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  • Universidade de So Paulo

    2012

    O capital portador de juros em O Capital ou osistema de Marx

    Trans/Form/Ao,v.35,n.2,p.69-91,2012http://www.producao.usp.br/handle/BDPI/38838

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    Biblioteca Digital da Produo Intelectual - BDPI

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    O capital portador de juros

    o CaPital Portador de juroS em o capital ou o SiStema de marx1

    Leonardo Andr Paes Mller2Leda Maria Paulani3

    RESUMO: O presente artigo busca estabelecer o local e a funo do capital portador de juros em O Capital, visando com isso jogar luz sobre a estrutura eminentemente sistemtica desta obra. Deste modo a obra mxima de Marx aparecer muito prxima do idealismo alemo (particularmente de Fichte e Hegel), onde a questo da sistematicidade (da filosofia) foi sentida de maneira mais premente.

    PALAVRAS-CHAVE: Sistema. Crculo. Negao. Valor. Capital. Juros.

    a ComPletude ou o CrCulo do CaPital

    Em sua Doutrina da cincia (Wissenschaftslehre) de 1794, Fichte nos apresenta o problema da completude (Vollstndigkeit).4 Essa doutrina s

    1 Este texto foi desenvolvido no mbito das atividades do CAFIN, grupo de pesquisa em Instituies do Capitalismo Financeiro (com registro no CNPq) e resultado dos desdobramentos da atividade de orientao de Iniciao Cientfica do primeiro autor pela segunda autora. Ele , nesse sentido, parte da pesquisa Dominncia da Valorizao Financeira e Padro Dlar-Dlar, de autoria da segunda autora e financiada pelo CNPq (Bolsa de Produtividade em Pesquisa), investigao, que, em sua primeira parte, busca justamente retomar as discusses em torno dos fundamentos e do lugar do dinheiro e do capital portador de juros, em O Capital, de Karl Marx.2 Economista pela FEA-USP, Mestre em Filosofia pela FFLCH-USP e Doutorando em Filosofia na FFLCH-USP. E-mail: [email protected] Professora Titular do Departamento de Economia da FEA-USP e do Curso de Ps-Graduao em Economia do IPE-USP. Bolsista de Produtividade do CNPq.4 Questo que pode ser remontada a Kant e [...] por si s, resume toda a problemtica da filosofia clssica alem (ARANTES, 2000, p. 360). Sobre essa questo em Kant, ver LEBRUN, 1971 (especialmente o captulo 7). Sobre a relao dessa questo em geral e da Wissenschaftslehre, em particular, com o sistema hegeliano, ver HSLE, 2007 (especialmente o captulo 2).

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    corresponder a seu conceito se esgotar em sua totalidade o saber humano em geral, o que s possvel se seu princpio for esgotado. O esgotamento de um princpio significa que [...] a derivao que ele institui d lugar a um sistema completo: no h proposio verdadeira (ou sacada anteriormente do patrimnio total do saber humano) que no possa ser deduzida no interior do sistema (ARANTES, 2000, p. 361), o que nos indica que podemos tomar [...] o acabamento (Vollendung) da doutrina da cincia como prova positiva de que o sistema est concluso; todas as proposies foram deduzidas no momento em que o princpio de que se partiu reaparece como o resultado ltimo da derivao (ARANTES, p. 361-362).

    A seguinte passagem sintetiza o acima exposto: Um princpio est esgotado quando foi construdo sobre um sistema completo, isto , se o princpio conduz necessariamente a todas as proposies estabelecidas, e todas as proposies estabelecidas reconduzem necessariamente a ele (FICHTE, 1973, p. 26).5 O relevante aqui ressaltar que

    [a] dialtica especulativa far seu esse projeto de completude do sistema do saber e reportar a circularidade da derivao cientfica identificao da progresso da determinao e da fundao retroativa do comeo: a cincia ser um circuito fechado criando-se e dando-se por si mesma seu objeto ou no ser. (ARANTES, 2000, p. 362).

    A hiptese deste artigo, que comea a ser desenvolvida nesta seo, consiste em afirmar que tambm em O Capital encontramos articulada a completude.

    Na primeira seo do Livro I, Marx nos apresenta a gnese do dinheiro a partir da mercadoria. Basta lembrar aqui a dialtica da forma valor em suas trs/quatro figuras: a Forma Simples, Singular ou Acidental de Valor (forma I), a Forma de Valor Total ou Desdobrada (forma II), a Forma Geral de Valor (forma III) e, por ltimo, a Forma Dinheiro (forma IV). Sobre a passagem da forma III forma IV, diz Marx:

    5 O encadeamento das proposies a prova negativa do esgotamento de um princpio, encadeamento que leva prova positiva: A cincia um sistema, ou est perfeita, quando nenhuma proposio mais pode ser inferida: e isto d a prova positiva de que no foi acolhida no sistema nenhuma proposio a menos. Por sua vez, o [...] ndice positivo para provar que, pura e simplesmente, incondicionalmente, nada mais pode ser inferido [...] no poderia ser outro do que verificar que o prprio princpio de que havamos partido tambm o ltimo resultado. Ento ficaria claro que no poderamos ir adiante sem percorrer de novo o caminho j percorrido uma vez (FICHTE, 1973, p. 26).

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    O capital portador de juros

    A forma IV no difere em nada da forma III, a no ser que agora, em vez do linho, possui o ouro a forma de equivalente geral. [...] O progresso apenas consiste em que a forma de permutabilidade direta geral ou forma equivalente geral se fundiu agora definitivamente, por meio do hbito social, com a forma natural especfica da mercadoria ouro. (1983, p. 69, grifo nosso).6

    Na seo II do mesmo Livro, temos a transformao do dinheiro em capital. Tendo mostrado que a circulao simples de mercadorias caracteriza-se pelo ciclo M-D-M, afirma Marx:

    Ao lado dessa forma, encontramos, no entanto, uma segunda, especificamente diferenciada, a forma D-M-D, transformao de dinheiro em mercadoria e retransformao de mercadoria em dinheiro, comprar para vender. Dinheiro que em seu movimento descreve essa ltima circulao transforma-se em capital, torna-se capital e, de acordo com sua determinao, j capital. (MARX, p. 125-126, grifo nosso).

    O movimento percorrido aqui , portanto: mercadoria dinheiro capital, o qual configura o caminho sinttico de apresentao do capital.

    No Livro III de O Capital, Marx focaliza o processo global da produo capitalista, que s pode ser levado a cabo atravs da individualizao do capital global em capitais que atuam em esferas particulares da produo. Esse processo consiste na autonomizao de alguns dos momentos desse movimento de (re)produo em atividades especficas que ficam a cargo de capitais individuais. Esta a base da separao entre as esferas da produo e da circulao: a primeira fica a cargo do capital industrial, a segunda a cargo do capital comercial. O capital industrial a base do modo de produo capitalista. ali que se d a relao fundamental entre capital e trabalho no processo produtivo, por meio da subordinao (formal e material) do ltimo ao primeiro, e gerada a mais-valia que permite ao capital ser esse movimento valorizao do valor.

