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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA A INTERPRETAÇÃO ICONOLÓGICA DA GLORIOSA VICTORIA (1954) DE DIEGO RIVERA Raul Costa de Carvalho Porto Alegre 2011

muralismo

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    A INTERPRETAO ICONOLGICA DA GLORIOSA VICTORIA (1954) DE DIEGO RIVERA

    Raul Costa de Carvalho

    Porto Alegre

    2011

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    A INTERPRETAO ICONOLGICA DA GLORIOSA VICTORIA (1954) DE DIEGO RIVERA

    RAUL COSTA DE CARVALHO

    Monografia de concluso de curso apresentada como requisito parcial para a obteno do ttulo de Licenciado em Histria pelo Departamento de Histria do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

    Orientador: Prof. Dr. Francisco Marshall

    Porto Alegre

    2011

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    Uma imagem vale mais do que mil palavras.

    Kurt Tuchoslky

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    RESUMO

    O objetivo deste trabalho definir e interpretar a narrativa contida na obra Gloriosa Victoria, pintura realizada em 1954 pelo pintor mexicano Diego Rivera. Para isso, foi utilizado o mtodo iconogrfico-iconolgico desenvolvido pelo historiador da arte Erwin Panofsky. Como parte dos procedimentos definidos por Panofsky, est exposto no primeiro captulo um breve estudo sobre o estatuto da imagem em seus usos e funes na pintura mural mexicana, movimento artstico do qual Diego Rivera fazia parte, bem como uma anlise dos temas e elementos mais significativos ao longo de toda a produo artstica de Rivera. No segundo captulo foi abordado o contexto social sobre o qual Rivera produziu uma representao pictrica: a interveno dos Estados Unidos na Guatemala em 1954. Por fim, foi realizada a anlise da obra Gloriosa Victoria, revelando e interpretando sua narrativa.

    Palavras-chave: Diego Rivera, Estados Unidos, Gloriosa Victoria, Guatemala, Iconografia, Iconologia, Imagem, Imperialismo, Muralismo Mexicano.

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    LISTA DE IMAGENS

    Imagem 1 Diego Rivera, Gloriosa Victoria, 1954, 2,6 m x 4,5m, tmpera sobre tela. Museu Estatal de Belas Artes Pushkin, Moscou. ................................................ 7

    Imagem 2 Diego Rivera, La Creacin, 1922, folha de ouro e encustica, rea total: 109,64 m. Anfiteatro Simon Bolvar, Escola Nacional Preparatria, Colgio de Santo Ildefonso, atualmente Museu de Santo Ildefonso, Cidade do Mxico. ............ 18

    Imagem 3 Diego Rivera, Paisaje Zapatista El guerrillero, 1915, leo sobre tela, 144 cm x 123 cm. Museu Nacional de Arte, Cidade do Mxico. . 19

    Imagem 4 Diego Rivera, La sangre de los mrtires revolucionarios fertilizando la tierra, 1926, 2,44 m x 4,91 m. Universidade Autnoma de Chapingo, Mxico. . 21

    Imagem 5 Diego Rivera, El banquete de Wall Street, 1928. Secretaria de Educao Pblica, Cidade do Mxico. ...................................................................................... 21

    Imagem 6 Diego Rivera, El arsenal Frida Kahlo Repartiendo Armas, 1928, 2,3 m x 3,98 m. Secretaria de Educao Pblica, Cidade do Mxico. ........................... 22

    Imagem 7 Diego Rivera, La quema de los Judas, 1923-1924. Secretaria de Educao Pblica, Cidade do Mxico. ..................................................................... 23

    Imagem 8 Diego Rivera, Histria de Mxico: el antigo mundo indgena, 1929-1935, Escadaria com trs murais monumentais, rea total pintada: 410,47m. Palcio Nacional, Cidade do Mxico. .................................................................................... 26

    Imagem 9 - Diego Rivera, Histria de Mxico: de la conquista a 1930, 1929-1935, Escadaria com trs murais monumentais, rea total pintada: 410,47m. Palcio Nacional, Cidade do Mxico. .................................................................................... 27

    Imagem 10 Diego Rivera, El hombre controlador del universo, 1934, 4,85m x 11,45m. Palcio de Bellas Artes, Cidade do Mxico. ............................................... 28

    Imagem 11 Embaixada Mexicana na Guatemala. 15 de agosto de 1954. Cidade da Guatemala. Fotgrafo desconhecido. ........................................................................ 44

    Imagem 12 - Catedral Metropolitana da Guatemala. 1954. Cidade da Guatemala. Fotgrafo: Cornell Capa. .......................................................................................... 44 Imagem 13 - Samuel Zemurray, presidente da United Fruit Company. Janeiro de 1951. Fotgrafo: Yale Joel. ....................................................................................... 46

    Imagem 14 - John Foster Dulles, Secretrio de Estado dos Estados Unidos. 1954. Fotgrafo: Nina Leen. ............................................................................................... 47

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    Imagem 15 - Dwitgh Eisenhower, Presidente dos Estados Unidos. 1954. Washington. Fotgrafo desconhecido. ........................................................................................... 48

    Imagem 16 Coronel Carlos Castillo Armas. 1 de junho de 1954. Esquipulas, Guatemala. Fotgrafo: George Silk. Life Magazine, 12 de julho de 1954 ............... 49 Imagem 17 - John Peurifoy, embaixador dos Estados Unidos na Guatemala. 8 de Julho de 1954. Cidade da Guatemala. Fotgrafo: George Silk. Life Magazine, 12 de julho de 1954. ............................................................................................................ 50 Imagem 18 lfego Monzn e Carlos Castillo Armas. 1954. 8 de julho de 1954. Cidade da Guatemala. Fotgrafo: Ccero. ................................................................. 50

    Imagem 19 Genaro Verrolino e lfego Monzn. 8 de julho de 1954. Cidade da Guatemala. Fotgrafo: George Silk. Life Magazine, 12 de julho de 1954. .............. 51 Imagem 20 Rina Lazo e Diego Rivera. 1954. San ngel, Mxico. Fotgrafo desconhecido. .... 53

    Imagem 21 Maria Trinidad Cruz, membro do Exrcito de Libertao Nacional. 7 de abril de 1954. Chiquimula, Guatemala. Fotgrafo desconhecido. ....................... 53

    Imagem 22 - Cartaz de propaganda contra o Governo Arbenz. 7 de julho de 1954. Villanueva, Mxico. Fotgrafo desconhecido. ......................................................... 55

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    SUMRIO

    INTRODUO 10

    CAPTULO I: DIEGO RIVERA E A PINTURA MURAL MEXICANA 15 1.1. Por uma arte para o povo 16 1.2. Viva la Revolucin! 20 1.3. Repensando a nacionalidade 24 1.4. Perodo final 27

    CAPTULO II: UMA GLORIOSA VITRIA PARA A DEMOCRACIA: A QUEDA DE JACOBO ARBENZ NA GUATEMALA 30 2.1. O Governo Arbenz 31 2.2. A queda 32

    CAPTULO III: A GLORIOSA VICTORIA DE DIEGO RIVERA 40 3.1. A esperana guatemalteca 41 3.2. Gloriosa Victoria 43 3.3. Uma derrota para a democracia 59

    CONSIDERAES FINAIS 63

    GLORIOSA VICTORIA 1954: CRONOLOGIA 65

    BIBLIOGRAFIA 66

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    INTRODUO Em maro de 2000, o jornal mexicano La Jornada enviou Rssia um correspondente para averiguar a informao, veiculada alguns dias antes, de que a obra Pesadilla de guerra y sueo de paz, feita em 1951 pelo pintor mexicano Diego Rivera, e sobre a qual nunca mais se teve notcia, havia sido encontrada no Museu Pushkin de Moscou. Em um encontro com o subdiretor do museu russo, publicado posteriormente nas verses impressa e digital do jornal (DUTCH, 2000), a informao foi desmentida. Para comprovar que a pintura desejada no fazia parte da coleo do museu, o subdiretor mostrou um catlogo em que constavam as nicas trs obras de Rivera presentes no local: Paisaje, 80 x 69 cm, de 1911; Retrato de S.I. Makar-Batkina, 1, 98m x 90cm, de 1929; e Gloriosa Victoria, 2,6 m x 4,5m, feita em 1954. A visualizao do catlogo causou surpresa no jornalista mexicano. Sobre as duas primeiras obras sabia-se h bastante tempo que estavam na Rssia, entretanto, a ltima era dada no Mxico como desaparecida desde 1957, ano da ltima viagem de Diego Rivera URSS, para onde havia levado a pintura Gloriosa Victoria. Segundo o subdiretor, a tela enrolvel que havia passado mais de quarenta anos no Museu Pushkin havia sido doada em 1958, e desde ento fazia parte do acervo do museu, tendo sido exposta em diversas ocasies. Na poca em que foi descoberta pelos mexicanos, a obra estava enrolada em uma sala, pois o museu no tinha capacidade de expor toda a sua coleo. Somente em 2007, aps longas negociaes, Gloriosa Victoria foi apresentada pela primeira vez na Amrica Latina, em exposies no Mxico que comemoravam o cinquentenrio de morte de Rivera. Em outubro de 2010 foi a obra principal da exposio Oh Revolucin! 1944-2010 Mltiples Visiones, ocorrida no Palcio Nacional de Cultura da Guatemala, que exps obras que tinham como tema a Revoluo Guatemalteca e a interveno dos Estados Unidos no pas, tendo retornado aps a exposio ao Museu Pushkin, onde se encontra atualmente.

    O caminho que me conduziu at o presente trabalho iniciou-se pelo interesse no processo poltico que envolveu a interveno dos Estados Unidos na Guatemala em junho de 1954. Na busca por fontes e referncias bibliogrficas que possibilitassem uma pesquisa sobre tal processo foram encontradas duas obras onde

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    estava reproduzida a representao pictrica de Rivera (IBARRA, 2008; CULLATER, 1999). Com efeito, as obras realizadas pelos muralistas mexicanos tm cada vez mais despertado o interesse de historiadores. No Brasil, foram produzidos nos ltimos anos alguns importantes estudos que utilizam como fontes principais os murais produzidos entre as dcadas de 1920-70 no Mxico (VASCONCELLOS, 2003; BARBOSA, 2009; BEAUCLAIR, 2009). Apesar disso, nos dois trabalhos sobre a Guatemala em que a pintura de Rivera aparece, utilizada como mera ilustrao, apenas uma figura acompanhando o texto com o objetivo de torn-lo mais atrativo para o leitor, contribuindo para alimentar as frequentes crticas que ressaltam o mau uso de fontes visuais na pesquisa histrica. O interesse na pintura de Rivera fez com que eu realizasse uma nova pesquisa bibliogrfica, dessa vez procurando trabalhos que utilizassem Gloriosa Victoria como fonte para a produo do conhecimento histrico. Em todos os locais consultados foi constatada a ausncia de trabalhos historiogrficos relacionados pintura. Decidido a explorar essa fonte que, ao que tudo indica, estava ainda indita na historiografia, desenvolvi uma srie de leituras de carter terico-metodolgico sobre as possibilidades para o uso de fontes visuais na pesquisa histrica. Ao final desse estudo, escolhi desenvolver uma interpretao iconolgica da pintura, e Gloriosa Victoria transformou-se no s em fonte principal do trabalho, mas tambm em meu objeto de pesquisa. Para uma interpretao iconolgica ser utilizado o mtodo do historiador da arte Erwin Panofsky. Tal mtodo foi teorizado pela primeira vez em um ensaio intitulado Iconografia e Iconologia: Uma introduo ao Estudo da Arte da Renascena, publicado em 1939. Porm, em minha pesquisa ser utilizado o ensaio publicado em 1955, no livro Significado nas Artes Visuais, que na verdade essencialmente o mesmo, somente com algumas alteraes: Em contrapartida s verses revistas, reedies no foram mudadas materialmente exceto quanto correo de erros e incorrees e para alguns adendos ocasionais que foram colocados entre parnteses (PANOFSKY, 2009, p. 53). O mtodo de Panofsky parte do entendimento de que uma obra possui trs nveis de interpretao, cada um correspondendo a um diferente nvel de significado

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    da obra. Para uma interpretao necessria, portanto, uma anlise e apreenso de cada um desses nveis.

