demonstra que esse foi o resultado da

somatória de uma série de fatores (fatores sociais, políticos, culturais, etc).

A origem do Estado como organização jurídica de um determinado

conglomerado de pessoas sob um território e que responde a um governo, passa pela

discussão dos motivos que levaram o homem a viver em sociedade.

As pesquisas sobre as origens dos Estado revestem-se de um caráter

interdisciplinar que envolve a História Geral, História Política, História do Direito,

Antropologia Cultural, Ciência Política, entre outras.3

O homem, sujeito da política, em dado momento de sua evolução,

passou a viver em sociedade. As sociedades pré-estaduais são, entre outras: a família

patriarcal, o clã e a tribo, a gens romana, a fratria grega, a gentilidade ibérica e o

2 Giorgio Del Vecchio. Studi Sullo Stato. Itália, Milano: Dott. A. Giufrè – Editore, 1958, pg. 03. 3 Jorge Miranda. Manual de Direito Constitucional. Portugal: Coimbra Editora Ltda., 1990, pg. 44.

16

senhorio feudal. O estudo dessas sociedades nos leva ao início da formação do Estado,

na medida em que essas sociedades ganharam complexidade de organização e atuação.

É possível estabelecer três hipóteses de causas originárias da

sociedade: (a) a sociedade surgiu exclusivamente da vontade humana, por um pacto ou

contrato; (b) a sociedade surgiu como última etapa de um processo de evolução do

espírito ou da matéria; (c) a sociedade surgiu espontaneamente da predisposição e da

necessidade da natureza humana.4

A terceira posição parece ser a mais aceita, tendo em vista a própria

natureza humana como elemento de aglutinação, sendo que a regulação da vida de

cada elemento da sociedade foi o fator predominante para manutenção e evolução

dessa sociedade.

Aristóteles, no século IV a. C., tendo como base a natureza humana,

concluiu que “o homem é naturalmente um animal político” (A Política, I. 9).

Posteriormente, no século I a. C., em Roma, sob influência desse pensamento, Cícero

afirmou que a causa de agregação dos homens foi muito mais em razão das suas

debilidades do que um certo instinto de sociabilidade em todos inatos. A espécie

humana não nasceu para o isolamento e para a vida errante, mas com uma disposição

que, mesmo na abundância de todos os bens, a leva a procurar o apoio comum.

Portanto, não seriam as necessidades materiais a principal causa para a vida em

sociedade, mas sim a natural disposição do homem em viver com os seus

semelhantes.5

Sob o aspecto da regulamentação da vida em sociedade, cabe lembrar,

que o indivíduo passou a ter certos atos limitados por regras criadas pela sociedade.

Nesse instante a vida em sociedade passou ter, também, uma conotação jurídica. A

4 Germam J. Bidart Campos. Teoria Del Estado. Los Temas de La ciência política. Ed. Ediar. pg. 35. 5 Dalmo de Abreu Dallari, pg. 8

17

sociedade, no fundo, constitui-se como estrutura de condutas orientadas por um

determinado sentido, por meio de uma ação juridicamente organizada.6

Jean-Jacques Rousseau7, lembra que a sociedade civil se organizou da

forma como a encontramos atualmente, quando o primeiro que, cercando um terreno,

lembrou-se de dizer: “Isto me pertence”, e encontrou criaturas suficientemente

simples para acreditar naquilo. A propriedade foi, por este ponto de vista, a grande

responsável pela organização da sociedade civil e, conseqüentemente, do próprio

Estado.

Dessa forma, a evolução da organização jurídica e política da

sociedade determinou o aparecimento do que mais tarde ficou conhecido como Estado.

Posteriormente, a formação de Estados pôde ser o resultado de meios derivados e não

por simples evolução social.

Neste sentido, o processo de formação do Estado pode ocorrer de

forma originária ou de forma derivada, por meios pacíficos ou violentos. A formação

originária está ligada à evolução de determinada sociedade que ao longo de sua

história passou por transformações políticas que lhe conferiram o nível de Estado,

como por exemplo, o Estado Romano e o Grego. A formação derivada é observada

nos processos de conquista, migração, grupamento de Estados, entre outros. Neste

caso, é possível verificar movimentos de união, anexação ou de cisão de Estados, por

exemplo, a unificação da Alemanha, a extinção da U.R.S.S. com formação de novos

Estados, a tentativa frustrada de anexação do Estado Kuwait pelo Iraque, entre outros.

Como se verifica, é possível a existência de Estados que na formação

inicial, com a união de antigos Estados soberanos, encontre no federalismo a

possibilidade de equilíbrio e manutenção da unidade. Essa situação, como veremos,

6 Reinhold Zippelius. Teoria Geral do Estado. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa, 1997, pg. 61 7 Jean- Jacques Rousseau. O contrato social e outros escritos – Discurso sobre a origem e o fundamento da

desigualdade entre os homens. São Paulo: Editora Cultrix, pg. 175.

18

ocorreu na formação dos Estados Unidos, logo após a independência das treze colônias

britânicas na América.

Características dos Estados

Segundo Jorge Miranda, é possível verificar a existência de certas

características comuns a diversos Estados, tais como: a complexidade de organização e

atuação, da institucionalização, da coercibilidade, da autonomia do poder político e

sedentariedade.8

A complexidade de organização e atuação está relacionada à

centralização ou descentralização do poder, organização das funções e serviços,

colocação do Estado em relação aos indivíduos, entre outras. A organização do Estado

Federal, nos lembra Raul Machado Horta, é tarefa de laboriosa engenharia

constitucional frente à existência de um duplo ordenamento jurídico.9

A institucionalização do poder do Estado significa a dissociação entre

a chefia, a autoridade política, o poder e a pessoa que tem o seu exercício. A

fundamentação do poder está no Direito que investe o titular e não nos atributos

pessoais. Assim, o poder permanece mesmo que haja a mudança de titulares. A

permanência no tempo é a expressão da permanência da comunidade política e sua

garantia.

A coercibilidade é uma característica da organização política do

Estado, onde esse assume o monopólio da força física, visando a realização da justiça.

Além disso, o Estado por meio dessa característica promove a segurança interna e a

externa. A força coativa das decisões do Estado é fundamental para a manutenção da

8 Jorge Miranda. Manual de Direito Constitucional. Tomo I. 4ª ed. Portugal, Coimbra: Coimbra Editora

Limitada, 1990, p. 47. 9 Raul Machado Horta. Direito Constitucional. 3ª Edição. Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 2002, pg. 306.

19

ordem interna. Nos Estados Federais, ante a existência de dois ou mais ordenamentos

jurídicos, a coercibilidade se verifica em todos os níveis.

A autonomia está relacionada à organização interna, onde cada órgão,

visando atingir os fins objetivados pelo Estado, encontra apenas limites legais na sua

atuação.

A sedentariedade, finalmente, indica a continuidade do Estado não só

no tempo como também no espaço, no sentido de ligação do poder e da comunidade a

um território e da necessária fixação nesse território.

Em suma, o Estado foi resultado da somatória de uma série de fatores,

tendo como ponto inicial a evolução da organização das sociedades pré-estatais. O

Estado é considerado pelo Direito um fenômeno histórico, sociológico e político.

Além destas características, a coletividade humana só pode ser

elevada à condição de Estado se dispuser de um território e de uma autoridade política,

ou seja, de um governo, cuja autoridade se imponha sobre aquela coletividade.

1.2.– Elementos de composição do Estado

Para o reconhecimento da existência de um Estado são necessários,

como já vimos, uma população ou povo, um governo e um território. Esses elementos,

contudo, não são suficientes, pois, para que haja o reconhecimento internacional da

existência do Estado, é necessário a existência do atributo da soberania.

Visando uma análise geral, antes de adentrarmos no estudo do

federalismo, no presente tópico serão analisados os elementos constitutivos do Estado

(povo, o território e governo), bem como a soberania.

20

Esse estudo prévio se justifica pelo fato de que em muitos Estados a

diversidade cultural, a língua, a religião, o território, a autonomia regional, entre

outros, foram elementos fundamentais para a união ou cisão de Estados, bem como

para a adoção da forma federal, ou seja, a identidade de alguns desses fatores foi

determinante para o aparecimento dos Estados federais, como foram os casos dos

Estados Unidos e da Alemanha.

1.2.1 Povo10

O federalismo, como veremos a frente, pode ser um mecanismo

interessante de redução das desigualdades existentes entre o povo, tendo em vista a

possibilidade de distribuição de rendas, cooperação e de determinação de políticas

regionais. Tal situação decorreu do fato de que o Estado deve ser o patrocinador da

ordem, diminuindo as desigualdades naturais e as divergências de interesses.11 Além

disso, para alguns Estados o federalismo foi a estrutura utilizada para aproximar povos

cuja diversidade de cultural, língua e costumes, não poderiam conviver sob o mesma

estrutura centralizada, pois isso levaria a sua ruptura.12

O Estado nasceu a partir do momento em que a interação dos

indivíduos que viviam sobre um determinado território, deixou de ser fortuita e passou

a ser organizada. A sua essência, portanto, está no povo que vive sob a sua égide, não

10 Cabe esclarecer, que a utilização dos termos população e povo para qualificar o elemento subjetivo do Estado

pode ser objeto de divergências, já que o termo população está ligado à densidade demográfica, sem qualquer

diferenciação entre cidadãos do Estado e aqueles que estão temporariamente sobre o seu território. O termo

população tem significação mais abrangente, pois nela se encontra um número de indivíduos que possuem

vínculos com o Estado, que lhes permitem gozar de direitos políticos e participar da vontade nacional,

constituindo, dessa forma, o povo. 11 J.J. Chevallier. El federalismo de Proudhon y de sus discípulos. El federalismo. G. Berger, J.J. Chevallier, CH.

Durand. Espanha, Madrid: Editorial Tecnos S.A., 1965, pg. 92. 12O Canadá é um dos paises mais multiculturais do mundo. Tendo sido colonizado por franceses e ingleses, cerca

de um terço da população do Canadá possui ascendência inglesa, escocesa ou irlandesa; e um quarto da

população possui algum grau de ascendência francesa. A forma de Estado adotada no Canadá é a federação.

21

existindo a possibilidade de constituição de um Estado sem uma coletividade humana.

Assim, seria correto admitir que um Estado não tem existência se sua população

emigrou ou desapareceu de seu território.13

Devemos considerar como povo o conjunto de pessoas que possuem

vínculo de nacionalidade com o Estado. Assim, aqueles que forem reconhecidos como

nacionais passam a integrar o povo de um Estado. Os Estados realizam esse

reconhecimento por meio de normas de reconhecimento do seu povo, passando a

atribuir direitos e obrigações aos indivíduos tidos como nacionais.

Hans Kelsen defende que não se pode encontrar outro critério para

responder porque um indivíduo, conjuntamente com outros, pertence a determinado

Estado, que não o fato de estarem esses submetidos a uma ordem estatal coercitiva

relativamente centralizada.

“A questão de saber se um indivíduo pertence a determinado Estado não é uma

questão psicológica mas uma questão jurídica. A unidade dos indivíduos que

formam a população de um Estado em nada mais pode ver-se do que no fato de

que uma e a mesma ordem jurídica vigora para estes indivíduos, de que a sua

conduta é regulada por uma e a mesma ordem jurídica. A população do Estado é o

domínio pessoal de vigência da ordem jurídica estadual”.14

Nesse mesmo sentido, Manoel Gonçalves Ferreira Filho ressalta a

ligação jurídica existente entre o indivíduo e o Estado:

13 A diáspora do povo judeu é um fenômeno histórico único. A fuga do Egito comandada por Moisés e que,

segundo a crença religiosa, teria recebido os 10 mandamentos de Deus no Monte Sinai, durou 40 anos. Nesse

período o povo judeu ficou peregrinando pelo deserto, até voltarem para Canaã (Palestina), a terra prometida.

Jerusalém é transformada num centro religioso pelo Rei Davi. Após o reinado de Salomão, filho de Davi, as

tribos se dividiram em dois reinos: Reino de Israel e Reino de Judá. A partir desse momento surge a crença

de que um messias, descendente de Davi, iria juntar o povo de Israel. Em 721, começa a diáspora judaica

com a invasão babilônica. O Imperador da Babilônia, após invadir Israel deporta grande parte da sua

população. No século I, os romanos invadem a Palestina, provocando a segunda diáspora. 14 Hans Kelsen. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pg. 319

22

“O nacional é o sujeito natural do Estado. O conjunto de nacionais é que constitui

o povo sem o qual não pode haver Estado, De acordo com o Direito Internacional

Público o nacional está preso ao Estado por um vínculo que o acompanha em suas

deslocações no espaço, inclusive no território de outros Estados”.15

Para Pontes de Miranda a “nacionalidade é o laço jurídico-político de

direito público interno, que faz da pessoa um dos elementos componentes da dimensão

pessoal do Estado”.16

O Estado pode, por meio de normas de reconhecimento, estabelecer os

requisitos para a concessão da nacionalidade primária ou originária e da

nacionalidade secundária ou adquirida. 17

A nacionalidade originária é aquela que o indivíduo adquire com o

nascimento, sendo estabelecida unilateralmente pelo Estado, fazendo com que aquele

adquira a qualidade de nacional independentemente de sua vontade. Os critérios

definidores da nacionalidade originária são: o jus solis e o jus sangüinis. O primeiro,

também denominado de critério da territorialidade, atribui nacionalidade àqueles que

nasceram no território do respectivo Estado. Para o segundo critério a nacionalidade é

atribuída em razão da ascendência, sempre que o nascimento ocorra fora do território

nacional.

Pontes de Miranda18 explica que a contemporaneidade entre o

nascimento e a aquisição não é essencial à nacionalidade originária, não estando o

Estado proibido de reconhecer como seus nacionais os que nasceram em outro

15 Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1994, pg. 94. 16 Pontes de Miranda. Comentários à Constituição de 1967. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais. 1967. pg. 352 17 Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo:

Editora Saraiva, pg. 215 18 Pontes de Miranda. Comentários à Constituição de 1967, cit., pg. 351

23

território, ainda que esse território somente posteriormente venha a lhe pertencer. Isso

seria possível, por exemplo, no momento da formação de uma Federação, quando os

habitantes do Estado que se uniu àquela passam, imediatamente, a serem considerados

como nacionais do Estado Federal.

A nacionalidade secundária é a que se adquire após o nascimento e

pode ocorrer ou porque pessoa ao nascer tinha outra nacionalidade ou porque o

indivíduo não tinha nacionalidade até a aquisição da nacionalidade secundária. A

nacionalidade secundária é o resultado de um processo de naturalização, onde devem

ser conjugadas a vontade do naturalizando e a aquiescência do Estado.

A naturalização pode ser considerada sob os seguintes aspectos:

naturalização voluntária; reintegração da nacionalidade que se perdera; a anexação

territorial, se o Estado anexante a conceitua como ex nunc, pois se for considerada

como ex tunc a nacionalidade será considerada como nacionalidade originária; por

força de casamento; adoção do menor apátrida; naturalizações compulsórias.19

O vínculo jurídico da pessoa com o Estado não é a única situação a ser

analisada, quando se trata de buscar a identificação de seu povo. Em muitos casos,

embora isso não seja requisito necessário, a identidade do povo está associada a traços

comuns entre as pessoas, tais como: costumes, língua, valores morais, religião, entre

outros. Essa ligação nos dá idéia de uma nação. Entretanto, cabe lembrar, que dentro

de um Estado podem existir diversas nações. Não sendo possível, portanto, confundir

nação e povo.20

A descentralização e a desconcentração foram as formas pelas quais

alguns Estados conseguiram manter a unidade, frente à existência de diversidades

19 Pontes de Miranda. Comentários à Constituição de 1967, cit., pg. 351 20 Del Vecchio leciona que os elementos constitutivos da nação são: a tradição histórica, cultura, língua e religião

. Contudo, o autor adverte, que nem todos esses elementos são essenciais, pois, por exemplo, uma religião

pode ser característica de diversas religiões, assim como em uma nação podem existir várias religiões.

Giorgio Del Vecchio. op. cit. pg. 10.

24

regionais. Neste sentido, a opção desses Estados foi a de conceder autonomia a

determinadas regiões, marcadas por traços muito particulares de cultura, costume,

língua, etc., a fim de impedir um eventual processo de independência.

Cabe observar, que a importância do povo para existência de um

Estado é fundamental. O povo, nos regimes democráticos, é considerado como o

detentor da soberania.

A utilização do conceito de povo como titular da soberania

democrática, nos tempos modernos aparece com os americanos. Antes mesmo da

declaração de independência, que principiava dando as razões pelas quais “um povo

vê-se na necessidade de romper os laços políticos que o ligaram a outro”, Thomas

Jefferson atribuía ao povo um papel proeminente na constitucionalização do país.

Assim, ao redigir o projeto de Constituição para Virgínia, no primeiro semestre de

1776, propôs que essa lei suprema, após declarar caduca a realeza britânica, fosse

promulgada “pela autoridade do povo” (Be it therefore enacted by the authority of the

people that)21

O povo tem papel fundamental no processo de formação dos Estados,

pois é dele que emana o poder de ditar os objetivos a serem atingidos por aquele.

Na análise do federalismo americano, fica evidente o papel

desempenhado pelo povo americano que optou por uma forma de Estado diferenciada,

que patrocinasse a autonomia conquistada pelos Estados Americanos.

21 Prefácio Fábio Konder Comparato a obra de FRIEDRICH MÜLLER. Quem é o povo. A questão fundamental

da Democracia. São Paulo: Ed. Max Limonad, 2003. pg. 15

25

1.2.2. Governo

O princípio do governo, da autoridade, teve nascimento com a vida

em família. Era uma idéia natural para a sociedade, assim como era natural a

subordinação entre pais e filhos. Todos os povos criaram essa concepção de poder.

O governo era visto como órgão natural de justiça, protetor dos mais

fracos, conservador da paz. Os pensadores mais audazes, quando se referiam ao

governo como mal se apreçavam em dizer que: “era um mal necessário”. Ao lado de

outras instituições sagradas, a religião e a propriedade, o governo também se

degradou. Contudo, o mal não estava presente nas instituições mas no abuso do poder.

Assim, a cada revolução, os povos imaginavam acabar para sempre com os vícios de

seus governos, expulsar os tiranos e encontrar protetores. Passada essa fase, caiam na

via costumeira, reconstituíam-se as tiranias e a autoridade.22

Neste sentido, foi justamente de uma revolta – a da independência das

treze colônias britânicas na América – que o federalismo teve início.

O estudo desse elemento, por ser um dos componentes do Estado, está

ligado diretamente as suas formas. O governo cuida de direcionar o Estado, exercendo

as competências que lhe foram atribuídas. Essas competências, como veremos à frente,

podem ser centralizadas num único governo, com atuação em todo o território, ou,

descentralizadas em governos regionais, que exercem competências localizadas sobre

parte do território. Dessa forma, como já mencionamos anteriormente, é necessária a

análise das formas e dos sistemas de governos mais comuns, tendo em vista a

importância desses assuntos para o estudo do federalismo.

O governo é o aparelho político necessário à existência do Estado,

pois é por meio dele que ocorre a representação das vontades estatais e do povo. No

22 J.J. Chevallier. El federalismo de Proudhon y de sus discípulos. pg. 92.

26

âmbito internacional, pertencem ao governo não apenas as autoridades executivas, mas

também, o conjunto dos seus poderes públicos.23

A idéia de governo está ligada diretamente à concepção de elemento

funcional do Estado, ou seja, o governo existe para satisfazer as necessidades do povo

que se submete a sua autoridade.

Com relação ao Governo é possível o estabelecimento de duas

classificações: quanto às formas de governo e quanto aos sistemas de governo. Como

formas de governo devemos considerar a organização e o funcionamento do poder

estatal; enquanto que por sistemas de governo devemos entender como a relação de

funcionamento do governo frente à separação dos poderes.

Na Idade Antiga, Aristóteles classificava as formas de governo em

dois grupos: normais, cuja finalidade era o “bem comum” da população, e anormais,

onde a prioridade era satisfação dos governantes em detrimento do restante da

comunidade. As formas normais eram divididas em: Monarquia, Aristocracia e

Democracia; enquanto que as formas anormais seriam correspondentes,

respectivamente, a Tirania, Oligarquia e Demagogia. Posteriormente, Maquiavel

apresentou como formas de governo a Monarquia e a República, já que a Aristocracia

e a Democracia foram consideradas formas intrínsecas, que poderiam ser ajustadas a

qualquer uma daquelas duas.

As formas e os sistemas fazem parte do mecanismo de governo do

Estado e é possível o ajuste deste à estrutura centralizada ou descentralizada de Estado.

Assim, por exemplo, os Estados Unidos e o Brasil são Estados republicanos,

presidencialistas e federais; o Canadá é um Estado monárquico, parlamentarista e

23 Nguyen Quoc Dinh. op. cit., pg. 381

27

federal24; a Espanha adotou a monarquia, o parlamentarismo e a forma unitária

descentralizada com regiões autônomas.

Formas de Governo

Analisaremos a partir de agora, de forma sucinta, a Monarquia e a

República. Essas formas de governo estiveram ligadas ao aparecimento do

federalismo, pois, conforme veremos, foi justamente da passagem da Monarquia para a

República que surgiu aquela forma de Estado. Além disso, como já nos referimos

anteriormente, é possível o ajuste de cada uma dessas formas de governo às formas de

Estados (federalismo e unitarismo).

24 O Canadá é uma monarquia constitucional, um estado federal e uma democracia parlamentarista, com dois

tipos de jurisprudência, o direito civil e o direito comum. Em 1982, a Carta de Direitos e Liberdades foi

solidamente firmada na Constituição do Canadá. A Constituição do Canadá era inicialmente um estatuto

inglês, o Ato da América do Norte Britânica de 1867, e até 1982 suas emendas estavam sujeitas ao

Parlamento Britânico. Desde 1982, quando a constituição foi "patriada", isto é, quando os canadenses foram

autorizados a fazer emendas à Constituição no Canadá, esse estatuto inicial tem sido conhecido como Ato

Constitucional de 1867. Os canadenses vivem sob a monarquia desde os tempos em que o Canadá era colônia

da França e da Inglaterra. Embora tenha sido um "Domínio" autônomo do Império Britânico desde 1867, a

sua independência total, assim como a de todas as colônias britânicas, só foi estabelecida em 1931, através do

Estatuto de Westminster. Elizabeth II, Rainha da Inglaterra, é também Rainha do Canadá e soberana de

vários reinos. Na qualidade de Rainha do Canadá, delega poderes a um Governador Geral do Canadá. Assim,

o Canadá é uma monarquia constitucional: a rainha rege, mas não governa. Em 1867, os "Pais da

Confederação" do Canadá adotaram uma forma de governo federal. Um estado federal é aquele que traz

consigo um número diferente de comunidades políticas, sob um governo comum para propósitos comuns e

que separa os governos local e regional pelas necessidades particulares de cada região. No Canadá, as

responsabilidades do Parlamento central, ou federal, incluem a defesa nacional, comércio interprovincial e

internacional, sistema monetário e bancário, direito criminal e indústria pesqueira. As cortes também deram

ao Parlamento federal poderes sobre a aeronáutica, navegação, ferrovias, telecomunicações e energia nuclear.

As legislaturas regionais ou provinciais são responsáveis pela educação, propriedade e direitos civis,

administração da justiça, sistema hospitalar, recursos naturais dentro de suas fronteiras, seguridade social,

saúde e instituições municipais. (www.dfait-maeci.gc.ca/brazil/br-10-aboutcanada-7-pt.asp site oficial da

Embaixada do Canadá no Brasil)

28

Monarquia

A Monarquia é a forma de governo que foi utilizada por quase todos

Estados ao longo da história. Contudo, com o passar dos séculos essa forma de

governo foi enfraquecida e, até mesmo, esquecida.

Quando do nascimento do Estado moderno, havia a necessidade de

governos fortes que favorecessem a unidade estatal, isso fez com que a Monarquia,

não sujeita às limitações jurídicas, denominada de monarquia absoluta, se fortalecesse.

Contudo, aos poucos cresce a resistência ao absolutismo e no século XVIII surgem as

monarquias constitucionais.

O aparecimento do constitucionalismo no século XVIII, teve como

antecedentes históricos a Magna Carta de 1215, assinada por João Sem Terra por

imposição dos Barões da Inglaterra, que prometeu obedecê-la e aceitou as limitações

de seus poderes, e a Revolução Inglesa (Revolução Gloriosa) de 1688 que consagrou a

supremacia do Parlamento como órgão legislativo.

No século XVIII, a conjunção de três fatores determina o

aparecimento do Constitucionalismo e, por conseqüência, a transformação das

monarquias absolutas em constitucionais. O primeiro desses fatores está relacionado

com a supremacia do indivíduo, já que sob a influência do jusnaturalismo, difundido

pelas obras contratualistas, afirma-se a superioridade daquele, dotado de direitos

naturais inalienáveis e que deveriam ser protegidos pelo Estado. Ao mesmo tempo,

desenvolve-se a luta contra o absolutismo dos monarcas, com a instituição de

mecanismo de limitação de seus poderes. Finalmente, a influência do Iluminismo na

política, apoiado na crença da razão, levou a criação da cultura da racionalização do

poder.25

25 Dalmo de Abreu Dallari. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Editora Saraiva, 1994, pg. 169.

29

Assim, o monarca teve sensível diminuição de seus poderes nas

monarquias constitucionais, o que foi agravado, ainda mais, pela adoção, em alguns

Estados, do parlamentarismo.

As principais características da Monarquia são: (a) a vitaliciedade, não

existe limitação de tempo, podendo o monarca governar enquanto estiver vivo ou

enquanto tiver condições para fazê-lo; (b) a hereditariedade, muito embora possam

existir monarquias eletivas, onde o monarca é escolhido por eleição, a regra é a da

escolha por meio da linha de sucessão, portanto, após a morte do rei seu herdeiro

assume a coroa; (c) a irresponsabilidade, o monarca não tem responsabilidade política,

atuando de forma soberana.

República

Em oposição à Monarquia aparece a República, que traz no seu

contexto a idéia de limitação de poderes dos governantes, algo que sempre foi o ponto

crítico naquela forma de governo.

A República tem como características fundamentais, situações que são

exatamente o contrário das identificadas na Monarquia. Assim, enquanto na

Monarquia ocorre a vitaliciedade, a substituição do monarca é feita por sucessão

hereditária e a responsabilidade política não existe, na República a regra é a

temporariedade no poder, o governante é eleito e é politicamente responsável. Dessa

forma, são características da República: a temporariedade, a eletividade e a

responsabilidade política.

Cabe lembrar, que essas características são básicas e que durante o

processo histórico podem ou não estar presentes na existência de um Estado. Apenas

para reforçar isso, citamos como exemplo os governos ditatoriais, onde as

características básicas da república aparecem totalmente desfiguradas.

30

Assim, as formas de governos mais conhecidas são a Monarquia e a

República, que – diga-se de passagem – podem ser ajustadas aos dois sistemas de

governo mais difundidos atualmente, que são: o Parlamentarismo e o

Presidencialismo.

Sistemas de Governo

A idéia de sistemas de governo toma como critério básico a

consagração ou não da clássica teoria da divisão de poderes. Manoel Gonçalves

Ferreira Filho, lembra que existem sistemas onde há uma verdadeira confusão de

poderes, onde inexiste a divisão de poderes, por exemplo, as ditaduras; de

colaboração de poderes, onde a divisão existe mas os poderes não são independentes,

como no parlamentarismo; e, enfim, sistemas de separação de poderes, como o

presidencialismo.26

Passaremos à análise dos sistemas parlamentarista e presidencialista,

a fim de demonstrar que tanto um quanto o outro são compatíveis com a forma federal

de Estado. Além disso, como veremos, a forma federal apareceu juntamente com a

criação do sistema presidencialista.

Parlamentarismo

O sistema Parlamentarista teve sua origem na Inglaterra no século

XVIII, fruto de uma formação histórica gradativa, sendo propagado, posteriormente,

para outras monarquias da Europa. Contudo, a base pela qual evoluiu o

Parlamentarismo encontra-se no final do século XVII, na revolução que passou a ser

conhecida como Revolução Gloriosa de 1688.

26 Manoel Gonçalves Ferreira Filho. op. cit., pg. 138.

31

A Revolução Gloriosa tinha duplo objetivo: um político e outro

religioso. O político era resguardar as instituições tradicionais (especialmente o

Parlamento) e os direitos do povo (proteção das liberdades – habeas corpus – e a

participação no poder com representação política na Câmara Baixa do Parlamento). O

motivo religioso era o temor da restauração do catolicismo, pois suspeitava-se que o

rei Jaime II havia se convertido para a religião de sua segunda esposa e que seu filho,

recém nascido, seria educado nessa religião.27

Como os revoltosos não tinham a intenção de instalar uma República,

a solução foi, após a fuga de Jaime II para a França, a declaração de que o trono estava

vago e que deveria ser ocupado por sua filha mais velha, a princesa Maria –

posteriormente chamada como Maria II –, educada como protestante e esposa de

Guilherme de Orange (conhecido como William III e mais tarde Guilherme III), que

era seu primo e líder protestante28. A ascensão ao trono trouxe o compromisso de

respeito às instituições e aos direitos dos ingleses, o que foi positivado na Bill of

Rights de fevereiro de 1689.29

27 Manoel Gonçalves Ferreira Filho. O Parlamentarismo. São Paulo: Editora Saraiva, 1993, pg. 03 28 Após a revolução de 1640, que depôs e decapitou o Rei, instalou-se de forma mal sucedida uma República

com Cromwell, que foi então o Lord-Protetor. Essa República teve curta duração, até 1660, quando a

Monarquia foi restaurada com a ascensão de Carlos II. 29 Os primeiros textos de direitos do povo inglês começaram a surgir a partir de 1215, com a Magna Carta de

João Sem Terra. Vencido na Guerra no Continente, hostilizado pela Santa Sé e desprovido de recursos

financeiros, o Rei foi obrigado a firmar um documento em que se comprometia a respeitar os privilégios ou

liberdades dos três estados do reino. A Magna Carta foi confirmada pelos sucessores de João sem Terra.

Neste documento foram consagrados: a liberdade da Igreja, as prerrogativas municipais, a moderação da

tributação dos mercadores, o direito que cada um tem a não ser condenado senão após o julgamento pelos

seus pares ou segundo o direito de seu país e o direito de todo homem a que lhe seja feita justiça.

Posteriormente, durante o reinado de Carlos I, travou-se uma luta entre o Parlamento e a Coroa: o Parlamento

queria firmar sua supremacia e o direito de criticar e a responsabilizar os conselheiros do Rei, enquanto o

Soberano pretendia manter intacto seu poder. Mal sucedido o Rei, em 1628, o Rei foi obrigado a deferir a

Petition of Rights, que trazia a impossibilidade de lançamento de impostos sem o consentimento do

Parlamento, a proibição de prisões arbitrárias, o uso da lei marcial em tempo de paz e o aquartelamento

permanente de soldados nas casas dos particulares. (Marcello Caetano. Manual de Ciência Política e Direito

Constitucional. Tomo I. Portugal: Coimbra, Almedina, 1996, pg. 46/47.)

32

Além disso, o poder passou a ser dividido entre o Rei, que exercia a

Administração Pública, as relações exteriores e as forças armadas, e o Parlamento, que

editava as leis (com a participação do Rei), autorizava a criação de novos tributos,

exercia o controle de contas e podia processar e julgar autoridades.

O Parlamento era composto por duas casas, a Câmara dos Lords,

representando a nobreza e alto clero, e a dos Comuns, que representava o povo. A

Câmara dos Comuns podia ser dissolvida, mas havia a exigência de convocação de

novas eleições.

Em 1714, com a morte da rainha Ana e a exclusão dos príncipes

católicos, a sucessão da Coroa coube a Jorge I, que era alemão. Ignorando a língua

inglesa, o novo Rei deixou de presidir as sessões do Gabinete, que passaram a ser

realizadas sem a sua presença. Contudo, como tal situação não podia continuar, foi

nomeado um conselheiro (Walpole) para intermediar as relações entre o Gabinete e o

Rei. Assim, quando se instalou o Parlamentarismo esse Conselheiro passou a ser

conhecido como Primeiro Ministro.

Marcello Caetano30 lembra que a Coroa era jurídica e politicamente

irresponsável, pois o Rei era o juiz supremo e todos os juízes dependiam dele. Assim,

era impossível acusar o Rei perante um tribunal, tendo em vista o princípio “the king

can do no wrong” (o rei não pode errar). Depois do século XVII os juízes tornaram-se

independentes do rei, mas se manteve o princípio de não poderem exigir

responsabilidades do rei no campo jurídico ou político. Como o Rei não podia ser

chamado à responsabilidade, mas era assistido pelo Conselho Privado, o Parlamento

criou a teoria de que: “o Rei não tem culpa, a culpa é de quem o aconselhou”. A

partir do século XVIII o Parlamento começou a exigir responsabilidade política dos

Ministros pelos atos da Coroa. Os atos do Rei sempre deveriam estar cobertos pelo

30 Marcello Caetano. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional. Tomo I. Portugal: Coimbra,

Almedina, 1996, pg. 53.

33

referendo ministerial (referenda ministerial), visando à aplicação do princípio: “the

king can not act alone” (o rei não pode agir sozinho).

Não foram raros os conflitos entre o Parlamento e o Rei, visto que o

Primeiro Ministro era da confiança do monarca. Esses conflitos só diminuíram quando

o Rei passou a escolher o Primeiro e os demais ministros entre os membros do partido

político que detinha a maioria no Parlamento (o Parlamento estava dividido entre os

tories, considerados conservadores, e os whigs, que eram mais liberais).31

O maior conflito entre o Parlamento e o Rei ocorreu quando o Jorge

III, deixando de lado o princípio de que a competência de governar era do Conselho de

Ministro, chamou para si tal responsabilidade. A política desenvolvida pelo Rei foi

responsabilizada pela independência das treze colônias na América do Norte. Tal

episódio fez com que o Parlamento, em 1782, exigisse a demissão do Primeiro

Ministro, Lord North, que passou a ser considerado como responsável. Esse fato fez

surgir o princípio de que o Primeiro Ministro e todo o Ministério dependem da

confiança da maioria parlamentar.

Dessa forma, poderíamos dizer que o Parlamentarismo, ao longo de

sua história na Inglaterra, foi sendo sedimentado através de fatos históricos. As

principais características do parlamentarismo, que foram sendo agregadas pelo

processo histórico, são:

a) A divisão entre rei ou presidente da república e o primeiro ministro

das atribuições de Chefia de Estado e Chefia de Governo. O rei ou o presidente exerce

a representação do Estado, enquanto que a Chefia de Governo é realizada pelo

primeiro ministro em conjunto com os demais ministros que compõem o seu Gabinete.

b) Chefia de Governo com responsabilidade política. O Primeiro

Ministro e seu Gabinete têm ligação direta com o parlamento, pois a permanência do

31 Manoel Gonçalves Ferreira Filho. O Parlamentarismo. São Paulo: Editora Saraiva, 1993, pg. 06.

34

governo depende da obtenção da maioria naquela casa. Assim, a perda da maioria ou o

voto de desconfiança podem levar à demissão do Primeiro Ministro e de seu Gabinete.

c) Dissolução do Parlamento. É a possibilidade do Primeiro Ministro,

percebendo que possuiu uma pequena maioria ou após ter recebido um voto de

desconfiança, solicitar ao Chefe de Estado que declare a extinção dos mandatos e

convoque novas eleições.32

A história brasileira foi marcada por duas experiências parlamentares:

uma durante o Império e outra durante a República.

O parlamentarismo durante o Império, encontrava suas raízes na

tradição Monarquista. A Constituição do Império de 1824, inicialmente, não previa o

sistema parlamentarista que só foi acrescentado por meio de convenção e aplicado

durante o Segundo Reinado.33

A Constituição de 1891 abandonou o modelo monárquico e instaurou

o Presidencialismo em substituição ao sistema Parlamentar, guiado pela forma de

governo democrática.

Durante a vigência da Constituição de 1946, a Emenda Constitucional

nº 4, de 2 de setembro de 1961, institui o sistema parlamentarista de governo.

O parlamentarismo que se instalou em setembro de 1961, em meio a

uma gravíssima crise das instituições, teve como ponto de partida a renúncia de Jânio

32 O chanceler alemão Gerhard Schroeder, utilizando-se de uma manobra que já havia sido usada por Helmut

Kohl em 1982, deliberadamente conseguiu perder um voto de confiança no Parlamento em 01 de julho de

2005. A medida permitiu a dissolução do Bundestag (Câmara dos Deputados) pelo Presidente Horst Koehler,

única pessoa habilitada a dissolver o Parlamento. Nas eleições de 2005, Gerhard Schoroeder enfrentou a líder

conservadora Angela Merkel, que acabou se tornando a primeira mulher a comandar a Alemanha.

33 Raul Machado Horta. Direito Constitucional. 3ª Edição. Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 2002, pg. 54.

35

Quadros, em 25 de agosto de 1961, que havia sido eleito pela coalizão de partidos da

oposição com a bandeira de varrer a corrupção, combater o populismo varguista e a

subversão comunista.

Entretanto, desde os primeiros dias de governo os rumos tomados por

sua política foram completamente diferentes. Aproximou-se de países do Leste

Europeu e de Cuba, rompendo com líderes que o haviam apoiado. O processo de

descontentamento com a política desenvolvida por Jânio Quadros levou-o a renunciar,

provocando uma grave crise. Inicia-se a partir desse momento, a discussão sobre a

sucessão do Presidente, cujo vice era João Goulart, que também havia sido vice de

Juscelino e era considerado o símbolo do varguismo e do continuísmo. Contudo, para

a maioria das forças políticas e militares do país a posse do Vice era inaceitável. Dessa

forma, visando evitar um confronto interno, o que agravaria ainda mais crise política, o

Congresso Nacional aprovou a Emenda nº 4, de 2 de setembro de 1961, que institui o

Parlamentarismo.

Essa Emenda trazia em seu bojo a autorização para que fosse

convocado, por meio de lei complementar, um plebiscito sobre a manutenção do

parlamentarismo ou a volta do sistema presidencialista. O plebiscito deveria ocorrer

nove meses antes do fim do mandato presidencial que estava em curso (abril de 1965),

entretanto, tendo em vista os acontecimentos políticos da época o plebiscito foi

antecipado para janeiro de 1963, tendo como resultado a volta do presidencialismo.

Desde seu início, a experiência parlamentarista se mostrou fadada ao

fracasso. A sua instituição sempre transpareceu mais um ato de sabotagem ao Governo

de João Goulart do que propriamente um anseio político do país. Assim, para João

Goulart tornou-se um ponto de honra a retomada dos poderes que lhe foram retirados.

Esse fato, somado a posição doutrinária presidencialista de alguns políticos e o aberto

apoio do Presidente do Conselho de Ministros, Brochado da Rocha, que era ligado a

Goulart, determinaram a antecipação do plebiscito e o seu resultado.

36

Portanto, a experiência nacional parlamentarista não teve tempo para

demonstrar suas vantagens ou desvantagens. Assim, a tentativa de restabelecer o

sistema não obteve sucesso no plebiscito de 7 de setembro de 1993.

Presidencialismo

O presidencialismo da mesma forma que o parlamentarismo foi

resultado de um processo histórico, porém mais breve que aquele. No

presidencialismo há uma clara obediência à separação dos poderes, já que não existe

qualquer dependência política – tirando eventuais alianças partidárias – entre o

Executivo e o Legislativo.

A criação americana, do século XVIII, buscava o distanciamento do

sistema que era adotado na Inglaterra. A base para a criação do sistema

presidencialista era a oposição ao absolutismo e o estabelecimento de um mecanismo

de governo que impedisse a concentração de poderes nas mãos de um governante.

Nesse sentido a aplicação da teoria da separação dos poderes de Montesquieu

encontrou terreno fértil para sua implementação. Além disso, o novo sistema

consagrava a soberania da vontade popular.

Os fundadores dos Estados Unidos, na ânsia de eliminar qualquer

relação com a antiga pátria, criaram um sistema totalmente diferente de governo, onde

a figura central, o Presidente, não guardava qualquer ligação com o rei.

A principal preocupação dos americanos era a manutenção da

autonomia dos Estados-membros. Portanto, de início, a figura do Presidente não tinha

muita importância. Apenas para se ter uma idéia da pouca importância do cargo, o

Presidente Jefferson costumava dizer: “o americano somente sente a existência do

poder central, quando parte o selo federal do seu cigarro ou desembarca suas malas

37

na alfândega”, tendo chegado ademais a afirmar que o governo da União não era

senão o Departamento de Relações Exteriores dos Estados.34

Contudo, com o passar dos tempos, a figura do Presidente passou a

ganhar importância, principalmente a partir da concentração de um número maior de

competência nas mãos da União.

As principais características do presidencialismo são:

a) Chefia de Governo e Chefia de Estado concentradas no Presidente

da República. No início (séc. XVIII) a função do Presidente era a de mero executor

das leis. Entretanto, a evolução do sistema fez com que o Presidente passasse a

desenvolver com mais intensidade a função de Chefia de Governo. O Presidente de

forma unipessoal acumula as atribuições de Chefe de Estado, quando atua

representando o Estado internacionalmente, e de Chefe de Governo, quando exercita

competências de gestão interna.

b) Chefia do Executivo é unipessoal. A responsabilidade pelas

diretrizes políticas é do Presidente, muito embora seja ele auxiliado por um Gabinete

de Ministros, que são demissíveis a qualquer momento. Os Ministros, como auxiliares

especiais, são responsáveis pelo desenvolvimento da política definida pelo Presidente.

A unipessoalidade é verificada até mesmo em relação ao Vice-Presidente que, mesmo

sendo escolhido com o Presidente, não tem qualquer atribuição.

c) Presidente é escolhido pelo povo. A escolha do Presidente pelo

povo pode ser realizada direta ou indiretamente. Nesse ponto se afirma o caráter

democrático do sistema. James Madison em “O Federalista” afirmou que para que haja

uma República existem situações que são essenciais e suficientes:

34 Assis Chateaubriand. Discurso no Senado Federal, sessão de 27 de julho de 1955. apud Paulo Bonavides.

Ciência Política. São Paulo: Editora Malheiros, 2005, pg. 98.

38

“Se buscarmos um critério para os diferentes princípios nos quais as

diversas formas de governo se fundamentam, podemos definir a república

como sendo um governo – ou pelo menos emprestando-lhe este nome – que

deriva todos os poderes, direta e indiretamente, da grande massa do povo,

sendo administrado por pessoas que exercem suas funções voluntariamente,

durante um limitado período de tempo ou enquanto agirem bem. É

essencial, para um governo assim, que ele provenha de uma grande porção

da sociedade, não de uma pequena parte ou de uma classe favorecida, de

outro modo, um grupo de nobres tirânicos, exercendo sua opressão por uma

delegação de poderes, poderia apresentar-se como republicano e pleitear

para seu governo o honroso título de república. É suficiente para tal

governo que os administradores sejam designados, direta ou indiretamente,

pelo povo e que tais designações observem os respectivos mandatos; caso

contrário, um governo dos Estados Unidos, assim como qualquer outro

governo popular, mesmo que tenha sido ou possa ser bem organizado ou

bastante eficiente, seria excluído da categoria de república”.35

A importância da eleição do Presidente, portanto, era essencial para

firmar os ideais republicanos e democráticos, mesmo que, como é o caso dos Estados

Unidos, essa eleição fosse feita de forma indireta.

Cabe lembrar, que a eleição indireta para Presidente da República nos

Estados Unidos foi defendida como uma alternativa para se evitar que um grupo de

pessoas pudesse se reunir e tomar o poder. A defesa do sistema indireto foi feita por

Alexander Hamilton, segundo o qual julgou-se conveniente que a sensibilidade do

povo interviesse na escolha da pessoa que iria desempenhar a função executiva. Essa

intervenção deveria ocorrer cometendo o encargo de elegê-lo, não a um colégio pré-

constituído, mas, sim, a delegados escolhidos pelo povo para este fim específico e na

devida oportunidade. Um pequeno grupo de pessoas, selecionadas por concidadãos

entre a massa do povo, provavelmente disporia de meios e discernimento

35 Alexander Hamilton, James Madison, John Jay. O Federalista. São Paulo: Editora Russel, 2003, pg. 243/244.

39

indispensáveis para realizar o julgamento de qual candidato seria o mais adequado

para ocupar o cargo de Presidente da República.

d) O Presidente cumpre mandato com prazo determinado. O exercício

do cargo de Presidente por um período determinado é a principal característica da

República que foi aplicada ao sistema de governo adotado nos Estados Unidos. Assim,

para não se correr o risco de criar uma monarquia eletiva, os norte-americanos

estabeleceram que o Presidente deveria ocupar o cargo por um prazo determinado.

Findo esse período, o povo é convocado a escolher um novo Presidente.

No sistema americano não era proibida a reeleição do Presidente,

embora Jefferson tenha alertado sobre a possibilidade de que reeleições sucessivas

poderiam conferir ao eleito a investidura vitalícia. Mantido o silêncio constitucional,

criou-se a praxe de um máximo de dois períodos consecutivos. Franklin Roosevelt, em

decorrência da Guerra, acabou conseguindo um terceiro mandato, o que fez com que o

Congresso norte-americano aprovasse a emenda constitucional de 27 de fevereiro de

1951, estabelecendo o limite de dois períodos.36

d) O Presidente tem poder de veto. O Poder Legislativo é o

responsável pela elaboração das leis, entretanto, para que o Executivo não se

transforme em um mero executor das leis, o que poderia configurar uma ditadura do

Legislativo, foi conferido ao Presidente a possibilidade de participar do processo

legislativo através do veto. Não se tratava de um veto absoluto como era o do rei da

Grã-Bretanha, mas de um veto qualificado que abria a possibilidade do Congresso, por

votação especial, rejeitá-lo.

36 Artigo XXII - 1. Ninguém poderá eleito mais de duas vezes para o cargo de Presidente, e pessoa alguma que

tenha sido Presidente, ou desempenhado o cargo de Presidente por mais de dois anos de um período para o

qual outra pessoa tenha sido eleita Presidente, poderá ser eleita para o cargo de Presidente mais de uma vez.

Mas esta emenda não se aplicará a qualquer pessoa no desempenho do cargo de Presidente na época em que

esta emenda foi proposta pelo Congresso, e não poderá impedir qualquer pessoa, que seja Presidente, ou

esteja desempenhando o cargo de Presidente, durante o período dentro do qual esta emenda entrar em vigor,

de ser Presidente ou agir como Presidente durante o resto do período.

40

O veto do Presidente pode ser imposto sempre que ocorrer

inconstitucionalidade ou contrariedade ao interesse público, devendo ser expresso para

que no momento da apreciação pelo Congresso haja a possibilidade de conhecimento

dos motivos de sua imposição.

Verificamos, portanto, as situações que envolvem um dos elementos

do Estado, que é o Governo. Analisamos as formas e os sistemas de Governo. Assim,

passaremos a analisar a soberania e o poder do Estado, que garantem a sua existência

no plano nacional e internacional.

1.2.2.1 – Poder e a Soberania

No Estado federal, aparelhado com uma estrutura complexa de dois

níveis de governo, onde cada um detém capacidade para exercitar competências

próprias, há a necessidade de que exista um poder capaz de promover a coexistência

pacífica dessas ordens. A organização do poder nos Estados Federais, impõe aos

Estados-membros o respeito à supremacia nacional e aos mecanismos de solução

pacífica entre os conflitos internos de exercício das competências.37

O “poder” sempre esteve presente na história do homem. O homem

jamais viveu isolado, sendo inevitável o exercício da vontade de uns sobre os outros.

No Leviatã, Thomas Hobbes38 afirma que:

“O maior dos poderes humanos é aquele que é composto pelos poderes da maioria

dos homens, unidos por consentimento numa só pessoa, natural ou civil, que tem o

uso de todos os poderes deles na dependência da sua vontade; é o caso do poder

de uma república. Ou na dependência das vontades de cada indivíduo: é o caso do

37 Bernard Schwartz. El federalismo norteamericano actual. Espanha, Madrid: Editora Civitas, S.A., 1993, pg.

29. 38 Thomas Hobbes. Leviatã. Org. Richard Tuck: São Paulo: Martins Fontes, 2003, pg. 76.

41

poder de uma facção ou de várias facções coligadas. Conseqüentemente, ter

servidores é poder; e ter amigos é poder: porque são forças unidas.”

Ao viver em sociedade, a conjugação das vontades em torno de um

objetivo comum (o bem comum) faz nascer a finalidade daquela sociedade. Para a

realização dessa finalidade há a necessidade de manifestações ordenadas dos membros

da sociedade. É na organização e na ordenação que o “poder” nasce.

Na antiguidade o poder estava impregnado de religiosidade. No Egito,

por exemplo, os faraós eram a personificação da divindade. Assim, o Rei era aquele

escolhido pelos Deuses para conduzir o povo.

A história nos mostra que alguns reis foram a verdadeira

personificação do poder. A Grécia e Roma viram grandes governantes em seus

comandos. Na Grécia, Alexandre Magno (356-323 a.C), que formou o primeiro grande

império da humanidade, estendeu o seu poder da Península Ibérica ao Oriente Médio e

norte da África. Em Roma, em meio às guerras civis pelo poder, Julio César (102–44)

tornou-se o homem mais poderoso do império, após a sua morte por membros do

Senado Romano, Augusto (63-14) vencedor das guerras civis, se proclamou mais

poderoso que cônsules e senadores, subindo ao trono como primeiro monarca de

Roma, em 27 a.C.39

Durante a Idade Média, Carlos Magno, soberano do Reino Franco,

expandiu seu reino instituindo o “Sacro Império Romano-Germânico”, sendo

conhecido como a personificação do poder na Alta Idade Média.

