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To embody a right in an entrenched constitutio- nal document is to adopt a certain attitude towards one’s fellow citizens. That attitude is best summed up as a combination of self-assurance and mistrust: self-assurance in the proponent’s conviction that what he is putting forward really is a matter of fundamental right and that he has captured it adequately in the particular formula- tion he is propounding; and mistrust, implicit in his view that any alternative conception that might be concocted by elected legislators next year or in ten years’ time is so likely to be wrong-hea- ded or ill motivated that his own formulation is to be elevated immediately beyond the reach of ordi- nary legislative revision. Jeremy Waldron, Law and disagreement Introdução Um dos aspectos mais evidentes e contro- versos da democracia brasileira contemporânea diz respeito ao fato de que a nossa Constituição, promulgada em outubro de 1988, não adquiriu até o momento as condições de estabilidade e permanência que normalmente caracterizam os textos constitucionais. Observando-se a dinâmica política e a pro- dução legislativa pós-1988, é possível afirmar, sem exagero, que o país permaneceu numa espé- cie de agenda constituinte, como se, paradoxal- mente, o processo de reconstitucionalização não houvesse se encerrado em outubro daquele ano (Couto, 1997, 1998). Por razões que este texto pretende elucidar, o fato é que os governos pos- teriores a 1988 se viram obrigados a desenvolver boa parte de sua produção normativa ainda no plano constitucional, isto é, por meio de modifi- cações, acréscimos e/ou supressões de dispositi- CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL * Cláudio Gonçalves Couto Rogério Bastos Arantes * Para a realização desta pesquisa, os autores conta- ram com o auxílio do CNPq e da PUC-SP. RBCS Vol. 21 nº. 61 junho/2006 Artigo recebido em janeiro/2005 Aprovado em fevereiro/2006

CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL · To embody a right in an entrenched constitutio-nal document is to adopt a certain attitude towards one’s fellow citizens. That

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To embody a right in an entrenched constitutio-nal document is to adopt a certain attitudetowards one’s fellow citizens. That attitude is bestsummed up as a combination of self-assuranceand mistrust: self-assurance in the proponent’sconviction that what he is putting forward reallyis a matter of fundamental right and that he hascaptured it adequately in the particular formula-tion he is propounding; and mistrust, implicit inhis view that any alternative conception thatmight be concocted by elected legislators next yearor in ten years’ time is so likely to be wrong-hea-ded or ill motivated that his own formulation is tobe elevated immediately beyond the reach of ordi-nary legislative revision.

Jeremy Waldron, Law and disagreement

Introdução

Um dos aspectos mais evidentes e contro-versos da democracia brasileira contemporâneadiz respeito ao fato de que a nossa Constituição,promulgada em outubro de 1988, não adquiriuaté o momento as condições de estabilidade epermanência que normalmente caracterizam ostextos constitucionais.

Observando-se a dinâmica política e a pro-dução legislativa pós-1988, é possível afirmar,sem exagero, que o país permaneceu numa espé-cie de agenda constituinte, como se, paradoxal-mente, o processo de reconstitucionalização nãohouvesse se encerrado em outubro daquele ano(Couto, 1997, 1998). Por razões que este textopretende elucidar, o fato é que os governos pos-teriores a 1988 se viram obrigados a desenvolverboa parte de sua produção normativa ainda noplano constitucional, isto é, por meio de modifi-cações, acréscimos e/ou supressões de dispositi-

CONSTITUIÇÃO, GOVERNO EDEMOCRACIA NO BRASIL*

Cláudio Gonçalves CoutoRogério Bastos Arantes

* Para a realização desta pesquisa, os autores conta-

ram com o auxílio do CNPq e da PUC-SP.

RBCS Vol. 21 nº. 61 junho/2006

Artigo recebido em janeiro/2005Aprovado em fevereiro/2006

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vos localizados na própria Carta. Tomar decisõese implementar políticas governamentais são ativi-dades que, no Brasil pós-1988, não lograramadquirir uma rotina apenas infraconstitucional.Pelo contrário, boa parte dessas atividades tevelugar no nível superior da hierarquia legislativa,ou seja, na própria Constituição.

À parte o fato de nossa história constitucio-nal ser marcada pela instabilidade (estamos naoitava constituição desde a Independência dopaís, e a durabilidade média das Cartas, desconsi-derados os diferentes tipos de regime que as ense-jaram, é pouco maior do que duas décadas), otexto de 1988 parecia refletir um novo estágio dematuridade política e de longevidade institucional,coroando e habilitando ao pleno desenvolvimen-to a democracia recém-conquistada, desta feita,em bases aparentemente mais sólidas do que emperíodos anteriores. No entanto, passada a euforiainicial, também a Carta de 1988 cedeu aos velhossignos da instabilidade e da reforma, e aquele queparecia um texto definitivo, capaz de encerrar umafase da história política do país e dar início a outracom chances de longa durabilidade, foi submetidoa freqüentes modificações.

No debate público, as alterações na Constitui-ção de 1988 foram e têm sido defendidas e com-batidas ao sabor do jogo político e das forças emdisputa. Entre os analistas, entretanto, não se avan-çou muito além da análise de tipo conjuntural;quando muito, tais alterações foram interpretadas àluz dos processos mais amplos de reforma econô-mica ou do Estado que marcaram os anos de 1990,mas não logramos desenvolver uma explicação dasrazões mais específicas das mudanças constitucio-nais. O objetivo central desse texto é suprir estalacuna e oferecer um modelo de análise capaz deexplicar por que a Constituição de 1988 não adqui-riu a estabilidade esperada e o país permaneceunuma espécie de agenda constituinte.

Nosso modelo de análise da Constituiçãobuscará determinar em que medida ela contém dis-positivos que podem ser classificados como princí-pios fundamentais ou dispositivos que mais seassemelham a políticas públicas, e dessa distinçãovárias conseqüências de ordem política e institu-cional poderão ser derivadas. O modelo aquidesenvolvido já foi aplicado preliminarmente emestudo anterior (Couto e Arantes, 2003), no qual

avaliamos se as emendas constitucionais aprovadasdurante os governos de Fernando Henrique Cardoso(1995-1998; 1999-2002) incidiam mais sobre políticaspúblicas ou sobre princípios propriamente constitu-cionais. Verificamos naquele trabalho que 68,8%dos dispositivos integrantes das emendas constitu-cionais aprovadas durante o período FHC corres-pondiam a políticas públicas. Diante de tal mon-tante e do fato de que a maior parte das emendasconstitucionais fora de iniciativa do Executivo,poderíamos nos questionar: o que levaria um gover-no a implementar sua agenda de políticas públicasmodificando a Constituição, em vez de fazê-lo pelavia infraconstitucional?

A pergunta é pertinente, considerando-seque os procedimentos necessários à aprovação deemendas constitucionais são muito mais exigentesdo que aqueles requeridos para leis ordinárias oumesmo para a legislação complementar. Sendoassim, nenhum governo buscaria implementar suaagenda, lançando mão de tal expediente, se nãofosse realmente obrigado a fazê-lo.1 Uma das pos-síveis razões para tal escolha poderia ser a exi-gência, pelos parlamentares, de que determinadasmudanças ocorressem pela via constitucional – tal-vez como forma de dar guarida a determinadasdecisões ao constitucionalizá-las. Outro motivo, anosso ver mais plausível, é a existência de impedi-mentos constitucionais à implementação de algumaspolíticas pelo governo. Ou seja, se a Constituiçãodetermina certas políticas públicas, implementaralternativas a elas exigirá – necessariamente – amodificação da Carta. No caso da maior parte dasemendas promovidas pelo governo FHC, foi istode fato o que se verificou.

É necessário, entretanto, além de analisar asemendas, avaliar o próprio texto constitucional ori-ginário, com vistas a identificar o peso de cada umdos tipos de dispositivos constitucionais existentese, considerando-se sua natureza, aferir se foram ounão emendados pelos governos subseqüentes.

A maneira como distinguimos diferentestipos de dispositivos no interior da Carta deve serexplicada, a fim de que não pareça arbitrária.Para tanto, na seção que se segue, apresentamosos fundamentos teóricos da Metodologia deAnálise Constitucional (MAC), por nós desenvol-vida. Essa discussão reproduz em parte a seçãometodológica de nosso trabalho de 2003, supra-

CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 43

mencionado. Contudo, tendo em vista que reali-zaremos neste texto uma nova aplicação da MAC,julgamos por bem reapresentá-la, incorporandotambém algumas modificações à versão original,advindas do desenvolvimento da própria pesqui-sa desde então.

O problema constitucional brasileiro:reformas (não necessariamente)constitucionais

A hipótese mais usual sobre a permanênciade uma agenda constituinte no Brasil pós-1988(comprovada pela intensa atividade de reforma dotexto constitucional nesse período) afirma que aConstituição teria caducado logo após seu nasci-mento, isto é, o texto teria sofrido de um envelhe-cimento súbito, como se tivesse mais a ver com opassado do país do que com o presente. Esse des-compasso seria especialmente perceptível dianteda agenda de reformas estruturais do Estado e dosistema econômico que, gradualmente, foi-seimpondo ao país como necessária para a desejadaestabilização da economia e a retomada do desen-volvimento em novas bases. Nesse sentido, o fatode a atividade governamental ter continuado aocorrer no plano constitucional seria conseqüên-cia de uma incompatibilidade substancial entre oconteúdo da Carta de 1988 e os desafios que anova realidade econômica e política, nacional einternacional, passou a impor ao país.

Desde a promulgação do texto constitucional,vozes dissonantes levantaram-se contra a Carta,acusando-a de constituir, no plano econômico, umobstáculo à modernização do país e, no plano polí-tico, um desastre do ponto de vista da governabili-dade. Assim, a Constituição escrita sob a égide da“remoção do entulho autoritário” do regime militarpós-64 ter-se-ia tornado ela mesma – e muito rapi-damente – uma espécie de “entulho nacional-desen-volvimentista”, que precisaria ser removido parapermitir a implementação das chamadas reformasorientadas para o mercado.