    [J o] capital comercial ou de comrcio se divide em duas formas ou subespcies, o capital de comrcio de mercadorias e capital de comrcio de dinheiro [...] O capital global sempre se encontra empenhado no movimento dessa passagem, dessa metamorfose formal. medida que essa

    6 As citaes de O Capital so referentes aos cinco volumes da edio da coleo Os Economistas, publicada pela Abril Cultural. Consultamos tambm os volumes 21 a 25 da Werke de Marx e Engels, para o texto em alemo.

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    funo do capital, que se encontra no processo de circulao, passa a ser autonomizada como funo especfica de um capital especfico, fixando-se como uma funo adjudicada pela diviso do trabalho, a uma espcie particular de capitalistas, o capital-mercadoria torna-se capital de comrcio de mercadorias ou capital comercial. (1984c, p. 203).

    Antes de mais, preciso observar que, por no produzir valor exceo feita ao servio do transporte que nele pode estar incluso (MARX, 1984b, p. 42-43; MARX, 1984c, p. 108-110) o capital comercial atua apenas no sentido de diminuir o tempo de circulao das mercadorias, isto , atua no sentido de diminuir a um mnimo possvel os custos de circulao, os faux frais da produo capitalista (MARX, 1984c, p. 211-212). No entanto, esse capital [...] apenas funcionando dentro da esfera da circulao (MARX, 1984c, p. 211) duplica-se, por sua vez em [...] capital de comrcio de mercadorias e em [...] capital de comrcio de dinheiro (MARX, 1984c, p. 221-222). No primeiro, encontram-se todos os capitais relacionados circulao das mercadorias: transportes, estocagem, comrcio (atacadista e varejista) etc.

    Contudo, o que devemos compreender por comrcio de dinheiro? Ora, um comrcio cuja mercadoria seja o prprio dinheiro. Mas como isso possvel? Do capital global se separa agora e se autonomiza determinada parte em forma de capital monetrio, cuja funo capitalista consiste exclusivamente em executar para toda a classe dos capitalistas industriais e comerciais essas operaes, isto , [...] os movimentos puramente tcnicos que o dinheiro realiza no processo de circulao do capital industrial (MARX, 1984c, p. 237).7

    No se trata aqui de uma nova determinao do capital, mas sim do resultado do movimento do capital, qual seja, a plena posio do dinheiro (MARX, 1984c, p. 238). Nesse comrcio de dinheiro, entram tambm a moeda nacional e a moeda internacional, porm, a mercadoria que realmente nos interessa a desenvolvida na seo V do Livro III: a mercadoria-capital (MARX, 1984c, p. 255).

    7 Um pouco mais adiante, na discusso sobre crdito e capital fictcio, Marx observa que, a esse comrcio de dinheiro, para alm da execuo dos movimentos puramente tcnicos que o dinheiro realiza no processo de circulao, liga-se tambm um dos aspectos do sistema de crdito, qual seja, [...] a administrao do capital portador de juros ou do capital monetrio, como funo particular dos comerciantes de dinheiro. [...] [Os banqueiros] tornam-se os administradores gerais do capital monetrio (1984c, p. 303). O outro aspecto do sistema de crdito antes tratado por Marx refere-se ao crdito que os capitalistas se concedem entre si, em determinada cadeia produtiva, e cujos papis constituem a base do dinheiro de crdito.

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    A apresentao dessa mercadoria ser feita na prxima seo. Por ora, cabe retomar o movimento descrito at aqui. Se, no Livro I, o movimento foi da mercadoria ao capital, aqui o movimento inverso: vai-se do capital global para a mercadoria, atravs do dinheiro. na figura do dinheiro (de emprstimo) que o capital se transforma em mercadoria. O movimento aqui , portanto: capital dinheiro mercadoria. Ao contrrio do movimento anterior, sinttico, este analtico, porque resultado da decomposio do capital global em suas partes (indstria e comrcio, comrcio de mercadorias e de dinheiro, dinheiro internacional e nacional, mera compensao financeira de transaes mercantis e dinheiro de emprstimo).8 Eis que a linha se curvou sobre si mesma, e o crculo foi fechado (cf. HEGEL, 1986a, p. 164).

    o Preo ou o juzo infinito da merCadoria9

    Invertendo a lgica iluminista tradicional, na qual a aparncia metafsica e teolgica da realidade esconde um fundamento simples, ordinrio, Marx salienta: primeira vista a mercadoria parece uma coisa trivial, evidente. Analisando-a, v-se que ela uma coisa muito complicada, cheia de sutileza metafsica e manhas teolgicas (MARX, 1983, p. 70).

    Mais frente, ele se pergunta: De onde provm o carter enigmtico do produto do trabalho, to logo ele assume a forma mercadoria?, para responder: Evidentemente, dessa forma mesmo (MARX, 1983, p. 71). Eis o fetichismo da mercadoria, que deriva [...] do carter social peculiar do trabalho que produz mercadoria (MARX, 1983, p. 71).

    8 desse modo que cada passo da progresso na determinao ulterior, na medida em que se afasta do incio indeterminado, tambm uma aproximao regressiva do mesmo, de tal modo que o que inicialmente pode parecer ser distinto, o fundamentar regressivo do incio e o determinar ulterior progressivo do mesmo, recaem um no outro e so o mesmo. O mtodo que com isso se fecha em um crculo no pode, porm, antecipar em um desenvolvimento temporal o fato de que o incio j como tal algo deduzido; para o incio em sua imediatidade suficiente que ele universalidade simples (HEGEL, 1986b, p. 570, grifo do autor).9 Quem desenvolveu a teoria dos juzos de O Capital foi Ruy Fausto. Nela, constam: a) o juzo de reflexo: que indica a passagem do sujeito no predicado (o homem operrio, o homem capitalista, cf. 1983, p. 27-37), caracterstico de juzos onde o sujeito ainda no est plenamente constitudo (ele e no ); b) o juzo de sujeito: que apresenta o movimento (o capital mercadoria, o capital dinheiro, cf. 1983, ibidem), caracterstico de sujeitos j constitudos, j postos; e c) juzo de inerncia: que indica a adequao da matria forma (o dinheiro ouro, cf. 1983, p. 169-170 e o capital sistema mecnico, cf. 2003, p. 123-124). Estamos acrescentando mais um juzo a este rol: o juzo infinito.

