mecanica estatisitica

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livro do autor Salinas atualizado

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  • Introduo Termodinmica Estatstica(verso preliminar - 2014)

    comentrios so bem-vindos ...

    Silvio SalinasInstituto de Fsica da USP

    [email protected]

    August 13, 2014

    ndice do contedo

    1. Introduo1.1. Termometria e calorimetria1.2. A equao do calor1.3. Mquinas trmicas - teoria de Carnot1.4. A conciliao entre Carnot e Joule

    1.4.1. As leis da termodinmica

    2. Formalismo da termodinmica2.1. Exemplo: gs ideal monoatmico clssico2.2. Postuulados da termodinmica2.3. Equilbrio trmico entre dois sistemas2.4. Potenciais termodinmicos2.5. Potencias termodinmicos: aplicaes

    2.5.1. Entalpia - calor de reao2.5.2. Energia livre de Helmholtz - teorema do trabalho mximo2.5.3. Energia livre de Gibbs - direo dos processos naturais2.5.4. Potencial qumico

    3. Elementos de teoria cintica dos gases3.1. Modelo de Krnig-Clausius

    1

  • 3.2. Gs de Maxwell3.2.1. Caminho livre mdio3.2.2. Condutividade trmica3.2.3. Lei de Ohm

    3.3. Ludwig Boltzmann em Viena

    4. Mecnica Estatstica4.1. Probabilidades na fsica estatstica

    4.1.1. Valor mdio e desvio quadrtico4.1.2. Exemplo: expanso livre de um gs

    4.2. Especicao do estado microscpio de um sistema: caso clssico4.3 Especicao do estado microscpio de um sistema: exemplo

    quntico

    5. Ensemble microcannico5.1. Ensemble microcannico e termodinmica5.2. Troca de energia entre dois sistemas fracamente acoplados5.3. Interao trmica e mecnica entre dois sistemas fracamente

    acoplados5.4. Entropia do gs ideal clssico5.5. Comportamento termodinmico do paramagneto ideal5.6. A entropia como grandeza aditiva5.7. Gs de Boltzmann

    6. Ensemble cannico6.1. Conexo entre o ensemble cannico e a termodinmica6.2. Exemplo: gs ideal monoatmico clssico6.3. Exemplo: paramagneto ideal de spin 1=26.4. Teorema da equipartio da energia6.5. Gs de molculas diatmicas6.6. Sistemas anmalos - entropia de Tsallis

    7. Gs real - equao de van der Waals7.1. Modelo do gs de rede

    8. Estatstica da radiao - lei de Planck

    9. Ensemble grande cannico9.1. Conexo com a termodinmica

    2

  • 9.2. Flutuaes da energia e do nmero de partculas9.3. Exemplo: gs ideal monoatmico clssico9.4. Exemplo: gs de rede

    10. Gs ideal quntico10.1. Orbitais de uma partcula livre10.2. Formulao do problema estatstico10.3. Limite clssico

    10.3.1. Distribuio de Maxwell-Boltzmann10.3.2. Limite clssico no formalismo de Helmholtz10.3.3. Limite clssico da funo cannica de partio10.3.4. Gs diludo de molculas diatmicas

    11. Gs ideal de Fermi11.1. Gs ideal de Fermi completamente degenerado11.2. Gs ideal de Fermi degenerado11.3. Estrelas ans brancas - limite de Schnberg-Chandrasekhar

    12. Gs ideal de bsons12.1. Condensao de Bose-Einstein12.2. Diagrama de fases do hlio

    13. Flutuaes no equilbrio - movimento browniano13.1. Teoria de Einstein13.2. Equao de Langevin.

    Bibliograa bsica

    Apndice - Exerccios suplementares

    3

  • The aim of this book is to exhibit the scientic connexion of the various stepsby which our knowledge of the phenomena of heat has been extended. The rstof these steps is the invention of the thermometer, by which the registration andcomparison of temperatures is rendered possible. The second step is the measure-ment of quantities of heat, or Calorimetry. The whole science of heat is founded inThermometry and Calorimetry, and when these operations are understood we mayproceed to the third step, which is the investigation of those relations between thethermal and mechanical properties of substances which form the subject of Ther-modynamics. The whole of this part of the subject depends on the consideration ofthe Intrinsic Energy of a system of bodies, ... Of this energy, however, only a partis available for the purpose of producing mechanical work, and though the energyitself is indestructible, the available part is liable to diminution by the action ofcertain natural process,... these processes, by which energy is rendered unavailableas a source of work, are classed together, under the name of Dissipation of Energy,and form the subjects of the next division of the book. The last chapter is devotedto the explanation of various phenomena by means of the hypothesis that bodiesconsist of molecules, the motion of which constitutes the heat of those bodies.

    J. C. Maxwell, no prefcio de Theory of Heat, publicado em 1872.

    Esse um texto preliminar, baseado em parte nas notas de aula parauma disciplina de termo-estatstica, que foi introduzida no currculo do cursode Licenciatura em Fsica do IFUSP, com quatro horas de aula por semanadurante um semestre letivo. Os alunos matriculados em termo-estatstica jtinham cursado uma disciplina introdutria de fsica trmica, cobrindo as trsprimeiras etapas do texto famoso de Maxwell: "termometria", "calorimetria"e a investigao das relaes entre as propriedades trmicas e mecnicas dassubstncias, que constitui o objeto da "termodinmica". Portanto, tornava-se necessria apenas uma breve reviso da termodinmica clssica, seguidapor um programa que se concentrava no tpico nal de Maxwell: a explicaode diversos fenmenos atravs da hiptese de que os corpos so formadospor molculas, cujo movimento constitui o que se chama de calor. Nessetexto preliminar, procuramos manter a estrutura das antigas notas de aula.Mas decidimos dar nfase ao estabelecimento das leis da termodinmicaeao formalismo gibbsiano, que tem sido pouco enfatizado nos nossos cursos,mas que foi particularmente til para ampliar o horizonte de aplicao datermodinmica clssica e fornecer as bases de conexo entre a termodinmica(mundo macroscpico) e a mecnica estatstica (mundo microscpico). A

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  • maior parte do texto continua sendo dedicada construo dos ensembles deGibbs, ferramenta essencial na mecnica estatstica de equilbrio, incluindodiversos exemplos e exerccios de aplicao."Theory of Heat", publicado inicialmente em 1872, talvez seja o primeiro

    livro didtico de termodinmica, escrito para uma srie de "obras elementares"de mecnica e cincias fsicas, "adapted for the use of artisans and of stu-dents in public and other schools", com nvel matemtico bem mais acessveldo que essas notas de aula. No entanto, recomendamos cuidado: o texto foiescrito no "calor da batalha", e contm errinhos famosos - como um equvocona prpria denio de entropia - que foram sendo corrigidos nas edies pos-teriores, principalmente aps uma celebrada correspondncia entre Gibbs eMaxwell.Na primeira seo, vamos apresentar uma espcie de introduo histrica

    aos conceitos da fsica do calor, com referncias formulao da teoria dasmquinas trmicas. Na segunda seo vamos expor, de maneira muito breve,o formalismo moderno da termodinmica, que muito til para aplicaesalm da engenharia das mquinas trmicas. Na terceira seo apresentamosum esboo da teoria cintica dos gases, com nfase no gs de Maxwell, quepossibilitou uma deduo microscpicadas equaes fenomenolgicas dogs ideal. A quarta seo dedicada a um passeio pelas ideias elementares dateoria das probabilidades que sero necessrias para a construo da mecnicaestatstica. Na quinta seo introduzimos o ensemble microcannicoe ap-resentamos os postulados fundamentais da mecnica estatstica. Essa disci-plina exige um certo conhecimento de clculo matemtico, talvez um poucoalm do que se necessita no estudo da termodinmica. Nesse ponto bomlembrar que a matemtica a linguagem da fsica, que Newton inventou oclculo para formular a mecnica. Vamos recorrer a derivadas e integrais,somatrias simples e mltiplas, tcnicas matemticas essenciais para estab-elecer conceitos fsicos com maior preciso, mas recomendamos que um bominstrutor utilize o seu tempo de aula para rever e discutir aspectos tcni-cos, aproveitando os nossos exerccios, e fazendo explicitamente as deduesnecessrias. A sexta seo dessas notas reservada ao "ensemble cannico",mtodo de enorme utilidade, que fornece os elementos para a consideraode um sistema fsico numa situao muito comum, com temperatura xa, emcontato com um reservatrio trmico. Pretendemos abordar vrios exemplosde sistemas em equilbrio termodinmico, de natureza clssica ou quntica,com referncia a problemas famosos, como a equao de van der Waals parauidos reais, a lei de Planck da radiao ou a dependncia do calor espec-

    5

  • co dos slidos com a temperatura. Decidimos inserir uma seo sobre oensemble grande cannico, em que o sistema de interesse, alm de trocarenergia na forma de calor, tambm pode trocar matria (partculas) com omeio ambiente. O ensemble grande cannico, de muita utilidade no estudode uidos clssicos, tambm particularmente conveniente para a discussodas propriedades de sistemas de natureza quntica. Podemos assim fazerreferncia a algumas propriedades de frmions e bsons livres, inclusive aofenmeno da condensao de Bose-Einstein. A ltima seo dedicada aoestudo das utuaes estatsticas, utilizando o problema paradigmtico domovimento browniano, de enorme relevncia nas aplicaes contemporneasda fsica estatstica.

    Os exerccios distribudos pelas sees so parte absolutamente integrantedo texto; devem ser feitos na ordem em que so propostos. Alguns poucosexerccios mais desaadores, como a simulao do modelo da urna de Ehren-fest, marcados com **, sero discutidos num apndice nal, em que tambmpretendemos propor umas pequenas simulaes numricas.

    No conheo outra forma de aprender que no passe por uma boa dose deleitura, muitas discusses e trocas de ideias, e muitos exerccios .... SegundoWittgenstein, .... we got to know the nature of calculating by learning tocalculate ... . Alm disso, recomendo uma boa dose de interao, que essencial em qualquer tipo de aprendizado: interao entre os estudantes eo contedo, interao entre os prprios estudantes, interao entre os estu-dantes e o professor ....

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  • 1 Introduo

    Por volta de 1870, as trs grandes vertentes da fsica clssica - a mecnica,o eletromagnetismo e a termodinmica - j se apresentavam como teoriasbem denidas. Maxwell se referia termodinmica como uma cincia comfundamentos seguros, denies claras e limites distintos.A mecnica newtoniana, que j tinha sido colocada em bases formais rig-

    orosas, era o principal paradigma de construo cientca daquela poca. Noentanto, o mecanicismo, a tentativa de reduzir todos os fenmenos fsicos sleis da mecnica, apesar de constituir o cerne da fsica de Maxwell, Helmholtz,Boltzmann, e da maior parte dos seus contemporneos, encontrava-se asse-diado, em plena fase de retirada no nal do sculo XIX.Os postulados fundamentais do eletromagnetismo foram formulados por

    Maxwell em 1864, e a existncia de ondas eletromagnticas, com a conse-quente unicao do eletromagnetismo e da ptica, foi comprovada exper-imentalmente por Hertz em 1887. No entanto, o eletromagnetismo aindanecessitava para a sua formulao mais completa da existncia do ter, que um conceito puramente mecnico.A termodinmica adquire a estatura de uma teoria fsica com a concil-

    iao, promovida por Kelvin e principalmente por Clausius, entre a teoriade Carnot sobre o funcionamento das mquinas trmicas e a teoria de Joulesobre a transformao do calor em trabalho. Aos poucos a termodinmicapassa a exercer inuncia, pois uma cincia estritamente sistematizadora,fenomenolgica, que prescinde de qualquer hiptese sobre a constituio mi-croscpica da matria. Na virada do sculo XX, a termodinmica torna-se omodelo de cincia para os "energeticistas", inuenciados pelo positivismo dapoca, que se recusam a trabalhar com "entidades metafsicas", como tomose molculas. Ernst Mach, que teve grande inuncia na fsica do incio dosculo XX, Pierre Duhem, fsico-qumico francs e historiador da cincia, eo grande qumico alemo Wilhelm Ostwald, so os mais famosos energeticis-tas. Dizem que Mach no acreditava na realidade dos tomos at falecer, em1916. Ostwald mudou de opinio, mais ou menos nessa poca, devido emboa parte enorme repercusso dos trabalhos experimentais de Jean Perrinsobre o movimento browniano, comprovando a validade da teoria de Einsteinsobre partculas microscpicas em perene movimento.