Na perspectiva dessa hipótese substantiva,desde José Sarney (1985-1990) e sobretudo comFernando Collor (1990-1992), questões funda-mentais do Estado e do modelo econômico noBrasil começaram a ser levantadas e o novo regi-

me constitucional logo foi atacado por seu ana-cronismo, mal tinha ele nascido. Com FernandoHenrique Cardoso (1995-2002), essa hipótese so-bre uma incompatibilidade substancial entre aCarta e os novos desafios estruturais evidenciou-se na formação de uma ampla coalizão de gover-no que, diferentemente do pouco sucesso de seusantecessores, conseguiu implementar um conjun-to importante de alterações na Constituição.

Este texto não explora essa hipótese – queinveste na incompatibilidade substantiva entre aCarta de 1988 e a agenda de reformas dos anos de1990 –, pois desejamos mostrar uma outra dimensãodo problema constitucional brasileiro. Para além deeventuais anacronismos legados pela Constituição,nosso objetivo é demonstrar que ela nos legou umpeculiar modus operandi de produção normativa,com conseqüências significativas para o funciona-mento da democracia brasileira. Nesse sentido,nossa hipótese é mais formal do que substantiva,pois se refere ao modo pelo qual o processo deci-sório e governamental vem-se dando no Brasil.Importa-nos pouco o conteúdo concreto das agen-das de governos específicos. Comprovando-senossa hipótese, a conclusão necessária será que,enquanto vigorar a Carta de 1988 em seus moldesatuais, independentemente do conteúdo de políti-cas governamentais específicas, levadas à esquer-da ou à direita, por progressistas ou conservado-res (ou qualquer outra denominação ideológicaque se queira dar), a atividade de governo noBrasil seguirá ocorrendo em grande medida noplano constitucional, e estaremos fadados a umadinâmica constituinte permanente, incapaz de pôrum ponto final no processo iniciado em 1988.

Nosso argumento principal é de que a Cartabrasileira de 1988 se caracteriza por ter constitu-cionalizado formalmente diversos dispositivos queapresentam, na verdade, características de políti-cas governamentais com fortes implicações para omodus operandi do sistema político brasileiro. Emprimeiro lugar, a constitucionalização de políticaspúblicas faz com que os sucessivos governantes sevejam diante da necessidade de modificar o orde-namento constitucional para poder implementarparte de suas plataformas de governo. Em segundolugar, construir amplas maiorias legislativas passa aser condição básica para superar o engessamentoprévio a que foi submetida a agenda governa-

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mental pelo constituinte, algo especialmente difícilno contexto institucional de um Estado federativoe de um regime presidencialista multipartidário ebicameral como o brasileiro (Tsebelis, 1997). Porfim, mas não menos importante, esse tipo especialde Constituição tende a causar impacto significati-vo sobre o funcionamento do sistema de justiça,na medida em que o Judiciário, e especialmenteseu órgão de cúpula – o Supremo Tribunal Federal(STF) –, passa a ser mais acionado para controlara constitucionalidade das leis e demais atos nor-mativos (Arantes, 1997; Arantes e Kerche, 1999),nem sempre relativos a princípios constitucionaisfundamentais, mas freqüentemente relativos apolíticas públicas.

Quais seriam as razões da grande presençade políticas públicas no interior do texto constitu-cional? Acreditamos que uma das principais foi oformato que presidiu os trabalhos da AssembléiaNacional Constituinte, favorecendo enormementea introdução no texto de dispositivos de cunhoparticularista. Um bom resumo desse processo édado por Souza e Lamounier:

De acordo com as diretrizes legais estabelecidaspela chamada “Emenda Sarney”, os deputados esenadores a serem eleitos em novembro de 1986reunir-se-iam unicameralmente, decidindo pormaioria simples, como uma verdadeira Assem-bléia Constituinte. Quando esse novo Congressoiniciou os seus trabalhos, no princípio de 1987,houve tensos debates entre os constituintes a res-peito dos poderes de que se achavam investidose sobre a organização a ser adotada nos trabalhos.Predominou, no final, uma organização fortemen-te descentralizada: subcomissões e comissõestemáticas fariam os estudos iniciais, ouvindo asociedade e votando relatórios preliminares; encer-rada essa fase, uma Comissão de Sistematização de97 membros (cuja presidência coube também aoSenador Afonso Arinos), encarregar-se-ia de prepa-rar o projeto final a ser votado pelo plenário. Oprojeto constitucional foi finalmente levado a umaprimeira votação em plenário no princípio de1988. Uma vez que não se formou nenhum blocomonolítico no Congresso, o voto majoritário, namaior parte dos artigos, teve que ser negociado erenegociado vezes sem conta. A segunda e últimarodada ocorreu em setembro de 1988, sendo anova Constituição promulgada a 5 de outubro(Lamounier, 1990, p. 82).2

Este processo descentralizado, o quorum demaioria simples e a ausência de um projeto-basedo qual se pudesse partir3 constituíram fatoresfavoráveis à introdução no texto dos mais variadosdispositivos, bastando para isso que estes contas-sem com o apoio substancial de algum grupo depressão ou bancada parlamentar e não ferissem osinteresses da maioria congressual.4 Nesse sentido,pode-se dizer que as negociações travadas emtorno da elaboração da nova Carta ocorreram soba égide de um amplo log rolling: ao apoio de umgrupo X a medidas patrocinadas pelo grupo Y,retribuir-se-ia noutra ocasião com o apoio dogrupo Y a uma medida de interesse do grupo X.

Coelho e Oliveira chamaram a atenção paraa dinâmica extremamente descentralizada quemarcou os trabalhos constituintes, destacando afalta de paralelo de processos semelhantes na his-tória constitucional brasileira e mesmo no direitocomparado. Segundo esses autores,

[...] a construção do futuro Projeto deu-se de forapara dentro, de partes para o todo. Vinte e qua-tro subcomissões temáticas recolheram sugestões,realizaram audiências públicas e formularamestudos parciais. Estes foram reunidos em blocosde três a três, através de oito comissões temáticas.Só então a Comissão de Sistematização organizouo primeiro anteprojeto, em 15 de julho de 1987.A partir daí, ocorreu uma tramitação formal, comemendas, pareceres e votações. Muitos impasses,negociações, confrontos. Ao todo foram apresen-tadas, durante as várias fases de comissões, siste-matização, primeiro e segundo turnos de plená-rio, um total de 65.809 emendas. Existiram noveprojetos, desde o de 15 de julho de 1987 até aredação final, em setembro de 1988 (Coelho eOliveira, 1989, p. 20, grifo nosso).

Embora uma análise mais detalhada dosresultados desse método de funcionamento daConstituinte seja recomendável, antes de conclu-sões generalizantes, parece-nos defensável a hipó-tese de que esse formato foi o grande responsávelpela introdução no texto constitucional de umagrande quantidade de dispositivos mais adequa-damente definidos como políticas públicas doque como princípios constitucionais gerais e fun-damentais. Nesse sentido, para além dos conteú-

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dos específicos consagrados pela Carta, esse tipode normatização constitucional engessou formal-mente a agenda governamental futura e eramesmo de se esperar, como de fato ocorreu, queboa parte desses dispositivos se tornasse futura-mente alvo de tentativas de reforma por parte denovas maiorias parlamentares ou de novas ges-tões à frente do Executivo. Assim, o baixo grau deuniversalismo atingido pela Constituição e a gran-de quantidade de dispositivos particularistas econtroversos presentes no texto são fatores queajudam a entender por que a promulgação danova Carta ocorreu sob o signo de certa indefini-ção ou provisoriedade, tendo a própria Consti-tuinte programado uma Revisão Constitucionalgeral para daí a cinco anos (sob a influência daConstituição portuguesa, que possuía a previsãode revisões a cada cinco anos), por meio do arti-go 3º do Ato das Disposições ConstitucionaisTransitórias:

Art. 3.º A revisão constitucional será realizadaapós cinco anos, contados da promulgação daConstituição, pelo voto da maioria absoluta dosmembros do Congresso Nacional, em sessão uni-cameral.

Anos mais tarde, por mais que alguns intér-pretes da Constituição tenham tentado vincular oartigo 3º do ADCT aos resultados do plebiscitosobre sistema de governo realizado em 1993, pre-valeceu a opinião de que a revisão autoprogra-mada da Carta deveria ser irrestrita, podendo ver-sar sobre todo o texto.

A Constituição, que nasceu sob o signo dareforma em moto-contínuo, passou, entretanto,pela Revisão Constitucional de 1993/1994 semque muitas e prometidas alterações fossem feitasno texto original.5 Segundo Melo, em um dosestudos mais completos sobre as principais refor-mas constitucionais no Brasil, o malogro da revi-são de 1993/1994 deu-se em virtude de uma con-junção de fatores, a despeito do potencial e dasexpectativas de mudança que antecederam o pro-cesso. Comparativamente aos aspectos que favo-reciam a mudança constitucional,

[...] outras características, no entanto, tais como omonopólio, pelo Legislativo, da iniciativa proposi-

tiva, a inexistência de policy advocates para asemendas e a simultaneidade de votações reduziamo potencial de mudança por parte do governo. Aanálise sugere que esse potencial, que o arranjoinstitucional propiciava, foi anulado pelo impactodevastador de fatores contextuais, tais como osconstrangimentos eleitorais, a polarização da agen-da pública e a estrutura de incentivos com que sedeparavam o Executivo e o Legislativo na conjun-tura da CPI do orçamento. O calendário eleitoral,como variável isolada, se constituiu no fator deci-sivo (Melo, 2002, p. 76).

