As Cores de Ercília

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/26/2019 As Cores de Erclia

    1/7

    Movimentos da esfera

    pblica contempornea

    Srgio COSTA. As cores de Erclia. Esfera pblica,democracia, configuraes ps-nacionais. BeloHorizonte: Editora da UFMG, 2002. 221 p.

    Kelly Prudencio*

    A faculdade da imaginao amplia o espectro da viso para

    alm do que est em evidncia. Quando talo Calvino imagi-na cidades fictcias e descreve suas caractersticas, ele nos ofereceboas metforas para interpretar as sociedades reais. E a partir deuma delas, Erclia, que Srgio Costa procura discutir a constituioda esfera pblica e recriar um debate entre as diferentes correntesque tratam do tema, apontando suas contribuies e seus limitespara a compreenso da sociedade contempornea.

    Ao identificar modelos de esfera pblica mais utilizados e seususos no Brasil, ele recupera e atualiza o conceito de sociedade civil esitua as transformaes da democracia num contexto que vem sen-do chamado de constelao ps-nacional. Como as sociedades reaisno so organizadas como a imaginria Erclia de Calvino, a tarefatorna-se mais complicada, porm mais interessante.

    Segundo o autor, se h um consenso sobre a formulao

    geral do papel da esfera pblica, h tambm um desacordo emrelao aos processos de transformao por que ela passa nosperodos recentes. A participao dos meios de comunicao naconstituio desse espao parece ser o eixo da discusso. Esse um dos principais motivos que faz de As cores de Erclia umdocumento original, especialmente quando trata da comunica-o pblica, pois escapa dos equvocos recorrentes que se obser-vam sempre que se tematiza mdia e poltica, embora persistam

    algumas lacunas. Ainda que o sistema de comunicao de massa

    * Doutoranda do Programa de Ps-Graduao em Sociologia Poltica da UFSC.

    R

    e

    se

    n

    h

    a

    s

  • 7/26/2019 As Cores de Erclia

    2/7

    150

    N

    03outubro

    de

    2003

    p. 149 155

    seja absolvido da culpa exclusivana imposio de certos interes-ses na esfera pblica e tratado como espao ambivalente, ele ain-da concebido como o imprio que compromete a consolida-o da democracia.

    Esse conflito se desdobra nos dois modelos de esfera pbli-ca apresentados por Costa. O primeiro d nfase na impossibili-dade de entendimento comunicacional na esfera pblica, conce-bida como espao de encenao poltica. Governo, partidos pol-ticos, grupos organizados e meios de comunicao so os atoresprivilegiados, detentores do poder de tematizao pblica deproblemas. O resto da populao a platia, no incorporadaaos processos de formao de opinio pblica. Os movimentossociais atuam no hiato entre a esfera pblica e o pblico e lutampara arregimentar ateno para outros problemas. Seu sucesso,segundo essa perspectiva, depende da habilidade para manipu-lar recursos comunicativos, o que acaba por esvaziar sua estrat-gia persuasiva. como se o imperativo do espetculo sacrifi-casse o debate substantivo. Costa observa que esse diagnsticopessimista (e apocalptico, para usar um termo de Umberto Eco) compartilhado pelos pesquisadores da comunicao na Amri-ca Latina, segundo o qual forma e contedo, estetizao e argu-mentao so variveis opostas e excludentes. A concluso(questionvel) desses autores que no h debate racional numespao pblico capitaneado pela mdia.

    A outra perspectiva com a qual o autor dialoga d maisateno ao conjunto de instituies e possibilidade de formasdiscursivas de comunicao pblica que relativizam a aomanipulatria dos meios de comunicao. Considera ele que hprocessos de reelaborao das mensagens transmitidas pelosmeios de comunicao, porque simultaneamente ocorre um pro-cesso de modernizao do mundo da vida com o surgimento denovos locais de realizao de formas crticas de comunicao. Aquij se percebe uma ambivalncia da esfera pblica: nela desembo-cam tanto os fluxos comunicativos do mundo da vida como osesforos de uso dos meios de comunicao com interesses polti-cos. Mas quando Costa diz que essas formas comunicativas de-senvolvidas no mundo da vida resguardam a crtica, ele parece

  • 7/26/2019 As Cores de Erclia

    3/7

    151

    Kelly Prudencio

    Movimentos da esfera pblica contempornea

    R

    esenhas

    p. 149 155

    sustentar a idia de que os meios de comunicao constituemum risco a ser controlado pelo seu uso correto.

    Esses dois modelos vo estar presentes nas anlises do espa-o pblico brasileiro. A primeira linha argumentativa, seja na pes-quisa em comunicao ou na Cincia Poltica, responsvel pelareduo dos meios de comunicao a instrumentos de reproduode relaes de poder dadas e de difuso da ideologia dominante.Inevitavelmente, as receitas para a debilitada democracia re-presentativa so sempre o fortalecimento do espao pblico pelapromoo institucional do poder dos atores corporativos.

