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A DECORAÇÃO INTERNA DO PALÁCIO DO CATETE: REAPROPRIAÇÕES MONÁRQUICAS NA NOVA CASA DA REPÚBLICA Isabella do Amaral Mendes Mestre em História Social (PPGHIS-UFRJ) [email protected] Introdução: A cidade do Rio de Janeiro guarda em meio ao seu agitado cotidiano verdadeiras relíquias arquitetônicas de um passado não tão distante. Uma delas, inicialmente conhecida como palácio Nova Friburgo, está localizada na Rua do Catete e atualmente abriga o Museu da República, criado em 15 de novembro de 1960. Construído entre os anos de 1858 e 1867 para ser a residência urbana do português Antonio Clemente Pinto 1 , o barão de Nova Friburgo, o palácio Nova Friburgo se tornou símbolo da afirmação pública do grandioso poder econômico, relevância social e sentimento de pertencimento à nobreza de seu idealizador. Cada ambiente foi cuidadosamente elaborado e ornado com o que havia de mais nobre e refinado à época, passando a ser objeto de desejo da elite da corte. O luxo e exuberância da decoração de seus salões mexia com a imaginação dos frequentadores do espaço o barão costumava realizar festas e bailes com frequência e da população da corte em geral. Os mais de 30 salões da residência foram inspirados nos costumes e gostos europeus, compreendidos pela sociedade do século XIX como manifestações de civilização e refinamento. Ao ornarem suas residências com os padrões decorativos 1 A trajetória da família Clemente Pinto egressa de Portugal para o Brasil no início do século XIX relaciona-se intimamente com as raízes imperiais do projeto arquitetônico do palácio Nova Friburgo, construído entre 1858 e 1867 por Antonio Clemente Pinto, o primeiro barão de Nova Friburgo. Membro desta importante família de cafeicultores do centro-norte fluminense, Antonio Clemente Pinto desejava apresentar-se à elite urbana da corte utilizando seu novo palacete urbano como cartão de visitas. O projeto arquitetônico do palácio Nova Friburgo, de autoria do arquiteto prussiano Gustav Waehneldt, reflete também uma nova forma de se pensar o urbanismo no Brasil no final do século XIX, quando o período cultural cosmopolita caracterizado como belle époque influenciou a elite local do segundo reinado com os gostos e costumes europeus. Cada ambiente do palácio Nova Friburgo foi cuidadosamente preparado de forma nada austera a partir de materiais e mobiliário nobres. A rica decoração interna fora coordenada por um relevante time de artistas brasileiros e estrangeiros, muitos formados pela Academia Imperial de Belas Artes, escola superior de arte fundada no Rio de Janeiro por D. João VI.

A DECORAÇÃO INTERNA DO PALÁCIO DO CATETE ......A partir de um acervo de fontes localizado na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, foi possível determinar que as discussões

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A DECORAÇÃO INTERNA DO PALÁCIO DO CATETE: REAPROPRIAÇÕES

MONÁRQUICAS NA NOVA CASA DA REPÚBLICA

Isabella do Amaral Mendes

Mestre em História Social (PPGHIS-UFRJ)

[email protected]

Introdução:

A cidade do Rio de Janeiro guarda em meio ao seu agitado cotidiano verdadeiras

relíquias arquitetônicas de um passado não tão distante. Uma delas, inicialmente

conhecida como palácio Nova Friburgo, está localizada na Rua do Catete e atualmente

abriga o Museu da República, criado em 15 de novembro de 1960.

Construído entre os anos de 1858 e 1867 para ser a residência urbana do

português Antonio Clemente Pinto1, o barão de Nova Friburgo, o palácio Nova Friburgo

se tornou símbolo da afirmação pública do grandioso poder econômico, relevância

social e sentimento de pertencimento à nobreza de seu idealizador. Cada ambiente foi

cuidadosamente elaborado e ornado com o que havia de mais nobre e refinado à época,

passando a ser objeto de desejo da elite da corte. O luxo e exuberância da decoração de

seus salões mexia com a imaginação dos frequentadores do espaço – o barão costumava

realizar festas e bailes com frequência – e da população da corte em geral.

Os mais de 30 salões da residência foram inspirados nos costumes e gostos

europeus, compreendidos pela sociedade do século XIX como manifestações de

civilização e refinamento. Ao ornarem suas residências com os padrões decorativos

1 A trajetória da família Clemente Pinto – egressa de Portugal para o Brasil no início do século XIX –

relaciona-se intimamente com as raízes imperiais do projeto arquitetônico do palácio Nova Friburgo,

construído entre 1858 e 1867 por Antonio Clemente Pinto, o primeiro barão de Nova Friburgo. Membro

desta importante família de cafeicultores do centro-norte fluminense, Antonio Clemente Pinto desejava

apresentar-se à elite urbana da corte utilizando seu novo palacete urbano como cartão de visitas. O projeto

arquitetônico do palácio Nova Friburgo, de autoria do arquiteto prussiano Gustav Waehneldt, reflete

também uma nova forma de se pensar o urbanismo no Brasil no final do século XIX, quando o período

cultural cosmopolita caracterizado como belle époque influenciou a elite local do segundo reinado com os

gostos e costumes europeus. Cada ambiente do palácio Nova Friburgo foi cuidadosamente preparado de forma nada austera a partir de materiais e mobiliário nobres. A rica decoração interna fora coordenada por

um relevante time de artistas brasileiros e estrangeiros, muitos formados pela Academia Imperial de Belas

Artes, escola superior de arte fundada no Rio de Janeiro por D. João VI.