A análise de Melo é em si reveladora de umaspecto fundamental disso que estamos chamandode o problema constitucional brasileiro. Afinal decontas, por que o sucesso ou o fracasso de um pro-cesso de revisão constitucional deveria estar condi-cionado pelos interesses do “governo”, pela pre-sença ou ausência de policy advocates, pelo efeitonegativo (“devastador”) de fatores “contextuais”,pela “conjuntura” política e pelo “calendário elei-toral”, se não pelo fato de que essa Constituição éela mesma uma Carta que encerra muitos disposi-tivos tipicamente governamentais? Isto é, os fatoresidentificados por Melo para explicar o fracasso darevisão constitucional de 1993/1994 são a própriaconfirmação do nosso argumento de que aConstituição criou um modus operandi de produ-ção normativa que vincula os interesses conjuntu-rais, de governo e dos policy advocates, ao marcoconstitucional. É por essa razão que nossa agendapolítica seguiu sendo uma agenda constituinte nopós-1988.6

O outro exemplo que confirma o argumen-to sobre a peculiaridade do nosso ordenamentoconstitucional é justamente o processo de refor-mas constitucionais conduzido durante os doismandatos de Fernando Henrique Cardoso na pre-sidência da República. O maior sucesso do gover-no FHC na implementação de mudanças constitu-cionais explica-se pela conjunção complexa,porém favorável, de fatores como os menciona-dos acima por Melo, em grau suficiente para quea agenda governamental de um presidente emparticular pudesse vencer os obstáculos da cons-titucionalização a que ela foi previamente subme-tida pelo modelo de 1988.7

Ao longo de dezoito anos de vigência daConstituição de 1988 transcorridos até 2006, um

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total de 58 emendas constitucionais foram aprova-das, sendo seis durante o referido processo derevisão – as Emendas Constitucionais de Revisão –e outras 52 como Emendas Constitucionais co-muns. Destas últimas, 35 foram aprovadas duran-te o governo Fernando Henrique Cardoso (entreos anos de 1995 e 2002) e treze durante o gover-no Lula. Foram elas, na sua maior parte, propos-tas de iniciativa do Poder Executivo, recaindo pre-dominantemente sobre matérias que compunhamuma agenda tipicamente governamental e nãonecessariamente constitucional, no sentido maisrigoroso que essa expressão possa conter.

Como distinguir, afinal, princípios funda-mentais de dispositivos veiculadores de políticaspúblicas no âmbito de um texto constitucional? Apróxima seção destina-se a formular um modeloque seja capaz disso.

Polity, politics, policy

Que papéis têm, nas democracias constitu-cionais, (a) as estruturas do regime, compreen-dendo os direitos individuais e as regras do jogopolítico, (b) a competição política e (c) as deci-sões concretas de governo? Embora cada umadessas dimensões seja parte constitutiva do pro-cesso poliárquico, elas não têm o mesmo signifi-cado nem contribuem da mesma forma para ofuncionamento do regime democrático. Se quiser-mos, portanto, compreender corretamente a dinâ-mica política real das democracias constitucionais,é indispensável verificar como regimes desse tiposão capazes de distinguir e articular essas trêsdimensões do arcabouço institucional e da dinâ-mica política.

Em primeiro lugar, é importante considerarque regimes democráticos normalmente se distin-guem dos não democráticos pela presença dealguns elementos-chave, a saber:1. O jogo político ocorre de acordo com regras

preestabelecidas.2. As eleições são periódicas e se sucedem por

meio de sufrágio universal.3. Os mandatos dos eleitos são limitados, tanto

temporalmente como no que concerne aoalcance de suas decisões e ações.

4. A vontade majoritária da população e asdecisões de seus representantes eleitos pre-valecem nos limites das regras preestabele-cidas.

5. A oposição é participante legítima do jogo enão deve encontrar impedimentos para che-gar ao poder pelo voto popular.

6. Os governantes são responsáveis perante oeleitorado, prestando-lhe contas.

7. Os direitos civis clássicos são garantidos, via-bilizando o desenrolar da competição políti-ca – direitos fundamentais operacionais.

8. São assegurados direitos sem os quais osatores políticos não se disporiam a participarda competição democrática – direitos funda-mentais condicionantes.8

Esses oito elementos estabelecem as regrasbásicas do jogo político democrático, conforman-do o que há de essencial na estrutura constitucio-nal de uma poliarquia (Dahl, 1997). Por delinearos contornos fundamentais do regime, definem ascondições paramétricas estáveis do jogo político,não se confundido com este ou com seus resulta-dos. Temos aí a primeira dimensão da políticademocrática, estrutural, a polity. Justamente pordefinir os parâmetros da convivência poliárquica,a estrutura constitucional se alicerça sobre umindispensável consenso mínimo dos diversos ato-res políticos quanto a seus aspectos centrais.

Dado se tratar de um acordo institucionalbásico – um pacto implícito ou explícito entre osatores poliárquicos – os dispositivos por ele esta-belecidos têm caráter não controverso, isto é, nãodizem respeito àquilo que a competição demo-crática tem como finalidades: (a) definir a ocupa-ção dos postos de poder por um determinadoperíodo e (b) definir quais políticas públicas serãoimplementadas num dado momento. Estes doisobjetivos correspondem, portanto, a duas outrasdimensões, mais visíveis e perceptíveis no dia-a-dia das democracias do que a primeira:

1. A competição política por cargos e influência.2. A decisão sobre políticas governamentais.

A competição política constitui o própriojogo e nela estão implícitos os enfrentamentos, asdisputas, as negociações, os acordos e as coali-

CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 47

zões. Trata-se da dimensão dinâmica da realida-de política, ao passo que as condições paramétri-cas estáveis constituem a sua dimensão estática.Noutras palavras, o jogo político diz respeito àação (e à interação), ao passo que as condiçõesparamétricas dizem respeito à estrutura, no âmbitoda qual ocorrem as ações (e interações). É tambémno âmbito dessa competição que se definem, noslimites das regras estabelecidas, os que ganham eos que perdem, os que ocuparão os cargos públi-cos (eletivos ou não) e os que ficarão excluídos dopoder, os aliados e os adversários etc. A estasegunda dimensão da realidade política denomina-mos politics.

Entretanto, além do jogo político há tambéma importante esfera das decisões de governo, queconstitui a terceira dimensão do regime poliár-quico. Tais decisões são elas próprias um objeti-vo e uma decorrência – ao mesmo tempo – dojogo político. Afinal, por que motivos competemos jogadores nas poliarquias? Como certa vezdefiniu Schumpeter (1980), para ocupar postos depoder e influência; mas também para definir polí-ticas públicas. Sobre estas últimas, ao contráriodas condições paramétricas estáveis, espera-seque sejam objetos de controvérsia, e não de con-sensos mínimos; por isso mesmo, decorrem dasdisputas políticas conjunturais. Enquanto a pri-meira dimensão constitui a base para o jogo polí-tico, essa última representa seus resultados con-cretos e circunstanciais. E da mesma maneira

como este jogo se desenrola limitado pela estru-tura constitucional, o alcance dos resultados tam-bém está limitado por essa estrutura – o que nãosignifica dizer que seja predeterminado por ela.9

A esta dimensão denominamos policy.Definimos em inglês as três dimensões da

política em decorrência da falta de termos apro-priados e claramente diferenciados na língua por-tuguesa para cada uma delas. Sumarizando, apolity corresponde à estrutura paramétrica estávelda política e que, supõe-se, deve ser a mais con-sensual possível entre os atores; a politics é o pró-prio jogo político; a policy diz respeito às políticaspúblicas, ao resultado do jogo disputado de acor-do com as regras vigentes.10 O Quadro 1 resumea natureza e as características principais destastrês dimensões do processo político democrático.

Como nosso intuito neste artigo é analisaro conteúdo da Constituição brasileira de 1988,não trataremos da dimensão dinâmica do pro-cesso democrático, a politics, para concentrar-mos nossas atenções na hierarquia normativaque distingue o pacto constitucional (polity) dasdecisões governamentais (policy). A Figura 1ilustra esta hierarquia e diversos aspectos a elarelacionados.

A lógica poliárquica supõe que normasconstitucionais estruturem o sistema político, esta-belecendo condições gerais para seu funciona-mento. São por isso genéricas, tanto na definiçãodos pressupostos formais do jogo, como na esti-

DIMENSÃO NATUREZA DENOMINAÇÃOCARACTERÍSTICA

SUBSTANTIVA

CARACTERÍSTICA

FORMAL

NORMATIVIDADE

CONSTITUCIONAL

Parâmetros Geraisdo Jogo Político(Estrutura)

Polity

Consenso mínimopactuado entreos diversosatores políticos

Generalidade,relativaneutralidade

EMBATES E

COALIZÕES

POLÍTICAS

Jogo Político PoliticsRelacionamentodinâmico entre osatores políticos

Conflito e/ouCooperação.

NORMATIVIDADE

GOVERNAMENTAL

Resultadosdo Jogo Político(Conjuntura)

PolicyVitória/Derrotade diferentesatores políticos

Especificidade,controvérsia

Quadro 1Natureza das Dimensões Ideais do Processo Político Democrático

48 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

pulação dos limiares e dos limites de seus resul-tados conjunturais. Nessa dimensão, a constitui-ção corresponde a um pacto entre os atores polí-ticos, refletindo um consenso básico entre eles.Caso não seja assim e a Constituição estipule nor-mas de maior especificidade, que ultrapassemesse consenso básico, ela refletirá a vitória dealguns setores da sociedade sobre outros. Dadoseu caráter de maior permanência, tal Constituiçãoconsagrará de modo perene interesses circuns-tanciais, por colocá-los fora do alcance do jogopoliárquico futuro.

A pactuação consensual de princípios cons-titucionais implica na normatização apenas dosinteresses comuns aos diversos setores da socie-dade, ou, no máximo, daqueles interesses parti-culares inegociáveis, sem cuja garantia o convíviopacífico e a competição política leal entre osdiversos setores sociais e políticos seriam inviabi-lizados. Por isso pode-se afirmar que tais princí-

pios são relativamente neutros.11 Na medida emque definem somente os parâmetros, os princí-pios e os limites do jogo político, as normas cons-titucionais poliárquicas têm caráter genérico, poismedidas específicas para sua efetivação são toma-das conjunturalmente, tendo em vista as circuns-tâncias particulares com que lidam os governosdo dia.