A Idade Média de uma forma geral é marcada pela divisão da Europa

em razão do sistema feudalista. Neste sentido, ter poder significava ter terras. Nesse

período, a religião, também, é sinônimo de poder.

39 Gabriel Chalita. O Poder. São Paulo: Editora Saraiva, 1999, pg.

42

Por volta do fim do Império Romano do Ocidente – em 476 os hérulos

invadem Roma, essa data é considerada como o fim daquele Império e o início da

Idade Média –, os grandes senhores romanos abandonavam as cidades, fugindo da

crise econômica e das invasões germânicas. A rota de fuga eram os latifúndios no

campo, onde passavam a desenvolver uma economia de subsistência. Esses centros

rurais eram conhecidos como “vilas romanas”, originando os feudos medievais. Com a

ruralização do Império Romano o poder central perde força sobre os senhores agrários,

que aos poucos ganham autonomia. Assim, cada vez mais o poder político se

descentraliza, permitindo ao proprietário da terra a administração de forma

independente da sua vila. 40

Na religião o Cristianismo do Oriente se enraizou na cultura romana,

passando a ser a religião oficial do império no século IV. Em pouco tempo, a igreja se

transformou na instituição mas poderosa do continente europeu, determinando a

cultura do período medieval.

Movido pelo pensamento de Santo Agostinho (354-430), o poder

terreno passa a ser negado e considerado ilegítimo. O único poder legítimo é aquele

exercido por Deus.

Durante os dez séculos da Idade Média a Igreja foi considerada o

maior de todos os poderes.

No século XI, o Renascimento comercial e urbano e o surgimento de

uma nova classe social – a burguesia –, transformaram a economia e a sociedade na

Europa medieval. Esse processo culminou a com crise do século XIV que

desestruturou o feudalismo. A crise do século XIV foi resultado da conjunção de

vários fatores: a Grande Fome (1315 a 1317), a Peste Negra (um grande surto de peste

bubônica transmitida por ratos, que no período de 1347 a 1350 fez desaparecer um

40 Leonel Itaussu A. Mello e Luís César Amad Costa. História Antiga e Medieval. São Paulo: Abril Educação,

1985, 236.

43

terço da população européia), e, finalmente, a Guerra dos Cem Anos, que envolveu

França e Inglaterra (1337 a 1453).

A partir do século XIV – portanto, dentro da chamada baixa Idade

Média, período entre os séculos XI e XV –, auxiliados pela burguesia emergente, os

reis aumentaram ou restauram sua autoridade, diminuindo o poder da Igreja. Nesse

período, surgem os primeiros Estados centralizados, são monarquias como as de

Portugal, Espanha e Rússia, países que continuaram sob a dominação da Igreja.

Inglaterra e França tiveram uma burguesia forte e se constituíram e exemplos de

Estados modernos.41

No século XVI Nicolau Maquiavel escreve “O Príncipe” (1513), obra

essa voltada para a análise de uma teoria da conquista e a ordenação do “poder”. “O

Príncipe” é uma obra de realismo político que buscava também, a partir dos conselhos

do autor, a unificar a Itália.

A separação da igreja e do Estado, fato que teve como marco a

desobediência do rei Henrique VIII ao poder do Papa, traz como principal

conseqüência a afirmação de poder absoluto do Estado desvinculada de qualquer outra

autoridade. Com efeito o monarca passa a ser o soberano absoluto, independentemente

da autoridade do Papa. Contudo, paira no ar a idéia de que o Rei deve manter a

habilidade de reinar sabiamente, pois o povo é quem detém o poder. O poder passa a

ser transitório, segundo Maquiavel, e qualquer pessoa pode chegar a exercê-lo.

O “poder” é o elemento central do Estado. O Estado é a expressão

concreta do poder político, exercitando-o sobre os cidadãos e em nome deste, visando

o bem comum. O poder constitui o Estado, pois é força que nasce do povo que habita

determinado território e que organiza seu governo. Ele não consegue exercer-se dentro

do Estado enquanto pura e exclusiva força bruta. Ele deve tornar-se jurídico.

41 Gabriel Chalita. O Poder. São Paulo: Editora Saraiva, 1999, pg. 31

44

A vinculação do poder ao direito, não ocorre apenas no momento da

criação de sua Constituição, mas também, por ocasião de seu funcionamento. Assim,

implantados os órgãos constituídos, que encontram seu fundamento de validade na

Constituição, esses nada mais são que um conjunto de competências previamente

definidas.

A multiplicação de agentes e de órgãos é também criadora de uma

limitação do poder pelo direito. O poder dividido e disseminado é sempre um poder

mais controlado.42

Celso Ribeiro Bastos43 questiona se o Estado se subordina

inteiramente ao direito, já que é o detentor do poder e da produção legislativa. Conclui

o citado autor que o Estado Moderno – democrático – tem guardado sensível

obediência ao ordenamento jurídico, não obstante as dificuldades de se sancionar o

Estado quando ele é o descumpridor das suas próprias leis, nem assim tem deixado de

pautar-se pelas regras jurídicas que cria. Tem sido uma necessidade lógica de

coerência, a subordinação ao direito.

Assim, o próprio fundamento que em última análise confere ao Estado

a prerrogativa de exercer o poder – que é a sua capacidade de impor a ordem – impede

que ele deixe de se sujeitar às leis destinadas a ordenar a própria sociedade.

É imprescindível que a contenção do poder deva ser realizada de

maneira formal – legalidade – e de maneira material, com a criação de regras que

impedem o Estado de invadir a esfera própria dos indivíduos e dos grupos sociais

menores. São os instrumentos jurídicos de garantia.

42 Celso R. Bastos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 2000, pg. 16 43 É interessante observar que Kelsen entendia que todo e qualquer Estado era sempre de Direito, pois a ele

incumbia a tarefa de elaborar as leis. Assim por mais autoritárias que essas fossem, seriam sempre

obedecidas pelo Estado. Quanto ao Estado Social, observasse que nos países onde se desenvolveram as

maiores ditaduras e o fascismo, todos tinham traços sociais, o que leva a crer que o Estado Social tanto serve

as democracias como a governos tiranos.

45

Portanto, o poder é a capacidade de imposição das decisões do Estado

para a realização de determinados fins.

O poder político é superior a todos os outros poderes sociais, os quais

reconhece, rege e domina, visando ordenar as relações entre os grupos e os indivíduos

entre si e reciprocamente. Essa superioridade do poder político caracteriza a soberania

do Estado, que implica, ao mesmo tempo, a independência em confronto com todos os

poderes exteriores à sociedade estatal (soberania externa) e a supremacia sobre todos

os poderes sociais interiores à mesma sociedade estatal (soberania interna).44

Assim, o poder se constitui em força una, indivisível e indelegável,

mas que se desdobra e se compõe de várias funções, que no plano horizontal,

basicamente, são três: a legislativa, a executiva e judiciária.

É sabido que não há uma separação absoluta de poderes, já que a

Constituição, quando define as respectivas atribuições, confere predominantemente a

cada um dos Poderes uma das três funções básicas, prevendo algumas interferências,

de modo a assegurar um sistema de freios e contrapesos.

Dessa forma, o Poder Legislativo e Judiciário, além de suas funções

precípuas de legislar e julgar, exercem também funções administrativas, como por

exemplo, as decorrentes dos poderes hierárquico e disciplinar sobre os seus respectivos

servidores. O Executivo pode participar da atividade legislativa, iniciando, vetando ou

aprovando projetos de leis. O Legislativo também pode exercer atividade julgadora.

A essas funções, que permitem uma maior independência e harmonia

entre os poderes, chamamos de funções atípicas.

44 José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, pg. 108

46

A divisão de poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos:

especialização funcional e a independência orgânica, sendo que essa última, implica

na não subordinação de um pelo outro.

J.J. Gomes Canotilho45 se refere a separação vertical, para indicar as

delimitações de competências no âmbito territorial, e separação horizontal, para

diferenciar as funções, conforme mencionado anteriormente (legislativa, executiva e

judiciária). A separação vertical de competências está ligada à idéia de

descentralização. No federalismo ocorre o ponto mais extremo da separação vertical de

competências, ou seja, a descentralização administrativa e legislativa, fixadas na

Constituição Federal.

Soberania

A soberania não é considerada um elemento constitutivo do Estado,

mas a ele está ligada sob a forma de atributo. No dizer de Giorgio Del Vecchio, a

adesão de um Estado soberano a uma organização federal significa um “suicídio de

Estados”, na medida em que a soberania passa a ser apanágio exclusivo do Estado

federal. A soberania, portanto, no caso dos Estados Federais, não é atribuída aos

Estados-membros, que ingressaram na federação ou aos que foram criados por ela,

conforme veremos nessa análise.

A soberania, no campo internacional, nasce com o próprio Estado e

colide com a de outros Estados, que são concorrentes e iguais.46 Neste sentido, o

atributo da soberania tem atualmente função política, pois depende do reconhecimento

de sua existência por outros Estados. Os Estados ameaçados de desmembramento

45 J.J. Gomes Canotilho. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Portugal, Lisboa: Livraria Almedina,

1999 46 A Carta das Nações Unidas reconhece expressamente a soberania dos Estados no seu artigo 2º, parágrafo 1º,

que diz: “a Organização está baseada no princípio da igualdade soberana de todos os seus membros”.

47

recusarão o acesso à soberania dos grupos separatistas, para lhes proibir o uso

igualitário dos meios de pressão militares e diplomáticos. Por outro lado, os partidários

da secessão farão uso de todos instrumentos políticos para serem reconhecidos, o mais

rapidamente possível, como independente.47

No âmbito interno a soberania é manifestada pelo governo, que impõe

seu ordenamento jurídico sobre todo povo e o território. Assim, são atributos da

soberania48:

a) supremacia – é o poder máximo de decisão, não existindo

qualquer outro acima dela;

b) autodeterminação – a ação soberana do Estado não é determinada

por outro poder;

c) exclusividade – é exercitável apenas pelo Estado e por seus

órgãos, ou seja, somente eles podem exercer o poder de coação, a

fim de que os indivíduos que compõem o povo façam ou deixem

de fazer alguma coisa;

d) unidade – num mesmo Estado não há a possibilidade e existência

de mais de uma soberania;

e) indivisibilidade – não há a possibilidade de sua divisão, ou seja,

em sendo uma unidade a soberania não admite que uma parcela

seja exercitável por outros entes;

f) inalienabilidade – sendo a soberania a expressão da personalidade

jurídica do Estado, não há a possibilidade de sua alienação ou

cessão;

g) imprescritibilidade – a soberania não desaparece pelo decurso de

tempo, ou seja, não tem tempo determinado de duração. A

47 Nguyen Quoc Dinh. Direito Internacional Público. Portugal, Lisboa: Edição Fundação Calouste Gulbenkian,

1999, pg. 373. 48 João Ribeiro Júnior. Teoria Geral do Estado & Ciência Política. São Paulo, Bauru: Edipro, 2001, pg. 199.

48

soberania dura enquanto o Estado existir como pessoa jurídica de

direito público internacional.

Portanto, a soberania decorre do poder do Estado de auto-organizar e

impor as suas decisões , visando o bem comum.

Esse poder do Estado consiste na imposição de uma determinada

vontade sobre as demais. Não se confunde com a mera força física, porque esta

suprime no seu destinatário a própria vontade. O que não significa dizer que no

exercício do poder não exista coercitividade. Tal coercibilidade deve ser virtual, pois

do contrário haverá apenas a chamada persuasão, na qual predomina a técnica da

argumentação.49

O advento do Estado coincide, com o momento em que foi possível,

num mesmo território, haver um único poder com autoridade originária, que fosse

independente de qualquer outro.

Assim sendo, a soberania é o direito do Estado Moderno, porquanto só

neste se verifica o pleno primado do ordenamento jurídico estatal sobre as regras dos

demais círculos sociais, que nele se integram e representa a condição essencial da

validade prima facie incondicionada das regras de direito estatal.50

No federalismo os Estados-membros que aderiram à federação perdem

o atributo da soberania, pois não há a possibilidade de existência de duas soberanias

concomitantes.

A renúncia à soberania é feita em favor do Estado federal nas

formações por agregação. Nos Estados Unidos, as colônias britânicas, após

49 ibidem, mesma página. 50 Miguel Reale, Teoria do direito e do Estado, pg. 320

49

declararem independência, renunciaram à soberania conquistada, que se transmutou

em autonomia.

Por outro lado, nas formações dos Estados federais a partir de um

Estado Unitário, como foi o caso do Brasil, a renúncia está relacionada à conquista da

soberania. Os Estados-membros renunciam à possibilidade de conquistarem sua

soberania internacional e aceitam a soberania nacional do Estado federal e autonomia a

eles atribuída.

1.2.3. – Território

A forma federal pressupõe a divisão territorial interna do Estado, a fim

de que haja a criação dos Estados-membros. O território do Estado, no federalismo,

será objeto de incidência de duas ordens jurídicas simultaneamente: a nacional e a

parcial. Logo, mais do que ser a simples base física onde se localiza o povo e sobre a

qual o governo é exercido, o território é o espaço onde o Estado tem o poder de impor

a sua ordem jurídica.

Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, o território é o domínio de

vigência de uma ordem jurídica estatal, sendo por ela definido, tanto no tocante às

terras como às águas, tanto no concernente às profundezas quanto às alturas.51

Na definição de Hans Kelsen o território aparece como o espaço onde

a ordem jurídica estatal é aplicada.

“O território do Estado é um espaço rigorosamente delimitado. Não é um pedaço,

exatamente limitado, da superfície do globo, mas um espaço tridimensional ao

qual pertencem o subsolo, por baixo, e o espaço aéreo por cima da região

compreendida dentro das chamadas fronteiras do Estado. É patente que unidade

51 Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 1994, pg. 40.

50

deste espaço não é uma unidade natural, geograficamente definida. A um e mesmo

espaço estadual podem pertencer territórios que estejam separados pelo mar, o

qual não constitui domínio de um só Estado, ou pelo território de outro Estado.

Nenhum conhecimento naturalístico, mas só um conhecimento jurídico, pode dar

resposta à questão de saber segundo que critério se determinam os limites ou

fronteiras do espaço estadual, o que constitui a sua unidade. O chamado território

do Estado apenas pode ser definido como o domínio espacial de vigência de uma

ordem jurídica estadual.”52

O mesmo autor nos mostra que o critério a ser utilizado para

identificar o território é o jurídico. O Estado exerce o seu poder de criação do

ordenamento jurídico interno, que deve ser aplicado às pessoas que estão dentro do

espaço de domínio estatal. Esse espaço, ressalvada as hipóteses de

extraterritorialidade, é o território do Estado.

A definição do território por meio da ordem jurídica do Estado,

preconizado por Hans Kelsen, serve também para definir o Estado Federal. Nesse

Estado, o território nacional é espaço onde a ordem jurídica federal é aplicada, sendo

que, ao mesmo tempo, em parcela desse território há a incidência de ordens jurídicas

parciais.

Segundo Jorge Miranda53, o território revela-se indispensável para

Estado como referência à comunidade, como sede material do poder, como domínio de

ação indiscutível, como área de segurança dos indivíduos e das sociedades menores e

como instrumento a serviço dos fins do poder. Além disso, o referido autor destaca o

papel histórico do território:

Imenso é o papel histórico do território: 1) local de fixação de um

povo (os povos nômades desconhecem a existência do Estado); 2)

52 Hans Kelsen. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pg. 319 53 Jorge Miranda. Manual de Direito Constitucional. 4ª ed. Portugal, Coimbra: Coimbra Editora Limitada, 1990,

p. 48.

51

local de aglutinação ou integração de elementos diversos num mesmo

povo; 3) uma das bases do sentido de identidade de um povo ao longo

dos tempos, em relação (por vezes em oposição) aos outros povos; 4)

uma das bases da permanência do poder político. Ele chega a dar o

nome do Estado. (sic)

Dentro desse contexto histórico, cabe ressaltar, que a delimitação das

fronteiras e a noção de soberania na Idade Média foram fundamentais para

manutenção do poder do Estado, tendo em vista a multiplicidade de conflitos ocorridos

nesse período, como veremos adiante.

Teorias sobre a relação jurídica do Estado com o Território

As teorias que explicam a relação jurídica entre o Estado e o território

podem ser sintetizadas da seguinte forma:54

(a) Território patrimônio (teoria patrimonial), característica do Estado

Medieval, onde não existe diferenciação entre domínio e poder de império,

concebendo-se o poder do Estado sobre o território como qualquer proprietário de um

imóvel. Essa teoria ignorava o imperium e o dominium como conceitos essencialmente

desconformes. Como nessa concepção o poder do Estado sobre o território era igual ao

direito de proprietário, os pactos, as concessões e litígio em matéria territorial se

propagaram pela idade média. Em suma, a teoria patrimonial transforma o território

em objeto da propriedade dos senhores feudais e, posteriormente, como propriedade

do Estado;

(b) Território objeto, defendida por Laband, concebe o território como

objeto de um direito real de caráter público. O território é posto na sua exterioridade,

na sua acepção corporal, como objeto frente ao Estado, que seria o titular, a pessoa do

54 Paulo Bonavides. Ciência Política. São Paulo: Editora Malheiros, 2005, pg. 98.

52

qual aquele estava desmembrado, mas cuja vontade ficava sujeito. A teoria do

território objeto leva para o campo do direito público uma noção puramente

jusprivatista, que é a de dominium, ou seja, poder sobre as coisas e que envolve

exclusividade, ao contrário do imperium, que é exercido sobre as pessoas. A adoção

dessa teoria implica no reconhecimento de que a soberania pode ser bipartida em

concepção positiva e concepção negativa. A positiva encerra a competência do Estado

de empregar as terras ou o território para atender a fins estatais. A negativa está

voltada para o campo do direito internacional, importando na exclusão do poder de

qualquer outro Estado sobre o mesmo território;

(c) Território espaço, defendida por Carl Victor Fricker e Jellinek,

segundo o qual o território é a extensão espacial da soberania. A teoria de Fricker

indica que a relação do Estado com o território deixa de ser uma relação jurídica; visto

que não sendo o território objeto do Estado como sujeito, não pode haver nenhum

direito do Estado sobre seu território. O poder do Estado não é sobre o território, mas

no território, e qualquer modificação daquele implica na modificação do Estado.

(d) Território competência, essa teoria foi obra de Hans Kelsen, e

considera o território como o âmbito de validade da ordem jurídica do Estado. A teoria

desdobra o território em duas acepções. A primeira, mais restrita, transforma o

território em esfera de competência local. A segunda encara o território de maneira

ampla, nos termos análogos da teoria do território-espaço, como âmbito de validade da

ordem estatal.

Limites do Território

Ainda, com relação ao território, cabe observar, que o Estado é

limitado por suas fronteiras, que podem ser acidentes físicos ou fixadas por

convenções internacionais. Os componentes do território também sofrem limitações.

Assim, o solo e subsolo são limitados pela capacidade de exploração e utilização do

Estado; o mar territorial tinha como elemento definidor de sua extensão o alcance da

53

bala de canhão (terrae potestas finitur ubi finitur armorum vis – cessa o poder

territorial onde cessa a força das armas), posteriormente, passou a sofrer restrições

fundadas em convenções internacionais55; o espaço aéreo que é caracterizado pela

possibilidade do Estado controlar o tráfego de aeronaves sobre o seu território, a fim

de garantir a segurança interna.

Relação entre o território e descentralização política

Questão interessante a ser verificada, é a da manutenção territorial

fundada no processo de centralização ou descentralização política. A unidade

territorial foi mantida em vários Estados de acordo com o processo histórico da

política adotada. Assim, países dotados de um centralismo acentuado conseguiram

manter sua unidade, frente às particularidades locais que conduziam a processos

revoltosos.

A exemplo disso, Celso Ribeiro Bastos aponta que no Brasil a

Constituição de 1824, dotada de um vigoroso centralismo político-administrativo,

acabou por evitar o que ocorreu na América espanhola, fracionada em razão dos

particularismos locais criados a partir da administração colonial.56

A concessão de autonomia a determinados entes territoriais poderia

levar ao fracionamento do Estado, portanto, a manutenção de uma política centralizada

e forte contribuía para a unidade territorial.

Contudo, a experiência de descentralização política mostrou que

poderia ser um fator de contribuição para a manutenção da unidade territorial, na

55 A lei nº 8.617, de 4 de janeiro de 1993, define que o mar territorial brasileiro compreende uma faixa de doze

milhas marítima de largura, medidas a partir da linha de baixa-mar do litoral continental e insular brasileiro,

tal como indicada nas cartas náuticas de grande escala, reconhecidas oficialmente no Brasil. A lei também

definiu a Zona Contígua e a Zona de Econômica Exclusiva que se estende das doze milhas do mar territorial

até duzentas milhas. 56 Celso Ribeiro Bastos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002, pg. 166.

54

medida em que as concessões de certas competências conferiam autonomia para o ente

territorial, diminuindo os processos de revolta. Exemplo interessante sobre esse

processo, foi a instituição do Estado Autonômico na Espanha, país que é dotado de

enorme diversidade cultural (a Constituição Espanhola reconhece a existência de

quatro línguas oficiais:castelhano, o galego, o basco e o catalão). O processo de

concessão de autonomia às regiões valoriza as particularidades locais. As regiões

passam a decidir sobre questões que as afetam diretamente, sem a necessidade de

aguardarem a atuação do poder central, que pode ser lenta e ineficaz. Com isso, a

Espanha tem conseguido manter a sua unidade territorial, muito embora exista na

região Basca a presença de movimentos separatistas.57

Conclui-se, portanto, que a preservação das autonomias regionais faz

com que haja a manutenção da unidade do Estado, permitindo com que o governo se

concentre na política nacional, deixando o particularismo das regiões para a política

local.

Sob o aspecto federal, o Estado é fracionado em unidades territoriais,

que possuem o próprio espaço de atuação da ordem jurídica regional. Contudo, no

plano internacional, o território federal é único, não ocorrendo o reconhecimento

internacional da divisão territorial interna. No Estado federal os ordenamentos

jurídicos estatais são aplicáveis no respectivo território de cada unidade federada,

enquanto que o ordenamento jurídico nacional tem validade em todo o território

nacional e incidente sobre todos os habitantes do Estado.

57 O ETA (Euzkadi Ta Askatasuna, que na língua basca significa Pátria Basca e Liberdade) busca a

independência da região ocupada pelo povo basco, que se situa no norte da Espanha e noroeste da França. A

diversidade cultural do povo basco (língua, costumes e tradições) manteve o ideal de independência da

região, que foi submetida à Espanha entre os séculos XV e XVI, quando se findou o processo de formação do

Estado Monárquico, com o casamento dos reis católicos Fernando e Izabel. O ETA nasceu como movimento

socialista em 1959 e conquistou a simpatia popular do povo basco no período de ditadura franquista, época

de grande repressão contra esse povo. Contudo, com a redemocratização da Espanha e o final do regime de

Franco em 1975, a luta pela autonomia perdeu forças. Além disso, a atuação do ETA voltada para o

radicalismo, distorceu o ideal de independência, sendo que atualmente o grupo é considerado terrorista.

Durante o mês de outubro de 2005 o ETA resolveu entregar suas armas e interrompeu suas atividades.

55

O federalismo, também contribuiu para a resolver o problema da

unidade territorial frente às diversidades regionais. Korand Hesse58, ao analisar o

federalismo alemão, explica que o regime federal não reside tanto no fato de que os

Länder tenham possibilidades de configuração independente e autônoma, como nas

conseqüências da estrutura federal para a configuração e vida de toda a comunidade. O

autor elege a diversidade regional como o fator a ser preservado pelo federalismo.

Com relação ao território, Noberto Bobbio, lembra que no federalismo

a atribuição à União das competências relativas às políticas externa e militar, permitiu

a eliminação das fronteiras militares entre os Estados membros, de modo que a relação

entre eles perdeu o caráter violento e adquiriu um caráter jurídico, sendo que todos os

conflitos passaram a ser resolvidos por um tribunal.59

Portanto, a centralização ou descentralização tem relação direta com a

preservação do território. A organização estadual pode ser centralizada, com um único

ordenamento jurídico aplicável a todo território, ou descentralizada administrativa ou

politicamente, com organismos dotados de autonomia territorial.

O território e o Direito Internacional Público

Uma determinada nação pode subsistir sem território ou se localizar

em território pertencente a outro Estado, contudo, como já dissemos, o território é um

elemento necessário para a configuração do Estado. Assim, apenas por uma ficção

jurídica do Direito Internacional poderia haver o reconhecimento de um Estado sem

58 Benda, Ernst; Maihofer, Werner; Vogel, Hans-Jochen; Hesse, Korand; Heyde, Wolfgang. Manual de Derecho

Constitucional. 2ª Ed. Espanha, Madri: Marcial Pons, Ediciones Jurídicas e Sociales, S.A, 2001, pg. 621. 59 Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino. Dizionario di Política. Itália, Torino: Unione

Tipográfico-Editrice Torinese, 1983, pg. 409

56

território. Nessa situação encontram-se todos aqueles que, apesar de estarem

localizados em determinado território, não exercem poder de império sobre ele e sua

população. Apenas para exemplificar, podemos citar a Santa Sé e a Soberana Ordem

de Malta.

A Santa Sé, a partir dos acordos firmados em 1929 (Acordos de

Latrão, de 11 de fevereiro de 1929), teve o reconhecimento da Itália de sua autoridade

e jurisdição sobre a cidade do Vaticano e o direito de propriedade sobre alguns

imóveis (entre os quais o palácio de Castel Gandolfo). Hoje, admite-se que a Santa Sé

tem status internacional semelhante aos dos Estados. Entretanto, sua capacidade

jurídica internacional limita-se aos assuntos relacionados à persecução das suas

finalidades religiosas.

A Soberana Ordem de Malta teve, em outros tempos, clara soberania

territorial e em sua constituição, um caráter religioso-militar, sendo conhecida pela

denominação de Ordem de São João de Jerusalém.60 A Soberana Ordem de Malta,

depois de seu reconhecimento nos anos cinqüenta pelo Tribunal da Cúria Romana,

passou a gozar de ampla autonomia de organização e movimento, o que lhe permite

assumir compromissos internacionais frente a Estados estrangeiros. Assim, mantém

relações internacionais com mais de 15 Estados, entre os quais estão a Espanha,

Portugal, a Argentina, o Brasil, o Haiti, San Marino e a Santa Sé. Contudo, a posição

de submissão à Santa Sé e a falta de território, restringem a capacidade internacional

da Soberana Ordem de Malta.

60 Segundo Manuel Diez de Velasco, sua história pode ser dividida em quatro períodos: a) o primeiro, em seu

estabelecimento no Sacro Hospital de São João de Jerusalém, entre os anos 1042 a 1310; b) o segundo, com a

ocupação da ilha de Rodas, que pertencia ao Império Bizantino e na qual permaneceu durante dois séculos,

entre os anos 1310 a 1523, sendo que pela Bula Papal de Nicolás V, do ano de 1446, o Grão Mestre da ordem

foi reconhecido como Príncipe soberano de Rodas; c) o terceiro, que se inicia em 1530, quando a Ordem se

transfere para a Ilha de Malta por vontade de Carlos V e lá permanece até 1798, quando é expulsa por

Napoleão, situação que é consolidada por intermédio do tratado de paz de Paris, de 30 de maio de 1814; d) e

o quarto período, que se inicia com a sua expulsão da Ilha de Malta e transferência para a cidade de Roma,

onde ainda se encontra. Instituciones de Derecho Internacional, Tomo I, Espanha, Madrid: Editora Tecnos,

1997. p. 277.

57

58

2 - FORMAS DE ESTADO

Inicialmente, cabe lembrar, que não podemos confundir forma de

Estado (Estado unitário e Estado Federal) com forma de governo (República e

Monarquia) ou com sistema de governo (Presidencialismo e Parlamentarismo).

As formas de governo estão relacionadas ao conjunto de funções por

meio das quais o Estado assegura a ordem jurídica interna. Como nos referimos

anteriormente, é possível identificar duas formas de governo: a República e a

Monarquia.

O sistema de governo significa o processo pelo o qual o governo é

estabelecido dentro da estrutura das formas de governo, e são, em regra, dois tipos:

Parlamentarismo e o Presidencialismo. Apenas para estabelecer uma pequena

diferenciação entre estes dois sistemas, cabe lembrar que o primeiro tem como

principal característica a divisão entre as funções de Chefia de Estado e Chefia de

Governo; enquanto no segundo, o Presidente exerce as duas atribuições

As maneiras pelas quais se estruturam os Estados, mantendo o poder

político centralizado ou descentralizado, leva à classificação quanto às formas de

Estados.

Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho61 em todos os Estados é

possível se verificar uma maior ou menor centralização, ou seja, em todo e qualquer

Estado, o poder é relativamente centralizado. Por outro lado, o autor lembra que como

não existem Estados sem uma relativa centralização, correlativamente, não existem

Estados sem um certo grau de descentralização.

61 Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 1994, pg. 42

59

Assim, a maior ou menor centralização ou descentralização da

atividade de criação do Direito, com suas normas gerais ou individuais, conduz a

classificação das formas de Estado.

Geralmente o critério para adoção de uma ou outra forma de Estado é

motivado por fatores políticos, históricos, sócio-culturais, extensão território, entre

outros. Assim, basicamente, as formas de Estado podem ser classificadas em: Unitário

e Federal.62

Entretanto, a evolução das formas de Estado vem demonstrando que a

simples classificação entre Estado Unitário e Estado Federal encontra-se superada pelo

aparecimento de outras formas de organização territorial tais como: o Estado Regional

e o Autonômico. Além, evidentemente, das variações que os Estados Unitários e

Federais comportam.

A análise do Estado unitário e de suas novas feições demonstra que

em determinadas situações houve uma aproximação mais intensa com o Estado

federal, passando esse a ser, em algumas situações, como é o caso dos Estados

Regionais e Autônomos, adotados pela Itália, em 1947, e a Espanha, em 1978, em

verdadeiro tipo intermediário entre as formas unitária e federal. Neste caso, opera-se

uma descentralização das competências, que deve ser prevista constitucionalmente. A

descentralização não fica a critério do Poder Central, como ocorre na forma simples de

Estado Unitário ou na forma unitária desconcentrada, mas é produto do poder

constituinte.

Além dessas formas de Estado, que são caracterizadas por uma ordem

interna, é possível, no plano Direito Internacional Público, a formação de uma

62 Luiz Alberto David Araujo cita, baseado na doutrina de Pablo Perez Tremps, a existência de outra forma de

Estado conhecida como Regional. Esse Estado é uma forma intermediária entre o Unitário e o Federal, onde

os entes regionais são dotados de autonomia. (Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva,

1998, pg. 158)

60

ordenação internacional de Estados, tais como a Confederação, a União Real e a União

Pessoal.

A Confederação, vista apenas como referência histórica, se caracteriza

pela associação de Estados soberanos, que conservaram integralmente sua autonomia e

sua personalidade internacional e, para certos fins especiais, cedem permanentemente

a uma autoridade central parte de sua liberdade de ação.63 Neste sentido, é importante

lembrar as experiências da Confederação Germânica, da Confederação Suíça e da

Confederação Norte-Americana.

A Confederação tem como instrumento formador um tratado

internacional, celebrado por Estados independentes, livremente associados para

conseguir fins comuns, dentre os quais estão a defesa exterior, a manutenção da

independência interna e externa ou a manutenção da paz, entre os membros que a

compõem.

Normalmente, a Confederação tem personalidade jurídica

internacional, mas isso não significa dizer que a dos Estados-membros seja eliminada.

Na verdade, o que ocorre é que essa personalidade fica limitada nos pontos que foram

convencionados no Pacto Confederativo.

Cabe lembrar, que não se pode confundir Confederação com o Estado

Federal, pois essa última figura é a união de Estados em torno de uma Constituição,

enquanto aquela resulta de um tratado internacional. Além disso, os Estados-membros

da federação, em regra, não possuem personalidade internacional. O Estado federal no

âmbito internacional é unitário, ou seja, a divisão em Estados-membros só tem

importância no plano, já que esses não possuem personalidade jurídica internacional.

63 Hildebrando Accioly e Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva. Manual de Direito Internacional Público. São

Paulo: Editora Saraiva, 1996, pg. 70.

61

Segundo Nguyen Quoc Dinh64 a Confederação de Estados é uma

instituição frágil, pois a maior parte de suas ilustrações tem unicamente um interesse

histórico: ou por ter a Confederação se desmoronado, readquirindo cada Estado

membro a sua plena autonomia (Commonwealth, Comunidade instituída pela

Constituição francesa de 1958, União holandesa – Indonésia: tratava-se de fórmulas

políticas de transição no processo de descolonização); ou por se ter transformado em

Estado federal (Confederação dos Estados Unidos da América do Norte, de 1781 a

1787; Confederação Helvética da Suíça, de 1815 a 1848; Confederação germânica, de

1815 a 1866; e a Confederação da Alemanha do Norte, de 1867 a 1870).

O caso mais recente de Confederação, foi a estabelecida pelo Senegal

e a Gâmbia, conhecida como Confederação Africana Ocidental de Senegâmbia, cujo

governante era o Presidente do Senegal. Pelo tratado dessa Confederação ficou

estabelecido que nas organizações internacionais, ambos os Estados seriam

representados por seus membros, que adotariam uma posição comum. A Senegâmbia

foi dissolvida em 1990.65

A União Real se caracteriza pela associação de Estados, sob a

autoridade de um soberano comum ou chefe de Estado, que embora conservem a sua

autonomia constitucional, perdem personalidade jurídica internacional em favor da

União, constituindo órgão de governo comum aos Estados que dela participam.

Quando a União Real se constituir em forma diversa da monárquica, sob o comando

do mesmo Chefe de Estado e se dê a existência de órgãos governamentais comuns,

haverá uma proximidade à forma federal de Estado.66

64 Nguyen Quoc Dinh, Patrick Daillier e Alain Pellet, op. cit., p. 386. 65 Celso D. de Albuquerque Mello, Curso de Direito Internacional Público, p. 360. 66 André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros. Manual de Direito Internacional Público. Lisboa: 2000, pg.

366.

62

A história registra os seguintes casos de União Real: Polônia e

Lituânia (de 1569 até o fim do século XVIII); Suécia e Noruega (de 1814 a 1905);

Áustria e Hungria (1867 a 1919); Dinamarca e Islândia (1918 a 1944).67

Por sua vez, a União Pessoal se caracteriza pela reunião de dois ou

mais Estados sob a autoridade de um soberano. Assim, a mesma pessoa poderá ser

titular de mais de um trono. São exemplos de União Pessoal a realizada entre Portugal

e Espanha na pessoa dos soberanos da dinastia filipina (1580 a 1640), entre a

Inglaterra e Hanôver (1714 a 1838); entre os países Baixos (Holanda) e Luxemburgo

(1816 a 1890), e entre a Bélgica e o Congo (1885 a 1908).68

Verificadas essas formações de Estados, passemos agora à análise das

principais formas de Estados.

2.1 – Estados Unitários

A forma de Estado Unitário foi regra geral até o aparecimento da

forma Federal. A centralização administrativa, legislativa e política é o traço distintivo

do Estado Unitário, no qual existe um único pólo constitucionalmente capacitado a

produzir normas jurídicas. O Estado Unitário admite, porém, a existência de entidades

descentralizadas, desde que não possuam autonomia, mas ajam por meio de delegação

do órgão central.69

No Estado Unitário é possível a existência de apenas uma esfera de

Poder Legislativo, Executivo e Judiciário. O que demonstra que nesta forma de

67 Hildebrando Accioly e Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva. Manual de Direito Internacional Público. São

Paulo: Editora Saraiva, 1996, pg. 70 68 André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros. Manual de Direito Internacional Público. Lisboa: 2000, pg.

366. 69 Celso D. de Albuquerque Mello, Curso de Direito Internacional Público, p. 360.

63

Estado, geralmente dotado de pequena extensão territorial, há uma centralização

política-administrativa.

A forma unitária de Estado foi adotada pelo Brasil durante o Primeiro

e o Segundo Reinados, sendo que após a Proclamação da República em 1889, a forma

federalista passou a ser a utilizada.

2.1.1 – Características dos Estados Unitários

J.J. Gomes Canotilho70, tendo em vista os elementos históricos e de

direito comparado, define Estado Unitário como aquele que, num determinado

território e para a população que nele vive, tem um suporte único para a estatalidade

(ou estadualidade). O citado autor estabelece, ainda, como características do Estado

Unitário as seguintes:

a) a existência de uma única organização política e jurídica – a qual se

imputa em termos exclusivos a totalidade das competências

tipicamente estatais (p. ex.: representação externa, defesa e justiça);

b) uma única soberania interna e externa, não existindo outras

organizações soberanas colocadas em posição de igualdade como é

o caso da Confederação ou em posição de diferenciação como é o

caso do Estado-membro de uma Federação;

c) imediaticidade das relações jurídicas entre o poder central e os

cidadãos, ou seja, não existem corpos intermediários entre o

cidadão e o poder central;

70 J.J. Gomes Canotilho. op. cit. pg. 337.

64

d) não existe divisibilidade territorial interna, ou seja, não existem

organismos internos dotados de autonomia política. Contudo, cabe

observar que é possível a existência de divisões administrativas

internas, porém sem autonomia política.

As características citadas estão diretamente ligadas à estrutura

centralizada do Estado Unitário, onde se verifica a existência de uma única

organização política. Em oposição a essa forma de Estado, encontramos o Estado

Federal, conforme veremos a seguir.

Não é improvável que essa simetria traçada em características

freqüentemente observadas nos Estados Unitários, possa sofrer variações de acordo

com o modelo interno de cada Estado, levando-se em consideração as suas

particularidades (língua, cultura, costumes, religião, etc) .

Portanto, o Estado Unitário, antes simples, agora comporta uma série

de variantes, a saber: Estado Unitário Simples, Desconcentrado e Descentralizado.

2.1.2 - Estado Unitário Simples

Esse primeiro modelo de Estado é extremamente simples, não

permitindo regiões dotadas de autonomia, sem nenhuma espécie de descentralização

ou desconcentração administrativa e de jurisdição. Essa forma mais simples de Estado

indica que todas as decisões estão concentradas no Poder Central.

A centralização das decisões serviu de base para a formação dos

Estados autoritários, dado o grau dessa centralização. Essa forma de Estado não

contribui para o processo democrático, tendo em vista que não há espaço para que a

população das diversas regiões participe do processo de formação da vontade nacional.

65

Conclui-se, portanto, que o Estado Unitário simples só poderia ter

existência sustentável em pequenos Estados, onde exista identidade de cultura, língua,

costumes, religião, entre outros.

2.1.3 - Estado Unitário Desconcentrado

Muito embora não existam diferentes esferas de poder em nível

central, regional e local, no modelo desconcentrado o poder central mantém órgãos de

representação dentro de divisões territoriais. Esse representante atua em nome do

poder central e pode funcionar como se fosse o próprio poder central.

Assim, mesmo que unitário, o poder central se torna presente junto à

população. Contudo, como cada decisão que atinge população deve ser tomada pelo

poder central observa-se que isso dificulta a resolução dos problemas e aumenta a

burocracia.

No Estado Unitário desconcentrado a divisão do território em regiões

menores é uma de suas características, essas regiões podem ser conhecidas como:

departamentos ou províncias, comunas ou municipalidades e assondissements ou

regionais, dependendo de cada estado a terminologia pode ser variável.

2.1.4 - Estado Unitário Descentralizado

A descentralização como experiência democrática nos Estados

Unitários, vem sendo o modelo mais observado pelas recentes legislações, visando a

acomodação das diversidades regionais.

O Estado Unitário descentralizado pode ser visto como uma evolução

dos Estados Unitários Desconcentrados, que ao longo do tempo passaram a receber

66

competências administrativas transferidas por lei nacional e adquiriram personalidade

jurídica própria. Portanto quanto maior o número de competências administrativas

transferidas ao ente territorial, maior será o grau de descentralização.

Por motivos de diversidades culturais, localização, desenvolvimento,

etc., não é incomum a possibilidade de variação de descentralização entre os entes

territoriais. Assim, Portugal e França, por exemplo, dão um tratamento diferenciado a

determinadas regiões. As ilhas de Açores e Madeira foram classificadas pela

Constituição Portuguesa como regiões autônomas; enquanto que a Guiana Francesa é

considerada como um departamento do Estado Francês.

2.1.5 - Estado Regional

Nos Estados Regionais a descentralização ocorre não só em relação às

competências administrativas, mas também em relação às competências legislativas

ordinárias.

A delegação de competências legislativas e administrativas é

autorizada pela Constituição do Estado e é efetivada por meio de lei nacional.

Assim, a descentralização ocorre de cima para baixo, já que ela parte

do poder central e, portanto, fica a critério desse conceder, reduzir ou ampliar as

autonomias das regiões, ou seja, é o poder central que deve decidir sobre a concessão

de autonomia para as regiões. A Constituição Italiana, por exemplo, previamente

definiu quais regiões seriam consideradas autônomas, sendo permitida a fusão ou

desmembramento destas.71

71 Articolo 131. Sono costituite le seguenti Regioni: Piemonte; Valle d'Aosta; Lombardia; Trentino-Alto Adige;

Veneto; Friuli-Venezia Giulia; Liguria; Emilia-Romagna; Toscana; Umbria; Marche; Lazio; Abruzzi;

Molise; Campania; Puglia; Basilicata; Calabria; Sicilia; Sardegna.

Articolo 132. Si può con legge costituzionale, sentiti i Consigli regionali, disporre la fusione di Regioni esistenti

o la creazione di nuove Regioni con un minimo di un milione di abitanti, quando ne facciano richiesta tanti

67

A decisão de descentralização de determinada região, parece

logicamente, passar pela avaliação do grau de desenvolvimento obtido pela região,

pois somente dessa forma as competências delegadas poderão ser cumpridas sem risco

para a população local. Além desse aspecto, são também fundamentais para a

definição da região: a cultural local, fatores econômicos, a língua, a história, entre

outros.

2.1.6 - Estado Autonômico

O Estado Autonômico foi criação da Constituição Espanhola de 1978,

numa tentativa de manter unidade do Estado Espanhol, que possui um mosaico

cultural e histórico extremamente rico. A Constituição Espanhola reconhece a

existência de quatro línguas oficiais (castelhano, o galego, o basco e o catalão)72, o que

indica uma diversidade cultural enorme. Assim, após um longo período de regime

ditatorial do General Francisco Franco, que durou 36 anos, o desafio era a manutenção

do Estado. Após esse período, houve o restabelecimento da monarquia e a criação dos

Estados Autonômicos.

Nesta espécie de Estado a divisão das regiões ocorre por proposta das

províncias, que devem se unir em regiões, elaborando seus próprios estatutos. Nesses

estatutos, as regiões decidem sobre a assunção de competências. O Parlamento

Consigli comunali che rappresentino almeno un terzo delle popolazioni interessate, e la proposta sia

approvata con referendum dalla maggioranza delle popolazioni stesse. Si può, con l’approvazione della

maggioranza delle popolazioni della Provincia o delle Province interessate e del Comune o dei Comuni

interessati espressa mediante referendum e con legge della Repubblica, sentiti i Consigli regionali, consentire

che Provincie e Comuni, che ne facciano richiesta, siano staccati da una Regione ed aggregati ad un'altra.

http://www.consiglioveneto.it 72 Artigo 3.1. O castelhano é a língua espanhola oficial do Estado. Todos os espanhóis têm o dever de conhecê-la

e o direito de usá-la. 2. As demais línguas espanholas serão também oficiais nas respectivas Comunidades

Autônomas de acordo com seus Estatutos. 3. A riqueza das distintas modalidades lingüísticas da Espanha é

um patrimônio cultural que será objeto de especial respeito e proteção. (www.tribunalconstitucional.es)

68

Nacional que é o responsável pelo controle da autonomia das regiões, aprova ou não o

estatuto que deverá ser aplicado no território da região autônoma.

No caso da Espanha os Estatutos de autonomia são considerados como

a norma institucional de cada Comunidade Autônoma. A Constituição Espanhola de

1978 não estabeleceu um conteúdo fixo das competências destas Comunidades

deixando a cada uma delas a liberdade de assumir, através do próprio Estatuto, aquelas

que considerarem necessárias, dentro dos limites fixados pela Constituição. Entre as

matérias que são atribuídas ao Estado central como competências legislativas e

materiais, encontramos: as relações internacionais, a defesa, a legislação alfandegária e

a tarifária, o comércio exterior, o sistema monetário, as divisas, o câmbio e a

conversão monetária, as finanças gerais e a dívida do Estado. Em todas as matérias que

não sejam da competência exclusiva do Estado central, as Comunidades Autônomas

poderão exercer funções tanto legislativas como executivas. Nas Comunidades

Autônomas existe um órgão executivo e um Parlamento, que legisla sobre as matérias

transferidas do Governo central para o regional. O Poder Judiciário em cada

Comunidade Autônoma é dirigido por um Tribunal Superior de Justiça. Os conflitos

de competência entre as regiões Autônomas e o Governo central, são resolvidos pelo

Tribunal Constitucional do Estado espanhol.

Conforme se verifica, a divisão do Estado Autonômico é realizada de

baixo para cima, ou seja, quem decide sobre a formação da região e do exercício das

competências são as próprias comunidades que compõem a região.

O Estado Autonômico pode ser considerado como uma forma

moderna de conciliar Estados que possuem diferentes culturas, língua, religião, etc.,

como é o caso do Estado Espanhol.

69

2.2 - Estados Federais

O federalismo é a forma de Estado mais complexa e engenhosa já

desenvolvida. Tanto isso é verdade, que a relação federal pode ser observada não só no

plano político-jurídico dos Estados, como também no federalismo de órgãos de

classes, associações culturais ou esportivas ou outras manifestações cooperativas.

Segundo Afonso Arinos de Melo Franco o federalismo tem por

princípio a coordenação de interesses. O impulso originário que determina as várias

tendências do federalismo, desde o político até o associativo, pode ser imputado a uma

única causa: a necessidade de, no funcionamento dos organismos complexos, serem

mais valorizadas as relações de coordenação, do que as relações de subordinação. O

autor esclarece que a coordenação é uma garantia de liberdade, tendo em vista que

toda a centralização tende à subordinação, e, conseqüentemente, à hierarquia e à

disciplina. Realmente, a relação de coordenação faz com que nasça a descentralização.

Quando a descentralização ocorre nos órgãos do Estado temos o princípio da

separação dos poderes, mas quando ocorre no âmbito geográfico ou territorial aí

aparece o fenômeno federativo.73

No pensamento de Norberto Bobbio74, o federalismo, também, é uma

relação de coordenação entre poderes. Segundo o filósofo italiano, o princípio

constitucional sobre o qual se funda o federalismo é a pluralidade de centros de

poderes coordenados entre si, de modo tal que ao governo federal, competente em todo

o território da federação, seja conferida uma quantidade mínima de poderes

indispensáveis para garantir a unidade política e econômica, e aos Estados federais,

competente sobre o próprio território, seja assegurado o poder residual.

73 Afonso Arinos de Melo Franco. Curso de Direito Constitucional Brasileiro. Vol. I. São Paulo: Revista

Forense, 1968, pg.137/139 74 Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino. Dizionario di Política. Itália, Torino: Unione

Tipográfico-Editrice Torinese, 1983, pg. 409.

70

A conseqüência da distribuição de competência entre uma pluralidade

de centro de poderes independentes e coordenados, é que as partes territoriais e os

indivíduos ficam submetidos a dois centros de poderes distintos, um central e outro

estadual ou provincial.

Para Bobbio a diferença ente o Estado Federal e o Estado unitário –

Stato nazionale – é que esse último tende a homogeneidade das comunidades

existentes em seu território, impondo a todos os cidadãos a mesma língua e os mesmo

costumes, sendo fortemente limitado.

Na Europa, em fevereiro de 1863, a forma federal surgida no século

XVIII, ganha um de seus maiores defensores, o pai do anarquismo, Pierre-Joseph

Proudhon, que publica o livro Du principe fédératif. Em uma aparente contradição, os

ideais do anarquismo evoluem para o federalismo que, segundo o seu autor, seria a

base do direito das gentes da Europa e mais tarde da organização de todos os Estados.

O pai do anarquismo entendia que o unitarismo era retrógrado e não produzia a

igualdade entre os indivíduos. O federalismo era a fórmula pela qual haveria a união

dos grupos humanos de afinidades nacionais sem serem absorvidos.