    7

  • 1.1 Termometria e calorimetria

    A grandeza medida pelos termmetros a temperatura, cuja denio apro-priada somente se deu no contexto da formulao da termodinmica. Noentanto, o estudo de propriedades termomtricas e a construo de bons ter-mmetros j era possvel no sculo XVIII, quando tambm foram propostasas primeiras escalas termomtricas, usadas ainda hoje, com base em pontosde referncia altamente reprodutveis. Conta-se que Celsius percebeu que atemperatura de ebulio da gua variava com a presso externa, e que es-tabeleceu a escala centgrada escolhendo o valor 0 para o ponto de ebulioe o valor 100 para o ponto de fuso da gua, sempre a presso normal de1 atmosfera. A escala Celsius foi invertidalogo depois por uma propostado grande botnico sueco Lineu. A escala Fahrenheit, que ainda usadanos Estados Unidos e em alguns outros pases, xa o zero no ponto de fusode uma mistura salina muito comum, de gua e lcool, a presso normal, eatribui 180 F ao ponto de fuso da gua.No sculo XVIII j se construam recipientes calorimtricos, envoltos por

    paredes adiabticas (termicamente isoladas) bastante razoveis, e se sabiaque dois corpos colocados em contato, a temperaturas diferentes, trocandocalor mas isolados do universo, acabavam atingido uma situao de equilbrio,com a mesma temperatura nal. Vamos ento considerar dois corpos, demassas m1 e m2, a temperaturas 1 e 2, colocados em contato dentro de umcalormetro isolado. A variao do calrico (ou calor) de cada corpo dadapor

    Q1 = m11 = m1 (F 1) ; (1)e

    Q2 = m22 = m2 (F 2) ; (2)em que F a temperatura nal de equilbrio (quando no h mais uxo decalrico). Temos ento a lei da conservao do calrico,

    Q1 +Q2 = m11 +m22 = 0; (3)

    de onde vem a temperatura nal

    F =m11 +m22m1 +m2

    ; (4)

    que podia ser comparada com dados experimentais (por favor, veriquem esseresultado em um dos calormetros do nosso Laboratrio de Demonstraes).

    8

  • Conta-se que Boerhave props ao seu amigo Fahrenheit que, ao invs damassa, a variao do calrico deveria ser proporcional ao volume dos corpos.Nesse caso, a temperatura nal seria dada por

    F =V11 + V22V1 + V2

    ; (5)

    em que V1 e V2 so os volumes dos corpos envolvidos. No havia nada queprivilegiasse a massa em relao ao volume numa lei de conservao dessetipo. Fahrenheit ento realizou vrias experincias calorimtricas com umamistura de gua e mercrio, concluindo que a primeira equao, (4), combase nas massas, era incompatvel com os resultados, que pareciam favorecera hiptese do volume, expressa pela equao (5), que foi aceita como o mel-hor resultado terico compatvel com os dados experimentais, permanecendodurante algumas dcadas como uma interpretao terica inconteste das ex-perincias!Na segunda metade do sculo XVIII, Joseph Black, professor da Universi-

    dade de Glasgow, introduziu os conceitos modernos de calor especco (rela-cionado ao calor sensvel) e calor latente (associado s transformaes defase), ainda no contexto da teoria da conservao do calrico. As discrepn-cias nas experincias de Fahrenheit foram interpretadas como um sinal deque a relao entre quantidade de calor e temperatura era inuenciada pelaspropriedades especcas das substncias individuais. Black props a relao

    Q = mc = C; (6)

    em que a grandeza c, caracterstica de cada substncia, foi inicialmente de-nominada anidade pelo calorou faculdade para receber calor, candonalmente conhecida como calor especco, e C = mc a capacidadecalorca. Essa inovao de Joseph Black marca o incio da termodinmicaterica. A medida do calor especco de vrias substncias passou a ter muitointeresse, abrindo-se ento um campo totalmente novo para a investigao ex-perimental. As novas experincias calorimtricas conduziram conrmaoda lei de conservao do calrico,

    Q1 +Q1 = m1c11 +m2c22 = 0; (7)

    com

    F =m1c11 +m2c22m1c1 +m2c2

    ; (8)

    9

  • que a frmula utilizada na calorimetria do ensino mdio. Tambm se tornouinteressante tabelar os valores numricos dos calores especcos de vrias sub-stncias, e os calores latentes de transformaes de fase (fuso, ebulio).Mais adiante, Laplace e Lavoisier perceberam que os calores especcos po-dem variar com a temperatura, no so meras constantes, colocando prob-lemas que somente foram resolvidos bem mais adiante, com o advento damecnica estatstica quntica!Alguns autores apontam que no foi mera coincidncia que a evoluo da

    teoria do calrico tenha correspondido de perto ao esclarecimento dos con-ceitos bsicos da qumica. O termo calricofoi devidamente explicado porLavoisier no seu Trait Elmentaire de Chimie, de 1789, que um marcona histria da qumica. Os princpios bsicos da nova qumica so a conser-vao da massa e a invarincia dos elementos qumicos. Juntamente com aconservao do calrico, essa foi uma estrutura poderosa para a discusso dasreaes qumicas. O conceito de calor de reao era uma extenso natural doconceito de calor latente. Com o acrscimo das reaes qumicas, o alcanceda evidncia experimental em favor da teoria do calrico assumiu proporesverdadeiramente impressionantes. O contraste entre calrico livre e latentecorresponde diferena entre energia cintica e potencial. De certa forma,o calrico pode ser concebido como um ancestral do conceito de energia. Oestudante contemporneo poderia argumentar que a teoria do calrico noera adequada para explicar o balano de energia nas reaes qumicas, poisela ignora o papel do trabalho de compresso exercido pela atmosfera. Isso correto e pode ser, em princpio, bastante signicativo, mas do ponto devista puramente emprico a contribuio do trabalho mecnico aos calores dereao pequena e frequentemente menor do que a preciso das primeirasmedidas.

    1.2 A equao do calor

    Fourier publicou em 1822 o seu Trait Analytique da la Chaleur, umdos textos matemticos de maior impacto de todos os tempos, que exerceuenorme inuncia sobre o jovem William Thomson, mais tarde conhecidocomo Lord Kelvin, um dos fundadores da termodinmica (a verso para oingls do texto de Fourier pode ser encontrada na coleo dos Great Booksda Britannica). Segundo Fourier, as causas da transmisso do calor "sodesconhecidas, mas esto sujeitas a leis simples e xas que podem ser de-scobertas pela observao, e que so o objeto de estudo da losoa natural...

    10

  • Vamos ento examinar o que as experincias nos ensinam sobre a transfer-ncia de calor..."Fourier analisa a conduo do calor, partindo da lei do resfriamento,

    baseada em ampla evidncia experimental. Segundo essa lei fenomenolgica,o uxo de calor (calrico), a partir de uma regio com temperaturas maisaltas para uma regio com temperaturas mais baixas, proporcional razoentre a variao de temperatura e a distncia espacial (ou seja, propocionalao gradienteda temperatura).Considerando o uxo de calor ao longo de um cilindro, com o eixo na

    direo x, e as paredes laterais impermeveis, a lei do resfriamento dadapor

    J = Tx

    ; (9)

    em que J = J (x; t) o uxo do calor (quantidade de calor que atravessauma superfcie normal ao eixo x, dividida pela rea S da superfcie e pelointervalo de tempo t), e T = T (x; t) a temperatura. Note que tantoo uxo J quanto a temperatura T so funes da posio x ao longo doeixo e do tempo t, e que a condutividade trmica uma constanteespecca de cada substncia. Numa linguagem matemtica um pouquinhomais apropriada, devemos usar derivadas parciais,

    J = @T

    @x

    : (10)

    Note o sinal menos, indicando que o uxo vai ser positivo quando a derivadada temperatura em relao posio for negativa (pois o calrico ui deregies com temperaturas mais altas para regies com temperaturas maisbaixas).Fourier agora utiliza o princpio da conservao do calricopara obter

    uma segunda equao. A diferena entre o calrico que entra no cilindro e ocalrico que sai deve ser igual ao calrico acumulado dentro do cilindro (poisno h fontes ou sumidouros internos de calrico). Considerando o cilindroelementar ao longo do eixo x, com as bases em x e x+x, temos a equaode conservao

    J (x+x; t)S J (x; t)S = Qt

    ; (11)

    em que Q a quantidade de calrico ganha pelo cilindro elementar duranteo intervalo de tempot. Note que o uxo vezes a rea uma corrente de calor

    11

  • Figure 1: Fluxo de calor atravs de um cilindro elementar com as paredeslaterais isoladas e o eixo ao longo da direo x.

    (calrico por unidade de tempo). Note tambm o sinal, pois J (x+x; t)deve ser maior do que J (x; t) e Q deve ser negativo (o cilindro estarperdendo calrico). Mas a variao da quantidade de calrico deve ser dadapela expresso de Joseph Black,

    Q = mcT; (12)

    em que m a massa (constante) do cilindro elementar, c o calor especcoe T a variao da temperatura (devido injeo de calrico no cilindro).Ento temos

    J (x+x; t)S J (x; t)S = mcTt

    ; (13)

    ou seja

    J S = mcTt

    ; (14)

    que ainda pode ser escrita na forma mais conveniente,

    J

    x= m

    SxcT

    t: (15)

    Levando em conta que Sx o volume do cilindro elementar, no limite degrandezas innitesimais podemos introduzir a densidade de massa,

    =m

    Sx; (16)

    12

  • de onde obtemos nalmente a forma diferencial da lei da conservao docalrico,

    @J

    @x= c @T

    @t; (17)

    em que o calor especco c e a densidade de massa devem ser constantescaractersticas de cada material.A partir das formas diferencias da lei do resfriamento, equao (10), e

    do princpio da conservao do calrico, equao (17), obtemos uma formasimplicada da famosssima equao do calor ou equao de Fourier,

    k@2T

    @x2=@T

    @t; (18)

    em que a constante k = =c a difusividade trmica. Essa uma equaodiferencial linear a derivadas parciais, cuja soluo T = T (x; t), pode serobtida atravs de uma separao de variveis, T (x; t) = F (x)G (t), e da uti-lizao de uma representao em senos e cossenos. O mtodo de Fourier otema absolutamente central de uma disciplina obrigatria mtodos matemti-cos da fsica!