Dada a função estruturante da polity, as nor-mas constitucionais têm caráter soberano, razãopela qual não estão em princípio sujeitas à discus-são democrática cotidiana, à qual balizam, resguar-dando direitos fundamentais e assegurando que apolitics transcorra segundo parâmetros previsíveise estáveis. Normativamente, correspondem a ummomento inaugural, no qual se fundaria a polity ese iniciaria o jogo político (Ackerman, 1988). Emvirtude disso, são protegidas contra modificaçõesfreqüentes, sendo as regras para sua alteração bemmais exigentes do que as necessárias para alterar

MAIOR

MENOR MENOR

MAIORNORMAS CONSTITUCIONAIS (POLITY)

Estrutura Limiares e Limites Controle

Pacto Soberania

NORMAS GOVERNAMENTAIS(POLICY)

Conjuntura Eficácia

Decisão Majoritária Governo

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NORMAS PARACONSTITUCIONAIS

(Legislação complementar imediatamente infraconstitucional)

Figura 1Representação sintética da hierarqui decisória

Figura 1Representação Sintética da Hierarquia Decisória

CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 49

policies: quoruns ampliados de votação, prazosdeliberativos dilatados, poder de veto conferido adiversos atores institucionais, consultas popularesobrigatórias e, no limite, vedação total a quaisquermudanças por emendas constitucionais pela legis-latura ordinária, requerendo-se nesse caso a reali-zação de uma nova Assembléia Constituinte.12

Noutras palavras, o grau de consenso necessário adecisões constitucionais é muito mais amplo doque aquele aplicável às decisões da política “nor-mal”, isto é, da política governamental (Idem). Valeobservar ainda que nosso modelo tem em vista sis-temas políticos dotados de constituições escritas ecom algum tipo de controle constitucional das leise dos atos normativos dos governos, duas caracte-rísticas que aumentam o grau de consensualismodo sistema, em detrimento de seu majoritarismo(Lijphart, 1989).

Por outro lado, o governo age na conjuntu-ra; sua ação baliza-se pela eficácia; suas decisõespodem – sem maiores problemas – constituirimposições da parte vitoriosa na disputa democrá-tica (a maioria) sobre a parte derrotada (a mino-ria), assim como podem ser específicas e contro-versas, no sentido já assinalado. Tudo isto épossível desde que as decisões de governo não con-trariem a normatividade constitucional, respeitandoos limiares e os limites estipulados. É da natureza dopróprio jogo democrático o perde-ganha político;ora um grupo obtém o controle sobre os postoscapazes de processar decisões governamentais, oraoutro. As oscilações decorrentes desse processorefletem-se diretamente sobre a formulação e aimplementação das policies, que são objetos daavaliação do eleitorado o qual – com base numjuízo sobre o desempenho do governo – premiaou pune seus representantes nas eleições subse-qüentes, por meio de escolhas eleitorais. Se aalternância de grupos (partidos) no governo éuma condição do regime democrático, a variaçãodas políticas públicas (policies) é uma conseqüên-cia prática inevitável (e desejável) desse princípio.A possibilidade de que tal variação de policiesocorra é, portanto, pré-requisito a que a alternân-cia de grupos (partidos) no governo tenha efeitospráticos. Daí as menores exigências das regrasdecisórias referentes à produção de policies, secomparadas àquelas necessárias para o emenda-mento constitucional.13

Critérios de distinção de matériasconstitucionais e não-constitucionais

Considerando-se as dimensões de polity,politics e policy tal como estabelecidas anterior-mente, seria possível distinguir, no interior deuma determinada Constituição escrita, os aspectosfundamentais do ordenamento político relativos àestrutura do regime (polity) daqueles outros que,embora se refiram ao conteúdo material de açõesestatais prováveis ou desejáveis (policies), foramabrigados pelo texto constitucional e equiparadosformalmente aos princípios da polity.

Nossa intenção, nesta seção, é elaborar cri-térios objetivos que permitam classificar os dispo-sitivos constitucionais como polity ou policy. Atarefa exige boa dose de argumentação, dado queo texto formal abriga sem distinção dispositivoscorrespondentes a ambos os princípios, de modoque estabelecer uma hierarquização entre eles écorrer um risco considerável.

Como se sabe, o constitucionalismo moder-no desenvolveu-se a partir do princípio liberal dalimitação do poder político vis-à-vis a liberdadecivil e individual. De modo geral, os textos consti-tucionais modernos preocuparam-se com o estabe-lecimento dos princípios fundamentais do Estado,ao mesmo tempo em que procuraram definir oslimites da ação estatal da maneira mais rigorosapossível. Poder e liberdade são considerados anti-téticos na tradição liberal, e essa oposição marcoudecisivamente o surgimento das primeiras constitui-ções escritas do final do século XVIII. Contempora-neamente, o conjunto de dispositivos constitucio-nais relacionados à regulação desse antagonismovem sendo difundido por meio das noções deEstado de Direito e Rule of Law. Posteriormente,com a ampliação do sufrágio, as Cartas também pas-saram a ter de lidar com a incorporação de contin-gentes cada vez maiores da população ao proces-so político. Dessa forma, às duas noções anterioresacrescentou-se a de Estado democrático.

Uma primeira classificação do texto constitu-cional, minimalista em termos de polity e policy,deveria retornar às origens do constitucionalismomoderno e aos princípios liberais que marcarama refundação do Estado, bem como aos princípiosdemocráticos que vieram em seguida, especial-mente a ampliação dos direitos de participação.

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Nesse sentido, os seguintes critérios poderiam seradotados para identificar os dispositivos típicos dapolity e, por exclusão, revelar aqueles que pode-riam ser considerados veículos de policy. Dentreos princípios de um regime liberal-democráticoclássico, formalizados constitucionalmente, ape-nas seriam típicos da polity:

1. As definições de Estado e nação, tais como oregime republicano ou monárquico, a defini-ção do território, a organização federativa ouunitária, o exercício direto e/ou representativodo poder político pelos cidadãos, a noção denacionalidade e a estrutura do aparato estatal.

2. Os direitos individuais fundamentais, carac-terizados pelas condições básicas do exercí-cio da cidadania individual (direitos civis).Consideramos princípios da polity, nessa pri-meira classificação geral, as garantias da liber-dade civil, que Berlin (1981, pp. 133-145) reu-niu sob a expressão “liberdade negativa”(proteção do cidadão contra a ação arbitráriado Estado), e os direitos políticos de partici-pação democrática. Note-se que esse critériominimalista afasta da definição constitucionalda polity os direitos substantivos, individuaise sociais, que normalmente vêm acompanha-dos de normas constitucionais programáticas.

3. As regras do jogo, que organizam os proces-sos de participação e competição políticas,relacionamento entre e intrapoderes, intera-ção entre níveis de governo e entre atorescoletivos reconhecidos como lidando cominteresses de natureza pública. Tais regrasestipulam: (a) a divisão de prerrogativas efunções entre os atores institucionais, (b) asregras operacionais do processo decisóriogovernamental e (c) os tempos e os prazosque balizam tais processos.

Esses três critérios partem da maior generali-dade possível da polity (critério 1) e ganham espe-cificidade até quase tocar o nível de policy porduas vezes. Pela primeira vez, quando, no critério2, a menção à cidadania poder-nos-ia levar aincluir direitos constitucionais substantivos querequerem policies para sua efetivação. Todavia,nessa definição minimalista de polity, evitamos

confundir direitos individuais de proteção (contrao Estado e também contra outras pessoas) e departicipação na esfera pública, com os direitos deemulação mediante políticas governamentais quevisem a atenuar desigualdades socioeconômicas.Nessa classificação inicial, o primeiro tipo de direi-tos compõe a polity e, portanto, tem natureza cons-titucional. O segundo aproxima-se da categoria depolicy, apesar de sua inclusão na Carta conferir-lheformalmente status constitucional.

A policy é quase tocada pela segunda vezquando, no critério 3 (regras do jogo), menciona-mos as funções dos entes governamentais. Note-se que esse critério se destina a catalogar provi-sões constitucionais que organizam processos –como o da divisão de atribuições governamentaisespecíficas entre órgãos estatais – e não devemser confundidas com dispositivos que estabele-çam funções promocionais do Estado e são clas-sificados como policy. As funções de governo sóserão classificadas como polity quando disseremrespeito a questões de ordem procedimental, rela-cionadas à distribuição horizontal de poder entreos diversos entes estatais, ao funcionamento inter-no desses mesmos entes, à participação democrá-tica dos cidadãos e à garantia de suas liberdadesnegativas. Funções passíveis de serem classifica-das como polity não serão aquelas que se referema funções emuladoras do Estado, mas aquelas ins-piradas nos princípios liberal (do governo limita-do) e democrático (do governo participativo). Poroutro lado, serão classificadas como policy justa-mente quando impuserem obrigações positivas(“direito do cidadão, dever do Estado”) numa pers-pectiva vertical de relação entre o governo e asociedade, em torno de direitos substantivos cujaefetivação depende da implementação de políticassociais.

Entretanto, desde que Marshall (1967) defi-niu a composição tripartite da cidadania modernaem direitos civis, políticos e sociais e que os tex-tos constitucionais da segunda metade do séculoXX estabeleceram um amplo leque de obrigaçõessociais do Estado, tornou-se bastante difícil defen-der um conceito de polity tão minimalista como oestabelecido acima.14 Em todos os países que recen-temente adotaram o figurino liberal-democrático,gamas importantes de direitos sociais foram men-cionadas nos capítulos constitucionais destinados

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aos direitos e às garantias fundamentais. Nossasconstituições atuais não se restringem a estabele-cer os limites necessários à vigência da “liberdadenegativa” e tratam de avançar na direção da igual-dade, impondo obrigações positivas ao Estado. Éverdade que a realização dessa igualdade é obs-tada pelo direito também constitucional da pro-priedade privada, não sendo demais lembrar quetal dispositivo é a pedra angular do Estado deDireito liberal.15 De qualquer forma, considera-seum grande salto de cidadania a constitucionalizaçãode direitos de igualdade material entre os homens,mesmo que definições como “função social da pro-priedade” e “Estado Democrático de Direito” com-portem boa dose de contradição, refletida em ten-sões no interior do texto constitucional.