A idéia de Proudhon, levada pela política externa da Europa, era

substituir as relações recíprocas entre indivíduos da anarquia, pelas relações recíprocas

entre grupos. A federação deveria unir os grupos sem absorvê-los.75

O federalismo surgiu muito antes de Proudhon ser contagiado por sua

fórmula. Segundo Karl Loewenstein76, as uniões de Estados do tipo federal já haviam

75 J.J. Chevallier. El federalismo de Proudhon y de sus discípulos. El federalismo. G. Berger, J.J. Chevallier, CH.

Durand. Espanha, Madrid: Editorial Tecnos S.A., 1965, pg. 92. 76 Karl Loewenstein ao trata dos meios de controle do poder, classifica o federalismo, ao lado dos direitos e

garantias individuais e do partidarismo ou pluralismo, constituem três classes de controles verticais. Para o

autor, muito embora, possam essa três categorias parecer heterogênea, não são, pois o federalismo e os

direitos e garantias individuais estão institucionalizados, enquanto que o pluralismo é uma manifestação

71

existido anteriormente: na antiga Grécia, as ligas ou sinoikias délica, anfictiónica,

helênica e aquea; a “aliança eterna” (ewige Bund) dos cantões suíços desde os séculos

XIV e XV; a União de Utrecht (1569) entre as sete províncias nortes dos Países

Baixos. Porém, nenhuma foi considerada um autêntico federalismo, em parte pela

ausência de órgãos comuns com jurisdição direta sobre os cidadãos dos Estados

associados e em parte pela preponderância de um dos membros.

Contudo, o Estado Federal nasce sob a inspiração da união das treze

colônias britânicas na América, no século XVIII. A nova forma de Estado possibilitava

a manutenção da autonomia das colônias e assegurava o controle das competências

deferidas à União. Além disso, questões relacionadas à segurança, aos vínculos de

ligação dos povos e ao desenvolvimento de um Estado forte, foram fundamentais para

a união das citadas colônias em torno de um único Estado que foi formado por meio de

uma Constituição.

Essa união de Estados soberanos se inicia a partir da tentativa de se

criar uma Confederação de Estados, materializada por meio de um tratado

interestadual, denominado de “Artigos de Confederação”, aprovado em 1.777 por um

Congresso Continental.77

O Federalismo americano começa a tomar forma a partir da

Convenção Federal que se iniciou em 17 de setembro de 1787 e suspendeu seus

trabalhos em 25 de maio do mesmo ano. A Convenção enviou ao Congresso Federal o

projeto de uma Constituição, sugerindo que o documento fosse submetido às

convenções de cada um dos Estados. 78

sociológica e, portanto, metajurídica. Teoria de la Constituicion. Espanha, Barcelona: Editorial Ariel, 1976, pg.

353/354. 77 Luiz Alberto David Araujo. op. cit. pg. 159. 78 Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, O federalista. Brasília: Fundação Universidade de Brasília,

1984, pg. 11.

72

Durante as discussões sobre a adesão à nova Constituição, entre 1787

e 1788, artigos publicados por Alexander Hamilton com a participação de James

Madison e John Jay, discutiam a nova forma de Estado proposta. A reunião desses

artigos, publicados na imprensa de Nova York, originaram uma única obra intitulada

The Federalist, em 1788, sendo que essa teve como objetivo principal contribuir para

que os Estados ratificassem a Constituição proposta pela Convenção Federal. “O

Federalista” proporcionou o início das discussões sobre a crítica à Confederação que

não tinha poderes para exigir o cumprimento das leis, já que a aplicação e punição

ficavam a cargo dos Estados.79

A ratificação pelos Estados da Constituição proposta pela Convenção

Federal, implicou no reconhecimento do pacto federativo e abdicação da soberania

conquistada por aqueles. Contudo, pode-se afirmar que na idéia de federalismo reside

um forte conteúdo autonomista, remanescente da soberania que cada Estado

confederado perdeu, quando houve a criação do Estado Federal Americano.80

Os objetivos traçados pelos autores de “O Federalista” (Alexander

Hamilton, James Madison e John Jay, que se identificavam nos artigos publicados pelo

nome de Publius) foram alcançados, ou seja, conseguiram demonstrar que a

Constituição proposta era mais vantajosa que os “Artigos de Confederação”.81

79 Janice Helena Ferreri Morbidelli.Um novo pacto federativo para o Brasil. São Paulo: Celso Bastos Editor:

Instituto de Direito Constitucional, 1999, pg. 25. 80 Luiz Alberto David Araujo. op. cit. pg. 160. 81 Hamilton esperava contribuir para a ratificação da Constituição, particularmente no Estado de Nova Iorque,

muito embora esperasse que ela fosse lida e adotada por outros Estados. Quando o primeiro artigo foi

publicado no Independet Journal, a 27 de outubro de 1787, ainda nenhum Estado havia ratificado a

Constituição. Três o fizeram em dezembro (Delaware, Pensilvânia e Nova Jersey), dois em janeiro (Georgia e

Connecticut), um fevereiro (Massachusetts) e um em abril (Maryland). Quando foi publicado o segundo

volume de “O Federalista”, sete Estados já haviam ratificado. A ratificação do oitavo (Carolina do Sul)

ocorreu em 23 de maio de 1788, sendo que a do nono e décimo (New Hampshire e Virgínia) em junho do

mesmo ano. (Alexander Hamilton. Op. cit., pg. 20.)

73

O federalismo no modelo originado nos Estados Unidos buscava a

conciliação das vontades parciais, representadas pelos Estados, e a criação de um

poder central.

A Constituição norte-americana não contém um capítulo dedicado à

organização federativa, sendo que essa decorre da organização dos poderes federais –

o Congresso, o Executivo e o Judiciário. Da mesma forma, a Constituição norte-

americana não estabelece quais são as competências da federação por meio de um

sistema de lista geral, sendo que essas são deduzidas das competências outorgadas ao

Congresso Nacional.82

Portanto, a organização dos poderes acabou por delimitar, de forma

explícita ou implícita, os limites da competência do Governo nacional, por meio das

competências do Legislativo, e dos Governos estaduais de forma residual de acordo

com a Décima Emenda, estabelecendo, dessa forma, a dualidade governamental.

As limitações referentes aos Estados encontram-se dispostas na

Constituição norte- americana no artigo 1º, seção X, cláusulas 1, 2 e 3; artigo 4º, seção

I e II, cláusula 1º e seção III, cláusula 2 e nas emendas constitucionais, especialmente

na 14ª e 15ª.83

82 O modo de definir as competências do ente federal e de seus componentes da forma como foi feita pela

Constituição americana é arcaico para as Constituições modernas, que distinguem o que a divisão horizontal

de poderes, regulando separadamente o Legislativo, Executivo e Judiciário, deixando a margem a separação

vertical das instâncias territoriais de poder. Ana Izabel Sanchez Ruiz. Federalismo y integracion européia: la

distribuicion de competências alemã y comunitaria. Espanha, Bizkaia: Instituto Vasco de Administracion

Publica, 1997, pg 22. 83 Art.1º (...) Seção X

1. Nenhum Estado poderá participar de tratado, aliança ou confederação; conceder cartas de corso; cunhar

moeda; emitir títulos de crédito; autorizar, para pagamento de dívidas, o uso de qualquer coisa que não seja

ouro e prata; votar leis de condenação sem julgamento, ou de caráter retroativo, ou que alterem as obrigações

de contratos; ou conferir títulos de nobreza.

2. Nenhum Estado poderá, sem o consentimento do Congresso, lançar impostos ou direitos sobre a importação

ou a exportação salvo os absolutamente necessários à execução de suas leis de inspeção; o produto líquido de

74

Essas limitações subtraíram as prerrogativas dos Estados confederados

soberanos, mas não tocou na organização interna dos Estados-membros.84 Todavia

com o passar dos anos, conforme já foi mencionado, o federalismo clássico e dualista

acabou cedendo lugar a uma série de alterações, motivadas por pressões políticas,

crises econômicas, conflitos e modificações tecnológicas, passando a ser conhecido

como um novo federalismo (new federalist).

A principal mudança do federalismo americano ocorreu durante o

período do Presidente Franklin Roosevelt, em virtude da crise de 1929. Nessa

oportunidade, os poderes federais foram expandidos, principalmente, no tocante ao

poder discricionário do Presidente da República, previsto no artigo 2º da Constituição

Federal.85 Essa alteração não foi fruto de uma mudança constitucional, mas de uma

progressiva expansão das atuações federais sobre o campo de atuação dos Estados-

todos os direitos ou impostos lançados sobre um Estado dobre a importação ou exportação pertencerá ao

Tesouro des Estados Unidos, e todas as leis dessa natureza ficarão sujeitas à revisão e controle do Congresso.

3. Nenhum Estado poderá, sem o consentimento do Congresso, lançar qualquer direito de tonelagem, manter em

tempo de paz exércitos ou navios de guerra, concluir tratados ou alianças, quer com outro Estado, quer com

potências estrangeiras, ou entrar em guerra, a menos que seja invadido ou esteja em perigo tão iminente que

não admita demora. (...)

Art. 4º (...) Seção I

Em cada Estado se dará inteira fé e credito aos atos públicos, registros e processos judiciários de todos os outros

Estados. E o Congresso poderá, por leis gerais, prescrever a maneira pela qual esses atos, registros e

processos devem ser provados, e os efeitos que possam produzir.

Seção II

1. Os cidadãos de cada Estado terão direito nos demais Estados a todos os privilégios e imunidades que estes

concederem aos seus próprios cidadãos. (...)

Seção III

1. O congresso pode admitir novos Estados à União, mas não se poderá formar ou criar um novo Estado dentro

da Jurisdição de outro; nem se poderá formar um novo Estado pela união de dois ou mais Estados, ou de

partes de Estados, sem o consentimento das legislaturas dos Estados interessados, assim como o do

Congresso.

2. O Congresso poderá dispor do território e de outras propriedades pertencentes ao governo dos Estados Unidos,

e quanto a eles baixar leis e regulamentos. Nenhuma disposição desta Constituição se interpretará de modo a

prejudicar os direitos dos Estados Unidos ou de qualquer dos Estados. 84 Alexander Hamilton. Op. cit., pg. 16. 85 Janice Helena Ferreri Morbidelli. op. cit. pg. 28

75

membros, o que foi reconhecido pela Suprema Corte Americana. Como veremos, a

Suprema Corte em seu papel de órgão controlador das competências constitucionais,

prestigiou o poder central em detrimento dos Estados membros.

Além disso, é importante lembrar que após a Segunda Guerra Mundial

os Estados Unidos assumiram importante posição de liderança mundial sob o aspecto

econômico e no tocante à manutenção da paz mundial. Nesse contexto, o novo

federalismo conduziu a centralização dos poderes do governo federal em prejuízo dos

Estados e a canalização de recursos para área militar.

Karl Loewenstein ao comentar o federalismo americano, baseado nas

decisões da Suprema Corte Americana, demonstrou que a supremacia federal

praticamente ruiu a forma federal concebida inicialmente. O autor aponta seis motivos,

que pedimos vênia para citar, tendo em vista a atualidade dos mesmos, muito embora,

essa análise tenha sido feita na década de setenta, do século passado:

1 – O presidente se converteu em um dos pilares mais poderosos de

todo o poder político. O caráter federal do colégio eleitoral desapareceu por completo

e o presidente é eleito pelo voto da totalidade do eleitorado sob a ação dos partidos

nacionais. A elevação do Presidente a categoria de líder político debilitou a

importância dos Estados membros no processo político.

2 – O Senado perdeu seu caráter inicial de protetor dos Estados

membros, sendo a voz dos partidos nacionais;

3 – Como conseqüência da industrialização e do crescimento das

cidades, o particularismo perdeu sua qualidade original de representante das unidades

territoriais unidas sócio-economicamente, porém com diferenças essenciais entre si.

4 – A erosão da soberania estatal se acentuou com a crescente

dependência da maior parte dos Estados das subvenções federais.

76

5 – Os partidos políticos desenvolveram suas atividades em nível

nacional, transformando a política regional em um acesso à política nacional.

6 – Todos os grupos restantes da sociedade americana – patronato,

sindicatos, associações profissionais e burocráticas – estão igualmente organizados em

nível nacional.

Neste sentido, o resultado da acumulação desses fatores

centralizadores, determinaram um processo de erosão e retrocesso do federalismo

americano, antes dual e sinônimo de afirmação da autonomia dos Estados-membros,

concluiu o citado autor.86 87

A tendência centralizadora pode levar ao “federalismo unitário88”,

marcado pela presença de todas as características do federalismo, o que indica a sua

adoção pelo Estado, mas com uma distorção excessiva da distribuição de competências

em favor do poder central.

86 Karl Loewenstein. op. cit. pg. 362 a 364 87 Para demonstra a atualidade desse raciocínio, após os ataques de 11 de setembro de 2002, que apresentaram os

Estados Unidos como as grandes vítimas do terrorismo mundial, o Congresso Nacional Americano, com

medo de não ser considerado patriota, deu carta branca ao Governo Federal para que fossem tomadas todas as

medidas necessárias ao combate dos inimigos da nação. Assim, o Governo George W. Bush realizou uma

série de medidas que concentraram ainda mais os poderes do Governo Federal. As medidas tomadas pelo

Governo Federal custaram inclusive a restrição das liberdades individuais, muito prezada pelo povo

americano. Assim, não foram incomuns as perseguições individuais, escutas telefônicas, controle dos e-mails

e comunicações em geral, sem que as pessoas atingidas fossem previamente avisadas. Cortes militares foram

criadas para julgar possíveis terroristas, que se mantiveram incomunicáveis no cárcere. Recentemente o

mundo ficou aterrorizado com o tratamento que os Estados Unidos dispensou aos prisioneiros de guerra nas

prisões da Base de Guantânamo, onde crianças e jovem estão recolhidos (Jornal O Estada de São Paulo, ed.

de 10 de outubro de 2003). No Iraque os americanos passaram a torturar prisioneiros recolhidos em Abu

Gharib. (O Estado de São Paulo, ed. 30 de abril de 2004) 88 Expressão utilizada por Raul Machado Horta. (Raul Machado Horta. Direito Constitucional. Belo Horizonte:

Ed. Del Rey, 2002, pg. 311)

77

2.2.1 - Movimento de formação do federalismo

Como vimos anteriormente, o federalismo, por sua envergadura

histórica e sociológica, é uma tendência natural de organização social, sendo por isso,

mais amplo do que qualquer ordem jurídica ou mesmo política, tendo como impulso

inicial a necessidade de, no funcionamento dos organismos complexos, serem mais

valorizadas as relações de coordenação, do que as relações de subordinação.89

Em atenção a essa relação de coordenação de organismos complexos,

o movimento de formação de Estados federais pode ocorrer pela união de Estados

soberanos, ou pela divisão interna de um Estado originariamente unitário,

acompanhada de descentralização das competências. No primeiro caso, a criação do

Estado poderá conduzir a adoção de um federalismo centrípeto ou federalismo por

agregação ou associação, já que os Estados-membros perdem competências para

União, o que demonstra o fortalecimento do poder federal. No segundo caso, o

movimento de competências é em favor dos Estados-membros, ou seja, competências

antes exercidas de forma exclusiva pelo Estado unitário são entregues aos Estados-

membros que foram formados, esse tipo de federalismo é conhecido como centrífugo

ou por segregação.

No federalismo centrípeto os Estados soberanos perdem soberania ao

ingressarem no Estado federal, desaparecendo do cenário internacional. A reunião em

torno de uma única Constituição é feita por meio de adesão dos Estados soberanos,

que firmam o pacto federativo. Geralmente, esse federalismo surge a partir de um

movimento confederativo, que evolui para uma união definitiva. Neste sentido, o

federalismo centrípeto é originário da vontade dos Estados. Nos Estados Unidos, como

vimos anteriormente, o movimento de formação do federalismo se originou a partir da

Convenção da Filadélfia.90

89 Ver item 2.2 - Estado Federal. 90 Na Europa, o movimento de integração poderia conduzir à formação de uma federação. Contudo, o processo

de integração ainda se encontra em plena expansão.

78

Na formação da federação por meio da união de Estados soberanos, os

ordenamentos jurídicos primitivos dos Estados-membros são recepcionados,

mantendo-se válidos dentro do território daqueles, desde que não confrontem com a

Constituição Federal.

O processo de formação de uma federação a partir de um Estado

unitário, é uma transformação estrutural desse Estado, que concede autonomia à

regiões internas, que passam a ter status de Estados-membros. Na verdade, o processo

é uma imposição do poder central, não havendo espaço, salvo ruptura total do Estado

unitário anterior, para opção de fazer ou não parte do Estado Federal. Os Estados

membros ganham competências para criar o próprio ordenamento jurídico,

inaugurando uma nova ordem jurídica parcial.

No Brasil a Constituição de 1891 emancipou as antigas Províncias do

Império à condição de Estados-membros da federação, afirmando a união

indissolúvel.91

2.2.2 – Federalismo dual e federalismo contemporâneo

As técnicas de organização do Estado Federal variaram com o tempo e

com as transformações ocorridas na estrutura dos Estados. Portanto, não é exigível,

tendo em vista a dinâmica política e histórica, a instauração e permanência de um

único modelo de federalismo. Até mesmo a matriz original do federalismo americano

passou por transformações como veremos a seguir.

91 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Título I – Da Organização Federal – Art 1º - A

Nação brasileira adota como forma de Governo, sob o regime representativo, a República Federativa,

proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por união perpétua e indissolúvel das suas antigas

Províncias, em Estados Unidos do Brasil.

Art 2º - Cada uma das antigas Províncias formará um Estado e o antigo Município Neutro constituirá o Distrito

Federal, continuando a ser a Capital da União, enquanto não se der execução ao disposto no artigo seguinte.

79

Como vimos anteriormente, a formação do Estado Federal pode

determinar a adoção de um federalismo centrípeto ou de um federalismo centrífugo,

que são espécies de federalismo, classificadas de acordo com a agregação ou

segregação de competências.

Assim, na seqüência vamos analisar as espécies de federalismo dual e

contemporâneo, que estão relacionadas à divisão de competências entre a União e os

Estados-membros e a interferência daquela dentro deste.

Segundo Raul Machado Horta92, em função do tempo, o federalismo

evoluiu de um tipo originário, o chamado federalismo dualista, para outro tipo mais

recente, o federalismo contemporâneo ou novo federalismo ou federalismo

cooperativo.

O federalismo dualista surgiu nos fins do século XVIII e identificou-

se com os objetivos antiintervencionistas do Estado liberal, sendo que seu declínio

coincide com o declínio dessa filosofia governamental. Enquanto que o federalismo

contemporâneo ou novo federalismo surgiu com o aparecimento do Estado

intervencionista, a fim de proporcionar a esse uma nova repartição de competências,

funcionalmente vinculada aos objetivos econômicos e sociais do intervencionismo.

Nos Estados Unidos a política do New Deal, no período de Franklin Roosevelt,

assinalou o fim do federalismo dualista e inaugurou o federalismo contemporâneo.

A Constituição Americana de 1787, sob os postulados liberais de

defesa da autonomia do indivíduo frente ao poder político, apresentava uma clara

divisão de poderes de forma horizontal entre o Legislativo, o Executivo e Judiciário,

por meio de um sistema de “checks and balances”, sob a influência da separação de

92 Raul Machado Horta. Perspectivas do federalismo brasileiro: Problemas do federalismo. Minas Gerais:

Imprensa da Universidade de Minas Gerais, 1958, pg. 20.

80

poderes de Montesquieu93. Nesse contexto, a forma federal dual inaugural

caracterizava-se por uma divisão clara e rígida entre as competências do governo

central e as dos governos estaduais. O governo federal funcionava como um órgão que

cuidava dos interesses dos Estados no âmbito internacional. Tal situação pode ser

verificada pela pouca importância que tinha a figura do Presidente. Na verdade,

qualquer Governo de Estado tinha mais prestígio que o Presidente da República.94

Essa situação ocorria por causa do recente processo de independência que tinha

atravessado os Estados-membros e a importância que tinham adquirido os dirigentes

desses.

A idéia no federalismo dual prendia-se à manutenção da

independência conquistada pelos Estados-membros, só que revestida, neste caso, de

autonomia.

Portanto, o federalismo dual poderia ser fator de patrocínio da

desigualdade de desenvolvimento entre os Estados, já que cada membro da federação,

dotado de alto grau de autonomia, poderia exercer suas competências de maneira

independente.

Ocorre que, o avanço da concretização dos direitos sociais, passando a

ser responsabilidade do Estado, exigiu um grau maior de intervenção estatal. Inaugura-

se o federalismo moderno ou cooperativo (new federalism), onde a divisão de

competências não impede a cooperação e reconhecimento de competências comuns,

visando sempre à efetivação dos direito sociais.

93 Ana Isabel Sanchez Ruiz. Federalismo e integracíon europea. La distribución de competencias en los sistemas

alemán y comunitario. Espanha, Biskaia: Instituto Vasco de Administración Pública. 1997, pg. 22. 94 Como já mencionamos, o Presidente Jefferson costumava dizer “o americano somente sente a existência do

poder central, quando parte o selo federal do seu cigarro ou desembarca suas malas na alfândega”, tendo

chegado ademais a afirmar que o governo da União não era senão o Departamento de Relações Exteriores

dos Estados. Assis Chateaubriand. Discurso no Senado Federal, sessão de 27 de julho de 1955. apud Paulo

Bonavides. Ciência Política. São Paulo: Editora Malheiros, 2005, pg. 98. Ver item 1.2.3. Governo: Formas

de Governo

81

No federalismo de cooperação temas antes tratados de forma isolada,

no âmbito de cada Estado-membro, passam a ser considerados como de interesse

nacional.

Um dos marcos de modificação para o federalismo de cooperação foi

a implantação, depois da primeira guerra mundial, da política de governo do New

Deal.

Em 1932, Franklin Roosevelt foi eleito presidente dos Estados

Unidos, encontrando o povo em situação desesperadora: milhões de desempregados ,

famílias inteiras sem abrigo e sem alimentos, e até os altos círculos financeiros

inseguros e desorientados.95 Inicia-se, então, a política de intervenção, visando à

recuperação da economia, restauração dos meios de produção, geração de empregos,

entre outros.

Segundo Bernard Schwartz, o “New Deal” produziu uma completa

negociação na política do laissez-faire, ao postular um grande controle governamental

por parte de Washington, que era muito maior que o utilizado pelo sistema americano.

Em seu discurso de posse Roosevelt sintetizou: “temos que movermos como um

exército organizado, treinado e leal, pronto a se sacrificar pelo bem de uma disciplina

comum, já que sem dita disciplina não se pode conseguir progresso algum e nenhuma

liderança será efetiva.”96

O federalismo de cooperação, portanto, foi idealizado com a

finalidade de atender as exigências do Estado Social, promovendo de forma

interdependente a redução das desigualdades regionais.

95 Dalmo de Abreu Dallari. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Editora Saraiva, 1994, pg. 236. 96 Bernard Schawartz. El federalismo norteamericano actual. Trad. Juan Manuel Ruigómez. Espanha, Madrid:

Editorial Civitas, S.A., 1984, pg. 46.

82

O federalismo de cooperação norte-americano pode ser ilustrado nos

planos legislativo, organizacional e financeiro. No plano legislativo foram criadas as

técnicas de: legislação recíproca (reciprocad legislation) pela qual dois ou mais

Estados ajustam concessões recíprocas; a legislação uniforme (uniform legislation) na

disciplina de matéria de interesse comum; e a legislação paralela (parallel legislation)

quando dois ou mais Estados promulgam, simultaneamente, uma lei com idêntica

finalidade e conteúdo. No plano organizacional situam-se os mecanismos de relação

entre o Governo Federal e os Governos Estaduais, como: o Conselho dos Governos

Estaduais (Council of States Government), criado em 1933, do qual participam os

Estados-membros; a Conferência dos Governadores (Governor’s Conference),

formada pelos Governadores dos Estados; a Conferência Nacional para Uniformidade

das Leis Estaduais (National Conference of Comissioners on Uniform States Law). No

plano da cooperação financeira, entre os anos de 1915 e 1919 os subsídios federais

convergiam para a educação, sem alcançar os setores da agricultura, saúde, socorro e

bem-estar. A partir de 1925, sob a presidência de Franklin Roosevelt, a ajuda

financeira federal foi ampliada abrangendo subsídios de emergência (emergency

grants) e subsídios ordinários (regular grants).97

Neste ponto pedimos licença para lembrar, que no Brasil, onde as

desigualdades regionais são enormes, o federalismo de cooperação apresenta-se mais

visível no plano financeiro. Em nosso país, parece ser regra dominante que Estados-

membros e municípios complementem seus orçamentos com transferências realizadas

pelo Governo Federal. Recentemente, a União estabeleceu a política de

refinanciamento das dívidas dos Estados, Distrito Federal e Municípios, visto a falta de

recursos próprios e o endividamento desses entes federais.

Voltando à análise, outra situação importante a ser observada em

relação ao federalismo, se refere à padronização de característica a partir de um

modelo definido inicialmente. Neste sentido, aparecem as figuras do federalismo

simétrico e do federalismo assimétrico.

97 Raul Machado Horta. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, pg. 485/486.

83

O federalismo simétrico pressupõe a existência de características

dominantes previamente estabelecidas. Assim, a partir de um modelo inicial

poderíamos padronizar as forma de federalismo, ou seja, para que um Estado seja

considerado federal, são necessários: dois níveis de governo, separação de

competência entre esses níveis de governo, competência para obter receitas, legislativo

bicameral, constituição rígida, etc.

Por outro lado, a ruptura desse modelo prévio com a manutenção de

características mínimas, significa a existência de um federalismo assimétrico.

Poderíamos considerar como assimetria a existência de três níveis de governo (União,

Estados e Município), como é o caso do Brasil, em relação à regra que determina que

no federalismo só são permitidos dois níveis de governo.

Portanto, verificaremos agora a simetria e assimetria das formas de

Estado, em seguida faremos a análise das características comuns do federalismo, que

indicam a existência do federalismo simétrico.

2.2.3 – Formas Simétricas e Assimétricas de Federalismo

Como já nos referimos anteriormente, o federalismo simétrico é o

correspondente à forma onde se observam características uniformes ao modelo

dominante, enquanto no federalismo assimétrico não há uma sistematização rigorosa e

as características básicas acabam sendo ajustadas de acordo com as condições

especiais de cada Estado.

A formação do federalismo foi resultado de um processo

constitucional histórico de sedimentação de suas características. Ao longo das

experiências federalistas foram se agrupando características que identificam as bases

para essa forma de Estado.

84

Segundo Raul Machado Horta essas particularidades, extraídas da

construção constitucional, em processo cumulativo de experiências sucessivas, ao

longo da existência da forma federal, autorizam conceber como tipo concreto de

federalismo simétrico, aquele que decorrer da introdução na respectiva Constituição

Federal dos seguintes instrumentos, órgãos e técnicas: (a) composição plural do

Estado; (b) repartição de competências entre o Governo Central e os Governos Locais,

abrangendo legislação e tributação; (c) a intervenção federal nos Estados-membros,

para preservar a integridade territorial, a ordem pública e os princípios constitucionais

da Federação; (d) Poder Judiciário dual, repartido entre União e os Estados, assegurada

a existência de um Supremo Tribunal / Suprema Corte, para exercer a função de

guarda da Constituição, resolver questões de conflito de competências e oferecer a

interpretação conclusiva da Constituição; (e) poder constituinte originário, com sede

na União, e poder constituinte derivado, com sede nos Estados-membros, que

corresponde à fonte de auto-organização e da autonomia desses ordenamentos parciais;

(f) organização bicameral do Poder Legislativo, com representantes do povo e

representantes das unidades federadas.

A reunião das principais características indica a existência de adoção

de um federalismo simétrico pelo Estado. Contudo, não é presumível que exista uma

unidade de forma a ser adotada por todos os Estados, tendo em vista a pluralidade de

experiências federais de cada Estado.

Assim, ao longo da história de formação do federalismo a

consolidação das características foi cedendo lugar a pequenas alterações, que se por

um lado não comprometeram sua configuração, por outro produziram formas

derivadas.

Para Raul Machado Horta98 essas alterações são rupturas nas linhas

definidoras, que tanto podem consistir em deformações no estilo e nas regras federais,

98 Raul Machado Horta. . Direito Constitucional. 3ªed. Minas Gerais, Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2002,

pg. 495

85

em razão do funcionamento do sistema federal, como em criações novas, estranhas ao

conjunto identificador do federalismo simétrico.

A Constituição brasileira de 1988, ao introduzir o Município como

ente federal, adotou uma posição assimétrica àquela que determina que o Estado

federal deve ser constituído por duas ordens de Governo.

Outra regra que pode ser considerada assimétrica é a do artigo 18, que

qualifica a União de ente autônomo, por equiparação aos Estados, ao Distrito Federal e

aos Municípios. A simetria federalista, indica que a autonomia é atributo dos Estados,

pois corresponde a capacidade de auto-organização, auto-administração e auto-

legislação. A União não tem autonomia mas, sim, soberania, pois é a responsável pelo

exercício das competências do Estado Federal.

A atribuição de autonomia à União é um traço de federalismo

assimétrico, pois a União acabou sendo comparada aos Estados-membros, sob esse

aspecto.

Como se verifica, a modificação de algumas das características do

federalismo não desqualifica essa forma, desde que mantidas as regras matrizes de sua

existência, tais como: a divisão de governo em níveis, a distribuição de competências

com a autonomia das unidades federadas, a união dos Estados–membros em torno de

uma mesma constituição rígida.

2.2.4 - Características do Estado Federal

Muito embora, possa existir uma série de variações de Estados

federais – conforme se verifica pela existência do federalismo simétrico e do

federalismo assimétrico – e, já que até mesmo o modelo inaugural americano passou

86

por várias transformações, ainda é possível a identificação de certas características

comuns.

Essa possibilidade de adaptação do federalismo, que se deve à

flexibilidade de suas característica, fez com que ele pudesse ser adotado por diferentes

modelos de Estado e nos mais variados momentos históricos.

O federalismo nasceu no contexto do liberalismo clássico, do État-

gendarme, chegando até o Welfare State onde provou, também, ser eficiente ante a

necessidade de políticas intervencionistas desse Estado.99

Ao longo da histórica do federalismo suas características foram,

gradativamente, sendo adaptadas. Assim, analisaremos agora as principais

característica do federalismo, tais como: a dualidade de ordens governamentais;

igualdade entre os entes federados; repartição de competências e de rendas; Poder

Legislativo representativo das unidades; indissolubilidade do vínculo e intervenção;

Constituições estaduais; Poder Judiciário federal com poderes para de controle de

constitucionalidade.

a) dualidade de ordens governamentais e sua coexistência.

A dualidade de ordens governamentais é uma das principais

características do Estado Federal, já que esse é a forma de Estado onde coexistem

ordens governamentais internas referentes ao todo, como se existisse um Estado

unitário, e ordem parcial dos Estados-membros.

Essa dualidade de ordens governamentais traz consigo a idéia de auto-

governo de cada uma delas, ou seja, são dotadas de órgãos próprios com capacidade

para colocar em prática as políticas locais e a central.

99 Fernanda Dias Menezes de Almeida. Competências na Constituição de 1988. pg. 33.

87

A divisão do Estado em subsistemas políticos aproxima a estrutura

governamental do cidadão, propiciando uma maior participação política e atendimento

das necessidades da população.

Segundo Reinhold Zippelius, em unidades descentralizadas é muito

maior a probabilidade das relações entre custos e benefícios, beneficiários e

contribuintes de prestações públicas, se tornarem mais transparentes e previsíveis para

os interessados, aos quais deverá caber, neste contexto, um máximo de participação

responsável na decisão sobre a distribuição dos bens e encargos públicos.100

A existência de dois níveis de governo favorece a diversidade das

forças políticas, abrindo aos partidos políticos minoritários a oportunidade de obterem

a maioria dentro do Estado componente da federação e, a partir disso, conseguirem

projeção nacional ou conseguirem atingir o poder dentro da unidade federada.

Historicamente, verificou-se que o federalismo surgiu a partir da

existência de Estados soberanos reunidos em torno de uma única Constituição, com o

objetivo de manterem a autonomia conquistada por um processo de independência.

Dessa forma, a existência de dois níveis de governo, foi a solução encontrada para

manutenção da autonomia dos Estados-membros.

No ato de surgimento do federalismo de forma centrípeto os Estados-

membros renunciam a soberania conquistada, a fim de que essa seja exercida

unicamente pelo Estado federal. Contudo, cabe observar, que o federalismo surgido

por movimento centrífugo, onde um Estado unitário internamente se subdivide em

vários Estados-membros, não se pode dizer que esses abriram mão da soberania

conquistada, já que essa situação ocorre por vontade do poder central.

Segundo Fernanda Dias Menezes de Almeida, utilizando-se da citação

de Giorgio Del Vecchio, de que o Estado federal equivale a um “suicídio de Estados”,

100 Reinhold Zippelus. Teoria Geral do Estado. Portugal, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, pg. 506

88

a soberania passa a ser apanágio exclusivo daquele, sendo essa a primeira nota

distintiva da Confederação. Desfrutam os Estados-membros de autonomia, ou seja,

capacidade de autodeterminação dentro do círculo de competências traçado pelo poder

soberano, que lhes garante auto-organização, autogoverno, autolegislação e auto-

administração, exercitáveis sem qualquer subordinação hierárquica dos Poderes

estaduais aos Poderes da União.

Anna Cândida da Cunha Ferraz afirma que a inexistência de qualquer

um desse quatro aspectos da autonomia dos Estados-membros é suficiente para

desqualificar uma unidade federada.101

a) Capacidade de auto-organização

A capacidade de auto-organização pode ser traduzida pela existência

de Constituições Estaduais, que estruturam a organização do Estado-membro. As

Constituições Estaduais tem seu nascimento previsto na Constituição Federal, o que

investe os congressistas estaduais do chamado Poder Constituinte Decorrente. Esse

poder deve obedecer aos limites e condições definidas na Constituição Federal.

Nesse sentido, o Poder Constituinte Decorrente é uma espécie de

Poder Constituinte Derivado que, assim como esse, apresenta as mesmas

características de limitação e condicionamento, materializados pelo dever genérico de

observância dos princípios contidos na Constituição Federal.102

Assim, o poder de auto-organização do constituinte estadual deve ser

exercido principalmente no tocante à organização dos Poderes Executivo, Legislativo

e Judiciário.

101 Anna Cândida da Cunha Ferraz. Poder Constituinte do Estado-membro. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1979, pg. 54. 102 Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior. Op. Cit. Pg. 12

89

b) Capacidade de autogoverno

A capacidade de autogoverno revela-se pela possibilidade de eleição

dos respectivos governantes dos Estados-membros. Essa capacidade de autogoverno

possibilita que entre os dois governos, o estadual e federal, possa existir orientação

política divergente. Assim, necessariamente o Governador de um Estado-membro não

está comprometido com a política desempenhada pelo governo federal. Tal situação,

contudo, não significa total dissonância, mas a possibilidade de adoção, dentro do que

for permitido pela Constituição Federal, de uma orientação política diferenciada.

Assim, no federalismo os Governadores do Estados-membros, por

serem eleitos de forma desvinculada da figura do Presidente da República, não são

necessariamente do mesmo partido político, o que lhes permitem desenvolver

diretrizes políticas diferenciadas.

Conjugando esse aspecto com o da auto-organização, caberia indagar

se os constituintes estaduais poderiam adotar regime ou sistema de governo diverso do

estabelecido pela Constituição Federal para o Poder Executivo Federal? Ou seja, seria

possível a adoção do presidencialismo para a União e parlamentarismo para os

Estados-membros, ou de república para um e monarquia para outro?

A resposta, ante a anatomia do federalismo, deve ser negativa. No

sistema criado pelos americanos, foi aplicada a lição de Montesquieu sobre a

incompatibilidade entre República e Monarquia no Estado Federal. A Constituição

Norte-americana converteu o princípio dogmático em regra do Direito Constitucional

positivo, punindo com a aplicação da intervenção federal nos Estados-membros a

desobediência à regra.103

O tema da compatibilidade ou não entre regime presidencial na União

e regime parlamentar nos Estados, nos lembra Raul Machado Horta, renovou-se na

103 Raul Machado Horta. Direito Constitucional, pg. 76.

90

fase de vigência inicial da Constituição Federal de 1946, quando se elaboraram as

Constituições Estaduais. Essa Constituição trazia em seu bojo a possibilidade de

intervenção federal e criou a técnica de argüição de inconstitucionalidade de ato

praticado no Estado. Os atos constituintes estaduais, constantemente, passaram a ser

objeto desse controle abstrato de inconstitucionalidade.

Segundo o autor as Representações nºs. 93 e 94, de julho de 1947,

referentes respectivamente às Constituições do Ceará e do Rio Grande do Sul,

submeteram ao Supremo Tribunal Federal matérias prevista pelos legisladores

constituintes estaduais envolvendo a introdução de técnicas parlamentaristas no

ordenamento estadual.

A Constituição do Ceará sujeitava à aprovação da Assembléia

Legislativa a nomeação dos Secretários de Estado e impunha a aprovação ou

desaprovação dos Secretários já nomeados. O Supremo Tribunal Federal entendeu que

o regime presidencial é marcado pela possibilidade do Presidente nomear e exonerar

Ministros de Estado na esfera do poder central e que o mesmo poder cabe aos

Governadores no âmbito estadual. A manutenção de atribuição típica do regime

presidencial – a livre escolha de Ministros e de Secretários de Estado – e a preservação

do princípio da harmonia e independência dos Poderes, levaram o Supremo Tribunal

Federal a declarar a inconstitucionalidade de artigos da Constituição do Ceará.

O mesmo entendimento ocorreu em relação à Constituição do Rio

Grande do Sul, onde as linhas do regime parlamentarista estruturaram aquele Estado.

Nessa Constituição, o parlamentarismo aparecia na Chefia dual do Poder Executivo,

na criação da Chefia do Secretariado, responsável pela indicação dos demais

Secretários, na apresentação do Programa de Governo à Assembléia Legislativa, no

princípio da responsabilidade política dos Secretários, na moção de desconfiança e na

dissolução da Assembléia Legislativa pelo Governador, quando a solicitasse o

Secretariado colhido por uma moção de desconfiança. No caso do Rio Grande do Sul,

a previsão do parlamentarismo estadual era completa, conforme se verifica.

91

A adoção do regime de governo diferenciado pelos Estados-membros

viola a decisão do poder constituinte originário, que deve ser recepcionado pelas

Constituições Estaduais, embora possam elas dispor de alguma flexibilidade. Logo,

não seria possível a adoção do parlamentarismo ou monarquia no nível estadual em

confronto com o presidencialismo ou a república adotada no nível federal.

c) Capacidade de auto-administração

Os Estados-membros são dotados, também, de capacidade de auto-

administração, que lhes confere autonomia para, sem interferências do poder central,

exercerem a própria administração de seus servidores.

O aparelhamento do Estado-membro com órgãos e servidores

próprios, permite o cumprimento das diretrizes políticas estabelecidas pelo governo

local.

d) Capacidade legislativa

A autonomia, também tem como aspecto, a capacidade legislativa. Na

concepção de Hans Kelsen, o Estado Federal é descrito como um ordenamento

jurídico complexo e plural. Assim, existiam normas centrais válidas para todo

território e normas locais validas somente para parte do território federal. As normas

centrais são elaboradas pelo Poder Legislativo Federal e no âmbito local pelo Poder

Legislativo dos Estados-membros.

Entretanto, para que haja a coexistência entre as diversas ordens

governamentais é preciso que ordenamento jurídico estatal preveja a delimitação das

competências políticas e legislativas a serem exercidas por cada uma daquelas ordens.

92

e) todas as unidades componentes da federação são dotadas de mesmo patamar

hierárquico.

A igualdade entre as unidades da federação é de suma importância

para manutenção do seu equilíbrio. O relacionamento do poder central com as

unidades da federação deve ser exatamente igual, ficando, em princípio, proibidos

quaisquer tratamentos distintivos. Isso ocorre, porque o fundamento para a união das

unidades formadoras da federação é a igualdade de forças que cada uma tem e que foi

decisiva para que se produzisse essa forma de Estado.

A igualdade entre os Estados-membros se verifica tanto no momento

da formação do Estado, como perante a Constituição Federal.

Com relação à igualdade no momento da formação do Estado, essa

característica pôde ser observada, com mais nitidez, no momento da formação do

Estado Americano, pois a formação centrípeta daquela federação fez com que as

Estados considerados soberanos se unissem em torno de uma única Constituição.

No plano Direito Internacional, todos os Estados considerados

soberanos são tratados com o mesmo grau de igualdade. Logo, se as colônias

britânicas na América deliberaram perder suas soberanias em favor da formação de

único Estado, o tratamento igualitário era uma exigência comum. Não se tratava da

conquista de um Estado por outro, mas da união de vários Estados dotados de

soberania. Portanto, durante os debates sobre a união dos Estados Americanos a maior

preocupação era com a manutenção do equilíbrio de força e com a garantia de

igualdade entre o Estados federados. A localização e manutenção de tropas, densidade

demográfica dos Estados, expedição de moeda, representatividade política, entre

outros, eram assuntos debatidos constantemente, visando a busca do equilíbrio para a

formação do Estado Americano.

93

A igualdade entre os Estados federados passou a ser um traço

característico do federalismo e observado não só naqueles que tiveram uma formação

centrípeta, mas também nos de formação centrífuga, como foi caso do federalismo

brasileiro de 1891, muito embora, não existisse neste caso uma situação de soberania

prévia à formação do Estado Federal.

Após a formação do Estado Federal havia a necessidade de que a

igualdade inicial se perpetuasse. A Constituição Federal deve, portanto, determinar um

tratamento igualitário entre os Estados-membros, o que implica em dizer, que esses

devem respeitar os princípios estabelecidos constitucionalmente.

Juan Joaquim Vogel104 explica que a Constituição deve garantir que as

estruturas políticas existentes na Federação e Estados-membros sejam homogêneas

(princípio da homogeneidade), e que também o sejam os Estados-membros entre si,

com o fim de se evitar os antagonismos que ponham em perigo a segurança interior.

O mesmo autor, ao comentar o art. 28.1 da Constituição Alemã105

explica que entre as Constituições federal e regionais deve ser mantida certa

104 Benda, Ernst; Maihofer, Werner; Vogel, Hans-Jochen; Hesse, Korand; Heyde, Wolfgang. Manual de Derecho

Constitucional. 2ª Ed. Espanha, Madri: Marcial Pons, Ediciones Jurídicas e Sociales, S.A, 2001, pg. 627.

105 Artigo 28 - Ordem constitucional dos Estados (princípio da homogeneidade). Autonomia administrativa dos

governos locais. 1 - A ordem constitucional nos Estados deverá se sujeitar aos princípios do Estado de direito

republicano, democrático e social no sentido desta Lei Fundamental. Nos Estados, distritos (Kreise) e

municípios, o povo terá uma representação eleita por sufrágio universal e pelo voto direto, livre e secreto e

com valor igual para todos. Pessoas que detenham a nacionalidade de um país-membro da Comunidade

Européia poderão votar e ser eleitas nas eleições distritais e municipais, em conformidade com o Direito da

Comunidade Européia. Nos municípios, a assembléia local poderá substituir o corpo eleito. 2- Será

assegurado aos municípios o direito de regular, sob sua própria responsabilidade e nos limites da lei, todos os

assuntos da comunidade local. No âmbito de suas atribuições legais e nas condições definidas em lei, as

associações de municípios gozarão igualmente do direito de autogestão. Essa autonomia administrativa

pressupõe também autonomia financeira: aos municípios deverá caber uma fonte de arrecadação fiscal

baseada em sua capacidade econômica, bem como o direito de fixar os percentuais de taxação dessas fontes.

3 - A Federação deverá garantir que a ordem constitucional dos Estados se coadune com os direitos

fundamentais e com as disposições dos §§ 1 e 2 deste artigo.

94

homogeneidade mínima, o que determina que os Länder devem, em nome da

igualdade, respeitar os princípios estabelecidos pela Constituição Federal.

O Estado-membro, segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho106, goza

de autonomia, sendo livre para atuar no campo deixado para ele pela Constituição

Federal. O autor explica que o Estado, na sua soberania, fixa a organização total, e ao

fazê-lo cria um espaço para atuação do Estado federado que, como já vimos

anteriormente, envolve auto-organização, descentralização legislativa e administrativa

e política.

Portanto, o tratamento igualitário entre os entes federais decorre do

próprio Poder Constituinte originário e por conseqüência da Constituição do Estado

federal, que fixa essa igualdade de tratamento.

f) repartição de competências.

A distribuição de competências é decorrência natural da dualidade de

ordens governamentais e de ordenamentos jurídicos dentro de um mesmo Estado.

Alexis de Tocqueville, ao comentar a formação do Estado Federal americano,

ressaltou que:

“os deveres e direitos do governo federal eram simples e bastante fáceis de definir,

porque a União fora formada com a finalidade de satisfazer a algumas grandes

necessidades gerais. Os deveres e os direitos do governo dos Estados eram, ao

contrário, múltiplos e complicados, porque esse governo penetrava em todos os

detalhes da vida social. Portanto definiram-se com cuidado as atribuições do

governo federal e declarou-se que tudo o que não estava compreendido na

definição fazia parte das atribuições do governo dos Estados. Assim, o governo

estadual ficou sendo o direito comum; o governo federal foi a exceção.”107

106 Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 1994, pg. 42. 107 Alexis de Tocqueville. Democracy in America. EUA, Chigago: Harvey C. Mansfield and Delba Winthrop,

1992, pg. 130.

95

A forma federal corresponde ao Estado composto e plural, fundado na

associação de vários Estados, cada um possuindo o seu ordenamento jurídico, político

e constitucional, conforme as regras estabelecidas pela Constituição. A Constituição

Federal é a responsável por fixar as regras de repartição de competências.

Raul Machado Horta lembra que evidenciando a essencialidade do

tema Jean François Aubert a qualificou como “la grande affaire du fédéralisme”,

enquanto que Karl Loewenstein se refere a ela como “key to the interfederal power

structure”.108

Portanto, nesse Estado é possível a distribuição de atribuições

legislativas e político-administrativas, entre as diversas esferas de governo. Essa

distribuição de competências é reservada ao plano interno, de acordo com a

organização de cada Estado, que é definida na Constituição Federal. Contudo, é

possível a verificação de uma série de técnicas que são utilizadas para separar as

competências atribuídas e exercidas pelo Poder central das que caberão aos Estados-

membros.

A distribuição de competências político-administrativas pode ser

realizada com exclusividade a um ou a outro ente. Além disso, dentro dessas

competências é provável a existência de um campo comum de atuação, ou seja, onde

são deferidas a todas as ordens as mesmas tarefas, devendo funcionar a sua execução

por meio de um regime de cooperação entre elas.109 As competências deferidas as

várias ordens são as de interesse geral e exigem uma atuação conjunta, contudo, a

adoção dessa técnica de distribuição de competência, exige, também, a adoção de

mecanismos de cooperação, a fim de que não haja conflito de atuações.

A divisão de competências, também, está ligada diretamente com o

movimento de formação inicial do federalismo. Assim, dependendo da formação

108 Raul Machado Horta. Direito Constitucional. 3ª ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey. 2002, pg. 342. 109 Luiz Alberto David Araújo. op. cit. pg. 162.

96

inicial (federalismo centrípeto ou federalismo centrífugo), algumas competências que

antes eram de um determinado ente (por exemplo, os Estados independentes dos

Estados Unidos) passam a ser atribuídas e exercidas por um outro ente (no mesmo

exemplo a União). Dessa forma, no federalismo centrípeto os Estados soberanos

perderam competências, geralmente referentes aos interesses gerais dos Estados-

membros, em favor da União; enquanto no federalismo centrífugo o processo é

inverso, ou seja, a União cede competências, geralmente referente a interesses locais

ou regionais, para os Estados-membros. Além disso, a trajetória da evolução do

federalismo produziu soluções menos extremas de divisão de competências

conduzindo a um terceiro tipo de federalismo chamado de equilíbrio ou

contemporâneo, em oposição ao federalismo dual.

Conforme já nos referimos, cada Estado, por meio de sua organização

interna definida na Constituição e por razões de formação inicial e evolução federal,

estabelece quais são as regras de distribuição de competências.

As técnicas podem ser as mais variadas possíveis: distribuição

enumerada das competências dos Estados-membros, ficando as remanescentes com o

poder central; ou, inversamente, competências enumeradas para o poder central e

remanescente com os Estados membros; ou ainda, ambos com competências

expressas, ficando as remanescentes ou com o poder central ou com o Estado membro.

A respeito das técnicas de divisão de competências, pedimos licença

para reproduzir o interessante estudo realizado por Raul Machado Horta110, sobre as

técnicas utilizadas pelo Canadá, Índia, Áustria e Alemanha.

O sistema utilizado pela Constituição do Canadá adota uma repartição

dual e integral de competências, particularizando, de um lado, os poderes do

Parlamento (powers of the Parliament), que são os poderes da União ou do Governo

Federal, e de outro lado os poderes das Assembléias Provinciais (exclusive powers of

Provincial Legislatures). Os poderes federais receberam dilação na cláusula de

110 http://laws .justice.gc.ca/en/const/c1867_e.html

97

elaborar as leis pela paz, ordem e o bom governo do Canadá em todas as matérias não

atribuídas expressamente ao legislativo das Províncias.111 Os powers of Parliament

estão expressamente previstos nos vinte e nove casos enumerados no artigo 91 –

exclusive legislative authority of the Parliament of Canadá – da Constituição do

Canadá, sendo que a cláusula de dilação das competências referentes às leis pela paz,

ordem e o bom governo e as matérias não atribuídas às Províncias está prevista no

caput do mesmo artigo. Em relação às Províncias, o artigo 92 – exclusive powers of

Provincial Legislatures – e o artigo 92-A – non-renewable natural resources, forestry

resources and electrical energy – estabelecem os poderes exclusivos das Assembléias

Provinciais, dentre os quais, por exemplo, estão legislar sobre: a tributação direta nos

limites das Províncias; administração e venda de terras públicas; instituições

municipais ; recursos naturais não renováveis, recursos florestais e energia elétrica.