    *********

    Como recurso pedaggico, em geral muito til, sempre importante ap-resentar os clculos da forma como ns zemos, considerando uma nicadimenso espacial. No entanto, quem tiver boa formao matemtica podeir adiante, apreciando talvez uma deduo mais geral. Apelando para a no-tao do clculo vetorial, vamos escrever a lei do resfriamento na forma geral

    !J = !rT; (19)

    em que!J um vetor uxo do calor, com a mesma interpretao anterior, e

    tanto!J quanto a temperatura T so funes da posio !r e do tempo t. A

    lei da conservao do calrico dada pela expresso matemticaS(V )

    !J !dS = d

    dt

    V

    u dV (20)

    13

  • em que u = cT uma densidade de calrico, escrita em termos do calor es-pecco c e da densidade de massa do material . O lado direito da equao(20) fornece a taxa de variao do calrico dentro do volume V . Como ocalrico se conserva, como no h nem fontes e nem sumidouros de calrico, claro essa variao deve ser igual integral do uxo sobre a superfcie(fechada) S que engloba o volume V . A mesma equao de conservao tam-bm utilizada em eletrodinmica, para expressar a conservao da cargaeltrica, ou na mecnica dos uidos, quando as partculas do uido se con-servam.Utilizando agora o teorema de Gauss (ou do divergente), que deve ser

    expicado am aula, escrevemosS(V )

    !J !dS =

    V

    !r !J dV: (21)

    Portanto,

    ddt

    V

    u dV = V

    @u

    @tdV =

    V

    !r !J dV: (22)

    Como o volume V qualquer, os integrandos so iguais,

    @u

    @t= !r !J ; (23)

    dando origem a uma equao de continuidade, que uma forma local dalei de conservao do calrico. Utilizando a lei do resfriamento (19) e aforma da densidade de energia u, temos a equao do calor, ou equao deFourier, na sua forma mais geral,

    @T

    @t= k

    !r2T: (24)

    No nal do curso vamos voltar a essa equao, no contexto da difuso de umuido de partculas que se conservam.Embora usasse a notao de Leibnitz para as derivadas, que era um

    enorme progresso em relao ao mtodo (geomtrico) dos uxes de Newton,Fourier ainda no conhecia a notao de derivadas parciais e muito menos osrecursos (utilssimos) do clculo vetorial. No texto original de Fourier, vocsvo encontrar uma deduo em coordenadas cartesianas, mais longa e maissimples talvez, e uma equao nal da forma

    dv

    dt=

    K

    CD

    d2v

    dx2+d2v

    dy2+d2v

    dz2

    ; (25)

    14

  • Figure 2: Aerolipa de Hiero de Alexandria

    em que a temperatura v = v (x; y; z; t) representa os estados sucessivos doslido. William Thomson percebeu a utilidade da notao de Leibnitz, mastanto Thomson quanto Maxwell tambm no usavam o clculo vetorial.

    1.3 Mquinas trmicas - teoria de Carnot

    O poder do vaporera conhecido desde a Antiguidade. Atribui-se a Hierode Alexandria, que viveu por volta do sculo 100 AC, o projeto e construode uma mquina trmica capaz de aproveitar a expanso do vapor aquecidopara acionar um mecanismo. H vrias ilustraes da mquina de Hiero(ver a gura abaixo). Os elementos essenciais dessa mquina so a fornalha(fonte quente) que aquece a gua (sistema auxiliar) de uma caldeira, que ento expulsa para a atmosfera (fonte fria) atravs de dois tubos excntricos,projetados para girar um mecanismo (dispositivo mecnico). Dizem que Hi-ero utilizava o trabalho mecnico produzido para abrir a porta dos templose maravilhar os is.Na Inglaterra, a partir do incio do sculo XVIII, foram sendo desenvolvi-

    das de forma artesanal as primeiras mquinas trmicas com a nalidade deacionar bombas mecnicas, pneumticas, que faziam vcuo para drenar a

    15

  • Figure 3: Esquema da mquina de Newcomen. Note a caldeira, o cilindro emque se desloca o pisto, o reservatrio de gua, e a conexo com as alavancasde acionamento das bombas mecnicas. Note tambm as vlvulas A e B queeram acionadas para estabelecer o funcionamento cclico.

    gua que inundava as minas de carvo. A mquina de Newcomen, por ex-emplo, era uma estrutura imensa, com uma fornalha e uma enorme caldeira,que se comunicava com um pisto. Abrindo a vlvula da caldeira, o vaporaquecido entrava no pisto e acionava o movimento de um cilindro. Fechandoa vlvula e resfriando o cilindro, o vapor se condensava e o cilindro desciano pisto, at que novo ciclo se iniciasse. Havia centenas de mquinas dessetipo que operavam na Inglaterra, desempenhando papel essencial na primeirarevoluo industrial. Conta-se que na Universidade de Glasgow havia umamquina de Newcomen em miniatura usada pelo professor Jopeph Black paraas suas demonstraes, mas que essa mquina raramente funcionava. JamesWatt, tcnico de Black, percebeu que no tinha sentido aquecer e depoisresfriar o cilindro em cada etapa do ciclo, principalmente num mquina pe-quena, e inventou o condensador separado, que aumentou consideravelmentea ecincia das mquinas de Newcomen.

    A gura acima representa esquematicamente uma mquina de Newcomen.Notem o recipiente na forma de cilindro, aberto na parte superior, em que

    16

  • se deslocava o pisto. Da parte inferior do cilindro saiam duas tubulaes,ligadas a uma caldeira e a um pequeno reservatrio de gua. O movimentodo pisto, atravs de uma espcie de alavanca, acionava as velhas bombas dasminas (que realizavam o trabalho de drenagem). O funcionamento (cclico)dessa mquina de Newcomen era simples: (1) inicialmente, com a vlvula Baberta, o vapor dgua aquecido na caldeira penetrava no cilindro, expulsavao ar e movimentava para cima o pisto; (2) neste ponto era trocada a aberturadas vlvulas, isto , a vlvula A era aberta e a vlvula B fechada, provocandoa entrada de um jato de gua fresca dentro do cilindro; (3) com as duasvlvulas fechadas, o vapor se condensava dentro do cilindro, formava-se umvcuo relativo no seu interior, e a presso atmosfrica fazia com que o pistovoltasse para baixo, acionando as bombas de drenagem. Em seguida, a guade dentro do cilindro era escoada, e todo o ciclo era repetido novamente.

    Um cronista do sculo XIX, maravilhando-se com as novas conquistastecnolgicas, menciona que as tropas de Napoleo, famosas pela rapidez demovimentos, no conseguiam se deslocar muito mais rapidamente do que oexrcito do general Hanbal, que invadiu a Itlia na Antiguidade. Aps aderrota na Rssia, as tropas de Napoleo percorreram em 312 horas a dis-tncia de 2500 quilmetros entre Vilna, na Litunia, e Paris. Nessa retiradaas tropas de Napoleo zeram cerca de oito quilmetros por hora, que uma velocidadee da mesma ordem de grandeza com que se deslocavam astropas de Hanbal h cerca de mil anos, transportando tambm suprimentose animais. Em comparao, no nal do sculo XIX, a estrada de ferro entreParis e Vilna possibilitava um ganho de uma ordem de grandeza, com umavelocidade mdia pouco abaixo de 80 km=h. Um avio a jato moderno devepossibilitar o ganho de outra ordem de grandeza nessa velocidade.

    No seu livro famoso, Rexions sur la Puissance Motrice du Feu et surles Machines propes a dvelopper cette puissance, publicado em 1824, ojovem engenheiro francs Sadi Carnot aponta logo na introduo que "o es-tudo dessas mquinas do maior interesse, a sua importncia enorme, oseu uso tem crescido continuamente, e elas parecem destinadas a produziruma grande revoluo no mundo civilizado. Carnot tambm aponta que,apesar de toda a sua importncia, de estarem destinadas a constituir ummotor universal, a sua teoria muito pouco entendida, e as tentativas deaperfeioamento sempre se deram mais ou menos ao acaso. Carnot identi-ca os elementos principais de uma mquina trmica e prope a teoria de

    17

  • funcionamento de uma mquina cclica. Um dos pontos bsicos da teoria deCarnot a negao do moto perptuo: partindo de determinadas condiesiniciais (temperaturas iniciais), realizando um operao cclica, sem perdas,no seria possvel produzir uma determinada quantidade de trabalho e depoisutilizar apenas uma parte do trabalho produzido para operar o ciclo ao con-trrio a m de chegar s mesmas condies iniciais. No se produz trabalhosem modicaes no ambiente. A mquina tima trabalha com qualquer sis-tema auxiliar, desde que no haja perdas no funcionamento cclico (pois ocalrico se conserva).Na poca da sua publicao, o livro de Carnot, destinado a engenheiros

    e a um pblico mais geral, teve pouca repercusso. Mas as suas ideias foramdivulgadas por um jovem egresso de Cambridge, William Thomson, futuroLord Kelvin, especialista no mtodo de Fourier, que fazia um estgio nolaboratrio de Henri Regnault, em Paris, estudando as propriedades do vaporaquecido. Na realidade, Thomson conhece as ideias de Carnot atravs de umartigo de Benot Calpeyron, ainda no contexto da teoria do calrico. FoiClapeyron quem desenhou o diagrama cclico conhecido (duas isotermas eduas adiabticas) no plano p-V (presso versus volume) e "matematizou" ateoria de Carnot.Vamos citar alguns trechos de magnco artigo de William Thomson de

    1848:No estado atual da cincia, no se conhece nenhuma operao em que o calor

    seja absorvido sem elevar a temperatura da matria ou sem se tornar latente ...;e a converso de calor (ou calrico) em efeito mecnico provavelmente impos-svel*, certamente ainda no foi descoberta. Ento, para obter efeito mecnico emmquinas reais devemos procurar a fonte de potncia ....em uma transmisso decalor. ... Carnot demonstra que pela descida do calor, de um corpo quente paraum corpo frio, atravs de uma mquina (uma mquina a vapor ou uma mquina aar), que o efeito mecnico pode ser obtido Reciprocamente, ele prova que a mesmaquantidade de calor, mediante o consumo de uma quantidade igual de fora detrabalho, pode ser ser elevada do corpo frio para o corpo quente (com a mquinanesse caso trabalhando ao contrrio). Isso ocorre da mesma forma como se podeobter efeito mecnico pela queda da gua em uma roda de gua. Nesse caso, agua tambm pode ser elevada a um nvel mais alto, consumindo fora de tra-balho, pelo giro da roda ao contrrio ou operando uma bomba. A quantidade deefeito mecnico obtida pela transmisso de uma determinada quantidade de calor,atravs de qualquer tipo de mquina, com uma economia perfeita, no depende danatureza especca da substncia empregada como meio de transmisso de calor,

    18

  • Figure 4: Proposta de Carnot e Kelvin. Numa mquina ideal uma qantidadede calrico Q "desce" de uma temperatura TQ para uma temperatura TF .O trabalho W produzido proporcional diferena das temperaturas.

    mas apenas do intervalo entre as temperaturas dos dois corpos entre os quais ocalor transferido.

    * Essa opinio parece ser quase universalmente seguida por aqueles que tmescrito sobre o assunto. Uma posio contrria, no entanto, foi defendida porMr. Joule, de Manchester, .......ainda h muito mistrio envolvido nessas questesfundamentais de losoa natural.

    (ver a edio especial sobre o "centenrio da morte de William Thomson" naRevista Brasileira de Ensino de Fsica, volume 29, 2007).