Por essas razões e apesar de os conceitos decidadania e polity não designarem a mesma coisa,decidimos trabalhar com dois tipos de classifica-ção: a minimalista, baseada nos três critérios acima,e uma maximalista, que além dos três anteriores,incorporaria um quarto critério, mencionado aseguir:

4. Os direitos materiais orientados para o bem-estar e a igualdade, assim como as funçõesestatais a eles associadas. Tais direitos e fun-ções estatais não se confundem com os trêscritérios anteriores, dado que não têm impli-cação direta sobre as definições de Estado enação, não constituem direitos civis de pro-teção à liberdade individual, nem direitospolíticos de participação democrática, assimcomo não configuram regras processuais dacompetição pelo poder ou das relaçõesentre e intra-órgãos governamentais. Toda-via, não se trata aqui de fazer mera conces-são a uma visão da Constituição como pro-grama social de governo, mas de indicar quedeterminados direitos materiais podem serconsiderados condições básicas para o fun-cionamento adequado do regime democráti-co. Tais direitos têm a importante função depromover a adesão ao pacto político demo-crático e suprimi-los poderia levar a demo-cracia ao colapso. Enquanto os direitos civisde liberdade e políticos de participação men-cionados no critério 2 podem ser considera-dos direitos operacionais fundamentais à

vida democrática, os direitos materiais aquimencionados podem ser considerados direi-tos condicionantes do jogo político nessesregimes, na medida em que mantêm a ade-são social ao pacto político democrático.16

Por fim, independentemente do maior pesoliberal-democrático ou igualitário das Cartas, nor-mas propriamente constitucionais referem-se ape-nas a princípios fundamentais do ordenamentopolítico, e não a detalhes que são o objeto da poli-tics infraconstitucional cotidiana durante a confec-ção das policies. A constitucionalização de assuntosque são a matéria-prima do jogo político ordinárioextrapolaria justamente o caráter constitucional,conformador do jogo, pois estipularia rigidamentee a priori o que será ou não passível de mudançapela maioria política. Limitando-se em demasia osresultados possíveis do jogo, constrange-se a liber-dade dos atores na politics cotidiana, equiparandoa polity ao que é considerado policy, primeira-mente, pelos próprios contendores políticos. Tendoisto em vista, incluímos dois critérios adicionaispara classificar textos constitucionais:

5. Critério de Generalidade. Não serão classifi-cados como polity os dispositivos constitu-cionais não genéricos (muito específicos).Embora de difícil definição em abstrato, adistinção entre generalidade e especificidadepoderia ser determinada da seguinte forma:são específicos os dispositivos derivados deprincípios constitucionais superiores, mascujo conteúdo pode sofrer alterações sem queisso ponha em risco as provisões mais amplassob os quais esses dispositivos estão abriga-dos. Essa é uma maneira eficaz de distinguirpolity de policy, uma vez que os textos cons-titucionais contemporâneos tendem, metafo-ricamente, a assemelhar-se a árvores de cujotronco saem galhos que se ramificam até osúltimos detalhes. Nosso critério de generali-dade poderia funcionar à maneira da poda,cortando pontas de galhos sem ameaçar avida da árvore: igualmente, há dispositivosconstitucionais cuja retirada do texto nãoporia em risco os princípios fundamentais aque estão associados. Isto será particularmen-te útil na desclassificação da condição de poli-

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ty dos dispositivos que estabelecem regras dojogo, mas que por serem demasiadamentedetalhistas, especificando processos que cabe-riam à normatividade infraconstitucional,poderiam ser “podados” da Constituição semque a essencialidade do princípio superiorfosse afetada.

6. Critério de Controvérsia. Também deixarãode ser classificados como polity dispositivoscujo conteúdo for tipicamente objeto dacontrovérsia político-partidária cotidiana,dizendo respeito às plataformas governa-mentais apresentadas pelos partidos em seuembate pelos postos de governo e não seenquadrando, portanto, nas condições quecaracterizam dispositivos de tipo constitucio-nal, seja como normas paramétricas da politics,seja como regras definidoras de limiares e limi-tes das policies. Em princípio não serão des-classificados como polity dispositivos constitu-cionais que estabeleçam regras procedimentais,exceto quando tenham sido inseridos na Cartaapensados a um outro dispositivo que é, elemesmo, policy.

As razões pelas quais adotamos estes doisúltimos critérios são as seguintes. Quanto à gene-ralidade, normas muito específicas não consti-tuem parâmetros de funcionamento do sistemapolítico, de desenrolar do jogo e de limitação doescopo das decisões, pois equivalem – de ante-mão – às próprias decisões que caberia aos atorespolíticos tomar; por conta disso, não têm caráterconstitucional. Ademais, é de se esperar que aca-bem por criar obstáculos na conjuntura à gestãodemocrática, na medida em que engessam a açãodos governantes e/ou dos atores sociais diante desituações imprevistas, mudanças de condiçõessociais e econômicas, novas tecnologias etc. Comisso, a Constituição pode se tornar um instrumen-to que, em vez de conferir maior segurança jurí-dica à sociedade, impeça-a de dar cabo de seusproblemas em tempo hábil e com a precisãonecessária, devido ao congelamento constitucio-nal de temas e problemas próprios da conjunturae afeitos à ação governamental.

O mesmo se aplica à questão da controvér-sia – com um agravante. A constitucionalização de

policies reduz em demasia a liberdade decisóriados atores e, portanto, o faz em detrimento dademocracia. Afinal, restringe para além do neces-sário, numa democracia constitucional, a possibili-dade de que à alternância dos partidos e das lide-ranças no governo corresponda uma modificaçãodas políticas públicas implementadas – tendo emvista o leque ideológico e de interesses de umadeterminada sociedade num dado momento histó-rico. Com isso a competição democrática não éimpedida no plano eleitoral, mas tem seus efeitosrestringidos ou em certa medida anulados noplano governamental. Pode-se supor que é justa-mente para isto que servem as constituições – res-tringir a ação dos governos. Mas a suposição éincorreta se não considera que tal restrição, casoultrapasse certos limites, impede que a própria von-tade popular se realize periodicamente mediante asações de representantes eleitos.

O critério da controvérsia aponta para o fatode que não é legítimo numa democracia constitu-cionalizar questões que sejam controversas nadisputa partidária. A Constituição deve procurardefinir (no limite do possível) apenas o que éincontroverso: as condições básicas de funciona-mento de um sistema político competitivo. Daí, oque for objeto de disputa deve ser resolvido nadisputa, ou seja, nos processo eleitoral e decisó-rio, dentro dos marcos poliárquicos.

Por fim, a excessiva limitação constitucionalrestringirá ainda mais o alcance das decisões majo-ritárias ao multiplicar os motivos para que mino-rias derrotadas recorram à Justiça como forma deobliterar decisões legislativas ordinárias, alegandosua inconstitucionalidade – claro, apenas onde seadote o controle judicial da constitucionalidadedas leis. Em suma, a constitucionalização de poli-cies impõe a vontade momentânea de uma maio-ria conjuntural às maiorias futuras, cerceando-lhes(Cf. Holmes, 1988). O Quadro 2 resume os crité-rios de classificação do texto constitucional relati-vos aos dois modelos teorizados nesta seção.

Análise dos resultados17

A versão original da Constituição de 1988contém 245 artigos. Decompostos em parágrafos,incisos e alíneas, eles se desdobram em 1.627 dis-

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positivos. Para efeitos desta primeira contabilida-de do texto constitucional, preferimos excluir oAto das Disposições Constitucionais Transitórias(ADCT), por sua natureza específica de regra detransição.18 Depois de rigoroso exame de cada umdos 1.627 dispositivos da Carta original e aplica-ção da Metodologia de Análise Constitucional(MAC), concluímos que 30,5% deles podem serclassificados seguramente como policy e 69,5%dizem respeito a normas de caráter constitucional– polity (ver Tabela 1).

Dispositivos de polity

O Gráfico 1 apresenta a distribuição de dis-positivos de polity e policy ao longo dos nove títu-los que compõem a Constituição. Em termosgerais, deve-se destacar que o título “Da organiza-ção dos poderes” é responsável por quase 1/3 dototal de dispositivos da Carta, indicando que osconstituintes de 1988 tiveram grande preocupaçãoem estabelecer minuciosamente a dimensão horizon-tal e funcional do sistema político brasileiro: compo-sição, competências, prerrogativas e regras de fun-cionamento dos poderes Executivo, Legislativo,Judiciário e órgãos auxiliares como o MinistérioPúblico, a Advocacia-Geral da União, entre outros.O segundo maior é o título “Da organização doEstado”, que estabelece a estrutura político-adminis-trativa do país, enfatizando a dimensão do federa-

lismo, dos governos subnacionais e de suas relaçõescom a União. Apenas em terceiro lugar, praticamen-te empatados, aparecem os títulos “Direitos e garan-tias fundamentais” e “Ordem Social”, responsáveisjustamente pelos elementos mais concretos e defini-dores da cidadania civil, política e social brasileira.

A Tabela 2 apresenta um novo perfil daConstituição, mais revelador do que a topografiaaparente dos títulos formais. Com base na aplica-ção dos quatro critérios formulados pela MAC, foipossível revelar que mais da metade dos disposi-tivos de polity da Carta de 1988 (55,3%) diz res-peito a regras do jogo, estabelecendo a divisão deprerrogativas e funções entre os atores institucio-nais, os mecanismos operacionais do processodecisório governamental e os tempos e prazos quebalizam tais processos. Quanto aos aspectos quepoderíamos definir como ainda mais estruturais ouestáticos do ordenamento constitucional – as “defi-nições de Estado e nação” –, estes ocuparam ape-nas 6,5% do texto promulgado em 1988.