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europeus, a elite imperial brasileira acreditava alcançar a civilité, se diferenciando do

passado colonial difundido como precário e atrasado.

Em 1896, após ser comprado pelo governo federal, o palácio Nova Friburgo

passou por obras de adaptação para se tornar a nova sede e residência oficial da

presidência da República brasileira, alterando também o nome do edifício para palácio

do Catete. Os trabalhos de reforma do palácio, coordenados pelo engenheiro paraense

Aarão de Carvalho Reis, procuraram preservar ao máximo a decoração original do

edifício, executando modificações pontuais, mas também aplicando aos ambientes

novos símbolos e referências ligadas diretamente ao novo governo republicano. Como

resultado final, a decoração dos salões do palácio do Catete passou a apresentar a

combinação dos ornamentos decorativos e estética do passado imperial com novos

símbolos criados para representar a República.

A problemática desta pesquisa se dá a partir do pressuposto que o palácio, ao ser

escolhido para ser a nova sede do poder executivo, deveria abandonar estes antigos

símbolos ligados ao Império e priorizar outros que representassem diretamente o

governo republicano. Porém, o que identificamos na decoração do palácio foi

justamente a reapropriação da estética idealizada em tempos imperiais para promover o

primeiro governo civil da República brasileira.

Um dos pontos principais desta pesquisa é a exposição de como ocorreu a

decisão pela compra do imóvel a partir de debates na câmara dos deputados em 1895.

Inúmeros acessos à Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional possibilitaram que nos

deparássemos com um conjunto de fontes pouco trabalhado pelos estudiosos deste tema:

os Annais da Câmara dos Deputados2 de 1895.

A revelação da participação direta do Banco da República do Brasil na aquisição

do palácio Nova Friburgo nos fez descobrir que Aarão de Carvalho Reis era o diretor do

Banco da República do Brasil naquele período e não apenas um engenheiro contratado

para a função, como parte da bibliografia sobre o palácio do Catete costuma sugerir. A

partir da ligação entre Aarão Reis e a reforma de 1896, nossa principal hipótese passou

a atribuir ao personagem à autoria dos símbolos republicanos aplicados à decoração

original remanescente nos salões do palácio.

2 Annaes da Câmara dos Deputados, 17 de agosto de 1895.

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Por fim, o palácio do Catete possui um duplo papel: desde a sua construção,

constituiu-se como um espaço da memória, do poder das elites dirigentes dos tempos

imperiais e republicanos. A partir de sua transformação em Museu da República em

1960, passou a ser também um espaço de memória, onde são guardados os registros da

vida pública e privada de algumas celebridades da República. O palácio em si, talvez a

peça mais importante do vasto acervo de 9 mil peças, é uma das maiores expressões da

arquitetura civil brasileira do final do século XIX. Atualmente, a conservação de seus

ambientes originais pelo Museu da República – classificado pelo ICOM3 como um

museu-casa – garante a perenidade histórica dos interiores de um monumento que faz

parte da memória nacional e que, dessa forma, oferece um possível relato dos hábitos,

gostos, costumes e posição social de seus antigos habitantes e frequentadores.

As reapropriações monárquicas no interior do palácio do Catete

Em 24 de fevereiro de 1897, data em que se comemorava o sexto aniversário da

promulgação da primeira Constituição da República, o presidente interino Manuel

Vitorino – vice-presidente de Prudente de Morais – inaugurou o palácio Nova Friburgo

como a nova sede e residência oficial da presidência da República em meio a uma

grandiosa cerimônia, que contou com a presença de autoridades brasileiras e

estrangeiras, além de outras figuras ilustres tais como Machado de Assis, Coelho Neto,

Olavo Bilac e Arthur Azevedo.

Apesar das grandes festividades públicas, a aquisição4 do palácio Nova Friburgo

para servir à presidência advém de uma grande polêmica entre os representantes da

3 International Council of Museums, organização internacional criada em 1946 com o objetivo de garantir

a conservação e proteção dos bens culturais ao redor do mundo. Para mais: <http://icom.museum/>

Acesso em 10 set. 2015. 4 Em fins de 1890, o Conde de São Clemente, herdeiro do barão de Nova Friburgo, decidiu vender o

palácio Nova Friburgo à recém-criada Companhia do Grande Hotel Internacional. Esta companhia,

empreendimento do banqueiro Francisco de Paula Mayrink, foi mais um exemplo de sociedade concebida

sob o efeito da especulação descontrolada durante o período do encilhamento. Segundo consta, foi

fundada em julho de 1890 com o objetivo específico de comprar o palácio Nova Friburgo para estabelecer

no Rio de Janeiro, e em Petrópolis, empreendimentos hoteleiros de grande porte. Os efeitos nefastos da

crise econômica da primeira década republicana atingiram em cheio a Companhia, que decretou falência. Em 1895, envolvido em circunstâncias financeiras desfavoráveis, Francisco de Paula Mayrink foi

obrigado a hipotecar o palácio Nova Friburgo como condição para adquirir um empréstimo que pudesse

sanar suas dificuldades financeiras. Após quitar este primeiro empréstimo, Mayrink precisou recorrer a

uma nova hipoteca como garantia de crédito com o Banco da República do Brasil. Em 31 de março de