    O primeiro nvel denominado por Panofsky como pr-iconografia. Diz respeito aos significados primrios ou naturais, aqueles que so apreendidos sensorialmente, e que recorrem s experincias comuns entre o artista e seu pblico e familiaridade destes com objetos e fatos. Trata-se, portanto, da identificao das formas puras, os objetos e eventos figurados numa obra. O segundo nvel a anlise iconogrfica. voltado para os significados secundrios ou convencionais, apreendidos no mais de forma sensvel, exigindo do interpretante certos conhecimentos histricos ou literrios, em que se busca compreender o tema e assunto da obra.

    Realizado esse processo, chegamos fase final, quando, citando Klein (1998, p. 344): o trabalho de decifrao encontra o famoso crculo da hermenutica: preciso haver compreendido para compreender. O terceiro nvel do mtodo de Panofsky a interpretao iconolgica, voltada para a descoberta dos significados intrnsecos ou contedo da pintura:

    [...] apreendido pela determinao daqueles princpios subjacentes que revelam a atitude bsica de uma nao, de um perodo, classe social, crena religiosa ou filosfica qualificados por uma personalidade e condensados numa obra. (PANOFSKY, 2009, p. 53)

    Trata-se de estabelecer a conexo entre a imagem e cultura da poca, compreender a obra de arte como um sintoma de algo mais que se expressa numa variedade incontvel de outros sintomas e interpretarmos suas caractersticas como evidncia mais particularizada desse algo mais (PANOFSKY, 2009, p. 53) Esse algo mais, portanto, o que Panofsky chama de a atitude bsica de um determinado recorte histrico, e a imagem utilizada como um documento histrico, sintoma de uma viso de mundo, testemunha de tendncias polticas, sociais e culturais do passado. Na interpretao sero utilizados os seguintes conceitos: signo, ndice, cone, smbolo e alegoria. Signo definido por Eco (2002, p. 4) como tudo quanto possa ser assumido como um substituto significante de outra coisa qualquer. Um signo uma entidade que substitui algo ausente, ele no o que representa ser. institucional, convencional, existe apenas para um grupo definido de usurios. E est

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    inserido em um sistema de diferenas limitado, faz parte, portanto, de um repertrio finito (DUCROT; TODOROV, 1998). ndice, de acordo com Peirce (2000, p. 106): um signo determinado por um objeto dinmico em virtude de estar em relao com ele. Para o conceito de cone ser utilizada a definio de Marshall (2011): uma forma relevante dotada de significados determinados, que possui relevncia autoral, social e de recepo. Smbolo, segundo Peirce (2000, p. 142): um signo que manifesta uma relao convencional com o objeto, significa para algum em determinado contexto, espao e tempo. [...] Faz parte de um campo de possibilidades, remete a uma srie de relaes dentro de um sistema.. E alegoria definida por Panofsky (2009, p. 51) como uma combinao de personificaes e/ou smbolos.

    Como parte da interpretao iconolgica proposta por Panofsky, faz-se necessrio um estudo da produo artstica do pintor, bem como do movimento artstico ao qual pertence, e tambm do processo representado na pintura. Assim, no primeiro captulo est exposta de forma breve a pesquisa desenvolvida sobre as obras de Diego Rivera e da pintura mural mexicana, onde se buscou compreender o sentido que a arte tinha para o muralista, que, como se ver, tinha uma funo que ia muito

    alm da beleza e a experincia esttica provocada em seu pblico, embora tais elementos tambm fossem importantes. Nessa anlise, procurei ainda destacar ao longo da obra de Rivera alguns dos temas e objetos mais significativos, cujo conhecimento torna-se essencial para a compreenso do mural que objeto desta pesquisa.

    No segundo captulo, ser abordado o acontecimento sobre o qual Diego Rivera produz uma representao pictrica: a interveno dos Estados Unidos na Guatemala em junho de 1954. Tal processo poltico ser explorado somente com o objetivo de compreender a pintura, revelando os personagens retratados nela e buscando compreender por que tal fato histrico foi representado naquela poca da forma como foi e envolvendo tais personagens.

    Por fim, aps realizar tal anlise sobre o contexto onde a obra est inserida e aquele sobre o qual produz uma representao, ser feita no terceiro captulo a interpretao iconolgica da obra de Rivera, revelando, assim, a narrativa produzida pelo pintor em Gloriosa Victoria sobre o processo poltico ocorrido na Guatemala.

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    Ao longo da anlise sero utilizadas ainda outras fontes que, relacionadas com a obra de Rivera, tornam-se evidncias teis para a compreenso do testemunho sobre o passado presente em Gloriosa Victoria. Entre tais fontes esto algumas fotografias produzidas na poca, algumas delas tambm representaes sobre o acontecimento histrico no pas centro-americano. A presena de tais fotografias serve para identificar alguns dos personagens representados na pintura, mas tambm, e principalmente, atuam como chaves para a sua interpretao, como veremos adiante.

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    CAPTULO I DIEGO RIVERA E A PINTURA MURAL MEXICANA

    Toda obra de arte es propaganda, absolutamente toda. De una pintura religiosa o de una pintura poltica.

    La nica diferencia es la tendencia de la propaganda.

    Diego Rivera

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    1.1. Por uma arte para o povo

    Na dcada de 1920, desenvolveu-se no Mxico um movimento artstico que viria a ocupar um papel central na histria da arte moderna. A pintura mural mexicana, encabeada pelos Trs Grandes1 David Alfaro Siqueiros (1896-1974), Diego Rivera (1886-1957) e Jos Clemente Orozco (1883-1949), tinha como projeto a ideia de socializao ou popularizao da arte. Uma arte pblica, poltica e profundamente conectada com a sociedade. A Revoluo Mexicana de 1910 e as consequentes transformaes sociais produzidas no pas serviram de catalisadores para o movimento muralista, mas sua raiz est nas mudanas culturais ocorridas ainda no sculo XIX, que viriam preceder a renovao da pintura mexicana na dcada de 1920, conforme analisa Vasconcelos (2007, p. 156):

    A incorporao das tradies populares na arte do sculo XIX, a laicizao dos temas, a busca de um perfil cultural prprio e a revalorizao da arte pr-hispnica prepararam o terreno ou deixaram a mesa posta, conforme Orozco, para que o movimento muralista eclodisse com todo o seu impacto no sculo XX.

    Em 9 de dezembro de 1923 o pintor David Alfaro Siqueiros publicou um Manifesto em nome do Sindicato de Operrios, Tcnicos, Pintores e Escultores, declarando o incio de uma nova arte no Mxico:

    Nuestra meta esttica fundamental debe ser socializar la expressin artstica y borrar el individualismo burgus. Repudiamos la pintura de caballete y todo el arte de cenculo ultra-intelectual por aristocrtico y exaltamos las manifestaciones de arte monumental por ser de utilidad pblica... Proclamamos que siendo nuestro momento social de transicin entre el aniquilamiento de un orden envejecido y la implantacin de un orden nuevo, los creadores de belleza deben esforzarse porque su labor presente un aspecto claro de propaganda ideolgica en bien del pueblo, haciendo del arte, que actualmente es una manifestacin de masturbacin individualista, una finalidad de belleza para todos, de educacin y de combate. (SIQUEIROS, 1975 apud ROCHFORT, 1993, p. 39)

    O sindicato havia sido criado no ano anterior, 1922, por Siqueiros, Rivera e Xavier Guerrero (1896-1974), e foi sintoma de um processo de radicalizao dos artistas ocorrido no incio dos anos 1920 no pas, que passaram a se agrupar em cooperativas, sindicatos e em outras organizaes polticas. Essa radicalizao

    1 Assim ficaram conhecidos os principais artistas do movimento, embora muitos outros tivessem

    participado.

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    explicada pelas mudanas sucedidas no Mxico decorrentes da Revoluo nacional e tambm pela influncia que a Revoluo Russa (1917) e o marxismo exerceram sobre os intelectuais nesse perodo. Muitos deles inclusive filiaram-se ao Partido Comunista Mexicano (1919-1981), como Siqueiros e Rivera, que ingressaram em 1922 e no mesmo ano tornaram-se dirigentes do comit executivo do partido.

    Os primeiros murais foram produzidos em 1922 durante o governo de lvaro Obregn (1920-1924). As obras foram comissionadas pelo Secretrio de Educao Pblica Jos Vasconcelos (1882-1959), e faziam parte de um projeto educacional que tinha como objetivo utilizar a arte mural para educar pela imagem uma populao constituda por 85% de analfabetos. Com essa finalidade, no ano de 1922 foram realizados murais em alguns dos principais prdios pblicos da capital mexicana, Cidade do Mxico. Porm, estas obras ainda estavam distantes da ideia de uma arte de propaganda ideolgica, conforme seria estabelecida pelo Sindicato no ano seguinte, 1923. Eram pinturas ainda muito influenciadas pela experincia do passado europeu dos artistas (Siqueiros, Rivera e Orozco foram educados artisticamente na Europa) e pelas concepes filosficas do Secretrio de Educao Pblica Jos Vasconcelos.

    A obra La Creacin, feita por Diego Rivera em 1922 na Escola Nacional Preparatria, inaugurou o movimento muralista mexicano. Comissionada por Jos Vasconcelos, que alm de financiar a obra foi o responsvel pela escolha do tema que seria pintado, La Creacin representativa desse perodo de nascimento do movimento muralista, ainda sem objetivos definidos, mas onde j se encontra a ideia de uma arte pblica, e tambm j esto presentes temas nacionalistas que marcariam a pintura mural mexicana nos anos posteriores. Fortemente influenciada pela pintura renascentista italiana e iconografia bizantina, a obra apresenta motivos cristos-europeus. Entretanto, apesar da influncia europia, as figuras humanas possuem traos mestios e esto representadas imagens da natureza e indgenas.