A exemplo dos poderes enumerados pelo Governo Federal, que se

expandem na cláusula elástica de elaborar as leis pela paz, a ordem e o bom governo

do Canadá, os poderes enumerados e exclusivos das Províncias, absorvem, geralmente,

todas as matérias de natureza puramente local ou privada – “generally all matters of a

merely local or private nature in the Province”. O autor lembrar que a técnica de

repartição integral das competências federais e provinciais da Constituição do Canadá

encontrou correspondência em outra Constituição da antiga Comunidade Britânica das

Nações, a da Índia, que absorveu o sistema canadense de distribuição integral e criou

outra modalidade de distribuição de competências concorrentes.

“A repartição de competências estabelecida pela Constituição é do tipo da

repartição integral, como a da Constituição do Canadá, que se ateve, entretanto,

aos poderes federais e aos poderes provinciais, enquanto a Constituição da Índia

alcança, também, além desses dois níveis destacados pela enumeração da matéria

de cada um a legislação concorrente, objeto da dupla atividade legislativa sobre a

mesma matéria.”112

111 Raul Machado Horta. Direito Constitucional. Belo Horizonte, Editora Del Rey: 2002, pg. 343/344. 112 Raul Machado Horta. Direito Constitucional. pg. 344/345

98

O modelo austríaco de 1920, adotou uma fórmula intermediária e

antecipadora da repartição de competências, fundada na distribuição entre a legislação

federal e a execução dos Länder, legislação de princípios (Gesetzgebung) da

Federação e legislação de aplicação e execução dos Länder, legislação e execução da

Federação, sendo que os Länder ficaram com poderes remanescentes.

Por outro lado, a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha,

acabou se afastando do modelo tradicional americano, canadense, indiano e austríaco,

criando uma repartição de competências que compreende: formas gerais da legislação

exclusiva e da legislação concorrente. A federação (bund) recebeu a competência de

legislação exclusiva sobre matérias predeterminadas (art. 73, I a XI), que poderão ser

objeto de legislação estadual, se houver autorização por lei federal (art. 71). Os Länder

dispõem de competências nas matérias da legislação concorrente (art. 74, 23), na

medida em que a Federação não fizer uso de seu direito de legislar no domínio da

competência concorrente, para atender, neste caso, à necessidade de regulamentação

legislativa federal, em circunstâncias expressamente identificadas na Lei Fundamental

(art. 72, 2; 1,2,3). A competência concorrente pertence primariamente aos Länder.

Além da competência eventual para legislar sobre matérias da competência exclusiva

da Federação e da titularidade primária da legislação concorrente, aos Länder foi

deferido o direito de legislar sobre assuntos em que a Federação não dispuser de

poderes legislativos constitucionalmente conferidos (art. 70).

Verificadas essas técnicas, é importante lembrar que a divisão de

competência adotada pelo Estado federal não se resume apenas às situações descritas

explicitamente, pois, para o desempenho dessas, há a necessidade de poderes ou

competências implícitas. Logo, não é possível concluir que na divisão de competências

onde haja atribuições expressas ao poder central, ficando as demais com os Estados,

aquelas que não conferidas àquele lhe estejam proibidas.

99

A afirmação da possibilidade de existência de competências implícitas

no sistema federal foi resultado do julgamento do caso McCulloch v. Maryland pela

Suprema Corte americana em 1819.

Segundo Bernard Schwartz 113, no caso McCulloch o que se discutia

era a constitucionalidade da criação, por parte do Governo federal americano, do

Banco dos Estados Unidos, como banco depositário dos fundos do Governo e com

autoridade para emitir bilhetes, para utilização como meio de câmbio e medida de

valor. Ocorre que, em nenhum momento a Constituição americana reconhecia tal

poder ao Governo. O presidente da Suprema Corte, John Marshall, ao analisar os

poderes expressamente outorgados ao Governo federal (estabelecer e arrecadar

impostos, emitir moeda, regular o comércio, declarar a guerra, manter o exército e

força naval, etc.), assim se pronunciou:

“Este é um Governo reconhecido por todos como um Governo de poderes

enumerados. O estabelecimento de um Banco ou a criação de uma Companhia não

figura dentro dos poderes enumerados. Porém tampouco nada existe no dito

instrumento que, exclua poderes implícitos ou tacitamente incluídos, nem que exija

que todas as atribuições estejam expressa e minuciosamente descritas. Tanto os

poderes necessários para declarar a guerra, como os fiscais, assim como todos os

relativos às relações exteriores e uma parte considerável da indústria da nação,

estão encarregados ao Governo. Reconhecemos, como todos devem fazê-lo, que os

poderes do Governo central são limitados e que esse limites não devem ser

ultrapassados. Contudo, estimamos que uma correta interpretação da Constituição

exige que se reconheça ao legislativo nacional a faculdade para selecionar os

meios para exercitar de maneira mais proveitosa para o povo os poderes que lhes

tenham sido conferidos. Se o fim que se persegue é legítimo e conforme com os

objetivos previstos pela Constituição e as medidas são adequadas e apropriadas

para tal fim, devemos concluir que são constitucionais, sempre que não estejam

expressamente proibidas ou vão contra a letra ou o espírito da Constituição.114

113 Bernard Schwartz. El federalismo norteamericano actual. Espanha: Madrid, Ed. Cuadernos Civitas, pg. 22. 114 Bernard Schwartz. op. cit. pg. 23/24.

100

A doutrina dos poderes implícitos abriu ao Governo federal americano

a possibilidade de exercitar suas competências de forma mais ampla, o que contribuiu

para um alargamento daquelas sobre assuntos não mencionados especificamente na

Constituição.

Os Estados deixam de ser tratados em pé de igualdade com a União e

passaram a ser considerados como verdadeiros rivais.115

A teoria dos poderes implícitos funcionou como uma verdadeira

cláusula de abertura, superando a rigidez que existia no sistema de lista de

competências federais.116

A técnica de repartição de competências típica do federalismo

clássico, por sua lógica, deveria acentuar, ao longo do tempo, a predominância dos

Estados, a que se reservaram todos os poderes não delegados à União e não proibidos

aos Estados pela Constituição.

A questão parece ser lógica, pois no federalismo clássico a função

única da União era a manutenção da defesa dos interesses de todos os Estados-

membros, mantendo-se a autonomia dos mesmos. Assim, a evolução natural seria a

preservação das competências dos Estados-membros em detrimento das competências

da União, na medida que houvesse o desenvolvimento daqueles. Esse pensamento tem

como base a matriz inicial dual de federalismo.

Entretanto, a necessidade do estabelecimento de uma política mais

intervencionista, fez com que a União ampliasse suas competências. O federalismo

115 Alexis de Tocqueville ao comentar sobre a divisão de competências entre a União e os Estados, cita a criação

da Suprema Corte como um órgão único, cuja atribuição principal era manter entre os dois governos “rivais”

a divisão dos poderes estabelecida pela Constituição. (Democracy in America. EUA, Chigago: Harvey C.

Mansfield and Delba Winthrop, 1992, pg. 130) 116 Ana Isabel Sanchez Ruiz. Federalismo e integracíon europea. La distribución de competencias en los

sistemas alemán y comunitario. Espanha, Biskaia: Instituto Vasco de Administración Pública. 1997, pg. 31.

101

surgiu durante o predomínio do liberalismo, onde a idéia principal era a não

intervenção estatal e a de que o Estado tinha como único dever impedir que os

indivíduos provocassem danos uns aos outros. Nesse sentido, se o Estado federal não

podia intervir na vida do cidadão, conseqüentemente, não seria admitida qualquer

interferência nos Estados-membros.

Com o declínio do liberalismo e o aparecimento do Estado social, o

intervencionismo se faz presente não só na vida em sociedade, mas também no âmbito

da divisão das competências.

Dessa forma, como já expusemos acima, o federalismo

contemporâneo ou novo federalismo coincide com o surgimento do Estado

intervencionista, proporcionando a esse uma nova repartição de competências, que

fosse funcionalmente vinculada aos objetivos econômicos e sociais do

intervencionismo.

Ao lado do sistema de repartição de competências enumeradas e

remanescentes, surgem as competências concorrentes, onde a mesma matéria pode ser

compartilhada pelo poder central e pelos Estados, ficando o primeiro com a

incumbência de criar as normas gerais sobre o assunto e as particulares, da mesma

matéria, para as ordens parciais. Essa técnica é conhecida como repartição vertical,

tendo em vista a existência de diversos níveis de atuação.

Como se vê, a repartição de competências legislativas definidas no

texto constitucionais é uma das mais importantes características do federalismo. Essa

repartição de competência indica, como já foi dito, a existência de um ordenamento

jurídico composto por normas que tem vigência e aplicabilidade em todo o território

estatal e por outra cuja vigência e aplicabilidade está restrita à parte desse território.

Sob esse prisma Hans Kelsen explicava, ao diferenciar o Estado

unitário de Estado descentralizado, que em princípio, uma comunidade jurídica

102

centralizada é aquela cujo ordenamento consiste única e exclusivamente em normas

que valem para todo o território, enquanto que a idéia de comunidade descentralizada é

aquela cujo ordenamento conta com normas que valem para distintas partes do

mesmo.117 No Estado federal a existência dessas duas ordens é resultado da repartição

de competência legislativa entre o poder central e os Estados-membros.

A definição do campo próprio de cada uma dessas ordens, como já

dissemos, poderá acentuar a centralização, concentrando na Federação ou União a

maior soma de poderes, ou conduzir à descentralização, reduzindo os poderes federais

e ampliando os poderes estaduais, ou ainda, afastando-se das soluções extremas, dosar

as competências federais e estaduais, de modo a instaurar o equilíbrio entre o

ordenamento central e os ordenamentos parciais. Portanto, no primeiro caso a

centralização configura o federalismo centrípeto; no segundo caso, a descentralização

conduz ao federalismo centrífugo; e, no terceiro, a dosagem de distribuição de

competências indica o federalismo de equilíbrio.118

Finalmente, observamos que, pelo menos em regra, não é possível a

distribuição de competências supra-nacionais entre os Estados-membros de uma

federação, tendo em vista que esses não são dotados de soberania. Cabe observar,

contudo, que o Direito Internacional Público não nega a possibilidade de que os entes

internos de determinado Estado tenham capacidade jurídica internacional. Neste

sentido, o projeto de artigos sobre o Direito dos Tratados aprovados pela Conferência

de Direito Internacional de 1966, em seu artigo 5.2, estabeleceu a possibilidade dos

Estados membros de uma união federal terem capacidade para celebrar tratados dentro

dos limites estabelecidos pela respectiva Constituição. Todavia, a previsão foi

117 “En principio, una comunidad jurídica centralizada es aquella cuyo ordenamiento consiste única y

exclusivamente en normas que valen para todo el territorio; mientras que, por el contrario, la idea de la

comunidad jurídica descentralizada es aquella cuyo ordenamiento consta de normas que no valen sino para

distintas partes del mismo. Hans Kelsen. Teoria General del Estado. Granada: Editorial Comares, S.L.. 2002,

pg. 323. 118 Raul Machado Horta. Direito Constitucional. 3ªed. Minas Gerais, Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2002, pg.

342.

103

suprimida pela Conferência em 1966, não por motivos de conteúdo, mas sim por

motivos de oportunidade, já que os Estados federados, particularmente o Canadá119,

temiam que suas unidades federais pudessem requerer uma competência internacional

que não era reconhecida pela ordem constitucional.120

O Direito Internacional não oferece qualquer disposição sobre a

possibilidade dos integrantes dos Estados Federais celebrarem tratados internacionais,

sendo que a solução fica a cargo do direito interno de cada Estado. Assim, tem se

observado que, em regra, os Estados Federais se mostram reticentes em reconhecer o

direito de seus entes em concluir tratados. No direito comparado, verificamos que

havia a possibilidade de tal deferimento em favor dos entes federados no Império

Alemão. Contudo tal disposição não foi mantida pela Constituição de Weimar de

1919. Também não existe qualquer possibilidade em proveito dos cantões na Suíça ou

os Estados Membros dos Estados Unidos. E, apenas para permitir que a extinta

U.R.S.S. atingisse seus objetivos de representação reforçada no seio das Nações

Unidas, é que foram reconhecidas formalmente às Repúblicas soviéticas (Ucrânia e

Bielorússia) a capacidade internacional, em 1944.

g) repartição de rendas

Outra característica do federalismo é a repartição de rendas ou

receitas, que visa conferir equilíbrio ao Estado federal, visto que, principalmente no

federalismo de cooperação, a atuação do governo central é marcada pela busca do

desenvolvimento igualitário das diversas regiões, e o estabelecimento da autonomia

dos Estados-membros. Além disso, a divisão de competências entre o poder central e

as vontades parciais, gerou a necessidade de correspondentes fontes de custeio.

119 Nguyen Quoc Dinh. op. cit. pg. 663 120 Antonio Remiro Brotons. Derecho Internacional público – 2. Derecho de los tratados. Espanha – Madrid:

Editorial Tecnos S/A., 1987, pg. 52

104

No modelo americano, a preocupação sobre a possibilidade de

obtenção de renda pelo governo federal, girava em torno de questões referentes ao

custeio da segurança nacional, o que incluía as despesas de mobilização de tropas, de

construção e equipamento de esquadras, bem como todas as demais ligadas à

organização e operações militares. Além disso, havia a necessidade de previsão de

recursos para atender aos custos da administração civil, ao pagamento das dívidas já

existentes ou que viessem a ser contraídas.121 Com relação aos Estados-membros da

federação, a capacidade de obtenção de renda estava ligada ao exercício de suas

competências e buscava-se evitar um conflito com a competência da União.

O Estado tornou-se ao longo dos anos um grande prestador de

serviços públicos nas mais diversas áreas e o principal fomentador do

desenvolvimento econômico. Nesse sentido, diversos serviços e competências foram

repassadas aos Estados federados que só podem realizá-las se forem dotados de renda

própria. Com isso a distribuição de rendas passou a ser uma das características do

Estado Federal.

Neste ponto, é interessante observar que as constantes modificações

nos modelos federais, ocorridas ao longo dos anos, fizeram aparecer, em detrimento do

federalismo dual puro, o chamado federalismo cooperativo. Neste modelo, houve uma

crescente centralização de competências, inclusive as tributárias.

Segundo Manoel Gonçalves Ferreira filho122 a melhor técnica de

repartição de rendas é a da divisão horizontal de competências, reservando-se certas

matérias tributáveis a um poder (União ou Estado-membro) que passa a auferir

recursos próprios. Contudo, tendo em vista o desenvolvimento econômico

diferenciado entre regiões, é provável que determinada matéria tributável seja mais

rendosa para um Estado do que para outro. Por isso, segundo o citado autor, tem-se

acrescentado a repartição horizontal um sistema de redistribuição análogo à divisão

121 Alexander Hamilton. op. cit., pg. 271. 122 Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 1994, pg. 44.

105

vertical, ou seja, prevê-se que do produto de determinado tributo uma parcela seja

redistribuída diretamente ou por meio de fundos. Esta solução pode atenuar a

desigualdade entre Estados-membros.

h) organização do Poder Legislativo federal, permitindo a participação dos Estados-

membros na formação da vontade nacional

O federalismo americano acabou adotando a formação bicameral,

onde a Câmara dos Deputados é a representante da população, enquanto que o Senado

representa os Estados-membros.

Os representantes de ambas as Casas são eleitos diretamente pelo

povo. Contudo, quando os Founding Fathers se reuniram na Filadélfia, em 1787, para

redigir a Constituição dos Estados Unidos, a intenção inicial era de que os Senadores

fossem eleitos pelas Assembléias dos Estados, algo que era mais condizente com a

estrutura federal, já que são eles os representantes desses entes da federação. Mas a

partir da aprovação da Décima Sétima Emenda Constitucional, o Senado passou a ser

eleito pelo voto direto do povo. Essa alteração fez com que o Senador deixasse a

representação do Estado, passando a dar atenção ao povo. No sistema alemão, o

Bundesrat é o que mais se assemelha a intenção inicial dos Founding Fathers, pois os

seus membros são escolhidos pelos Estados e considerados verdadeiros

embaixadores.123

O modelo americano se estruturou de forma bicameral, no que foi

seguido pelos demais Estados que assumiram o federalismo. Assim, dentro do critério

da isonomia entre os Estados membros, o número de representantes dos Estados-

membros no Legislativo é fixo e igual para todos, sendo que para a representatividade

popular foi estabelecido o critério da proporcionalidade.

123Luiz Felipe D’Avila. Por uma nova federação. Coordenador Celso Bastos. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 1995, pg. 67.

106

Em “O Federalista”, por ocasião das discussões sobre a adoção da

Constituição dos Estados Unidos, Madison assim expôs:

“III- a igualdade de representação no Senado é outro ponto que- evidentemente

traduzido o resultado de concessões mútuas em pretensões conflitantes dos

Estados grandes e dos pequenos – dispensa maiores discussões. Se é verdade que,

um povo integralmente incorporado em uma nação, cada distrito deve ter uma

participação proporcional no governo e que, tratando-se de Estados independentes

e soberanos, unidos em uma mesma liga, deve existir uma participação “igual”

nos conselhos comuns, por mais desiguais que sejam as partes – não parece

desarrazoado que em uma república complexa, com características tanto de

natureza nacional como federal, o governo deva apoiar-se em uma combinação

dos princípios de representação proporcional e igual. Seria, porém, supérfluo

julgar, por padrões teóricos, uma parte da Constituição que é reconhecida por

todos como sendo resultante não da teoria, mas de um espírito de harmonia, de

deferências e concessões mútuas que a peculiaridade de nossa situação política

tornou indispensável. Um governo- geral, dispondo de poderes condizentes com

seus objetivos, é exigido pelo sufrágio e, ainda mais insistentemente, pela situação

política da América; se, porém, estiver muito afinado com os desejos dos maiores

Estados, provavelmente não terá o apoio dos menores.”124

Na seqüência os autores de “O Federalista” invocam a soberania de

cada um dos Estados-membros para garantir a igualdade representativa no Senado, o

que era menos aceito pelos Estados grandes do que pelos Estados menores, que viam

nessa situação a possibilidade de impedirem a consolidação de um Estado único.

“A propósito, deve ser notado que a igualdade dos votos dos Estados é, desde

logo, um reconhecimento constitucional da porção de soberania que permanece

em cada um deles, bem como um instrumento para a preservação desta soberania

residual.”

124 Alexander Hamilton. op. cit., pg. 480.

107

Portanto, com esses fundamentos na federação americana a

representatividade dos Estados-membros passou a ser paritária, proporcionando maior

equilíbrio na participação das vontades nacionais.

Na Constituição da República Bolivariana da Venezuela, de 15 de

dezembro de 1999125, onde se adota a forma federal com unicameralismo, desprovido

da figura do Senado Federal, a manutenção do equilíbrio das unidades foi feita com a

adição de um número fixo de deputados, é o que se verifica na redação do artigo 186

daquela Constituição:

Art. 186 A Assembléia Nacional será integrada por deputados e deputadas eleitos

ou eleitas em cada entidade federal por votação universal, direta, personalizada e

secreta com representação proporcional, segundo uma base populacional de 1,1

por cento da população total do país.

Cada entidade federal elegerá, ainda, três deputados ou deputadas

Os povos indígenas da República Bolivariana da Venezuela elegerão três

deputados ou deputadas de acordo com o estabelecido na lei eleitoral, respeitando

suas tradições e costumes.

Cada deputado ou deputada terá um suplente ou uma suplente, escolhidos ou

escolhidas no mesmo processo.

Portanto, a marca do federalismo no Poder Legislativo é a repartição

bicameral, onde é necessária a participação dos componentes da estrutura federal para

a definição de seus comportamentos.126

i) existência de um pacto federativo de indissolubilidade e de técnicas de intervenção

destinadas a manter a integridade do Estado federal

Conforme leciona Herculano de Freitas, nos Estados Unidos da

América duas correntes políticas antagônicas se estabeleceram no momento da

125 http://www.tsj.gov.ve/legislacion/constitucion1999.htm livre tradução do autor. 126 Lênio Luiz Streck e José Luis Bolzan de Morais. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre:

Livraria do Advogado Editora, 2001, pg. 159.

108

formação do país, durante a Convenção da Filadélfia. Esse antagonismo de idéias e

tendências, criou corpo, fortaleceu-se e, apoiado no interesse material da preocupação

de manter a instituição da escravidão – que supunha-se ser essencial ao

desenvolvimento dos Estados do Sul –, levou esses Estados a declararem a sua ruptura

da União Nacional. Eram Estados Federados e não queriam mais ser parte da União,

supunham o direito de secessão, quando não lhes conviesse mais. A vitória do Norte

foi considerada a vitória da unidade nacional, ao mesmo tempo que significou a vitória

do princípio da liberdade dos escravos, contra o que combatia os Estados do Sul. 127

Essa história nos mostra como o pacto, realizado pelos Estados

Americanos, passou a ser importante para a manutenção da forma federal. Caso o

resultado da guerra de secessão fosse outro, com certeza, o federalismo não teria

atingido o grau de desenvolvido que atingiu.

Na terminologia jurídica pacto significa um acordo de vontades entre

partes. No direito internacional pacto tem o mesmo significado e pode ser

materializado por um tratado, sendo que esse último pode receber, também, aquela

designação (p. exemplo: Pacto dos Direitos Civis e Políticos).

O momento inaugural do Pacto Federativo coincide com o

estabelecimento da Constituição e a formação da Federação, sendo que o preâmbulo

constitucional tem sido a sede declaratória desse pacto, anunciando as razões

inspiradoras e a natureza do acordo federativo.128

A indissolubilidade de vínculo de ligação evita a possibilidade de

secessão e a conseqüente extinção do Estado Federal. Portanto, nos Estados Federais o

pacto federativo é o elemento que une os Estados-membros na formação desse.

127 Herculano de Freitas. Direito Constitucional. São Paulo: 1923, pg. 85. 128 Raul Machado Horta. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2002, pg. 502.

109

O vínculo de indissolubilidade estabelecido pelo pacto federativo é o

principal traço diferenciador entre a Confederação e a Federação. Essas duas situações

de união de Estados se diferenciam pelo fato de na primeira existir a possibilidade de

retirada dos membros, enquanto que na segunda o pacto entre os Estados-membros é

indissolúvel.

Hans Kelsen129, ao tratar sobre a união de Estados faz a distinção entre

federação e confederação, aponta ainda que a união de Estado é realizada pela

existência de um vínculo jurídico entre certas comunidades de índole estatal. Esta

ordem jurídica, segundo o autor, pode ser a do Direito das gentes, sobre a qual se

baseia a união geral de todos os Estados na comunidade jurídica internacional; ou

também uma união particular de certos Estados baseada em um ordenamento jurídico

parcial ou especial, válido por delegação do direito das gentes.

O que Kelsen quer nos mostrar, é que a união é baseada em uma

ordem jurídica interna na federação e em uma ordem externa no caso da Confederação.

Neste último caso, como a base é o direito internacional e os Estados são todos

soberanos, não se pode impor a indissolubilidade do vínculo; enquanto que no caso da

Federação, que é marcada pela descentralização e autonomia dos Estado-membros, a

soberania interna do ordenamento jurídico pode impor a sua indissolubilidade.

Assim, visando manter a integridade da Federação, é característica a

existência de instrumentos de segurança que autorizem a intervenção federal nos

Estados – membros, sempre que se verifiquem violações aos princípios mantenedores

da forma federativa.

A intervenção federal é a antítese da autonomia.130 Esse processo

garante à União a possibilidade de se intrometer nos assuntos internos de um Estado-

membro sempre que a segurança da manutenção da federação for atacada. As

129 Hans Kelsen. Teoria General del Estado. Granada: Editorial Comares, S.L.. 2002, pg. 325. 130 José Afonso da Silva. op. cit. pg. 460.

110

hipóteses de intervenção são exceções, já que a regra é a da autonomia dos Estados-

membros. Assim, uma vez estabelecido o processo de intervenção, a autonomia do

Estado-membro fica afastada momentaneamente, até que seja recuperada a

normalidade federativa.

j) Constituição do Estado Federal e Constituições dos Estados-membros

O Estado Federal se estrutura a partir de uma Constituição, que

estabelece as principais características federativas e a sua organização. Neste ponto,

cabe observar também, que a Constituição é um dos traços diferenciadores da

Federação e da Confederação, pois nesta última o instrumento de união entre os

Estados soberanos é um Tratado internacional

Manuel García-Pelayo131 lembrando “O Federalista” demonstra que a

Constituição proposta deveria ser híbrida:

“A Constituição proposta não é estritamente uma constituição nacional nem

federal, senão uma combinação, uma acomodação de ambas. Do ponto de vista de

seu fundamento, é federal, não nacional; pela origem de onde procedem os poderes

ordinários do Governo, é em parte federal e em parte nacional; pela atuação dos

poderes, é nacional, não federal; pela extensão deles, é, outra vez, federal e não

nacional, e finalmente, pelo modo que autoriza para introduzir emendas, não é nem

totalmente federal nem totalmente nacional.”

Esse pensamento demonstra toda a dificuldade que tiveram os

idealizadores para demonstrar a necessidade da criação de uma Constituição, que fosse

capaz de manter a forma federativa de Estado, demonstrando toda a importância desse

documento.

131 Manuel García-Pelayo. Derecho Constitucional Comparado. Espanha, Madri: Alianza Editorial, S.A., 1984,

pg. 215.

111

Assim, não basta que exista uma Constituição, ela deve ser escrita e

rígida, de forma a evitar a mudança dos critérios fixados no pacto inaugural, por meios

ordinários de alteração legislativa.132

A rigidez constitucional faz com a haja uma maior proteção dos

princípios federativos, impedido a alteração da repartição de competências que possa

abalar a estrutura federativa, tal como foi positivada pelo constituinte.133

A existência de uma Constituição Federal não impede a auto-

organização dos Estados-membros, que podem realizá-la por meio da adoção de

Constituições próprias.

Essas Constituições do Estados-membros são o resultado também de

um Poder Constituinte, que encontra sua origem na Constituição Federal e que é

conhecido como Poder Constituinte Decorrente. Com isso, esse poder é delimitado

pela Constituição do Federal.

Kelsen lembra que é possível que a Constituição federal regule em

suas linhas gerais as Constituições dos Estados-membros. O autor lembra que é

possível, em determinados Estados federais, a atribuição de competência ao Poder

Legislativo federal para proceder a alteração das constituições dos Estados-membros.

Contudo, o autor ressalta que isso pode aproximar o Estado Federal da forma unitária:

Inclusive é possível que a Constituição federal regule, ao menos em suas linhas

gerais, a constituição dos membros, de tal modo que, por exemplo, o órgão

legislativo da união – autorizado para a revisão da constituição federal – pode

modificar as constituições dos membros, ao passo que os órgãos legislativos dos

Estados possam ter sua competência constituinte circunscrita à constituição

federal, pela qual só com certas limitações poderiam dispor de sua “própria”

constituição. Por isso, a medida que o Estado federal limita a autonomia

132 Luiz Alberto David Araujo. op. cit. pg. 165. 133 Michel Temer. Elementos de Direito Constitucional. São Paulo: Editora RT, 1989, pg. 62.

112

constituinte de seus membros, aproxima-se ao tipo de Estado unitário dividido em

províncias ou corpos autônomos.134

A auto-organização dos Estados-membros implica na existência de

Poder Executivo próprio, Poder Legislativo encarregado da elaboração das normas

estaduais e Poder Judiciário com jurisdição para dirimir conflitos na esfera de

competências de cada Estado.

k) existência de um tribunal federal

O Estado federal é Estado democrático pela própria natureza. A

existência de duas ordens governamentais, determina que provavelmente haverá

conflitos de competências entre essas ordens. Esses conflitos deveriam ser resolvidos

de forma pacífica e por meio adequados, a fim de não comprometerem a própria

existência do Estado Federal. Um desses meio foi a atribuição de supremacia ao poder

nacional, que figura no artigo VI da Constituição federal americana:

“Esta Constituição, as leis dos Estados Unidos que em virtude dela se

promulgarem, e todos os tratados subscritos ou que se subscreverem sob a

autoridade dos Estados Unidos, serão a suprema lei do país; e os juízes de cada

Estado estarão obrigados a observá-la, ainda que existir alguma disposição

contrária na Constituição ou em leis de qualquer Estado membro.”

O referido artigo determinou também que os juízes dos Estados

estariam obrigados a respeitar as leis dos Estados Unidos, em detrimentos das leis dos

Estados.

O Judiciário foi eleito, então, o responsável pela aplicação desse

sistema de eliminação dos conflitos entre o poder central e o poder parcial.

134 Hans Kelsen. Teoria General del Estado. Granada: Editorial Comares, S.L.. 2002, pg. 350

113

O Judiciário americano foi organizado tendo como órgão superior um

Tribunal Federal, que seria responsável pela aplicação da lei nacional, o artigo III da

Constituição Americana assim determina:

“O Poder Judiciário dos Estados Unidos será investida em uma -Suprema Corte e

nos tribunais inferiores que forem oportunamente estabelecidos por determinações

do Congresso. Os juízes, tanto da Suprema Corte como dos tribunais inferiores,

conservarão seus cargos enquanto bem servirem, e perceberão por seus serviços

uma remuneração que não poderá ser diminuída durante a permanência no

cargo.”

A Suprema Corte americana durante os primeiros anos da República

não teve uma posição rígida sobre seu papel dentro do federalismo. Todavia,

posteriormente, passou a adotar uma posição firme a respeito de sua função, ou seja, a

posição de que a Corte Suprema era a responsável por traçar uma linha que separasse

os poderes da União e os dos Estados. Assim, a posição adotada levava a efeito a

chamada cláusula da supremacia nacional contida na Constituição.135

Por outro lado, ao mesmo tempo, que ao Poder Judiciário foi atribuída

a tarefa de impedir que o poder central fosse atacado pela leis locais conflitantes com

aquele poder, deveria preservar, também, a autonomia dos Estados para que não

fossem absorvidos pelo poder central.

O Poder Judiciário no Estado Federal deve, portanto, ser um órgão

encarregado da fiscalização do exercício das competências atribuídas

constitucionalmente, a fim de que haja uma demarcação entre o campo federal e o

estadual.

Não é improvável, entretanto, que essa demarcação de competência ao

longo da história do Estado possa sofrer uma variação interpretativa nos seus limites,

sem que qualquer alteração constitucional tenha sido processada.

135 Bernard Schawartz. op. cit. pg. 32.

114

A afirmação da possibilidade de existência de competências implícitas

no sistema federal resultado do julgamento do caso McCulloch v. Maryland pela

Suprema Corte americana em 1819, foi o primeiro traço de que o federalismo dual

americano não sobreviveria frente às decisões daquela Corte.136

A doutrina dos poderes implícitos, conforme já nos referimos,

funcionou como uma verdadeira cláusula de abertura, que permitiu a superação da

rigidez existente no sistema de lista de competências federais.

Durante a implantação do New Deal, a Suprema Corte americana teve

que ajustar a interpretação dada aos limites da distribuição de competências, o que

importou na passagem de um federalismo dual para um federalismo contemporâneo. A

Suprema Corte americana só passou a se orientar no sentido de ampliar a ação federal

em 1937, muito embora as primeiras medidas do New Deal tenham sido promulgadas

em 1933.

Em 1937 a Suprema Corte americana começou a levantar as

limitações que o federalismo dual havia imposto a ação federal. Aquele Tribunal

confirmou a validade de uma lei federal que regulava as relações laborais, contra a

pretensão da autoridade reservada aos Estados. Em 1940, afirmando desta vez a

constitucionalidade de uma lei do Congresso sobre a indústria de carbono, o Tribunal

Supremo afirmou que “ao Congresso, conforme a Cláusula de Comércio, não lhe

136 No caso McCulloch o que se discutia era a constitucionalidade da criação, por parte do Governo federal

americano, do Banco dos Estados Unidos, como banco depositário dos fundos do Governo e com autoridade

para emitir bilhetes, para utilização como meio de câmbio e medida de valor. Essa situação não tinha

previsão constitucional. O presidente da Suprema Corte, John Marshall, ao analisar os poderes expressamente

outorgados ao Governo federal (estabelecer e arrecadar impostos, emitir moeda, regular o comércio, declarar

a guerra, manter o exército e força naval, etc.), entendeu que “uma correta interpretação da Constituição

exige que se reconheça ao legislativo nacional a faculdade para selecionar os meios para exercitar de

maneira mais proveitosa para o povo os poderes que lhes tenham sido conferidos. Se o fim que se persegue é

legítimo e conforme com os objetivos previstos pela Constituição e as medidas são adequadas e apropriadas

para tal fim, devemos concluir que são constitucionais, sempre que não estejam expressamente proibidas ou

vão contra a letra ou o espírito da Constituição.” Ver item C – Repartição de Competências, neste capítulo.

115

faltavam poderes para resolver casos baseados na doutrina do laissez-faire. O

Governo federal não precisa de “poder” para adotar medidas que tendem a mitigar o

que a seu juízo são abusos de uma competência descarnada.” Em 1941 o Tribunal

americano foi mais além e revogou expressamente sua decisão no caso do trabalho

infantil, em que havia aplicado estritamente a doutrina do federalismo dual. A Fair

Labor Standards Act promulgada em 1933 pelo Congresso, previa a fixação de um

salário mínimo e horas máximas de trabalho por meio de uma agência do Governo

federal, proibindo o trânsito interestadual daqueles bens cuja produção não se tinha

respeitado aquelas regras.137

Segundo Bernard Schawartz138 a Suprema Corte ao decidir em 1941

sobre o trabalho, United States v. Darby, não acatou sua decisão anterior baseada no

federalismo dual, reconhecendo a inconstitucionalidade de uma lei aprovada pelo

Congresso, que proibia o transporte e o comércio interestadual de bens produzidos em

fábricas que empregavam pessoas menores de certa idade, caso este que ficou

conhecido como Hammer v. Dagenhart.

Naquela decisão de 1941, a Suprema Corte declarou que a decisão

anterior tinha como fundamento uma concepção superada de poder federal e que,

portanto, deveria ser anulada.

“O entendimento e a conclusão do Tribunal no caso do trabalho infantil se baseia,

de fato, em que o poder conferido pela Cláusula de Comércio ao Congresso

Nacional federal é pleno para excluir do comércio interestadual quaisquer artigos

e só está sujeito a proibições específicas impostas pela Constituição.”

A Suprema Corte reconheceu que a Décima Emenda da

Constituição139, segundo a qual todos os poderes não outorgados ao Congresso

estavam reservados aos Estados e ao povo, não afetava o tema. Assim, a Corte

137 Bernard Schwartz. op. cit. pg. 48/49 138 Bernard Schwartz. op. cit. pg. 50. 139 Artigo X - Os poderes não delegados aos Estados Unidos pela Constituição, nem por ela negados aos Estados,

são reservados aos Estados ou ao povo.

116

americana mitigou o princípio das competências reservadas, reconhecendo a

competência do Congresso Nacional para legislar sobre o tema que foi atraído pela

Cláusula de Comércio.

“A Emenda assenta o truísmo de que tudo quanto não tenha sido cedido é retido.

Nada nos antecedentes da adoção desta Emenda sugere que algo mais que uma

declaração de relação existente entre os Governos nacional e estatal estabelecida

pela Constituição, ou que seu propósito fora o de acalmar o temor de que o

Governo nacional poderia intentar exercer os poderes não conferidos e que os

Estados não foram capazes de fazer pleno uso de seus poderes reservados.”

A decisão da Suprema Corte apagou a linha de divisão das

competências reservadas aos Estados-membros, que era definida pela Décima

Emenda. Assim, por obra da interpretação da Suprema Corte, a dicotomia entre

competência nacional e estadual declarada na Emenda passou a não mais obstar a

atuação do Governo federal.

A relevância adquirida pela cláusula de comércio, tem levado a

atuação federal não só em campos de regulação econômica mas também em matérias

sociais, laborativas, sanitárias, de meio ambiente, indústria, agricultura, transportes,

etc. dirigidas a evitar o parcelamento do mercado americano, de modo que se pode

considerar como uma cláusula horizontal de distribuição de competências.140

Portanto, o Poder Judiciário federal, além de outras atribuições, tem a

função de guardião dos limites constitucionais da distribuição de competências,

visando a manutenção da forma federativa. Contudo, como vimos no exemplo

americano, a atividade interpretativa pode variar de acordo com fatores políticos,

econômicos e sociais, levando a centralização de determinadas competências que, de

acordo com os princípios básicos do federalismo, seriam dos Estados-membros.

140 Ana Isabel Sanchez Ruiz. Federalismo e integracíon europea. La distribución de competencias en los

sistemas alemán y comunitario. Espanha, Biskaia: Instituto Vasco de Administración Pública. 1997, pg. 26.

117

Embora discutível tal situação, cabe ressaltar que, seja em favor da

competência do governo federal seja em favor do governo estadual, a função do Poder

Judiciário é uma das características fundamentais do federalismo.

118

3 - O FEDERALISMO BRASILEIRO

Inicialmente, cabe esclarecer, que realizaremos um breve relato sobre

o federalismo brasileiro, a fim de demonstrar como essa forma de Estado foi tratada

nos diferentes momentos históricos, o que nos levará à compreensão dos motivos pelos

quais o Supremo Tribunal tem adotado, em suas decisões, um posicionamento

centralizador.

O Federalismo foi implantado no Brasil por meio do Decreto nº 1, de

15 de novembro de 1889, que institui a República como forma de Governo e a

Federação como forma de Estado. O sistema monárquico do governo tinha perdido o

apoio da Igreja, dos militares, das lideranças civis e dos antigos senhores de escravos.

Isso fez com que não existisse uma maior resistência dos que apoiavam o sistema

anterior. A Proclamação da República foi pacífica, sem guerra nem derramamento de

sangue.

Aos anos que antecederam a Proclamação da República, surgiram

vários movimentos revolucionários: a Inconfidência Mineira (1789), a Conjuração

Baiana (1798) e a Revolução Pernambucana (1817). Todos esses movimentos já

traziam como ideal o sistema republicano de governo, o que era impulsionado pelos

ideais da Revolução Francesa. Contudo, Celso Ribeiro Bastos lembra que o primeiro

movimento revolucionário republicano federativo foi a Revolução Pernambucana de

1824, motivada pela dissolução da Assembléia Constituinte convocada por D. Pedro I.

Tal fato gerou revolta em Pernambuco e deu lugar a um movimento revolucionário

formado por várias províncias do Norte, culminando com a Proclamação de uma

Confederação do Equador, em 02 de julho de 1824, que depois foi sufocada. Em 1835,

no Rio Grande do Sul, foi proclamada a República Piratinim, que também foi

sufocada. Os ideais republicanos e federativos são reavivados em 1870, com a criação

do clube republicano, patrocinado pelo jornal “A Republica” e, posteriormente, em

119

1873 com a Convenção de Itu, onde foi aprovado o Congresso Republicano

Provincial.141

Segundo Raul Machado Horta142, a organização do Estado federal no

Brasil provocou uma série de debates sobre a natureza do Estado-membro, chegando

ao ponto, de alguns sustentarem a soberania desse último como decorrência da

dualidade soberana do Estado federal, o que ficou conhecido como ultra-federalismo.

Inicialmente, através do Decreto nº 1, de 15 de novembro de 1889 (arts. 2º e 3º)143,

chegou-se a proclamar a soberania dos Estados, o que esvaziaria a União. Assim, na

Constituição Federal de 1891 ficou expressa a marca do federalismo dualista.

Contudo, lembra Herculano de Freitas, em sua obra de Direito

Constitucional, do ano de 1923, que os Estados Federados, em que foram

transmudadas as antigas províncias do Império, não podiam pretender de modo algum

a qualidade de soberanos, de poder independente, que contrastassem com o poder

nacional.144

Na verdade, o sistema federal, sob o aspecto tributário, interessava às

províncias mais desenvolvidas do Sul e do Sudeste, especialmente São Paulo, onde se

concentrava o novo setor exportador. Em troca, às regiões menos desenvolvidas foi

oferecida representação mais do que proporcional no Poder Legislativo.145 O

presidencialismo forte e centralizado que tornava difícil a aplicação do princípio

federativo, fez com que algumas oligarquias rurais de São Paulo e Minas Gerais se

destacassem no campo político, dando início à conhecida política do “café com leite”,

141 Celso Ribeiro Bastos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2002, pg. 171 142 Raul Machado Horta. op. cit. pg. 24. 143 Os artigos Art 2º e 3º tinham a seguinte redação: Art. 2º “As Províncias do Brasil, reunidas pelo laço da

Federação, ficam constituindo os Estados Unidos do Brasil.” Art 3º - “Cada um desses Estados, no exercício

de sua legítima soberania, decretará oportunamente a sua constituição definitiva, elegendo os seus corpos

deliberantes e os seus Governos locais.” 144 Herculano de Freitas. op. cit. pg. 84. 145 José Serra e José Roberto Rodrigues Afonso. Federalismo Fiscal à Brasileira: Algumas Reflexões. Rio de

Janeiro: Revista do BNDES, v. 6, dez/1999, pg. 5.

120

pois os Estados de São Paulo e Minas Gerais passaram a se alternar na presidência do

Brasil até 1930.

O federalismo dualista de 1891 não se restaurou novamente. Em

seguida, na Constituição de 1934, foi instaurado o federalismo contemporâneo que

ampliou os poderes da União, implementou o Estado intervencionista e incorporou

matérias anteriormente confiadas aos Estados membros.146

É interessante observar, que a Constituição de 1891 foi afastada não

pela Constituição de 1934, mas sim pelo Decreto 19.398, de 11 de novembro de 1930,

que instituiu o Governo Provisório criado pela Revolução de 1930.

Os antecedentes históricos mostram que o Presidente Washington Luís

havia escolhido como seu candidato à sucessão Júlio Prestes, que se sagrou vitorioso

nas eleições de 1930, derrotando o candidato da oposição Getúlio Vargas. O

inconformismo dos derrotados, fez com que houvesse uma articulação das forças

políticas e militares no sentido de impedir a posse do eleito e derrubar o Governo de

Washington Luís. A vitória dos revolucionários fez com que Getúlio Vargas

ascendesse ao poder.

A Constituição de 1937, outorgada pelo Presidente da República

Getúlio Vargas, inaugura uma estrutura de Estado unitário descentralizado, muito

embora preconizasse a condição de Estado Federal do Brasil. Isso se deve ao fato de

que pouca obediência se prestou a essa Constituição, pois os Estados regiam-se pelo

Decreto-lei 1.202, de 8 de abril de 1939, e seus governadores eram nomeados pelo

Presidente da República. Além disso, não foram convocadas as eleições para o

Parlamento Nacional e muito menos para as Assembléias Legislativas.

146 Em 1891, não suportando a oposição do Congresso ao seu Governo, o Marechal Deodoro da Fonseca

renuncia e o vice-presidente, Marechal Floriano Peixoto, assume a presidência do Brasil.

121

Com a queda de Getúlio Vargas e o fim do Estado Novo em outubro

de 1945, foram realizadas eleições para uma Assembléia Constituinte e para Presidente

da República, sendo que o novo texto constitucional entrou em vigor em setembro de

1946, substituindo a Carta de 1937.

A Constituição de 1946 adequou a forma com a realidade.147 Assim, a

forma federativa foi restabelecida, mantendo-se até a edição do Ato Institucional de 9

de abril de 1964, que alterou a Constituição de 1946, fortalecendo a União em

detrimento dos Estados.

Após a renúncia de Jânio Quadros em 25 de agosto de 1961, os

ministros militares manifestaram-se contra a posse de João Goulart, tendo em vista

suas posições políticas consideradas de esquerda. Assim, muitos militares começaram

a trabalhar no sentido de desestabilizar o governo. A instabilidade militar foi agravada,

quando o Governador da Guanabara, Carlos Lacerda, em entrevista ao Los Angeles

Times fez duras críticas ao Governo e aos Chefes militares. Imediatamente, os

Ministros militares solicitaram ao Presidente que decretasse Estado de Sítio, mas o

pedido enviado ao Congresso, diante da negativa de vários parlamentares, foi retirado.

Esse fato revoltou os militares que, reservadamente, iniciaram os preparativos para o

golpe militar de 1964.

Após o golpe, a Constituição de 1946 se manteve por força do Ato

Institucional nº I148, que em seu artigo 1º149 estabelecia a vigência daquela e a das

Constituições dos Estados.

147 Michel Temer. op. cit. 71 148 A exposição de motivos do Ato Institucional nº I tenta demonstrar que a única solução que restou aos

militares foi o Golpe, conforme se verifica desse trecho: “Para demonstrar que não pretendemos radicalizar

o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas,

na parte relativa aos poderes do Presidente da República, a fim de que este possa cumprir a missão de

restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o

bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas

dependências administrativas. Para reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a

122

A linha centralizadora foi restaurada pela Constituição de 1967 e

confirmada pelos Atos Institucionais que seguiram. Muitas competências que

pertenciam aos Estados e aos Municípios passaram a ser da União. Neste momento, o

federalismo nacional se transmudou para unitarismo descentralizado, tendo em vista

que com o Ato Institucional nº 1 gerou uma descentralização exclusivamente

administrativa. No Brasil dominado pela ditadura, não havia eleição para governadores

dos Estados e nem para Presidente da República – eleito entre generais, de quatro em

quatro anos, por meio de um sistema de indireto e bipartidário.

Em 1979, o General João Baptista Figueiredo é escolhido sucessor do

Presidente Ernesto Geisel e imprime um ritmo maior ao processo de democratização

do País, fato este que havia se iniciado no final da gestão de seu antecessor. Essa

situação ocorreu, porque Geisel, em julho de 1978, editou uma série de medidas –

conhecidas como “Pacote de Julho” – que revogaram o Ato Institucional nº 5 e as

suspensões de direitos políticos. Posteriormente, Figueiredo, como um dos primeiros

atos de governo, concedeu anistia aos condenados por crimes políticos. Essa anistia

não era ampla e irrestrita, já que excluía os crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e

assassinato, mas incluía os crimes cometidos no exercício de funções das forças

armadas e da polícia.150

As eleições para os Governos estaduais de 1982, engrossaram o

movimento por eleições diretas para Presidente e pela elaboração de uma nova

Constituição. Contudo, o Congresso Nacional acabou aprovando eleições por Colégio

Eleitoral, em 15 de janeiro de 1985, contrariando a vontade popular. O vitorioso no

eito, Tancredo Neves, não chegou a assumir seu cargo em virtude de problemas de

saúde, vindo a falecer em 21 de abril de 1985.

revolução vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus

poderes, constantes do presente Ato Institucional”. 149 Art. 1º - São mantidas a Constituição de 1946 e as Constituições estaduais e respectivas Emendas, com as

modificações constantes deste Ato. 150 Celso Ribeiro Bastos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2002, pg. 225

123

A instalação da Assembléia Nacional Constituinte ocorreu em 01 de

fevereiro de 1987, sendo que com a Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988, o

Brasil retomou a linha federal de distribuição de competências administrativas,

legislativas e tributárias aos Estados-membros.

A história política nacional mostra que em diversos momentos nosso

federalismo apresentou traços de enfraquecimento ou de completa inexistência

material. O modelo de federalismo dualista adotado em 1891, foi resultado de uma

força centrífuga, ou seja, a transformação de um Estado unitário, onde competências

do Poder Central passam para os Estados-membros, em Estado federal. Neste sentido,

o máximo de descentralização é sempre um ideal a ser perseguido, contudo, nem

sempre é alcançado. A exemplo do que ocorreu durante a vigência das Constituições

de 1937 e 1967, qualquer movimento político centralizador encontra terreno fértil para

se desenvolver, pois o processo de descentralização é mais frágil do aquele que ocorre

nos Estados de formação federal centrípeta.

3.1 - Características do Estado Federal brasileiro

O federalismo nacional pode ser considerado como assimétrico, tendo

em vista que não segue a similitude das características tradicionais do Federalismo,

quando se trata de reconhecer o Município como ente federal, enquanto que, a

característica geral do federalismo determina apenas dois níveis de Governo.

Como vimos anteriormente e da mesma forma como o federalismo

americano, o federalismo nacional durante sua história foi alvo de uma série de

modificações, implementadas por novas ordens constitucionais que se seguiram a sua

implantação em 1891.

124

Contudo, para efeito do nosso estudo, passaremos à análise das

principais características da federação brasileira, de acordo com a Constituição de

1988.

3.1.1 – Ordens governamentais distintas e sua coexistência.

No federalismo brasileiro os Estados-membros gozam de autonomia,

que importa na possibilidade de auto-organização. Cada Estado recebeu da

Constituição Federal a possibilidade de se reger por sua própria Constituição, o que

significa que foram dotados de Poder Constituinte decorrente do Poder Constituinte

originário. A previsão de tal poder foi materializada pelo artigo 11, do Ato das

Disposições Constitucionais Transitória, que determinou, também, a limitação do

poder constituinte aos princípios estabelecidos na Constituição Federal.

A Constituição Federal impõe aos Estados a observância, sob pena de

intervenção federal, de princípios que devem ser adaptados pelo constituinte estadual

às peculiaridades locais151. O artigo 34, inciso VII, da Constituição Federal, traz a

previsão desses princípios, determinando que o Estado deve observar: a forma

republicana, o sistema representativo e o regime democrático; os direitos da pessoa

humana; a autonomia municipal; a prestação de contas da administração pública,

direta, indireta; e, a aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos

estaduais na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações públicas de saúde.