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classe política republicana, iniciada após debate inédito iniciado em 1895 e travado até

meados de 1896 na Câmara dos Deputados Federais. Esta polêmica se deu

principalmente mediante às dúvidas em relação aos valores empenhados na transação de

compra. Outro detalhe importante desta polêmica refere-se à argumentação apresentada

pelo Deputado José Carlos Carvalho5, autor da proposta, para justificar a necessidade da

transferência de sedes – até então estabelecida no palácio do Itamaraty –, sustentada a

partir de motivos particulares, intimamente ligados às opiniões individuais e um tanto

vaidosas.

Imediatamente após a proclamação da República, o governo provisório adquiriu

o palácio do Itamaraty6 para alocar a nova sede do poder executivo. Inicialmente, foi

cogitada a possibilidade de a estabelecerem no Paço Imperial, porém esta escolha

revelou-se problemática porque o edifício era “impregnado de tradição monárquica aos

olhos do povo” 7 por ter sido a residência oficial dos antigos imperadores. Em 1895,

segundo ano do quadriênio de Prudente de Morais, decidiu-se pela necessidade de

transferir o poder executivo para um novo local da capital. As circunstâncias desta

decisão envolvem uma série de polêmicas e personagens distintos, detalhes até agora

pouco explorados pela historiografia, mas que são essenciais para analisarmos este

período da República brasileira, principalmente quando pretendemos refletir sobre suas

características elitistas.

1896, as partes fizeram um acordo de distrato da hipoteca, o que significou a venda do palácio Nova

Friburgo à Fazenda Federal por uma quantia de 3 mil contos de réis. Neste mesmo dia, após lavrada a

escritura que transferia a propriedade ao Governo Federal, o palácio Nova Friburgo passou oficialmente a

ser considerado como patrimônio da União. 5 José Carlos Carvalho nasceu no Rio de Janeiro, em setembro de 1847. Matriculou-se na Escola da

Marinha em 1864 e, ainda como aspirante, serviu na Guerra do Paraguai até 1866, quando deixou o

campo de batalha para concluir sua formação. Retirou-se da Marinha em 1880 e passou a exercer a

carreira de engenheiro, se tornando sócio do Clube de Engenharia e funcionário do escritório Hugo

Wilson & Son, empreiteira responsável por realizar obras públicas no Brasil. Também se dedicou à

carreira jornalística, sendo colaborador dos periódicos Gazeta de Notícias e O Paiz. Em 1894 foi eleito

Deputado Federal pelo Distrito Federal. 6 Antiga propriedade do Conde de Itamaraty no Rio de Janeiro, o palácio oitocentista – atualmente

localizado na movimentada avenida Marechal Floriano – foi projetado por José Maria Jacinto Rabello,

discípulo do arquiteto Grandjean de Montigny, responsável por implantar o estilo neoclássico na corte

brasileira. Conhecido como “palácio da rua larga” – pois era localizado na Rua Larga de São Joaquim –, ficou pronto em 1854 e era utilizado pelo Conde e sua família apenas como espaço para oferecer grandes

festas. Fonte disponível online em www.multirio.rj.gov.br/index.php/leia/reportagens-

artigos/reportagens/3588-o-rico-acervo-do-palacio-itamaraty consulta em 6 jan. de 2018, 15h. 7 Jornal do Commercio, Sem Título. Rio de Janeiro, 20 fev. 1897.

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A partir de um acervo de fontes localizado na Hemeroteca Digital da Biblioteca

Nacional, foi possível determinar que as discussões a respeito da transferência entre as

sedes se iniciaram em 28 de agosto de 1895, e identificamos o deputado José Carlos

Carvalho como mais um elemento da equação.

Segundo consta8, em 1895, por ocasião da discussão do orçamento da despesa

do Ministério da Fazenda para o ano de 1896, o Deputado José Carlos Carvalho

apresentou à Comissão de Orçamento da Câmara uma emenda de sua autoria, aprovada

por unanimidade, na qual pedia autorização para que o governo comprasse o palácio

Nova Friburgo e ali estabelecesse a nova residência e sede da presidência da República.

De acordo com a argumentação do deputado as repartições públicas do Rio de

Janeiro ocupavam prédios alugados, muitos deles julgados como inadequados para a

execução destas funções, então, seria vantajoso para o governo obter pelo Banco da

República novos prédios e terrenos a partir de crédito relativo às dívidas9 que o BRB

tinha com o Tesouro Nacional. Porém, a principal justificativa do deputado diz respeito

à antipatia que alimentava em relação ao palácio do Itamaraty, como destacado neste

trecho de seu discurso:

Mas voltando, Sr. Presidente, à emenda relativa ao palácio do

Itamaraty, tenho a acrescentar que a fiz porque, confesso, não tenho simpatias por essa casa (...) O Itamaraty, ao meu ver, não é casa que se

deva dar ao chefe da nação para morada. É um casarão, dizem, mas

sem conforto algum, sem distinção: imprestável para morada de família. Não terei dúvida em oferecer uma indicação no orçamento da