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    Imagem 2 - La Creacin

    Em 1923, o Manifesto lanado pelo Sindicato estabeleceu de forma precisa os objetivos da pintura mural mexicana, que alm de motivos estticos deveria ter uma preocupao poltica em favor de uma arte ideolgica, que atuasse como instrumento de transformao social, atingindo para isso a populao simples. No dizer de Vasconcelos (2007, p. 159): O corpo terico da arte mural nasceu no sindicato, o que marcaria sua vinculao como arte nacional e com uma situao ideolgica definida. O prprio carter do mural, uma obra de grandes dimenses e localizada em lugares pblicos, fazia parte do princpio de uma arte acessvel para a populao, no mais privilgio de poucos.

    , portanto, dentro de tais preceitos que est inserida grande parte da produo artstica de Diego Rivera. Era uma arte engajada, de motivos ideolgicos e feita de forma didtica para que fosse compreensvel para a populao simples, em que o papel funcional de veculo de comunicao e de transmisso de valores sobrepunha-se experincia esttica. Sua preocupao em desenvolver uma arte poltica est inclusive na origem da adoo de sua forma estilstica. Antes de

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    participar do programa de murais pblicos comissionados pelo Estado em 1922, Rivera havia passado 14 anos na Europa (1907- 1921), com exceo de 1910-11 quando esteve no Mxico. No velho continente teve como principais trabalhos obras cubistas, a mais famosa delas Paisaje Zapatista de 1915, realizada aps ter notcias das transformaes sociais que aconteciam em seu pas natal. Nesta obra Rivera cria, em estilo cubista, um retrato de Emiliano Zapata (1879-1919), um dos lderes da Revoluo. O quadro contm referncias ao Mxico e Revoluo, como a natureza, montanhas, o fuzil, a cartucheira, o sombreiro e o sarape, tradicional manta mexicana.

    Imagem 3 - Paisaje Zapatista

    Anos depois, as preocupaes de Rivera com as realidades polticas e sociais seriam o fator primordial para sua mudana de estilo. Segundo Diego Rivera, sua pintura deveria ser:

    un arte funcional relacionado con el mundo y los tiempos, y deba ayudar a las masas a conseguir una organizacin social mejor. En el cubismo hay muchos elementos que no se ajustan a esta necesidad especfica. (ARQUIN, 1971 apud ROCHFORT, 1993, p. 25)

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    1.2. Viva la Revolucin!

    Naquele que caracterizado pela maioria dos autores consultados como o segundo perodo do muralismo mexicano - entre os anos 1923 e 1928 - foram produzidos os primeiros murais de acordo com algumas das propostas polticas estabelecidas pelos muralistas. Os murais de Diego Rivera realizados na Secretaria de Educao e na Escola Nacional de Agricultura em Chapingo so os mais significativos desta nova etapa do movimento. A maior parte destas obras tem como tema a Revoluo Mexicana, sobre a qual Rivera criou uma imagem profundamente otimista e idealizada. Alguns dos murais de Rivera tiveram forte influncia da iconografia revolucionria russa2, apresentando elementos como a estrela vermelha e a foice e o martelo. Nas obras produzidas entre 1923 e 1928 por Diego Rivera a luta armada enaltecida, com a massa camponesa e operria unida, destemida, a postos para o iminente enfrentamento e fortemente armada com rifles, machetes e foices. Outras pinturas tm como tema as supostas conquistas da Revoluo, como a justia social no campo, a abundncia e cultivo de alimentos, a organizao coletiva e o fim da explorao dos homens, em contraste com imagens de fome, penria e explorao dos trabalhadores presentes nos murais que representam o Mxico pr-revolucionrio.

    Alm disso, nos afrescos da Secretaria de Educao Rivera tambm representou cenas de festividades, comemoraes e tradies populares mexicanas, exaltando tais manifestaes e inserindo-as na cultura nacional. As figuras humanas representadas nos murais de Rivera dividem-se entre rostos annimos e pessoas reais. As figuras reais so reservadas aos personagens erigidos ao posto de heris, como Emiliano Zapata (1879-1919) e Otlio Montano (1887-1917), representados no mural La sangre de los mrtires revolucionarios fertilizando la tierra. Nesta pintura, os dois esto debaixo da terra, sobre a qual crescem abundantes plantaes de milho, simbolizando o sacrifcio dos heris pelas conquistas da revoluo.

    2 Diego Rivera viajou para a URSS em 1928, onde teve contato com a arte sovitica.

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    Imagem 4 - La sangre de los mrtires revolucionarios fertilizando la tierra

    Tambm so retratadas por Rivera as pessoas consideradas inimigas da Revoluo, como John D. Rockefeller (1839-1937) e Henry Ford (1863-1947), pintados de forma satrica em um afresco dedicado aos grandes capitalistas da poca. Nesta obra, El banquete de Wall Street, Rivera pintou um grupo de industriais estadunidenses sentados em uma mesa - frente de um grande cofre - examinando uma enorme nota dourada de cotaes da Bolsa de valores, representando a obsesso dos ricos pela fortuna.

    Imagem 5 - El banquete de Wall Street

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    Alm disso, tambm esto representadas nos murais de Rivera algumas pessoas prximas ao pintor, como Frida Kahlo (1907-1954) na pintura El arsenal Frida Kahlo Repartiendo Armas, onde a futura esposa de Rivera aparece distribuindo armas entre operrios. Frida, que ingressou no Partido Comunista Mexicano no mesmo ano da realizao deste mural, 1928, representada com a estrela vermelha no peito, assim como os outros membros do partido.

    Imagem 6 - El Arsenal

    A linguagem satrica utilizada por Rivera no mural El banquete de Wall Street foi uma tcnica bastante empregada pelo muralista em seus murais para criticar aqueles que considerava serem opositores do Mxico e de seu povo: a burguesia, o Exrcito e a Igreja. Como na obra La quema de los Judas, em que Rivera pintou uma festa tradicional mexicana, em que trs bonecos representando a burguesia, a Igreja e o Exrcito queimam e explodem sobre o povo, simbolizando a traio destes setores nao mexicana.

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    Imagem 7 - La quema de los judas

    Por meio de imagens que ridicularizavam estes setores, Rivera denunciava aqueles que seriam seus nicos interesses: o poder, o luxo e riquezas materiais. Utilizando-se da stira, Rivera criticou tais indivduos e instituies, reduzindo sua atuao busca pela concretizao de suas ambies, conduzida s custas do pas e da explorao de sua populao.

    As obras desse perodo de formao da pintura mural mexicana - entre 1923 e 1928 - esto caracterizadas pelo momento de transio que vivia a sociedade mexicana aps a revoluo nacional, em que o Estado e os intelectuais buscavam uma redefinio das identidades coletivas, baseando-se nos ideais revolucionrios. Inserida nesse ambiente, a arte mural produziu imagens que minimizavam a crtica dos problemas sociais e polticos que abalavam a realidade contempornea mexicana,

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    concentrando os esforos para a construo de uma nova ordem social e cultural. As obras de Rivera caracterizam-se pela oposio entre a apologia da Revoluo, seus ideais e xitos, e a crtica de seus oponentes e do passado porfirista (1876-1911). Alm disso, os murais de Rivera esto fortemente influenciados por alguns dos princpios do Realismo Socialista3, que tinha como objetivo representar a realidade vinculada com a tarefa de transformao ideolgica e educacional dos trabalhadores no esprito do socialismo, conscientizando-os da importncia de sua organizao e cooperao. Para, assim, produzir o surgimento de uma nova sociedade e de um novo homem, ou conforme exprimiu o prprio Diego Rivera: provocar na massa uma

    atitude de admirao at o que ela pode alcanar.

    1.3. Repensando a nacionalidade

    possvel descrever a dcada de 1930 como o perodo de auge da pintura mural mexicana, na qual foram produzidas as obras mais significativas e de maior extenso do movimento. De acordo com Rochfort (1993, p. 83):

    el centro de la atencin cultural nacional empez a cambiar de las preocupaciones locales e inmediatas de la Revolucin hacia una interrogacin del pasado nacional, hacia uma redefinicin de la identidad de la nacin trs las secuelas de su independencia y la revolucin nacional. La reconsideracin de la manera en que el pas se vea a si mismo a travs del anlisis de su experincia histrica pica constituy la base de la exploracin visual de la identidad nacional mexicana.

    Nas obras produzidas durante a dcada de 1920, as representaes do povo j eram caracterizadas por traos indgenas e mestios. Com efeito, desde o final do sculo XIX o indigenismo tornou-se um tema constante nas produes culturais, expressando o crescente sentimento nacionalista do perodo. Aps a Revoluo Mexicana, em que a populao camponesa indgena formou as principais foras da luta armada, o projeto de formao da identidade nacional foi amadurecendo, atingindo seu apogeu na dcada de 1930, e tendo como questo central a incorporao da populao indgena na cultura nacional.

    3 Corrente esttica desenvolvida na Rssia nos anos posteriores Revoluo de Outubro, que tinha

    como objetivo levar os ideais do Comunismo para as artes. Converteu-se em poltica oficial de Estado na URSS em 1932 por meio do Decreto de Reconstruo das Organizaes Literrias e Artsticas promulgado por Josef Stlin.

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    Depois de sculos de jugo e opresso colonial, em que, conforme Frantz Fanon (1979), o passado do povo oprimido distorcido, desfigurado e destrudo - como forma de construir e reforar a dominao do colonizador sobre o colonizado - alm da libertao poltica, preciso resistir no campo ideolgico contra as consequncias da lgica pervertida imperialista que busca o aniquilamento do passado dos povos colonizados. Nesse processo, segundo Davidson (1998 apud SAID, 2011, p. 329), o nacionalismo tem a necessidade de encontrar a base ideolgica para uma unidade mais ampla do que qualquer outra que jamais existiu. Para Said (2011, p. 329): Essa base encontrada [...] na redescoberta e repatriao daquilo que fora suprimido do passado dos nativos pelos processos imperialistas. No caso mexicano, o passado suprimido foram a histria e cultura pr-hispnicas. Assim, as civilizaes indgenas que habitavam o territrio antes da chegada dos europeus, e a relao de alteridade com o estrangeiro se constituram em elementos decisivos na construo dos valores predominantes da sociedade que emergia dos grilhes coloniais.

