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Zona J Festival Zona Não Vigiada Sexta-feira | 25 Setembro 2015 | publico.pt/culturaipsilon PEDRO ELIAS ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 9294 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE Christian Rizzo Homens de mãos dadas Bienal de Lyon A questão modernista O bairro abre-se à cidade

25 Set Ipsilon

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Christian RizzoHomens de mãos dadas Bienal de Lyon A questão modernista

O bairro abre-se à cidade

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Ruy Belo teve por Esplendor na Relva (em cima), de Elia Kazan, a paixão devastadora que inscreveu no poema homónimo

Ruy Belo: uma poesia que gostava de ir ao cinemaÉ uma das cenas mais

comovedoras da história do

cinema. A jovem Deanie Loomis

(Natalie Wood), que começa a

perceber que os tempos em que

nada parecia poder ameaçar o seu

intenso, inocente e correspondido

amor por Bud (Warren Beatty) já

passaram e não irão voltar, é

obrigada pela professora a ler alto,

na aula, o excerto dum célebre

poema de William Wordsworth

em que se diz que apesar de nada

poder trazer de volta “a hora do

esplendor na relva, da glória na

flor”, não devemos chorá-lo, mas

antes ir buscar forças ao que ficou

(irremediavelmente) para trás.

Deanie não aguenta e sai

disparada da sala, batendo com a

porta, num choro convulsivo.

O filme é, claro, Esplendor na

Relva (1961), de Elia Kazan, que

exerceu sobre Ruy Belo, escreve

João Bénard da Costa, “uma

paixão tão devastadora” como a

que no filme uniu os dois

adolescentes. Em Homem de

Palavra(s), de 1969, o livro de Ruy

Belo mais notoriamente marcado

pelo cinema, o poeta dedica à

personagem interpretada por

Natalie Wood um notável soneto,

que abre com esta quadra: “eu sei

que deanie loomis não existe/ mas

entre as mais essa mulher

caminha/ e a sua evolução segue

uma linha/ que à imaginação pura

resiste”. E um pouco adiante este

arrepiante parêntesis: “(e aquele

que no auge a não olhar/ que

saiba que passou e que jamais//

lhe será dado ver o que ela era)”.

O cinema teve um impacto

profundo na obra de Ruy Belo,

que não se resumia apenas aos

poemas em que expressamente

evoca filmes e actores, como

Humphrey Bogart, Na morte de

Marilyn, No way out (título

original de Falsa Acusação, de

Mankiewicz) ou Vício de matar,

escrito a pretexto do filme de

Arthur Penn sobre Billy The Kid.

É esta relação do poeta com a

sétima arte que serve de mote à

sessão especial Ruy Belo. ‘Talvez

um dia eu entre no cinema’ que o

Medeia Monumental apresenta

na próxima segunda-feira em

Lisboa, a partir das 21h. A sessão

abre com uma leitura de poemas

de Ruy Belo pelo actor Pedro

Lamares, seguindo-se uma

intervenção do ensaísta António

M. Feijó sobre A Deanie Loomis

de Ruy Belo e a exibição de um

breve filme familiar de Luís

Filipe Lindley Cintra, rodado em

Vila do Conde com Ruy Belo e

Teresa Belo: O lugar onde o

coração se esconde. Depois do

intervalo, a noite fecha com a

projecção do filme Esplendor na

Relva.

Ficha TécnicaDirectora Bárbara Reis

Editores Vasco Câmara,

Inês Nadais

Design Mark Porter,

Simon Esterson

Directora de arte Sónia Matos

Designers Ana Carvalho,

Carla Noronha, Mariana Soares

E-mail: [email protected]

Luís Miguel Queirós

Sumário4: Festival Zona Não VigiadaBem-vindos à Zona J

10: Robert ForsterDepois dos Go-Betweens

14: Christian RizzoEntre homens

16: Bienal de LyonO Modernismo (outra vez) em questão

22: Bernardo CarvalhoA Internet é um lugar estranho Fl

ash

Miguel Gomes continua a sua conversa sobre este país: Portugal circa 2014. O Desolado, segundo volume de As Mil e Uma Noites, chegou ontem às salas. Pág. 30