MODELOS DE CLASSIFICAÇÃO

MINIMALISTA (liberal clássico) MAXIMALISTA(social)

CRITÉRIOS SUBSTANTIVOS

(1) As definições deEstado e Nação

(1) As definiçõesde Estado e Nação

(2) Os direitosindividuais fundamentais

(2) Os direitosindividuais fundamentais

(3) As regras do jogo (3) As regras do jogo

–(4) Os direitos materiais

e funções estatais correlatas

CRITÉRIOS FORMAIS/OPERACIONAIS(5) Generalidade (5) Generalidade

(6) Controvérsia (6) Controvérsia

Quadro 2Critérios de Distinção de Matérias Constitucionais e Não-constitucionais

Freq. %

Polity 1.131 69,5

Policy 496 30,5

TOTAL 1.627 100

Tabela 1Constituição: polity ou policy?

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Em 24,3% dos dispositivos constitucionais detipo polity detectamos mais de um sentido nor-mativo, isto é, tais dispositivos contemplam maisde um dos quatro critérios formulados pela MAC,com destaque também para a presença de regrasdo jogo na maior parte deles: 230 dos 275 dispo-sitivos de polity duplos, triplos ou quádruplos con-tém regras do jogo, simultaneamente a outro(s)dos três critérios de classificação.

Em suma, observamos que 855 ou 75,5% dosdispositivos de polity da Carta brasileira dizemrespeito – exclusivamente ou em associação comoutros – a definições de regras do jogo.

Uma primeira conclusão a extrair desseresultado é que, se a Constituição brasileira podeser considerada muito extensa, seu tamanho refle-te o nível de detalhamento atingido pela Consti-tuinte na definição dos procedimentos que deve-riam presidir o funcionamento da democraciavindoura, algo que certamente pode ser explicadopelas preocupações da época em torno da libera-

Freq. %

1. Definições de Estado e Nação 74 6,5

2. Direitos individuais 92 8,1

3. Regras do jogo 625 55,3

4. Direitos materiais 65 5,7

DISPOSITIVOS COM MAIS DE UM SENTIDO

Definição de Estado e Nação +

Regras do Jogo 160 14,1

Direitos individuais +Regras do Jogo

48 4,2

Outros dispositivos duplos 58 5,1

Outros dispositivos triplos 8 0,8

Dispositivo quádruplo 1 0,1

TOTAL 1.131 100

Tabela 2Tipos de Polity

Gráfico 1Polity ou policy, nos nove títulos da Constituição de 1988

0

600

500

400

300

200

100

Princípiosfundamentais

Direitos egarantias

fundamentais

Organizaçãodo Estado

Organizaçãodos Poderes

Defesa doEstado e dasInstituições

Democráticas

Disposiçõesconstitucionais

gerais

Tributação edo Orçamento

Ordemeconômica efinanceira

Ordemsocial

Polity Policy

Gráfico 1Polity ou policy, nos Nove Títulos da Constituição de 1988

PolicyPolity

CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 55

lização e da redemocratização do regime político.Por outro lado, se Ulysses Guimarães alcunhou otexto como “Constituição Cidadã”, o adjetivoperde força aos verificarmos que, quantitativa-mente, os componentes sociais, civis e políticos dacidadania são incomparavelmente inferiores àdimensão das regras do jogo: apenas 5,7% dosdispositivos constitucionais dizem respeito a direi-tos materiais de bem-estar e igualdade social, aopasso que somente 8,1% concernem a direitosindividuais de liberdade e de participação políti-ca. Somados, os dispositivos “cidadãos” perfazempouco mais de 13% da Carta de 1988.

O Tabela 3 apresenta o perfil dos dispositi-vos de polity no interior de cada título daConstituição, à luz dos quatro critérios da MAC.Como era de se esperar, a Carta abre majoritaria-mente com “Definições de Estado e de Nação” noseu primeiro título, embora este contenha tam-bém um pouco de “direitos individuais funda-mentais” e outros dispositivos que combinam dedois a três tipos de polity. O segundo título, comoo próprio nome indica, contém majoritariamente“direitos individuais fundamentais”, ladeados porum pouco de “direitos materiais” e também de“regras do jogo”. O terceiro título, “Organização

do Estado”, traz dispositivos que criam estruturaestatal e simultaneamente introduzem regras dojogo para o seu funcionamento, especialmente noque diz respeito à dimensão federativa.

Previsivelmente, no título “Da organizaçãodos Poderes” predominam regras do jogo. O títu-lo IV, que é o maior e talvez mais importante daCarta (por definir o modus operandi das institui-ções que compõem o regime democrático brasi-leiro), estrutura detalhadamente os três Poderesde Estado e alguns organismos paralelos e auxi-liares (Conselho da República, Conselho de De-fesa Nacional, Ministério Público, Advocacia Geralda União e Defensoria Pública). Além de definir aorganização e as atribuições do Legislativo, doExecutivo, do Judiciário e do Ministério Público,estabelece condições de elegibilidade e de investi-dura nas respectivas carreiras públicas, bem comonormas relativas ao exercício do cargo (mandatos,imunidades, responsabilidades etc.); estabeleceregras para o processo Legislativo, a fiscalizaçãofinanceira e orçamentária do governo e outros pro-cedimentos para o controle recíproco entre os pode-res; chega a detalhes na organização do Judiciáriofederal e impõe linhas gerais para a organização doJudiciário nos estados.

Tabela 3. Composição dos Títulos da Constituição, por tipos de Polity

Princípiosfundamen-

tais

Direitos egarantias

fundamen-tais

Organizaçãodo Estado

Organizaçãodos Poderes

Defesa doEstado e dasInstituições

Democráticas

Tributaçãoe do

Orçamento

Ordemeconômicae financeira

Ordemsocial

Disposiçõesconstitu-cionaisgerais

Definições deEstado e Nação 40,9% (9) 7,5% (10) 10,9% (21) 5,0% (24) 9,3% (5) 0,0% (0) 15,6% (5) 0,0% (0) 0,0% (0)

Direitosindividuais

fundamentais18,2% (4) 44,0% (59) 0,5% (1) 0,0% (0) 9,3% (5) 1,7% (2) 18,8% (6) 17,4% (15) 0,0% (0)

Regrasdo jogo 0,0% (0) 14,9% (20) 28,5% (55) 82,4% (397) 53,7% (29) 87,1% (101) 9,4% (3) 10,5% (9) 100,0% (11)

Direitosmateriais 0,0% (0) 13,4% (18) 0,5% (1) 0,0% (0) 0,0% (0) 0,0% (0) 18,8% (6) 46,5% (40) 0,0% (0)

Estado e Nação+ Regrasdo Jogo

9,1% (2) 0,7% (1) 51,3% (99) 10,6% (51) 1,9% (1) 2,6% (3) 9,4% (3) 0,0% (0) 0,0% (0)

Outros princí-pios duplos 27,3% (6) 19,4% (26) 7,3% (14) 2,1% (10) 25,9% (14) 8,6% (10) 25,0% (8) 20,9% (18) 0,0% (0)

Outrosprincípios 4,5% (1) 0,0% (0) 1,0% (2) 0,0% (0) 0,0% (0) 0,0% (0) 3,1% (1) 4,7% (4) 0,0% (0)

Total 100,0% (22) 100,0% (134) 100,0% (193) 100,0% (482) 100,0% (54) 100,0% (116) 100,0% (32) 100,0% (86) 100,0% (11)

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O título V reúne dispositivos que ascende-ram a tal ponto da topografia constitucional, pro-vavelmente por terem como elemento principalas Forças Armadas. Refletindo o peso político re-manescente dos militares à época da Constituinte,não só se manteve o status constitucional diferen-ciado para as Forças Armadas, como também,preservando a tradição, disciplinaram-se a seulado os mecanismos de “Defesa do Estado e dasinstituições democráticas” (nome do título V), asaber, a Segurança Pública e os Estados de Defesae de Sítio. Noutro contexto de transição democráti-ca possivelmente tais elementos dispersar-se-iam(submetidos normativamente) a outros títulos cons-titucionais. Seja como for, por estabelecer condi-ções da decretação dos Estados de Defesa e deSítio, o título também reúne boa soma de dispositi-vos classificados como regras do jogo.

Ao estabelecer princípios de “Tributação eorçamento” no título VI, os constituintes tambéminstituíram um detalhado conjunto de regras dojogo sobre a conduta governamental em relaçãoàs finanças públicas. Mais do que isso, a maiorparte dos dispositivos foi assim classificada por sereferir ao pacto federativo em torno das possibili-dades de tributar e dos princípios de repartiçãodas receitas tributárias. A dimensão federativa temum peso excepcional em todo o texto constitu-cional e essa é uma das principais explicaçõespara o grande número de dispositivos de politydo tipo regras do jogo, dispersos por vários títu-los e seções da Carta de 1988.

Embora menor do que os demais na propor-ção de polity, o título VII contempla um pouco decada um dos quatro princípios definidos pela MAC.Já no título VIII predominam os “direitos materiais”até porque ele trata “Da ordem social”. Por fim, ospoucos dispositivos classificados como polity, pre-sentes no último título da Carta e destinados aaspectos gerais, dizem respeito, na sua totalidade,a regras do jogo.

Dispositivos de policy

Excetuado o título relativo aos “Princípiosfundamentais” (por sinal o menor deles, com ape-nas 22 dispositivos), encontramos dispositivos depolicy em todos os demais. Percentualmente, os

títulos das “Disposições constitucionais gerais” e da“Ordem econômica e financeira” foram os queapresentaram maior freqüência de policy, comaproximadamente 70% do total de dispositivos (verGráfico 2). Na seqüência, figura o título da “Ordemsocial”, no qual cerca de 60% dos dispositivos con-templam policy e não polity. Nada menos que 1/3do título “Da tributação e do orçamento” e atémesmo do título “Direitos e garantias fundamen-tais” não contemplam matérias de natureza consti-tucional, pois se referem a policy e não a polity.Enfim, mesmo títulos referidos às linhas básicas domoderno constitucionalismo – “Da organização doEstado” e “Da organização dos poderes” – revela-ram a existência de dispositivos policy em seu inte-rior: o primeiro com taxa de 27% e o segundo comtaxa de 10% do total de dispositivos.