    Deste modo, o nacionalismo manifestado na arte mural do perodo tambm se situa como uma forma de resistncia cultural antiimperialista, incorporando na cultura nacional aquele que seria o elemento essencialmente mexicano: o indgena; e buscando atravs da sua relao histrica com o elemento exterior o outro - os ideais que se queria sedimentar na futura cultura nacional. Como parte deste projeto nacionalista, Diego Rivera produziu entre 1929 e 1935 no Palcio Nacional, Cidade do Mxico, o ciclo de afrescos Histria de Mxico. Neste ciclo, Rivera dedicou-se aos grandes acontecimentos da Histria mexicana, onde aliou os ideais nacionalistas do perodo e seu socialismo revolucionrio, produzindo a expresso visual mxima do projeto de construo de uma identidade nacional mexicana, consagrando-se como um dos pintores de temas antiimperialistas e nacionalistas mais importantes do mundo. Nesta pintura de enormes propores, a narrativa de Diego Rivera comea no mundo pr-colonial, resgatando e enaltecendo as civilizaes indgenas antes da chegada dos europeus. A destruio desse mundo imposta pelos conquistadores espanhis, que vencem a resistncia das populaes indgenas. Seguem-se representaes das lutas de independncia, do governo do ditador Porfrio Dias

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    (1830-1915), da Revoluo Mexicana, entre outros acontecimentos. Nesta obra monumental, Rivera produziu uma viso maniquesta da Histria do pas, onde o bem representado pela defesa do Mxico contra o mal, que representado pelos invasores estrangeiros, sempre relacionados a valores negativos, como a opresso e a explorao. Construiu tambm uma tradio de resistncia mexicana, uma histria marcada pelas lutas do povo. Primeiro contra o domnio espanhol durante a conquista e a independncia (1810), depois contra os Estados Unidos na guerra de 1847, e finalmente contra os franceses em 1861. Mesmo na luta interna da revoluo, o principal inimigo, Porfrio Dias, relacionado ao capital norte-americano das empresas petrolferas, transformando essa luta tambm em um conflito contra a penetrao imperialista e o domnio estrangeiro no pas. A identidade nacional que emerge desta pintura baseada principalmente em dois elementos: o indgena, transformado em poderoso smbolo nacionalista; e a concepo do outro, o estrangeiro, invasor, opressor.

    Imagem 8 - Historia de Mxico: el antigo mundo indgena

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    Imagem 9 Historia de Mxico: de la conquista a 1930

    1.4. Perodo final

    Nos anos posteriores (1935-1957), novas obras foram produzidas dentro da ideia de uma arte com compromisso social que conduziu a trajetria de Rivera, porm, em muito menor escala. A partir da dcada de 1940 o governo mexicano, principal financiador da arte mural, afastou-se cada vez mais dos ideais revolucionrios, que h muito tempo j no faziam parte dos programas polticos e econmicos do pas. Com a crescente hegemonia estadunidense no Mxico e o posterior clima da Guerra Fria (1945-1991) tais ideais foram sendo abandonados tambm pelas iniciativas culturais. Nesse perodo, 1935-1957, Rivera voltou a produzir alguns murais em prdios pblicos sobre o perodo pr-hispnico, muito mais idealizado que nos anteriores, e sobre a Conquista espanhola e o perodo colonial, nos quais as imagens de sofrimento, brutalidade e escravido so ainda mais fortes. Porm, j passado o ambiente nacionalista de outrora, os temas repetitivos mais parecem exprimir um sentimento de nostalgia do que uma relao com as realidades e pensamentos contemporneos.

  • 28

    Rivera produziu ainda uma srie de murais nos Estados Unidos, que tinham como tema predominante a indstria e modernizao do pas norte-americano. Por estas obras, isentas de crticas sociais e polticas, onde no h nenhum sinal do carter antiimperialista e nacionalista que marcou a sua produo artstica, o pintor foi muito criticado por seus ex-companheiros comunistas. Porm, na ltima obra encomendada em solo norte-americano, Man at the crossroads looking with hope and high vision to the choosing of a new better future4, Rivera voltou a manifestar seus ideais socialistas revolucionrios. Nesta obra, comissionada pela famlia Rockefeller5, o muralista produziu imagens representando a capacidade tcnica e a conscientizao dos trabalhadores, a eliminao da tirania, movimentos sociais, o homem como protagonista do desenvolvimento histrico, entre outras. Em 1933, durante a execuo da obra, os Rockefellers pediram que Rivera retirasse a imagem de Lnin representada na pintura. O muralista recusou-se a faz-lo, e diante de tal negativa, a famlia suspendeu a realizao da obra em maio de 1933. Inconformado com a destruio do mural, Rivera prometeu refaz-lo. No ano seguinte o pintor retornou ao Mxico e cumpriu sua promessa, desta vez com o nome de El hombre controlador del universo, obra que se encontra at hoje no Palcio de Bellas Artes na capital mexicana.

    Imagem 10 El hombre controlador del universo

    4 Man at the crossroads looking with hope and high vision to the choosing of a new better future,

    1932-1933, Rockefeller Center, Nova Iorque. O mural foi destrudo em 1934. 5 Uma das famlias mais ricas dos Estados Unidos, de atuao no setor industrial e bancrio, criou em

    1930 o Mexican Arts Association, organizao com o objetivo de promover atividades culturais entre o Mxico e os Estados Unidos.

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    Em 1954, um acontecimento na Guatemala chamaria a ateno de Diego Rivera: a interveno imperialista estadunidense que ajudou a derrubar o presidente guatemalteco. Como j foi dito, grande parte da obra de Rivera caracterizada como antiimperialista, porm, o imperialismo criticado na maior parte de suas pinturas o imperialismo europeu, baseado principalmente na dominao poltica e militar direta. O imperialismo estadunidense, de carter predominantemente econmico, um tema pouqussimo frequente em suas obras, restringindo-se a algumas imagens de empresas petrolferas norte-americanas que atuavam no Mxico. Apesar disso, esse novo imperialismo exercido pelos Estados Unidos durante o sculo XX era uma preocupao importante de Rivera h algum tempo. Na dcada de 1920 o pintor havia feito parte de uma organizao antiimperialista, a Liga antiimperialista de las Amricas (LADLA), que tinha como principal rgo de divulgao o jornal El Libertador, do qual Rivera era um dos editores e contribua com alguns desenhos. O jornal denunciava a atuao das grandes empresas norte-americanas na Amrica Latina. As imagens produzidas por Rivera para este jornal faziam parte do que podemos chamar de uma iconografia antiimperialista, composta por elementos como o dlar, o ouro, o sangue, entre outros. Em 1954, pela primeira vez, este imperialismo seria o tema central de uma pintura de Rivera, representado na obra Gloriosa Victoria. Essa pintura - uma das menos conhecidas do pintor - apresenta uma srie de continuidades e descontinuidades importantes em relao s obras mais significativas de Diego Rivera. Porm, antes de nos atermos a anlise desta que uma das ltimas obras produzidas pelo muralista mexicano, faz-se necessrio um breve estudo do acontecimento ao qual ela se refere: a queda do Presidente Jacobo Arbenz na Guatemala.

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    CAPTULO II UMA GLORIOSA VITRIA PARA A DEMOCRACIA: A QUEDA DE

    JACOBO ARBENZ NA GUATEMALA

    Salvo unos cuantos corresponsales de las cadenas de William Randolph Hearst y de sus colegas,

    que han hecho all su noviciado; algunos agentes del F.B.I.; unos cuantos turistas,

    por lo general docentes de avanzada edad, gente universitria extraordinariamente culta de los Estados Unidos

    y funcionarios de la United Fruit Company, los yanquis ignoran la existencia de la pequea Republica.

    Durante los aos 1944-1954, los conocimientos de los norteamericanos se ampliaron

    un poco gracias a las cadenas de noticias. Los ciento sesenta millones de aquel pas aprendieron

    geografa y poltica sin leer, siquiera, el Geographic Magazine: - Guatemala? Oh Yes. The communist country.

    Manuel Galich

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    2.1. O Governo Arbenz

    Em 1954 os Estados Unidos participaram da primeira ao para a queda de um governo estrangeiro no continente americano. O Presidente da Guatemala Jacobo Arbenz (1913-1971), que havia sido democraticamente eleito em 1951, foi derrubado em um processo que contou com participao importante do governo estadunidense. A queda de Arbenz foi a primeira de sucessivas operaes organizadas pela Agncia Central de Intelignca (CIA) para a queda de governos estrangeiros. Foi a primeira vitria da democracia contra o comunismo no mundo bipolar do ps-guerra. No uma vitria qualquer, mas uma gloriosa vitria para a democracia. Foram com estas palavras que o Secretrio de Estado dos Estados Unidos, John Foster Dulles (1888-1959), anunciou a queda de Arbenz.

    Jacobo Arbenz tinha como objetivo promover um desenvolvimento econmico que transformasse a Guatemala em um pas independente, moderno e capitalista. Para isso, tinha como projeto a construo de trs grandes obras: um porto moderno, uma rede de ferrovias, e uma central Hidroeltrica. Todos estes setores eram controlados por empresas estadunidenses. O projeto de obras pblicas de Arbenz tinha como finalidade promover um desenvolvimento autnomo da Guatemala, acabando com o monoplio exercido pelas grandes companhias norte-americanas sobre a estrutura do pas. Alm disso, o programa central do governo, que foi o lema de sua campanha presidencial, era a Reforma Agrria. Uma reforma que, promovendo o desenvolvimento econmico do pas, constitusse a base para o programa de obras pblicas e um futuro desenvolvimento industrial.

    Em 17 de junho de 1952, o Congresso Nacional aprovou o Decreto 900, a Lei de Reforma Agrria. A lei atingia somente terras particulares de grande extenso e que no estivessem sendo cultivadas de forma eficiente, prevendo indenizao aos proprietrios expropriados. At o fim do governo de Jacobo Arbenz, em 1954, mais de 1,4 milhes de acres haviam sido expropriados, o que constitua um quarto da terra cultivvel da Guatemala. Dessas, 407 mil acres pertenciam a United Fruit Company, empresa norte-americana de produo e comrcio de frutas e uma das maiores proprietrias de terras do pas. A redistribuio de terras contemplou

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    aproximadamente 100 mil camponeses e trabalhadores rurais, beneficiando cerca de 500 mil pessoas

    Em um pas com uma sociedade e economia profundamente atrasadas, o programa de reformas desenvolvido estava sendo bem sucedido, produzindo transformaes importantes no terreno social e tendo xito no campo econmico. No entanto, para realizar seu programa de desenvolvimento, o Governo Arbenz entrou em confronto com alguns dos setores mais conservadores da sociedade guatemalteca e com a poltica externa dos Estados Unidos, culminado em um golpe de estado que o tirou do poder.

    2.3. A queda

    Jacobo Arbenz foi o segundo e ltimo presidente nacional durante a curta Primavera guatemalteca, nome pelo qual conhecido no pas o perodo da Revoluo de Outubro (1944-1954), em referncia aos regimes autoritrios que a antecederam e a sucederam. Desde o governo do Doutor Juan Jos Arvalo (1904-1990) - primeiro Presidente eleito pelo voto popular na Guatemala, que sucedeu o ditador Jorge Ubico (1878-1946), derrubado pela Revoluo - uma srie de reformas empreendidas provocaram a reao de alguns setores do pas. Conforme Guerra-Borges (1988, p. 111):

    Una irascible oposicin conservadora, desde la moderada hasta la que tena reminiscencias oligrquicas, impugn cuanto se haca, teniendo a su lado, desde el principio, a la Iglesia catlica y al gobierno norteamericano.

    No total, foram vinte e oito tentativas de golpe sofridas por Arvalo contra seu governo. Na mais famosa delas, em 1949, o ento Ministro da Defesa Coronel Jacobo Arbenz derrotou uma insurreio militar liderada pelo Chefe das Foras Armadas Francisco Javier Arana (1905-1949). Aps o fracasso do golpe, o embaixador estadunidense na Guatemala, Richard Patterson, convocou uma reunio com Arbenz em que props uma ao para a derrubada de Arvalo, tendo o novo governo disposio uma quantia de cem milhes de dlares. Arbenz manteve-se leal ao Presidente, e nos dias seguintes o embaixador norte-americano foi obrigado a deixar o pas.