Fazenda, para que se faça a aquisição do palácio Friburgo para

residência do presidente da República e o aproveitamento do

Itamaraty para qualquer repartição pública que careça mudar de casa.10

A proposta de emenda de José Carlos Carvalho foi convertida em lei11 a qual dispõe o

seguinte:

8 Annaes da Câmara dos Deputados, 17 de agosto de 1895. 9 A origem desta dívida entre o BRB e o Tesouro Nacional era fruto da crise econômica herdada a partir

da proclamação da república. O Banco da República do Brasil (BRB) é resultado da fusão do Banco da

República dos Estados Unidos do Brasil (BREUB) com o Banco do Brasil (BB) em dezembro de 1892,

mais uma tentativa do governo de conter a crise financeira e a emissão desenfreada de papel moeda. Apesar da fusão, os problemas financeiros de ambas as instituições de origem não foram quitados, sendo

transmitidos naturalmente ao novo banco. 10 Gazeta de Notícias, setembro de 1895. 11 Art. 8, n. 6, da lei n. 360, de 30 de dezembro de 1895.

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É o governo autorizado a receber do Banco da República, por conta do

débito deste para com o Tesouro, prédios sítios no Distrito Federal, que forem julgados precisos para a instalação de serviços públicos.12

Foi desta forma, então, por meio de um encontro de contas entre o governo e o

Banco da República, que o palácio Nova Friburgo foi comprado pela quantia de 3.000

contos de réis em 18 de abril de 1896, data em que foi lavrada a escritura de transmissão

do imóvel ao Patrimônio da União.

A aquisição do palácio como pagamento desta dívida – que em 1896, após

investigação interna do BRB, somava 184.000:000$000,13 considerada maior do que o

capital disponível e, então, impagável – não ficou isenta de receber questionamentos de

diversas ordens. Em 10 de junho de 1896, já iniciados os trabalhos de reforma e

adaptação do palácio, foram levados ao plenário da Câmara dos Deputados, por Cesar

Zama,14 os seguintes protestos:

(...) tenho o direito (...) de perguntar ao presidente da República, com que autorização legal e em nome de que necessidade urgente, quando

o país jaz na miséria, quando o povo estrebucha de fome, quando os

gêneros de primeira necessidade estão tão altos e custam tão caro, quando se faz pomposa exibição de um programa de economia a todo

o transe, com que direito S. Ex. tirou 3.000:000$ do Tesouro para

comprar o palácio Nova Friburgo (...) Senhores, a democracia não é

isto, é um governo barato, de simplicidade, sem luxo, (...) estamos com um governo democrático dez vezes mais caro que o Imperial!15

12 Annaes da Câmara dos Deputados, 10 de junho de 1896. 13 Banco do Brasil S.A. História do Banco do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Gráfica Ipiranga, 1988, p.

126. 14 Aristides Augusto César Espínola Zama nasceu na Bahia em 1837. Filho de família tradicional,

formou-se em medicina, mas seguiu a carreira política, ocupando o cargo de deputado pela Bahia até o fim do Império. Logo após a proclamação da República, Zama fundou um pequeno periódico político

chamado “O pequeno jornal” que ficou conhecido por ser oposição ferrenha ao novo governador da Bahia

– nomeado pelo governo provisório do Marechal Deodoro – Manuel Vitorino. Em 1894, assumiu como

deputado federal, sendo reconhecido por seu caráter liberal e progressista. Fora responsável por assinar

uma emenda que dava direitos políticos às mulheres (ainda que estas obedecessem a pré-requisitos

conservadores, como ter diploma e ser casada). Zama fora um dos principais críticos à incursão em

Canudos e, sob o pseudônimo de Wolsey, publicou a obra Libelo republicano – comentários sobre a

campanha de Canudos, considerada como referência sobre o conflito, ao lado de Os Sertões, de Euclides

da Cunha. Zama denunciou nesta obra aquilo que chamou de “carnificina dantesca”, ainda denunciou o

governo por ter gastado tanto dinheiro – em tempos de crise – para deslocar armas e tropas com o intuito

de exterminar a atmosfera pacífica em Belo Monte e matar pessoas inocentes. Faleceu em 1906, aos 69 anos, casado, mas não deixou filhos. Fonte disponível online:

http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/ZAMA,%20C%C3%A9sar.pdf. Acesso

em 8 abr. 2018, 12h30. 15 Annaes da Câmara dos Deputados, 10 de junho de 1896.

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À ocasião, Zama entrou oficialmente com um requerimento, o qual discorria:

Requeiro que o governo da República informe em que disposição de

lei se firmou para a compra do palácio Friburgo por 3.000:00$ e para

despender mais 600:000$ para ornamentação do mesmo edifício.16

Não está explicitada no texto da lei n. 360 que a autorização do orçamento era

para se comprar especificamente o palácio Nova Friburgo, ainda que Carvalho tenha

mencionado este desejo em seu discurso de 1895 e tenha descrito em seu projeto17 de

Lei que almejava a compra de uma residência presidencial.

Cesar Zama questionou diretamente a completa falta de necessidade da

presidência da República de transferir o local de sua sede, já alocada em um belo

palácio comprado pelo governo provisório. Este questionamento deixou em evidência

que as motivações para a aquisição do palácio Nova Friburgo, para além dos

determinantes econômicos, apresentaram elementos de cunho pessoal, ligados às

vaidades e caprichos do deputado José Carlos Carvalho – enquanto autor da proposta - e

provavelmente ressonantes nos demais que votaram em unanimidade pela aprovação de

sua emenda, levando em conta que não era segredo qual o edifício visado pela elite

política.