Vamos conhecer os Arcade Fire ao cinema?Os meses que nos deram

Reflektor, o quarto disco dos

Arcade Fire, saído em 2013. Os

concertos e a festa que se

seguiram ao lançamento. Arcade

Fire — The Reflektor Tapes, que se

estreou no Festival de Toronto e

agora chega aos cinemas

portugueses, é mais um

daqueles documentários que

acompanham as bandas e nos

dão a conhecer um bocadinho

extra das suas vidas e dos seus

processos criativos. No caso, a

vida e os processos criativos dos

excêntricos Arcade Fire, aquela

banda que vimos crescer corria o

ano de 2005 em Paredes de

Coura.

É uma viagem ao mundo dos

Arcade Fire com tudo o que isso

implica. Reflektor, o quarto e

último álbum dos canadianos,

foi um disco de transformação e

essa transformação foi registada

para que todos possamos

entender o caminho da banda.

Kahlil Joseph andou com os

Arcade Fire nos últimos dois

anos e desse encontro resultou

este documentário que vai das

gravações do disco, onde se

nota que estão mais dançantes,

aos concertos aparatosos, como

aquele que nos deram em 2014

no Rock in Rio Lisboa, às

entrevistas, ao dia-a-dia de cada

um dos membros da banda.

O documentário estreou-se no

Festival de Toronto e agradou

ao público e à crítica. Agora

chega aos cinemas, ainda que

não a todos. Em Portugal,

Arcade Fire — The Reflektor Tapes

só vai ser exibido este fim-de-

semana nos cinemas UCI (El

Corte Inglés, em Lisboa, Dolce

Vita Tejo, na Amadora, e

Arrábida, em Gaia). Até

domingo, estas salas vão ter

uma sessão especial às 21h30 (o

preço é diferente de uma sessão

normal: 9.70 euros). Depois

disso, ver os bastidores dos

Arcade Fire só mesmo em DVD,

numa edição que trará

conteúdo exclusivo, incluindo

seis músicas inéditas.

TERESA BELO

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ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015 | 3

Já chegaram a Montréal, ao

Centro Canadiano de

Arquitectura (CCA), os arquivos

que Álvaro Siza decidiu doar, no

ano passado, a esta instituição

que é uma referência mundial na

disciplina. E parte deles deu já

origem a uma nova exposição,

inaugurada ontem numa das

galerias do Centro.

Coin, îlot, quartier, villes. Álvaro

Siza à Berlin et à La Haye é o

título da mostra, que reúne

maquetas, esquissos, desenhos,

plantas e ainda fotografias feitas

actualmente por Giovanni

Chiaramonte, Alessandra

Chemollo e Peter de Ruig de dois

projectos pioneiros e marcantes

para a afirmação internacional

do arquitecto português: os

prédios de habitação Bonjour

Tristesse (1982-83), em Berlim, e

Punt en Komma (1985-89), em

Haia. O próprio Álvaro Siza foi

convidado a deslocar-se ao

Canadá para falar da sua

arquitectura e destas obras em

particular, em duas conferências

(esgotadas há vários dias) no

próprio CCA, em Montréal

(ontem), e no auditório da

Faculdade de Arquitectura, da

Paisagem e do Design John H.

Daniels da Universidade de

Toronto (hoje). Ambas terão

transmissão directa via Twitter.