    De forma bastante esquemtica podemos resumir a proposta de Carnot-Kelvin no diagrama esquematizado abaixo.A mquina opera entre uma fonte quente (a temperatura TQ) e uma fonte

    fria (a temperatura TF ). Para produzir trabalho mecnico, Carnot sabia queera importante evitar o contato direto entre as fontes quente e fria. A entraem cena o sistema auxiliar, inicialmente em contato com a fonte quente,mas que depois se resfria, adiabaticamente, at atingir a temperatura TF dafonte fria; nessas etapas do processo cclico o sistema auxiliar se expande erealiza trabalho. Atingida a temperarura da fonte fria, o sistema comea a secontrair isotermicamente. Finalmente, o contato com a fonte fria desfeito, eo ssietma auxiliar continua contraindo e se aquece, at voltar temperaturainicial TQ, completando assim um cilco de operao. Se no houver perdas,

    19

  • o calrico se conserva, valendo a lei de conservao

    QQ = QF = Q

    ; (26)

    em que os smbolos esto indicados na gura. Dada uma quantidade de calor(ou calrico) Q, como na analogia da queda dgua, o trabalho mecnicorealizado proporcional diferena de temperatura entre as fontes quente efria,

    W = Q(TQ TF ); (27)em que a dependncia linear uma simplicao (e a notao foi modern-izada).Em concordncia com as indicaes empricas da poca, o rendimento

    da mquina de Carnot proporcional diferena de temperaturas (entreas fontes quente e fria). Essa concluso foi a base da proposta de WilliamThomson para o estabelecimento de uma escala termomtrica universal, in-dependente da particular substncia termomtrica. Essa escala (absoluta)dependia apenas de medidas de trabalho e de um nico ponto xo de refer-ncia (ver a traduo do artigo de Thomson, A escala termomtrica absolutabaseada nas teorias da potncia motriz de Carnot e calculada a partir dasobservaes de Regnault, na edio comemorativa da RBEF, volume 29,2007).Suponha agora que a mquina possa funcionar ao contrrio. Con-

    siderando uma mquina ideal, sem perdas, vai ser necessria a mesma quan-tidade de trabalho mecnico W para retirar a quantidade de calrico Q dafonte fria e transferir para a fonte quente.

    1.4 A conciliao entre Carnot e Joule

    Vamos interpretar o esquema anterior luz das opinies de Mr. Joule, deManchester, supondo que o calor seja uma forma de energia, e que o calorpossa ser transformado em trabalho mecnico.De acordo com o esquema da gura, a mquina opera entre uma fonte

    quente (temperatura TQ) e uma fonte fria (temperatura TF ). Realizando umprocesso cclico, no nal da operao o sistema auxiliar volta ao seu estadoinicial. Portanto, o trabalho mecnico realizado dado por

    W = J(QQ QF ); (28)

    20

  • Figure 5: Na proposta de Mayer-Joule, durante um ciclo de operao damquina trmica, uma certa quantidade de calor QQ liberada pela fontequente, o trabalho W realizado, e uma outra quantidade de calor QF absorvida pela fonte fria. Ento W = J (QQ QF ).

    em que J o equivalente mecnico do calor, que ns mantivemos nesseponto por razes histricas, embora seja melhor fazer J = 1, pois calor etrabalho tm a mesma dimenso (de energia).A ideia de conservao da energia estava no ar na Europa do sculo

    XIX. H uma tese famosa de Thomas Kuhn propondo que o princpio daconservao da energia um exemplo de descoberta simultnea, feita porvrios pesquisadores, em diversos locais, mais ou menos na mesma poca.Aparentemente o mdico alemo Mayer chegou concluso de que o calorpode se transformar em trabalho atravs de medidas de presso arterial,propondo inclusive um valor muito razovel para o parmetro de converso J .Joule trabalhou nessa questo durante pelo menos trs dcadas, oferecendoexemplo magnco de exaustiva investigao experimental.

    Como se distribuem os valores QQ e QF? O rendimento ainda dependeda diferena de temperaturas? Essas questes no podem ser respondidasno esquema de Mayer-Joule. Alm disso, de acordo com esse esquema seriapossvel fazer QF = 0, transformando todo o calor QQ em trabalho mecnico,e contrariando dessa forma todas as evidncias experimentais da poca sobre

    21

  • a dissipao da energia. Esss problema foi resolvido por Rudolf Clausius, quetomou conhecimento das ideias de Carnot atravs dos trabalhos de Thomson.Clausius aceita o princpio de Mayer-Joule (conservao da energia total),

    dado pela equao (28), mas prope que ele seja suplementado por uma formamodicada da lei de conservaode Carnot,

    QQTQ

    =QFTF

    : (29)

    Temos ento o rendimento

    =W

    QQ=TQ TFTQ

    = 1 TFTQ; (30)

    que proporcional diferena de temperaturas, mas que tambm dependede TF , justicando a denio do zero absoluto, como j tinha sido perce-bido por William Thomson, e limitando a quantidade de calor que pode sertransformada em trabalho.Resta pensar sobre os casos no ideais (ou irreversveis, como se chama

    ataualmente), em que pode no ser vlida a lei de conservao proposta porClausius. Por exemplo, o que acontece quando o calor transmitio sem arealizao de trabalho? Aos poucos essas situaes foram sendo compreen-didas, em boa parte devido aos trabalhos do prprio Clausius, culminandocom a sua denio de entropia como funo que se conserva nos processosreversveis.

    1.4.1 Leis da termodinmica

    As leis da termodinmica foram resumidas em duas frases magistrais de Clau-sius, citadas na introduo de um artigo famoso de Gibbs sobre a termod-inmica de misturas de uidos em equilbrio:

    - a energia do mundo constante;

    - a entropia do mundo tende a um valor mximo.

    O mundoisolado de Clausius constitudo por um sistema, acopladoa uma fonte de calore a uma fonte de trabalho. Numa transformaoinnitesimal, o sistema recebe calor e realiza trabalho. Ento

    U = QW; (31)

    22

  • Figure 6: O universo de Clausius constitudo por um sistema S que re-cebe calor de uma fonte de calor e executa trabalho sobre uma dispositivomecnico.

    em que U a energia interna do sistema, e

    Stotal = S Q

    T 0; (32)

    em que S a entropia do sistema. Numa transformao reversvela en-tropia do mundo Stotal no se altera, ou seja, S = Q=T . Em termosgerais, no entanto, vale a desigualdade de Clausius,

    S QT: (33)

    Aplicando essas ideias a uma mquina trmica, num ciclo innitesimal,em que o sistema auxiliar volta ao estado inicial, a energia conservada,

    W = QQ QF ; (34)

    mas em geral a entropia do universo aumenta,

    QQTQ

    +QFTF

    0; (35)

    23

  • ou seja,QFQQ

    TFTQ; (36)

    de onde vem o rendimento

    =W

    QQ=QQ QF

    QQ= 1 QF

    QQ 1 TF

    TQ: (37)

    Esse rendimento mximo apenas para uma mquina ideal, sem perdas, numciclo reversvel, em que a entropia do universo permanece constante.

    Em termos bem gerais, considerando um processo cclico arbitrrio, podemosescrever

    dS dQ

    T 0; (38)

    em quedS a variao total de entropia do sistema auxiliar. Portanto,

    em geral temos dS

    dQ

    T; (39)

    que uma expresso conhecida como desigualdade de Clausius. Numprocesso cclico reversvel, claro que

    dS =

    dQ

    T= 0; (40)

    dando origem caracterizao da entropia como funo de estado.

    A caracterizao da energia interna e da entropia como funes de es-tado um ponto central da proposta de Clausius. Em termodinmica osestados de equilbrio so denidos por poucas variveis, ao contrrio dos es-tados dos sistemas mecnicos de partculas, que exigem o conhecimento dasposies e das velocidades de todas as partculas. Os estados termodinmicosde um uido simples (isotrpico, homogneo, constitudo por um nico tipode componente) so denidos por variveis como a temperatura, o volume,a presso e o nmero de moles. Na realidade, h relaes entre essas var-iveis (equaes de estado), e o estado de uma certa quantidade de um uidosimples pode ser inteiramente denido por duas variveis apenas (a temper-atura e a presso, por exemplo). Nesse caso tanto a energia interna quanto

    24

  • a entropia so funes bem denidas dessas duas variveis, temperatura epresso.

    Vamos considerar dois estados de equilbrio termodinmico, A e B. Emgeral nem podemos falar em entropia dos estados intermedirios, que no pre-cisam ser estados de equilbrio. No entanto, podemos imaginar um processomuito lento (quase esttico), denindo uma trajetria especial no espao dasvariveis termodinmicas, formada por uma sucesso innitesimal de estadosdesde A at B. Ao longo desse processo quase-esttico, tambm conhecidocomo processo termodinmico ou processo reversvel, tanto a entropiaquanto a energia interna e as outras funes termodinmicas esto semprebem denidas. Portanto, ao longo dessa trajetria quase-esttica podemosescrever a equao diferencial

    dU = TdS dW; (41)

    em que dW o trabalho realizado. No caso de um sistema isotrpico comoum uido, a forma de dW bem simples,

    dW = pdV; (42)

    em que p a presso e V o volume. Se o nmero de moles N variar, aindatemos que adicionar um termo de trabalho qumico, da forma dN , em que um potencial qumico (como ser explicado mais adiante). Temos entoa forma geral para um uido simples,

    dU = TdS pdV + dN; (43)

    que a expresso diferencial conhecida da primeira lei da termodinmica.Integrando ao logo da trajetria (reversvel) entre A e B, tambm temos B

    A

    dU =

    BA

    TdS BA

    pdV +

    BA

    dN: (44)

    A equao (43) indica que a energia interna U uma funo das variveisindependentes S, V e N , ou seja, que podemos escrever U = U (S; V;N).Temos ento a forma diferencial de U em termos de derivadas parciais,

    dU =

    @U

    @S

    V;N

    dS +

    @U

    @V

    S;N

    dV +

    @U

    @N

    S;V

    dN; (45)

    25

  • em que estamos fazendo questo de usar uma notao meio carregada masbem explcita. Comparando as expresses (43) e (45), podemos escrever atemperatura, a presso e o potencial qumico como derivadas parciais da en-ergia interna, denida em termos da entropia, do volume e do nmero demoles, U = U (S; V;N), que conhecida ento como uma equao fun-damental do sistema simples. Dada essa equao fundamental, temos asequaes de estado na representao da energia,

    T =

    @U

    @S

    V;N

    ; p =@U

    @V

    S;N

    ; =

    @U

    @N

    S;V

    : (46)

    26

  • 2 Formalismo da termodinmica

    Estamos agora preparados para apresentar o formalismo gibbsiano da ter-modinmica, que muito til para aplicaes alm dos domnios da engen-haria das mquinas trmicas, e particularmente adequado para estabelecer aconexo com as ideias da mecnica estatstica.Quando corrigiu a primeira edio do seu livro famoso, agradecendo co-

    mentrios do "professor J. Willard Gibbs, of Yale College, U.S.", Maxwellintroduziu uma nova seo sobre "an exceedendly valuable method of study-ing the properties of a substance by means of susrface". Ao longo dessaseo, vamos ento apontar algumas caractersticas geomtricas das funestermodinmicas.Em primeiro lugar, vamos notar que a energia interna U = U (S; V;N)

    deve ser uma funo monotonicamente crescente da entropia (pois a temper-atura sempre positiva). Isso nos permite inverter essa funo, escrevendoS como funo de U , V e N , ou seja, S = S (U; V;N), de onde vem a formadiferencial

    dS =1

    TdU +

    p

    TdV

    TdN; (47)

    e as equaes de estado na representao da entropia,

    1

    T=

    @S

    @U

    V;N

    ;p

    T=

    @S

    @V

    U;N

    ; T=

    @S

    @N

    U;V

    : (48)

    Portanto, a funo S = S (U; V;N) tambm uma equao fundamental parao uido simples, com o mesmo contedo de informao que a funo U =U (S; V;N). Podemos trabalhar com S, na representao da entropia, emque as variveis independentes so U , V e N ; ou ento com U = U (S; V; V ),na representao da energia, com as variveis independentes S, V e N . Maisadiante vamos ver que ainda h um requisito serssimo sobre o sinal da se-gunda derivada de U em relao a S. Quando existir a derivada @2U=@S2

    tem que ser negativa, caso contrrio a entropia do universo no vai para umamximo, de acordo com a exigncia de Clausius!