Como mostra a Tabela 4, dos 496 dispositi-vos classificados como policy, 205 deles (41,3%)sequer têm relação com os quatro princípiosconstitucionais definidos pela MAC e podem, por-tanto, ser considerados políticas públicas em esta-do puro. Logo, poderiam tranqüilamente integrara agenda legislativa ordinária de qualquer gover-no, sem afetar quaisquer dos princípios. Outros43,5% dos dispositivos de policy da Constituiçãoao menos tangenciam um dos quatro critérios,mas sua especificidade é tamanha que caberia àlei complementar ou ordinária discipliná-los. Pelocritério de controvérsia, 35 dispositivos que reme-tem a aspectos de polity foram desclassificados detal condição, justamente por constitucionalizaremaspectos que estão longe do consenso básicocaracterístico de regras constitucionais. Ocorreque, ao resguardá-los sob o manto protetor daConstituição, os constituintes retiraram de futurasmaiorias políticas ordinárias o direito de adotarsoluções alternativas, tão razoáveis – porém con-troversas – quanto as estabelecidas pela Carta.Outros quarenta dispositivos foram classificadoscomo policy por serem simultaneamente específi-cos e controversos.

A Tabela 5 traz a exata medida da agendalegislativa futura (de tipo complementar ou ordi-nário) criada pela Constituição: 379 dispositivosou 23,3% da Carta fixaram a necessidade de leifederal para regulamentar ou garantir a efetivida-de de princípios constitucionais. Uma tarefa depesquisa empírica é verificar em que medida as

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legislaturas posteriores lograram cumprir essamissão e quantos dos 379 dispositivos foram defato complementados e/ou regulamentados pornormatização infraconstitucional. Outros poucosdispositivos remetem a leis federais e estaduais.

Um último dado interessante, mostrado naTabela 6, é que a Constituição de 1988 contémauto-referências em 12,4% dos seus dispositivos,os quais remetem a outros pontos da própriaCarta. Uma pequena quantidade faz remissãoinclusive a determinados aspectos das constitui-

ções estaduais que iriam ser elaboradas naseqüência da federal.

Constituição e reforma constitucional

Uma das principais motivações deste estudoreside na tentativa de mensurar o impacto do per-fil da Carta constitucional sobre o processo gover-namental, a elaboração legislativa e a produção de

%0

%02

%04

%06

%08

%001

Principiosfundamentais

Defesa doEstado e dasInstituições

Democráticas

Organizaçãodos Poderes

Organizaçãodo Estado

Direitos egarantias

fundamentais

Tributação edo Orçamento

Ordemsocial

Ordemeconômicae financeira

Disposiçõesconstitucionais

gerais

Polity Policy

Gráfico 3Polity ou policy nos nove títulos da Constituição (em %)

Tabela 4Por que Policy?

Freq. %

Policy pura 205 41,3

Policy por especificidade 216 43,5

Policy por controvérsia 35 7,1

Policy por especificidadee controvérsia

40 8,1

TOTAL 496 100

Freq. %

Remetem à lei federal 379 23,3

Remetem à lei estadual 2 0,1

Remetem à lei municipal 1 0,1

Remetem a leis federal e estadual 9 0,5

Remetem a leis federal e municipal 1 0,1

Não remetem à lei 1.235 75,9

TOTAL 1.627 100

Tabela 5Dispositivos que Remetem à Legislação

Gráfico 2Polity ou Policy nos Nove Títulos da Constituição (em %)

PolicyPolity

58 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

políticas públicas. A pergunta subjacente a esseobjetivo segue sendo a mesma, desde que nosaproximamos do tema pela primeira vez: afinal,por que a Constituição brasileira de 1988 não teriaconseguido se estabilizar e por que todos osgovernos posteriores se esforçaram por modificá-la em diversos aspectos? No trabalho anterior(Couto e Arantes, 2003) em que aplicamos a MACao conjunto de emendas constitucionais promul-gadas durante os dois mandatos do presidenteFernando Henrique Cardoso, chegamos a resulta-dos surpreendentes:

1. Dos 482 dispositivos de emendas que modi-ficaram ou aglutinaram novos elementosconstitucionais, nada menos que 68,8%(332) eram de policy e apenas 31,2% (150)eram de polity.

2. Do total de dispositivos de emendas consti-tucionais, 60,8% eram aglutinadores, isto é,vieram agregar novos aspectos à Consti-tuição. Dentre os aglutinadores, nada menosque 82,7% diziam respeito a policy e apenas17,9% acrescentaram mais polity à Carta.

3. A conclusão geral a que chegamos naqueleestudo foi que, ao contrário do que se afir-mava no debate público, nossa Constituiçãonão fora mutilada pelas emendas constitu-cionais do período FHC. Pelo contrário, gra-ças a elas, a Carta cresceu nada menos que15,3%, o dobro da taxa de modificação dotexto original, nesse mesmo período, que foide apenas 8,8%.

Em suma, o crescimento do texto constitucio-nal no período FHC foi marcado pela inclusão denovos dispositivos de policy na Constituição, em

proporção significativamente superior aos dispositi-vos de polity incluídos. Compreender precisamentepor que isso ocorreu segue sendo um desafio ana-lítico e de pesquisa empírica. Nessa perspectiva,verificamos com maior acuidade sobre o que inci-diram as emendas que visaram a modificar aspec-tos do texto constitucional (se polity ou policy). Oresultado encontra-se na Tabela 7.

Embora o maior número de emendas modi-ficadoras tenha incidido sobre dispositivos de poli-ty do texto original, proporcionalmente é bemmais significativo o número de emendas sobre dis-positivos de policy, se considerarmos o perfil geralda Constituição. O fato é que teste estatístico19 rejei-tou a hipótese de independência entre as variáveisda tabela, revelando que existe uma associação entrepolicy constitucionalizada e emendas modificadoras.Noutras palavras, as mudanças constitucionais doperíodo FHC incidiram mais significativamente sobredispositivos de policy do que em dispositivos de poli-ty, o que corrobora a hipótese com a qual estamostrabalhando desde o início: a agenda política egovernamental brasileira segue sendo uma agendaconstituinte, não porque sucessivos presidentesquiseram mutilar os princípios fundamentais oupor outra razão exógena, mas porque a própriaCarta os obrigou a alterar a Constituição paraimplementar as políticas públicas. Mais do queisso, o grande legado constitucional da era FHCfoi ter acrescentado 250 novos dispositivos depolicy à Carta brasileira, constitucionalizando maisa agenda governamental e estendendo o desafiode formar coalizões legislativas majoritárias à basede 3/5 aos governos posteriores.

Tabela 6Dispositivos que Remetem à Constituição

Freq. %

Remetem à própria Carta 202 12,4

Remetem à Constituição estadual 5 0,3

Remetem a ambas 1 0,1

Não fazem remissão 1.419 87,2

TOTAL 1.627 100

DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS

Tipo de dispositivooriginal

Sofrerammodificação

Não sofrerammodificação

Polity 92 1.039

Policy 68 428

TOTAL 160 1.467

Tabela 7Constituição e Emendas Constitucionais – FHC

CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 59

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Notas

1 Poder-se-ia alegar que a opção pela modificaçãoconstitucional se dá por equívoco, e já houve críticosque afirmaram ser a opção pela emenda constitucio-nal um engano dos governos, sendo possível levaradiante iniciativas por meio de legislação ordinária.Todavia, parece pouco plausível que um governonão disponha de informação e conhecimento sufi-cientes acerca dos procedimentos exigidos em cadacaso, a ponto de optar pela via mais difícil paraimplementar sua agenda, mobilizando todos os re-cursos necessários para percorrê-la. Para uma dis-cussão sobre os diferentes instrumentos decisórios àdisposição dos governos, ver Couto (2001).

2 Souza e Lamounier, “A feitura da nova Constitui-ção: um reexame da cultura política brasileira”, emLamounier (1990).

3 O texto elaborado pela Comissão Especial deEstudos Constitucionais (Comissão Afonso Arinos)foi descartado pelo presidente José Sarney.

4 Em sua obra clássica de teoria constitucional, Schmitt(1982) aponta que a Constituição de Weimar conti-nha diversos dispositivos que não mereceriam oqualificativo de constitucionais, mas que ali foramintroduzidos pela oportunidade que alguns grupostiveram de cristalizar constitucionalmente seus inte-resses particulares.

5 Segundo Melo (2002), “Instalada em 13 de outubrode 93 e encerrada em 31 de maio de 94, a revisão, aolongo de 80 sessões, votou apenas 19 mudanças, dasquais 12 foram rejeitadas já no primeiro turno dasvotações. Das 17 mil emendas relatadas – ou melhor,simplesmente ignoradas – pelo relator, deputadoNelson Jobim, apenas seis foram aprovadas. Destasúltimas, a única emenda relevante é a que reduziu omandato do Presidente da República, de cinco paraquatro anos” (2002, p. 60).

6 Vale ressaltar um aspecto formal relevante, a saber,uma revisão constitucional é, em princípio, umprocesso promotor de mudanças muito mais fun-damentais do texto constitucional originário doque o são emendas constitucionais. Nos termos deMurphy: “A palavra emendar vem do latim emen-dere, que significa corrigir ou aprimorar; emendarnão significa ‘desconstituir ou reconstituir’, substi-tuindo um sistema por outro ou abandonando osseus princípios primários. Portanto, mudanças queviessem a transformar uma polity numa outra espé-cie de sistema político não seriam emendas, absolu-tamente, mas revisões, ou transformações” (1995, p.177). Desse ponto de vista, é curioso que no Brasila revisão constitucional fosse percebida como umaoportunidade de fazer avançar uma agenda gover-namental.