A exposição Coin, îlot, quartier,

villes, comissariada por Eszter

Steierhoffer, responsável pelo

departamento de arquitectura

contemporânea do CCA, tem a

particularidade de se juntar

àquela que esta instituição vem

dedicando, desde Maio, ao

programa SAAL — Le logement au

Portugal de 1974 à 1976 —, e que se

manterá até 4 de Outubro. Siza,

que a instituição canadiana

apresenta como “um dos

precursores de uma nova

linguagem arquitectónica

moderna adaptada ao contexto

social e cultural de Portugal”, é,

de resto, um nome em foco nessa

mostra, que documenta como a

arquitectura e os arquitectos se

envolveram na mudança das

condições de vida das populações

mais desfavorecidas logo a seguir

ao 25 de Abril de 1974. Realizados

na década a seguir à experiência

do SAAL, e aproveitando a

projecção internacional dessa

aventura, os edifícios Bonjour

Tristesse e Punt en

Komma “partilham semelhanças

no que diz respeito à escala e ao

programa”, e “exprimem a

capacidade de Siza de “reflectir

um carácter urbano local”, diz o

CCA.

Antes destas exposições, o

arquitecto matosinhense tinha já

apresentado uma exposição —

Alturas de Macchu Picchu — e uma

conferência no CCA, na Primavera

de 2012. Sérgio C. Andrade

João Bénard da Costa para a rentrée em cinema e DVD

Jorge Mourinha

É, talvez, uma das mais singulares

operações da exibição e edição

cinematográfica portuguesa nos

últimos tempos: celebrar não um

realizador ou um filme, mas uma

figura central para toda uma

geração de cinéfilos portugueses.

João Bénard da Costa, antigo

director da Cinemateca Portuguesa,

foi alvo de um aclamado filme

documental assinado por Manuel

Mozos, Outros Amarão as Coisas que

Eu Amei, que se estreou no

DocLisboa em 2014 e tem

entretanto feito assinalável carreira

internacional, com exibições na

Viennale ou no festival de Roterdão.

O documentário chegará às salas no

próximo dia 8 de Outubro e

marcará a “abertura” de uma

operação da distribuidora

Alambique que celebra a

importância de João Bénard da

Costa enquanto divulgador e

programador. A 15 de Outubro, será

reposto em grande écrã Johnny

Guitar, o western mítico de Nicholas

Ray com Joan Crawford e Sterling

Hayden que era o filme preferido

de Bénard da Costa e que se tornou

no emblema maior da sua cinefilia.

No mesmo dia, será lançada uma

A afirmação internacional de Siza na década de 80 deve muito às experiências Bonjour Tristesse e Punt en Komma

colecção de oito DVD sob o

genérico No Meu Cinema — título do

programa que o director da

Cinemateca animou na RTP-2,

apresentando e comentando uma

série de filmes em intervenções

dirigidas por Margarida Gil. Os oito

filmes escolhidos são À Beira do

Mar Azul (1933), de Boris Barnet,

Feras Humanas (1941), de Fritz

Lang, O Rio Sagrado (1951), de Jean

Renoir, Para Sempre Mozart (1996),

de Jean-Luc Godard, Peregrinação

Exemplar (1966), de Robert

Bresson, Sentimento (1954), de

Luchino Visconti, Um Caso de Vida

ou de Morte (1946), de Michael

Powell e Emeric Pressburger, e Um

Verão de Amor (1951), de Ingmar

Bergman — todos enquadrados

pelas intervenções de Bénard da

Costa. Os DVD poderão ser

encontrados nas lojas Fnac ou

através do site da distribuidora.

Álvaro Siza faz mais um round no Canadá

DANIEL ROCHA

D A N Ç A • S Á B 2 6 S E T

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quer

A

sair da redoma

J Zona

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Faz parte de Lisboa, mas ao mesmo tempo parece estar fora de tudo, como uma ilha cortada da cidade. Amanhã há uma razão para ir a Chelas: o festival Zona Não Vigiada quer transformar um bairro condenado à margem num novo centro.

Alguns adolescentes ouvem

música nas arcadas das

traseiras de um prédio. Os

mais novos brincam uns

com os outros ou circulam

de bicicleta. Vislumbram-

se homens sentados à porta de um

café, estando, apenas. Uma senhora

passeia o cão e mete conversa com

quem passa. E há também quem

aproveite o sol da tarde para esten-

der a roupa.