    Pensando a democratizao brasileira, Costa recusa essaidia de uma esfera pblica como mero mercado de opinies, oque, segundo ele, no apreende as transformaes recentes. Eleobserva um processo no de obliterao, mas de construo efe-tiva de uma esfera pblica no Brasil e uma relativa porosidade damdia para absorver e processar temas trazidos pelos atores dasociedade civil. Tambm alerta que a no distino adequada dosatores e grupos de interesse perde de vista o que h de especfico

    na ao dos movimentos sociais, cuja maneira de defender inte-resses diferente daquela dos grupos corporativos (e que, por-tanto, no d para desejar sua institucionalizao).

    Como a discusso sobre esfera pblica no pode prescindirdo conceito de sociedade civil, Costa retoma seus principais as-pectos para propor sua reviso. Depois de descrever sua trajet-ria terica, localiza os espaos nos quais se deu seu revival: astransformaes polticas no Leste europeu, a resistncia aos regi-

    mes militares na Amrica Latina, as crticas ao Estado de bem-estar, assim como ao neoconservadorismo na Europa e demo-cracia liberal nos Estados Unidos.

    O autor afirma que o conceito virou um passe-partoutteri-co, com plausibilidade emprica discutvel. A idia de sociedadecivil como reservatrio de virtudes leva a uma sobrevalorizaodo potencial poltico das associaes voluntrias. Alm disso, acomunicao voltada para o entendimento no monoplio da

    sociedade civil, o que a torna uma referncia pouco adequada negociao de um consenso.

  • 7/26/2019 As Cores de Erclia

    4/7

    152

    N

    03outubro

    de

    2003

    p. 149 155

    Essas crticas no significam que a categoria deva ser des-cartada, mas revista. Costa prope pensar a sociedade civil comoum contexto de ao no qual atores que no querem ser assimila-dos nem por partidos nem pelo Estado apresentam formas sem-pre renovadas de manifestao. As associaes da sociedade civilconstituem apenas uma das foras de transformao nas insti-tuies democrticas. As possibilidades de influncia dos atoresda sociedade civil baseiam-se na capacidade de canalizar aten-es e sua identidade constituda no contexto das prprias aes.

    Essa cautela metodolgica importante para compreendera construo do espao pblico no Brasil. A sociedade civil , apartir dessa percepo, uma das esferas sociais que participam desseprocesso. nela que ocorre a ampliao do espectro de problemasque saem da esfera privada para serem tematizados na esfera p-blica. Refere-se o autor aos atores coletivos que oferecem novasformas de percepo sobre questes de gnero, raciais, ecolgicase de distribuio material. Temas que sero captados por uma ou-tra esfera, a dos meios de comunicao. E nesse processo queCosta percebe uma mediao, ou, como prefere, uma interessanteconstelao de interesses, que faz com que as mensagens dosmeios de comunicao sejam ideologicamente ambivalentes, ouseja, no mero instrumento de difuso ideolgica, apesar da con-centrao da propriedade dos meios de comunicao no Brasil.

    Quando destaca, porm, a partir dessa ambivalncia, a im-portncia da mdia na construo de um espao pblico demo-crtico no Brasil, Costa confunde o que ficou conhecido comoimprensa alternativa com a emergncia de um novo conceito dejornalismo. Na verdade, no consenso que aquela experinciados anos setenta caracterizada um outrojornalismo ou se na ver-dade tratava-se apenas de um jornalismo de oposio. No haviauma outraforma de falar sobre os fatos, ou seja, no era comosefalava da situao, mas o qu. Porque o jornalismo convencionaltambm fazia (e faz) denncia. Talvez por isso Costa ache curiosaa uniformizao do tratamento das informaes que se processacom o avano da democratizao.

    Na outra ponta, est o que o autor chama de espaos co-municativos primrios, esfera na qual ocorrem processos de for-

  • 7/26/2019 As Cores de Erclia

    5/7

    153

    Kelly Prudencio

    Movimentos da esfera pblica contempornea

    R

    esenhas

    p. 149 155

    mao de opinio pblica paralelos aos dirigidos pelos meios decomunicao, onde as mensagens so ressignificadas e onde seformam outras interpretaes e representaes da realidade. Aimportncia desses espaos comunicativos primrios (bem comodos atores da sociedade civil e da mdia) na constituio dos es-paos pblicos fica evidente na pesquisa realizada em trs muni-cpios mineiros que tiveram experincias administrativas de tipoparticipativo, apresentada pelo autor no captulo IV.