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    Todavia, cabe aqui a pergunta: toda mercadoria produto do trabalho? Ou, inversamente, h mercadorias que no so produtos do trabalho? A resposta a esta ltima questo positiva:

    Coisas que em si e para si no so mercadorias, como, por exemplo, conscincia, honra, etc., podem ser postas venda por dinheiro pelos seus possuidores e assim receber, por meio de seu preo, a forma mercadoria. Por isso uma coisa pode, formalmente, ter um preo, sem ter um valor. (MARX, 1983, p. 92, grifo nosso).10

    Vemos, pois, que cabe ao preo operar um verdadeiro milagre: ele garante no somente a [...] possibilidade da incongruncia quantitativa entre preo e grandeza de valor [...] [possibilidade esta que ] inerente prpria forma preo11 , como tambm [...] a forma preo [...] pode encerrar uma contradio qualitativa, de modo que o preo deixa de todo de ser a expresso de valor (MARX, 1983, p. 92), tal qual nos exemplos acima.12

    Na Fenomenologia do Esprito, Hegel apresenta o juzo infinito do esprito: [...] o ser do esprito um osso (2002, 343), e insiste que h dois modos de l-lo. Um prprio a algum [...] que no possui conscincia do que diz (2002, 345) e outro, que surge do primeiro, e propriamente especulativo. O primeiro modo consiste em maquiar [...] esse pensamento com a mesma carncia de pensamento, misturando relaes variadas de causa e efeito, de signo, de rgo, etc., que aqui no tem nenhum sentido dissimulando dessa maneira, por diferenas que delas derivam o chocante dessa proposio (HEGEL, 2002, 345). J a compreenso especulativa consiste em afirmar esse juzo em seu contrassenso: [...] ele deve (soll) ser um juzo, por conseguinte, conter uma relao (Beziehung) entre sujeito e predicado; mas tal relao, ao mesmo tempo, no pode (soll) ser (HEGEL, 1986b, p. 324). De fato, esse juzo exprime [...] a conexo do sublime e do nfimo,

    10 O preo nada mais que o valor de troca expresso no valor de uso da mercadoria que ocupa o lugar de dinheiro: A expresso relativa simples de valor de uma mercadoria [...] na mercadoria que funciona como mercadoria dinheiro [...] a forma preo (MARX, 1983, p. 69). Ele nada mais que [...] a denominao monetria do trabalho objetivado na mercadoria (idem, p. 92). Mais frente, veremos as consequncias desse ser nada mais que.11 O que a torna [...] a forma adequada a um modo de produo em que a regra somente pode impor-se como lei cega da mdia falta de qualquer outra regra (MARX, 1983, p. 92).12 Cabe lembrar que tambm a terra tem um preo, sem ter um valor (j que no produzida pelo trabalho humano). Segundo Marx, seu preo expressaria o montante monetrio resultante da capitalizao, taxa de juros vigente, dos rendimentos futuros que sua propriedade permite esperar.

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    O capital portador de juros

    que no organismo vivo a natureza exprime ingenuamente, na combinao do rgo de sua maior perfeio o da gerao com o aparelho urinrio (2002, 346).

    Analogamente, se digo que a mercadoria produto do trabalho, no esgoto o sujeito, pois, coisas que no so produtos do trabalho tambm podem ser mercadoria. J os juzos a mercadoria conscincia ou a mercadoria honra expressam o outro lado desse osso que o ser da mercadoria, o lado do baralhamento, da confuso, da promiscuidade. Em poucas palavras, atravs do preo, coisas que no so, em si e para si, mercadorias transformam-se em mercadorias. o que ocorre com o capital.13

    o emPrStimo ou a merCadoria CaPital

    Dinheiro considerado aqui como expresso autnoma de uma soma de valor [...] pode na base da produo capitalista, ser transformado em capital e, em virtude dessa transformao, passar de um valor dado para um valor que se valoriza a si mesmo, que se multiplica. Produz lucro, isto , capacita o capitalista a extrair dos trabalhadores determinado quantum de trabalho no pago, mais produto, mais valia, e apropriar-se dele. Assim adquire, alm do valor de uso que possui como dinheiro, um valor de uso adicional, a saber, o de funcionar como capital. Seu valor de uso consiste aqui justamente no lucro que, uma vez transformado em capital, produz. Nessa qualidade de capital possvel, de meio para a produo de lucro, torna-se mercadoria, mas uma mercadoria sui generis. Ou, o que d no mesmo, o capital enquanto capital se torna mercadoria. (MARX, 1984c, p. 255, grifo nosso).

    primeira vista, essa mercadoria, como qualquer outra, no apresenta grandes dificuldades: A parte do lucro que lhe paga [isto , que o muturio paga ao prestamista] se chama juro, e que, portanto, nada mais que um nome particular, uma rubrica particular para uma parte do lucro, a qual o capital em funcionamento, em vez de pr no prprio bolso, tem de pagar ao proprietrio do capital (MARX, 1984c, p. 256, grifo nosso). No entanto, sabemos que

    13 De maneira geral, podemos compreender o advento do modo de produo capitalista como um processo de mercantilizao crescente da vida social. A questo que h alguns bens que, ao serem mercantilizados, operam uma reviravolta na apresentao categorial: o primeiro a fora de trabalho, que opera a posio do capital e traz consigo a categoria salrio; o segundo o prprio capital, de cujas consequncias trataremos a seguir (e traz consigo duas categorias, lucro e juro); j o terceiro, mencionado na nota anterior, mas que no ser objeto de estudo neste artigo, a terra, cuja mercantilizao est intimamente relacionada da fora de trabalho (cercamentos) e que traz consigo a categoria renda.

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    as coisas no so to simples: analisando a mercadoria capital, [...] v-se que ela uma coisa muito complicada, cheia de sutileza metafsica e manhas teolgicas. Partamos da circulao desta mercadoria: D D M D D.

    O emprstimo (movimentos D D e D D) duplica o dispndio do dinheiro como capital (D M D), duplicando tambm o seu retorno: 1) lucro ao capitalista e 2) juros ao prestamista. Aos olhos do prestamista, entretanto, [...] a mediao desapareceu (MARX, 1984c, p. 258) devido [...] natureza peculiar da mercadoria capital e de seu ciclo prprio (D D) (MARX, 1984c, p. 262).

    O movimento caracterstico do capital em geral, o retorno do dinheiro ao capitalista, o retorno do capital a seu ponto de partida, recebe no capital portador de juros uma figura totalmente externa, separada do movimento real de que a forma. [...] O movimento real do dinheiro emprestado como capital uma operao situada alm das transaes entre prestamistas e muturios. Nestas, essa mediao apagada, invisvel, no est diretamente implcita. [...] no caso do capital portador de juros, o retorno bem como a entrega so apenas resultados de uma transao jurdica entre o proprietrio do capital e uma segunda pessoa. Vemos somente entrega e reembolso. Tudo que ocorre de permeio apagado. (MARX, 1984c, p. 262-263, grifo nosso).

    Antes de observarmos mais de perto esse movimento de duplicao a exteriorizao do capital de si mesmo analisemos o juro.

    o juro ou a negao da negao do valor

    Na circulao simples de mercadorias, M-D-M, temos a transformao da mercadoria em dinheiro e a retransformao do dinheiro em mercadoria: vender para comprar. A lei do valor se impe aqui segundo trs regras: 1) o valor de uso a finalidade do movimento; 2) h equivalncia na troca; e 3) a apropriao se d pelo trabalho prprio. Na seo II do Livro I, com a posio do capital, a primeira dessas regras negada:

    O ciclo M-D-M parte do extremo de uma mercadoria e se encerra com o extremo de outra mercadoria, que sai da circulao e entra no consumo. Consumo, satisfao de necessidades, em uma palavra, valor de uso, , por conseguinte, seu objetivo final. O ciclo D-M-D, ao contrrio, parte do extremo do dinheiro e volta finalmente ao mesmo extremo. Seu motivo indutor, sua finalidade determinante , portanto, o prprio valor de troca. (MARX, 1983, p. 127).

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    No entanto, como mostra Fausto (1983), s na seo VII do Livro I, quando Marx apresenta o processo de reproduo capitalista a partir do encadeamento das voltas do capital, que as outras duas regras so negadas.