Tarde de um dia de semana de

forte calor no Condado, na Zona J

de Chelas, em Lisboa, um daqueles

bairros que são parte integrante da

cidade, mas que ao mesmo tempo

parecem estar à margem, numa re-

doma, como uma ilha. É um local

aonde quem é de fora não vai por

acaso ou de passagem. Tem de exis-

tir uma motivação.

Amanhã ela existe. Chama-se Zo-

na Não Vigiada, e é festival para se

desenrolar entre as 15h e as 21h no

ringue de futebol da Zona J, com en-

trada gratuita, contando com por-

tugueses como Norberto Lobo, Igua-

nas, Pega Monstro, DJ Lilocox & DJ

Maboku e DJ Firmeza, e com os in-

gleses Newham Generals e Jammz

& Logan Sama. O inglês Skepta, que

esteve programado, foi cancelado.

A iniciativa partiu da Casa Conve-

niente/Zona Não Vigiada, a estrutu-

ra teatral, ali sediada, da encenado-

ra Mónica Calle. Com ela colabora

nesta festival a associação Filho Úni-

co, que, através da actividade de

programação musical, ou da edito-

ra Príncipe, tem desencadeado o

mesmo tipo de movimentos que nos

levam a interrogar o papel das mar-

gens e do centro na produção cul-

tural contemporânea.

No caso de Mónica Calle, o objec-

tivo é mesmo agir a partir da mar-

gem, sobre a margem, e daí questio-

nar e reposicionar o centro. Nos

últimos dois anos, ali tem feito es-

pectáculos teatrais e outras acções

que vão nessa direcção. O festival

deste fim-de-semana pretende re-

forçar a criação de percursos dentro

do bairro e como fomentar um mo-

vimento do centro para a margem,

trazendo pessoas para a Zona J que

normalmente não viriam, ao mesmo

tempo que tenta captar públicos do

interior do bairro para acções a que

estes não normalmente não têm

acesso.

“A vivência aqui é muito à base da

música, nada é tão forte como ela

no sentido de criar relações”, afirma

Mónica Calle, “e a ideia para o festi-

val começa um pouco aí. Por um

lado interessa-nos apelar à partici-

pação das comunidades dos diferen-

tes bairros da periferia, e é ao mes-

mo tempo também uma tentativa

de aproximar o bairro da cidade,

dando-lhe centralidade, trazendo

pessoas de fora que de outra forma

nunca viriam e tentando criar fluxos

nos dois sentidos”.

Por agora, a nova casa da compa-

nhia ainda é um lugar algo inóspito,

misto de escombros e entulho, es-

tando para breve a requalificação

total. Ao lado vive Dona Sanha, 70

anos, os últimos 30 vividos ali, vin-

da da Guiné-Bissau; fomos encontrá-

la a estender a roupa.

A Casa Conveniente de Mónica Calle, a dupla DJ Lilocox & DJ Maboku e as Pega Monstro: nenhum é de lá, mas todos se cruzarão amanhã na Zona J, resultado da vontade de um festival que quer criar um movimento em direcção à periferia

Vítor Belanciano (texto)Pedro Elias (fotografia)

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“Desde que o teatro veio para aqui

que isto ganhou outra animação, e

o festival é também bom porque é

dessas coisas que sentimos falta”,

diz. “É bom para o bairro, para pa-

rarem de dizer mal dele. Gosto mui-

to de viver aqui. Nunca tive proble-

mas. Às vezes dizem que há assaltos.

Não sei. Deixo muitas vezes a porta

aberta e se o faço é porque tenho

confiança. O que existe, isso sim, é

boa vizinhança.”

Descobrir-seCircula-se com a encenadora pela

zona e percebe-se que já deixou

marca, com manifestações de afec-

to constantes. O restaurante perto

do recinto onde se desenrolará o

festival fornecerá refeições ao artis-

tas. Ali não muito longe, numa as-

sociação, funcionará o camarim.