O federalismo instituído pela Constituição Federal de 1988, de forma

assimétrica, estabeleceu, além das duas ordens governamentais tradicionais do

federalismo (União e Estados), a inclusão dos Municípios como entes federais.

151 Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005, pg. 67.

125

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união

indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-

se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

Segundo José Afonso da Silva152 houve um verdadeiro equívoco do

constituinte ao incluir o Município como componente da federação, pois se trata de

divisão política do Estado- membro. Segundo o autor, a solução é considerar o

Município como componente da federação, mas não como entidade federativa.

As justificativas apresentadas pelo autor são as seguintes:

a) se os Municípios desaparecessem, a Federação continuaria a

existir;

b) a Federação não é a União de Municípios, mas de Estados;

c) quem decreta a intervenção nos Municípios é o Estado (salvo no

caso de Municípios localizados nos Territórios);

d) a criação de Municípios depende de lei estadual (art. 18, § 4º).

Para Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior 153 o

Município é integrante da Federação, tendo em vista que recebe competências

próprias, tem autonomia e pode auto-organizar-se através de lei orgânica. Dessa forma,

o Município só não possui representação junto ao Senado Federal, o que não é

suficiente para afastá-lo da condição de ente federado.

Com relação à representatividade, cabe lembrar, como já dissemos

anteriormente, que em países onde se adotou o unicameralismo, como é o caso da

Venezuela, a representatividade dos entes da federação não é feita por senadores, mas

pelos próprios deputados.154

152 José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. Pg. 103. 153 Luiz Alberto David Araujo. op. cit. pg. 169. 154 Na Venezuela a representatividade dos Estados é feita por um número fixo de deputados.

126

Para Paulo Bonavides155 não existe uma única forma de união

federativa contemporânea onde o princípio da autonomia municipal tenha alcançado

grau de caracterização política e jurídica tão alto e expressivo quanto ao que foi

apresentado na Constituição Federal de 1988. Segundo o autor, nunca esteve o

município numa organização federativa tão perto de configurar aquela realidade de

poder – chamada pouvoir municipal – quanto na Constituição brasileira, o que era

almejado por numerosa parcela de publicistas liberais dos séculos XVIII e XIX.

Realmente, é inegável a importância adquirida pelos Municípios

dentro da estrutura política adotada pela Constituição Federal. Assim, o Município é

chamado a cumprir seu papel de poder pré-estatal, portanto, se é verdade que os

Municípios estão inseridos dentro do contexto dos Estados-membros, também é

verdade que antes desses existirem, a legitimação do poder do Estado brasileiro era

realizada com base nos Municípios.

Por outro lado, a elevação do Município à condição de membro da

federação trouxe a atribuição de uma série de competências que muitas vezes não são

cumpridas. A totalidade dos Municípios brasileiros não tem condições financeiras de

cumprir o papel que lhes foi outorgado. O resultado é que a demanda social crescente

não é satisfeita, pois os recursos próprios e repasses financeiros do Município são

insuficientes, o que ocasiona uma dependência excessiva da União e dos Estados.

3.1.2 - Repartição de competências

A repartição de competências é a prova da autonomia do Estado-

membro e serve para manter o equilíbrio federativo. A divisão de competências ocorre

entre o poder central e as vontades parciais.

155 Paulo Bonavides. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, pg. 314.

127

Nosso sistema contempla competências atribuídas de forma exclusiva,

indelegáveis a outros entes federativos, e privativa, que podem ser delegáveis. A

indelegabilidade das competências constitucionais é a regra, frente à divisão de

competências. Em princípio, as competências atribuídas são sempre indelegáveis,

salvo expressa autorização constitucional. O artigo 22, que disciplina competências

legislativas privativas da União, por exemplo, traz em seu parágrafo único a

possibilidade de delegação de competências ao Estados, por meio de lei

complementar, para legislar sobre questões específicas relacionadas às matérias

tratadas no referido artigo.

Além desse aspecto, as competências estabelecidas pela Constituição

de 1988 foram divididas em dois grupos: materiais e legislativas.

As competências materiais referem-se às políticas administrativas a

serem realizadas pelo ente federal e foram estabelecidas no artigo 21 (privativa da

União) e no artigo 23 (competência comum dos entes federados). As competências

legislativas possibilitam a criação de normas abstratas e genéricas e foram

estabelecidas no artigo 22 (privativa da União) e no artigo 24 (concorrente entre a

União, Estados e Distrito Federal).

Cabe observar, que dentro das competências legislativas, a

Constituição autorizou a União, os Estados, Distrito Federal e Município a criarem

tributos, de acordo com que se verifica no artigo 145 da CF.

As competências, de uma forma geral, podem ser taxativas, como por

exemplo, as estabelecidas para os Municípios no artigo 30, ou residuais (alguns

chamam essas últimas de reservadas, outros de remanescentes), como as reservadas

aos Estados no parágrafo 1º do artigo 25 da CF.

O que se percebe ao analisar a distribuição de competências é que o

legislador constituinte adotou como critério “a predominância do interesse”. Os

128

interesses gerais ficaram a cargo da União; os regionais a cargo dos Estados e do

Distrito Federal; e, os locais aos Municípios e, também, ao Distrito Federal.

3.1.2.1. Competências Materiais

As competências materiais previstas na Constituição Federal foram

dividas em dois grupos (exclusivas e comuns), levando-se em consideração o exercício

partilhado ou não.

As exclusivas atribuem a uma entidade o exercício da competência

excluindo-se qualquer outra. O art. 21 da Constituição estabelece a competência

material exclusiva da União.

A Constituição, expressamente, enumerou as competências exclusivas

materiais da União (art. 21) e a dos Municípios (art. 30), deixando as residuais

(reservadas ou remanescentes) aos Estados, de acordo com o art. 25, § 1º.

Cabe observar, porém que a Constituição reservou aos Estados uma

competência exclusiva e expressa, descrita no artigo 25, § 2º, que trata da

possibilidade de exploração, direta ou indireta, dos serviços de gás canalizado.

As competências comuns também são conhecidas como cumulativas

ou paralelas, já que podem ser exercitadas conjuntamente pelos entes federais, estando

previstas no artigo 23 da Constituição. Neste grupo a atuação de um não exclui a dos

demais entes. O que se percebe é que a Constituição estabeleceu um rol de

competências que devem ser materializadas, daí a necessidade de serem partilhadas,

pois se um não exercitar a competência outro ente poderá fazê-lo.

129

3.1.2.2. Competências Legislativas

Com relação às competências legislativas, a Constituição utilizou um

critério de divisão horizontal, onde ficaram enumeradas as competências da União (art.

22) e dos Municípios (art. 30, inciso I). Ainda no plano horizontal, os Estados ficaram

com as competências remanescentes (art. 25, § 2º da CF).156

No plano vertical as competências foram distribuídas de forma

concorrente. Essa espécie de competência importa em reconhecer que a União a

exercitará a atividade legislativa estabelecendo normas gerais, cabendo aos Estados

exercer a competência de suplementar a legislação, levando-se em consideração as

particularidades de cada um.

Sempre que a União não exercitar a competência de editar normas

gerais, o Estado poderá exercitar a competência de forma plena. Havendo a edição de

norma geral superveniente pela União, a norma editada pelo Estado ficará suspensa se

contrariá-la.

Dentro do âmbito da competência concorrente, as normas gerais,

estabelecidas pela União, devem conter princípios fundamentais, o que indica que

essas normas não podem especificar situações, pois tal tarefa foi reservada aos

Estados, de acordo com o que dispõe o artigo 24, e seus parágrafos.

Contudo, o problema a ser enfrentado no âmbito da legislação

concorrente, refere-se aos limites entre o que é geral e o que é especial.

Por evidente, a tarefa dos Estados de suplementar a legislação federal,

deve ser realizada nos espaços deixados pela legislação geral. Assim, pode acontecer

que a norma geral tenha exaurido toda a matéria não deixando qualquer espaço para a

legislação suplementar dos Estados, ou que o Estado-membro acabe invadindo, ao

156 Luiz Alberto David Araujo. op. cit. pg. 172.

130

exercitar a sua competência, o espaço marcado para a legislação geral. De qualquer

forma, a parte que se sentir prejudicada, poderá recorrer ao Poder Judiciário, a fim de

que haja a delimitação dos dois âmbitos: geral e especial.

O Município recebeu a possibilidade de suplementar a legislação

federal e estadual, levando-se em consideração o interesse local.

No campo da competência legislativa tributária, a Constituição

estabeleceu no art. 145 a competência comum para União, Estados, Distrito Federal e

Municípios criarem impostos, taxas e contribuições de melhoria. Nos artigos 153, 155

e 156, ficaram expressos os impostos que cada ente da federação pode criar. É

interessante observar que no campo de distribuição de competência tributária houve a

inversão da regra segundo a qual as competências que não foram expressamente

entregas à União podem ser exercidas pelos Estados, pois a competência para criar

impostos não previstos expressamente passou para a União, conforme previsão do

artigo 154, inciso I, da Constituição Federal.

A Constituição estabeleceu, ainda, hipóteses de competência exclusiva

enumeradas, a saber: art. 18, § 4º; art. 25, §§ 2º e 3º; art. 27, § 4º; art. 31, § 1º; art. 27 §

2º; 128, §§ 4º 5º; art. 169 e 195. Além dessas, competências no ADCT também foram

atribuídas as referentes aos artigos 24, 39 e 41.

3.1.3. Repartição de rendas

Não há como se falar em autonomia sem que exista, também,

capacidade financeira. Assim, o ente federado deverá ter condições de arrecadar e

gerenciar suas próprias receitas com vistas a implementar as competências que lhe

foram atribuídas.

131

Nossa Constituição estabeleceu a possibilidade de obtenção de

receitas por parte dos entes federados no artigo 145 e seguintes, além da hipótese de

repartição de receitas no artigo 157 e seguintes.

O citado artigo 145 da Constituição cuida da competência tributária

comum dos entes da federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), que

podem instituir impostos, taxas e contribuições de melhoria. Através desses tributos, o

ente federal consegue amealhar as chamadas receitas próprias. O poder de tributar,

contudo, não é ilimitado, pois a Constituição estabeleceu como limites os direitos e

garantias individuais e as limitações expressas em seu artigo 150 (princípio da

legalidade, igualdade tributária, confisco, imunidades tributárias, etc).

A técnica utilizada pela Constituição, com referência a repartição de

competências, foi a de atribuir competências tributárias comuns a todos os entes

(União, Estados, Distrito Federal e Municípios), competências tributárias expressas e

remanescentes no tocante aos impostos.

A União foi contemplada com a possibilidade de instituir uma série de

impostos (competência expressas), definidos no artigo 153: importação de produtos

estrangeiros; exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados;

renda e proventos de qualquer natureza; produtos industrializados; operações de

crédito, câmbio e seguro, ou relativos a títulos ou valores mobiliários; propriedade

territorial rural; grandes fortunas, nos termos de lei complementar.

Além desses impostos, também ficou reservado à União a

possibilidade de instituir empréstimos compulsórios, mediante lei complementar, no

caso de despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, guerra externa ou

sua iminência e no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante

interesse nacional. É possível, ainda, a instituição de contribuições sociais de

intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou

econômicas.

132

À União, além daqueles impostos, foi deferida a competência

tributária residual, já que, de acordo com o artigo 154, inciso I, pode instituir, por

meio de lei complementar, impostos não previstos expressamente, desde que não

sejam cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos

discriminados na Constituição.

Aos Estados e ao Distrito Federal foi deferida a competência para

instituir e cobrar os impostos sobre: a transmissão causa mortis e doação, de

quaisquer bens ou direitos; operações relativas à circulação de mercadorias e

prestação de serviços de transporte; e, a propriedade de veículos automotores. Além

desses impostos, também ficou expressa a possibilidade de instituição de contribuição

social a ser cobrada dos servidores públicos estaduais.

Os Municípios também receberam competências tributárias expressas

para a instituição de impostos sobre: a propriedade predial e territorial urbana;

transmissão inter vivos; e, serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art.

150, inciso II da Constituição Federal.

Os entes federados, portanto, foram dotados de capacidade de obter

rendas por meio de competências próprias. Além disso, a Constituição demonstra

claramente a adoção de um federalismo de equilíbrio ao estabelecer a possibilidade de

repartição de receitas a ser realizada entre a União, os Estados, Distrito Federal e

Municípios. Dessa forma, parte do que a União arrecada com seus diversos impostos

são transferidos para os Municípios, Estados e o Distrito Federal (art. 157 da CF);

assim, como parte do que os Estados arrecadam são transferidos para os Municípios

(art. 158 da CF).

A propósito sobre a repartição de receitas, é interessante observar que

a concentração da arrecadação tributária federal nas regiões mais desenvolvidas tem

como contrapartida um esquema de divisão de impostos federais em favor de governos

estaduais que beneficia basicamente os das regiões menos desenvolvidas – sem contar

133

a maior participação dessas regiões na divisão de gastos federais diretos em ações

sociais básicas. Dessa forma, os governos estaduais das três macrorregiões menos

desenvolvidas detêm 33% do total da receita tributária disponível, proporção superior

a participação dessas regiões no PIB nacional, que é de aproximadamente 24,5%.157

Em relação aos gastos diretos federais, é interessante observar que na

região Sudeste são arrecadados cerca de 70% das contribuições incidentes sobre a

folha de salários, o faturamento e o lucro. Contudo, são despendidas parcelas bem

menores do que o total da despesa da União com algumas ações sociais básicas: 23%

da previdência rural; 29% dos benefícios continuados da assistência social; 37% da

merenda escolar e 40% dos principais programas de atenção à saúde. No Nordeste, que

responde por menos de 10% da arrecadação nacional daquelas contribuições, a

participação nos programas mencionados da previdência e da assistência é de cerca de

45%, sendo de 30% nos programas de ensino e saúde.158

Num país com tantas realidades desiguais, há a necessidade de se

estabelecer uma política de distribuição de receitas que contemple as regiões mais

pobres, sem que isso importe em desvalorização das regiões mais ricas.

3.1.4. Rigidez Constitucional

A base de um Estado Federal, como vimos anteriormente, é oferecida

pela adoção de uma Constituição escrita (nas Confederações o instrumento jurídico

que liga os Estados soberanos é o tratado internacional). Contudo, uma federação não

sobreviveria frente a uma Constituição flexível, pois ficaria a critério do legislador

ordinário a alteração das cláusulas federativas estabelecidas inicialmente pelo Poder

Constituinte originário.

157 José Serra e José Roberto Rodrigues Afonso. op. cit. pg. 11. 158 Barjas Negri. Saúde e outros gastos sociais – o avanço silencioso. Brasília, nov. 1999. Apud. José Serra e

José Roberto Rodrigues Afonso. op. cit. pg. 12.

134

Assim, nossa Constituição de 1988 demonstra sua rigidez ao

estabelecer um processo legislativo mais solene para a alteração de suas disposições,

adotando um sistema de emendas à Constituição, que devem obedecer à limitações

materiais, formais e de iniciativa legislativa.

A forma federativa encontra-se protegida pelas limitações materiais –

inciso I, do parágrafo 4º, do art. 60 –, pois foi erigida à condição de inatingível, mesmo

que pelo processo mais solene, o que a doutrina chama de cláusula pétrea. Não seria,

portanto, admissível uma alteração constitucional que modificasse a distribuição de

competência, concentrando-as na União, pois tal medida tenderia a abolir a forma

federativa; por outro lado, uma alteração que acentuasse a característica federativa,

com o remanejamento de competência para os Estados, por exemplo, seria

perfeitamente possível.

Verifica-se que a forma federativa está protegida contra eventuais

alterações constitucionais que importem em sua abolição. Contudo, isso não significa

dizer que a Constituição Federal tenha impedido qualquer alteração nas disposições

federativas.

Como vimos anteriormente, uma das características do federalismo é a

distribuição de competências entre os entes federados, portanto, a forma como essa

distribuição ocorre pode gerar uma tendência mais centralizadora ou mais

descentralizada de federalismo.

Nossa Constituição em seu artigo 60, § 4º, inciso I, protege o princípio

federativo de alterações, por meio do poder constituinte derivado reformador ou

revisional, proibindo modificações que possam comprometer a existência daquele

princípio.

135

Dessa forma, existem alterações constitucionais que podem ocorrer

sem que haja a tendência ao desaparecimento da federação e outras que configurariam

uma verdadeira centralização do Estado.

Assim, por exemplo, seria possível, em tese, a entrega aos Estados das

competências descritas nos artigos 22, inciso XXIV (organização, manutenção e

execução de inspeções do trabalho), art. 225, § 1º, inciso III (definição de espaços

dentro das unidades da federação que serão especialmente protegidos), artigos 39 e 40

(referentes ao regime jurídico dos servidores públicos), entre outros, sem que houvesse

qualquer violação ao princípio federativo.

Aliás, o repasse de certas competências fortaleceria a forma

federalista, com restauração de boa parte da autonomia dos Estados-membros.

Por outro lado, não podemos perder de vista que o desmantelamento

da federação poderia ocorrer por um desequilíbrio na entrega excessiva de

competências aos Estados, já que em nosso país as realidades regionais não são as

mesmas. O certo seria um equilíbrio na distribuição dessas competências.

Aliada a situação de distribuição de competências, visando o reforço

do federalismo, está a redistribuição de recursos públicos aos Estados-membros, já que

sob o aspecto econômico existe uma crescente falência desses entes, o que

compromete sensivelmente a federação.159

159 A dívida interna, mobiliária e bancária, assim como, a externa vencida e não paga, dos Estados e de grandes

municípios, foi consolidada e tem sido assumida pela União, mediante sucessivos programas de

refinanciamento desde o final da década de oitenta. Em troca dessas dívidas o Governo Federal: a) interveio,

liquidou ou vendeu a maior parte dos bancos estaduais – desde 1994, todos os grandes Estados tiveram seus

bancos estaduais privatizados, liquidados ou transferidos para a administração do Banco central; b) obteve a

suspensão da emissão de nova dívida mobiliária estadual ou municipal, mediante restrições contidas nos

contratos de refinanciamento; e, c) induziu a uma ampla desestatização nos governos subnacionais,

especialmente nas áreas de transportes e eletricidade. José Serra e José Roberto Rodrigues Afonso. op. cit.

pg. 20.

136

A federação brasileira encontra-se em um verdadeiro movimento de

acomodação, pois, com suas dimensões gigantescas, se expande sob todos os aspectos.

Logo, o modelo de federalismo adotado pelo Estado brasileiro – que se revela

centralizador – deverá ser objeto de uma série de modificações constitucionais, até que

encontre uma equilibrada distribuição de competências entre as vontades parciais e a

vontade central.

3.1.5. Pacto federativo e indissolubilidade do vínculo

Em nosso país, onde houve, como movimento inicial do federalismo,

a transformação de um Estado Unitário em Estado federal, com a emancipação das

antigas províncias para Estados-membros, o pacto federativo não antecedeu a

Constituição Federal de 1891. O pacto federativo, portanto, não ocorre de forma livre,

mas apareceu como uma verdadeira imposição do novo Estado que nascera com a

Proclamação da República.

A Constituição de 1891 previa essa emancipação e a indissolubilidade

da federação:

Art.1º - A Nação brasileira adota como forma de Governo, sob o regime

representativo, a República Federativa, proclamada a 15 de novembro de 1889, e

constitui-se, por união perpétua e indissolúvel das suas antigas Províncias, em

Estados Unidos do Brasil.

Art.2º - Cada uma das antigas Províncias formará um Estado e o antigo Município

Neutro constituirá o Distrito Federal, continuando a ser a Capital da União,

enquanto não se der execução ao disposto no artigo seguinte.

A independência nacional, em 1822, foi promovida quando o Brasil

era um Estado unitário e monárquico. Quando houve a Proclamação da República, o

Estado brasileiro impôs a forma federativa às províncias. Portanto, pacto federativo

137

não foi expressamente aceito, mas sim imposto. As Constituições seguintes

mantiveram o mesmo formato da Constituição de 1891.

Portanto, na verdade, em nossa Constituição de 1988 não existe a

declaração explícita do pacto federativo, mas sim a existência de um compromisso

federativo que é descrito nas regras federais adotadas pela Constituição.160

A indissolubilidade de vínculo na Constituição Federal de 1988

aparece no artigo 1º, que prescreve a união indissolúvel entre a União, Estados,

Distrito Federal e Municípios. Essa indissolubilidade encontra-se garantida pelo

disposto no artigo 34, inciso I da CF, que abre à União a possibilidade de intervenção

federal a fim de manter a integridade nacional.

3.1.6. Intervenção Federal

A intervenção federal tem por finalidade impedir a instabilidade

federativa, dotando-se a União de instrumentos capazes de restabelecer a ordem

violada. Após, cessadas as causas que ensejaram a intervenção, retorna-se a situação

anterior, devolvendo-se a autonomia ao ente federado. A regra constitucional é a não

intervenção da União nos Estados, nem desses nos Municípios ou daquela nos

Municípios localizados nos Territórios. Assim, somente por exceções expressas na

Constituição poderá ocorrer a intervenção federal.

A União é, no caso da intervenção federal, a representante da

federação e atua em nome dos Estados-membros, como se esses fossem os verdadeiros

interventores.

A excepcionalidade do instituto dificulta até mesmo o processo de

alteração da Constituição, pois se uma das vontades parciais encontra-se sob o

160 Raul Machado Horta. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2002, pg. 502.

138

comando do poder central, não há a possibilidade de alteração constitucional, é o que

determina o art. 60, § 1º da Constituição Federal.

O sistema brasileiro mescla a possibilidade de intervenção espontânea

e intervenção provocada.

Na espécie de intervenção espontânea o Presidente da República age

ex offício, verificadas as situações previstas nos inciso I, II, III e V do artigo 34 da

Constituição.

A intervenção provocada pode configurar, sob a perspectiva do

posicionamento jurídico do Presidente da República, duas hipóteses: a intervenção

provocada discricionária e a intervenção provocada vinculada.161

Na intervenção provocada discricionária o Poder Legislativo ou

Executivo “solicita” ao Presidente da República que decrete a intervenção, sempre que

houver coação impedimento do livre exercício desses Poderes (art. 36, inciso I). Neste

caso, o Presidente exerce um juízo de conveniência e oportunidade de seu ato, não

estando obrigado a decretar a intervenção.

Quando o Poder coacto for o Judiciário, ou seja, quando ocorrer

desobediência à ordem ou decisão judiciária e houver “requisição” do Supremo

Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Tribunal Superior Eleitoral,

haverá a hipótese de intervenção vinculada.

Outra hipótese de intervenção vinculada refere-se à Ação Direta de

Inconstitucionalidade interventiva, a ser proposta pelo Procurador Geral da República,

perante o Supremo Tribunal Federal, sempre que ocorrer desobediência aos princípios

constitucionais sensíveis, que estão estabelecidos no artigo 34, inciso VII, ou quando

161 Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Ed.

Saraiva, 2005, pg. 295.

139

houver recusa à execução de lei federal, de acordo com o artigo 36, inciso III, com

redação dada pela Emenda Constitucional nº 45.

Cabe informar, que Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva

será analisada à frente

3.1.7 – Poder Legislativo

O bicameralismo atende à forma federativa do Estado brasileiro, visto

que a Câmara dos Deputados é a representação da população (eleição proporcional) e

o Senado Federal a representação dos Estados membros e do Distrito Federal.

A participação dos entes federados na vontade nacional é o traço

característico do federalismo. Dessa forma, visando o equilíbrio de vontades parciais, a

representação dos Estados-membros é feita paritariamente, com três senadores por

Estado e Distrito Federal, com mandato de 8 anos (art. 46, §1º da CF).

A representação igualitária no Senado Federal num país de

desigualdades sociais e regionais como o Brasil, acaba criando uma série de distorções

no campo político. Assim, quarenta e três por cento (43%) da população brasileira

acaba detendo setenta e quatro por cento (74%) das cadeiras do Senado. A

concentração do poder no Senado tem especial importância, pois esta Casa detém a

maioria das competências relevantes para Federação Brasileira, tais como nomeação

de membros do Governo, autorização de financiamentos, decisão sobre

endividamentos, entre outras definidas no art. 52 da CF.

Na Câmara de Deputados, em relação à representatividade, a

proporcionalidade não resolve o problema da desigualdade entre Estados, pois existe

um limite máximo de setenta e no mínimo de oito deputados por Estados. Portanto,

nos Estados menos populosos da região Norte a eleição de um deputado chega a

140

requerer 16 vezes menos o número de votos do que é exigido para as regiões mais

populosas.162

Essas distorções na representatividade têm influência nas decisões

políticas tomadas pelo país, gerando certo desequilíbrio federativo em determinadas

situações, como por exemplo, a distribuição de verbas durante a aprovação das leis

orçamentárias, já que são permitidas emendas parlamentares nestas espécies

legislativas.

3.1.8 - Poder Judiciário Federal

O Poder Judiciário federal, representado pelo Supremo Tribunal

Federal, é dotado de atribuição para realizar o controle da repartição de competências

bem como o controle de constitucionalidade das normas estaduais e federais.

O sistema de escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal é

feito por meio de nomeação pelo Presidente da República, que detém o poder de livre

escolha entre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de

idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada, submetendo-se a essa escolha à

aprovação pela maioria do Senado Federal. Por sua vez, como vimos, a

representatividade na composição do Senado encontra-se comprometida, pois quarenta

e três por cento (43%) da população elege setenta e quatro por cento (74%) das suas

cadeiras.163

A soma desses dois fatores pode comprometer o órgão controlador do

modelo federalista, portanto, não é difícil que essas variações na escolha dos membros

162 José Serra e José Roberto Rodrigues Afonso. op. cit. pg. 15 e 16. 163 Durante o Governo Floriano Peixoto (1891 a 1894) o Senado rejeitou cinco indicações para Ministro do

Supremo: Barata Ribeiro, Innocêncio Galvão de Queiroz, Ewerton Quadros, Antonio Sève Navarro e

Demosthenes da Silveira Lobo. Durante a história dos Estados Unidos, em 214 anos de federalismo, o

Senado Americano rejeito 12 indicações presidenciais. (www.stf.org.br)

141

possam influir na estrutura federal, deixando transparecer uma visão mais

centralizadora dos dispositivos constitucionais.

Veremos ainda no decorrer desse trabalho, como têm sido as decisões

do Supremo Tribunal Federal no tocante à visão do federalismo adotado no Brasil.

3.1.9 – Constituições Estaduais

O artigo 25, da Constituição Federal de 1988, estabeleceu a

possibilidade dos Estados membros se auto-organizarem por meio de Constituições

Estaduais e por leis estaduais. Por sua vez, o artigo 11, do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias, estabeleceu o prazo para o exercício do poder

constituinte derivado decorrente, que por essa característica deveria ser exercido com a

observância dos princípios estabelecidos na Constituição Federal.

Assim sendo, os princípios estruturantes da Constituição, como por

exemplo, aqueles pertinentes à organização dos Poderes e ao processo legislativo,

devem ser simetricamente observados pelas ordens estaduais.164

Os municípios, muito embora, não tenham sido contemplados com

Poder Constituinte Decorrente, ganharam a possibilidade de se auto-organizarem por

meio de Lei Orgânica, desde que respeitados os princípios definidos nas Constituições

Estaduais e Federal.

3.1.10. Vedações federativas

O artigo 19, da Constituição Federal de 1988 estabeleceu três

vedações constitucionais aos entes federados, visando o equilíbrio e a integração da

164 Luiz Alberto David Araujo. op. cit. pg. 178.

142

Federação. Além desse dispositivo, verifica-se que o legislador constituinte também

limitou o poder de tributar dos entes federados (art. 150 a 152 da CF) objetivando o

mesmo propósito.

Dessa forma, estão proibidos à União, aos Estados, ao Distrito Federal

e aos Municípios: a) o estabelecimento de cultos religiosos ou igrejas oficiais,

embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou com seus representantes

relações de dependência ou aliança; b) recusa de fé aos documentos públicos; e, c) a

criação de distinção entre brasileiros ou preferências entre si.

A primeira hipótese está ligada a laicidade adotada pelo Brasil. Além

de se constituir em verdadeira proteção ao cidadão, que tem o direito de exercer a sua

liberdade de credo em relação ao Estado.

A segunda hipótese dirige-se a unidade federativa, já que proíbe que

um ente federativo recuse autenticidade a documentos expedidos por outro, tendo em

vista a sua procedência.

A terceira hipótese refere-se a criação de distinção entre brasileiros. A

vedação implica em assegurar o princípio da igualdade entre os brasileiros, tendo em

vista que o tratamento jurídico dispensado a esse não pode ser diferenciado em relação

à nacionalidade.

Além da vedação da criação de distinção entre brasileiros, fica

proibido, também, o estabelecimento de preferências entre os entes federais. Neste

caso, o que se busca é a igualdade entre os membros da federação, tendo em vista os

princípios federalistas. Como decorrência dessa previsão, encontramos dentro do

143

sistema tributário o princípio da imunidade recíproca (art. 150, inciso VI, letra “c”, da

CF), as vedações contidas nos incisos do art. 151 e a prevista no artigo 152 da CF.165

165 Questão interessante, refere-se ao artigo 187 do CTN, que estabelece preferência da União no recebimento de

tributos e preferência dos Estados em relação aos Municípios. O Supremo Tribunal Federal durante a

vigência da Constituição anterior editou a Súmula 563, que afirmava a sua constitucionalidade.

144

4 - O PODER JUDICIÁRIO E O FEDERALISMO

Como vimos, a forma federativa de Estado possibilita a existência de

um Poder Judiciário responsável pela coexistência entre as ordens jurídicas nacionais e

regionais. O Poder Judiciário desenvolve, portanto, o importante papel de regulador do

equilíbrio federativo. Esse papel é desempenhado por meio do controle das normas

infraconstitucionais, conforme veremos abaixo.

Na nossa forma de Estado federalista, derivada de movimento

centrífugo, verificamos que a Constituição reservou ao Supremo Tribunal Federal o

controle da autonomia do Estado-membro. Assim, o artigo 102, da Constituição

Federal, define a competência do Supremo: (a) para o julgamento das ações diretas de

inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual (inciso I, letra “a”,

primeira parte); (b) as ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato

normativo federal (inciso I, letra “a”, parte final), pois é possível a verificação da

constitucionalidade de uma lei, por exemplo, que tenha tratado de determinada matéria

de competência dos Estados-membros; (c) as causas e os conflitos entre a União e os

Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas

entidades da administração indireta; e, (d) a competência recursal, mediante recurso

extraordinário, pois esse pode ser veículo para análise de questões ligadas à forma

federal.

Segundo Raul Machado Horta em nosso federalismo de 1988, o

controle da autonomia constitucional do Estado-membro decorre de técnica e de regras

da Constituição Federal.

No plano das regras, o artigo 25 da Constituição, subordina a

organização dos Estados à observância dos princípios da Constituição Federal e

considera reservadas àqueles as competências que não lhes foram vedadas pela

Constituição (art. 25, §1º).

145

A técnica do controle, depois de percorrido longo período de sua

ausência, muitas vezes suprida pelo instrumento fulminante da intervenção federal,

como ocorreu na Primeira República, recebeu enquadramento na Constituição Federal

de 1946, para preservar princípios constitucionais lesados por ato estadual, mediante

iniciativa do Procurador-Geral da República (art. 8º, parágrafo único).

A representação de Inconstitucionalidade do Procurador-Geral da

República, implantada na via jurisprudencial, substituiu a intervenção federal,

assumindo a posição de instrumento de controle normativo das Constituições

Estaduais, quando o ato inconstitucional lesivo de princípio constitucional enumerado,

proviesse da atividade constituinte na elaboração da Constituição do Estado, sem

prejuízo da incidência da Representação sobre os atos legislativos estaduais,

acoimados de inconstitucionalidade, nos casos de outra natureza.

A representação de Inconstitucionalidade, objeto de lei ordinária na

vigência da Constituição de 1946, ingressou nas Constituições de 1967 (art. 11, § 1º,

letra c) e de 1988 (art. 34, VII), como poderoso instrumento de controle da autonomia

constitucional do Estado-membro, dispensado a decretação de intervenção federal,

expressamente autorizada pela Constituição.

Na Constituição de 1988, o controle da constitucionalidade da

Constituição do Estado recebeu notável ampliação, saindo do campo da intervenção

federal, para ingressar na competência do Supremo Tribunal Federal de processar e

julgar, originariamente, a Ação Direta de Inconstitucionalidade de lei ou ato normativo

federal ou estadual (art. 102, I, a).

Dessa forma, compete ao Judiciário, dentro do que ficou estabelecido

como competência de cada ente federal, controlar a autonomia estatal.

Assim, as competências legislativas privativas da União, que foram

expressamente previstas no art. 22, não podem ser apropriadas pelos Estados, sob pena

146

de serem consideradas inconstitucionais; da mesma forma, quando se tratam das

competências concorrentes do artigo 24 da Constituição, é possível o controle do

Poder Judiciário, visando à delimitação entre a competência União de estabelecer

normas gerais e a competência dos Estados de suplementar essas normas gerais.

4.1 – Controle de Constitucionalidade

Jürgen Habermas166 critica a posição de controle de

constitucionalidade de normas pelo Poder Judiciário. Segundo o autor, esse papel

desempenhado pelo órgão judicial acarretaria a invasão da normatividade estatal ao

mundo da vida (lebenswelt). Além disso, critica também a forma pela qual o órgão

julgador, por meio do processo interpretativo das normas infraconstitucionais, usurpa a

função legiferante incumbida ao Poder Legislativo, que é constituído por

representantes legitimamente eleitos pelo povo.167 A preocupação do autor realmente

procede, pois o órgão judicial pode atuar como legislador indireto.

No federalismo, muito mais que nos Estados Unitários, o controle das

normas infraconstitucionais é vital para o funcionamento e a existência dessa forma de

Estado. Por esse motivo, o controle de constitucionalidade acabou surgindo nos

Estados Unidos da América, a partir da criação do federalismo moderno.

O controle de constitucionalidade é contemporâneo ao

constitucionalismo escrito e rígido, evoluindo do seu surgimento na forma de controle

político dos fins do século XVIII para um poderoso controle jurídico de

constitucionalidade das leis, que foi obra da jurisprudência da Suprema Corte norte-

166 Jürgen Habermas. Uma conversa sobre questões de teoria política, Cebrap – Novos Estudos, nº 47, março de

1997, pg 100. Apud. Augusto Zimmermann. Teoria Geral do Federalismo Democrático. Rio de Janeiro:

Editora Lúmen Júris. 1999. 167 Augusto Zimmermann. op. cit. pg. 98.

147

americana, que elaborou a “American doctrine of judicial supremacy”.168 Cabe

observar, que o controle político nas federações, geralmente, pode levar ao

estabelecimento de conflitos, ante a existência de diversidade de interesses entre o

poder central e os poderes regionais. Portanto, antes de preservar as autonomias

regionais, o poder político pode produzir uma verdadeira deturpação do federalismo,

aumentando o poder central. Os criadores das normas seriam os encarregados da

observância dos limites do federalismo, o que, evidentemente, poderia não ser

obedecido.

Por esses motivos, o Poder Judiciário, tradicionalmente, passou a ser o

encarregado do controle de constitucionalidade, que está pautado pelo princípio da

supremacia da Constituição e, conseqüentemente, por todos os valores nela inseridos.

Kelsen demonstra dentro da estrutura da ordem jurídica, que essa não

é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, mas sim que uma norma

só é valida porque foi produzida por determinada maneira, prevista por outra norma,

que representa o fundamento imediato de validade daquela. A norma que regula a

produção é a norma superior, a norma produzida segundo as determinações daquela é a

inferior.169

Neste sentido, a regulação da produção das normas inferiores, feita

pela Constituição, deve vir acompanhada do estabelecimento de mecanismos de

controle de constitucionalidade.

168 Raul Machado Horta observa que antes da “American doctrine of judicial” a finalidade do controle tinha sido

pressentida no “Sénat Conservateur”, que foi o embrião desse controle de constitucionalidade. Sieyès foi o

autor da proposta de criação de um colegiado com 180 membros que seriam escolhidos pela Assembléia. A

proposta de Sieyès não foi aceita, mas em seu lugar surgiu o Senado Conservador, que era um órgão político

de controle de constitucionalidade. Raul Machado Horta. Direito Constitucional. pg. 134. 169 Hans Kelsen. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pg.246/247.

148

Nos interessa analisar, como deve ser feita a regulação da atividade

legislativa frente ao federalismo, ou seja, quais os mecanismos de controle em sede de

preservação das competências distribuídas pela Constituição.

Inicialmente, verificamos que a Constituição Federal de 1988,

estabeleceu a possibilidade da existência de dois controles de constitucionalidade, o

preventivo e o repressivo.

O controle preventivo ocorre durante o processo legislativo. A

Constituição estabelece o procedimento para a elaboração das normas. Assim, durante

o processo legislativo, pelo menos em duas ocasiões – tramitação pelas Comissões de

Constituição e Justiça e o veto presidencial por inconstitucionalidade –, existe um

controle preventivo que visa impedir a criação de uma norma inconstitucional.

Nas Comissões Permanentes de Constituição e Justiça o projeto de lei

é analisado com a finalidade de impedir o ingresso no ordenamento jurídico de uma

norma inconstitucional. A Constituição prevê a criação das Comissões no artigo 58.

O veto do Presidente da República pode ocorrer se este entender que o

projeto de lei aprovado pelo Poder Legislativo é inconstitucional ou contrário ao

interesse público (art. 66, § 1º).

O controle repressivo de constitucionalidade, realizado pelo Poder

Judiciário, teve início a partir da edição da norma tida por inconstitucional. Antes

desse momento, a regra era a da impossibilidade de controle jurídico. Entretanto, o

Supremo já decidiu que pode ocorrer controle jurisdicional sempre que, por

mandamento constitucional, estiver proibida a deliberação (votação) de uma matéria.

Isto ocorre, por exemplo, nas hipóteses do artigo 60, § 4º da Constituição, onde os

projetos de emendas que afrontem as matérias ali relacionadas não podem ser votados.

Caso haja a votação, poderá ocorrer, desde que provocado, o controle jurisdicional.

149

Os meios de controle repressivo podem ser divididos em dois grupos:

a) controle difuso (qualquer pessoa pode se utilizar), controle via

incidental (incidente processual), controle in concreto (frente a uma situação

concreta), controle por via de exceção (a alegação de inconstitucionalidade serve para

escapar aos efeitos da lei inconstitucional, muito embora não haja obrigatoriedade de

que o sujeito apenas se defenda, podendo atacar a lei inconstitucional) ou jurisdição

constitucional difusa (qualquer juiz pode analisar a inconstitucionalidade). Todas as

designações anteriores significam o mesmo controle, que pode ser exercido por quem

tenha legítimo interesse. A designação mais usual, e que utilizaremos a partir de agora,

é controle de constitucionalidade por via de exceção.

Lênio Streck lembra que o controle difuso permite que no curso de

qualquer ação, seja argüida a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, podendo

tanto ser municipal, estadual ou federal. Ao contrário da maioria dos países da Europa

– que, no pós guerra, estabeleceram Tribunais Constitucionais, onde a questão da

inconstitucionalidade é julgada per saltum (exceção feita à Portugal, que manteve ao

lado do controle concentrado, preventivo e sucessivo, o controle difuso) –, no Brasil

qualquer magistrado pode deixar de aplicar uma lei, por considerá-la inconstitucional.

Adverte o autor que os juizes não declaram a inconstitucionalidade, mas sim deixam

de aplicar uma lei por considerá-la inconstitucional.170

b) controle concentrado ou jurisdição constitucional concentrada

(só é exercido por uma Corte, no caso brasileiro pelo Supremo Tribunal Federal, que

tem competência para julgar as questões de inconstitucionalidade colocadas por esta

via), controle por via de ação direta (a ação de inconstitucionalidade não se verifica

no caso concreto, mas por uma ação própria que visa eliminar a lei em tese) ou

controle principal (o controle não ocorre no caso concreto). Como no controle

170 Lênio Streck. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma nova crítica ao Direito. Porto Alegre: Livraria

do Advogado, 2002, pg. 361.

150

anterior, todas as designações são aceitáveis e indicam uma característica, entretanto

usaremos a denominação controle por via de ação direta.

A via direta, para efeitos de nosso estudo, é a que mais nos interessa,

tendo em vista que é por essa via que o Supremo Tribunal Federal pode declarar a

inconstitucionalidade de normas que, eventualmente, tenham violado o princípio

federativo.

Dessa forma, sem a pretensão de esgotarmos esse tema, mas ante a

importância do controle de constitucionalidade para o federalismo e para análise que

pretendemos fazer, veremos, rapidamente, as espécies de controle de

constitucionalidade pela via direta:

a) Ação direta de inconstitucionalidade (art. 102, I, “a”) - essa

espécie de ação visa efetivar o controle de constitucionalidade de leis ou atos

normativos federais ou estaduais, a fim de combater a inconstitucionalidade formal ou

material dessas normas. Cabe observar, que esse instrumento é de suma importância

para forma federal, ante a possibilidade de controle da invasão das competências

constitucionais de um ente federal em relação ao outro.

b) Ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º) -

A ação direta de inconstitucionalidade por omissão obedece, em princípio, as mesmas

regras estabelecidas para ADIn. Entretanto, cabe esclarecer que este tipo de ação visa

expurgar do ordenamento jurídico não uma lei ou ato normativo inconstitucional, mas

sim um comportamento negativo inconstitucional daquele que deveria praticar certo

ato e não o fez. A omissão do legislador que deixa de criar lei necessária à eficácia e

aplicabilidade de normas constitucionais é o comportamento que deve ser considerado

inconstitucional. O controle da omissão por meio da ação de inconstitucionalidade foi

incorporado pelo texto de 1988, sob a inspiração do modelo português e iugoslavo.

151

c) Ação direta de inconstitucionalidade interventiva (art. 36, III); A

ação interventiva encontra fundamento na forma federalista e pode ocorrer tanto na

esfera federal quanto na estadual (já que existe a possibilidade de intervenção estadual

nos Municípios). O constituinte ao definir o federalismo como forma de Estado abriu a

possibilidade da federação intervir diretamente nos Estados, a fim de preservar a sua

própria existência. Neste caso, trata-se da possibilidade do Supremo Tribunal Federal,

verificando a violação aos valores definidos no texto constitucional – conhecidos por

princípios constitucionais sensíveis, no artigo 34, inciso VII –, decretar a intervenção

d) Ação declaratória de constitucionalidade (art. 102, I, “a”); A

emenda constitucional nº 3, de 17 de março de 1993, criou a Ação declaratória de

constitucionalidade de lei ou ato normativo federal. Posteriormente, a Emenda

Constitucional nº 45 alterou preceitos dessa espécie de ação, conforme se verificará

abaixo. O presente instrumento não serve para a declaração de constitucionalidade de

lei ou ato estadual, artigo 102, inciso I “a” da Constituição Federal. Dessa forma, com

referência ao federalismo, seria possível imaginar que uma lei federal, suscitada sua

inconstitucionalidade frente a invasão de competências de matéria reservada aos

Estados-membros, poderia ter sua constitucionalidade controlado por esse mecanismo.

Contudo, a hipótese contrária não seria possível.

e) Ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental (art.

102, § 1º). – o conceito de preceito fundamental engloba os direito e garantias

fundamentais da Constituição, bem como os fundamentos e objetivos da República. É

possível a argüição de descumprimento de preceito fundamental contra atos abusivos

do Executivo, Legislativo e Judiciário, desde que não caiba qualquer outra espécie de

ação capaz de assegurar o cumprimento do preceito fundamental. A lei 9882/99 ao

regulamentar a possibilidade de propositura da Ação de Argüição de Descumprimento

de Preceito Fundamental, restringiu a possibilidade de qualquer cidadão, de forma

individual, pleitear diretamente o seu direito. Além disso, ficou prevista, também, a

possibilidade do controle de constitucionalidade quando for relevante o fundamento da

152

controvérsia constitucional sobre a lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal,

incluídos os anteriores à Constituição.

Em suma, verificamos que os instrumentos de controle de

constitucionalidade são fundamentais para preservação da Constituição e de seus

valores, dentre os quais a forma federal. As normas infraconstitucionais retiram

fundamento de validade da Constituição e, portanto, a essa devem obediência, logo

qualquer disposição infraconstitucional violadora do federalismo adotado deve ser

banida da ordem jurídica nacional.

4.2 - Poder Judiciário como Interprete da Constituição

A tarefa de interpretar pode ser definida – como faz a maioria dos

autores – como a busca do sentido de uma norma ou o esclarecimento sobre sua

situação para melhor aplicá-la. Por evidente, essa não é uma atividade mecânica,

desprovida de qualquer influência que possa sofrer a pessoa do intérprete, que como

ser humano vivente, está sujeito a uma gama de fatores sociais, morais, econômicos,

políticos, religiosos, entre outros.

O Poder Judiciário atua não como mero aplicador da norma, mas,

também, como seu interprete. É ele quem retira da abstração da norma os valores que

devem ser aplicados ao caso concreto. A título de observação, verificamos em linhas

anteriores que o Supremo Tribunal ao apreciar a inconstitucionalidade de uma lei ou

ato normativo, pode realizar a chamada declaração de constitucionalidade “conforme a

Constituição”.

Nos Estados Unidos verifica-se que no momento criativo do controle

de constitucionalidade, ocorrido por força da famosa decisão do Chief Justice, J.

Marshall, no caso William Marbury v. James Madison, em fevereiro de 1803, a

preocupação com a interpretação da Constituição, conferiu ao Poder Judiciário a

153

atribuição de supremo intérprete da Constituição, em clara adoção do que havia

acentuado Hamilton nos texto do “Federalist”, quando destacou a importância de se

atribuir aos magistrados o direito de interpretação da Constituição.

Contudo, cabe indagar qual método deve o Poder Judiciário se utilizar

para efetivar suas interpretações, especialmente no tocante à preservação da forma

federativa? Para respondermos essa questão, que faz parte do cerne deste trabalho, faz-

se necessário a verificação, em primeiro plano, dos métodos de interpretação.

É possível buscar na doutrina a classificação dos métodos para se

atingir o “fenômeno” da interpretação, muito embora a existência de um método

interpretativo nos pareça limitar a ruptura dos paradigmas do sistema jurídico, na

medida em que o intérprete deve ficar preso à utilização dessa metodologia.

Com a finalidade de cumprir a forma didática que buscamos neste

trabalho, pedimos licença para citar a classificação de alguns métodos interpretativos:

a) interpretação gramatical - consiste no exame das expressões e

palavras, por meio das regras de sintaxe. A interpretação gramatical é a primeira a ser

realizada; muitas vezes, independentemente da vontade do intérprete, que só pode

galgar outros métodos interpretativos após a leitura do dispositivo que se apresenta

para ser interpretado. As regras da linguagem estão presentes em qualquer processo

interpretativo;

b) interpretação lógica – é obtida pela comparação de uma lei com o

ramo do direito que lhe deu origem, tomando-se o cuidado de verificar se ela não

contém contradições;

c) interpretação histórica – também chamada sociológica, é o exame

do ambiente que a determinou: as necessidades do grupo social ao longo de sua

154

história; os aspectos do momento da edição da norma; e, as relações que deve

disciplinar;

d) interpretação sistemática – é obtida com a acomodação da norma

a todo o ordenamento jurídico vigente, afastando-se os desajuste.

Outra classificação das interpretações pode partir da fonte de onde

emanam: interpretação autêntica, aquela realizada pela própria lei; interpretação

judicial, realizada pela autoridade judiciária; interpretação administrativa, feita pela

administração pública; e, interpretação doutrinal, que emana dos doutrinadores.

A interpretação judicial traz consigo a força da definitividade. As

decisões do Poder Judiciário possuem, portanto, este atributo, ou seja, uma vez

proferida uma decisão, que não caiba mais recursos, admite-se sua reforma apenas por

exceção.

Além disso, no tocante aos resultados obtidos, as interpretações

podem ser:

a) interpretação declarativa – quando o sentido da norma pode ser

capitado de imediato, ou seja, as palavras do legislador expressam a sua vontade;

b) interpretação extensiva – quando a norma não chegou a atingir

todas as situações que deveriam ser disciplinadas por essa, assim o intérprete deve

ampliar os sentidos da norma para que todas as situações sejam atingidas;

c) interpretação restritiva – ocorre quando a norma atingiu situações

que não deveriam ser atingidas, cabendo ao intérprete a redução da interpretação a fim

de excluir tais situações.

155

Esses métodos interpretativos são utilizados para as leis em geral,

contudo, em relação à Constituição Federal os métodos podem variar. Na lição de J.J.

Gomes Canotilho171 existem uma série de métodos de interpretação da Constituição:

método jurídico (hermenêutico clássico); o método tópico-problemático (tópoi:

esquema de pensamento, raciocínio, argumentação, lugares comuns, pontos de vista);

o método hermenêutico-concretizador

Assim, pedimos licença para analisar de forma rápida cada um desses

métodos, citados pelo autor.

O método jurídico (método hermenêutico clássico) parte de uma

consideração de que a Constituição é para todos os efeitos uma lei, devendo ser

utilizadas regras de hermenêutica tradicional. Elementos interpretativos: do elemento

filológico; do elemento lógico; do elemento teleológico; Método científico-espiritual

(método valorativo, sociológico). A articulação destes vários fatores hermenêuticos,

nos conduz a uma interpretação jurídica.