    Abstraindo toda acumulao, a mera continuidade do processo de produo, ou a reproduo simples, transforma aps um perodo mais ou menos longo necessariamente todo o capital em capital acumulado ou mais valia capitalizada. Se, ao entrar no processo de produo, ele tenha sido propriedade pessoal adquirida mediante trabalho de seu aplicador, mais cedo ou mais tarde torna-se valor apropriado sem equivalente ou materializao, seja em forma monetria ou outra, de trabalho alheio no pago. (MARX, 1984a, p.156, grifo nosso).14

    Com base no encadeamento das voltas do capital, portanto, temos um processo de interverso (Umschlagen) da lei do valor. interverso, porque no se trata de uma inverso trivial, operada externamente, porm, de uma inverso que decorre do funcionamento mesmo da lei, que vem de seu interior, ou seja, o sujeito que opera a inverso da lei a prpria lei.15 Com a posio da fora de trabalho como mercadoria e, pois, com a posio do capital, a lei do valor se completa, quer dizer, a forma valor atinge a prpria substncia do valor, a fora de trabalho, e inicia, desde esse ponto, o processo de interverso da lei, ainda que o resultado de tal interverso s possa ser plenamente percebido pelo

    14 Um exemplo hipottico suficiente: tomemos um capitalista com $150. Num primeiro momento, ele compra fora de trabalho pelo seu valor ($50), a utiliza em conjunto com uma massa de capital constante de $50 e consome $50 para sobreviver. Suponhamos tambm uma taxa de mais valia de 100%. Ao final do primeiro perodo, ele obter um produto de $150. No perodo seguinte, ele novamente compra fora de trabalho por $50, utiliza mais $50 de capital constante, consome $50 e obtm $150. O mesmo movimento, de reproduo simples, pode repetir-se sucessivamente. Note-se que, em determinado momento no nosso exemplo, a partir do quarto ciclo ele ter gasto (consumido) todo seu montante inicial e ter mesmo assim os $50 destinados a seu consumo, cuja origem a mais-valia apropriada sem equivalente.15 Quem chama a ateno para a importncia do termo interverso , mais uma vez, Fausto (1983), para denot-lo no sentido em que aqui o consideramos. Marx o utiliza, na mesma seo VII do Livro I, responsvel pela apresentao da negao total das leis da circulao simples pela produo capitalista. A primeira seo do captulo 22 (A transformao de mais valia em capital), que d conta do processo de reproduo ampliada, denomina-se Kapitalistischer Produktionsproze auf erweiterter Stufenleiter. Umschlag der Eigentumsgesetze der Warenproduktion in Gesetze der kapitalistischer Aneignung (Processo de produo capitalista em escala ampliada. interverso das leis de propriedade da produo de mercadorias em leis de apropriao capitalista a traduo brasileira da edio de O Capital aqui usada consigna, para o termo Umschlag, o termo converso 1984a, p. 163). Na nota 23 do mesmo captulo, citando o livro Richesse ou Pauvret, de Cherbuliez, que faz uma afirmao de mesma natureza sobre a propriedade capitalista, Marx observa: [...] wo jedoch dieser dialektische Umschlag nicht richtig entwickelt wird ([...] onde, entretanto, essa interverso dialtica no desenvolvida de modo correto).

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    encadeamento das voltas do capital, isto , de sua reproduo.16 Na circulao capitalista, todas as trocas particulares seguem a equivalncia e precisamente por causa disso da plenitude e correo desse movimento que o capitalista se apropria de trabalho no pago, valor sem equivalente. Vemos ento que, [...] mesmo na reproduo simples todo o capital adiantado, como quer que tenha sido originalmente obtido, transforma-se em capital acumulado ou mais-valia capitalizada (MARX, 1984a, p. 169). A posio plena da lei do valor, da lei da equivalncia, interverte essa lei e pe essencialmente a no equivalncia, mantendo, todavia, a equivalncia na aparncia, vale dizer, nas transaes individuais entre capitalista e trabalhador.

    Assim, considerado o capital em seu processo de reproduo no importa se simples ou ampliado , todas as trs regras da lei do valor so negadas: 1) a finalidade da produo no a troca de mos de diferentes valores de uso, mas a valorizao do valor;17 2) no movimento global, no h equivalncia, pois a fora de trabalho produz mais-valia; e 3) a apropriao no se d por intermdio do trabalho prprio, mas pela expropriao de trabalho alheio.

    Na seo V do Livro III, por sua vez, Marx nos apresenta o capital portador de juros e dupla negao operada por ele:

    Nunca se deve esquecer que aqui o capital enquanto capital mercadoria ou que a mercadoria de que se trata capital. Todas as relaes que aqui aparecem seriam, portanto, irracionais do ponto de vista da mercadoria simples, ou tambm do ponto de vista do capital, medida que funciona em seu processo de reproduo como capital-mercadoria. (1984c, p. 265).

    Por conseguinte, de ambos os pontos de vista, tanto o da mercadoria (circulao simples) quanto o do capital (reproduo), as determinaes postas pelo capital portador de juros aparecem como irracionais, isto , o capital portador de juros traz consigo determinaes que negam ambos os crculos prvios de O Capital. Continuemos a anlise deste pargrafo central:

    16 Discordamos, todavia, de Fausto, que compreende a posio do capital (seo II do Livro I) como a primeira negao do valor e a reproduo simples (seo VII do mesmo Livro) como a segunda negao (1983, p.186-192; 1987, p. 16-27). Para ns, esse movimento um s e pe apenas a primeira negao do valor (tanto no movimento efetivo quanto na apresentao de Marx). A segunda negao, a negao da negao do valor, como veremos, somente se dar com a posio do capital portador de juros, que Marx apresenta nas sees IV e V do Livro III.17 A finalidade a obteno de mais valia [...] que recebe a forma de uma revenue que provm do capital (MARX,1984a, p. 153).

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    O capital portador de juros

    Emprestar e tomar emprestado, em vez de vender e comprar, aqui a diferena que decorre da natureza especfica da mercadoria capital. Do mesmo modo que o que se paga aqui juro, em vez de preo da mercadoria. Se se quiser chamar o juro de preo do capital monetrio, ento essa uma forma de expresso totalmente irracional de preo, completamente em contradio com o conceito do preo da mercadoria. O preo se reduz aqui a sua forma puramente abstrata e sem contedo, ou seja, ele determinada soma de dinheiro paga por qualquer coisa que, de uma maneira ou de outra, figura como valor de uso; enquanto, segundo seu conceito, o preo igual ao valor expresso em dinheiro desse valor de uso. (MARX, 1984c, p. 265-266, grifo nosso).

    Eis a forma preo em sua manifestao mais pura: ele nada mais que [...] determinada soma de dinheiro paga por qualquer coisa. Note-se:

    Juro como preo de capital de antemo uma expresso totalmente irracional. Aqui uma mercadoria tem duplo valor: primeiro, um valor e, depois, um preo distinto desse valor, enquanto o preo a expresso monetria do valor. O capital monetrio de incio apenas uma soma de dinheiro [...]. Como pode ento uma soma de valor ter um preo alm de seu prprio preo, alm do preo que est expresso em sua prpria forma dinheiro? (MARX, 1984c, p. 266).