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    Em meio a um quadro de crescente descontentamento das elites com o governo, Jacobo Arbenz foi eleito em 1951 com 68% de votos naquela que foi a segunda eleio livre da histria do pas. Trs anos mais tarde foi derrubado em um processo marcado pela combinao de fatores internos e externos e que com o passar dos acontecimentos foram cada vez mais se confundindo, tendendo para uma explicao tradicional que at hoje marca a imagem que se tem sobre tal processo. Essa explicao tradicional consiste na ideia de que a queda de Jacobo Arbenz foi resultado exclusivo de uma ao imperialista estadunidense, em que a administrao do Presidente Dwight Eisenhower (1953-1961) agiu na Guatemala em defesa da United Fruit Company (UFCO), que estava sendo prejudicada pela Reforma Agrria. O prprio Arbenz acreditava nisso, como ficou claro no seu discurso de renncia. Alm disso, diversas obras (ARVALO, 1954; TORRIELLO, 1955; GALICH, 1956) produzidas nos anos posteriores ao golpe de estado, a maior parte delas de autoria de pessoas com relaes prximas ao governo Arbenz, compartilham a idia de que o fator crucial para a ao que derrubou o Presidente Guatemalteco foi a defesa dos interesses da UFCO, tendo o governo Eisenhower agido em apoio Companhia. Em tais obras, so ressaltadas as relaes profissionais6 que John Foster Dulles, secretrio de estado dos EUA, teria com a UFCO, contribuindo para alimentar a idia de que alm da defesa dos interesses particulares da companhia, a interveno dos Estados Unidos, arquitetada por Foster Dulles, foi movida para preservar interesses pessoais do principal agente envolvido na operao.

    Atualmente, com a distncia necessria para uma melhor anlise dos acontecimentos e com o acesso a novas fontes, existe na historiografia uma

    concluso de que o elemento principal para a interveno estadunidense foi o clima da Guerra fria que dominava o mundo na poca. Apesar dos esforos e das queixas da UFCO em defesa dos seus interesses, a campanha empreendida pela empresa foi apenas mais um agente em meio a um amplo quadro de fatores que contriburam para o desfecho do processo. A interveno fazia parte das estratgias da poltica externa dos Estados Unidos durante a Guerra fria, que tinha como objetivo primordial a 6 John Foster Dulles j havia sido advogado da firma Sullivan and Cromwell, conselheiros legais da

    UFCO para a Amrica Central.

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    conteno do avano global do comunismo. Durante o governo Eisenhower privilegiaram-se aes encobertas da CIA para atingir esse objetivo. Nessa luta contra o comunismo, nenhum conflito interno dos pases de Terceiro Mundo ficou restrito a um problema local. Assim, o processo de desenvolvimento nacional da Guatemala tambm no poderia ficar alheio ao ambiente polarizado do cenrio mundial, inserindo-se no conflito maior da guerra fria.

    A expropriao de terras da United Fruit Company e a inteno de construir empresas nacionais que competissem com as companhias estadunidenses alimentavam a idia de que a Guatemala representava um perigo para o pas norte-americano, tendo em vista que nos Estados Unidos qualquer ao que causasse o prejuzo dos interesses do pas poderia ser considerada como comunismo. Alm disso, a preocupao com o avano comunista na Guatemala tinha como fundamento uma real participao de comunistas no pas. Existia uma relao de colaborao entre o PGT o partido comunista - e Arbenz e a participao deste na aliana dos partidos de governo, que estiveram em comunicao desde o incio da revoluo, em 1944.

    A pesar da participao do PGT no governo e a importncia que teve para o sucesso da reforma agrria, o governo de Arbenz estava longe de ser comunista ou de ser controlado por comunistas. Arbenz aceitava seu apoio e acreditava ser capaz de control-lo junto com os outros partidos que compunham o governo. Entretanto, no clima da Guerra fria, a simples tolerncia com qualquer movimento comunista era o suficiente para ser considerado equivalente a um deles.

    Em 1953 o presidente Eisenhower aprovou a Operation Success7, um plano elaborado pela CIA e pelo Departamento de Estado para a derrubada de Jacobo Arbenz, colocando em seu lugar o Coronel Carlos Castillo Armas (1914-1957)8, antigo membro do setor mais conservador do Exrcito da Guatemala. Segundo Jimenez (1985, p. 151):

    7 Toda a documentao referente a essa operao est disponvel na pgina da internet da CIA desde

    23 de maio de 1997, quando foi desclassificada pela agncia. 8 O Coronel Carlos Castillo Armas havia sido preso por ter participado da tentativa de golpe contra

    Arvalo liderada por Francisco Javier Arana em 1949. Conseguiu fugir da priso no mesmo ano e desde ento estava exilado em Honduras.

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    Las armas y municiones fueron canalizadas a travs de una corporacin ficticia hacia el grupo de ciento cincuenta hombres que componan el Ejrcito de Liberacin Nacional de Castillo Armas. Aviones de la CIA, pilotados por aviadores norteamericanos, constituan la fuerza area de los rebeldes.

    Alm do apoio militar e financeiro, foi realizada uma extensa propaganda acusando o governo Arbenz de ser comunista. Internacionalmente, senadores, jornalistas e principalmente o Secretrio de Estado dos Estados Unidos John Foster Dulles engajaram-se na campanha de denncia anticomunista. Como parte da estratgia ofensiva estadunidense, foi realizada em maro de 1954 a X Conferncia Interamericana de Caracas9, a fim de considerar a situao da Guatemala de acordo com o Tratado do Rio de Janeiro10 e para adotar uma srie de medidas prudentes para fazer frente crescente atividade comunista no pas centro-americano (TORRES-RIVAS, 1979, p. 40) Trs meses depois o Secretrio de Estado manifestou a preocupao com o aumento da submisso guatemalteca ao despotismo estrangeiro, convocando os pases do continente americano para que ajudem ao povo da Guatemala a liberar-se por si mesmo da penetrao comunista(TORRES-RIVAS, 1979, p. 40).

    Na Guatemala, a Igreja Catlica foi a principal responsvel pela propaganda anticomunista, contando sempre com a colaborao dos Estados Unidos. Desde a vitria da Revoluo em 1944 a Igreja j promovia intensas campanhas acusando os governos de Arvalo e Arbenz de serem comunistas. Quando comeou a ofensiva da propaganda estadunidense e organizaram-se as tropas de Castillo Armas a instituio intensificou suas iniciativas, ganhando cada vez mais apoio popular. Frequentes cartas pastorais do Arcebispo Mariano Rossel y Arellano (1894-1969) tendo como tema o avano do comunismo foram lanadas, que tambm organizava passeatas contando com enormes multides. Outro clrigo importante na propaganda foi Genaro Verrolino (1892-1961), ferrenho opositor de Arbenz e que concederia a

    9 Sob o tema do anticomunismo, reuniu-se em maro de 1954 a X Conferncia Interamericana de

    Caracas. John Foster Dulles presidiu a delegao dos Estados Unidos e apresentou uma resoluo que condenava o comunismo como um sistema incompatvel com os povos da Amrica, e acusou a Guatemala de estar sofrendo uma interveno sovitica. 10

    Tratado Interamericano de Assistncia Recproca, assinado em 2 de setembro de 1947 no Rio de Janeiro, estabeleceu um acordo de defesa mtua entre os pases americanos em caso de um ataque promovido por qualquer outro Estado.

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    beno a Castillo Armas no dia de sua posse da Presidncia, em 8 de julho de 1954. Alm disso, uma igreja na fronteira da Guatemala com Honduras abrigava uma rdio clandestina de propaganda anticomunista organizada por funcionrios estadunidenses, que tambm usaram avies para lanar panfletos de propaganda contra o governo. A maior ao promovida pela Igreja foi a organizao do Primeiro Congresso Contra a Interveno Sovitica na Amrica Latina, realizado em maio de 1954 no Mxico, em que a questo Guatemalteca foi o principal motivo do encontro e o tema dominante das discusses. Neste congresso, os sindicatos, muitas organizaes estudantis e principalmente o Partido Guatemalteco do Trabalho foram intensamente acusados de, junto com o Governo, estarem agindo seguindo ordens soviticas com o objetivo de implantar o comunismo no pas.

    Dentro da Guatemala atuava tambm o embaixador dos Estados Unidos, John Peurifoy (1907-1955), recm vindo da Grcia onde participou da ao que ajudou a conseguir a derrota das foras armadas revolucionrias na guerra civil grega anos antes, em 1949. Peurifoy foi o principal agente na organizao da conspirao do Exrcito que provocou a renncia de Arbenz e de seu sucessor imediato para a posterior subida de Castillo Armas presidncia. No entanto, os responsveis diretos pela queda do Presidente foram os altos oficiais do Exrcito guatemalteco. O papel subversivo do embaixador estadunidense teve influncia decisiva na deciso do Exrcito, aliado a isso est a presso exercida pela invaso em 18 de junho de 1954 vinda de Honduras das colunas organizadas pela CIA e lideradas por Castillo Armas. Uma presso que demonstrava claramente a posio dos Estados Unidos e a disposio do pas em empreender uma ao armada contra o governo guatemalteco, e que teve como amostra o lanamento de bombas pelos avies norte-americanos sobre vrias zonas do pas. Apesar de todos os fatores que pressionavam as foras armadas, preciso compreender a atitude do Exrcito tambm dentro de um panorama de contestao interna ao governo de Arbenz, que aliado s enormes presses externas provocaram o golpe de estado.

    Dentro do pas tambm existia uma forte contestao em relao participao comunista no governo. Mesmo antes da Reforma agrria, desde 1951 - ano em que o PGT foi legalizado - as mobilizaes contra o governo tendo como bandeira a luta anticomunista j alcanavam grandes dimenses. Aps a Reforma, as

  • 37

    campanhas e a aceitao das idias anticomunistas cresceram vertiginosamente. Foi comum durante a distribuio de terras expropriadas entre a populao camponesa a recusa dessa populao em receber as terras, influenciadas pela campanha de difamao contra o governo empreendidas pela Igreja e pelos latifundirios que denunciava a Reforma como um programa de ao comunista que provocaria la coletivizacin de sus esposas e hijos, la ruina economica y la condenacin eterna (GLEIJESES, 1992, p. 353).

    No Exrcito, um dos ambientes em que as ideias anticomunistas so historicamente mais bem recebidas, no foi diferente. Preocupava a autoridade delegada pelo governo s organizaes camponesas na aplicao da Lei de Reforma Agrria, e os conflitos no campo, apesar de durante a maior parte do governo terem sido episdios isolados, intensificaram-se nas ltimas semanas medida que crescia a ameaa de um ataque impulsionado pelos Estados Unidos, sendo responsabilizados pela violncia os agitadores comunistas.