    2.1 Exemplo: gs ideal monoatmico clssico

    O "gs ideal monoatmico clssico", que deve ser o sistema termodinmicomais simples, comporta-se de acordo com a lei de Boyle-Mariotte, conhecida

    27

  • desde o sculo XVII,pV = NRT; (49)

    em que N o nmero de moles e R a constante universal dos gases. Almdisso, o calor especco molar uma constante, independente da temperaturae da presso, dado por

    cV =3

    2R; (50)

    como vai car bem claro na nossa discusso sobre os primeiros modelos dateoria cintica. Esses dois resultados, de carter fenomenolgico, so leis ex-perimentaistpicas da termodinmica. As dedues microscpicasdessesresultados vieram mais tarde, como produto da teoria cintica dos gases.Vamos lembrar que o calor especco a volume denido pela relao

    cV = limT!0

    1

    N

    Q

    T

    V;N

    =1

    N

    @U

    @T

    V;N

    : (51)

    Vamos tambm levar em conta que: (i) a energia interna de qualquer sis-tema termodinmico deve ser extensiva, isto , multiplicando as variveisde tamanho, V e N , por um certo fator , a energia ca multiplicada pelomesmo fator ; (ii) as experincias de expanso livre para gases diludos in-dicam que a energia interna de um gs ideal no funo do volume. Temosento o resultado fenomenolgico conhecido

    U =3

    2NRT: (52)

    As equaes (50) e 52) podem ser escritas numa forma mais conveniente,em termos das variveis independentes U , V e N da representao da en-tropia,

    1

    T=3NR

    2U;

    p

    T=NR

    V: (53)

    Comparando com a forma diferencial (48) das equaes de estado na repre-sentao da entropia, temos

    @S

    @U

    V;N

    =3NR

    2U;

    @S

    @V

    U;N

    =NR

    V: (54)

    Essas derivadas parciais so facilmente integrveis. De fato, em termos deuma funo arbitrria fa (N), imediato escrever que

    S = S (U; V;N) =3NR

    2lnU +NR lnV + fa (N) : (55)

    28

  • Felizmente ainda possvel dizer alguma coisa sobre essa funo arbitrriafa (N), pois a entropia deve ser uma funo extensiva das variveis U , V eN . Em outras palavras, a entropia, escrita como S = S (U; V;N), deve seruma funo homognea de primeiro grau das variveis U , V e N , ou seja,

    S (U; V; N) = S (U; V;N) ; (56)

    para qualquer . Torna-se ento um exerccio elementar escrever a entropiapor mole do gs ideal (monoatmico clssico, como vai car claro mais adi-ante) na forma

    s =S

    N=3R

    2lnU

    N+R ln

    V

    N+ constante. (57)

    Nessa expresso ca evidente a extensividade, mas ainda aparece uma con-stante, que somente vai ser denida pelos requisitos qunticos da chamadaterceira lei da termodinmica. Mais adiante vamos recuperar essa expressono contexto da mecnica estatstica.

    Exerccio: ciclo de Carnot; equao de uma adiabtica no plano p VO ciclo de Carnot foi desenhado por Clapeyron no diagrama p V (ver

    a gura). Esse ciclo formado por duas isotermas, a temperaturas TQ e TF ,e duas adiabticas. Em contato com a fonte quente a temperatura TQ, o sis-tema auxiliar recebe uma quantidade de calor QQ e executa trabalho atravsda expanso isotrmica. Atingido certo volume, a fonte quente removidae o sistema continua se expandindo sem trocas de calor (adiabaticamente)at atingir a temperatura TF da fonte fria. Atingida a temperatura TF , osistema colocado em contato com a fonte fria, cede calor e comprimido(recebe trabalho) at atingir um determinado volume. Nesse ponto a fontefria removida e o sistema evolui adiabaticamente at voltar ao estado iniciale completar um ciclo de operao.Suponha que o sistema auxiliar seja constitudo por um mol de um gs

    ideal monoatmico clssico, ou seja, que pV = NRT e U = (3=2)NRT , comN = 1(a) Mostre que a equao da curva adiabtica no plano pV . dada por

    pV = constante.

    Qual o valor da constante ?

    29

  • Figure 7: No diagrama p V , o ciclo de Carnot, A! B ! C ! D ! A, formado por duas isotermas, a temperaturas TQ e TF , e por duas adiabticas.

    (b) Preencha a tabela abaixo, indicando as expresses do calor absorvidoQ, do trabalho realizado W , da variao da energia interna U e davariao da entropiaS, ao logo de cada trecho do ciclo de Carnot. Expresseas suas respostas em termos das temperaturas TQ e TF , da razo VB=VA entreos volumes nos estados A e B, e da constante universal dos gases R.

    Q W U SA! BB ! CC ! DD ! A

    Verique explicitamente o balano total da energia interna e da entropia.

    Mostre que o rendimento do ciclo dado pela expresso de Carnot.(c) ** Na poca de Laplace, Carnot e Clapeyron, ainda no contexto da

    teoria do calrico, foi possvel obter a mesma equao para uma adiabticano plano p V . Suponha (erroneamente, claro) que o calor (calrico)seja uma funo de estado, Q = Q (p; V ), e que os calores especcos (avolume ou a presso xos) sejam constantes. Mostre que ainda obtemos amesma expresso pV = constante. Veja T. Kuhn, Caloric theory of adiabaticcompression, Isis 49, 132 (1958).(d) ** No contexto da teoria do calrico, tambm foi possvel obter a

    razo entre as compressibilidades isotrmica T e adiabtica, S, de um gs

    30

  • ideal. Modernamente, essas compressibilidades so denidas pelas relaes

    T = 1

    V

    @V

    @p

    T;N

    ; S = 1

    V

    @V

    @p

    S;N

    ;

    em que o sinal de menos introduzido para que os valores sejam positivos(pois no possvel que o volume de um sistema em equilbrio termodinmicoaumente com a presso aplicada!). No contexto do calrico, a entropia S deveser substituda pela quantidade de calrico Q. Verique o resultado muitoconhecido,

    TS=cpcV= ;

    que proporcionou a correo de um erro famoso de Newton sobre o valor davelocidade de propagao do som no ar.

    2.2 Postulados da termodinmica

    Estamos em condies de utilizar a linguagem dos uidos para estabelecer ospostulados da termodinmica gibbsiana:

    Primeiro postulado: Os estados macroscpicos de um uido simplesso completamente caracterizados pela energia interna U , o volume V , e aquantidade de matria (nmero de moles N).No caso de um uido com N moles de r componentes distintas, temos que

    dar o conjunto de nmeros de moles de cada componente, fNj; j = 1; :::; rg.Na presena de campos ou no caso de um slido anisotrpico, entram emjogo outras variveis.

    Um sistema composto um conjunto de sistemas simples separadospor paredes ou vnculos. Essas paredes so separaes ideais, que restringemas mudanas de deteminadas variveis. Por exemplo, paredes adiabticasno permitem o uxo de energia na forma de calor (caso contrrio, serodiatrmicas). Paredes xas no permitem variaes de volume. Paredesimpermeveis no permitem o trnsito de um ou mais tipos de partculascomponentes do uido.Os postulados da termodinmica vo dar uma resposta para o problema

    fundamental do equilbrio termodinmico, que consiste em determinar o es-tado nal de equilbrio de um sistema composto quando se removem algunsvnculos intermos. Por exemplo, qual seria o estado nal de equilbrio se uma

    31

  • Figure 8: Sistema termodinmico composto de trs sistemas simples separa-dos por paredes adiabticas, xas e impermeveis.

    parede adiabtica fosse transformada em diatrmica? E se uma parede xase tornasse mvel?

    Segundo postulado: H uma funo dos parmetros extensivos de umsistema composto, denominada entropia, S = S(U1; V1; N1; U2; V2; N2; : : :),que bem denida para todos os estados de equilbrio. Se ns removermosum vnculo interno, os parmetros extensivos assumem valores de equilbrioque maximizam a entropia.A entropia como funo dos parmetros extensivos de um sistema uma

    equao fundamental, contendo toda a informao termodinmica sobreesse sistema.

    Terceiro postulado: A entropia de um sistema composto aditivasobre cada um dos subsistemas que o compem. A entropia uma funocontnua, diferencivel e monotonicamente crescente da energia.

    De acordo com esse terceiro postulado, a entropia de um sistema compostopor dois uidos simples e distintos, envoltos por pareds retritivas a todas asvariveis, pode ser escrita na forma de uma soma,

    S (U1; V1; N1; U2; V2; N2) = S1 (U1; V1; N1) + S2 (U2; V2; N2) : (58)

    Dada a funo S = S(U; V;N), o terceiro postulado garente que (@S=@U) >0. Podemos ento inverter essa funo entropia e escrever U = U(S; V;N),que tambm uma equao fundamental do sistema, com o mesmo statusde S = S(U; V;N).

    A aditividade da entropia signica que S = S(U; V;N) uma funohomognea de primeira ordem de todas as suas variveis. Portanto, para

    32

  • qualquer valor de , podemos escrever

    S (U; V; N) = S (U; V;N) : (59)

    Em particular, tomando = 1=N , temos

    1

    NS (U; V;N) = S

    U

    N;V

    N; 1

    = s (u; v) ; (60)

    que justica a denio das grandezas termodinmicas conhecidas como den-sidades, u = U=N , v = V=N , e s = S=N .

    Quarto postulado: A entropia se anula num estado em que (@U=@S)V;N =0.

    Mais adiante vamos ver que esse um enunciado possvel da lei de Nernst,ou terceria lei da termodinmica. Esse postulado garante que a entropia seanula no zero absoluto da temperatura, que uma consequncia do carterquntico da matria.

    2.3 Equilbro trmico entre dois sistemas

    Vamos agora utilizar os postulados para analisar um exemplo paradigmticode equilbrio trmico. Consideramos um sistema composto, totalmente iso-lado, constitudo por dois uidos simples. No estado inicial, os dois uidosesto separados por paredes adiabticas, xas e impermeveis. Num deter-minado momento, a parede interna de separao torna-se diatrmica (mascontinua xa e impermevel). Depois de um certo tempo de relaxao, osistema deve atingir novo estado de equilbrio, dado pela maximizao daentropia total,

    S = S1 (U1; V1; N1) + S2(U2; V2; N2); (61)

    em que V1; V2; N1 e N2 so parmetros xos, e as energias U1 e U2 podemvariar, mas esto sujeitas condio

    U1 + U2 = Uo = constante, (62)

    em que U0 a energia total do sistema composto (que permanece xa).Ento, na situao nal de equilbrio, temos

    @S

    @U1=@S1@U1

    +@S2@U1

    =@S1@U1

    @S2@U2

    =1

    T1 1T2= 0; (63)

    33

  • Figure 9: Sistema composto por dois uidos simples, incialmente separadospor paredes adiabticas, xas e impermeveis.

    em que usamos a equao de estado (48) na representao da entropia. Obte-mos assim a equalizao das temperaturas, T1 = T2, de acordo com as nosssasexpectativas intuitivas sobre o estado nal de equilbrio termodinmico.Para completar a anlise temos que considerar a derivada segunda,

    @2S

    @U21=@2S1@U21

    @@U1

    @S2@U2

    =@2S1@U21

    +@2S2@U22

    : (64)

    Usando a equao de estado para o inverso da temperatura, podemos escrever

    @2S

    @U21=

    @

    @U1

    1

    T1

    +

    @

    @U2

    1

    T2

    = 1

    T 21

    @T1@U1

    1T 22

    @T2@U2

    : (65)

    Como essa derivada segunda tem que ser negativa na situao de mximo,somos obrigados a exigir que

    @T

    @U

    V;N

    > 0: (66)

    Para perceber o sentido fsico dessa condio, vamos notar que o calor es-pecco a volume constante dado por

    cV T

    N

    @S

    @T

    V;N

    =1

    N

    @U

    @T

    V;N

    : (67)

    Ento, fazendo uma manipulao com as derivadas, temos@T

    @U

    V;N

    =1

    @U@T

    V;N

    =1

    NcV> 0: (68)

    34

  • Portanto, a maximizao da entropia est diretamene relacionada com umapropriedade fundamental de estabilidade trmicados corpos. Num sistematermicamente estvel, o calor especco, que proporcional razo entre ocalor injetado e a variao da temperatura, no pode assumir valores nega-tivos. No possvel fornecer calor e abaixar a temperatura de um sistema!