    A resposta reside no milagre mesmo da mercantilizao do prprio capital, milagre operado pela forma preo e que poderia ser expresso pelo juzo infinito: a mercadoria capital. Por um lado, essa mercadoria tem um valor que corresponde ao montante do emprstimo, uma determinada quantia de dinheiro que pode (ou no) ser utilizada como capital, isto , que pode ter seu valor de uso consumido. Por outro lado, ela tem um preo, o juro, que representa no um valor, mas a valorizao mesma do capital: [...] o capital se manifesta como capital mediante sua valorizao [...]. A maior ou menor valorizao do capital portador de juros s mensurvel comparando o montante de juros, a parte que lhe cabe do lucro global, com o valor do capital adiantado (MARX, 1984c, p. 266).

    Temos aqui [...] um preo que qualitativamente diverso do valor [e que, portanto,] uma contradio absurda (MARX, 1984c, p. 266, grifo nosso)18, contradio que deve ser afirmada em seu contrassenso mesmo: deve-

    18 O preo pode operar esse milagre exatamente por ser nada mais que [...] a denominao monetria do trabalho objetivado na mercadoria (MARX, 1983, p. 92). Observe-se que no se trata aqui, como no caso da honra, conscincia etc., de algo que no tem valor, mas que pode ter um preo, desde

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    se abandonar a oposio (de um lado..., de outro...) prpria ao entendimento, e afirmar a contradio com todas as letras, como faz Marx. O segredo dessa contradio jaz no valor de uso da mercadoria capital:

    O pressuposto fundamental justamente o de que o dinheiro funcione como capital, e, portanto, como capital em si, como capital potencial, possa ser remetido a outra pessoa. Como mercadoria, o capital, entretanto, aparece aqui na medida em que oferecido no mercado e o valor de uso do dinheiro realmente alienado como capital. E seu valor de uso, porm, produzir lucro. O valor do dinheiro ou das mercadorias como capital no determinado pelo valor que possuem como dinheiro ou como mercadorias, mas pelo quantum de mais valia que produzem para seu possuidor. (MARX, 1984c, p. 266, grifo nosso).

    O juro , pois, esse preo irracional que, diferentemente dos preos de mercado das mercadorias comuns, tem sua grandeza inteiramente determinada pela concorrncia, quer dizer, pelas interaes entre oferta e procura:

    Se procura e oferta se cobrem, o preo de mercado da mercadoria corresponde a seu preo de produo [...]. Mas diferente o que se d com o juro do capital monetrio. A concorrncia no determina aqui os desvios da lei, mas no existe lei alguma de repartio alm da ditada pela concorrncia. (MARX, 1984c, p. 267).19

    E, com isso, temos a negao da negao das trs regras da lei do valor, mas nem por isso um retorno ao idlico mundo da circulao simples que o capital portador de juros nega, tanto quanto o mundo da reproduo capitalista (segunda negao que frequentemente esquecida, quando no completamente ignorada) mas antes, a superao do valor enquanto lei, sua Aufhebung.20 Vejamos uma a uma essas regras. Como j indicado, a primeira regra da circulao simples, e que a posio do capital (transformao da

    que se coloque sob a forma mercantil, mas de algo que tem um valor e que tem um preo, sendo que o segundo se distingue do primeiro no s quantitativamente, como pode ocorrer com qualquer mercadoria, mas tambm qualitativamente. este o absurdo ao qual Marx se refere. 19 Da porque se entende [...] por taxa natural de juros a taxa fixada pela livre concorrncia. No h limites naturais da taxa de juros. Onde a concorrncia no se limita a determinar os desvios e as flutuaes, quando, pois, no equilbrio de suas foras contrapostas cessa toda determinao em geral, o que se trata de determinar em si e para si no regulado por lei e arbitrrio (MARX, 1984c, p. 267). Voltaremos a esse ponto na seo seguinte.20 Voltaremos ao termo mais frente, ainda nesta seo.

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    fora de trabalho em mercadoria) nega, que o valor de uso a finalidade da circulao (j que no circuito D-M-D a finalidade a valorizao do valor). No caso da mercadoria capital, porm, seu valor de uso (a produo potencial de mais valor que ela carrega consigo) volta a ser a finalidade do movimento. Contudo, este est longe de ser um valor de uso trivial, o que deixa claro que o movimento da mercadoria capital, ainda que resgate formalmente a regra do valor de uso como finalidade, suspendendo a interverso ao pr a valorizao do valor como o verdadeiro valor de uso, reinstaura a circulao simples de mercadorias, entretanto, de modo a dar-lhe uma nova determinao (a aparncia de que mercadorias podem valorizar-se espontaneamente).21

    A segunda regra que a posio do capital nega a que afirma a equivalncia na troca (j que, quando a mercadoria fora de trabalho entra em cena, essa equivalncia deixa de existir). Quando a mercadoria em questo o capital, a equivalncia restabelecida. Vimos que o preo se reduz aqui sua forma pura, mera quantidade de dinheiro (o ser nada mais que). Desse modo, qualquer preo se mostra como equivalente, no porque ele no difira do valor, mas exatamente porque no h valor por trs desse preo: qualquer relao ser equivalente, isto , ter um sinal de igual no meio. Para as mercadorias triviais, [...] a verdadeira dificuldade na determinao geral dos conceitos de procura e oferta que esta parece levar a uma tautologia (MARX, 1984c, p. 144); aqui, ao contrrio, no apenas somos levados tautologia, como no h nada alm dela. Isso est intimamente relacionado ao fato de que, [...] no caso do capital portador de juros, tudo aparece como externo (MARX, 1984c, p. 267). Aqui, mais uma vez, o movimento da mercadoria capital resgata a regra da equivalncia, mas se trata de uma equivalncia sui generis, que pe o totalmente arbitrrio (da definio do juro pela concorrncia) como a verdadeira equivalncia.

    A terceira regra, que reza que a apropriao se d pelo trabalho prprio, negada pela posio do capital, porque, no caso da produo capitalista, a apropriao se d por meio da expropriao de trabalho alheio. Ora, no caso da mercadoria capital, o trabalho alheio expropriado vai ao encontro de um capital tambm alheio. Como lembra Marx, o capitalista monetrio [...] faz das poupanas alheias seu capital e do crdito que os capitalistas reprodutivos se do mutuamente e que lhes d o pblico, sua fonte privada de enriquecimento. Assim,

    21 Pense-se nas commodities: caf e soja, por exemplo, tm um valor de uso alimentar, mas adquirem outro, ao serem negociados em bolsas de mercadorias e futuros, o de se autovalorizarem.

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    [...] a ltima iluso do sistema capitalista, a de que o capital fruto de trabalho prprio e de poupana prpria com isso liquidada. No s o lucro consiste na apropriao de trabalho alheio, mas o capital, com que esse trabalho alheio posto em movimento e explorado, consiste em propriedade alheia, que o capitalista monetrio pe disposio do capitalista industrial, e pelo qual ele, por sua vez, explora este ltimo. (MARX, 1984c, p. 43, grifo nosso).