O palácio do Itamaraty estava localizado na Rua Larga, logradouro pertencente

ao antigo centro da cidade, zona comercial e de casas populares. Marcus Vinicius

Macri18 complementa esta informação citando que o desejo do governo federal era

“encontrar um local menos vulnerável às pressões populares, tão fortes enquanto a

presidência esteve localizada no palácio Itamaraty”. Já o palácio Nova Friburgo

encontrava-se no Catete, bairro residencial de atributos aristocráticos e com acesso ao

mar, condições que agradavam a elite republicana, como pode ser apreendido a partir da

coluna “Au jour le jour”, publicada no “jornal de elite” A Notícia: “(...) o Palácio

Friburgo tem, contudo, aparência mil vezes superior à do chatíssimo palácio da rua

16 Idem. 17 Projeto de Lei n.142 de 1895: “Fica o governo autorizado a receber do Banco da República do Brasil,

por conta de seu débito ao Tesouro Nacional, prédios e terras existentes no Distrito Federal, que forem

julgados convenientes para a instalação de repartições públicas e residência do presidente da República”.

Fonte: Gazeta de Notícias, 21 de fevereiro de 1897. 18 RODRIGUES, Marcus Vinicius Macri. Dissertação (Mestrado em História Comparada). Salão de

Banquetes do Palácio do Catete: a invenção de uma tradição clássica nos trópicos, História Comparada

entre as representações imagéticas de Pompéia e as do Palácio do Catete. Universidade Federal do Rio

de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2016, p. 21.

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Larga, além de estar colocado em local muito mais distinto e aprazível – no bairro

aristocrático da Capital Federal”.19

Presumivelmente, pouco importavam estes detalhes envolvendo a

vulnerabilidade do edifício para abrigar a residência presidencial, mas o que estava em

jogo para os setores da elite política era transferir a República para um lugar com

distinção, cercado por mais luxo e privilégios mesmo estando mergulhada em um

cenário de grave crise econômica. Esta afirmação se sustenta ao trazermos o trecho da

matéria do jornal O Paiz, de 1896, em reação à compra do palácio Nova Friburgo “O S.

Ex. ficará mais no seio do seu povo, distanciado da incomoda vizinhança da central e

mais perto dos banhos de mar (...)”.20

Como é possível notar, tratava-se de um governo que isolava os cidadãos em

grupos distintos, a propósito, esta era a forma como a sociedade imperial se organizava:

a partir da distinção qualitativa de seus integrantes. Angela Alonso explica que a

sociedade imperial separava os seus cidadãos políticos – oriundos dos estamentos

senhoriais dominantes e representantes da “opinião pública”21 – do resto dos demais.

Ao retirar a sede presidencial da zona central – popular – e instalá-la no bairro

aristocrático – no seio de “seu povo, seus iguais” – percebemos que o advento

republicano não rompera com este modus operandi do Império.

Todo o simbolismo elitista ligado a este episódio da transferência de sedes nos

trouxe a suspeita de que o poder republicano – em crise, questionado e desmoralizado –

procurava estratégias que auxiliassem na melhora da moral do governo perante os

cidadãos, fossem eles das camadas populares ou da elite, afinal, “a elaboração de um

imaginário é parte integrante da legitimação de qualquer regime político”.22 Buscava-se

um poder sem corpo, uma representação visível de sua potência e direito enquanto

governo e República.

A República brasileira, ao comprar o palácio Nova Friburgo, buscava um trono

para si, pois o imóvel, apesar da monarquia derrotada, ainda demonstrava ter

19 ROURE, Agenor de. “Au jour le jour – palácio do presidente”. In: A Notícia. Rio de Janeiro, 23 de

setembro de 1896. 20O Paiz, Rio de Janeiro, 1896. 21 ALONSO, Angela. Ideias em movimento – A geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz

e Terra, 2002, p. 63. 22 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas – O imaginário da República no Brasil. São

Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 10.

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legitimidade enquanto símbolo de poder

perante o imaginário da população

brasileira.

Exemplos de reapropriações

imperiais podem ser encontrados em

praticamente todos os símbolos e mitos

criados em meio à disputa simbólica da

época da proclamação – tais como a

bandeira brasileira e o brasão

republicano. Este imaginário social em

disputa também pode ser explicado a

partir de um deslocamento no qual os

símbolos previamente disponíveis

ganham novos significados, sendo assim

caracterizado como a construção de uma

mentira. Para Castoriadis,

Todo simbolismo se edifica sobre as ruínas dos edifícios simbólicos precedentes, utilizando seus materiais – mesmo que seja só para

preencher as fundações de novos templos, como o fizeram os

atenienses após as guerras médicas.23

É possível observar que os novos símbolos elaborados pelos republicanos

repousaram sobre a antiga tradição imperial, sobreviveram à proclamação e foram

reconfigurados para se adequarem à nova realidade. Uma das interpretações sobre este

resultado afirma que “o esforço despendido não foi suficiente para quebrar a barreira

criada pela ausência de envolvimento popular na implantação do novo regime. Sem raiz

na vivência coletiva, a simbologia republicana caiu no vazio [...].24

Entre junho de 1896 e fevereiro de

1897, o palácio Nova Friburgo passou por

obras de adaptação antes de ser

23 CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. São Paulo: Editora Paz e Terra,

1982, p. 147

CASTORIADIS, Cornelius, 1982, p. 148. 24 CARVALHO, José Murilo de, 2014, p.141

Detalhe da decoração do Salão Nobre, onde

encontramos a aplicação das armas republicanas em

estuque acima da porta, em meio à decoração

original. Foto: Isabella Mendes/2015.