O método tópico-problemático (tópoi: esquema de pensamento,

raciocínio, argumentação, lugares comuns, pontos de vista) parte de uma

interpretação do problema argüido para chegar à solução interpretativa. O método

tópico-problemático parte das seguintes premissas: (a) caráter prático da interpretação,

dado que, como toda a interpretação, procura resolver problemas concretos: (b) caráter

aberto, fragmentário ou indeterminado da lei constitucional; (c) preferência pela

discussão do problema em virtude da “open texture” das normas constitucionais, que

não permitiriam qualquer dedução a partir delas mesmo.

A interpretação da Constituição reconduzirá a um processo aberto de

argumentação. Os aplicadores e interpretadores devem se servir de vários tópoi ou

pontos de vista. Esses vários tópicos teriam como função: (1) servir de auxiliar de

171 J.J. Gomes Canotilho. op. cit. pg. 1085 a 1112.

156

orientação para o intérprete; (2) constituir um guia de discussão dos problemas; (3)

permitir a decisão do problema jurídico em discussão.

O método hermenêutico-concretizador, segundo o Autor, demonstra a

idéia de que a leitura de um texto normativo se inicia pela pré-compreensão do seu

sentido através do intérprete. A interpretação da Constituição não foge a este processo:

é uma compreensão de sentido, um preenchimento de sentido juridicamente criador.

Este, método vem realçar e iluminar vários pressupostos da tarefa interpretativa.

O método hermenêutico é uma via que se orienta não para um

pensamento axiomático, mas para um pensamento problematicamente orientado. Este

método afasta-se do método tópico-problemático, porque enquanto o último pressupõe

ou admite o primado do problema perante a norma, o primeiro assenta no pressuposto

do primado do texto constitucional em face do problema.

No método científico-espiritual (método valorativo, sociológico) as

premissas baseiam-se na necessidade de interpretação da constituição tendo como

bases: as valorações subjacentes ao texto constitucional; o sentido e a realidade da

constituição como elemento do processo de integração.

A metódica jurídica normativo-estruturante busca o estudo da

estrutura da norma, sendo que seus principais postulados são: (a) preocupar-se com a

estrutura da norma e do texto normativo, com o sentido de normatividade e de

processo de concretização, com a conexão da concretização normativa e com as

funções jurídico-práticas; (b) o texto de um preceito jurídico positivo é apenas a parte

descoberta do iceberg normativo, correspondendo em geral ao programa normativo.

Não obstante essas classificações e métodos, adotando a lição de

Lênio Luiz Streck, temos que ainda está presente no pensamento dogmático a crença

de que ao intérprete é possível extrair o sentido da norma, como se este estivesse

contido naquela, enfim, como se fosse possível extrair o sentido-em-si-mesmo. Assim,

157

a dogmática trabalha no plano meramente epistemológico, deixando de lado o

processo ontológico da compreensão. Por isso, não raras vezes encontramos, no dizer

do autor, conceitos como:

“o processo interpretativo possibilita que o sujeito (a partir da certeza-de-si-do-

pensamento-pensante, enfim, da subjetividade instauradora do mundo) alcance a

“interpretação correta”, o “exato sentido da norma”, “o exclusivo

conteúdo/sentido da lei”, “o verdadeiro significado do vocábulo”, “o real sentido

da regra jurídica”, etc.”172

Quando se verifica que a interpretação pode ser definida como o

processo pelo qual se extrai do texto o significado e o alcance da norma, para sua

adequada aplicação, percebe-se que realmente a hermenêutica encontra-se

fundamentada em processo objetivista, com conceitos predeterminados.

“De uma forma mais genérica, é possível afirmar que, explícita ou implicitamente,

parcela expressiva da doutrina brasileira sofre influência da hermenêutica de

cunho objetivista de Emílio Betti, baseada na forma metódica e disciplinada da

compreensão, onde a própria interpretação é fruto de um processo triplo que parte

de uma abordagem objetivo-idealista. Com isso, a interpretação é um processo

reprodutivo, pelo fato de interiorizar ou traduzir para a sua própria linguagem

objetificacões da mente, através de uma realidade que é análoga à que originou

uma forma significativa. Assim, a atribuição de sentido e a interpretação são

tratadas separadamente, pois Betti acredita que só isso vai garantir a objetividade

dos resultados da interpretação.”173

A crítica do autor se dirige, também, sobre o modus interpretativo que

ainda domina o pensamento jurídico e continua a polemizar sobre a dicotomia em

torno da “voluntas legis” e “voluntas legislatoris” 174. Assim, não é pouco usual

172 Lênio Luiz Streck. Jurisdição constitucional e hermenêutica. São Paulo: Editora Forense, 2004, pg. 39. 173 Lênio Luiz Streck. op. cit ,pg. 40. 174 Ementa: Professores da Escola de Aeronáutica. Lei 369-A de 09/09/1948. Em regra, deve o intérprete tomar

as palavras da lei no sentido técnico-jurídico. Mas quando isso conduz a torná-la inútil num dos objetivos a que

visou, deve-se antes entender as palavras da lei de modo a evitar que se contrarie a voluntas legis. Proibição de

158

encontramos citações ao “espírito do legislador” ou à “vontade do legislador”, como

se fosse possível ao intérprete identificar, pela simples avaliação da norma, a “vontade

do legislador”. Esse método indica a existência de uma corrente subjetivista. Por outro

lado, uma corrente objetivista é verificada quando se busca avaliar a “vontade da

norma” – como se fosse possível aferir a existência desta. É possível ainda, verificar a

coexistência dos dois métodos interpretativos.

É inegável que na busca da “vontade da norma” ou da “vontade do

legislador”, o intérprete deve estabelecer um processo dedutivo, onde se busca

elementos para justificar a interpretação que por ele foi dada. Neste sentido, o

intérprete muitas vezes ajusta, para satisfazer a sua interpretação, a presumida

“vontade da norma” ou a “do legislador”.

Outro fator complicador, segundo o mesmo autor, refere-se a

interpretação de textos ou expressões com sob o manto do regime constitucional

anterior, deixando de lado o texto constitucional atual. Não há, portanto, uma quebra

dos paradigmas anteriores e a mesma interpretação é sempre repetida, mesmo sob a

égide de um novo comando constitucional.

A existência de uma metodologia de interpretação, segundo Lênio

Luiz Streck, dividida em fases, não pode causar surpresas o fato da Constituição não

provocar uma imediata modificação no processo hermenêutico dos textos

infraconstitucionais.

Além disso, o texto constitucional pode sofrer constantes ataques pela

atividade legislativa infraconstitucional, que está ligada diretamente à concepção de

acumular o militar, ainda que da reserva ou reformado, os proventos do seu posto com os de outra função pública

(art. 182, 5 da Constituição) RMS 1923 / DF - DISTRITO FEDERAL. RECURSO EM MANDADO DE

SEGURANÇA. Relator(a): Min. LUIZ GALLOTTI. Julgamento: 21/01/1953 Órgão Julgador: TRIBUNAL

PLENO. Publicação: DJ DATA-22-10-1953. EMENT VOL-00148-01 PG-00051 ADJ DATA-14-12-1953 PG-

03782

159

Estado vigente/dominante. No Estado liberal a hermenêutica dominante é a de

bloqueio, pois está preocupada com a preservação da liberdade jurídica, enquanto que

no Estado Social a hermenêutica busca a satisfação das aspirações sociais.

A questão da interpretação para o nosso estudo é de fundamental

importância, tendo em vista que no caso do Poder Judiciário, cujas decisões tem força

definitiva, as questões fundamentais sobre o federalismo, quando resolvidas por esse

poder, podem levar à centralização de competências nas mãos da União. É o Poder

Judiciário, como interprete da Constituição, que tem o poder de definir, portanto, se

em determinada situação houve invasão de competência de um ente federal por outro.

Hans Kelsen175, ao definir o processo de interpretação como “uma

operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu progredir

de um escalão superior para um escalão inferior”, estabelece as diferenças entre

interpretação realizada pelo órgão jurídico (interpretação autêntica) e aquela que não é

realizada por esse órgão, mas por uma pessoa privada, e, especialmente, pela ciência

jurídica.

A relação entre um escalão superior e um inferior da ordem jurídica,

como, por exemplo, a relação entre a Constituição e lei, ou entre lei e sentença

judicial, é uma relação de determinação ou de vinculação, pois a norma de escalão

superior define como deve ser produzida a norma de escalão inferior ou o ato de

execução, além de fixar os conteúdos dessas normas e a forma de realização dos atos

de execução.

Contudo, Kelsen adverte que a vinculação não é feita sob todos os

aspectos, pois sempre deve existir uma margem de liberdade reservada ao intérprete,

ora maior ora menor, em todas as direções. Neste sentido, a norma superior tem

sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o

caráter de um quadro ou moldura a ser preenchida por esses.

175 Hans Kelsen. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003, pg. 385.

160

Essa indeterminação, por outro lado, pode ser intencional ou não

intencional. No primeiro caso, o legislador propositadamente deixa ao criador da

norma jurídica inferior ou ao executor do ato a liberdade da aplicação do direito. No

segundo caso, não intencional, temos uma pluralidade de significações de palavras ou

uma seqüência de palavras em que a norma se exprime, cujos conteúdos podem ser

preenchidos, mas que não foram intencionalmente deixados vagos pelo legislador. O

sentido verbal da norma não é unívoco e o órgão aplicador tem que encontrar uma

dentre várias significações possíveis. A mesma situação ocorre quando o executor

aceita como possível a existência de discrepância entre a expressão verbal e a vontade

do legislador, passando assim, a investigá-la por outras fontes, que não a expressão

verbal da norma.

Assim, a interpretação não deve conduzir a uma única solução, mas a

uma dentre várias – muito embora, apenas uma se tornará direito para o aplicador.176

Para o autor, a jurisprudência tradicional entende como lícita a

existência de apenas uma única solução correta e justa:

A jurisprudência tradicional crê, no entanto, ser lícito esperar da interpretação

não só a determinação da moldura para o ato jurídico a pôr, mas ainda o

preenchimento de uma outra e mais ampla função – e tem tendência para ver

precisamente nesta outra função a sua principal tarefa. A interpretação deveria

desenvolver um método que tornasse possível preencher ajustadamente a moldura

prefixada. A teoria usual da interpretação quer fazer crer que a lei, aplicada ao

caso concreto, poderia fornecer, em todas as hipóteses, apenas uma única solução

correta (ajustada), e que a “justeza” (correção) jurídico-positiva desta decisão é

fundada na própria lei. Configura o processo desta interpretação como se se

176 É importante observar que o autor faz expressa distinção entre a interpretação autêntica, feita pelo órgão

encarregado da aplicação do direito e a interpretação não autêntica ou interpretação da ciência jurídica, que é

realizada por um processo de cognição do sentido das normas jurídicas. Neste último caso – ciência jurídica -

,a Teoria Pura do Direito não admite que essa interpretação possa levar a criação de Direito novo, pois ela

conduz, apenas, ao estabelecimento de possíveis significados de uma norma jurídica. É realizada, por

exemplo, por um advogado, ao analisar o caso de um cliente, ou por um estudante do direito.

161

tratasse tão-somente de um ato intelectual de clarificação e de compreensão, como

se o órgão aplicador do Direito apenas tivesse que pôr em ação o seu

entendimento (razão), mas não a sua vontade, e como se, através de uma pura

atividade de intelecção, pudesse realizar-se, entre as possibilidades que se

apresentam, uma escolha que correspondesse ao Direito positivo, uma escolha

correta (justa) no sentido do Direito positivo.177

Portanto, para concluir o pensamento do autor, as normas sempre

deixam, intencionalmente ou não, uma relativa indeterminação do ato de aplicação do

Direito. A interpretação é a forma pela qual, tendo em vista uma pluralidade de

significações de palavras – ou seqüência de palavras – em que a norma se exprime ou

a aceitação pelo interprete de que existe divergência entre a vontade do legislador e a

expressão verbal utilizada, busca-se o preenchimento da moldura ou quadro em que se

constituiu a norma superior. O trabalho de preenchimento da moldura, com a

conseqüente criação de Direito, realizado pelo Judiciário, conduz, dentre as várias

interpretações possíveis, a uma única solução.

Transportando o ponto de vista de Kelsen para o sistema adotado pela

Constituição de 1988, verificamos que expressões contidas na divisão de competência

legislativas, tais como trânsito e transporte, nacionalidade, produção e consumo,

deverão ter seus conteúdos definidos em uma atividade legislativa inferior, pois houve

uma relativa indeterminação (intencional ou não). Posteriormente, o Poder Judiciário

poderá aparecer como órgão verificador dessa atividade legislativa infraconstitucional,

caso ela seja contestada em face da Constituição.

4.3 - Das Decisões do Supremo Tribunal Federal em sede de controle da forma

Federal

Como vimos o Judiciário é o supremo intérprete das normas a serem

aplicadas. É inegável que a interpretação, levando-se em consideração uma série de

fatores políticos, sociais, econômicos, entre outros, pode não apresentar uma

177 Hans Kelsen. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003, pg. 391.

162

uniformidade ao longo do tempo. Além disso, como veremos, nem sempre o que se

extrai do conteúdo da norma, durante o processo interpretativo, se ajusta aos modelos

adotados pelo Estado.

Analisando-se a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal,

pudemos notar que logo depois de promulgada a Constituição de 1988, ainda não

existia uma definição dos parâmetros que seriam adotados com relação à forma

federativa, o que reforça a tese de que a força interpretativa do Judiciário pode

conduzir a uma versão mais ou menos centralizadora de federalismo.

Na concessão de liminar na Adin 276 MC referente à vantagens

concedidas à servidores públicos, mais especificamente referente à licença especial,

que permitia a conversão do prazo em abono pecuniário ou contagem dobrada do

período gozado, para fins de aposentadoria e adicionais por tempo se serviço, o

Supremo Tribunal analisando a questão, estabeleceu que ainda não existia uma

orientação jurisprudencial daquela Corte a respeito da nova concepção de federalismo

inaugurada pela Constituição de 1988.

Naquela oportunidade o Ministro Celso de Mello ao reconhecer

presentes os pressupostos para a concessão da cautelar, proferiu a seguinte

manifestação:

“O Supremo Tribunal Federal ainda não definiu, sob o regime da vigente ordem

constitucional, se os princípios que informam o processo legislativo impõem-se aos

Estados-membros como padrões jurídicos de compulsória observância. O tema da

autonomia das unidades federadas, suscitado na perspectiva da nova concepção

de federalismo consagrada pela vigente carta política, foi, no entanto, considerado

de extremo relevo jurídico pelo STF (ADIn-216-pb). A autonomia dos Estados-

membros constitui um dos elementos essenciais a própria conceitualização do

estado federal, cujo tipo histórico, variável na evolução do constitucionalismo

brasileiro - Federalismo dual ou dualista (cf 1891), federalismo de cooperação (cf

1934), federalismo de integração (carta de 67) - Enseja abordagens varias, quer a

partir das múltiplas tendências já positivadas na experiência constitucional

163

comparada (federalismo de equilíbrio e federalismo hegemônico), quer de

proclamações doutrinarias, tais como as que preconizam o federalismo das

regiões. Impõe-se a suspensão cautelar de regras inscritas em constituições

estaduais, cujo conteúdo normativo esteja em aparente desarmonia com o modelo

federal atinente ao processo legislativo, até que a Suprema Corte defina a

extensão e o alcance do poder constituinte dos Estados-membros.”178

A questão contida na decisão do Ministro Celso de Mello, referia-se

ao fato de que o constituinte federal de 1988 foi silente sobre a obrigatoriedade da

adoção das regras do processo legislativo da União pelos Estados-membros,

especialmente no tocante à reserva da iniciativa das leis.

Ocorre que a Constituição Federal de 1967, com posterior alteração do

Ato institucional nº 01/1969, trazia em seu artigo 13, inciso III, expressamente, a

obrigatoriedade da observância pelos Estados-membros do processo legislativo

adotado pela União, o que traduzia uma das faces do seu centralismo.

“Art. 13 – Os Estados se organizam e se regem pelas Constituições e pelas leis que

adotarem, respeitados, dentre outros princípios estabelecidos nesta constituição,

os seguintes:

(...)

III – o processo legislativo;”

Tal previsão não ocorreu na Constituição Federal de 1988, que se

limitou a estabelecer que as Constituições Estaduais deveriam respeitar os princípios

estabelecidos por aquela, conforme se verifica da redação do artigo 11 do Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias.

No caso que apresentamos, a interpretação do Supremo teve papel

fundamental para definir a possibilidade do Estado-membro adotar regras próprias de

processo legislativo, o que levaria a um federalismo dotado de maior autonomia para

162 Celso de Mello. Adin 276 – MC. Julgamento: 30/05/1990. Publicação: DJ DATA-17-08-90

164

aqueles entes. Talvez a interpretação que mais se ajustaria ao modelo de federalismo

seria a de deixar aos Estados a possibilidade de definirem o processo legislativo.

Contudo, temos que reconhecer, que tal interpretação, apesar de bem vinda para o

federalismo, seria extremamente difícil de ocorrer mesmo diante do silêncio do

legislador constituinte.

Assim, o Supremo preferiu adotar uma posição mais centralizadora ao

julgar definitivamente a questão, estabelecendo a compulsoriedade na observância do

processo legislativo pelos Estados-membros.179

No julgamento definitivo da questão o Relator, Min. Sepúlveda

Pertence, fundamentou sua decisão na observância do princípio da separação dos

poderes que deveria ser observado pelo legislador constituinte estadual, em detrimento

do princípio da autonomia federal do Estado-membro.

Segundo o citado Ministro, o fato da Constituição Federal de 1988 não

ter inserido entre os princípios sensíveis do artigo 34, inciso VII, o processo

legislativo, não autoriza a sua não observância pelo legislador constituinte derivado,

pois a independência e harmonia dos poderes, do art. 2º, é um princípio fundamental

179 ADIN 276/AL – ALAGOAS. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Ementa: Processo

legislativo: modelo federal: iniciativa legislativa reservada: aplicabilidade, em termos, ao poder constituinte

dos Estados-membros. 1. As regras básicas do processo legislativo federal são de absorção compulsória pelos

Estados-membros em tudo aquilo que diga respeito – como ocorre às que enumeram casos de iniciativa

legislativa reservada – ao princípio fundamental de independência e harmonia dos poderes, como

delineamento na Constituição da República. 2. Essas orientações malgrado circunscrita em princípio ao

regime dos poderes constituídos do Estado-membro – é de aplicar-se em termos ao constituinte local, quando

seu trato na Constituição estadual traduza fraude ou obstrução antecipada ao jogo, na legislação ordinária,

das regras básicas do processo legislativo, a partir da área de iniciativa reservada do executivo ou do

judiciário: é o que se dá quando se eleva ao nível constitucional do Estado-membro assuntos miúdos do

regime jurídico dos servidores públicos, sem correspondência no modelo constitucional federal, a exemplo

do que sucede na espécie com a disciplina de licença especial e particularmente do direito à sua conversão

em dinheiro. Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. Julgamento: 13/11/1997. Publicação: DJ DATA-

19/12/1997

165

do regime constitucional da República. Na longa explanação feita no julgado, o relator

comparou os chamados “princípios constitucionais sensíveis” com os “princípios

fundamentais”, deixando de lado a avaliação sobre a aplicabilidade do princípio da

autonomia do Estado, que orienta a forma federal.

Geraldo Quintão, então Advogado Geral da União, defendeu a

autonomia do Estado-membro como meio de preservar a forma Federal:

“Na lei fundamental vigente não se vê reproduzido dispositivo semelhante ao

aludido artigo 13 da E.C. n 1, de 1969. Segue-se que o federalismo brasileiro está

mais próximo do federalismo americano: “São reservados aos Estados as

competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição.” (art. 25, § 1º)

Não há mais preceitos extensíveis restritivos da autonomia estadual. A restrição a

esta ou vem expressa ou implicitamente inscrita na Carta Federal ou decorre dos

princípios adotados como fundamentais ou conaturais à estrutura fundamental da

República brasileira.

Constata-se, assim, como exemplo, que na omissão do inciso III do artigo 1 da

Constituição derrogada, ou seja, “o processo legislativo”, da Carta atual, a

deliberada intenção do Constituinte Federal de suprimir o princípio até então

contido.”

Nesse sentido, a autonomia do Estado-membro deveria ser mantida,

tendo em vista que o legislador constituinte não produziu qualquer restrição referente à

observância do processo legislativo.

Como se vê, ao invés da modernidade do atual ordenamento

constitucional, o Supremo Tribunal Federal preferiu realizar uma interpretação com

base em dispositivo da Constituição anterior. Revelando o continuísmo da tutela da

União, o Supremo adotou como paradigma a posição centralista da Constituição de

1967, mesmo sem que a atual Constituição determinasse a observância do processo

legislativo pelos Estados-membros.

166

Portanto, pelo presente julgado e por outros que se seguiram, o Poder

Constituinte deferido aos Estados-membros deveria seguir as regras do processo

legislativo federal de forma simétrica. Os Estado-membros passaram a ter que

observar no processo legislativo estadual, mutatis mutantis, as regras de iniciativa,

discussão e votação, sanção e veto

4.3.1 - A centralização das decisões do STF

O trabalho de interpretar a Constituição delimitando o campo de

competência de cada ente federal, durante o processo de julgamento dos litígios que

envolvam os entes federais, pode revelar uma maior ou menor tendência à

centralização no Estado Federal.

No federalismo americano a adoção da teoria dos poderes implícitos e

as intromissões federais nos campos de atuação próprios do Estados–membros, a partir

da crise de 1929, foram chanceladas pela Suprema Corte daquele país. A divisão

estanque de competências entre os Estados e a Federação passou por um processo

lento de corrosão, dando lugar a um sistema de relações entre governos que ficou

conhecido como federalismo de cooperação ou contemporâneo.

O nosso federalismo cooperativo é representando por um campo de

competências comuns entre a Federação e os Estados, o que se convencionou chamar

de distribuição horizontal de competências.

Nesse sentido, seria possível indagar se, com a adoção do federalismo

de cooperação, houve a centralização do Estado brasileiro, quase o transformando em

um Estado Unitário? A resposta deve ser negativa. No caso americano as decisões da

Suprema Corte conduziram a passagem de uma forma de federalismo para outra, que

acabou por ruir as bases do antigo federalismo dual. Isso não significa, contudo, que os

Estados Unidos viraram um Estado unitário. No caso brasileiro, a forma federal

167

cooperativa veio esculpida na Constituição Federal de 1988, cabendo ao Poder

Judiciário a manutenção dessa forma de Estado, sem pender para centralização de

competências.

Entretanto, não é esse o comportamento demonstrado pelo Supremo

Tribunal Federal. A análise da jurisprudência, mostra que o tratamento dado nos

julgamentos que envolvam uma possível invasão de competências de um ente por

outro, indicam uma tendência jurisprudencial em favor da União, ou seja, sempre que

houver dúvidas a respeito da titularidade de determinada competência, a tendência será

o deferimento dessa à União, em detrimento da autonomia dos Estados.

Como veremos, portanto, as decisões do Supremo Tribunal Federal,

em muitos casos, sob a justificativa de adoção do federalismo cooperativo,

praticamente transformam a Federação Brasileira em um Estado Unitário.180

A situação pode ocorrer, sempre que um Estado-membro tentar

exercitar suas competências reservadas ou, até mesmo, as competências concorrentes

estabelecidas, respectivamente, no art. 25, § 1º e artigo 24 da Constituição Federal, e a

matéria a ser tratada guardar relação com as definidas como competência privativa da

União, o que poderá indicar o reconhecimento de inconstitucionalidade por invasão da

competência desta última.

O conteúdo dos assuntos periféricos à competência federal, não é em

tese aqueles que foram deferidos pelo legislador constituinte à União, mas acabam

sendo transferidos a esta por força das decisões do Supremo Tribunal Federal.

180 A figura do Estado Unitário Descentralizado já foi alvo de análise anteriormente, mas apenas para

relembrarmos, esse tipo de forma de Estado se caracteriza pela delegação de competências legislativas e

administrativas é autorizada pela Constituição do Estado e é efetivada por meio de lei nacional. Portanto, a

descentralização ocorre de cima para baixo, já que ela parte do poder central e, portanto, fica a critério desse

conceder, reduzir ou ampliar as autonomias das regiões.

168

Tal posicionamento adotado pelo Supremo nos julgados em que haja a

possibilidade de deferimento da competência à União – como já dissemos –, encontra,

em tese, justificativa no chamado federalismo contemporâneo, que é aquele onde

existe uma tendência intervencionista e que tem a finalidade de proporcionar uma nova

repartição de competências, funcionalmente vinculada aos objetivos econômicos e

sociais daquele intervencionismo.

Além da justificativa da adoção do federalismo de cooperação ou

contemporâneo, identificamos uma série de fatores que podem contribuir para

ocorrência do fenômeno descrito anteriormente: (a) a unidade do ordenamento jurídico

nacional; (b) a técnica de divisão de competências sem o deferimento de um rol

específico de competências exclusivas para os Estados; (c) o preenchimento do

conteúdo dos assuntos que foram expressamente atribuídos à União.

a) Unidade do ordenamento jurídico nacional

A busca de uma unidade nacional no ordenamento jurídico, a fim de

que não existam ordenamentos jurídicos parciais muito discrepantes, pode levar o

Supremo a deferir, em favor da União competências que seriam dos Estados. Neste

sentido, há uma preocupação com a existência de leis estaduais muito divergentes, o

que poderia criar uma verdadeira barreira nas relações jurídicas.

Essa situação, acabou sendo a justificativa para a chamada “cláusula

do comércio” nos Estados Unidos, onde a busca pelo não parcelamento do mercado

americano levou a atuação federal no campo de regulação econômica, matérias sociais,

trabalhistas, sanitárias, meio ambiente, indústria, agricultura, transporte, etc.

b) Técnica de divisão de competências

A técnica de divisão de competências, que deixa um rol taxativo de

matérias para a União e para os Estados as reservadas ou remanescentes, é outro fator

169

que contribui para o fenômeno da centralização das competências por força da

jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

É que o processo de averiguação da possível invasão de competências

ocorre tendo como paradigma o rol de competências estabelecidas pela Constituição

para União, já que as competências do Estado estão ocultas. Dessa forma, haveria uma

tendência em interpretar a norma – em tese invasora – para encaixá-la em uma das

situações descritas de forma expressa, que são mais palpáveis, em detrimento do que é

remanescente.

É razoável imaginar, que num sistema onde as competências são todas

taxativamente atribuídas aos entes federais – como é o caso do sistema da separação

integral –, haveria uma linha clara de divisão das competências, o que, provavelmente,

dificultaria a absorção de algumas delas por um ou outro ente federal. Contudo, a

adoção da chamada cláusula de dilação das competências pode ser o ralo pelo qual

poderiam passar uma série de competências de um ente para o outro. No Canadá,

estudado anteriormente, a técnica de repartição dual e integral de competências, entre

os poderes do Parlamento (powers of the Parliament), que são os poderes da União ou

do Governo Federal, e os poderes das Assembléias Provinciais (exclusive powers of

Provincial Legislatures), não é a condição que assegura que não haverá invasão de

competências de um ente por outro, pois foi adotado, em favor do governo federal, a

dilação de competências na cláusula de elaboração das leis pela paz, ordem e o bom

governo do Canadá em todas as matérias não atribuídas expressamente ao legislativo

das Províncias.

No Brasil foi incorporada a técnica clássica da identificação de

poderes enumerados à União e de poderes reservados aos Estados. A Constituição

Federal de 1988, acabou adotando uma divisão de competências baseada em cinco

planos:

I – competência geral da União (art. 21);

II – competência legislativa privativa da União (artigo 22);

170

III – competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e

dos Municípios (art. 23);

IV – competência de legislação concorrente da União, dos Estados e

do Distrito Federal (art. 24 e parágrafos);

V – competências dos poderes reservados aos Estados (art. 25, § 1º, e

125, §§ 1º, 2º, 3º e 4º)

Cabe observar que, muito embora, a Constituição tenha adotado o

sistema de competências reservadas aos Estados, é possível encontrar no texto

constitucional, de forma difusa, uma série de competências exclusivas atribuídas aos

Estados: art. 18, §4º; art. 25, §§ 2º e 3º; art. 27, §§ 2º e 4º; art. 31,§ 1º; art. 128, §§ 4º e

5º; art. 169 e 195. Além dessas, no ADCT foram atribuídas as dos artigos 24, 34 e 41.

A adoção desse sistema de repartição de competências não garantiu

um rol de matérias específicas para os Estados. Portanto, para verificação da eventual

invasão de competências, o intérprete deve confrontrar em sua análise as competências

privativas da União, passando pelas concorrentes, até chegar às competências

reservadas.

c) O preenchimento do conteúdo dos assuntos que foram

expressamente atribuídos à União

Outro fator que pode levar a centralização de competências, refere-se

à técnica utilizada pelo legislador constituinte, que deixou, intencionalmente ou não,

ao legislador infraconstitucional a possibilidade de preenchimento do quadro ou

moldura – utilizando-se da visão kelsiniana – de competências em algumas situações.

Neste sentido, podemos identificar, nas competências expressas

deixadas para União (art. 22), dois grupos de matérias: (a) as que possuem uma

definição relativa de conteúdo e condições para o exercício; e, (b) as que não possuem

tais características.

171

As primeiras são aquelas cujos parâmetros e condições de exercício da

competência foram previamente definidos pela Constituição. Neste grupo poderíamos,

por exemplo, verificar a competência legislativa do art. 22, inciso III, que trata das

requisições civis e militares, em caso de iminente perigo e em tempo de guerra, neste

caso, o legislador constituinte estabeleceu quais requisições deveriam ser abrangidas

pela lei e em quais situações elas poderiam ocorrer. Outro exemplo, colhido também

no artigo 22, é o descrito no inciso XXVII, que prevê a competência da União para

legislar sobre normas gerais de licitação e contratação, onde o legislador constituinte

descreveu a amplitude das normas, os sujeitos que seriam obrigados à observá-la e a

obediência aos preceitos definidos no artigo 37, inciso XXI.

Com relação ao segundo grupo, cujas palavras ou seqüência de

palavras utilizadas pelo legislador constituinte, podem conduzir o legislador

infraconstitucional a uma atividade legislativa sem limites precisos, verificamos, o

maior número de conflitos de competência. Estão neste grupo, por exemplo: a

competência da União para legislar sobre direito processual (art. 22, inciso I), que teve

parte de seu conteúdo – procedimentos em matéria processual (art. 24, inciso XI) –

destacado e entregue à competência concorrente181; a competência referente ao direito

do trabalho e a competência concorrente dos Estados para legislarem sobre meio

ambiente, neste caso meio ambiente do trabalho, verificada no artigo 24, inciso VI, da

Constituição Federal182; a competência para legislar sobre comércio exterior e

interestadual; a competência de legislar sobre o trânsito (art. 22, inciso XI); entre

outras.

181 “Descabe confundir a competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal para legislar sobre

procedimentos em matéria processual – art. 24, XI – com a privativa para legislar sobre direito processual,

prevista no art. 21, I, ambos da CF. Os Estados não têm competência para a criação de recurso, como é o de

embargos de divergência contra decisão de Turma Recursal”(Ag. Rg. 253.518-9-SC, STF/2ª T., RT 783/217) 182 “Ao primeiro exame, cumpre à União legislar sobre parâmetros alusivos à prestação de serviços – arts. 21,

inciso XXIV, e 22, inciso, I, da CF. O gênero “meio ambiente”, em relação ao qual é viável a competência

em concurso da União, dos Estados e do Distrito Federal, a teor do disposto no art. 24, inciso VI, da CF, não

abrange o ambiente do trabalho, muito menos a ponto de chegar-se à fiscalização do local por autoridade

estaudl, com imposição de multa” (ADIN 1893-RJ, Medida Cautelar, RTJ 169/472).

172

Nestes casos, observa-se que o Supremo Tribunal Federal sempre

defere a competência à União, deixando de lado a competência legislativa dos Estados,

ou seja, a interpretação adotada sempre atrai a matéria sub judice para uma das

hipóteses descritas como de competência da União.

4.3.2. – Das decisões do Supremo Tribunal Federal

A fim justificar nosso posicionamento, passemos à análise de alguns

casos em que o Supremo Tribunal Federal centralizou a distribuição de competências,

atribuindo à União competências que poderiam ser deferidas aos Estados.

No julgado referente à ADIN 280-5183, em que se questionou a

inconstitucionalidade do artigo 346 da Constituição do Estado de Mato Grosso, que

proibia a saída do Estado de madeiras em toras, o Supremo Tribunal Federal acabou

dando a interpretação de que a expressão violava a competência legislativa da União,

para legislar sobre comércio exterior e interestadual e transporte, incisos VIII e XI, do

artigo 22, da Constituição Federal.

O artigo 346 da Constituição do Estado tinha a seguinte redação:

183 EMENTA: - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 346 DA

CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE MATO GROSSO. Inconstitucionalidade da frase "sendo vedada a

saída do Estado de madeiras em toras". Competência da União para legislar sobre comércio interestadual e

transporte (artigo 22 - VIII e XI da Constituição Federal). Precedentes do S.T.F. Por votação UNANIME , o

Tribunal julgou PROCEDENTE a ação, para declarar a inconstitucionalidade da expressão " sendo vedada a

saída do Estado de madeira em toras", contida no "caput" do art. 346, da Constituição do Estado de Mato

Grosso. Votou o Presidente. - Plenário , 13.04.1994 . - Acórdão , DJ 17.06.1994 . ADI 280 / MT – MATO

GROSSO. Relator(a): Min. FRANCISCO REZEK. Julgamento: 13/04/1994 Órgão Julgador: TRIBUNAL

PLENO. Publicação: DJ DATA-17-06-1994 PP-15706)

173

“Art. 346 – O exercício da atividade de extração ou exploração florestal no

território estadual, fica condicionado à observação das normas da legislação

federal pertinente, sendo vedada a saída do Estado de madeira em toras.”

Na defesa do ato impugnado o Estado-membro fundamentou sua

atitude legislativa na proteção do meio ambiente, mais especificamente na autorização

constitucional prevista como competência concorrente do artigo 24, inciso VI, muito

embora tenha feito isso em sede de poder constituinte derivado decorrente, ou seja, por

meio da Constituição do Estado.

No caso, o bem maior a ser protegido era o meio ambiente, pois o

Estado passaria a ter maior controle sobre o processamento da madeira dentro do seu

território, portanto, não se tratava de disciplinar o comércio interestadual.

O Estado membro pretendia exercer competência legislativa

concorrente disciplinada no artigo 24, da Constituição Federal. A utilização do sistema

de competências concorrentes indica a adoção do chamado federalismo

contemporâneo ou cooperativo, em abandono ao chamado federalismo dualista, pois

existe um conjunto de competências partilhadas entre Estados-membros e União.

A Constituição federal ao disciplinar a divisão de competências

legislativas, estabeleceu um sistema de condomínio entre a União, os Estados e o

Distrito Federal. A União detém a competência para a edição de normas gerais,

enquanto que os Estados e o Distrito Federal a edição de normas específicas e, na falta

das normas gerais, a competência plena.

Dessa forma, verificando-se que o Estado-membro tem competência

material para proteger o meio ambiente, conforme disposição contida no artigo 23,

inciso VI, e competência legislativa concorrente para disciplinar essa proteção, o

legislador constituinte derivado decorrente utilizando-se dos parâmetros estabelecidos

na Constituição Federal, bem como da autonomia do Estado, previu a impossibilidade

da saída da madeira de seu território em estado natural de toras.

174

Contudo, no julgado a questão do meio ambiente foi relegada a

segundo plano, pois o comércio interestadual foi considerado mais importante do que a

questão ambiental. A exemplo do que a Suprema Corte Americana decidiu sobre a

questão da cláusula de comércio, o Supremo Tribunal Federal relegou para segundo

plano a questão da proteção ambiental.

Sob a luz do federalismo, é inegável que a interpretação do Supremo

deveria se voltar para questão principal referente ao meio ambiente. Por outro lado,

ainda como forma de proteger os princípios federais, caso não fosse aceita a tese da

proteção ambiental, haveria a possibilidade de ser alegada a competência referente à

“produção e consumo” (art. 24, inciso V, da CF), tendo em vista que, em tese,

secundariamente o dispositivo impugnado tinha o mérito de buscar o desenvolvimento

da indústria de processamento da madeira.

Além disso, visando à prolação de uma decisão mais federativa,

poderia o Supremo Tribunal Federal ter realizado interpretação conforme a

Constituição para o fim de excluir o dispositivo das situações de comércio

interestadual. Assim, se uma Empresa transferisse a madeira do Estado de Mato

Grosso para uma de suas serrarias em São Paulo, como não se trata de comércio

interestadual, haveria a necessidade de observação do dispositivo da Constituição do

Estado, ou seja, a madeira não poderia sair do Estado em toras.

Contudo, a questão do comércio interestadual, de competência da

União, acabou dando o contorno final à decisão do Supremo Tribunal Federal, que

deslocou o assunto para a situação descrita no artigo 22, inciso VIII.

O paradigma utilizado pelo Supremo acabou sendo o da

Representação 1.029 de 1980, onde o relator (Min. Francisco Rezek), na oportunidade

Subprocurador-Geral da República, em situação semelhante, referente ao Estado Pará,

175

ofereceu parecer pela inconstitucionalidade baseado na indevida invasão de

competência do Estado do artigo 8º, inciso XVII, alínea “l”, da Constituição de 1967.

Assim, o que se verifica é que com a entrada em vigor da Constituição

de 1988, não houve por parte do Supremo a quebra dos paradigmas anteriores da

Constituição de 1967, cuja tendência centralizadora era acentuada.

Neste sentido, a decisão do Supremo indica que qualquer tentativa dos

Estados-membros, seja por meio de leis estaduais, seja por força do poder constituinte

derivado decorrente, de disciplinar a exploração de qualquer espécie de produto, que

porventura seja comercializado com outros Estados-membros, será considerada como

violadora do disposto no inciso VIII, do artigo 22, ou seja, competência privativa da

União.

Assim, por exemplo, se um determinado Estado-membro resolver se

utilizar da competência concorrente prevista no artigo 24, inciso V – legislar

concorrentemente sobre produção e consumo –, de forma plena, ante a falta de

legislação federal, para regular a produção ou o consumo de determinado produto, que

porventura seja comercializado em outros Estados, essa competência poderá ser

absorvida pela competência da União definida no artigo 22, inciso VIII – legislar

privativamente sobre comércio exterior e interestadual – o que indica a centralização

das competências dos Estados-membros nas mãos da União, por força da interpretação

do Supremo Tribunal Federal.

Essa foi a tendência no julgamento da medida cautelar da Adin. nº

750/92, referente à lei estadual nº 1939/91, do Estado do Rio de Janeiro, que

disciplinava a inclusão de informações em embalagens de produtos alimentícios

comercializados naquele Estado.184

184 EMENTA. OBRIGATORIEDADE DE INFORMAÇÕES, NAS EMBALAGENS DE PRODUTOS

ALIMENTÍCIOS, COMERCIALIZADOS NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (Lei Fluminense nº.

1.939, de 1991, Art. 2º, itens II, III e IV). Cautelar deferida, em face da urgência da medida e da relevância

176

“Art. 2º - Do rótulo ou embalagens dos produtos, a que se refere o artigo anterior,

devem constar todas as informações sobre a composição do produto e, dentre elas,

obrigatoriamente as seguintes:

(...)

II – informações sobre os aditivos e a quantidade de calorias, de proteínas, açúcar e

gordura, inclusive os conservantes, corantes e aromatizantes;

III – indicação da ausência de conservantes, corantes e aromatizantes do uso de

produtos para evitar ressecamento;

IV – indicação da forma de esterilização utilizada no acondicionamento ou

embalagem.

Art. 3º - A partir de 60 (sessenta) dias da data da publicação desta lei, os produtos

que não contiverem em seus rótulos ou embalagens o exigido no artigo 2º acima,

serão retirados de circulação, sob pena de apreensão pelo órgão competente da

Secretaria de Estado da Saúde.

Parágrafo único – Além da apreensão de que trata este artigo, os estabelecimentos

comerciais e industriais, que não cumprirem o estabelecido nesta lei, ficarão

sujeitos a multa de 500 (quinhentos) a 1.000 (mil) UFERJ’s e cassação do alvará de

funcionamento.”

Como se verifica nos dispositivos impugnados, a referida Lei Estadual

buscava obrigar a indicação, nos rótulos ou embalagens dos produtos alimentícios

comercializados no Estado do Rio de Janeiro, de informações sobre a composição dos

produtos aditivos e a quantidade de calorias, de proteínas, açúcares e gorduras,

inclusive os conservantes, corantes e aromatizantes, esterilização utilizada no

acondicionamento ou embalagem, ente outras (art. 2º, incisos II, III e IV, da citada lei

estadual), o que poderia conduzir ao exercício da competência legislativa referente à

produção e consumo, ou até mesmo as questões relativas à proteção e defesa da saúde.

Portanto, a invalidação total da lei, acabou por ferir a competência

concorrente do Estado, sob os aspectos definidos no artigo 24, inciso V e XII,

da fundamentação jurídica do pedido (Artigos 24, V, e 22, VIII, da Constituição Federal). (Adin 750 Mc / RJ

– Rio De Janeiro Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade. Relator(A): Min. Octavio

Gallotti. Julgamento: 29/06/1992 Órgão Julgador: Tribunal Pleno Publicação: DJ Data-11-09-1992)

177

respectivamente, legislar concorrentemente sobre produção e consumo e a proteção e

defesa da saúde. Novamente, o Supremo Tribunal Federal poderia ter lançado mão da

técnica de interpretação conforme a Constituição para preservar a competência do

Estado-membro.

Como vimos, dependendo da interpretação que o Supremo Tribunal

Federal aplicar aos casos específicos, haverá uma força atrativa da competência

legislativa do art. 22 em relação às matérias descritas no art. 24 ou outras que estejam

na competência remanescente dos Estados-membros, mas que guardem relação com os

assuntos lá tratados.

No âmbito da competência da União para legislar sobre direito civil,

art. 22, inciso I, a interpretação Supremo Tribunal Federal pode atrair para esse ente

competências que poderiam ser compartilhadas com os Estados ou as que se

encaixariam na competência reservada do artigo 25, § 1º, como, por exemplo, as

referentes à legislação sobre florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza

(inciso VI do artigo 24) ou a proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico,

turístico e paisagístico (inciso VII do artigo 24), quando a essas matérias for dado um

enfoque de direito de propriedade.

Essa situação foi verificada quando o Estado do Espírito Santo

resolveu vetar o plantio de eucaliptos destinados à produção de celulose. Neste caso, o

Supremo, ao conceder medida cautelar na ADIN 2623 MC185, reconheceu que não

185 EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL. PROIBIÇÃO DE

PLANTIO DE EUCALIPTO PARA FINS DE PRODUÇÃO DE CELULOSE. DISCRIMINAÇÃO.

IMPOSSIBILIDADE. AFRONTA AOS POSTULADOS DA ISONOMIA E DA RAZOABILIDADE.

DIREITO DE PROPRIEDADE. TEMA DE DIREITO CIVIL. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO.

1. Vedação de plantio de eucalipto no Estado do Espírito Santo, exclusivamente quando destinado à produção

de celulose. Ausência de intenção de controle ambiental. Discriminação entre os produtores rurais apenas em

face da destinação final do produto da cultura, sem qualquer razão de ordem lógica para tanto. Afronta ao

princípio da isonomia. 2. Direito de propriedade. Garantia constitucional. Restrição sem justo motivo.

Desvirtuamento dos reais objetivos da função legislativa. Caracterizada a violação ao postulado da

proporcionalidade. 3. Norma que regula direito de propriedade. Direito civil. Competência privativa da União

178

havia qualquer intenção de controle ambiental, o que já autorizaria a decretação da

inconstitucionalidade. Contudo, além desse fator o Supremo mitigou a competência

legislativa do Estado indicando que a questão se referia a direito de propriedade, sendo

essa de competência da União.

No citado julgado o Relator Min. Maurício Corrêa negou a incidência

da questão ambiental:

“7 . Não subsiste, dessa forma, qualquer alegação de existência de proteção

ambiental, dado que o plantio em si continua autorizado. Os efeitos do cultivo

dessa espécie de árvore no meio ambiente independem da destinação que lhe for

dada. As eventuais conseqüências danosas desse plantio não serão maiores ou

menores em face do uso que terá a madeira obtida do eucalipto, sendo relevante

frisar que não se cogita aqui do impacto ambiental da atividade industrial de

produção da celulose, mas exclusivamente da forma de obtenção da matéria

prima.”

Afastada a situação referente ao meio ambiente, que autorizaria a

procedência da ação, o relator passou a analisar a questão da violação da isonomia

entre os produtos de eucalipto. Assim, só pela violação a esse princípio já haveria

motivos suficientes para a declaração da inconstitucionalidade, contudo, o acórdão foi

mais além. A questão foi definitivamente resolvida sob o prisma da violação de

competências privativa da União, referente ao direito de propriedade.

“17. Longe de configurar legítima limitação administrativa ao uso da propriedade

particular, a norma estadual, na verdade, impede a sua utilização regular e, o que

é mais grave, apenas a uma parcela dos proprietários rurais do Estado que se

para legislar sobre o tema (CF, artigo 22, I). Precedentes. Presença dos requisitos do fumus boni iuris e do

periculum in mora. Pedido cautelar deferido. (ADI 2623 MC / ES - ESPÍRITO SANTO MEDIDA

CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Relator(a): Min. MAURÍCIO

CORRÊA Rel. Acórdão Min. Revisor Min. Julgamento: 06/06/2002 Órgão Julgador: Tribunal Pleno

Publicação: DJ DATA-14-11-2003 PP-00011 EMENT VOL-02132-13 PP-02472.)

179

dedicam ao ramo produtor de eucalipto. Como se vê pretende-se regular o

próprio direito de propriedade, matéria afeta ao direito civil, cuja competência

para legislar é privativa da União, na forma do artigo 22, inciso I, da Carta

Federal.”

Dessa forma, a resolução da ADIN foi feita através da força atrativa

da competência da União, definida no artigo 22, muito embora, a violação ao princípio

da isonomia e a falta de justificativa ambiental, já fossem suficiente para procedência

da ação.

Com relação à competência reservada aos Estados-membros, o

Supremo Tribunal, ao decidir sobre medida cautelar na ADIN nº 2752186, entendeu que

o Distrito Federal não poderia legislar sobre a criação de um serviço comunitário de

quadras, pois essa matéria não se enquadrava na competência reservada do artigo 25, §

1º da Constituição, mas sim no disposto no artigo 22 inciso XVI da Constituição –

organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício das

profissões.

A lei distrital nº 2763, de 16 de agosto de 2001, tinha por objetivo

regular o serviço de vigilância de bairros, que são prestados por particulares à

população.

Em uma análise mais detalhada da lei, não se verifica que tenha criado

a profissão de vigias, mas, sim, disciplinado um serviço que é observado em diversas

186 EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DO DISTRITO FEDERAL

2.763, DE 16 DE AGOSTO DE 2001. CRIAÇÃO DE SERVIÇO COMUNITÁRIO DE QUADRA.

LIMINAR DEFERIDA. Lei distrital que cria o "Serviço Comunitário de Quadra", caracterizado como

serviço de vigilância prestado por particulares. Plausibilidade da alegação de contrariedade aos arts. 22, XVI,

e 144, § 5º, da Constituição Federal. Riscos à ordem pública. Liminar deferida. ADI 2752 MC / DF -

DISTRITO FEDERAL MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA Rel. Acórdão Min. Revisor Min. Julgamento: 12/02/2004. Órgão

Julgador: Tribunal Pleno Publicação: DJ DATA-23-04-2004 PP-00008 EMENTA VOL-02148-03 PP-

00467

180

localidades. Dessa forma, a lei criou um cadastro de prestadores dessa espécie de

serviço, bem como proibiu a utilização armas de fogo pelos seus prestadores (art. 3º e

5º), o que já é regulamentado em lei federal referente ao porte de arma.

A questão está localizada na regulamentação da prestação de um

serviço, ou seja, está situada entre as competências reservadas do Estado-membro. Não

se trata, portanto, de criação de uma profissão, já que a legislação federal cuidou do

assunto quando promulgou a Lei nº 7.102/1983, que foi recepcionada pela

Constituição Federal e que trata dos serviços de segurança e vigilância privadas.

Assim, em nome do prestígio da autonomia do Estado, o Supremo

deveria canalizar a resolução do problema para a competência reservada, do art. 25, §

1º. Contudo, a solução foi direcionada para a competência do artigo 22, inciso XVI, da

C.F, que trata da organização do sistema nacional de emprego e condições para o

exercício das profissões.

Ainda relacionado ao aspecto da competência trabalhista, o Supremo

julgou inconstitucional a Lei do Distrito Federal nº 3.083, de 07/10/02, que criou o

feriado de comemoração do dia do comerciário. No caso em questão, foi reconhecido

o poder implícito da União para legislar sobre feriados, tendo em vista a sua

competência privativa de legislar sobre direito do trabalho (art. 22, inciso I). O

Supremo Tribunal reconheceu que a fixação de feriados ocasiona reflexos nas relações

de trabalho devido à obrigatoriedade de pagamento de salários, além de provocar a

interrupção de outras atividades públicas e privadas.