    Portanto, com o capital portador de juros, a terceira regra negada, no porque a apropriao volte a se dar pelo trabalho prprio, mas porque a incongruncia que existia antes entre uma apropriao que se d pelo trabalho de outrem e uma norma que diz que ela deve se dar pelo trabalho prprio deixa de existir, j que o prprio da regra ele mesmo alheio, externo. A mercadoria capital, ainda que no redima o movimento de seu pecado de permitir a apropriao pelo trabalho alheio, fornece a essa operao um ponto de partida que possibilita o bloqueio da interverso e pe o alheio como o verdadeiro do prprio.

    Isso posto, cabe uma observao sobre o tipo de negao do valor que a posio da mercadoria capital opera. Sabemos que Hegel distingue ao menos dois nveis de negatividade, o segundo deles se desenvolvendo em dois subnveis:

    [(1)] a negatividade abstrata (abstrakte Negativitt) que s vezes aparece sob o nome de negao simples (einfache Negation) e [2)] a negatividade absoluta (absolute Negation) que s vezes aparece sob o nome de negao da negao: o resultado especulativo de uma negao determinada. No interior da negatividade absoluta podemos determinar ainda outros dois [sub-]nveis de negao representados pelas [a)] interverses prprias Umschlagen (ou pelas inverses prprias Verkehrung) e pela [b)] superao prpria Aufhebung. (SAFATLE, 2006, p. 132).

    Encontramos esses mesmos dois subnveis em Marx: a primeira negao do valor consiste, como bem salienta Fausto (MARX, 1983, 1997), numa interverso da lei do valor. J a segunda negao apresenta todas as caractersticas de uma verdadeira Aufhebung, que resumidamente podemos definir como uma negao essencialmente dialtica, uma negao contraditria, porque uma negao que conserva: Conservao e reteno so dois termos que demonstram como a Aufhebung , em certo nvel, modo de negao que opera supresses exatamente para poder bloquear as interverses e para poder pr na efetividade uma determinao sem invert-la em seu contrrio (SAFATLE, 2006, p. 135). A mercadoria-capital opera a Aufhebung da lei do

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    O capital portador de juros

    valor: conserva formalmente as regras da circulao mercantil, impedindo que elas passem no seu contrrio, no entanto, o resultado dessa conservao a negao dessas regras de modo mais efetivo do que o faz a mera posio do capital no movimento clssico de sua circulao (o qual igualmente negado). Esse, afinal, o milagre operado pela mercantilizao do capital.

    a exteriorizao do CaPital ou o trabalho do CaPitaliSta

    Ao vender a mercadoria capital, isto , ao emprestar uma soma de dinheiro, [o] capitalista monetrio aliena, de fato um valor de uso e, por isso, o que ele entrega entregue como mercadoria. [...] O lucro esse valor de uso (MARX, 1984c, p. 264). O muturio, por sua vez, consome esse valor de uso, quer dizer, utiliza o montante emprestado para comprar meios de produo e fora de trabalho, ou seja, utiliza-o como capital:

    [...] ambos, prestamista e muturio, despendem a mesma soma de dinheiro como capital. Mas s nas mos deste ltimo ela funciona como capital. [...] Esta [mesma soma de dinheiro] s pode funcionar como capital para ambos mediante repartio de lucro. A parte que cabe ao prestamista chama-se juro. (MARX, 1984c, p. 265).

    Inversamente relao entre trabalho e capital, na qual [...] de sua diferena qualitativa surge a repartio quantitativa do valor produzido [entre capital circulante/salrio e mais-valia] ou mesmo a repartio da mais valia entre lucro e renda, [...] no caso do juro, no acontece nada desse gnero. A, a distino qualitativa surge, ao contrrio, da repartio puramente quantitativa da mesma soma de mais valia (MARX, 1984c, p. 273). Repartio que tem como sua causa a dupla figura do capitalista: [...] na realidade, somente a separao dos capitalistas em capitalistas monetrios e capitalistas industriais que converte parte do lucro em juros e cria, em geral, a categoria do juro; e apenas a concorrncia entre essas duas espcies de capitalistas que cria a taxa de juros (MARX, 1984c, p. 277).22 A pergunta que cabe responder, portanto,

    [...] como essa diviso puramente quantitativa do lucro em lucro lquido e juro se transforma em qualitativa? Em outras palavras, como explicar que tambm o capitalista que emprega apenas capital prprio e nenhum

    22 No h espao aqui para analisar a relao entre taxa de lucro e de juros. Vale lembrar, porm, que [...] a taxa de juros se relaciona com a taxa de lucro da mesma maneira que o preo de mercado com seu valor (MARX,1984c, p. 273).

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    emprestado classifique parte de seu lucro bruto na categoria particular de juro e, como tal, a calcule separadamente? E que, portanto, ainda mais, todo capital, emprestado ou no, distinguido como portador de juros de si mesmo, proporcionando lucro lquido? (MARX, 1984c, p. 278).

    A resposta reside no fato de que os capitalistas monetrio e funcionante no se confrontam apenas [...] como pessoas juridicamente diversas, mas como pessoas que desempenham papis totalmente diversos no processo de reproduo [...]. Um apenas o empresta, o outro o emprega de forma produtiva (MARX, 1984c, p. 279)23. Do ponto de vista do capitalista funcionante, do capital dentro do processo de produo,

    [...] em contraste com o juro que ele tem de pagar ao prestamista, a partir do lucro bruto, a parte restante, que lhe cabe, do lucro, toma, portanto, necessariamente a forma de lucro industrial [...] [ou] comercial, ou para design-lo com uma expresso alem que abrange a ambos, a figura do Unternehmergewinn (ganho empresarial). (MARX, 1984c, p. 279).

    Desse modo, [...] na forma do juro essa anttese ao trabalho assalariado est apagada; pois o capital portador de juros como tal tem como sua anttese no o trabalho assalariado, mas o capital funcionante; o capitalista prestamista como tal confronta diretamente o capitalista realmente funcionante no processo de reproduo [...] O capital portador de juros o capital enquanto propriedade em confronto com o capital enquanto funo. Mas, medida que o capital no funciona, ele no explora os trabalhadores nem entra em antagonismo com o trabalho. (MARX, 1984c, p. 283, grifo do autor).

    Vemos assim como o capital, ao se exteriorizar de si mesmo, contraditoriamente internaliza a anttese que o constitui: o conflito social se desloca do trabalho morto frente ao trabalho vivo (relao capital-trabalho), para o confronto entre capital financeiro (capital enquanto propriedade) versus capital produtivo (capital enquanto funo): [...] o ganho empresarial

    23 O aplicador do capital, mesmo que trabalhe com capital prprio, se decompe em duas pessoas, o mero proprietrio do capital e o aplicador do capital; seu capital mesmo, com relao s categorias de lucro que proporciona, se decompe em propriedade do capital, capital fora do processo de produo, que proporciona juro em si, e capital dentro do processo de produo, que como processante

    proporciona ganho empresarial (MARX, 1984c, p. 280-281, grifo do autor).

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    O capital portador de juros

    no constitui anttese ao trabalho assalariado, mas apenas ao juro (MARX, 1984, p. 283)24. Assim,

    [...] o capitalista industrial, enquanto diferenciado do proprietrio do capital aparece, portanto, no como capitalista funcionante, mas como funcionrio tambm abstrado do capital, como simples portador do processo de trabalho em geral, como trabalhador, e precisamente, como trabalhador assalariado25[...] Ele cria mais valia no porque trabalha como capitalista, mas porque, abstrada sua condio de capitalista, ele tambm trabalha. (MARX, 1984c, p. 285).