    Vamos considerar de novo essa condio de estabilidade, que pode serescrita na forma

    @

    @U

    1

    T

    V;N

    =

    @2S

    @U2

    V;N

    < 0: (69)

    Isso signica que a entropia tem que ser uma funo cncava da energia.Outras formas funcionais (gemtricas) de entropia em termos da energia soabsolutamente inaceitveis!Nesse ponto vale a pena fazer algums consideraes sobre convexidade

    (concavidade). A funo diferencivel f (x) convexa se a sua segundaderivada for positiva para todos os valores de x. Se a segunda derivadafor negativa a funo cncava. Por exemplo, a funo f(x) = exp (x) convexa, mas a funo f(x) = lnx cncava. Poderamos at ter usado umadenio mais geral, de carter puramente geomtrico, para incluir funesno diferenciveis em alguns pontos (por exemplo, quando ocorre uma tran-sio de fases).Pode-se tambm mostrar que, para garantir tanto a estabilidade trmica

    quanto a estabilidade mecnica de um sistema, a densidade de entropia, s =s(u; v), tem que ser uma funo cncava das duas variveis independentes, ue v. Por outro lado, a densidade de energia, u = u(s; v), deve ser uma funoconvexa da variveis independentes s e v.

    Exerccio: Equilbrio entre dois subsistemas simples.Considere um sistema composto de dois subsistemas muito especiais, ini-

    cialmente a temperaturas diferentes, T1i e T2i, que so postos em contatotrmico em determinado momento. O sistema total permance isolado. Osvolumes e a quantidade de matria de cada subsistema tambm no se al-teram nesse processo. Suponha alm disso que esses subsistemas tenhamcalor especco constante (c1 e c2, por exemplo).(a) Mostre que a entropia de cada susbistema pode ser escrita na forma

    S = S (U) = Nc lnU

    Nc+ constante, (70)

    35

  • em que N o nmero de moles. Note que essa uma equao fundamentalno formalimo gibbsiano. Note que a temperatura dada por

    1

    T=dS

    dU=Nc

    U; (71)

    ou seja, a energia interna tem a forma U = cNT .(b) O estado nal de equilbrio obtido pela maximizao da entropia do

    sistema composto,S = S1 (U1) + S2 (U2) ; (72)

    com

    U1 + U2 = U1i + U2i = N1c1T1i +N2c2T2i = Uc = constante, (73)

    em que U1i e U2i so as respectivas energias internas iniciais dos dois sistemas.Mostre que a situao de equilbrio dada por

    N1c1U1f

    =N2c2

    Uc U1f(74)

    em que U1f a energia nal (de equilbrio) do corpo 1, e U2f = Uc U1f aenergia nal do corpo 2. Essa expersso tambm pode ser escrita como

    1

    T1f=

    1

    T2f; (75)

    conrmando que as temperaturas se equalizam na situao nal de equilbrio.(c) Mostre que

    T1f = T2f =N1c1T1i +N2c2T2iN1c1 +N2c2

    ; (76)

    de acordo com a expresso que poderia ter sido obtida no contexto dacalorimetria elementar (comparar com a eq. (8), que foi obtida supondoa conservao do calrico).(d) Calcule a derivada segunda da entropia no equilibrio,

    d2S (U1)

    dU21= N1c1

    U21 N2c2(Uc U1)2

    : (77)

    Note que essa expresso sempre negativa, pois c1; c2 > 0.

    36

  • (e) Mostre que a variao de entropia entre os estados nal e inicial dessesistema, S = Sf Si, dada pela expresso

    1

    N1c1 +N2c2(SF SI) = ln

    r1

    U1iN1c1

    + r2U2iN2c2

    r1 ln

    U1iN1c1

    + r2 lnU2iN2c2

    em que introduzimos as razes de repartio da energia,

    r1 =N1c1

    N1c1 +N2c2; r2 =

    N2c2N1c1 +N2fc2

    = 1 r1: (78)

    Note que 0 r1; r2 1.(e) Vamos introduzir uma denio geomtricade uma funo cncava

    f (x). No plano de f contra x, podemos traar uma secante passando pordois pontos x1; f (x1) e x2; f (x2). A equao dessa secante, y = y (x), dadapela relao

    y (x) = f (x1) +f (x2) f (x1)

    x2 x1(x x1) : (79)

    Dada uma coordenada qualquer entre x1 e x2, por exemplo, xm = r1x1+r2x2,com 0 < r1; r2 < 1, e r1 + r2 = 1, a funo f (x) ser cncava se

    f (xm) y (xm) ; (80)

    ou sejaf (r1x1 + r2x2) r1 f (x1) + r2 f (x2) : (81)

    Fazendo a escolha

    x1 =U1iN1c1

    ; x2 =U2iN2c2

    ; (82)

    temos

    f

    r1

    U1iN1c1

    + r2U2iN2c2

    r1 f

    U1iN1c1

    + r2 f

    U2iN2c2

    : (83)

    Compare com a expresso da entropia obtida no item anterior. Nesse casomuito simples, no h dvidas de que a entropia tem a concavidade esperada.No entanto, essa ltima desigualdade vale para qualquer funo cncava, queno precisa necessariamente ser logartmica!Os testes de concavidade so particularmente importantes nos grcos

    experimentais e nos clculos de mecnica estatstica. Cuidado com erros deconcavidade nos grcos de alguns textos didticos de termodinmica!

    37

  • Figure 10: Transformada de Legendre da funo y = y (x). Nesse grcoesto indicadas a tangente p no ponto (x; y) e a interseco (p) entre a retatangente e o eixo y.

    2.4 Potenciais termodinmicos

    Ao invs de trabalhar na representao da energia, em que S, V e N soas variveis independentes, ou na representao da entropia, em que U , V eN so independentes, pode ser muito mais conveniente trabalhar com var-iveis independentes de fcil acesso experimental, como a temperatura T oua presso p (note que a temperatura T , por exemplo, uma derivada parcialde U com relao a S na prepresentao da energia). Para lidar com essaquetso, vamos considerar uma funo y = y(x), com derivada p = dy=dx.Ns gostaramos de encontrar uma outra funo, da forma = (p), queseja equivalente a y = y(x). Isso pode ser conseguido atravs de uma trans-formada de Legendre.Uma funo y = y(x) pode ser construda a partir de uma tabela de pares

    de valores (y; x). Podemos at pensar que uma tabela de pares (y; p) tambmseja til para denir a mesma funo. No entanto, cada par desse tipo corre-sponde a uma famlia de retas no plano xy, sem nenhuma chance de denira funo y = y(x). De fato, a relao y = y(p), que pode ser escrita na formay = y(dy=dx), no passa de uma equao diferencial, cuja soluo se obtem amenos de uma constante aditiva. No entanto, podemos construir uma tabeladiferente, envolvendo os pares (p; ), em que p a derivada no ponto x, e a coordenada da interseco entre o eixo y e a reta tangente curvay = y(x) no ponto x (veja as indicaes na gura). Ns ento construmosuma famlia de tangentes curva y = y (x). Uma funo de convexidade bemdenida, como as equaes fundamentais da termodinmica, vai ser comple-tamente determinada pelo envelope convexo da curva y = y (x). Portanto,

    38

  • considerando a gura, a transformada de Legendre da funo y = y(x) dada pela funo = (p), tal que

    = (p) = y (x) px; (84)

    em que a varivel x eliminada pela equao

    p =dy

    dx: (85)

    Por exemplo, vamos calcular a transformada de Legendre da funo y =y(x) = ax2 + bx+ c. Usando as expresses (84) e (85), temos

    (p) = ax2 + bx+ c px; (86)

    com

    p =dy

    dx= 2ax+ b; (87)

    de onde vem

    = (p) = 14ap2 +

    b

    2ap b

    2

    4a: (88)

    Note que se a funo y(x) for convexa, ento (p) ser cncava, e vice versa(isto , a transformada de Legendre uma operao que inverte a convexidadede uma funo).

    Estamos agora preparados para denir as transformadas de Legendre daenergia, U = U (S; V;N). Lembrando que

    T =

    @U

    @S

    V;N

    ; p = @U

    @V

    S;N

    ; =

    @U

    @N

    S;V

    ; (89)

    denimos seguintes potenciais termodinmicos:

    (i) Energia livre de Helmholtz,

    U [T ] = F (T; V;N) = U TS; (90)

    em que a varivel S foi substituda pela temperatura T ;

    (ii) Entalpia,U [p] = H (S; p;N) = U + pV; (91)

    em que o volume V foi substituido pela presso p;

    39

  • (iii) Energia livre de Gibbs,

    U [T; p] = G (T; p;N) = U TS + pV; (92)

    em que zemos uma duola transformada de Legendre, com relao svariveis S e V ;

    (v) Grande potencial termodinmico,

    U [T; ] = (T; V; ) = U TS N; (93)

    em que a transformao foi realizada em relao s variveis S e N .

    Como U = U (S; V;N) uma funo homognea de primeiro grau das suasvariveis, a transformada de Legendre em relao s trs variveis produzuma funo identicamente nula,

    U [T; p; ] = U TS + pV N = 0; (94)

    que conhecida como relao de Euler da termodinmica.

    Exerccio: relaes de Maxwell

    Na representao de Helmholtz, a energia livre dada por F = U TS,de onde vem a forma diferencial

    dF = dU TdS SdT = SdT pdV + dN: (95)

    Portanto, podemos as equaes de estado na representao de Helmholtz,

    S =@F

    @T

    V;N

    ; p =@F

    @V

    T;N

    ; =

    @F

    @N

    T;V

    : (96)

    Note que estamos fazendo questo de usar uma notao bem explcita paraas derivadas parciais, com o objetivo de enfatizar que a entropia, a pressoe o potencial qumico escritos acima, em termos de derivadas de F , sofunes das variveis independentes da representao de Helmholtz. Nasmanipualaes termodinmicas sempre importante prestrar muita atenos variveis independentes em jogo. Na poca de Laplace ou Fourier, que noconheciam a notao moderna das derivadas parciais, isso era bem mais con-fuso. Portanto, repetindo o que j foi dito, as expresses de S = S (T; V;N),

    40

  • p = p (T; V;N), e = (T; V;N) so equaes de estadona representaode Helmholtz (e a entropia somente uma equao fundamental para umuido simples se for expressa em termos da energia, do volume e do nmerode moles).A partir dessas equaes, temos trs relaes de Maxwellna represen-

    tao de Helmholtz, que podem ser muito teis em probemas de termod-inmica,

    @S

    @V

    T;N

    =

    @p

    @T

    V;N

    ; @S

    @N

    T;V

    =

    @

    @T

    V;N

    ; (97)

    e

    @p

    @N

    T;V

    =

    @

    @V

    T;N

    : (98)

    Mais adiante vamos introduzir algumas relaes matemticas - muito sim-ples - envolvendo derivadas parciais de funes implcitas, que vo facilitar otratamento de problemas concretos com a utilizao dessas relaes.

    A representao de Gibbs dada pela energia livre G = U TS+ pV . Apartir da forma diferencial

    dG = SdT + V dp+ dN; (99)

    obtenha as equaes de estado e as relaes de Maxwell na represntao deGibbs.