A relação do trabalho com o feriado, muito embora evidente, foi

baseada em decisões anteriores do Supremo Tribunal, tendo como elo de ligação o

artigo 158, inciso VII da Constituição de 1967 que fazia expressa referência ao direito

de descanso semanal remunerado e nos feriados. Em seu voto a Ministra Ellen Gracie

estabelece a ligação de um tema ao outro, baseada no reflexo trabalhista que o feriado

traz:

181

“Por outro lado, ainda sob a égide das Constituições anteriores o Supremo Tribunal

Federal já assentava que implícito ao poder privativo da União de legislar sobre

direito do trabalho estava o de “decretar feriados civis, mediante lei federal

ordinária” (AI 20.423, rel. Min. Barros Barreto, DJ 24.06.59), por envolver tal

iniciativa “conseqüências nas relações empregatícias e salarias” (Representação

1.172, rel. Min. Rafael Mayer, DJ 03.08.84). A Constituição Federal de 1988, em

continuidade a esta sistemática, estabelece a competência privativa da União para

legislar sobre temas de direito do trabalho, aí incluído, segundo a jurisprudência

apontada, a criação de feriado civil, pois este, como bem ressaltou o parecer da

douta PGR, “institui um dia de descanso remunerado para os trabalhadores,

fazendo surgir obrigações para os empregadores”.

A questão do feriado, por evidente, tem relação com o direito do

trabalho, mas não pode ser considerada como direito do trabalho. No caso analisado a

data escolhida pelo legislador foi a do dia 30 de outubro, contudo, caso o legislador

tivesse escolhido a data comemorativa como sendo o último domingo do mês de

outubro, mesmo assim, haveria relação com o direito do trabalho, pois existem pessoas

que trabalham nesses dias. Nem se fale dos desempregados. Será que somente quem

trabalha tem direito ao gozo dos feriados?

Em nenhum momento a Constituição Federal determina que a União

tem competência para legislar sobre feriados, sob a justificativa de que estão

relacionados ao direito do trabalho. A Constituição atual faz referência apenas ao

repouso semanal remunerado, preferencialmente nos domingos (art. 7º, inciso XV).

Logo, o estabelecimento da competência privativa da União para legislar sobre

feriados com fundamento nas relações empregatícias e salariais, atacou a competência

reservada dos Estados.

No mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal entendeu que os

Estados-membros não poderiam legislar sobre a colocação de película de filmes em

182

veículos – Lei 6.908, de 1997, do Estado do Mato Grosso187, pois isso violaria a

competência da União para legislar sobre trânsito.

O Ministro relator Carlos Velloso afastou a possibilidade de inserir a

matéria no contexto da competência concorrente, concluindo, com base em extensiva

jurisprudência, pela procedência da ação direta de inconstitucionalidade.

A questão, assim como a anterior, poderia ser resolvida pela

competência reservada do Estado, já que a matéria – colocação de dispositivo de filtro

solar - não pode ser confundida com a que afeta ao trânsito. O acessório faz parte dos

veículos, mas não afeta a disciplina do trânsito.

Sobre o mesmo tema, trânsito, recentemente o mesmo Supremo

Tribunal Federal julgou procedente ação direta de inconstitucionalidade da Lei do

Distrito Federal nº 3.425, de 04 de agosto de 2004, que determinava a vistoria prévia

anual para licenciamento veículos.

Neste julgamento o Ministro Joaquim Barbosa entendeu, com base em

precedentes da Corte (ADI 1.666-MC, Min. Carlos Velloso; ADI 1.973-MC, rel. Min.

Néri da Silveira; ADI 1.972-MC, rel. Min. Ilmar Galvão; ADI 3.049-MC, rel. Min.

Cezar Peluso), que “o tema da vistoria de automóveis insere-se na matéria relativa ao

trânsito, a qual, por força do art. 22, inciso XI, da CF/1988, é da competência

privativa da União. Como não há lei complementar autorizando o Distrito Federal a

legislar a respeito do tema, a lei impugnada está, de fato, viciada”.

187 EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRÂNSITO. VEÍCULOS: PELÍCULA DE FILME SOLAR. Lei

6.908, de 01.7.97, do Estado de Mato Grosso. C.F., art. 22, XI. I. – Legislação sobre trânsito: competência

privativa federal: C.F., art. 22, XI. II. - Lei 6.908, de 1997, do Estado do Mato Grosso, que autoriza o uso de

película de filme solar nos vidros dos veículos: sua inconstitucionalidade, porque a questão diz respeito ao

trânsito. III. - ADIn julgada procedente. (ADI 1704 / MT - MATO GROSSO. AÇÃO DIRETA DE

INCONSTITUCIONALIDADE. Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO. Julgamento: 01/08/2002 Órgão

Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ DATA-20-09-2002 PP-00088 EMENT VOL-02083-02 PP-00224)

183

Contudo, o Ministro Marco Aurélio divergiu do julgamento proferido,

entendendo que a atuação legislativa poderia ser chancelada pelo Supremo. Assim, se

manifestou o Ministro:

“Senhor Presidente, mais uma vez penso que temos matéria ligada ao âmbito da

atuação legislativa do próprio Estado. Não se cuida de legislar sobre o trânsito,

em si, mas sobre o licenciamento de veículos; e, aí, previu-se que, em se tratando

de veículo com mais de quinze anos de uso, esse licenciamento deve ficar

vinculado à vistoria, em que se exercerá o poder de polícia quanto às condições do

próprio veículo. Entendo ser possível às unidades da Federação legislarem a

respeito, a partir do disposto no artigo 25, § 1º da Constituição Federal.”

A posição do Ministro Marco Aurélio demonstra que o tema

licenciamento não pode ser confundido com o de trânsito. A autorização para transitar

(licenciamento), não pode ser equiparada ao ato de trafegar. Dessa forma, não estaria o

licenciamento dentro do rol de competência disciplinado pela Constituição como

sendo da União, o que indicaria que a competência está dentro das remanescentes dos

Estados-membros (art. 25, § 1º).

Entretanto, essa posição mais coerente com o princípio federalista não

foi a aceita pelos demais Ministros do Supremo Tribunal, que preferiram continuar,

com base nos precedentes anteriores, a atrair qualquer matéria que trate sobre

automóvel para a competência referente ao trânsito.

Portanto, analisando os vários julgados proferidos pelo Supremo

Tribunal Federal, é possível verificar que existe uma tendência centralizadora das

decisões em nome de uma uniformidade do ordenamento jurídico.

As matérias que poderiam ser objeto de legislação estadual, acabam

migrando para a competência da União por guardarem, sob qualquer aspecto, relação

com as matérias a ela deferidas.

184

Buscando-se a lição de Kelsen sobre o federalismo, verificamos que a

principal característica desse é a existência de duas ordens jurídicas, uma nacional e

outra parcial, que são resultantes da distribuição de competências legislativas. É

justificável, portanto, que os Estados-membros ao legislarem sobre as mesmas

matérias dêem disciplina diferente, o que caracteriza a diversidade normativa dentro

do ordenamento nacional. Não é justificável, portanto, sob o prisma do federalismo,

que todos os Estados tenham legislação uniformizada, ou que a União cuide de forma

isolada de todo o ordenamento jurídico.

Com a finalidade de demonstrar ainda mais nossa tese, vejamos um

tema específico: o meio ambiente. Essa matéria foi tratada em vários pontos da

Constituição. Assim, realizaremos um estudo prévio de como a Constituição tratou do

tema de forma ampla, posteriormente, analisaremos um estudo sobre as decisões do

Supremo Tribunal federal.

4.4 – Estudo de caso específico: O meio ambiente e a centralização das decisões do

Supremo Tribunal Federal

O tema do “meio ambiente” adquiriu importância crescente nos

últimos tempos, tendo em vista o desenvolvimento social e a relevância da

manutenção das condições adequadas à continuidade da vida.

As agressões ao meio ambiente deixaram de ser vistas como

problemas localizados de uma sociedade individualizada e passaram a ser encaradas

como riscos globais. A imprensa diuturnamente tem mostrado a influência da agressão

ao meio ambiente e seus efeitos climáticos, por exemplo. Cresce o número de

entidades e pessoas preocupadas com a degradação da natureza e os seus reflexos na

vida do homem atual e das futuras gerações.

185

Tudo decorre de um fenômeno corrente, segundo o qual os homens,

para satisfazerem suas necessidades, que são ilimitadas, passam a disputar os bens da

natureza, que por definição são limitados. Esse fenômeno tão simples é matriz de

grande parte dos conflitos mundiais.188

O homem, por conta de uma noção de desenvolvimento desenfreado,

ameaça a sua própria existência. Contudo, somente quando a natureza devolve a

agressão sofrida é que a população local toma consciência da importância da proteção

do meio ambiente.

O homem sempre se colocou em posição de superioridade em relação

às demais criaturas. A posição de que o homem foi criado a imagem e semelhança de

Deus, fez com que imaginássemos que podemos tudo, num mundo onde todos os seres

vivos foram criados para nos servir.

A visão do antropocentrismo que servia para destruir o meio

ambiente, alterou-se para o antropocentrismo que pode servir para proteger, já que essa

proteção depende de uma ação humana. O homem, colocado no centro das atenções,

preocupa-se mais com a manutenção da própria existência do que com a proteção do

patrimônio natural pelo seu valor intrínseco.

Entretanto, hoje é possível verificar uma tendência no domínio do

pensamento jurídico em superar a limitação do antropocentrismo clássico e admitir a

proteção do patrimônio natural pelo seu valor intrínseco e não apenas pela utilidade

que tenha para o ser humano, sem cair em uma radicalização da deep ecology

(ecologia profunda).189

188 Édis Milaré. Direito do ambiente – doutrinal, prática, jurisprudência e glossário. São Paulo: Editora dos

Tribunais, 2000, pg. 33. 189 José de Souza Cunhal Sendim. Responsabilidade civil por danos ecológicos: da reparação do dano através

da restauração natural.Coimbra: Coimbra Editora, 1998, pg. 95-96. Apud José Rubens Morato Leite e

Patryck de Araújo Ayala. Direito Ambiental na sociedade de risco. 2ª ed. – Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2004, pg. 54.

186

Não há qualquer dúvida sobre a importância da questão ambiental

para a vida ou a morte na face da terra. Entretanto, essa preocupação só foi objeto de

debates internacionais nas décadas de setenta e oitenta do século passado.

Em 1972, a “Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente

Humano” na cidade de Estocolmo, contou com a participação de 114 países. Nesta

oportunidade alertou-se para a degradação ambiental causada pelo processo de

crescimento econômico e a progressiva escassez dos recursos naturais.

A catástrofe nuclear de Chernobyl (25 de abril de 1986) significou o

despertar de uma nova era na política internacional de meio ambiente, pois a partir

desse evento danoso o mundo passou a se preocupar mais com as questões

ambientais.190

Na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, realizada

na cidade o Rio de Janeiro, em 1992, essa questão do meio ambiente foi abordada de

maneira a ser conciliada com o desenvolvimento dos Estados. Posteriormente, visando

implementar a Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, foi

elaborado o Protocolo de Kioto, que teve como objetivo fixar para os países

industrializados (com exceção dos Estados Unidos que se recusou a participar do

Acordo), metas de redução da emissão de gases que causam o efeito estufa em

aproximadamente 5% abaixo dos níveis registrado em 1990. Os Estados deverão

demonstrar “evidente evolução” na redução da emissão de gases e, portanto, no

cumprimento das metas até 2005. 191

O nosso legislador constituinte de 1988 cuidou do tema referente ao

meio ambiente em vários momentos, demonstrando especial cuidado com a matéria,

como veremos mais a frente.

190 José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala. Direito Ambiental na sociedade de risco. 2ª ed. – Rio

de Janeiro: Forense Universitária, 2004, pg. 19. 191 www.wwf.org.br

187

4.4.1 - Conceito de Meio Ambiente

Observa-se atualmente a existência de uma grande diversidade de

expressões referentes ao ambiente e a normatividade: Direito do meio ambiente,

Direito do ambiente, Direito ambiental, entre outras.

Em todas elas o “ambiente” é o ponto central das discussões. Assim,

utilizaremos a expressão “meio ambiente” – muito embora, para alguns “meio” e

“ambiente” sejam expressões sinônimas, pois o primeiro é aquilo que envolve, ou seja,

o “ambiente”192 – para se referir ao objeto tutelado pelo direito.

Paulo Affonso Leme Machado leciona que a expressão “ambiente”

tem origem latina – ambiens, entis: que rodeia. Além disso, o autor lembra que a

palavra ambiente pode ter diversas significações, mas que todas indicam o “meio em

que vivemos”.

José Afonso da Silva193 define “meio ambiente” como “a esfera, o

círculo, o âmbito que nos cerca, em que vivemos.”

Segundo classificação de Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Marcelo

Abelha Rodrigues, existem quatro espécies de meio ambiente:

a) meio ambiente natural ou físico: é constituído pelo solo, água, ar

atmosférico, flora e fauna;

b) meio ambiente cultural: são os valores culturais encontrados em

determinado Estado, representado também pelo patrimônio

histórico, artístico, arqueológico, paisagístico e turístico;

192 Paulo Affonso Leme Machado. Direito Ambiental Brasileiro – 7ª ed. São Paulo: Editora 193 José Afonso da Silva. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, pg. 1.

188

c) meio ambiente artificial: entende-se aquele constituído pelo

espaço urbano construído, consubstanciado no conjunto de

edificações (espaço urbano fechado) e dos equipamentos públicos

(espaço urbano aberto);

d) meio ambiente do trabalho: é o espaço-meio de desenvolvimento

da atividade laboral, como o local hígido, sem periculosidade,

com harmonia para o desenvolvimento da produção e respeito à

dignidade da pessoa humana.

Cabe observar, que o meio ambiente do trabalho está inserido no

meio ambiente artificial, mas o tema merece, segundo o autor, um tratamento

diferenciado, tanto que a Constituição expressamente mencionou-o no artigo 200,

inciso VIII.194

José Rubens Morato e Patryck de Araújo Ayala195 lembram que

conceito de meio ambiente possui um perfil de interdependência, interação homem-

natureza, e de caráter transdiciplinar. Assim, nos primeiros estudos sobre a ecologia

prevalecia uma abordagem denominada auto-ecológica, isto é, sem incluir o homem,

posteriormente, surgiu a sinecologia considerada como ramo da ecologia que trata das

relações entre as comunidades animais ou vegetais e o meio ambiente, buscando a

integração e interação de várias áreas do saber.

O conceito de meio ambiente não serve para identificar um objeto

específico, mas sim um conjunto de coisas interdependentes. Em qualquer definição

que se adote sobre o meio ambiente, o homem e natureza sempre deverão estar

inseridos no seu contexto, já que aquele depende dessa diretamente.

194 José Afonso da Silva. Direito Ambiental Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, pg23. 195 José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala. op. cit. , pg. 49.

189

Sensível aos problemas de degradação ambiental mundial,

proporcionado pelo desenvolvimento social desregrado, nosso constituinte de 1988

dedicou um capítulo especial ao tema.

Nossa Constituição de 1988, não foi a primeira Constituição da

América Latina a tratar do tema, já que foi precedida pelas Constituições do Equador e

do Peru de 1979, Chile e Guiana de 1980, Honduras de 1982, Panamá de 1983,

Guatemala de 1985, Haiti e Nicarágua de 1987. Na Europa, Portugal em 1976 e

Espanha em 1978, também trataram do tema. 196

Assim, nosso legislador constituinte traçou um conjunto de regras e

competências visando à proteção do meio ambiente, considerando-o como um bem de

uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. No campo

infraconstitucional, a legislação brasileira é diversificada com leis federais a respeito,

por exemplo: dos danos ambientais (Lei n° 7.802, de 11/07/89); dos crimes ambientais

(Lei n° 9.605, de 12/02/98); Código florestal (Lei nº 4.771, de 15/09/65); Código de

caça (Lei nº 5.197, de 03/01/67); Código de pesca (Decreto-lei nº 221, de 28/02/67);

entre outras.

Vejamos, portanto, como ficou a proteção do meio ambiente no

âmbito Constitucional.

4.4.2 - Proteção Constitucional do Meio ambiente

O “meio ambiente” nunca foi tratado de forma tão expressa por nossas

Constituições anteriores, como foi tratado pela Constituição de 1988.

A Constituição brasileira do Império de 1824, não fazia qualquer

referência ao meio ambiente, já que naquela época vigora o antropocentrismo clássico

196 Paulo Affonso Leme Machado. Direito ambiental brasileiro. 7ª ed. São Paulo. Malheiros, 1998, p.45.

190

e, tendo em vista a ampla possibilidade de exploração dos recursos naturais, não

pairava qualquer preocupação com a proteção ambiental. A exploração econômica do

meio ambiente (produtos agrícolas e minerais) era o que impulsionava o Brasil e

qualquer regulação constitucional desse setor poderia significar o atraso do nosso

desenvolvimento. Entretanto, a Constituição Imperial trazia nas Disposições Gerais e

Garantias dos Direitos Civis e Políticos do povo brasileiro, em seu artigo 179, inciso

XXIV, a previsão de que nenhum gênero de trabalho, cultura, indústria ou comércio

seria proibida desde que não atacasse a saúde dos cidadãos:

XXIV. “Nenhum genero de trabalho, de cultura, industria, ou commercio póde ser

prohibido, uma vez que não se opponha aos costumes publicos, á segurança, e

saude dos Cidadãos.” (sic)

A Constituição da República de 1891 disciplinou a possibilidade da

União legislar sobre minas e terras de sua propriedade (art. 34, 29º) e a proteção

patrimonial dos proprietários particulares (art. 72, § 17). A disposição não tinha

qualquer intuito preservacionista, pois visava apenas à proteção patrimonial e os

interesses dos exploradores.

A Constituição de 1934 trazia em seu texto a proteção às belezas

naturais, patrimônio histórico, artístico e cultural e a competência da União em matéria

de riquezas do subsolo, mineração, águas, florestas, caça, pesca e sua exploração.

Em 1937, a Carta Constitucional outorgada previa a preocupação com

relação aos monumentos históricos, artísticos e naturais. Além disso, estabelecia a

competência da União para legislar sobre minas, águas, florestas, caça, pesca, subsolo

e proteção das plantas e rebanhos.

A Constituição de 1946, manteve a defesa do patrimônio histórico,

cultural e paisagístico, conservando a competência legislativa da União para tratar da

saúde, subsolo, florestas, caça, pesca e águas.

191

Os mesmos dispositivos também aparecem na Constituição de 1967 e

na Emenda Constitucional nº 1/69. Porém, o texto constitucional pela primeira vez

utiliza o vocábulo “ecológico”, o que foi resultado do pensamento ecológico que

passou a despertar nesta época.

Todos os dispositivos constitucionais anteriores não tinham como

objetivo principal a função protetiva do meio ambiente, mas indiretamente acabavam

cumprindo essa função.

Nossa Constituição Federal de 1988 organizou a proteção e a

preservação do patrimônio ambiental, constituindo-se em bens pertencentes à União

(art. 21 da CF), aos Estados (art. 26 da CF) ou aos Municípios, particulares e bens de

interesse público.

José Afonso da Silva ensina que a referência constitucional ao meio

ambiente foi tratada, em algumas ocasiões de forma explícita e outras vezes de forma

implícita. As primeiras são as constantes, por exemplo, no artigo 5, inciso LXXIII, que

trata da ação popular e artigo 20, inciso II, que trata dos bens da União, entre outros.

Com relação às implícitas a Constituição faz referência a um setor ou a recurso

ambiental, são exemplos dessas, os incisos da exploração e instalação nucleares (art.

21, inciso XXIII), inspeção do trabalho (art. 21, inciso XXIV), estabelecimento de

áreas e condições para o exercício da garimpagem de forma associativa (art. 21,

XXV), que se conjuga com o disposto no art. 174, § 3º.

Neste último caso, o autor lembra que o art. 20 é rico em elementos

ambientais implícitos quando define entre os bens da União lagos, rios e quaisquer

correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado,

sirvam de limites com outros países, ou se estendam ao território estrangeiro ou dele

provenham, bem como os terrenos de marginais e as praias fluviais (inciso III), entre

outros exemplos.

192

Assim, entre as referências explícitas e implícitas, destacamos,

inicialmente, que a Constituição determina como objetivo fundamental da República

Federativa Brasileira a garantia do desenvolvimento nacional (inciso II, do art. 3º). Por

uma visão sistemática do texto constitucional, verifica-se que não se trata da busca de

um objetivo a todo custo, ou seja, o que se almeja não é o desenvolvimento nacional

desassociado de qualquer limitação, mas um desenvolvimento sustentável, que possa

conjugar os preceitos de defesa do meio ambiente, valorização do trabalho, bem-estar

da população, justiça social, redução das desigualdades, entre outras.197

Neste sentido, ao estabelecer os princípios que devem reger a ordem

econômica, o legislador constituinte inseriu como um desses a “defesa do meio

ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental

dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação” (inciso VI, do

art. 170 da CF).

Em matéria de remédios constitucionais, a Constituição estabeleceu a

possibilidade expressa de utilização da ação popular (art. 5º, inciso LXXII) e da ação

civil pública (art. 129, inciso III) para a defesa do meio ambiente.

O cerne do meio ambiente, na Constituição Federal de 1988, está

localizado no Capítulo VI, do Título VIII, mais precisamente no art. 225, com seus

parágrafos e incisos.

197 Ao justificar a não adesão ao Protocolo de Kioto pelo Estados Unidos da América o porta-voz da Casa

Branca, Scott McClellan, afirmou que seu país teve boas razões para rejeitar o Protocolo. McClellan não

especificou as razões, mas o governo de George W. Bush vem afirmando há tempos que as restrições às

emissões de gases, estabelecidas no tratado, vão afetar a produção industrial dos EUA. Ele ressaltou, por

outro lado, as medidas adotadas para reduzir as emissões no país: “Sob esta administração, estamos

comprometidos como nunca antes para reduzir (as emissões de) gases causadores do efeito estufa, mas de

modo a permitir que nossa economia continue prosperando", disse o porta-voz. "Continuamos avançando

com energia para fazer frente às mudanças climáticas." (Agência Estado. Estados Unidos tiveram “boas

razões” para rejeitar Kioto. 11/03/2005)

193

4.4.3. Conteúdo do art. 225 da Constituição Federal

Como dissemos, o art. 225 da Constituição Federal trouxe de forma

específica as disposições sobre o meio ambiente e sua proteção. Assim, a Constituição,

além de disposições explícitas ou implícitas esparsas pelo seu texto, trata

especificamente e expressamente sobre o tema no citado artigo.

Art. 225 – Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem

de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder

Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e

futuras gerações.

Celso Antonio Pacheco Fiorillo198, divide a análise do presente artigo

em quatro partes: abrangência do meio ambiente como direito de todos; o meio

ambiente como bem ambiental; estrutura finalística do direito ambiental que tem por

finalidade a sadia qualidade de vida; e, finalmente, o resguardo às futuras gerações.

Essa divisão é uma forma de decompor e analisar os diversos

elementos que compõem o artigo 225. Assim, vejamos de forma sucinta tal análise.

Na primeira parte, o que se buscou foi a delimitação de qual a

extensão da expressão “todos têm direito”, ou seja, estaríamos diante de um direito

deferido apenas aos brasileiros e estrangeiros residentes no País, conforme dicção

extraída do artigo 5º, da Constituição Federal, ou estaríamos diante de uma expressão

mais abrangente, correspondente ao disposto no artigo 1º, inciso III, de nossa

Constituição.

A posição que defende que somente os brasileiros e estrangeiros

residentes no País é que podem absorver a titularidade do direito material, indica a

198 Celso Antonio Pacheco Fiorillo. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2000, pg.

13.

194

soberania como fator limitador do direito, pois nosso ordenamento jurídico não teria

condições de garantir direitos que estivessem fora de sua órbita.

A segunda posição defende que qualquer pessoa humana teria

condições de ter a tutela desses valores ambientais. Assim, não importaria indagar se o

destinatário da norma constitucional seria brasileiro ou estrangeiro, indígena ou

alienígena.199

A tendência universalista do direito ambiental, sob o prisma do artigo

em discussão, foi rejeitada pelo autor supracitado, tendo em vista que o direito

ambiental deve ser caracterizado como um bem de uso comum do povo, entendendo-se

como povo o conjunto de indivíduos que falam a mesma língua, têm os mesmos

costumes e hábitos, afinidades e interesses.

Além disso, em nossa opinião, seria extremamente difícil ao

ordenamento jurídico de Estado conceder a titularidade de um direito a qualquer

pessoa que não fosse um membro de seu povo. Isso não impede que no ordenamento

jurídico internacional existam disposições que obriguem os Estados a estabelecerem

internamente previsões protetivas ao meio ambiente.

A segunda parte está relacionada a compreensão do que é o bem

ambiental. O meio ambiente se converte em patrimônio ambiental. A doutrina vem

procurando classificar o meio ambiente como bens de interesse público, para

diferenciá-lo das outras categorias de bens públicos.200 Sob esse aspecto é conveniente

lembrar que o próprio dispositivo qualificou o meio ambiente como bem de uso

comum do povo, contudo, é inegável que esse bem ganhou um tratamento especial da

Constituição, o que justifica classificá-lo como um bem de uso comum especial.

199 Celso Antonio Pacheco Fiorillo. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2000, pg.

11. 200 José Afonso da Silva. Direito Ambiental Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, pg. 83

195

A terceira parte do dispositivo está relacionada à finalidade do meio

ambiente que é a de conferir uma sadia qualidade de vida às pessoas. A referência a

qualidade de vida implica em reconhecer que não basta ao Estado a garantia da vida,

mas, também, que essa vida seja digna e que possibilite à pessoa ter acesso à uma série

de direito (saúde, educação, trabalho, lazer, por exemplo), dentre os quais o meio

ambiente ecologicamente equilibrado.

Neste ponto, pedimos vênia para fazer uma pequena digressão para

analisar o direito ao meio ambiente sadio como direito fundamental. Apenas para

relembrar, os direitos fundamentais foram o resultado de um processo evolutivo divido

em três fases ou dimensões201

Alguns autores vêm utilizando o termo dimensão de direitos, sob o

fundamento de que o termo gerações implica em reconhecimento de que a sucessão de

momentos onde uma geração substituiria a outra, o que não ocorre com as gerações ou

dimensões dos direitos humanos.

Entretanto, entendemos que o termo geração pode ser utilizado, pois

mesmo ocorrendo a sucessão de momentos, não significa dizer que o direito que foi

conquistado no momento anterior tenha que desaparecer.

1 – Primeira Geração: são os direitos de defesa do indivíduo perante

o Estado, estabelecem qual o domínio das atividades individuais e qual o das estatais

impondo um dever de abstenção do Estado em certas matérias ou domínios da

atividade humana. São em regra os direitos civis e políticos (direito à vida, à

intimidade, à inviolabilidade do domicílio, etc. )

201 Celso Ribeiro Bastos no seu Curso de Direito Constitucional, demonstra a evolução dos direitos sem se

referir a gerações de direitos. Contudo, o autor utiliza a expressão dimensão.

196

Paulo Bonavides leciona que a Revolução Francesa profetizou a

“seqüência histórica de sua gradativa institucionalização: liberdade, igualdade e

fraternidade “202.

Apresentam uma ideologia de afastamento do Estado das relações

individuais e sociais. O Estado deve ser o guardião das liberdades, permanecendo

distante de qualquer interferência no relacionamento social. São as chamadas

liberdades públicas negativas, pois exige do Estado um comportamento de

abstenção203. Os Direitos de primeira geração foram o fundamento do Estado Liberal.

2 – Segunda geração: são os que exigem uma atividade positiva do

Estado, no sentido de se buscar a superação das carências individuais e sociais. São

chamados de direitos positivos, pois reclamam não a abstenção da atuação do Estado,

mas a presença deste em ações voltadas à minoração dos problemas sociais. Também

são chamados de direitos de crença, já que traduzem a esperança de que o Estado

participe mais ativamente na diminuição das desigualdades.

Trata-se, não de se proteger contra o Estado, mas de elaborar um rol

de pretensões exigíveis do próprio Estado, que passa a ter de atuar para satisfazer tais

direitos.

Segundo André Ramos Tavares, o Estado passa do isolamento e não

intervenção a uma situação diametralmente oposta, ou seja, de atuação estatal a fim de

satisfazer as necessidades sociais. 204

3 – Terceira geração: constituem-se basicamente de direitos difusos e

coletivos, estando ligados às preocupações com o meio ambiente, defesa do

202 Paulo Bonavides. Curso de Direito Constituicional. 10ª ed. São Paulo: Malheiros. 2000. p. 521. 203 Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Júnior. op. cit. pg. 115. 204 André Ramos Tavares. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, pg. 360

197

consumidor, proteção à infância e juventude, saudável qualidade de vida, progresso,

etc. São chamados de direitos de solidariedade ou fraternidade

O Supremo Tribunal Federal já se posicionou no sentido de que o

direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito da coletividade ou

difuso, portanto, de terceira geração, senão vejamos:

A QUESTÃO DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE

EQUILIBRADO. DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO. PRINCÍPIO DA

SOLIDARIEDADE. O direito à integridade do meio ambiente – típico direito de

terceira geração – constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo,

dentro do processo de afirmação de direitos humanos, a expressão significativa de

um poder atribuído, não a indivíduo identificado em sua singularidade, mas num

sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria coletividade social.

Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que

compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais realçam o princípio da

liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais)

– que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o

princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de

titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais,

consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no

processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos,

caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma

essencial inexauribilidade.205.

Finalmente, a última parte a ser analisada, refere-se a garantia de

resguardo do bem ambiental às futuras gerações. A previsão confere ao bem um

caráter duradouro e futuro e reflete a preocupação do legislador com o “amanhã” dos

seres vivos.

205 MS - 22.164-0/SP, rel. o Min. Celso de Mello, in DJU 17/11/95, p. 39206.

198

A presente análise serviu para localizarmos, dentro do texto

constitucional, o alcance do dispositivo em questão. O artigo 225 é composto também

por parágrafos e incisos, mas não serão objeto de estudo neste trabalho, tendo em vista

que análise relativa ao meio ambiente visa apenas introduzir o tema na questão

referente às decisões do Supremo Tribunal Federal e a centralização.

Assim, a fim de tratarmos da situação referente as decisões do

Supremo Tribunal Federal, com referência a centralização de competências, vejamos

como a Constituição Federal realizou a divisão de competências em relação ao meio

ambiente.

4.4.4 - Distribuição de Competência em Matéria de Meio Ambiental

Como ficou demonstrado em capítulos anteriores o principal traço do

federalismo é a distribuição de competência entre os entes federais. Nossa

Constituição, com relação ao meio ambiente e tendo em vista sua importância,

relacionou-a dentro do sistema de distribuição de competências materiais e

legislativas.

A repartição de competências, adotada pela Constituição, foi dividida

em cinco planos: (a) competência material da União (artigo 21); (b) competência

material comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (artigo

23); (c) competência legislativa privativa da União (artigo 22); (d) competência

legislativa concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal (artigo 24), além da

descrita no artigo 30, inciso II, que abre aos Municípios a possibilidade de legislarem

de forma suplementar à legislação federal e estadual; e, (e) a competência reservada

aos Estados (artigo 25, § 1º). Assim, o meio ambiente acabou tendo tratamento em

todos esses planos constitucionais.

199

4.4.4.1 - Da competência material ambiental

À União compete privativamente o desenvolvimento de políticas

administrativas de meio ambiente, que estão definidos no artigo 21 da Constituição,

nos seguintes casos,:

a) elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do

território e de desenvolvimento econômico e social (inciso IX);

b) planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades

públicas, especialmente as secas e as inundações (inciso XVIII);

c) instituir o sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos

e definir critérios de outorga de direitos de uso (inciso XIX);

d) instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive

habilitação, saneamento básico e transportes urbanos (inciso XX).

No âmbito da competência material comum – União, os Estados, o

Distrito Federal e os Municípios – a Constituição definiu essas competências no artigo

23:

a) proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de

suas formas (inciso VI);

b) preservar as florestas, a fauna e a flora (inciso VII);

c) registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de

pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus

territórios (inciso XI);

Além dessas competências, o artigo 225 da Constituição também

definiu uma série de competências aos Poderes Públicos. Assim, aos entes federais

também foram atribuídas outras competências materiais, pelo citado artigo:

200

I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o

manejo ecológico das espécies e ecossistemas;

II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do

País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de

material genético;

III – definir, em todas as unidades da Federação, espaço territoriais e

seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a

alteração e a supressão permitidos somente mediante lei;

IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade

potencialmente causadora de significativa degradação do meio

ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará

publicidade;

V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas,

métodos e substâncias que comportem risco para a saúde, a qualidade

de vida e o meio ambiente;

VI – promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a

conscientização pública para a preservação ambiental; e,

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da leio, as práticas

que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção

de espécies ou submetam os animais a crueldade

O mesmo artigo prevê, ainda, em seu §4° a proteção da Floresta

Amazônica, Mata Atlântica, Serra do Mar, Pantanal Mato-grossense e da Zona

Costeira, considerando-os como patrimônio nacional, cuja utilização, na forma da lei,

deve ocorrer dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente,

inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.

Além dessas competências, a Constituição determinou que compete

aos Municípios promover , no que couber, adequado ordenamento territorial,

mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo

201

urbano (art. 30, inciso VIII), o que está ligado diretamente à proteção do meio

ambiente.

4.4.4.2 - Da competência legislativa em matéria ambiental

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu a divisão de competências

legislativas entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, utilizando-se da regra

de competências expressas para União e para os Municípios, concorrentes com os

Estados e Distrito Federal e reservadas ou remanescentes para esses últimos. Além

disso, em diversas passagens do texto constitucional existem disposições expressas de

competências legislativas aos Estados, como é o caso do artigo 18, § 4º.

Em matéria ambiental o artigo 22, da Constituição Federal, estabelece

em seus vários incisos as seguintes competências legislativas deferidas à União:

I – sobre direito penal, processual, agrário, marítimo, aeronáutico,

espacial e do trabalho;

II – desapropriação

IV – águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão;

XI – trânsito e transporte;

XII – jazidas, minas, outros recursos minerais e metalurgia;206

XIV – populações indígenas;

XVIII – sistema estatístico, sistema cartográfico e de geologia

nacionais;

XXIV – diretrizes e bases da educação nacional;

XXVI – atividades nucleares de qualquer natureza.

É inegável que essas matérias estão ligadas ao meio ambiente, pois

compete à União, por exemplo, a criação de crimes ambientais e o estabelecimento de

206 Vide artigo 170 e seguintes da CF.

202

penas, a legislação sobre desapropriação, no tocante a situações de meio ambiente,

como é o caso do disposto na letra “f”, artigo 5º, do Decreto-lei 3.365/1941, que

disciplina os casos de utilidade pública (o aproveitamento industrial das minas e das

jazidas minerais, das águas e da energia hidráulica), a disciplina do transporte e

trânsito de cargas perigosas no território nacional, entre outras situações.

Além dessas competências definidas no artigo 22, a Constituição

também deixou à União a possibilidade de disciplinar por lei federal a localização de

usinas nucleares (art. 225, § 6º da CF).

No âmbito da competência concorrente o artigo 24, da Constituição

Federal, estabelece que a União, os Estados e o Distrito Federal podem legislar sobre

questões ambientais, nos seguintes casos:

I – direito urbanístico;

VI – florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do

solo e dos recursos naturais, proteção ao meio ambiente207 e controle

da poluição;

VII – proteção do patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e

paisagístico;

VIII – responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a

bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e

paisagístico;

Na legislação concorrente, a União é competente para estabelecer

normas gerias. Essa competência não exclui a dos Estados em caráter suplementar. Por

outro lado, caso não sejam elaboradas as normas gerais pela União, os Estados

exercerão a competência legislativa plena para atender às suas peculiaridades.

Ocorrendo superveniência de lei federal sobre normas gerais, suspende-se a eficácia da

lei estadual no que for contrário àquela.

207 Neste caso devem ser excluídas as hipóteses relacionadas na competência privativa da União (art. 22 da CF).

203

Paulo Affonso Leme Machado208 leciona que suplemento é o que

supre, a parte que se ajunta a um todo para ampliá-lo ou para aperfeiçoá-lo. O que

serve para suprir qualquer falta. Portanto, quando a competência da pessoa de Direito

Público interno for somente suplementar a legislação de outro ente, se não existirem

normas, não existirá a possibilidade suplementação, já que não se suplementa o que

não existe.

O citado autor adverte, ainda, que não se suplementa uma regra

jurídica simplesmente pela vontade de os Estados inovarem diante da legislação

federal. A capacidade suplementar está condicionada à necessidade de

aperfeiçoamento da legislação federal ou diante da constatação de lacunas ou de

imperfeições da norma geral federal.

Com relação aos Municípios, cabe lembrar, que estes também

receberam competência para suplementar a legislação federal e a estadual. Assim,

muito embora não estejam relacionados no artigo 24, devemos entender que sempre

que o Município encontrar matéria a ser suplementada nas legislações federal e

estadual, poderá realizá-lo, por força do que dispõe o artigo 30, inciso II da

Constituição Federal. Logo, as matérias ambientais podem ser relacionadas como

matérias sujeitas à legislação municipal sob o prisma da suplementação.

4.4.5 - Das decisões do Supremo Tribunal Federal em matéria ambiental

Visando dar seguimento à análise sobre das decisões do Supremo

Tribunal Federal, que conduzem a centralização de competências na União, vejamos

agora as decisões em matéria de competência ambiental.

208 Paulo Affonso Leme Machado. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 1998, pg. 48.

204

Como se verificou em linhas anteriores, a matéria do meio ambiente

foi alvo de distribuição de competência pelo legislador constituinte sob o aspecto

material e legislativo.

Contudo, mesmo no âmbito de uma matéria que foi amplamente

disciplinada e distribuída entre os entes federais, as decisões do Supremo Tribunal

Federal permaneceram centralizadora.

Ao julgar a ADIN 1.893-9209, o Supremo Tribunal Federal fez

diferenciação entre as espécies de meio ambiente, a fim de excluir da competência dos

Estados-membros a possibilidade de legislarem sobre o meio ambiente do trabalho,

pois segundo este Tribunal tal competência deve ser deferida à União.

A questão se referia a possibilidade de fiscalização pelo Estado-

membro dos locais de trabalho, para desenvolver uma política estadual de qualidade

ambiental, ocupacional e de proteção da saúde do trabalhador.

A lei trazia em seu artigo 3º, a instituição da Política Estadual de

Qualidade Ambiental Ocupacional e de Proteção da Saúde do Trabalhador:

“Art. 3º a Política Estadual de Qualidade Ambiental Ocupacional e de proteção da

Saúde do Trabalhador tem por objetivos:

209 SEGURANÇA E HIGIENE DO TRABALHO - COMPETÊNCIA LEGISLATIVA. Ao primeiro exame,

cumpre à União legislar sobre parâmetros alusivos à prestação de serviços – artigos 21, inciso XXIV, e 22,

inciso I, da Constituição Federal. O gênero "meio ambiente", em relação ao qual é viável a competência em

concurso da União, dos Estados e do Distrito Federal, a teor do disposto no artigo 24, inciso VI, da

Constituição Federal, não abrange o ambiente de trabalho, muito menos a ponto de chegar-se à fiscalização

do local por autoridade estadual, com imposição de multa. Suspensão da eficácia da Lei nº 2.702, de 1997, do

Estado do Rio de Janeiro. (ADI 1893 MC / RJ - RIO DE JANEIRO. MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO

DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO Julgamento: 18/12/1998

Órgão Julgador: Tribunal Pleno Publicação: DJ DATA-23-04-1999 PP-00002 EMENT VOL-01947-01 PP-

00141)

205

I – Estabelecer e fiscalizar o cumprimento de padrões de qualidade ambiental

ocupacional objetivando a redução da exposição a situações efetiva ou

pontencialmente causadoras de risco para a saúde e a vida do trabalhador.”

Na jurisprudência citada, o que se verifica é que a competência do

artigo 22, inciso I, ganhou uma maior abrangência, atingindo as questões ligadas ao

meio ambiente nos locais de trabalho, o que em uma interpretação mais

descentralizada poderia ser deferido aos Estados-membros de forma concorrente.

Assim, a interpretação realizada pelo Supremo Tribunal Federal

seguiu uma linha voltada não para o meio ambiente, matéria que foi objeto de ampla

distribuição de competência entre os entes federais, mas para a disciplina do trabalho

(artigo 22, inciso I da Constituição Federal).

Já tivemos a oportunidade de analisar quais são as espécies de meio

ambiente, entre as quais se encontra o meio ambiente do trabalho.

Segundo classificação de Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Marcelo

Abelha Rodrigues, meio ambiente do trabalho é o espaço-meio de desenvolvimento da

atividade laboral, como o local hígido, sem periculosidade, com harmonia para o

desenvolvimento da produção e respeito à dignidade da pessoa humana.210

Portanto, parece ser razoável que competência concorrente

disciplinada no artigo 24, inciso VI, deveria abranger, também o meio ambiente do

trabalho.

A proposta de prestigiar o Estado-membro abrindo-lhe a possibilidade

de legislar sobre o meio ambiente do trabalho, ainda que de forma concorrente, além

de reforçar os princípios federativista adotados pelo Brasil, com certeza valorizaria a

210 Celso Antonio Pacheco Fiorillo. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Ed. Saraiva, 2000, pg. 11.

206

matéria, dando lhe um novo contorno. Dessa forma, a matéria do meio ambiente do

trabalho não seria tratada como mera matéria de direito do trabalho.

O tema do meio ambiente, como vimos, ganhou relevo constitucional,

sendo óbvio que os limites deveriam ser estendidos sobre todas as questões de sua

abrangência. Logo, parece razoável a retração do campo de abrangência da matéria

trabalhista, tendo em vista a especialidade do “meio ambiente”. É que após a

constitucionalização da matéria havia a necessidade da criação de um campo de

atuação para as questões do meio ambiente, com a conseqüente retração de outras

matérias.

Já tivemos a oportunidade de verificar anteriormente, que o Supremo

suspendeu a vigência de lei do Espírito Santo, que proibia o plantio de eucaliptos

destinados à produção de celulose ( ADI 2623 MC / ES211).

Naquela oportunidade o fundamento utilizado pelo Supremo, além da

não comprovação do controle ambiental, foi a de que a questão violava o direito de

propriedade, sendo essa matéria de competência da União, por força do artigo 22,

inciso I – legislar sobre direito civil.

211 EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL. PROIBIÇÃO DE

PLANTIO DE EUCALIPTO PARA FINS DE PRODUÇÃO DE CELULOSE. DISCRIMINAÇÃO.

IMPOSSIBILIDADE. AFRONTA AOS POSTULADOS DA ISONOMIA E DA RAZOABILIDADE.

DIREITO DE PROPRIEDADE. TEMA DE DIREITO CIVIL. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA

UNIÃO. 1. Vedação de plantio de eucalipto no Estado do Espírito Santo, exclusivamente quando destinado à

produção de celulose. Ausência de intenção de controle ambiental. Discriminação entre os produtores rurais

apenas em face da destinação final do produto da cultura, sem qualquer razão de ordem lógica para tanto.

Afronta ao princípio da isonomia. 2. Direito de propriedade. Garantia constitucional. Restrição sem justo

motivo. Desvirtuamento dos reais objetivos da função legislativa. Caracterizada a violação ao postulado da

proporcionalidade. 3. Norma que regula direito de propriedade. Direito civil. Competência privativa da União

para legislar sobre o tema (CF, artigo 22, I). Precedentes. Presença dos requisitos do fumus boni iuris e do

periculum in mora. Pedido cautelar deferido. (ADI 2623 MC / ES - ESPÍRITO SANTO MEDIDA

CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Relator(a): Min. MAURÍCIO

CORRÊA Rel. Acórdão Min. Revisor Min. Julgamento: 06/06/2002 Órgão Julgador: Tribunal Pleno

Publicação: DJ DATA-14-11-2003 PP-00011 EMENT VOL-02132-13 PP-02472.)

207

Como se verificou a questão poderia ter sido resolvida apenas com a

apreciação do controle ambiental (falta de comprovação do controle ambiental).

Contudo, o Supremo diminuiu a competência do Estado-membro remetendo a questão

para o direito de propriedade.

Neste mesmo sentido, ou seja, da centralização da competência

legislativa dos Estados-membros nas competências da União, foi a suspensão da lei

estadual paranaense de nº 14.162, de 27 de outubro de 2003, que estabelecia a vedação

ao cultivo, a manipulação, a importação, a industrialização e a comercialização de

organismos geneticamente modificados212. Na citada hipótese, o Supremo Tribunal

Federal entendeu que o Estado violou competência privativa da União no tocante aos

art. 22, incisos I, VII, X e XI; e, também a competência disposta no art. 24, I e VI, do

mesmo ente para editar normas gerais.

Verificamos, portanto, que apesar da Constituição Federal ter

realizado extensa distribuição de competências ambientais, as decisões do Supremo

Tribunal Federal conduzem à centralização de competências legislativas nas mãos da

União.

Em outra situação, quando houve o julgamento de medida cautelar na

ADIN 1.086-7213, que dispensava a realização de estudos de impacto ambiental para

212 EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada contra a lei estadual paranaense de nº 14.162, de 27

de outubro de 2003, que estabelece vedação ao cultivo, a manipulação, a importação, a industrialização e a

comercialização de organismos geneticamente modificados. 2. Alegada violação aos seguintes dispositivos

constitucionais: art. 1º; art. 22, incisos I, VII, X e XI; ao art. 24, I e VI; ao art. 25; e ao artigo 170, caput,

inciso IV e parágrafo único. 3. Plausibilidade das alegações de inconstitucionalidade no que toca à potencial

ofensa à competência privativa da União e das normas constitucionais relativas às matérias de competência

legislativa concorrente. 4. Deferida a cautelar. (ADI 3035 MC / PR – PARANÁ. MEDIDA CAUTELAR NA

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Relator(a): Min. GILMAR MENDES Rel. Acórdão

Min. Revisor Min. Julgamento: 10/12/2003 Órgão Julgador: Tribunal Pleno Publicação: DJ DATA-12-03-

2004 PP-00036 EMENT VOL-02143-02 PP-00342) 213 EMENTA: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA. LIMINAR. OBRA OU ATIVIDADE

POTENCIALMENTE LESIVA AO MEIO AMBIENTE. ESTUDO PREVIO DE IMPACTO

208

áreas de reflorestamento ou objeto de reflorestamento para fins empresariais, o

deferimento da liminar ocorreu com fundamento em invasão de competência pelo

Estado

No caso em questão, o Estado de Santa Catarina buscava disciplinar a

instalação de áreas de florestamento e reflorestamento para fins empresariais. Naquela

ocasião, ante a ausência de norma geral sobre o assunto, o Estado editou uma lei

estadual em que dispensava a realização de estudo de impacto ambiental, utilizando-se

para tanto de sua competência estabelecida no artigo 24, parágrafo 3º da Constituição.

Assim, sem adentrar no mérito referente ao estudo de impacto ambiental, verifica-se

que o Supremo Tribunal Federal negou a competência plena ao Estado com base em

falta de “peculiaridades locais”.

A norma impugnada (art. 182 da Constituição do Estado de Santa

Catarina) trazia o seguinte teor:

“Art. 182 – Incumbe ao Estado, na forma da lei:

(...)

V – exigir, para a instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de

significativa degradação do meio ambiente, estudos prévios de impacto ambiental,

a que se dará publicidade;

(...)

AMBIENTAL. Diante dos amplos termos do inc. IV do par. 1. do art. 225 da Carta Federal, revela-se

juridicamente relevante a tese de inconstitucionalidade da norma estadual que dispensa o estudo prévio de

impacto ambiental no caso de áreas de florestamento ou reflorestamento para fins empresariais. Mesmo que

se admitisse a possibilidade de tal restrição, a lei que poderia viabilizá-la estaria inserida na competência do

legislador federal, já que a este cabe disciplinar, através de normas gerais, a conservação da natureza e a

proteção do meio ambiente (art. 24, inc. VI, da CF), não sendo possível, ademais, cogitar-se da competência

legislativa a que se refere o par. 3. do art. 24 da Carta Federal, já que esta busca suprir lacunas normativas

para atender a peculiaridades locais, ausentes na espécie. Medida liminar deferida. (ADI 1086 MC / SC –

SANTA CATARINA. MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.

Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO Julgamento: 01/08/1994 Órgão Julgador: TRIBUNAL PLENO

Publicação: DJ DATA-16-09-1994 PP-42279 EMENT VOL-01758-02 PP-00435)

209

§ 3 – O disposto no inciso V não se aplica às áreas florestadas ou objeto de

reflorestamento para fins empresariais, devendo ser inseridas normas disciplinando

sua exploração no plano de manejo sustentado, visando à manutenção da qualidade

ambiental.”

A Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, em suas

informações, sustentou que o constituinte estadual atuou dentro dos limites de sua

competência, em conformidade com o art. 24, VI, da Constituição Federal e que o § 3º,

ao exigir a edição de normas disciplinadoras do reflorestamento, não cria exceção à

regra do art. 225, § 1º, inciso IV da Constituição.