    Ao atingir sua forma mais exteriorizada (uberlichste) e mais fetichista (fetischartigste), a relao de capital assume a forma [...] D D, dinheiro que gera mais dinheiro, valor que se valoriza a si mesmo, sem o processo que medeia os dois extremos (MARX, 1984c, p. 293). Aqui,

    [...] na forma do capital portador de juros, portanto, este fetiche automtico est elaborado em sua pureza, valor que valoriza a si mesmo, dinheiro que gera dinheiro, e ele no traz nenhuma marca de seu nascimento. A relao social est consumada como relao de uma coisa, do dinheiro, consigo mesmo. Em vez da transformao real do dinheiro em capital aqui se mostra apenas sua forma sem contedo. (MARX, 1984c, p. 294).

    A separao plena entre funo e propriedade alcanada pela exteriorizao/alienao (Veruberlichung)26 do capital de si mesmo: lado a lado, encontram-se capital funcionante e capital portador de juros. Contraditoriamente, completa-se assim o movimento de internalizao iniciado com a concorrncia intercapitalista. Ali, [...] o capital se relaciona consigo mesmo (MARX, 1984c, p. 37) atravs da taxa de lucro, [...]

    24 Ao capitalista funcionante [...] a explorao do trabalho produtivo custa esforo, quer ele mesmo a execute quer ele a faa executar por outros, em seu nome. Em anttese ao juro, seu ganho empresarial se apresenta a ele, portanto, como independente da propriedade de capital, muito mais como resultado de suas funes enquanto no-proprietrio, enquanto trabalhador (MARX, 1984c, p. 284).25 Eis outro juzo infinito: [...] o capitalista trabalhador assalariado. Tudo se passa como se o capitalista funcionante apenas efetua[sse] outro trabalho que o do trabalhador, de modo que o trabalho de explorar e o trabalho explorado so, ambos, enquanto trabalho, idnticos (MARX, 1984c, p. 286).26 Este termo bem traduzido na edio brasileira por alienao. Todavia, deve ser ressaltado que se trata de alienao no sentido de venda, no no sentido da Entfremdung. No entanto, cremos que a argumentao do captulo de O Capital aqui utilizado (captulo XXIV do Livro III) nos permite compreend-lo como fazendo referncia duplicao do capital (real e monetrio), portanto, sua exteriorizao de si mesmo.

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    MLLER, L. A. P.; PAULANI, L. M.

    portanto, o excedente, para falar com Hegel, se reflete em si mesmo a partir da taxa de lucro (ibidem). Falemos, pois, com Hegel. A reflexo momento da essncia, essncia (mais valia) que, necessariamente aparece (lucro) e que, ao refletir-se sobre si mesma, toma conscincia de si mesma e pe-se como fundamento:

    Na produo capitalista [...] trata-se, pois, de vender as mercadorias a preos que, pelo menos, proporcionem o lucro mdio, isto , aos preos de produo. Dessa forma, o capital se torna consciente de si mesmo, como uma fora social, em que cada capitalista participa proporcionalmente sua parcela no capital global da sociedade. (MARX, 1984c, p. 149-150, grifo nosso).

    Contudo, com a concorrncia intercapitalista, temos apenas o primeiro momento desse movimento. A essncia deve ser internalizada pelo conceito, o que nos termos de O Capital se traduz pela oposio da concorrncia intercapitalista ao capital monetrio, isto , pelo desvanecimento dos limites entre (re)produo e circulao os dois crculos inferiores e por sua plena posio como capital monetrio:

    No mercado monetrio confrontam-se apenas prestamistas e muturios. A mercadoria tem a mesma forma, dinheiro. Todas as formas especiais do capital, conforme seu investimento em esferas particulares da produo ou da circulao, esto aqui apagadas. O capital existe aqui na figura indiferenciada, igual a si mesma, do valor autnomo, do dinheiro. A concorrncia entre as esferas particulares cessa aqui; todas elas so confundidas como muturios de dinheiro, e o capital as confronta todas tambm na forma em que ele indiferente maneira especial de seu emprego. Como aquilo que o capital industrial s aparenta no movimento e na concorrncia entre as esferas particulares, como capital comum em si de uma classe, ele surge, aqui de fato, com toda fora, na procura e oferta de capital. (MARX, 1984c, p. 275-276, grifo nosso).

    O capital portador de juros corresponde, portanto, plena posio do conceito capital ou, dizendo de outra forma, apenas com a posio do capital como capital portador de juros que o conceito capital est plenamente desenvolvido.27 Ele existe de fato no em sua configurao individual, em que o

    27 Exatamente por isso [...] o capital portador de juros representa, na imaginao popular, a forma do capital par excellence [...], [pois nele] apresenta-se o carter auto reprodutor do capital, o valor que se valoriza, a produo que se valoriza, a produo de mais valia como qualidade oculta, em estado puro (MARX, 1985, p. 118).

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    O capital portador de juros

    lucro acidental, tampouco em sua existncia como fora social, como capital global, clivado pela concorrncia, mas antes em sua existncia apartada do processo de produo, enquanto figura indiferenciada e abstratamente igual a si mesma, figura que engloba seu outro (o capital industrial) como momento de seu movimento de autovalorizao. Com ao menos uma diferena frente dialtica hegeliana: o capital portador de juros o fetiche em sua forma mais desenvolvida. O capital agora coisa, mas enquanto coisa capital (Das Kapital ist jetzt Ding, aber als Ding Kapital) (MARX, 1984c, p. 295).28 O que ali era autoposio do conceito, aqui autoposio do fetiche.29

    o PrinCPio de CaPitalizao ou a aParnCia CaPitaliSta

    O capital portador de juros opera a Aufhebung do valor, ao internalizar tanto a esfera da circulao quanto a esfera de produo do capital. Ele pode assim faz-lo porque tem, no corpo do dinheiro, a matria adequada pura forma que . No dinheiro esse termo mdio da circulao (M-D-M) que possibilita a inverso do ciclo e a posio do capital (D-M-D) e que opera a sntese destes dois momentos, ao ser emprestado se manifestaro, por conseguinte, as consequncias da posio do capital como capital portador de juros. Caber aqui estabelecer a diferena entre dinheiro enquanto dinheiro e dinheiro enquanto capital (moneyed capital)30, vale dizer, apontar quais as caractersticas do dinheiro nesta nova posio.