    Essas transformaes da esfera pblica no Brasil abalamcertas narrativas que procuravam atribuir nao uma culturaunificada. O mito da democracia racial, consagrado pelo pensa-mento de Gilberto Freyre, deixa de existir no pas diante da pro-moo de diferenas culturais e da reintroduo do conceito deraa nas polticas de combate ao racismo, o que provoca umaruptura na homogeneidade construda pela ideologia damestiagem. O esforo pela diferenciao e afirmao de particu-laridades culturais, e no pela fuso, afasta tambm a noo dehibridismo, desenvolvida por Canclini, para a realidade brasilei-ra. O conceito de raa, importante para uma poltica de afirmaoda diferena, no entanto, inadequado porque reducionista parao estudo das desigualdades sociais produzidas no pas. No seulugar, Costa sugere o conceito de segregao.

    A partir dessas reflexes, o autor situa ento os contornosda esfera pblica e da democracia no debate sobre a globalizao.Segundo ele, esse processo reconfigura as comunidades polti-cas, redefine laos de pertena entre os membros das naes eapresenta configuraes ps-nacionais. Entre as principais carac-tersticas desse cenrio esto uma certa presso homogeneizadorade uma cultura mundial global, junto com movimentos de resis-tncia regionais; a intensificao de movimentos migratrios, quecolocam desafios para as democracias maduras, uma vez que pro-liferam tambm as crticas s polticas assimilacionistas; e a valo-rizao da diferena; crescimento de intercmbios comunicativosproporcionados pelas tecnologias informticas, que possibilitamtrocas para alm do espao nacional, provocando um descola-mento das formas culturais de seus locais de origem.

  • 7/26/2019 As Cores de Erclia

    6/7

    154

    N

    03outubro

    de

    2003

    p. 149 155

    A essas dinmicas, contudo, subjazem questes que se si-tuam na interface entre democracia e globalizao. Em primeirolugar, no empiricamente evidente que os novos contextos co-municativos transnacionais constituem de fato uma esfera pbli-ca mundial. Em segundo lugar, o esforo de transnacionalizaodos movimentos sociais provoca uma tenso entre cultura e pol-tica, uma vez que aspiraes universais podem chocar-se comrealidades particulares.

    Costa prefere sustentar que as formas de sociabilidadetransnacional no assumem contornos de uma sociedade civilglobal e de uma esfera pblica nacional. O que ele verifica soredes de atores sociais que se desprenderam, em parte, de suasreferncias nacionais, e o estabelecimento de fruns transna-cionais diversos e segmentados. Mas nas esferas pblicas na-cionais que as questes tratadas nesses contextos comunicati-vos ganham repercusso.

    Desse modo, as referncias a uma sociedade civil mundial,a uma esfera pblica global e a uma cidadania cosmopolita indi-

    cam mais um desejo poltico de estender s demais regies domundo um conjunto de direitos e instituies que se tornaramuma espcie de padro de democracia. Essas expresses so, por-tanto, equvocas, porque tal espao no existe e nem se encontraem formao. Costa argumenta que preciso observar onde sefunda a legitimidade das aes transnacionais dos atores coleti-vos, sem recorrer idia de uma sociedade civil global.

    Essa recusa importante para entender como a leitura da

    globalizao como irradiao de uma dinmica social de um cen-tro para o resto do mundo incompatvel com alguns desenvolvi-mentos observados no Brasil. Seja como diferenciao funcional(Luhmann) ou expanso da reflexividade (Beck e Giddens) duascorrentes da teoria sobre a globalizao elencadas pelo autor asgeneralizaes no do conta das formas sociais no consideradasmodernas ou das mistas, que se desenvolvem nas sociedades peri-fricas, e de dinmicas que influenciam processos na Europa e Es-

    tados Unidos, bem como no problematizam as formas distintasde percepo dos problemas que afetam a humanidade. O que Costaquer mostrar que as categorias sociolgicas desenvolvidas por

  • 7/26/2019 As Cores de Erclia

    7/7

    155

    Kelly Prudencio

    Movimentos da esfera pblica contempornea

    R

    esenhas

    p. 149 155

    esses autores contribuem pouco para compreender sociedades comoa brasileira. Nas palavras do autor,

    se a idia de democracia das emoes adquire sentido claro eemancipatrio como desenvolvimento ulterior famlia nuclear puri-tana, ela mostra-se desfocada no mbito de uma sociedade ps-escravocrata e que desconhece mecanismos oficiais efetivos de pro-teo da maternidade e da infncia (p. 178).

    Dessa forma, cabe aos cientistas sociais brasileiros a cons-truo de categorias analticas que permitam pensar as dinmi-

    cas sociais contemporneas, sem cair na tentao de transporimediatamente conceitos desenvolvidos em outros contextos so-ciais e acadmicos. Esse o convite de As cores de Erclia, umesforo do autor para ajudar a revelar as cores das cidades reais,carreg-las de tinta e definir seus traos que, embora muito pin-tados, andavam um pouco borrados.