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inaugurado como a nova sede e residência oficial da presidência da República, passando

então a ser conhecido como palácio do Catete. Como principal resultado desta reforma,

os salões do palácio apresentam a reapropriação dos ornamentos decorativos, estética e

imagens originárias da época do Império ao mesmo tempo em que tentam passar a ideia

de superação com o passado imperial a partir do acréscimo de símbolos republicanos.

Os novos símbolos republicanos e os antigos, imperiais, convivem harmoniosamente

desde então na decoração de alguns cômodos do térreo e em algumas salas do segundo

pavimento do palácio.

A coordenação dos trabalhos de adaptação do edifício ficou sob responsabilidade

do engenheiro e diretor do BRB, Aarão de Carvalho Reis25, um dos idealizadores do

projeto urbanístico da capital mineira Belo Horizonte. Em 27 de maio de 1896, pouco

antes do início da reforma, o jornal “A Notícia” informou aos leitores que

A conferência do Sr. Dr. Afonso Pena realizada ontem com o Sr.

Presidente da República versou sobre o palácio Friburgo, onde o bom

gosto do Sr. Afonso Pena se fará sentir.

Alguns meses depois, em janeiro de 1897, o “Jornal do Commercio” reforçou esta

informação:

O Sr. Prudente de Moraes, que nos conste, não deu instrução alguma

para a decoração do edifício, que tem sido feita por aquele engenheiro segundo as recomendações do banco.

25 Aarão de Carvalho Reis diplomou-se engenheiro em 1874 pela Escola Politécnica, renomada

instituição de ensino responsável pela formação dos engenheiros de múltiplos conhecimentos. A Escola

Politécnica sofreu forte influência francesa e do positivismo de Augusto Comte em seus métodos de

ensino e ideologia, além de ter sido conhecida por liderar campanhas abolicionistas durante o cenário pré-

republicano, quando muitos de seus alunos aderiram às ideias da geração de 1870.

Aarão Reis seguiu a trajetória clássica dos engenheiros saint-simonianos franceses, desde sempre muito

engajado em obras públicas, nas quais demonstrava grande interesse pelo progresso e pelo amor ao bem

público. Suas concepções, enquanto intelectual, apontavam para a regeneração, reformas, progresso e desenvolvimento de uma nova sociedade. Podemos localizar a trajetória deste personagem como inscrita

na ala dos “positivistas heterodoxos imbuídos de progressismo cívico”. Acreditava e defendia a

importância da boa instrução pública, mas ao mesmo tempo advogava que o progresso deveria ser lento,

conquistado ao invés de implantado com precipitação, o que revela seu caráter político-conservador.

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Esses dois trechos de fontes jornalísticas sugerem a possibilidade de se atribuir a

Afonso Pena, então presidente do Banco da República do Brasil, a autoria desta

composição final da decoração do palácio do Catete, o que consequentemente anularia a

influência de Aarão Reis neste projeto. Porém, ao se analisar cuidadosamente as

decorrências desta reforma, descobre-se um outro cenário, no qual foi possível captar os

vestígios estético-ideológicos deste personagem.

A decoração interna do palácio, considerada por muitos como condizente com a

majestade do trono, demonstra por meio de suas imagens as questões políticas daquele

presente, afinal, o republicanismo construiu sua própria tradição ao incorporar

elementos do passado monárquico – principalmente o seu elitismo – o que pode ser uma

explicação para a necessidade da reapropriação desta decoração tão suntuosa em sua

residência oficial. Eric Hobsbawm prossegue:

O passado histórico no qual a nova

tradição é inserida não precisa ser remoto, perdido nas brumas do

tempo. Até as revoluções e os

movimentos progressistas, que por

definição rompem com o passado, têm seu passado relevante, embora

eles terminem abruptamente em

uma data determinada, tal como 1789. Contudo, na medida em que

há referência a um passado

histórico, as tradições “inventadas” caracterizam-se por estabelecer

com ele uma continuidade bastante

artificial.26

Por fim, José Murilo de Carvalho afirma que “a

República não produziu estética própria, nem buscou

redefinir politicamente o uso da estética já existente”, o

que nos leva a pressupor que, apesar de aparentemente ter se proposto uma ruptura com

o passado monárquico, no campo simbólico, imagético, e, consequentemente,

ideológico, isso não ocorreu.

Concluímos que os novos símbolos republicanos repousaram sobre a antiga

tradição imperial, sobreviveram à proclamação, foram reconfigurados e reapropriados

26 HOBSBAWN, Eric. “Introdução: A invenção das tradições”. In: HOBSBAWN, E., ANGER, T.

(Orgs.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 10.