    A questo central aqui que [...] a forma de capital portador de juros faz com que cada rendimento monetrio determinado e regular aparea como juro de um capital, quer provenha de um capital ou no (MARX, 1984c, p. 10). Some-se a isso a possibilidade de transferncia da propriedade e teremos o

    28 A nosso ver, a orao deve ser lida: O capital agora coisa, mas, enquanto coisa, capital, com as vrgulas enfatizando a coisidade do capital portador de juros (uma redao mais direta seria simplesmente: [...] o capital portador de juros o capital enquanto coisa). Alis, no custa lembrar a primeira pgina de O Capital: A mercadoria , primeira vista, um objeto externo, uma coisa, [...] (1983, p. 45). Afirmamos, mais uma vez: o crculo se fechou.29 Ser esta a apreenso correta da colocao de Marx no posfcio segunda edio de O Capital, na qual ele pe sua dialtica como a anttese direta da dialtica hegeliana? Hiptese sedutora, afinal, [a] mistificao que a dialtica sofre nas mos de Hegel no impede, de modo algum, que ele tenha sido o primeiro a expor as formas gerais de movimento, de maneira ampla e consciente. necessrio invert-la, para descobrir o cerne racional dentro do invlucro mstico (MARX, 1983, p. 20-21).30 No movimento de reproduo do capital, o capital monetrio uma das formas do capital, ao lado do capital mercadoria e do capital produtivo. Aqui, ao contrrio, ele se confunde com o capital portador de juros.

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    MLLER, L. A. P.; PAULANI, L. M.

    que Marx denomina capital fictcio; capital que, no obstante ser fictcio, [...] tem seu prprio movimento (MARX, 1984c, p. 10).

    A formao do capital fictcio chama-se capitalizao31 e, com ele, [...] toda a conexo com o processo real de valorizao do capital se perde assim at o ltimo vestgio, e a concepo de capital como autmato que se valoriza por si mesmo se consolida. Estamos aqui, pois, no puro reino das aparncias: O movimento autnomo do valor destes ttulos de propriedade [...] confirma a aparncia, como se eles constitussem capital real ao lado do capital ou do direito ao qual possivelmente dem ttulo. que se tornam mercadorias cujo preo tem um movimento e uma fixao peculiares32 (MARX, 1985, p. 11, grifo nosso).

    No limite, todo valor empregado no processo de produo (capital funcionante) teria no mercado de aes um duplo, um ttulo que garante a sua propriedade, mas que tambm pode ser negociado (idem, p.14). Isso implica que seu movimento determinado no mais pela acumulao real de valor (mediada pela produo e circulao de mercadorias), porm, pela acumulao de preos (mediada pela circulao de ttulos de toda ordem). nesse contexto que as crises financeiras assumem seu sentido pleno: assim que estoura uma [...] dessas bolhas de sabo de capital monetrio nominal (MARX, 1985, p. 13), [...] a procura por capital de emprstimo procura de meios de pagamento e nada mais e, por sua vez, [...] a procura de meios de pagamentos mera procura de conversibilidade em dinheiro (MARX, 1985, p. 48). Momento, portanto, em que os crculos subordinados (circulao de mercadorias e (re)produo capitalista) voltam tona, e com eles suas determinaes: o dinheiro volta a ser procurado como mero meio de pagamentos e no mais como mercadoria-capital; as mercadorias voltam a ser negociadas com base em seu valor de uso original. Em suma, o que exposto violentamente na crise a unidade do sistema (1983, p. 100), em que o capital portador de juros [...] o todo [que] se apresenta como um crculo de crculos, cada um dos quais um momento necessrio, de modo que o sistema de seus elementos prprios constitui a idia completa que igualmente

    31 De maneira geral, o capital fictcio surge sempre que [...] na concepo do banqueiro, dvidas podem aparecer como mercadorias (MARX, 1985, p. 10).32 Os preos desses ttulos (capital fictcio) so determinados: 1) pelo montante dos rendimentos; 2) pela segurana dos rendimentos; e 3) pela especulao, alm de variarem supostos estes trs constantes na [...] razo inversa da taxa de juros (1985, p. 12), o que constitui a forma de manifestao dessa relao antittica entre os dois tipos de capitalistas.

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    O capital portador de juros

    aparece em cada elemento singular33 (HEGEL, 1995, 15, grifo nosso). Terceiro crculo onde a imediaticidade restaurada atravs da posio de uma aparncia eminentemente capitalista, onde mercadorias seriam capazes de valorizar-se espontaneamente.34

    Todavia, a crise acaba por expor tambm a diferena fundamental entre os sistemas idealistas (especialmente o de Hegel) e o de Marx: a liberdade que a crise abala e que sustenta O Capital a da mercadoria liberdade que se manifesta numa crescente (mas, como a crise demonstra, nunca absoluta) autonomizao do produto do trabalho perante seu produtor (PAULANI, 2009) e no a do pensamento. Eis o nico enfoque em que falar de dialtica materialista faz sentido.35

    33 Uma questo que, por motivos de espao, no pde ser includa no presente artigo a relao entre capital portador de juros e capital usurrio, a qual nos levaria diretamente questo da relao entre sistema e histria, lgica e contingncia.34 No estar a a conexo do sublime e do nfimo, operada por Keynes? Recuperemos a discusso sobre taxa de juros que ele faz, no famoso captulo 17 de sua Teoria Geral: A taxa monetria de juros queremos chamar a ateno do leitor outra coisa no que a percentagem de excedente de uma soma de dinheiro contratada para a entrega futura, por exemplo, a um ano de prazo, sobre o que podemos chamar o preo spot ou vista da dita soma contratada para a entrega futura. Parece, portanto, que para cada categoria de bens de capital deveria existir uma taxa anloga do juro sobre o dinheiro. Pois h uma quantidade definida de (por exemplo) trigo para ser entregue dentro de um ano, que tem hoje o mesmo valor de troca de 100 quartos de trigo para a entrega imediata. Se a primeira quantidade de 105 quartos, podemos dizer que a taxa de juros do trigo de 5% ao ano, e se 95 quartos, dizemos que menos de 5% ao ano. Assim para cada bem durvel temos uma taxa de juros calculada em termos do prprio bem uma taxa de juros do trigo, uma taxa de juros do cobre, uma taxa de juros da habitao, uma taxa de juros de uma usina siderrgica (KEYNES, 1983, p. 157). A singularidade do pensamento de Keynes consistiria no fato de ele partir da imediaticidade reconstruda: a mercadoria tanto ponto de partida como ponto de chegada, porm, ao final do trajeto ela adquiriu um valor de uso prprio mercadoria capital (a sua taxa natural de juros). Uma posio que exclusiva da mercadoria sagrada e absoluta (dinheiro) adere, com isso, s mercadorias banais. Este parece ser tambm o sentido da passagem em que Marx conceitua o que poderamos, anacronicamente, denominar capital humano: A loucura da concepo capitalista atinge a seu pice: em vez de explicar a valorizao do capital pela explorao da fora de trabalho, , ao contrrio, a produtividade da fora de trabalho que explicada pela circunstncia de que a prpria fora de trabalho esta coisa mstica, capital portador de juros (1985, p. 11). A loucura que Marx apontava para a fora de trabalho se estende para todo o mundo das mercadorias.35 Por meio da passagem para o primado do objeto, a dialtica se torna materialista (ADORNO, 2009, p. 165).

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    ABSTRACT: The present article seeks to establish the place and function of monetary capital (Zinnstrgende Kapital) in Marxs Capital, with the aim of illuminating the systematic structure of this work. In this way, Marxs great work shows itself to be very close to German Idealism (mainly Fichte and Hegel), where the question of (philosophical) systematicity was felt most vividly.

    KEYWORDS: System Circle. Negation. Value. Capital. Interest.

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    Recebido em: 04.02.2011Aceito em: 30.10.2011