    Exerccio

    Obtenha as formas da energia livre de Helmholtz e da energia livre deGibbs para um gs ideal monoatmico.

    2.5 Potencias termodinmicos: aplicaes

    A termodinmica foi formulada inicialmente para analisar o rendimento e odesempenho das mquinas trmicas, mas logo se percebeu que os conceitose os mtodos da termodinmica tambm seriam muito teis na anlise dasreaes qumicas e das condies de equilbrio entre as fases de um uidoheterogneo. A partir desses primeiros desenvolvimentos, a abrangncia eas aplicaes da termodinmica se tornaram cada vez mais signicativas nacincia contempornea. Os potenciais termodinmicos desempenham um

    41

  • papel especial na termodinmica qumica. Vamos ento retomar, de formaelementar, as denies e algumas propriedades da entalpia, e das energiaslivres de Helmholtz e de Gibbs.

    2.5.1 Entalpia - calor de reao

    Vamos considerar um processo quase-esttico, de equilbrio termodinmico,em que um determinado sistema recebe uma quantidade de calor Q e ex-ecuta uma quantidade de trabalho W . Vamos ainda supor que o sistemaseja isotrpico e que no h variao no nmero de moles. Nesse processotemos

    dU = Q pV ; Q = U + pV:Supondo que esse processo quase-esttico (isto , termodinmico) seja

    realizado entre um estado inicial 1 e um estado nal 2, o calor absorvido dado por

    Qa =

    U2U1

    dU +

    V2V1

    pdV: (100)

    Vamos agora supor que esse processo se realize a presso constante (a pressoatmosfrica, p = patm, por exemplo). Nesse caso a segunda integral imedi-ata, e o calor absorvido pelo sistema dado pela expresso

    Qa = (U2 U1) + patm (V2 V1) = (U2 + patmV2) (U1 + patmV1) :

    Essa ltima expresso que sugere a denio da entalpia,

    H = U + pV; (101)

    como funo de estado, cuja variao (entre os seus valores nos estados ter-modinmicos nal e inicial) fornece o calor absorvido em um processo quese realiza a presso constante (por exemplo, no caso de uma reao qumicaocorrendo a presso atmosfrica). Note que as diferenas de calor e de tra-balho dependem do caminho termodinmico. Por outro lado, as diferenasde entalpia e de energia interna (ou de entropia) dependem apenas dos es-tados termodinmicos no incio e no nal de um determinado processo. Nocusta repetir que a energia interna e a entalpia so funes de estado,dependentes apenas do estado termodinmico de um sistema.

    Exemplo

    42

  • Ummol de calcita, CaCO3, transforma-se em aragonita com um aumentoU = 0; 22 kJ na energia interna. Calcule a variao de entalpia quando esseprocesso se realiza a uma presso constante p = 1; 0 bar. As densidades dacalcita e da aragonita so c = 2; 71 g=cm

    3 e a = 2; 93 g=cm3, respectiva-

    mente.Nota: a presso constante temos

    H = (U + pV ) = U + pV:

    Note tambm que nas fases condensadas, exceto a presses muito grandes,podemos praticamente ignorar a diferena entre U e H.

    ExemploCalcule a diferena entre U e H quando um mol de estanho es-

    curo (densidade 5; 75 g=cm3) transforma-se em estanho branco (densidade7; 31 g=cm3) a uma presso de 10; 0 bar.Nota: a presso constante,

    H U = pV:

    Com os dados desse problema, pV 4; 4 J . Consultando uma tabela dedados termoqumicos, encontra-se H 2; 1 kJ a temperartura ambiente(298K). Nesse caso h uma diferena muito pequena entre H e U .

    ExemploA variao de entalpia acompanhando a formao de um mol de NH3

    (na forma gasosa) a partir dos seus elementos H = 46; 1 kJ . Qual avariao da energia interna quando esse processo ocorre a 300 K?Nota: A reao qumica de formao do amonaco (gasoso) dada por

    3

    2H2 +

    1

    2N2 ! NH3;

    com todos os compostos na forma gasosa. Tratando esses componentes comogases ideais, temos

    V = VNH3 (VH2 + VN2) =RT

    p[nNH3 (nH2 + nN2)] =

    RT

    p:

    EntoU = H +RT = 43:62 kJ:

    43

  • 2.5.2 Energia livre de Helmholtz - teorema do trabalho mximo

    A energia livre de Helmholtz denida pela relao

    F = U TS: (102)

    Portanto, num processo quase-esttico temos

    dF = d (U TS) = dU TdS SdT: (103)

    Considerando ainda um uido (sistema isotrpico), com o nmero de molesxo, podemos escrever

    dF = SdT pdV: (104)Vale a pena repetir que essa expresso diferencial, absolutamente conhecidana termodinmica, mostra que o potencial de Helmholtz de um sistema comnmero de moles constante, no equilbrio, funo da temperatura T e dovolume V , isto F = F (T; V ).

    ExemploNo caso de um gs ideal, denido pela equao de estado

    pV = NRT;

    temos

    p =NRT

    V=

    @F

    @V

    T;N

    :

    A partir dessa expresso, temos

    F = NRT lnV + F0 (T;N) ;

    em que F0 (T;N) uma funo que s depende da temperatura e do nmerode moles. Nesse exemplo, foi possvel encontrar explicitamente a forma dadependncia da energia livre de Helmholtz com o volume. Para encontrartambm a funo F0 (T; n) um pouquinho mais difcil - teramos que recorrera outra equao de estado do gs ideal.

    Vamos agora utilizar a desigualdade de Clausius para obter uma pro-priedade importante da energia livre de Helmholtz. De acordo com Clausius,num processo arbitrrio temos

    dS dQT: (105)

    44

  • Usando a expresso diferencial para a conservao da energia,

    dU = dQ pdV; (106)

    temosTdS dU + pdV: (107)

    Vamos agora nos lembrar da denio da energia livre de Helmholtz,

    F = U TS; (108)

    de onde vem a forma diferencial,

    dF = dU TdS SdT; (109)

    ou seja,dU = dF + TdS + SdT: (110)

    Substituindo essa ltima expresso na desigualdade (107), temos

    TdS dF + TdS + SdT + pdV; (111)

    de onde vem quedF SdT pdV: (112)

    H vrias conseqncias dessa ltima desigualdade. No caso particularde temperatura xa (dT = 0), temos

    dF pdV: (113)

    Essa expresso mostra que a variao de F est relacionada com o trabalhorealizado. Numa situao de temperatura constante, o trabalho realizado sempre menor do que a variao da energia livre de Helmholtz do sistema,isto ,

    pdV dF: (114)Note os sinais dessa desigualdade! Note tambm que o trabalho ser mximoquando estiver valendo a igualdade (ou seja, num processo quase-esttico outermodinmico de equilbrio). Essa propriedade da energia livre de Helmholtz conhecida como teorema do trabalho mximo. A prpria denominaoenergia livre, onde livre signica disponvel, est relacionada com esseteorema. Pode-se dizer que a energia livre de Helmholtz a parcela da energiainterna que pode ser transformada em trabalho a uma dada temperatura.

    45

  • 2.5.3 Energia livre de Gibbs - direo dos processos naturais

    A energia livre de Gibbs denida pela relao

    G = U TS + pV: (115)

    Portanto,

    dG = d (U TS pV ) = dU TdS SdT + pdV + V dp: (116)

    Utilizando a expresso do balano de energia, dU = TdS pdV , temos

    dG = SdT + V dp: (117)

    Essa expresso, que tambm muito conhecida, mostra que a energia livrede Gibbs uma funo da temperatura T e da presso p (alm de funo donmero de moles, que por enquanto est xo).Utilizando o princpio de Clausius - e procedendo de maneira anloga ao

    que foi feito na seo anterior para a energia livre de Helmholtz - tambmpodemos deduzir a desigualdade

    dG SdT + V dp; (118)

    com todas as suas conseqncias. A energia livre de Gibbs deve diminuir(dG 0) num processo espontneo (reao qumica, por exemplo) com atemperatura T e a presso p constantes. Em condies de T e p constantes,uma reao qumica somente vai ocorrer de maneira espontnea se G 0.ExerccioUtilize o princpio de Clausius, dS dQ=T , e a denio da energia livre

    de Gibbs para mostrar que dG SdT + V dp.

    ExemploCalcule a variao da energia livre de Gibbs para formar N2O4 (gasoso)

    a partir de NO2 (gasoso) em condies normais de temperatura e presso.Sabe-se que a variao de entropia nessa reao de +175; 8 J=K mol.Note que a energia livre de Gibbs dada por

    G = U TS + pV = H TS:

    EntoG = H TS ST:

    46

  • A temperatura xa, como na situao desse exemplo, temos

    T = 0! G = H TS:

    A variao S da entropia conhecida (atravs de medidas calorimtricas,por exemplo).Para obter a variao da entalpia H vamos fazer uma aplicao de

    um esquema denominado lei de Hess. A entalpia de formao de certoscompostos facilmente encontrada em tabelas de dados qumicos. O NO2(gasoso) formado na reao

    1

    2N2 +O2 ! NO2;

    comH = 33; 2 kJ=mol. Portanto, multiplicando por um fator 2, escrevemos

    N2 + 2O2 ! 2NO2; H = 66; 4 kJ=mol:

    O N2O4 (gasoso) formado na reao

    N2 + 2O2 ! N2O4; H = 9; 2 kJ=mol:

    Levando em conta que a entalpia uma funo de estado, podemos somaressa equao com o inverso da equao anterior, obtendo

    2NO2 ! N2O4; H = 57; 2 kJ=mol:

    que uma expresso da lei fenomenolgica de Hess! Note que essas manipu-laes so justicadas pela aditividade da entalpia (mas tambm da energiainterna ou da entropia), que o pressuposto da lei de Hess.Usando o resultado do item anterior, tambm temos

    N2O4 ! 2NO2; H = 57; 2 kJ=mol;

    em que H tem um sinal positivo! A temperatura ambiente (T = 300K),temos a variao da energia livre de Gibbs,

    G = H TS = 57; 2 103 300 175; 8 = 4; 46 kJ=mol:

    Como a energia livre de Gibbs aumenta (G > 0) essa reao no vai ocorrerespontaneamente. No entanto, aumentando a temperatura possvel mudaro sinal de G a m de provocar a ocorrncia da reao.

    47

  • ExemploMedidas calormtricas mostram que a variao de entropia na oxidao

    do ferro em Fe2O3 (slido) de S = 272 kJ=K mol. Esse processopode ocorrer espontaneamente?A entalpia de formao de ummol de xido de ferro,H 824; 2 kJ=mol,

    associada reao

    2Fe+3

    2O2 ! Fe2O3;

    pode ser obtida em quaisquer tabelas de dados termoqumicos. Levando emconta esse valor, obtemos G 742; 2 kJ=mol.