Esfera Armilar original do projeto

decorativo original. Símbolo da

coroa português jamais excluído da

decoração do palácio após a

reforma. Foto: Isabella Mendes/

2015.

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para se adequarem a uma nova realidade. Todo este processo pelo qual passaram estas

imagens nos remete imediatamente ao conceito warburguiano de nachleben.

Abraham Warburg, historiador da arte e da cultura alemã, defende a tese sobre o

vislumbrar de uma etimologia comum entre imagens que continuam atuantes

independente da época em voga. Essa pós-vida das imagens é garantida por elementos

culturais de determinada época que podem ser transferidos para outra. “O presente se

tece de múltiplos passados”27, ou, em outras palavras, há uma espécie de etimologia

rizomática entre imagens:

Essa transmissão muitas vezes ocorre por uma mobilização

inconsciente de forças emotivas, movimentos fósseis psíquicos imperceptíveis e ondas de memória. Esses movimentos migratórios de

formas, pathosformeln são “movimentos cristalizados” (Michaud,

2013), aparecem de tempos em tempos, não obedecem a quaisquer

ordens cronológicas e, por meio de combinações múltiplas – inclusive contraditórias – agem morfologicamente.28

Faz-se necessário, então, pensarmos em uma espécie de descascamento

fenomenológico destas imagens da República, compreendê-las analiticamente de

maneira arqueológica a fim de encontrarmos outros indícios que tenham contribuído

para as suas pós-vidas.

Quando nos deparamos com uma imagem, estamos diante de um tempo

anacrônico e muito complexo, trocando em miúdos, um tempo próprio. As imagens, de

acordo com Warburg, apresentam camadas, étimos subterrâneos em comum; a

sobrevivência desses elementos imagéticos é garantida por um mecanismo iconofágico

entre imagens e pessoas – somos devoradores de imagem e estas também nos devoram

– e também por conta de componentes psíquicos, que são responsáveis pelas

transmissões de mitos, crenças, símbolos.

Entendemos, então, que os salões do palácio do Catete são remontagens.

Especificamente neste caso, identificam-se duas remontagens distintas: uma de autoria

de Aarão Reis e outra influenciada por Afonso Pena, dois personagens cujos princípios

políticos são opostos, mas que expressaram através da mesma linguagem, a artística,

27 DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: História da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013, p. 46. 28 CINQUINI, Fabio Henrique. A pós-vida das imagens: etimologias visuais da Antiguidade na fotografia

de moda. Trabalho apresentado no 4 Congresso Internacional de Comunicação e Consumo, São Paulo,

2014. p. 6

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seus projetos de poder republicano. A política e a arte têm uma origem comum, como

explica Jacques Ranciére a partir do conceito de “partilha do sensível”, no qual afirma

que as comunidades políticas se formam baseadas na discordância de percepções

individuais:

Existe, portanto, na base da política, uma “estética” que não tem nada

a ver com a “estetização da política” (...) essa estética não deve ser entendida no sentido de uma captura perversa da política por uma

vontade de arte, (...) É um recorte dos tempos e dos espaços, do

visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo

tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência29

Em outras palavras, a estética e a política são responsáveis pela organização do

“sensível”, ambas constroem a visibilidade e a inteligibilidade dos acontecimentos. O

poder sempre se afirmou e funcionou por meio das manifestações espetaculares, seja

desde a Grécia antiga, ou passando pelas monarquias modernas e até pela construção de

um magnífico palacete urbano que noticiasse todos os atributos da família Nova

Friburgo.

Desta forma, os padrões simbólicos e estéticos aplicados na decoração do palácio

do Catete ao longo dos trabalhos de 1896 diluem-se ao longo de sua exposição e

solidificam “em pedra e cal” mais um belo exemplo dos valores republicanos elitistas,

estabelecidos a partir da proclamação e intensificados com o início dos governos civis,

cujo primeiro representante fora Prudente de Morais. A composição de interiores

finalizada em 1897 demonstra muito sobre duas Repúblicas brasileiras, pois por um

lado, encontramos aquela que precisava se afirmar perante seus cidadãos enquanto

regime político e resgatar sua abalada confiança, ao mesmo tempo em que perseguia

uma grande necessidade de distinção.

Essa República, por exemplo, foi a mesma que realizou a sangrenta incursão sobre

o povoado de Canudos, que não intencionalmente desafiou a ordem republicana ao

receber grande adesão de pessoas oprimidas e descontentes com o novo governo. O

caráter messiânico-milenarista de Canudos incomodava por conta da crença no advento

– por meio da intervenção divina – de uma sociedade mais justa. O episódio de Canudos

explorou a incapacidade da República em lidar com opositores, ao contrário do Império,

29 RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível – estética e política. São Paulo: Editora 34, 2009. P.16

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tido como de índole mais tolerante. Passou a ser considerado uma revolta social e,

então, sua resistência fora amplamente utilizada para fins políticos. Ao permanecer, o

povoado deixava em evidência mais um indício de a República não ter trazido mais

igualdade ou preocupação com o bem-estar social.

Interessava ao governo de Prudente de Morais demonstrar a eficiência do poder

civil, então, Canudos precisava ser destruído. Desta forma, intui-se que a decoração do

palácio do Catete, inaugurada em fevereiro de 1897, é a ornamentação simbólica das

ações práticas daquele governo civil, que derrotou o povoado de Canudos em outubro

do mesmo ano, definindo assim a hegemonia oligárquica desta República.