    Informado da possibilidade de invaso ao pas, e sofrendo um embargo militar imposto pelos Estados Unidos, Jacobo Arbenz compra um carregamento de armas da Tchecoslovquia, que chega em Puerto Barrios em 15 de maio de 1954. Em uma ao altamente secreta, com o objetivo de no ser descoberta pelos servios de inteligncia dos Estados Unidos, as armas tchecas chegam sem o conhecimento dos altos oficiais do exrcito, constituindo-se no argumento que faltava para uma interveno direta nos rumos do governo. Quando as colunas de Castillo Armas invadem o pas, o Exrcito recusa-se a combat-las. As nicas foras que enfrentam os invasores so as organizaes camponesas. A crise poltica torna-se cada vez mais forte e os altos oficiais do exrcito, aps uma srie de reunies, entregam um memorando ao Presidente. Segundo Torres-Rivas (1979, p. 47):

    En tanto el peligro de una guerra civil empezaba a cobrar forma y la campaa internacional dirigida con personal celo por Foster Dulles continuaba azuzando el peligro sovitico en Guatemala, se hizo evidente el verdadero significado del memorndum presentado a Arbenz por el Estado Mayor. Se trataba de forzar una estrategia del paso atrs para salvarlo todo. El proceso democrtico poda continuar si el Presidente se desembarazaba del apoyo comunista y proceda a realizar una purga inmediata de los elementos que el Ejrcito consideraba hostiles.

  • 38

    Entre as exigncias dos militares estavam a ilegalizao do Partido Guatemalteco do Trabalho e a priso de todos seus dirigentes, bem como de outros sindicalistas, camponeses e estudantes. Diante de tal panorama, Arbenz renuncia presidncia, nomeando para seu lugar o Chefe das Foras Armadas Carlos Enrique Diaz (1910-1971), e sob as condies de que o Exrcito continuasse a luta contra os invasores encabeados por Castillo Armas e que se respeitasse a vida e integridade dos dirigentes polticos e sindicais. As condies so aceitas, e na noite de 27 de junho de 1954 Jacobo Arbenz anuncia pela Cadeia Nacional de Radiofuso sua renncia da Presidncia da Repblica, em que declara:

    Todos sabemos cmo han bombardeo y ametrallado ciudades, inmolado a mujeres, nios, ancianos y elementos civiles indefensos. Todos conocemos la saa con la que han asesinado a los representantes de los trabajadores y de los campesinos en las poblaciones que han ocupado, especialmente en Bananera, donde hicieron una expedicin punitiva contra los representantes de los trabajadores. Lo de Bananera fue un acto de venganza de la frutera. [] Han tomado pretexto al comunismo. La verdad es muy otra. La verdad hay que buscar en los intereses financieros de la compaa frutera y en los de los otros monopolios norteamericanos que han invertido grandes capitales en Amrica latina, temiendo que el ejemplo de Guatemala se propague a los hermanos pases latinoamericanos. [] Despus de meditarlo con una clara conciencia revolucionaria, he tomado una decisin de enorme trascendencia para nuestra patria, en la esperanza de detener la agresin y devolverle la paz a Guatemala.

    O coronel Enrique Daz assume a presidncia e declara fora da lei o Partido Guatemalteco do Trabalho, mas se recusa a fuzilar os lderes polticos e sindicais e anuncia a continuao da luta contra os invasores, seguindo as condies de Arbenz. Sob fortes presses do embaixador John Peurifoy e dos militares lfego Monzn (1912-1981), Rodolfo Mendoza Azurdia (1907-1980) e Jules Dubois (1910-1966)11 - que j tinham exercido papel decisivo na renncia de Arbenz - Daz renuncia e as tropas invasoras chegam capital em 3 de julho de 1954 sem resistncia do Exrcito, assumindo a Presidncia o Coronel Carlos Castillo Armas cinco dias depois, em 8 de julho. As exigncias do memorando entregue pelos oficiais e que foram rechaadas por Arbenz e Daz so cumpridas pelo novo governo, e tem incio uma verdadeira caa aos comunistas no pas, provocando fugas, prises e assassinatos de milhares de pessoas.

    11

    Posteriormente os documentos da CIA revelariam que o Coronel Jules Dubois era ligado agncia estadunidense.

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    Ainda em 1954 o apoio dos grandes latifundirios ao Exrcito de Libertao Nacional recompensado, quando promulgado um novo decreto agrrio que fez com que quase todas as terras expropriadas fossem devolvidas aos antigos donos nos anos posteriores. Em 1955 um manifesto lanado por camponeses indica o novo ambiente vivido no pas: creemos que el movimiento libertador vino para libertarnos del comunismo, pero no para que los ricos y terratenientes nos despojaran de nuestras tierras. (Manifesto dos 159 pobres camponeses, 3 de junho de 1955 apud HANDY, 1992, p. 394.) Mais do que isso, o trecho representativo do poder que a bandeira anticomunista tinha entre a populao, mesmo naqueles que foram beneficiados pela ao que acusada de ser comunista, bem como dos interesses que moveram as foras mais conservadoras da sociedade guatemalteca e que nos dez anos de regime reformista ensaiaram sua queda. Desta vez, os interesses destes setores nacionais contrrios s reformas internas encontraram o apoio decisivo do governo norte-americano, e o desenvolvimento nacional guatemalteco foi violentamente interrompido pela interveno imperialista estadunidense.

  • 40

    CAPTULO III A GLORIOSA VICTORIA DE DIEGO RIVERA

    Cuando son la trompeta, estuvo todo preparado en la tierra,

    y Jehova reparti el mundo (...) la Compaa Frutera Inc. se reserv lo ms jugoso,

    la costa central de mi tierra, la dulce cintura de Amrica.

    Bautiz de nuevo sus tierras como "Repblicas Bananas,"

    y sobre los muertos dormidos, sobre los hroes inquietos

    que conquistaron la grandeza, la libertad y las banderas,

    estableci la pera bufa(...)

    Mientras tanto, por los abismos azucarados de los puertos,

    caan indios sepultados en el vapor de la maana(...).

    Pablo Neruda La United Fruit Co., Canto General, 1950

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    3.1. A esperana guatemalteca

    Conta-se que desde 1953 a Casa Azul de Diego Rivera e Frida Kahlo em Coyocatn tinha em sua porta duas bandeiras entrecruzadas: a guatemalteca e a mexicana. Na poca, o mais famoso e polmico casal de artistas da Amrica Latina sentia um forte entusiasmo pelo governo de Jacobo Arbenz no pas vizinho. Esse sentimento era compartilhado por boa parte dos artistas e intelectuais de esquerda latino-americanos, que celebravam as transformaes sociais produzidas no pas. No Mxico pode-se dizer que essa animao em relao Guatemala era ainda maior, em virtude da proximidade entre os dois pases vizinhos geograficamente e que h algum tempo viviam um ambiente de intercmbio cultural mas principalmente pela semelhana entre as trajetrias recentes de ambos.

    Assim como no Mxico, o Governo Guatemalteco tambm era herdeiro de uma Revoluo que derrubou um regime autoritrio e repressivo controlado por uma oligarquia. O Governo Arbenz, da mesma forma que o governo ps-revolucionrio mexicano, conduzia suas polticas baseado nos ideais revolucionrios12 e assumia o compromisso de defender a Revoluo Guatemalteca. Mais do que isso, a reforma agrria, questo central nas lutas nacionais mexicana e guatemalteca vinha sendo

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    Ideais que moveram as massas e seus dirigentes para derrubar o Governo oligrquico e implantar as mudanas reivindicadas pelo povo, como a democracia e a igualdade social no campo.

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    muito bem sucedida na Guatemala, diferente de sua aplicao pelo governo mexicano.

    As transformaes ocorridas na Guatemala pareciam conduzir o pas ao mesmo futuro sonhado pelos revolucionrios mexicanos para a sua nao, mas que no havia se concretizado, frustrando muitas de suas expectativas. Quando as notcias de uma possvel invaso da Guatemala ganharam os meios de comunicao, frequentes manifestaes tomaram as ruas mexicanas em protesto interveno

    imperialista no pas vizinho. Uma destas manifestaes testemunhou a ltima apario em pblico da pintora Frida Kahlo. Acompanhada de seu marido, Diego Rivera, e outros tantos artistas e intelectuais, Frida - j bastante debilitada13 e contrariando ordens mdicas - participou de um protesto em 5 de junho de 1954. Poucos meses depois, Diego Rivera comeou a pintar Gloriosa Victoria, concluda em novembro do mesmo ano, e que tinha como tema a interveno imperialista na Guatemala. A ideia inicial era que a obra participasse de uma exposio organizada pela Frente Nacional de Artes Plsticas mexicana, que exibiria obras de seus membros nos pases socialistas do leste europeu. As circunstncias que envolveram a escolha do tema desta pintura ainda so incertas. A obra no teve custo nenhum e oficialmente no foi encomendada por ningum. A exposio para a qual iria participar no tinha um tema definido. Sabe-se que os organizadores no fizeram nenhuma solicitao a Rivera quanto ao teor da pintura, tanto que excluram a obra da exposio quando viram a forma como o pintor representou o presidente dos Estados Unidos, Dwight Eisenhower. Existe uma lenda de que o famoso escritor Miguel Angel Astrias (1899-1974) - amigo de Rivera e que havia sido embaixador do Governo Arbenz em El Salvador pediu ao muralista a realizao de uma obra denunciando o acontecimento. Outras notcias do conta de que pintores mexicanos solicitaram a Rivera que fizesse uma obra em solidariedade ao povo guatemalteco.

    Atendendo pedidos ou no, o certo que este acontecimento indignou e comoveu Diego Rivera. Depois de anos de militncia contra o imperialismo estadunidense na Amrica Latina, era a primeira vez que Rivera presenciava a queda de um presidente movida pela interveno norte-americana. A queda de Arbenz significava a interrupo de um desenvolvimento nacional que provocava um imenso 13

    A pintora morreu pouco tempo depois, em 13 de julho de 1954, em sua casa na Cidade do Mxico.

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    otimismo e entusiasmo naqueles que h anos lutavam por uma sociedade mais igualitria. Diante das circunstncias que envolveram esse acontecimento, o artista sentiu a necessidade de express-lo em sua arte.

    3.2. Gloriosa Victoria

    A obra foi produzida no estdio de Diego Rivera em San ngel, no Mxico. Realizada pela tcnica da pintura de tmpera sobre uma tela enrolvel, mede 2,6 metros de altura por 4,5 metros de comprimento, e conta com uma inscrio feita de punho e letra de Rivera no canto inferior esquerdo: 7 de novembro de 1954. Diego Rivera. Colaboradoras Rina Lazo, Ana Teresa. Rina Lazo e Ana Teresa eram assistentes de Diego Rivera, Rina era guatemalteca e alm de colaborar com a pintura da obra contribuiu com levantamento de material fotogrfico, recortes de imprensa, os trajes dos indgenas guatemaltecos e todo tipo de material que pudesse ser til para a realizao do trabalho.

    Excluda da exposio no leste europeu pelos organizadores do evento, no mesmo ano, 1954, estudantes poloneses tomaram conhecimento da obra e a solicitaram a Rivera, que a levou Polnia para que participasse de uma exposio organizada pelos estudantes em Varsvia. Em 1957, alguns meses antes de sua morte, Diego Rivera viajou Unio Sovitica para realizar tratamento mdico, levando consigo a tela. Chegando ao pas, doou Gloriosa Victoria Unio de Pintores da Unio Sovitica, que em 1958 entregou a obra ao Museu Pushkin.