    2.5.4 Potencial qumico

    Vamos agora considerar um sistema aberto, em que seja possvel variar onmero de moles. Torna-se ento necessrio levar em conta que a funoenergia livre de Gibbs G depende tambm do nmero de moles N (alm dedepender da temperatura T e da presso p). No caso de um uido isotrpico,com um nico componente, temos G = G (T; p;N), que resulta na relaodiferencial

    dG =

    @G

    @T

    p;N

    dT +

    @G

    @p

    T;N

    dp+

    @G

    @N

    T;p

    dN: (119)

    Note que estamos exagerandoa notao das derivadas parciais. A notao(@G=@T )p;N , por exemplo, signica que a derivada est sendo tomada emrelao T , com p e N xos.Como j foi visto na seo anterior,

    @G

    @T

    p;N

    = S;@G

    @p

    T;N

    = V: (120)

    Vamos ento denir o potencial qumico,

    =

    @G

    @N

    T;p

    : (121)

    Com essas denies, a relao diferencial para o potencial de Gibbs podeser escrita na forma

    dG = SdT + V dp+ dN: (122)

    48

  • Exemplo - Potencial qumico do gs idealVamos considerar um gs ideal, denido pela equao de estado pV =

    NRT . A partir dessa equao temos

    V =NRT

    p:

    Considerando a forma diferencial da energia livre de Gibbs, temos

    NRT

    p=

    @G

    @p

    T;N

    :

    Note que a derivada (parcial) tomada com relao presso p, mantendoxos a temperatura T e o nmero de moles N . Ento, a uma dada temper-atura, sempre podemos escrever

    G = NRT ln p+G0 (T;N) ;

    em que G0 (T;N) uma certa funo de T e N apenas.A funo G0 (T;N) no pode, no entanto, ser to arbitrria. Na termod-

    inmica h variveis extensivas, como o volume ou o nmero de moles, evariveis intensivas (campos termodinmicos), como a temperatura ou apresso. Aumentando o tamanho de um sistema termodinmico, as variveisextensivas tambm aumentam na mesma proporo (por exemplo, tripli-cando o sistema, o volume, o nmero de moles e a energia interna, que sovariveis extensivas, tambm triplicam). Os campos termodinmicos, no en-tanto, independem do tamanho do sistema - triplicando um sistema (por ex-emplo, colocando em contato trs sistemas iguais), a temperatura e a pressopermanecem inalteradas. H distines interessantes entre essas duas cate-gorias de variveis termodinmicas. Num fenmeno de coexistncia de fases,como no caso do gelo coexistindo com a gua na forma lquida, os volumes eos nmeros de moles de cada uma das duas fases da gua podem ser muitodiferentes; no entanto, as duas fases coexistem com valores bem denidos datemperatura e da presso. Levando em conta que a energia livre de Gibbsdeve ser extensiva em relao ao nmero de moles, a funo G0 (T;N) temque ser escrita na forma

    G0 (T;N) = Nf (T ) ;

    49

  • em que f (T ) uma funo apenas da temperatura. Portanto, temos

    G = NRT ln p+Nf (T ) ;

    que satisfaz uma propriedade de extensividade,

    G (N) = G (N) ;

    para qualquer valor de . Finalmente, utilizando a denio, podemos escr-ever uma expresso para o potencial qumico de um gs ideal,

    =

    @G

    @N

    T;p

    = f (T ) +RT ln p:

    Note que = (T; p) tem carter intensivo (no depende de N). Notetambm que

    = (T; p) =1

    NG:

    Na realidade, embora tenha sido obtido no contexto de um gs ideal, esseltimo resultado, G = N, uma consequncia da extensividade da energialivre de Gibbs, e tem validade absolutamente geral. curioso notar que os textos de qumica preferem redenir a funo f (T )

    a m de escrever o potencial qumico em termos das variveis de um estadotermodinmico de referncia. Algumas vezes vamos encontrar a expresso

    = (T; p) = g? (T ) +RT lnp

    p?:

    O conceito de potencial qumico tem muita utilidade, principalmente no casode misturas de vrios componentes. Nesse caso, no entanto, necessriodenir um potencial distinto para cada componente, tomando a derivada(parcial) da energia livre de Gibbs em relao ao nmero de moles daqueleparticular componente. H diversas aplicaes desses conceitos, principal-mente em reas de termoqumica ou na nova cincia dos materiais.

    50

  • 3 Elementos de teoria cintica dos gases

    We know today that the actual basis for the equivalence of heat and dynami-cal energy is to be sought in the kinetic interpretation, which reduces all thermalphenomena to the disordered motions of atoms and molecules. From this point ofview, the study of heat must be considered as a special branch of mechanics: themechanics of an ensemble of such an enormous number of particles (atoms or mole-cules) that the detailed description of the state and the motion loses importanceand only average properties of large numbers of particles are to be considered.This branch of mechanics, called statistical mechanics, which has been developedmainly through the works of Maxwell, Boltzmann, and Gibbs, has led to a verysatisfactory understanding of the fundamental thermodynamical laws.

    Enrico Fermi, Thermodynamics, 1936.

    Vamos agora considerar as bases reais da equivalncia entre calor e ener-gia dinmica. As leis da termodinmica so postulados gerais, baseados emevidncias experimentais, de carter fenomenolgico, sem indagaes sobre ocomportamento dinmico de partculas microscpicas. Nesse sentido que osresultados termodinmicos esto sempre corretos, so sempre muito pre-cisos. O prprio Clausius, que um dos pioneiros da teoria cintica, tratoude separar bem as suas publicaes sobre investigaes termodinmicas, em-bora seja provvel que muitas vezes tenha se inspirado em modelos simplesda teoria cintica.O procedimento fenomenolgico e sistematizador da termodinmica no

    capaz de explicar os fundamentos de relaes muito simples, como a equaode estado ou o calor especco do gs ideal. Segundo Fermi, it is some-times rather unsatisfactory to obtain results without being able to see indetail how things really work, so in many respects it is very often convenientto complete a thermodynamical result with at least a rough kinetic inter-pretation.Desse ponto em diante o nosso texto se orienta ento para essa"interpretao cintica", procurando os fundamentos das leis termodinmi-cas" no comportamento mdio de um nmero muito grande de partculasmicroscpicas. Alm disso, com maior dose de esforo, tambm vamos obterresultados para as utuaes estatsticas, associadas ao movimento perenedas partculas microscpicas.

    51

  • 3.1 Modelo de Krnig-Clausius

    The opinion that the observed properties of visible bodies apparently at rest aredue to the action of invisible molecules in rapid motion is to be found in Lucrecius.Daniel Bernouilli was the rst to suggest that the pressure of air is due to theimpact of its particles on the sides of the vessel containing it; but he made verylittle progress in the theory which he suggested .... It is to Professor Clausius thatwe owe the recent development of the dynamical theory of gasses.J. C. Maxwell, Theory of Heat, 1872.

    Em 1857 Rudolf Clausius publicou um artigo nos Annalen der Physik,rapidamente traduzido para o ingls - Phil. Mag. 14, 108 (1857) - com umttulo sugestivo, The Nature of the Motion which we call Heat. Aparente-mente Clausius foi estimulado por trabalho de August Krnig, na mesmalinha, publicado no ano anterior. Clausius relata que j tinha chegado a con-cluses semelhantes sobre o movimento associado ao calor, mas que hesitouem public-las pois eram dedues baseadas num tipo particular de movi-mento ...No modelo de Krnig, adotado por Clausius, as N molculas de mesma

    massa m de um gs movem-se em linha reta, com o mdulo c da velocidadeconstante, dentro de um cubo de lado L e volume V = L3. Essas molculasnunca se chocam entre si, distribuindo-se em seis feixes moleculares, ao longodas direes cartesianas. A presso do gs deve ser provocada pelo choque(elstico) das molculas com as faces do cubo. A velocidade de cada molculaque se choca com uma face do cubo muda de sentido, e o nmero de molculasem cada feixe permanece inalterado.Vamos ento calcular o nmero de partculas que batem numa rea ele-

    mentar A do cubo, ao longo do eixo z, por exemplo, durante o intervalo detempo t,

    N =1

    6

    N

    V(ct)A: (123)

    Note o fator 1=6, pois apenas 1=6 das partculas esto se movendo com ve-locidade ao longo da direo (positiva) do eixo z, com possibilidade de atingiressa rea elementar. Como os choques so elsticos, cada partcula que sechoca transfere uma quantidade de momento 2mc para a face do cubo. Por-tanto, a fora total sobre essa superfcie do cubo dada por

    Ftotal = (2mc)

    1

    6

    N

    V(ct)A

    1

    t; (124)

    52

  • de onde vem a presso

    p =1

    6

    N

    V2mc2: (125)

    Numa linguagem moderna, em termos da temperatura absoluta T e daconstante de Boltzmann kB, a lei dos gases perfeitos", tambm conhecidacomo lei de Boyle ou lei de Boyle-Mariotte, dada por

    pV = NkBT; (126)

    em que N o nmero de partculas (molculas microscpicas) e kB a con-stante de Boltzmann. Esse um dos resultados fenomenolgicos, experimen-tais, mais caractersticos da termodinmica. A lei de Boyle foi estabelecidapara o ar (que um gs razoavelmente diludo) desde o sculo XVII, quandose tornou possvel realizar medidas de presso e temperatura independente-mente.

    Nesse ponto importante notar que estamos introduzindo uma pequenamudana de notao. Nessa e nas prximas sees vamos sempre usar Npara designar o nmero de partculas microscpicas, que uma grandezamais prxima dos clculos da teoria cintica (e da mecnica estatstica).Quando nos referirmos a moles ao invs de molculas microscpicas, vamosescrever a lei de Boyle na forma pV = nRT , em que n o nmero de molese R a constante universal dos gases. Ento temos a relao

    NkB = nR; kB =R

    A; (127)

    em que A o nmero de Avogadro. Vamos adotar os seguintes valores dessasconstantes universais:

    kB = 1; 38::: 1023JK1; A = 6; 02::: 1023mol1: (128)

    Comparando as equaes (125) e (126), temos a equivalncia entre tem-peratura e energia cintica de movimento,

    1

    3mc2 = kBT )

    1

    2mc2 =

    3

    2kBT; (129)

    que constitui o embrio do famoso teorema da equipartio da energia. Apartir dessa equivalncia, decorrem muitos resultados, incluindo a distino

    53

  • entre slidos, lquidos e gases (nos slidos as molculas descrevem apenas vi-braes em torno de posies de equilbrio), e a explicao do calor especco(constante) dos gases (monoatmicos).

    A contribuio de Maxwell consistiu em apontar que o valor c2 devia sersubstitudo por uma velocidade quadrtica mdia,

    c2 =)!v 2 : (130)

    Segundo Maxwell, a hiptese da existncia de apenas seis feixes molecularesera muito restritiva. Maxwell props que as velocidades seriam distribudasentre as partculas de acordo com a lei de distribuio dos erros de observaono mtodo dos mnimos quadrados. As velocidades de um gs podem variarde zero a innito, mas o nmero de partculas com velocidades muito grandes proporcionalmente muito pequeno. Maxwell adota claramente o ponto devista estatstico, apontando que essa a maneira de observar regularidadesdistintas da natureza. Por exemplo, cita as estatsticas na rea de educao,que indicam tendncias baseadas num histograma de notas dos alunos, semque haja necessidade de qualquer identicao pessoal, e que certamente nose aplicam a casos individuais.

    Exerccios

    1- A velocidade do som no ar, a uma temperatura de 27 C, de aproxi-madamente 330 m=s. Compare com a velocidade tpica de uma molcula denitrognio nessas mesmas condies. Levem em conta que um mol de umgs, em condies normais de presso e de temperatura, ocupa um volume de22; 4 litros. Qual a relao desses valores com a constante de Boltzmann?2- Qual a energia interna (em joules) de um mol de argnio a 27 C?

    3.2 Gs de Maxwell

    No seu primeiro trabalho sobre o gs de N partculas, Maxwell supe quecada partcula tem velocidade !v , com componentes cartesianas vx, vy e vz,e que o nmero de partculas com a componente vx entre os valores vx evx + dvx dado por Nf (vx) dvx, em que f (vx) uma funo de vx que deveser determinada. Alm disso, devido isotropia do espao (das velocidades),no deve haver nenhuma razo para que f (vx) seja diferente de f (vy) ou def (vz).

    54

  • Maxwell em seguida argumenta que a existncia de uma componente davelocidade com valor vx no deve afetar o valor das outras componentes carte-sianas da velocidade. Portanto, o nmero de partculas com a componen