7 Ao referir-se a este período, afirma Marcus Melo: “Aocontrário da revisão constitucional, o Congresso, nareforma em curso [1995-1996], tipicamente reagiu àsiniciativas que partiram do Executivo. Os ministrosse tornaram policy advocates das propostas. OExecutivo deteve, assim, o poder de agenda durantea reforma” (2002, p. 73). Ou ainda, “embora o arran-jo institucional que prevaleceu tenha sido – em seuconjunto – menos favorável à mudança, os fatorescontextuais favoreceram amplamente o processo demudança. Na reforma constitucional [1995-1996],apesar de a rotina utilizada exigir quorum qualifica-do, tramitação longa e processo descentralizado, opoder de agenda do Executivo, num quadro de desi-

CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 61

deologização da agenda pública e ausência de cons-trangimentos eleitorais decisivos, favoreceu o gover-no” (Idem, p. 76).

8 As noções de direitos fundamentais operacionais econdicionantes são estipuladas em Couto (2005).Voltaremos a elas mais adiante.

9 Embora numa perspectiva mais filosófica e menosinstitucional do que a adotada aqui, Sartori analisa aquestão do consenso na democracia também emtrês níveis, do mais básico ao mais superficial: 1. onível básico que diz respeito ao consenso sobrevalores supremos (tais como a liberdade e a igual-dade) que habitam a cultura política; 2. o nível pro-cedimental de consenso em torno das regras dojogo político, indispensável ao funcionamento dademocracia; e 3. o nível programático do processopolítico, marcado pela discussão sobre governosespecíficos e suas políticas públicas, âmbito no qualo consenso, se houver, está em permanente tensão eajuste decorrentes do debate acerca das ações políti-cas concretas. Em outras palavras, esse terceiro nívelestá mais para o dissenso (que não ameaça o edifí-cio institucional da democracia se o consenso pro-cedimental estiver consolidado) do que para o con-senso (ver Sartori, 1994, vol. 1, pp. 127-132). Parauma discussão sobre os limites constitucionais acer-ca das políticas públicas, ver Couto (2005).

10 Decidimos recorrer ao inglês para esta terminolo-gia pelo fato de que a utilização de termos em por-tuguês perderia em clareza e precisão. Não hátermo em nossa língua que seja equivalente a poli-ty. Mesmo a expressão politéia, roubada ao grego,não é de uso corrente e sequer consta dos princi-pais dicionários. No que diz respeito a politics epolicy, a palavra em português é a mesma paraambas: política. Neste caso, precisaríamos falar otempo todo em “política” como atividade, e em“política pública”, ou “política governamental”, ouainda em “políticas”. Por uma questão de econo-mia de linguagem e clareza, optamos pelos termosem inglês.

11 Afirmamos serem estes princípios apenas relativa-mente neutros por considerar que algumas garan-tias constitucionais dadas a determinados setores deuma sociedade, tendo caráter particular, afetamdesigualmente os diversos segmentos que a com-põem. Todavia, considerando-se que a derrogaçãode tais garantias implicaria numa derrocada de todaa ordem constitucional, pode-se afirmar a sua neu-tralidade nos marcos da ordem social instituída, ouseja, num âmbito que esteja aquém de qualquer

transformação de tipo revolucionário. O tratamentoclássico dessa questão foi dado por Lassalle (2000).

12 O tema do emendamento constitucional é extensi-vamente tratado, por diversos autores, no volumeeditado por Sanford Levinson (1995). Particular-mente relevantes para nossa discussão são os capí-tulos de Lutz (1995) e Holmes e Sunstein (1995).

13 Uma posição filosófica bastante crítica da necessi-dade de que haja um texto constitucional res-guardado das vontades majoritárias é advogada porWaldron (1999). Ele afirma que um sistema pura-mente majoritário, como o britânico, garante resulta-dos melhores do ponto de vista democrático. Comodecorrência de sua posição, Waldron também serábastante crítico do papel exercido pelos tribunais nocontrole da constitucionalidade das leis. Por outrolado, para uma defesa filosófica já clássica de regrasrestritivas para uma constituição, ver Buchanan eTullock (1999 [1962]).

14 Para uma análise da evolução do constitucionalis-mo moderno e do perfil das constituições adotadasao longo do século XX, numa perspectiva compa-rada, ver Di Ruffìa (1996).

15 Stephen Holmes e Cass Sunstein (1999) apontamque todos os direitos têm custos, de modo que nãosó os direitos sociais, mas também os direitos libe-rais clássicos requerem ações efetivas do Estado(policies) para sua implementação e, portanto,dependem da capacidade que tem o governo definanciar sua implementação. Sunstein (2001) vaiainda mais longe nessa argumentação, mostrandoque é possível aos tribunais assegurar o enforce-ment de direitos sociais. Para tanto, faz uma inte-ressante análise do caso sul-africano, que apresen-taria uma constituição de tipo transformativo, emvez de apenas preservativo.

16 Estamos tratando dos direitos sociais, mas tambémalguns outros direitos são condicionantes. É o casodo direito de propriedade, que não se enquadra nacategoria de direito social de Marshall (e sim na dedireito civil), mas se constitui num condicionanteóbvio para o funcionamento de quaisquer regimespolíticos em sociedades capitalistas. Para a distin-ção entre direitos condicionantes e operacionais,ver Couto (2005).

17 Trata-se de uma primeira análise, de tipo descri-tivo, dos principais resultados da aplicação daMetodologia de Análise Constitucional. Questõesanalíticas de fundo, como por exemplo o impac-to sobre o processo decisório e sobre o funcio-

62 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

namento das instituições, receberão tratamentomais aprofundado em trabalho futuro.

18 A versão original do ADCT compreende setentaartigos ou 228 dispositivos. Em linhas gerais, tratade regras transitórias em três sentidos básicos: 1)estabelece que situações jurídicas já consolidadasremanescerão no interior do novo ordenamento jurí-dico, a despeito de ter sido introduzido tratamentodiferenciado sobre a matéria pela Constituiçãorecém-promulgada; 2) define procedimentos, prazose metas de transição para temas específicos contidosna nova Carta; e 3) estabelece situações transitóriasno sentido de provisórias, isto é, que desaparecerãogradualmente com a implantação do novo textoconstitucional. Por essas razões, consideramos queo ADCT merece classificação à parte, já que taisespecificidades podem ter impacto distinto sobre oprocesso decisório governamental.

19 Teste qui-quadrado, nível de significância de 5%.

220 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 60

CONSTITUIÇÃO,GOVERNO E DEMOCRACIANO BRASIL

Cláudio Gonçalves Couto e RogérioBastos Arantes

Palavras-chave:Constitucionalismo; Democracia;Políticas públicas; Processo gover-namental; Mudança constitucional.

A Constituição brasileira de1988 apresenta uma elevada taxa deemendamento constitucional, com 58emendas constitucionais em dezoitoanos (3,22 emendas por ano), namaior parte das vezes patrocinadaspelo Poder Executivo, visando àimplementação de políticas públicas.Como o programa governamentalpós-1988 permaneceu como umaagenda constituinte, com implicaçõesimportantes para as relações doExecutivo com o Congresso e oJudiciário, a compreensão da dinâmi-ca política brasileira atual passanecessariamente pelo entendimentode nosso perfil constitucional. Tendoisso em vista, este artigo analisa operfil da Carta de 1988 com base emseu conteúdo, distinguindo em quemedida o texto constitucional – alémde normas constitucionais propria-mente ditas – contempla políticaspúblicas, que aumentam a probabili-dade de que ele se torne objeto deiniciativas de mudança. Essa análise éfeita por meio de uma Metodologiade Análise Constitucional (MAC), de-senvolvida pelos autores, que permi-te uma interpretação do significadodos dispositivos constitucionais e suamensuração.

CONSTITUTION,GOVERNMENT, ANDDEMOCRACY IN BRAZIL

Cláudio Gonçalves Couto andRogério Bastos Arantes

Keywords: Constitutionalism;Democracy; Public policies;Governmental process;Constitutional change.

The Brazilian constitution of1988 has a high rate of constitutionalamendmenting, with 58 amendmentsin eighteen years (3.22 amendmentsper year), most of the times sponso-red by the Executive Power, aimingat implementing public policies. Dueto the fact that the post-1988 govern-mental program has abided a consti-tuent agenda with important implica-tions towards the relations betweenthe Executive and both the Congressand the Judiciary, the comprehen-sion of the current Brazilian politicaldynamics passes necessarily throughthe understanding of our constitutio-nal profile. Considered that, this arti-cle analyses the profile of the 1988constitution based on its contentsdiscerning to what extent the consti-tutional text – as well as constitutio-nal norms – contemplate public poli-cies, causing it to be more prone tochange initiatives. Such analysis hasbeen done by means of aConstitutional Analysis Methodology(Metodologia de Análise Constitu-cional - MAC) developed by the aut-hors, which allows for the interpre-tation of the constitutional devicesmeaning as well as its measurement.

CONSTITUTION,GOUVERNEMENT ETDÉMOCRATIE AU BRÉSIL

Cláudio Gonçalves Couto etRogério Bastos Arantes

Mots-clés : Constitutionnalisme;Démocratie; politiques Publiques;Processus Gouvernemental;Modification Constitutionnelle.

La Constitution brésilienne de1988 a été modifiée à plusieurs repri-ses. Elle compte 58 amendements en18 ans, ce qui correspond à 3,22amendements par an. La plupart deces amendements sont issus duPouvoir Exécutif dans le but de met-tre en place des politiques publiques.Étant donné que le programme gou-vernemental postérieur à 1988 estdemeuré un agenda constitutionnel,avec d’importantes implications ence qui concerne les relations entrel’Éxécutif par rapport au Congrès et auJudiciaire, la compréhension de la dy-namique politique brésilienne actuellepasse nécessairement par la compré-hension de notre profil constitutionnel.Dans ce contexte, cet article analyse laConstitution de 1988 par rapport à soncontenu. Il distingue dans quelle mesu-re le texte constitutionnel – mis à partles règles constitutionnelles propre-ment dites – contemple les politiquespubliques, qui augmentent la probabi-lité que la Constitution ne fasse l’ob-jet d’initiatives d’amendements. Cetteanalyse est proposée par l’emploid’une méthodologie d’Analyse Cons-titutionnelle (MAC) développée parles auteurs, de façon à permettre uneinterprétation des dispositifs constitu-tionnels et les évaluer.