Por outro lado, encontramos também aquela República que desejava se aproveitar

dos símbolos da antiga monarquia, já que estes ainda detinham grande prestígio em

meio ao imaginário social. Para exemplifica-la, deixamos por último, intencionalmente,

a análise das modificações operadas na platibanda do edifício. Onde inicialmente o

barão de Nova Friburgo havia aplicado esculturas de águias de zinco moldado –

heráldica de seu baronato –, foram colocadas esculturas encomendadas por Aarão Reis à

fundição Val D’Osne, com a qual

ele havia estabelecido parceria

algum tempo antes, em virtude do

início do projeto urbanístico de

Belo Horizonte.

As novas esculturas sobre a

platibanda eram figuras alegóricas

femininas, medindo cada uma

3,40 m e representavam as quatro

estações do ano – inverno,

primavera, verão e outono –, a

República, a Justiça e a

Agricultura. Por último, simetricamente abaixo da alegoria que representava a

República, localizada ao centro, a platibanda recebeu a aplicação de um soberbo

ornamento das armas republicanas. Isso demarcava publicamente uma nova identidade

para aquele palácio. A alocação de esculturas alegóricas femininas sobre a platibanda

Fachada do palácio do Catete à época (1897) da inauguração como sede da República. Sobre a platibanda, as musas idealizadas por Aarão Reis. Foto: Coleção Gilberto Ferrez/ IMS-RJ

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não agradou parte da sociedade carioca, que ainda mantinha viva a imagem das águias

do barão de Nova Friburgo, e que haviam conferido ao edifício o apelido de “palácio

das águias”.

Para dar fim à polêmica sobre as representações escultóricas vigentes, em 1907,

Afonso Pena – então presidente

da República – encomendou ao

artista Rodolfo Bernardelli sete

novas esculturas de águias que

substituíssem as alegorias

femininas idealizadas por

Aarão Reis. Afonso Pena

falecera antes de poder ver suas

águias serem implantadas na

sede do governo, em 1910, por

Nilo Peçanha, vice-presidente que assumira o governo. Percebe-se aqui que, apensar do

hiato, o projeto estético proposto por Afonso Pena, um saudosista da monarquia, se

sobrepôs definitivamente àquele proposto por Aarão Reis, um convicto republicano,

pois houve um movimento definitivo de retorno aos padrões originais do palácio.

Explica-se:

O esforço despendido [pelos republicanos] não foi suficiente para quebrar a barreira criada pela ausência de envolvimento popular na

implantação do novo regime. Sem raiz na vivência coletiva, a

simbologia republicana caiu no vazio, como foi particularmente o

caso da alegoria feminina.30

Em suma, a República brasileira foi, e segue até hoje, incapaz de estabelecer um

consenso entre os seus adeptos. Ao nos depararmos com a disputa simbólica ocorrida no

interior do palácio do Catete, reconhecemos que os esforços das correntes republicanas

– aqui representadas principalmente por Aarão Reis – falharam com seu propósito de

criar um imaginário popular republicano e foram encurraladas pela corrente vitoriosa –

neste caso representada por Afonso Pena -, como resultado, os símbolos criados com o

intuito de jogarem luz sobre o fenômeno da República não foram aceitos pelos cidadãos

30 CARVALHO, 2014, p.141.

As águias sobre a platibanda em 1922. Foto: Museu da

República.

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e acabaram esquecidos. Por fim, a leitura das imagens encontradas nessa decoração faz

com que concordemos com a afirmação de Bronislow Baczko: “[...] cada classe social é

produtora e prisioneira de sua ideologia”31

Referências Bibliográficas

- ALONSO, Angela. Ideias em movimento – A geração 1870 na crise do Brasil-

Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

- BACZKO, Bronislow. “Imaginação social”. In: Enciclopédia Einaudi. Vol. 1.

Memória e História. Lisboa: Imprensa Nacional e Casa da Moeda, 1984.

- Banco do Brasil S.A. História do Banco do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Gráfica

Ipiranga, 1988.

- CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas – O imaginário da República no

Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

- CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. São Paulo: Editora

Paz e Terra, 1982.

- CINQUINI, Fabio Henrique. A pós-vida das imagens: etimologias visuais da

Antiguidade na fotografia de moda. Trabalho apresentado no 4 Congresso Internacional

de Comunicação e Consumo, São Paulo, 2014.

- DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: História da arte e tempo dos

fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

- HOBSBAWN, Eric. “Introdução: A invenção das tradições”. In: HOBSBAWN, E.,

ANGER, T. (Orgs.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível – estética e política. São Paulo: Editora

34, 2009.

- RODRIGUES, Marcus Vinicius Macri. Dissertação (Mestrado em História

Comparada). Salão de Banquetes do Palácio do Catete: a invenção de uma tradição

clássica nos trópicos, História Comparada entre as representações imagéticas de

Pompéia e as do Palácio do Catete. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de

Janeiro, RJ, 2016.

.

31 BACZKO, Bronislow. “Imaginação social”. In: Enciclopédia Einaudi. Vol. 1. Memória e História.

Lisboa: Imprensa Nacional e Casa da Moeda, 1984, p. 296-331.