    O cenrio da obra a Guatemala, o prdio verde ostentando uma bandeira do Mxico a embaixada mexicana no pas, onde Jacobo Arbenz abrigou-se durante dois meses aps a sua renncia.

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    Imagem 11 Embaixada Mexicana na Guatemala

    Atrs da embaixada est representada a Catedral Metropolitana, localizada na praa central da capital, Cidade da Guatemala.

    Imagem 12 Catedral Metropolitana da Guatemala

    Ao fundo est um dos tantos vulces do pas, logo atrs de uma enorme plantao de bananas da United Fruit, localizada na regio de Quirigua, identificada pela inscrio no canto superior direito do navio.14

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    Quirigua uma antiga cidade maia que teve a regio em seu entorno vendida no incio do sculo XX para a United Fruit Company (UFCO), que transformou as terras em plantaes de banana.

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    Neste mural Rivera retrata alguns personagens envolvidos na invaso da Guatemala, representando aqueles que foram identificados como tendo maior relevncia nesse fato histrico. Ocupam o centro da pintura, mais esquerda: Samuel Zemurray (1877-1961), presidente da United Fruit Company; John Foster Dulles, Secretrio de Estado dos Estados Unidos; John Peurifoy, o embaixador norte-americano na Guatemala; e o Presidente dos Estados Unidos Dwight Eisenhower. Tambm no centro, mas direita, esto os agentes guatemaltecos: o Coronel Carlos Castillo Armas, lder das tropas invasoras e quem assume a presidncia aps a queda de Arbenz; os altos oficiais do Exrcito lfego Monzn, Jules Dubois e Rodolfo Mendoza Azurdia; e o Arcebispo da Guatemala Genaro Verrolino.

    Samuel Zemurray, vestido com um terno escuro, carregando uma bolsa recheada de dlares, entrega um mao de notas com a mo esquerda a dois soldados guatemaltecos, enquanto segura com a mo direita um objeto de madeira sobre o qual est um enorme cacho de bananas, instrumento utilizado pelos trabalhadores da United Fruit para carregar as frutas. Entre ele e o objeto est um grande saco de gros, provavelmente insumos vindos dos Estados Unidos para a plantao da fruta em solo guatemalteco, onde se l: Sack of Made in USA. Todas as referncias encontradas sobre a pintura descrevem esse personagem como sendo Allen Dulles, diretor da CIA e irmo de Foster Dulles, e que tambm j havia prestado servios de advocacia para a Companhia. Entretanto, na poca da realizao da pintura era desconhecido o envolvimento da Agncia Central de Inteligncia norte-americana na operao que provocou a queda de Arbenz. A CIA era ainda um rgo muito recente

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    (foi criada em 1947) sobre o qual no se conhecia exatamente o tipo de funo que desempenhava e que ainda no tinha sido protagonista na queda de um governo estrangeiro. Alm disso, as semelhanas fsicas e as imagens com as quais est relacionado na pintura atestam que o presidente da UFCO quem est representado no mural de Rivera, cuja aparncia era bastante conhecida no perodo, dada a circulao de fotografias suas em jornais e revistas e o impacto que a Companhia bananeira provocava no continente americano. Zemurray ficaria conhecido anos antes, em 1950, como o Papa Verde, graas obra literria do escritor guatemalteco Miguel ngel Astrias que o descreveu assim:

    O Papa Verde, para vocs saberem, um senhor que est metido num escritrio e tem s suas ordens milhes de dlares. Mexe um dedo e um navio avana ou pra. Diz uma palavra e compra uma Repblica. Espirra e cai um Presidente, civil ou general... Esfrega a bunda na cadeira e estoura uma revoluo. (ASTURIAS, 1971, p.83)

    Imagem 13 Samuel Zemurray, Presidente da UFCO

    Samuel Zemurray tem a cabea apoiada no ombro de John Foster Dulles, como se sussurrasse algo em seu ouvido. O Secretrio de Estado, principal organizador da ferrenha campanha internacional de denncia do Governo Arbenz,

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    autor da frase que d nome obra, ocupa o papel principal da pintura. Foster Dulles, com a boca entreaberta e o olhar fixo nos espectadores da tela, ouve as instrues do presidente da United Fruit. A roupa usada pelo funcionrio norte-americano, composta de coletes, botas e chapu, assemelha-se aos trajes utilizados pelos turistas estadunidenses para enfrentar o ambiente tropical e de vasta vegetao da banana republic. O objeto preso no lado esquerdo do peito de Dulles lembra a ponta de um cachimbo, utenslio do qual est sempre acompanhado. No lado direito est outro cachimbo, este um modelo tradicional da cultura maia.

    Imagem 14 John Foster Dulles, Secretrio de Estado dos Estados Unidos

    Ligeiramente inclinado para a esquerda, Foster Dulles apia-se em uma bomba, sobre a qual est estampado o rosto do Presidente dos Estados Unidos Dwight Eseinhower. Rivera representa o Presidente norte-americano sorrindo, expressando satisfao pelo sucesso da ao que derrubou Arbenz. Aps a operao, Eisenhower felicitou na Casa Branca os responsveis pela interveno. Uma frase proferida na ocasio foi reproduzida nos dias posteriores nos principais jornais do pas: Obrigado por terem eliminado uma cabea de praia sovitica em nosso hemisfrio (GALEANO, 1990, p. 145).

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    Imagem 15 Dwight Eisenhower, Presidente dos Estados Unidos

    Com a mo direita, Foster Dulles cumprimenta o Coronel Carlos Castillo Armas. O Coronel guatemalteco est representado com os mesmos trajes que usava quando foi fotografado pelos correspondentes norte-americanos que fizeram a cobertura da invaso para a Revista Life, uma das provveis fontes de consulta de Rivera. O casaco, a camisa e at mesmo o revlver na cintura so os mesmos daquele 1 de junho em que foi fotografado quando ainda se preparava para a invaso do pas. A nica diferena o mao de dlares acrescentado por Rivera ao bolso do casaco do Coronel. Descrito pela imprensa norte-americana como o lder de um Exrcito que libertaria a Guatemala da dominao comunista, na pintura de Rivera o Coronel e seu Exrcito so representados como traidores da ptria, mercenrios comprados pelo dinheiro norte-americano, simples instrumentos a servio do imperialismo. Ao cumprimentar o Secretrio de Estado estadunidense, Castillo Armas tira seu quepe, flexionando levemente os joelhos e curvando-se diante de Foster Dulles, realizando quase uma reverncia. A expresso corporal do Coronel, repetida pelos dois soldados s suas costas, simboliza a inferioridade, servido e lealdade dos setores reacionrios nacionais aos interesses estrangeiros.

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    Imagem 16 Coronel Carlos Castillo Armas

    Entre os funcionrios estadunidenses e os militares guatemaltecos est representado o embaixador John Peurifoy, principal agente na Guatemala da operao norte-americana. Assim como Castillo Armas, Peurifoy veste as mesmas roupas com que aparece em uma fotografia na Revista Life, que as caracteriza como

    trajes de batalha, vestido para um ataque areo. Na mesma Revista, a atuao de Peurifoy descrita como fundamental no processo de pacificao interna, sendo ele o responsvel principal pelo fim dos conflitos no pas ao negociar com o Exrcito. O ataque areo do qual o embaixador estava retornando quando foi fotografado seria contra os comunistas. Em contraposio a essa verso, na pintura de Rivera a posio ocupada pelo embaixador - entre os personagens internacionais e nacionais - representa o papel corruptor que desempenhou no processo, de intermedirio entre as ordens de Washington e a conspirao interna, em que as foras armadas foram compradas para que permitissem a invaso do pas. O embaixador troca olhares com os oficiais guatemaltecos, distribuindo dlares para o triunvirato lfego Monzn, Jules Dubois e Rodolfo Mendoza Azurdia, principais oficiais envolvidos na conjurao do Exrcito. Todos eles ostentam o dinheiro recebido e exibem expresses de satisfao.

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    Imagem 17 John Peurifoy, Embaixador dos Estados Unidos na Guatemala

    Imagem 18 Coronel lfego Monzn (imagens com inverso horizontal)

    direita est o Arcebispo da Guatemala Genaro Verrolino, tendo ao fundo a Catedral Metropolitana, que durante anos foi utilizada como um verdadeiro palanque de propaganda contra o governo. No dia da posse de Castillo Armas o clrigo concedeu a bno ao novo presidente e declarou: Admiro o sincero e ardente

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    patriotismo do presidente Castillo Armas (GALEANO, 1990, p. 145). Neste mural representado por Rivera realizando o pantocrator, conhecido cone da iconografia bizantina. A posio dos dedos da mo direita e as sagradas escrituras na esquerda significam que Genaro Verrolino est em posio de beno: desta vez abenoando a invaso do pas e o assassinato de inocentes, representados na menina ferida e coberta de sangue sentada aos seus ps.

    Imagem 19 Genaro Verrolino, Arcebispo da Guatemala

    No canto superior direito do mural est uma cadeia abarrotada de presos. Eduardo Galeano descreveu uma conversa entre Peurifoy e Castillo Armas que teve como tema a situao das prises (1990, p. 145):

    En la primera reunin con el embajador despus del triunfo, el presidente Castillo Armas expresa su preocupacin por la insuficiencia de las crceles locales, que no disponen de las celdas necesarias para encerrar a los comunistas. Segn las listas enviadas desde Washington por el Departamento de Estado, los comunistas guatemaltecos suman 72.000.

    A declarao de Armas, de conhecimento geral na poca da produo da pintura, soma-se s fotografias que circulavam nos principais jornais dos Estados Unidos e da Amrica Latina retratando alguns dirigentes e outros membros do Partido Guatemalteco do Trabalho presos aps a ilegalizao do partido.

    Nas paredes da cadeia representada no mural de Rivera esto escritas as seguintes frases: Viva Arbenz! Muera traidor Castillo Armas e Viva Guatemala! Mesmo no estando retratado na pintura, a presena de Arbenz se faz sentir pelas

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    frases na priso e pela representao da embaixada mexicana ao lado dos prisioneiros onde estava exilado para a qual se observam rifles apontados, impedindo-o de se manifestar. A cadeia aparece aqui como smbolo da opresso que nega a liberdade. Dentro dela, os presos polticos observam a ao principal da pintura: a invaso estrangeira. Um deles balana no lado de fora das grades a bandeira da Guatemala, principal smbolo da nao. Esta cena, pintada pela guatemalteca Rina Lazo, vem ao encontro do que diz a letra do Hino Nacional da Guatemala:

    Si maana tu suelo sagrado lo amenaza invasin extranjera, libre ao viento tu hermosa bandera a vencer o a morir llamar. Libre al viento tu hermosa bandera a vencer o a morir llamar; que tu pueblo con nima fiera antes muerto que esclavo ser.