No julgamento o Ministro Ilmar Galvão reconheceu que a norma

impugnada ao dispensar o estudo de impacto ambiental criou exceção incompatível

com o disposto no inciso IV, do § 1º, do artigo 225 da Constituição Federal.

O referido Ministro ao analisar a situação frente ao sistema de

distribuição de competências legislativas, argumentou que apenas a lei federal seria

apta a excluir hipóteses à incidência do aludido preceito geral, já que se tratava de

matéria inserida no campo de abrangência das normas gerais sobre a conservação da

natureza e proteção ao meio ambiente e, não de normas complementares, que são de

atribuição constitucional dos Estados-membros (art. 24, inciso VI da Constituição

Federal).

Na seqüência o relator não exclui a aplicação da competência

legislativa plena do Estado-membro (art. 24, § 3º da CF), tendo em vista a não

visualização da peculiaridade local:

“Não é de ser invocada, igualmente, a competência legislativa plena dos Estados-

membros (art. 24, § 3º, da CF), quando menos porque não se compreende qual

seja a peculiaridade local que se estaria atendendo com a edição de uma regra

constitucional com tal conteúdo normativo.”

210

Não se compreende como a questão de florestamento e

reflorestamento, não deva ser relacionada às “peculiaridades locais”. Por óbvio, essa

espécie de manejo atinge diretamente as localidades onde são desenvolvidas, gerando

uma série de situações locais, tais como: empregos, comércio, preservação da

natureza, turismo, etc.

Em uma interpretação mais preservacionista da competência dos

Estados-membros, tendo em vista o princípio federalista, o Supremo Tribunal Federal

poderia ter adotado o posicionamento de julgamento “conforme a Constituição”, a fim

de ajustar o dispositivo referente ao impacto ambiental descrito no artigo 225, § 1º,

inciso IV da Constituição. Contudo, não foi esse o entendimento que prevaleceu e a

norma foi fulminada com a declaração de sua inconstitucionalidade.

Como se verifica pela jurisprudência analisada, a questão do meio

ambiente, assim como outros assuntos, também sofreu com a centralização das

decisões do Supremo Tribunal Federal.

Com esta análise, demonstramos que a tendência verificada no

capítulo anterior, tem sido a tônica geral nos assuntos em que o Supremo Tribunal

Federal, buscando preservar a unidade do ordenamento jurídico e em nome do

federalismo de cooperação ou contemporâneo, invalida as normas infraconstitucionais

estaduais, transferindo-as para a competência da União.

211

5. CRITÉRIOS PARA MANUTENÇÃO DA LINHA DIVISÓRIA DE

COMPETÊNCIAS

No presente capítulo, buscaremos estabelecer os critérios a serem

observados para manutenção da linha divisória entre as competências da União e dos

Estados-membros, tentando evitar o deslocamento de competências que possam

caracterizar a centralização do Estado brasileiro.

Os critérios para a adoção de uma linha divisória das competências da

União e dos Estados, passam pela observação das características do princípio

federalista, pela proteção determinada pelo legislador constituinte à forma federativa, o

que impede a mutação e evolução de conceitos no sentido de favorecer a centralização

e a interpretação ampliativa das competências da União.

Como verificamos ao longo desse trabalho, o federalismo adotado

pelo Brasil, desde a Constituição de 1891, passou pelo dualismo que depois foi

transformado em contemporâneo ou cooperativo, sendo que houve, em determinados

momentos, até mesmo a situação de Estado unitário descentralizado.

Dessa forma, inicialmente o Brasil adotou uma espécie de federalismo

dual, chegando, inclusive, a ser proclamada a soberania dos Estados-membros como

decorrência da soberania do Estado Federal brasileiro. Assim, o Decreto nº 1, de 15 de

novembro de 1889 (arts. 2º e 3º)214, proclamou a soberania dos Estados. Entretanto, na

Constituição federal de 1891 ficou expressa a marca do federalismo dualista.215

214 Art 2º - As Províncias do Brasil, reunidas pelo laço da Federação, ficam constituindo os Estados Unidos do

Brasil.

Art 3º - Cada um desses Estados, no exercício de sua legítima soberania, decretará oportunamente a sua

Constituição definitiva, elegendo os seus corpos deliberantes e os seus Governos locais. 215 Capítulo III – O Federalismo Brasileiro.

212

O federalismo dualista de 1891 não se restaurou novamente, sendo

que na Constituição de 1934 foi implantado o federalismo contemporâneo, com

ampliação dos poderes da União, implementando-se o Estado intervencionista, que

incorporou as matérias anteriormente confiadas aos Estados membros.216

A Constituição de 1937, estabeleceu a estrutura de Estado unitário

descentralizado, muito embora preconizasse a condição de Estado Federal do Brasil.

Com a queda de Getúlio Vargas e o fim do Estado Novo em outubro de 1945, foram

realizadas eleições para uma Assembléia Constituinte e para Presidente da República,

o novo texto constitucional entrou em vigor em setembro de 1946, substituindo a Carta

de 1937, e restaurou o federalismo contemporâneo.

A linha centralizadora foi restaurada pela Constituição de 1967 e

confirmada pelos Atos Institucionais que se seguiram. Muitas competências que

pertenciam aos Estados e aos Municípios passaram a ser da União.

Na Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988, o Brasil retomou a

linha federal de distribuição de competências administrativas, legislativas e tributárias

aos Estados-membros.

Assim, em rápidas linhas pudemos demonstrar a evolução do

federalismo brasileiro, que passou por períodos de centralização e descentralização.

Ocorre, como vimos, que no plano das decisões do Supremo Tribunal

Federal, muito embora a Constituição de 1988 tenha adotado uma linha de distribuição

de competências expressas à União e remanescentes e algumas expressas aos Estados-

membros, além das concorrentes, percebe-se uma tendência de concentração das

competências na União, ou seja, a interpretação do Supremo Tribunal em relação à

divisão de competências sofre um processo de centralização.

216 Em 1891, não suportando a oposição do Congresso ao seu Governo, o Marechal Deodoro da Fonseca

renuncia e o vice-presidente, Marechal Floriano Peixoto, assume a presidência do Brasil.

213

Os critérios de interpretação do Supremo no tocante as jurisprudências

apresentadas privilegiam a União. Dessa forma, o cumprimento do princípio federativo

é negado, muitas vezes, em favor da preservação da uniformidade do ordenamento

jurídico e do cooperativismo.

Ante a essa constatação, passaremos a partir de agora a estabelecer os

fundamentos que justificariam uma interpretação menos centralizadora e que possa

oferecer uma linha divisória entre as competências da União e dos Estados.

5.1. - O princípio federativo

A idéia de princípio está relacionada ao início de um sistema, ao

começo. Assim, todos sistemas são orientados por um conjunto de princípios, que

serviram de base para a sua estruturação. O princípio federativo, como veremos, tem

como conteúdo uma série de características que foram adotadas pelo modelo inicial

(por exemplo, duplo grau de governo, repartição de competências, entre outras) e que

passaram a ser indicadores de sua existência.

Ricardo Guastini retirou da jurisprudência e da doutrina seis conceitos

sobre princípios: (a) refere-se a normas (ou disposições que exprimem normas)

providas de um alto grau de generalidade; (b) as normas (ou disposições que

exprimem normas) providas de alto grau de indeterminação e que por isso requerem

concretização por via interpretativa, sem a qual não seriam suscetíveis de aplicação a

casos concretos; (c) normas (ou disposições que exprimem normas) cuja posição na

hierarquia das fontes de Direito é muito elevada; (d) os juristas usam o vocábulo

princípio para designar normas (ou disposições que exprimem normas) que

desempenham uma função “importante” e “fundamental” no sistema jurídico ou

político unitariamente considerado, ou num ou noutro subsistema do sistema jurídico

214

conjunto; e, (e) os juristas se utilizam da expressão “princípio” para designar normas

(ou disposições que exprimem normas) dirigidas aos órgãos de aplicação, cuja função

específica é fazer a escolha dos dispositivos ou das normas aplicáveis nos diversos

casos.217

Contudo, Walter Claudius Rothenburg nos mostra que as primeiras

abordagens negavam aos princípios o caráter de normas jurídicas. Por força de sua

suposta abordagem de natureza “transcendente”, em razão de seu conteúdo e vagueza,

bem como pela formulação através de dispositivos destituídos de sanção (imediata), os

princípios eram considerados como meras exortações ou preceitos de ordem moral ou

política, mas não verdadeiros comandos de Direito.218

Essa fase de abstração dos princípios ocorreu com o jusnaturalismo,

sendo que estes não possuíam normatividade, o que contrastava com a dimensão

valorativa daqueles. Os princípios eram considerados como valores, mas não possuíam

a força de norma.

Posteriormente, a fase jusnaturalista deu lugar ao positivismo dos

princípios, que são introduzidos nos Códigos como normas gerais e subsidiárias. Neste

sentido, os princípios aparecem como normas de preenchimento do vazio normativo.

Finalmente, o positivismo dos princípios evolui dos Códigos para as

Constituições ganhando força normativa.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho219 qualifica os princípios

constitucionais em duas categorias: princípios inferidos (ou apofânticos) e princípios

prescritos (ou princípios deônticos). Com efeito, o autor demonstra que as

217 Ricardo Guastini. Dalle fonti alle Norme. Itália, Turim, 1957, pg. 116/120. Apud Paulo Bonavides. Curso de

Direito Constitucional. 12ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, pg. 230. 218 Walter Claudius Rothenburg. Princípios Constitucionais. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1999, pg. 13. 219 Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005, pg. 391/392.

215

Constituições dogmáticas dos séculos XVIII, XIX e da primeira metade do século XX

incorporaram princípios que nelas apareciam como regras. Esses princípios inferidos,

apareciam na atividade de elaboração das Constituições, estavam claros como

diretrizes na mente dos constituintes, mas desapareciam quando feita a obra, “como

andaimes que se retiram de uma construção terminada”. Por outro lado, os princípios

prescritos estão explícitos no texto constitucional e servem para prescrever certa linha

de conduta, ou de orientação, indicando o rumo de efetivação da Constituição. Além

disso, o autor lembra que é possível que princípios inferidos sejam também prescritos

e vice versa.

O princípio federativo220 foi um dos princípios estruturantes da

Constituição Federal, tendo sido elevado, ante a sua importância, à categoria de

princípio fundamental, juntamente com os princípios: republicano, da separação dos

poderes, do Estado democrático de direito, entre outros.

A observância do princípio federalista, ante o imperativo

constitucional, deve ser a regra mestra para o estabelecimento de uma linha clara entre

as competências da União e as dos Estados.

Essa tarefa deve ser feita dentro do que ficou definido pela

Constituição Federal como conteúdo do princípio federalista. Não se trata de querer

dar contornos à implantação do federalismo clássico adotado inicialmente pelos

Estados Unidos, mas de preservar a forma determinada pelo legislador constituinte,

impedindo assim que haja a centralização do Estado brasileiro.

Durante a história brasileira, como vimos, o federalismo passou por

uma série de modificações constitucionais, variando de modelos mais descentralizados

220 Cumprindo o conteúdo do princípio federalista a Constituição Federal estabeleceu: a indissolubilidade de

vínculo (art. 1º); a organização do Estado e três níveis de governo (característica assimétrica do federalismo)

(art. 18); estabeleceu vedações federativas (art. 19); dividiu as competências (materiais e legislativas) entre a

União, os Estado, Distrito Federal e Municípios (art. 21 e seguintes); organizou os poderes (art. 44 e

seguintes); estabeleceu a divisão de rendas (art. 145 e seguintes), entre outros.

216

para centralizados e vice versa. A atual Constituição restabeleceu um federalismo de

equilíbrio entre as unidades federadas, estabelecendo uma linha de divisão

competências privativas, repartidas de forma horizontal; competências concorrentes,

repartidas verticalmente, com a possibilidade de delegação.

Portanto, evidentemente, a observância do princípio federalista é um

dos vetores que deve ser utilizado para o estabelecimento da divisão de competências

entre a União e os Estados, como forma de preservação do próprio Estado federal

brasileiro. Tanto isso é verdadeiro, que o legislador constituinte incluiu a proteção do

federalismo entre as chamadas cláusulas pétreas, impedindo quaisquer alterações que

possam levar à abolição dessa forma de Estado.

5.2 - Proteção da forma federativa em relação às alterações do poder constituinte

derivado e pelo processo de mutação

O Poder Constituinte originário fixou as regras do processo de

mutalibilidade constitucional (poder constituinte derivado), estabelecendo um rito

próprio para a modificação da Constituição e um processo de revisão constitucional.

Além disso, muito embora não exista expressa previsão, a Constituição pode sofrer

alterações sem que seu texto seja modificado, o que é conhecido como mutação

constitucional. Assim, seja por meio de processo de alteração do texto constitucional,

seja pela via informal da mutação, os limites estabelecidos pelo Poder Constituinte

originário devem ser observados.

A fim de justificarmos esse posicionamento, vejamos os processos de

alteração da Constituição e a proteção deferida à forma federal de Estado.

217

5.2.1 – Mutabilidade da Constituição e a Preservação do Federalismo

A possibilidade de alteração da constituição ocorre por força do

exercício do poder constituinte derivado, ou seja, do poder que foi expressamente

previsto pelo constituinte originário. Neste sentido, naturalmente, esse processo de

alteração do texto constitucional encontra requisitos ou condições para o seu exercício.

Assim, talvez o mais correto seria a utilização das expressões requisitos ou condições

para o exercício do poder constituinte derivado; entretanto, seguindo o que já foi

tradicionalmente firmado, utilizaremos o termo limitações.

A Constituição Federal de 1988 contempla a técnica de estabelecer

limitações explícitas (limitações materiais (cláusulas pétreas), circunstanciais e

procedimentais) e implícitas. As limitações ou vedações explícitas estão previstas no

artigo 60 da Constituição federal, como veremos abaixo, enquanto que as limitações

implícitas referem-se à mudanças constitucionais que não podem ser toleradas, muito

embora não sejam previstas de forma clara.

Dessa forma, não seria possível alterar o processo estabelecido no

artigo 60, pois estaríamos mudando a vontade do Poder Constituinte Originário de tal

maneira que a competência reformadora seria exercida de forma diferente da

determinada inicialmente, muito menos, seria possível a alteração do rol das matérias

previstas no §4º do artigo 60. Além disso, não é possível a alteração dos princípios

constitucionais (objetivos e fundamentos do Estado brasileiro, respectivamente, art. 3º

e dos incisos do art. 1º) que são intocáveis por via de emenda.221

Vejamos as limitações explícitas, a fim de demonstrar a proteção

garantida a forma federativa:

221 Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior. op. cit. pg. 11

218

a) As limitações circunstanciais referem-se a determinados momentos

em que a estabilidade interna fica comprometida, sendo vedada a alteração do texto

por meio de Emenda Constitucional. Essas situações de crise foram definidas pela

Constituição de 1988, no artigo 60, §1º, como sendo a vigência de intervenção federal,

de estado de defesa ou de estado de sítio.

Paulo Bonavides cita como exemplo de limitação circunstancial o

artigo 94 da Constituição francesa de 1946, que interditava a revisão constitucional em

caso de invasão do território. Os franceses guardavam amargas lembranças do episódio

político de julho de 1940, quando a França invadida pelo exercito alemão, realizou, em

Vichy, a reforma das Leis Constitucionais da III República, mesmo com parte do

território nacional ocupado e debaixo de pressão militar estrangeira. O mesmo

exemplo foi seguido pela Constituição francesa de 1958.222

A fim de não comprometer a própria existência do Estado, o processo

de alteração constitucional só pode ser perpetrado, portanto, quando houver situação

de tranqüilidade social.

b) A limitação procedimental prevista na Constituição Federal impede

que emendas já rejeitadas ou tidas por prejudicadas sejam novamente apresentadas na

mesma sessão legislativa.223

c) As limitações materiais são as estabelecidas no artigo 60, § 4º, da

Constituição, que, em seus incisos I a IV, proíbe a abolição da forma federativa de

Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os

direitos e garantias individuais.

222 Paulo Bonavides. Curso de Direito Constitucional. São Paulo. pg. 177. 223 Segundo o artigo 57 da Constituição, sessão legislativa é o período anual entre 15 de fevereiro a 30 junho e de

1º de agosto a 15 de dezembro.

219

Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior224 explicam

que o dispositivo estende a proteção não apenas aos bens lá constantes, mas a qualquer

emenda tendente a abolir as cláusulas pétreas. Portanto, a proteção é mais extensa que

os próprios bens, vedando a deliberação de qualquer matéria tendente a abolir as

cláusulas pétreas.

Cabe lembrar, que a presente limitação não proíbe a modificação das

matérias desde que essa alteração não coloque em jogo a existência dos valores ali

preservados. Assim, por exemplo, seria possível alterar a Constituição para o fim de

incluir ou ampliar direitos e garantias individuais, ou atribuir novas competências aos

Estados-membros, já que isso reforça a forma federativa adotada.

Com relação às limitações materiais e a proteção do federalismo,

expressa no artigo 60, § 4º, inciso I da Constituição de 1988, Manoel Gonçalves

Ferreira Filho lembra que a Constituição de 1988 manteve, com acerto, a proibição de

abolir a federação, que já vinha da Constituição de 1891 e fora mantida pelas

Constituições posteriores (com exceção da 1937), mas suprimiu a de abolir a

República, que também foi estabelecida em 1891 e adotada pelas Constituições

posteriores. O fato se deve, segundo o autor, pela previsão do artigo 2º do Ato das

Disposições Transitórias, que previu o plebiscito entre a Monarquia e República, bem

como entre o presidencialismo e o parlamentarismo , sendo que foram mantidos, em

1993, a República e o sistema presidencial.225

A Constituição de 1988 protegeu expressamente a forma federal de

Estado impedido qualquer alteração no texto constitucional que importe em sua

abolição ou que se mova no sentido de tal fim, quando utilizou a expressão “tendente

a abolir”.

224 Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior. op. cit. pg. 326. 225 Manoel Gonçalves Ferreira Filho. op. cit. pg. 186

220

Assim, qualquer ataque direto ou indireto à forma federativa não

poderá sequer ser objeto de deliberação. Dessa forma, por exemplo, a proposta de

Emenda constitucional que diminuísse competências estaduais ou que atribuísse novas

competências à União deveria ter sua tramitação obstada por ser inconstitucional.

À época da revisão constitucional prevista pela art. 2º, do Atos das

Disposições Constitucionais Transitórias, se discutia a possibilidade da aplicação das

limitações previstas no artigo 60 àquele processo de revisão. Sendo assim, devemos

indagar se seria possível a modificação da forma federativa durante o processo de

revisão constitucional?

Em primeiro lugar é preciso ter em mente que a revisão constitucional

estabelecida no artigo 2º do ADCT é uma espécie de poder constituinte derivado,

diferenciando do reformador estabelecido no artigo 60, pelo fato de estar no corpo

transitório da Constituição, por ser mais abrangente e por prever um processo menos

solene para sua ocorrência. A previsão da possibilidade de revisão foi uma

flexibilização das regras de alteração constitucional por meio do poder constituinte

derivado, que foram definidas pelo poder constituinte originário. Contudo, não houve

qualquer ruptura das características desse poder, que continuou sendo limitado e

condicionado.

Não seria possível então, que o poder constituinte derivado revisional

não respeitasse às regras impostas pelo poder constituinte originário, alterando as

cláusulas que foram perpetuadas ou modificando o próprio artigo 60 da Constituição

federal. Logo, não seria possível, por meio do processo de revisão, a alteração da

forma federativa do Estado.

As alterações na Constituição, muitas vezes, podem ocorrer por um

processo informal, independentemente da modificação do texto constitucional

(mutação constitucional), sendo que por essa via, também, deve existir a proteção à

forma federativa.

221

5.2.2 - Mutação Constitucional

Como ficou demonstrado ao longo desse trabalho o federalismo

passou por uma série de variações em seu conteúdo. O próprio federalismo americano

não se conservou da forma como seus idealizadores previram. Essas alterações foram

em sua grande maioria realizadas sem que houvesse qualquer modificação no texto

constitucional. O propósito de abordarmos esse aspecto, é demonstrar que qualquer

modificação no federalismo, desde que suportável pelo sistema, é possível. Contudo,

dependendo do grau de alteração, a própria existência do federalismo pode estar

comprometida. O limite do processo de modificação deve ser delimitado até o ponto

onde não se comprometa a existência do federalismo.

A mudança na Constituição pode ocorrer de duas formas: a reforma

constitucional, abrangendo, em sentido amplo, a revisão e a emenda, que são resultante

do poder constituinte derivado, onde o texto constitucional é o objeto da alteração; e

por meio da mutação constitucional.

Para Karl Loewenstein226 o conceito de reforma constitucional tem um

significado formal e material. Por sentido formal se entende a denominação técnica

por meio da qual se modifica o texto constitucional, tal como no momento de troca da

Constituição. Geralmente, as disposições a respeito dessa possibilidade de modificação

aparecem no final do texto. Aproxima-se dessa forma o processo de revisão

constitucional. A reforma constitucional material, por outro lado, é o resultado do

procedimento de emenda constitucional. No processo de reforma, lembra o autor,

participam de sua formação os detentores do poder previsto pela Constituição.

É razoável afirmar que uma Constituição ao ser elaborada é feita para

ser duradoura. Assim, a essa Constituição deve ser dada a possibilidade de

acompanhar o curso do desenvolvimento social. Neste sentido, a dinâmica social não

226 Karl Loewenstein. Teoria de la Constituicion. Espanha, Barcelona: Editorial Ariel, 1976, pg. 165/166.

222

pode ficar desguarnecida frente à Constituição do Estado, sob pena desta se

transformar em um instrumento fraco e histórico. É necessário, portanto, que a

Constituição tenha um mecanismo que a torne dinâmica frente a modificações sociais,

o que justifica as várias formas de alteração do texto constitucional e o processo de

mutação.

Segundo, Raul Machado Horta a mudança na Constituição não

significa um processo de desestima à Constituição, mas a introdução de

aperfeiçoamentos e correções no texto constitucional, sendo processada no contexto da

evolução. Assim, não obstante tais inspirações, a mudança no texto constitucional

reflete, com maior ou menor profundidade, uma insatisfação com aquele texto, cuja

matéria se propõe alterar ou substituir.227

Analisaremos aqui as chamadas mutações constitucionais e, tendo em

vista as limitações ao processo de alteração formal do poder constituinte derivado, a

impossibilidade deste processo conduzir à alterações inconstitucionais. Com isso,

demonstraremos que a evolução de conceitos, que pode levar à mutação

constitucional, não pode conduzir a um processo de interpretação que fira o princípio

federalista inserido na Constituição Federal como cláusula pétrea.

Karl Loewenstein, após abordar as formas de alteração constitucional

analisa a possibilidade de modificação da Constituição por meio da mutação

constitucional, entendendo ser essa mais freqüente que as modificações formais:

“Na mutação constitucional, por outro lado, se produz uma transformação na

realidade da configuração do poder político, da estrutura social ou do equilíbrio

de interesses sem que seja atualizada dita transformação no documento

constitucional: o texto da constituição permanece intacto. Este tipo de mutação

constitucional se dá em todos os Estados dotados de uma Constituição escrita e

são muito mais freqüentes que as reformas formais. Sua freqüência e intensidade

são de tal ordem que o texto constitucional em vigor será dominado e coberto por

227 Raul Machado Horta. op. cit. pg. 104.

223

ditas mutações sofrendo um considerável alijamento da realidade, ou posto fora de

vigor.”228

Manuel García-Pelayo229 lembra que, desde dos tempos de Laband, a

ciência jurídica alemã já fazia distinção entre Verfassungänderung (reforma

constitucional) e Verfassunswandlung (mutação constitucional), entendendo essa como

a transformação constitucional pela qual permanece inalterável o texto constitucional,

ou dito de outra forma, uma incongruência entre as normas escritas e a realidade

jurídica-constitucional.

O estudo dos processos de mutação passa pela constatação de que a

vida dinâmica da sociedade opera uma série de alterações nos preceitos

constitucionais, sem que haja uma efetiva alteração na redação desses dispositivos.

Essas alterações são consideradas informais, porque diferem das alterações realizadas

pelo processo formal estabelecido pela Constituição.

Uadi Lammêgo Bulos define mutação constitucional como "o

fenômeno, mediante o qual os textos constitucionais são modificados sem revisões ou

emendas."

Posteriormente, o mesmo autor continua seu pensamento, concluindo

que:

"mutações constitucionais como uma constante na vida dos Estados, e as

constituições, como organismos vivos que são, acompanham a evolução das

circunstâncias sociais, políticas, econômicas, que, se não alteram o texto na letra e

na forma, modificam-no em substância, significado, alcance e sentido dos

dispositivos."

228 Karl Loewenstein. op. cit. pg. 166. 229 Manuel García-Pelayo. Derecho Constitucional Comparado. Espanha, Madri: Alianza Editorial, S.A., 1984,

pg. 137.

224

A mutação é o resultado das interpretações dos tribunais, dos usos e

costumes, da construção judicial, da influência dos grupos de pressão, entre outras.

Assim, num primeiro momento poderíamos dizer que as únicas barreiras que a

mutação está sujeita seriam os limites dos muitos significados das palavras. Entretanto,

como é sabido, a língua está em constante evolução de significados, o que a transforma

em uma limitação dinâmica. Somente uma língua morta (latim, grego, eslavo antigo)

seria o meio adequado com conteúdo fixo e imutável, lembra García-Pelayo.230

Como se trata de uma modificação informal de significados, a

pergunta que deve ser feita, é sobre a eventual existência de outras limitações, como as

impostas pelo direito. Estaria, portanto, o processo de mutação limitado da mesma

forma que o poder constituinte reformador? A resposta deve ser afirmativa, mesmo

sendo o processo de mutação essencialmente informal. É que quando a mutação ocorre

pela via interpretativa cabe ao intérprete o cuidado de verificar a possibilidade de

ocorrência de mutações inconstitucionais.

A fim de justificar nosso posicionamento, é interessante analisar a

possibilidade de que as limitações de alteração do texto da Constituição sejam

impostas ao processo de mutação, ante a informalidade característica desse processo.

Uadi Lammêgo Bulos leciona que não é possível determinar os limites

da mutação constitucional, porque o fenômeno é, em essência, o resultado da atuação

de forças elementares, dificilmente explicáveis, que variam conforme os

acontecimentos derivados do fato social cambiante, com exigências e situações sempre

novas, em constante transformação.231 Portanto, a única limitação oponível ao

processo de mutação seria a da própria consciência do intérprete, consistente em não

extrapolar os preceitos constitucionais.

230 Manuel García-Pelayo. op. cit. pg. 133. 231 Uadi Lammêgo Bulos. op. cit. pg. 88.

225

O estabelecimento de limites à mutação constitucional, segundo

Konrad Hesse, só seria possível mediante o sacrifício de um dos pressupostos básicos

do positivismo que é a estrita separação entre o “direito” e a “realidade”, assim como a

inadmissibilidade de quaisquer considerações históricas, políticas e filosóficas do

processo de argumentação jurídica. 232

Para o autor, o significado da ordenação jurídica na realidade e em

face dela somente pode ser apreciado se ambas – ordenação e realidade – forem

consideradas em sua relação, em seu inseparável contexto, e no seu condicionamento

recíproco. Uma análise isolada, unilateral, que leve em conta apenas um ou outro

aspecto, não se afigura em condições de fornecer resposta adequada. Assim, para

aquele que contempla apenas a ordenação jurídica, a norma “está em vigor” ou “está

derrogada”; não existe outra alternativa. Por outro lado, quem considera,

exclusivamente, a realidade política e social, não consegue perceber o problema na sua

totalidade ou será levado, simplesmente, a ignorar o significado da ordenação jurídica.

Assim, conclui que a força normativa que constitui a essência e a

eficácia da Constituição reside na natureza das coisas, impulsionando-a, conduzindo-a

e transformando-se em força normativa. São três pressupostos os que permitem à

Constituição desenvolver de forma satisfatória a sua força normativa: (a) quanto mais

o conteúdo de uma Constituição lograr corresponder à natureza singular do presente,

tanto mais seguro há de ser o desenvolvimento de sua força normativa; (b) um ótimo

desenvolvimento da força normativa da Constituição depende não apenas do seu

conteúdo, mas também de sua práxis; (c) a interpretação tem significado decisivo para

a consolidação e preservação da força normativa da Constituição, estando submetida

ao princípio da ótima concretização da norma. Neste último caso, o sentido da

proposição jurídica estabelece o limite da interpretação e, por conseguinte, o limite de

qualquer mutação normativa.233

232 Konrad Hesse. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio

Fabris Editor. 1991, pg. 13. 233 Konrad Hesse. op. cit. pg. 13/23

226

Adotando a posição de Konrad Hesse, realmente quando se verifica

que o processo de mutação ocorre com total independência em relação ao que foi

positivado, não haveria a possibilidade de estabelecimento de limitações, já que

ocorreria a separação entre o direito e a realidade. O significado do que está

positivado é dado pelo aplicador, que neste processo, inegavelmente, leva em

consideração somente a realidade fática para sua fixação. Essa sistemática, ou a

contrária, de considerar apenas o que está no ordenamento jurídico, desprezando a

realidade, não pode ser aceita.

Portanto, no processo de mutação tanto o “direito” como a

“realidade” devem ser levados em consideração de forma conjunta, indicando que as

limitações impostas pelo direito são relevantes para esse processo.

Mesmo sendo da própria essência da mutação a alteração de

significados baseada na realidade dos fatos, em princípio, podemos concluir que esse

processo não é absoluto, sendo que os limites estão previstos no próprio texto

constitucional.

Como vimos anteriormente, a Constituição Federal estabeleceu que o

poder constituinte reformador sofre limitações circunstancias (art. 60, § 1º), materiais

(art. 60, § 4º) e procedimentais (art. 60, § 5º).

As limitações circunstancias e procedimentais, ante a natureza de

cada uma, não podem ser opostas ao processo de mutação, pois não seria razoável

imaginar a proibição da ocorrência desse processo durante a vigência de intervenção

federal, de estado de defesa ou de sítio, nem muito menos frente à informalidade do

processo, a proibição definida no artigo 60, parágrafo 5º da Constituição Federal.

Entretanto, as limitações materiais podem ser consideradas como

barreiras no processo mutação. É que no processo interpretativo em que se materializa

227

a mutação, é inegável que o intérprete deve levar em consideração as limitações

materiais, sob pena daquela interpretação ser considerada inconstitucional.

O ato interpretativo que desvirtua a letra das normas que embasam a

Constituição, quebrando a juridicidade dos princípios informadores da ordem

constituída, deve ser considerado como uma mutação inconstitucional.234

Dessa forma, uma linha divisória entre as competências da União e

dos Estados, analisada sob o prisma do processo de mutação efetivada pela

interpretação, deve ser conduzida no sentido da preservação da forma federativa que

foi estabelecida como cláusula pétrea.

O exemplo americano nos mostra, no entanto, que o processo de

mutação constitucional foi utilizado, no curso da história daquele país, a fim de

centralizar competências, que originariamente deveriam pertencer aos Estados.

Segundo Karl Loewenstein235, os Estados Unidos gozaram de uma

Constituição cujas disposições foram tão felizmente redigidas, especialmente as

referentes à distribuição de competências entre o Estado central e os Estados membros,

que por meio da interpretação judicial puderam ser adaptadas às relações sociais

submetidas a uma modificação constante. Além, desse exemplo de mutação

constitucional, o autor lembra ainda, que o federalismo americano sofreu nos últimos

anos um verdadeiro processo de erosão em sua estrutura jurídico-constitucional, ante

as subvenções federais aos Estados, que, dessa maneira, passaram a ser convertidos em

pensionistas da Federação, devendo submeterem-se, nos campos financiados pelas

subvenções federais, as indicações e supervisões da Federação.

No caso americano, como vimos anteriormente, houve o abandono do

federalismo dual, surgido nos fins do século XVIII, que tinha identidade com os

234 Uadi Lammêgo Bulos. op. cit. pg. 135. 235 Karl Loewenstein. op. cit. pg. 167.

228

objetivos anti-intervencionistas do Estado liberal, sendo que com o declínio dessa

filosofia governamental, apareceu o federalismo contemporâneo ou novo federalismo,

com traços de Estado intervencionista, a fim de proporcionar uma nova repartição de

competências, funcionalmente vinculada aos objetivos econômicos e sociais do

intervencionismo. A mutação neste caso, ocorreu em flagrante desrespeito a Décima

Emenda, que dispõe que: “Os poderes não delegados aos Estados Unidos pela

Constituição, nem por ela negados aos Estados, são reservados aos Estados ou ao

povo”.

Contudo, segundo Bernard Schwartz236, a Corte Suprema Americana

entendeu que adoção do federalismo contemporâneo não afetava tal disposição,

declarando:

“A Emenda assenta o truísmo de que tudo quanto não tenha sido cedido é retido.

Nada nos antecedentes da adoção desta Emenda que fora algo mais que uma

declaração da relação existente entre os Governos nacional e dos Estados

estabelecidos pela Constituição, ou que seu propósito fora outro que era o de

acalmar o temor de que o Governo nacional poderia intentar exercer poderes não

conferidos e que os Estados não foram capazes de fazer pleno uso de seus poderes

reservados.”

A mutação no caso não encontrava qualquer limitação Constituição,

muito embora, tenha ocorrido sobre o texto constitucional. A Constituição americana

não prevê expressamente a proteção ao federalismo, sendo que essa decorre da própria

estrutura do Estado Americano.

Como adverte Karl Loewenstein, “a Constituição Americana é

sempre o que a interpretação dos tribunais fazem dela”. Na verdade, a única vedação

contida no processo de reforma americano se referia a uma limitação temporal,

proibindo qualquer emenda, antes de 1808, que afetasse a cláusula primeira e quarta da

Seção 9, do artigo I, e a possibilidade de privação de nenhum Estado da igualdade de

236 Bernard Schaswartz. El federalismo norteamericano actual. pg. 50

229

sufrágio no Senado Federal.237 Dessa forma, o exemplo americano não pode servir

como base para determinar que o processo de mutação não possui limitações.

Respeitados os limites constitucionais do poder de reformar, que

protegem o princípio federalista contra uma “tendente abolição”, a mutação das

matérias contidas na divisão de competências – espinha dorsal do federalismo – deve

ser realizada no sentido da possibilidade de ação do Estado e não em favor da União,

cujas competências são enumeradas. O sentido do processo de mutação deve ser o que

favoreça a descentralização de competências; nunca o contrário.

Portanto, caso a mutação das matérias disciplinadas como de

competência da União conduzam, eventualmente, à possibilidade de ação do Estado –

seja por meio da competência concorrente, seja por meio da competência residual –, o

intérprete deve buscar o favorecimento desse último, como forma de preservar o

federalismo.

Essa mesma linha deve ser mantida na interpretação de dispositivos

que não foram atingidos pela mutação, como veremos a seguir.

237 Artigo V - Sempre que dois terços dos membros de ambas as Câmaras julgarem necessário, o Congresso

proporá emendas a esta Constituição, ou, se as legislaturas de dois terços dos Estados o pedirem, convocará

uma convenção para propor emendas, que, em um e outro caso, serão válidas para todos os efeitos como

parte desta Constituição, se forem ratificadas pelas legislaturas de três quartos dos Estados ou por convenções

reunidas para este fim em três quartos deles, propondo uma ou outra dessas maneiras de ratificação.

Nenhuma emenda poderá, antes do ano 1808, afetar de qualquer forma as cláusulas primeira e quarta, da

Seção 9, do Artigo I, e nenhum Estado poderá ser privado, sem seu consentimento, de sua igualdade de

sufrágio no Senado.

As cláusulas primeira e quarta, da Seção 9, têm a seguinte redação:

1. A migração ou a admissão de indivíduos, que qualquer dos Estados existentes julgar conveniente permitir,

não será proibida pelo Congresso antes de 1808; mas sobre esta admissão poder-se-á lançar um imposto

direto não superior a dez dólares por pessoa;

4. Não será lançada capitação ou outra forma de imposto direto, a não ser na proporção do recenseamento da

população segundo as regras anteriormente estabelecidas.

230

5.3 - Interpretação que mais favoreçam a descentralização

Já nos referimos ao fato de que formalmente a alteração da

Constituição deve ser efetivada por meio do processo de Emenda Constitucional, que

foi definido no artigo 60 do texto constitucional, e que esse processo é limitado. Além

disso, vimos que o processo de mutação não pode servir para eliminar a forma

federativa, senão para preservar sua existência, devendo ser operado no sentido de

aumentar a autonomia dos Estados.

O mesmo raciocínio, utilizado anteriormente, serve para situação do

processo hermenêutico. Portanto, se não é possível a reforma da Constituição para o

fim de atacar a forma federal – por meio do poder constituinte derivado –, muito

menos, ainda, poderia ser admitido que isso ocorresse por meio do processo

hermenêutico, sob pena de burla à limitação material.

A forma pela qual se estabeleceu a divisão de competências, deixando

um rol de matérias para a União e remanescente para os Estados, pode favorecer uma

interpretação centralizadora.

É que o processo de averiguação da possível invasão de competências

pelo Estado, ocorre tendo como paradigma o rol de competências estabelecidas pela

Constituição para União, já as competências do Estado estão ocultas. Dessa forma,

existe uma tendência em tentar encaixar as situações analisadas pelo Supremo em algo

que é palpável, em detrimento do que é remanescente, portanto, não previsto

expressamente.

O processo de interpretação que conduz a centralização de

competências, ou seja, a atribuição de competências à União em detrimento dos

Estados, é inconstitucional. O paradoxo, neste caso, está estabelecido, pois como

imaginar que o órgão responsável pela guarda da Constituição pudesse adotar uma

231

linha interpretativa de centralização de competências, que é, como já foi dito,

inconstitucional.

A interpretação que mais se amolda ao perfil constitucional,

estruturado sob as bases do princípio federalista, se move no sentido da

descentralização de competências ou da possibilidade de que as competências sejam

exercitadas de forma concorrente.

O ponto mais importante do federalismo brasileiro, reside no critério

de divisão de competências adotado pela Constituição federal, que estabeleceu como

regra a atribuição de competências expressas à União, as remanescentes ou reservadas

aos Estados e um campo de competências concorrentes.

A análise dessa técnica indica que somente aparentemente poderia

existir um conflito de competências, na medida que o que não foi expressamente

atribuído à União pertence aos Estados.

José Afonso da Silva, um dos autores da proposta de repartição de

competências, feita à Comissão Provisória de Estudos Constitucionais (Afonso

Arinos), nos lembra que o princípio que deve nortear a repartição de competências

entre as entidades componentes do Estado federal é o da predominância do interesse,

segundo o qual à União caberão aquelas matérias e questões de predominante interesse

geral ou nacional, ao passo que aos Estados as matérias e assuntos de predominante

interesse regional, e aos Municípios os assuntos de interesse local. 238

O mesmo autor adverte, contudo, que no Estado moderno fica cada

dia mais difícil discernir o que é interesse geral ou nacional, do que é interesse

regional ou local.

238 José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, 454.

232

Sem dúvida que a divisão de competências adotada pela Constituição

de 1988 se orientou pela técnica de enumerar um grupo de assuntos que seriam de

interesse geral ou nacional, que foram entregues à União, outro que seria de interesse

local próprios dos Municípios, deixando por exclusão e, em algumas situações, de

forma expressa a competência dos Estados.

Conferimos, neste sentido, a competência material definida no artigo

21 da Constituição, que estabelece a competência da União para manter relações com

Estados estrangeiros e participar de organizações (inciso I), declarar a guerra e

celebrar a paz (inciso II), assegurar a defesa nacional (inciso III), entre outras. Da

mesma forma, como as estabelecidas na competência legislativa do artigo 22 da

Constituição, onde, por exemplo, aparece a competência para legislar sobre direito

civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial

e do trabalho (inciso I).

Em uma primeira análise, podemos concluir que as situações descritas

nos dois artigos estão ligadas a assuntos de interesse geral ou nacional, ora ligados à

política administrativa a ser desenvolvida pela União (artigo 21), ora às matérias

relacionadas ao ordenamento jurídico nacional (artigo 22).

Contudo, isso não significa que as matérias previstas nos dois artigos

não poderiam ser compartilhadas com os Estados, acaso tivéssemos adotado uma

divisão de competências mais descentralizada. Dessa forma, poderíamos indagar se

não seria possível que a competência legislativa referente às águas não estaria melhor

localizada no âmbito das competências concorrentes, o que denotaria uma maior

proteção desse bem, ou se não seria possível uma interpretação mais descentralizada

para incluir a questão dentro dos assuntos relacionados ao meio ambiente.

Talvez o legislador constituinte tenha sido extremamente econômico

em palavras ao determinar a competência da União em algumas situações. Com a

finalidade de não restringir o conteúdo da competência, o legislador preferiu se

233

utilizar, em algumas situações, de apenas uma palavra para atribuí-la, por exemplo:

águas, serviço postal, trânsito e transporte.

Entretanto, ao contrário de levar a uma ampliação do conteúdo, essa

situação força a utilização de uma interpretação do dispositivo de forma limitada aos

assuntos atribuídos à União pela Constituição. Assim, por exemplo, a competência

legislativa da União no tocante à água, estaria limitada às situações de: bem da União,

descritas no artigo 20; aproveitamento energético dos cursos de água, artigo 21, inciso

XII, letra “b”; a instituição do sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos

(inciso XIX); entre outras.

Evidentemente, o afastamento de qualquer dúvida a respeito da

descrição das competências seria melhor solucionado com a definição exata do

conteúdo da matéria. Assim, se o legislador constituinte tivesse indicado quais seriam

as situações que a União poderia legislar sobre águas, serviços postal, trânsito e

transporte, entre outros, com certeza muitos dos problemas relacionados à divisão de

competências seriam resolvidos com a simples leitura do texto constitucional.

A par do problema de redação, verificamos que o legislador

constituinte deixou aos Estados às competências que expressamente não foram

deferidas à União ou aos Municípios, essa técnica e uma das características da

distribuição de competências no federalismo clássico239. Neste sentido, o problema de

identificar o remanescente frente à evolução social é extremamente difícil.

A atividade identificadora do campo remanescente, só pode ser

realizada por meio da interpretação constitucional que mais favoreça a

239 Em outras federações é possível identificar o sistema inverso de atribuição de competências como acontece

no Canadá, por exemplo, onde as competências dos Estados são enumeradas enquanto as da União

remanescentes ou residuais. Além disso, é possível a distribuição completa de competências, com a

enumeração de todas as competências da União e dos Estados, ficando as residuais, caso existam, com esse

último.

234

descentralização de competências. Não é condenável que o interprete se utilize da

sistemática de buscar no rol das competências da União a verificação do caso concreto

a ser analisado. Contudo, o que não possível fazer é ampliar a interpretação de

dispositivos ali existentes, a fim de abarcar aquilo que poderia existir dentro do campo

remanescente de competência do Estado membro. Da mesma forma, esse expediente

não pode ser utilizado, quando se trata da competência concorrente, onde o Estado

partilhar competências com a União.

Portanto, conforme demonstramos pela análise das jurisprudências

apresentadas neste trabalho, há a necessidade de que o Supremo Tribunal Federal ao

realizar a tarefa de interpretar a Constituição, busque preservar o máximo possível a

distribuição de competências, patrocinando sempre a preservação do federalismo

brasileiro.

235

CONCLUSÃO

1.O Estado foi resultado da somatória de uma série de fatores, tendo

como ponto inicial a evolução da organização das sociedades pré-estatais. O Estado é

um fenômeno histórico, sociológico e político considerado pelo Direito. A coletividade

humana só pode ser elevada à condição de Estado se dispuser de um território e de

uma autoridade política, ou seja, de um governo. Esses elementos constitutivos são

necessários, mas não suficientes, pois se impõe que o Estado tenha também o atributo

da soberania.

2.As formas pelas quais os Estados se estruturam, mantendo o poder

político centralizado ou descentralizado ou dividido em níveis, leva à classificação

quanto às formas de Estados. Em todos os Estados é possível a verificação de uma

maior ou menor centralização, ou seja, em todo e qualquer Estado, o poder é

relativamente centralizado. Não existem Estados sem uma relativa centralização,

correlativamente não existem Estados sem um certo grau de descentralização. A maior

ou a menor centralização ou descentralização da atividade de criação do Direito, com

suas normas gerais ou individuais, conduz a classificação das formas de Estado:

Unitário, Regional, Autonômico e Federal.

3.O Estado Unitário simples é caracterizado pela centralização

administrativa, legislativa e política, com um único pólo constitucionalmente

capacitado para produzir normas jurídicas. No modelo desconcentrado de Estado

Unitário, muito embora não existam diferentes esferas de poder em nível central,

regional e local, o poder central mantém órgãos de representação dentro de divisões

territoriais. Já no modelo de Estado Unitário Descentralizado, que pode ser visto como

uma evolução dos Estados Unitários Desconcentrados, existe uma atribuição de

competências administrativas transferidas por lei nacional, o que determina a

existência de personalidade jurídica própria das regiões.

236

4.Nos Estados Regionais a descentralização, realizada pela Constituição

e efetivada por meio de lei nacional, ocorre não só com relação às competências

administrativas, mas também em relação às competências legislativas ordinárias. A

descentralização ocorre de cima para baixo.

5.O Estado Autonômico foi uma criação espanhola, onde a divisão das

regiões ocorre por proposta das províncias, que devem se unir em regiões, elaborando

seus próprios estatutos. O Parlamento Nacional é o responsável pelo controle da

autonomia das regiões e aprova ou não o estatuto da região. A formação dessa espécie

de Estado é realizada de baixo para cima.

6.O Estado Federal surgiu a partir do modelo americano, que começou

a tomar forma a partir de uma Convenção Federal, responsável pela elaboração do

projeto da Constituição Americana.

7.O federalismo inicialmente era do tipo dualista e se identificava com

os objetivos anti-intervencionistas do Estado liberal. Com o declínio do liberalismo e

aparecimento do Estado intervencionista, surgiu o federalismo contemporâneo ou novo

federalismo, a fim de proporcionar a esse uma nova repartição de competências,

funcionalmente vinculada aos objetivos econômicos e sociais do intervencionismo.

8.As alterações nas características do federalismo são rupturas nas suas

linhas definidoras, que tanto podem consistir em deformações no estilo e nas regras

federais, em razão do funcionamento do sistema federal, como em criações novas,

estranhas ao conjunto identificador do federalismo simétrico, o que é conhecido como

federalismo assimétrico.

9.A divisão de competências é a espinhal dorsal do federalismo, sendo

característica desse a presença de um órgão responsável pela manutenção das regras

definidas constitucionalmente.

237

10.No Brasil, a sistemática da divisão de competências entre a União e

os Estados seguiu o federalismo clássico, ou seja, as competências expressas são

entregues à União; enquanto que as competências remanescentes ou residuais (art. 25,

§ 1º da Constituição Federal) são atribuídas aos Estados membros. Além disso, houve

a distribuição de competências concorrentes.

11.Analisando os vários julgados proferidos pelo Supremo Tribunal

Federal, é possível verificar que existe uma tendência centralizadora das decisões em

nome de uma uniformidade do ordenamento jurídico. Assim, matérias que poderiam

ser objeto de legislação estadual, acabam migrando para a competência da União por

guardarem, sob qualquer aspecto, relação com as matérias a ela deferidas. As decisões

do Supremo Tribunal Federal mitigam as competências reservadas dos Estados, bem

como a competência concorrente.

12.Em matéria de meio ambiente a Constituição Federal disciplinou de

forma ampla o assunto, produzindo, tendo em vista a importância do tema, uma

completa distribuição de competências. Contudo, nem mesmo ante a essa constatação,

a posição do Supremo Tribunal Federal foi alterada. Assim, quando existe

possibilidade de dúvida sobre a atuação do Estado–membro o Supremo sempre decide

em favor da competência da União em detrimento da competência desse último.

13.A posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal nega o

cumprimento do princípio federativo. Assim, há a necessidade de preservação do

referido princípio. Essa tarefa deve ser feita dentro do que ficou definido pela

Constituição Federal como conteúdo do princípio federalista. Cabe esclarecer, que não

se trata de querer dar contornos à implantação do federalismo clássico adotado

inicialmente pelos Estados Unidos, mas de preservar a forma determinada pelo

legislador constituinte, impedindo assim que haja uma centralização do Estado

brasileiro.

238

14.Visando proteger a forma federalista o legislador constituinte a

incluiu dentro das chamadas cláusulas pétreas, impedindo quaisquer alterações que

possam levar à abolição dessa forma de Estado.

15.A limitação material contida no artigo 60, § 4º, inciso I, da

Constituição, que proíbe a abolição da forma federativa de Estado, deve ser não só

oponível ao processo formal de mutabilidade da Constituição, mas também às

alterações informais, conhecidas como mutações constitucionais. Assim, qualquer

alteração de conceitos, que conduza a mutação de matérias que foram objeto de

divisão de competências, devem ser agrupadas na competência remanescente dos

Estados.

16. A atividade interpretativa do Supremo Tribunal Federal, a fim de

identificar o campo remanescente de competências do Estado, só pode ser realizada

por meio de uma interpretação constitucional que mais favoreça a descentralização de

competências. Portanto, não é condenável que o interprete se utilize da sistemática de

buscar no rol das competências da União a verificação do caso concreto a ser

analisado. Contudo, o que não pode ocorrer é ampliação da interpretação de

dispositivos ali existentes a fim de abarcar aquilo que poderia existir dentro do campo

remanescente de competência do Estado membro.

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