    Ao visualizar a invaso estrangeira do solo ptrio, a bandeira nacional sacudida no ar, congregando a nao para lutar at a morte contra os invasores. A resistncia invaso comea com uma mulher de vermelho que segura uma metralhadora. Trata-se de Rina Lazo. Em uma entrevista recente, Rina descreveu as palavras de Rivera (ARTEAMERICA, 2010): Maana traiga una blusa roja me

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    dijo-, y cuando llegu me pidi que posara como guerrillera con un rifle en la mano. comum nas obras de Rivera a representao de pessoas que faam parte de seu crculo social, principalmente mulheres, mesmo que no tenham se envolvido no acontecimento representado. Rina no participou da luta armada, e a nica mulher conhecida que teria participado do conflito foi Maria Trinidad Cruz, membro do Exrcito de Libertao Nacional de Castillo Armas, cuja foto segurando uma metralhadora circulou amplamente pelos jornais da poca, sendo bem provvel que Rivera tenha se inspirado nesta fotografia para a representao de Rina.

    Imagem 20 Rina Lazo e Diego Rivera

    Imagem 21 Maria Trinidad Cruz

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    A populao que resiste invaso estrangeira a indgena, que na arte mural de Rivera converteu-se em poderoso smbolo nacionalista. Ao lado de Rina esto dois camponeses indgenas empunhando machetes instrumento cone da resistncia dos trabalhadores rurais em toda a pintura mural mexicana. Um deles est vestido com roupas coloridas, vestimenta tradicional da populao de origem maia. Quando as tropas de Castillo Armas invadiram o pas e o Exrcito recusou-se a combat-las, foram as massas camponesas que enfrentaram os invasores, dispondo para a luta apenas de instrumentos rsticos como facas, j que as ordens de Arbenz para a distribuio de armas entre a populao foi descumprida pelo Exrcito. O primeiro campons, com nima fiera, de acordo com o hino, tem expresses enrgicas, levantando bem ao alto seu machete. J o segundo est mais contido, mesmo assim conserva a faca empunhada de frente para os invasores. Tambm indgena a populao que sofre com a invaso. Igualmente usando roupas tpicas maias, um homem tem os braos cruzados sobre o peito, expressando dor. Ao seu lado uma mulher estende os braos em direo a um cenrio de destruio. frente dela, um menino tapa os olhos com as mos, evitando ver o que est acontecendo. Duas mulheres, uma delas provavelmente sua me, debruam-se sobre cadveres, lamentando a morte de trs homens. Os homens tm as mos e os ps atados, e exibem marcas de tiros pelo corpo. So os representantes dos trabalhadores e camponeses fuzilados pelas tropas invasoras em sua marcha para a capital, acusados de serem comunistas. As fotografias das vtimas do Exrcito de Castillo Armas foram amplamente utilizadas na propaganda internacional e a realizada pela Igreja, que acusaram os comunistas pelos assassinatos. Esta cena est bastante influenciada por tais fotografias e pelo discurso de renncia de Arbenz, que denunciou os assassinatos dos representantes de los trabajadores y de los campesinos en las poblaciones que han ocupado, especialmente en Bananera, donde hicieron una expedicin punitiva contra los representantes de los trabajadores. A influncia torna-se ainda mais clara se observarmos a mo esquerda de Castillo Armas, que aponta para as vtimas, mostrando-as a Foster Dulles, e o olhar de Eisenhower voltado para os fuzilados, indo de acordo com a idia expressa por Arbenz de una expedicin punitiva contra aqueles que prejudicaram a United Fruit.

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    Imagem 22 Propaganda anticomunista contra o Governo Arbenz

    A cena que se segue tambm est sob influncia do discurso de Arbenz: as crianas mortas em volta da bomba. Conforme declarou o Presidente em sua renncia: Todos sabemos cmo han bombardeado y ametrallado ciudades, inmolado a mujeres, nios, ancianos y elementos civiles indefensos. Rivera representa nesta cena a brutalidade da invaso: o assassinato de crianas inocentes e indefesas - que no poderiam opor nenhum tipo de resistncia - atingidas pelas bombas e tiros vindos dos avies pilotados por militares norte-americanos. No seria intuitivo demais interpretar a menina mutilada no centro da pintura como uma possvel expresso alegrica de Rivera da destruio da Guatemala em prol dos interesses da Companhia bananeira. A mulher sempre foi bastante utilizada como smbolo da terra em suas pinturas. O muralista tambm j pintou algumas vezes o tema do sacrificio, onde o sangue dos mortos torna frtil a terra. Aqui, a menina guatemalteca sacrificada, com o sangue fertilizando a terra para o crescimento das bananeiras. Alguns anos depois, em 1965, o escritor Miguel ngel Astrias, em uma obra

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    literria dedicada ao mesmo tema (ASTURIAS, 1971), tambm expressaria alegoricamente a destruio da ptria em uma menina indgena assassinada pelo diabo, simbolizando os Estados Unidos. Ao lado das crianas observa-se outros dois mortos sob os ps de um soldado guatemalteco. O soldado, fortemente armado, apia seu rifle em um dos homens, enquanto olha ameaadoramente para os dois indgenas que opem resistncia do outro lado da pintura. provavelmente a vigilncia do soldado que inibe a atitude do campons, que se encontra levemente curvado. Apesar da expresso ameaadora e o papel opressor que desempenha, o soldado possui os mesmo traos fsicos dos dois camponeses que resistem invaso, indicando que possuem a mesma origem indgena. Cabe lembrar aqui um trecho do manifesto lanado ainda em 1923 pelo Sindicato de Operrios, Tcnicos, Pintores e Escultores do Mxico, assinado por Diego Rivera, e que expressava para quem se destinava a arte mural: a los soldados convertidos en verdugos por los pretorianos [] (SIQUEIROS, 1975 apud ROCHFORT, 1993, p. 39). assim que Rivera representa esse soldado em Gloriosa Victoria - o nico dos militares que no recebe dinheiro pela invaso como um carrasco, instrumento de represso das camadas conservadoras, inconsciente do papel opressor que desempenha e quais interesses est defendendo. Atrs do soldado, observa-se trabalhadores saindo da enorme plantao de bananas carregando grandes cachos da fruta. Os homens e mulheres levam-na direto para o navio da United Fruit, cuja bandeira dos Estados Unidos estampada no canto superior direito indica seu destino, simbolizando a espoliao, o despojo dos recursos naturais. Para a representao dos empregados da companhia estadunidense, Rivera lana mo de um de seus mais frequentes cones: o indgena carregando pesados fardos nas costas pendentes de um apoio na cabea. Essa era a tcnica utilizada pelos Aztecas para o transporte de objetos. Na obra de Rivera esta imagem constantemente utilizada para representar os rigores do mundo colonial, o estado de quase escravido a que a populao indgena foi submetida por seus conquistadores, sempre relacionada opresso e explorao do trabalhador indgena. Em Gloriosa Victoria, Diego Rivera utiliza uma srie de elementos pouco comuns em sua arte mural, mas que j haviam sido bastante explorados em uma srie de desenhos realizados pelo pintor na dcada de 1920 para o jornal El Libertador, j

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    mencionado no primeiro captulo deste trabalho. Os signos resgatados pelo pintor nesta obra fazem parte de um universo simblico da cultura poltica latino-americana do sculo XX utilizado para representar o imperialismo estadunidense. Na cena principal da pintura - a interao entre norte-americanos e militares guatemaltecos - Rivera abusa de imagens do dlar, sem dvida o principal elemento deste universo simblico antiimperialista. O poderoso dlar cuja fora tudo compra, seja um poo de petrleo, uma mina, ou como nesse caso, uma plantao de frutas.

    A narrativa da pintura reproduz a idia que se tinha na poca quanto s causas da interveno norte-americana: uma ao movida exclusivamente para garantir os interesses da United Fruit. A representao do presidente da Companhia, Samuel Zemurray, instruindo a atuao do Secretrio de Estado estadunidense, principal condutor da poltica externa do pas, no deixa dvidas quanto ao papel preponderante que se creditava UFCO nessa operao. A posio de Zemurray, atrs de Dulles, indica que a empresa que estaria por trs da operao que mobilizou o Governo estadunidense. O rosto de Dwight Eisenhower, lder mximo da principal potncia do mundo, estampado sobre a bomba onde se apia Foster Dulles corrobora a idia de que o Governo norte-americano teria agido em apoio Companhia. A mensagem de Rivera que o poder das multinacionais est acima do Estado. E que para salvaguardar seus interesses o imperialismo conta com todo o apoio de que precisa e utiliza todos os meios possveis: desde a compra dos setores nacionais at a extrema violncia contra a populao civil.

    A stira, tcnica bastante empregada na arte mural de Rivera, aqui utilizada para criticar os principais agentes envolvidos na invaso. O Secretrio de Estado aparece submetido s ordens de um empresrio, mero instrumento a servio das companhias norte-americanas. O Presidente dos Estados Unidos representado como um assassino, com o rosto pintado sobre o objeto que foi a causa direta da morte de inocentes. Os militares mostram-se submissos, obcecados por dinheiro, traindo a prpria ptria por um punhado de dlares. J o Arcebispo sorri enquanto concede a bno ao assassinato de crianas. A forma como Rivera representa os setores nacionais transmite a idia de que a queda de Arbenz foi um retrocesso histrico, o retorno a um regime autoritrio semelhante aos governos oligrquicos, cujo poder

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    poltico era extremamente dependente da penetrao imperialista e que contavam com o apoio do clero e das foras armadas. Na cena da cadeia, esta tambm um smbolo poltico dominante na iconografia antiimperialista, Rivera produz uma relao com as lutas de independncia do pas, reforando um sentimento de nacionalismo. Os presos polticos, privados da liberdade, balanam a bandeira nacional - um dos smbolos atravs do qual um pas proclama sua identidade - e feita uma referncia ao Hino do pas, cuja letra faz aluso a outra guerra contra invasores estrangeiros. Nesse momento de crise que representa a invaso norte-americana, em que a liberdade est novamente ameaada, h o objetivo de buscar na Histria um fato importante para a nao, definindo atravs de tal fato sua identidade nacional: um povo que luta contra a invaso estrangeira. na luta contra estrangeiros que se pensa na questo da identidade. Os smbolos nacionalistas utilizados por Rivera e a evocao do passado de lutas contra o domnio imperial espanhol transmitem a mensagem de que o pas encontra-se em um novo conflito contra o imperialismo, desta vez o imperialismo estadunidense. O principal combatente nessa luta antiimperialista aquele que em toda a produo artstica de Rivera foi caracterizado como o principal representante da ptria: o indgena. a populao de origem maia a responsvel por manter a liberdade diante de uma nova ameaa vinda do exterior. Porm, a resistncia invaso derrotada gradualmente, e o furor e indignao que transparecem no primeiro homem em posio de luta vo diminuindo progressivamente entre os personagens pintados no lado direito do mural, at transformar-se em sofrimento e lamentao daqueles que observam as vtimas estendidas no cho. Sob o olhar de satisfao de Dwight Eisenhower e apontados por Castillo Armas - como se o Coronel estivesse mostrando que as ordens dos norte-americanos foram cumpridas - esto os tra