Todos querem participar de uma

forma ou de outra, acreditando no

trabalho que está a ser desencade-

ado. É o caso de Daniela, Keil e Ilda,

entre os 12 e 15 anos, que também

querem ajudar. “É fantástico termos

aqui o festival porque precisamos

de mais actividade deste género

aqui, dando mais visibilidade aos

nossos talentos”, diz Ilda. “Ao mes-

mo tempo é bom porque não temos

de nos deslocar ao centro de Lisboa

para ver este tipo de iniciativas.”

Na memória das três está inscrita

ainda a participação num dos mais

recentes trabalhos de companhia,

Drive-In, realizado ao ar livre, no

parque de estacionamento em fren-

te ao espaço Casa Conveniente, in-

cluindo uma equipa mista de acto-

res profissionais e amadores. “Mo-

ramos mesmo aqui ao lado e a

Mónica acabou por nos convidar”,

conta Daniela. “Foi uma óptima ex-

periência, nunca tinha feito algo

parecido e agora gostava de conti-

nuar.” Keil refere que o mais difícil

“foi decorar o texto” e confrontar-se

com os seus próprios medos, por ir

representar para amigos e familia-

res, enquanto Ilda fala de um pro-

cesso de revelação: “Foi como se

estivesse a descobrir-me pela pri-

meira vez, a sentir um novo eu, e

isso é qualquer coisa de fantástico.

Nunca tinha experimentado nada

de semelhante.”

O objectivo de ir para a Zona J re-

monta a 2010, em consequência do

impacto, artístico e pessoal, de um

trabalho que Mónica Calle desenvol-

veu com reclusos do Estabelecimen-

to Prisional de Vale de Judeus. “Den-

tro desse grupo de teatro havia pes-

soas daqui, que foram as primeiras

a terminar as penas de prisão, e

quando isso aconteceu começaram

a trabalhar connosco na Casa Con-

veniente, no âmbito de um espec-

táculo sobre o Heiner Müller.”

Em 1991, no Cais do Sodré, a actriz

e encenadora havia ocupado uma

loja abandonada e, mais tarde, o

desactivado Bar Luso, numa zona

então conhecida pelos lugares de

má fama e pelo ambiente marialva.

Ali se manteve até há dois anos. A

partir do momento em que anteviu

que o local se iria transformar num

dos centros da nova Lisboa boémia

e turística, desejou sair. Agora, aos

48 anos, está a recomeçar tudo de

novo.

Poderia ter ido para o Intendente,

o Martim Moniz, a Almirante Reis,

Santa Apolónia, Cabo Ruivo ou Al-

cântara, enfim, zonas da cidade on-

de é relativamente fácil discernir

movimentos de regeneração. Mas

não. A sua aposta foi mais radical,

seguindo os actores que havia co-

nhecido em Vale de Judeus até Che-

las. “Foram eles que me convence-

ram, dizendo-me que havia aqui

imensas qualidades e talentos que

apenas pecavam por não circularem

muito fora daqui. E vim a confirmar

isso, descobrindo imensos músicos,

bailarinos, pessoas que fizeram

workshops de teatro e até gente da

moda.”

O gesto que a levou ao Cais do So-

dré, repetiu-o no sentido de Chelas.

“Não me interessa ter aqui um cir-

cuito fechado, mas pensar como

fazer tráficos nos dois sentidos, in-

terrogando o que é central e perifé-

rico. Esta não foi uma escolha casu-

al. A vinda para cá correspondeu ao

facto de o Cais do Sodré ter deixado

de ser um sitio de margem e de flu-

xos. Era necessário recomeçar outra

vez.”

Fala-se com ela, deambula-se pe-

lo bairro, e os seus olhos brilham,

contando-nos que a ideia inicial era

criar um festival em cinco espaços

diferenciados, de forma a que o pú-

blico circulasse, tomando conheci-

mento dos vários pontos do territó-

rio. Mas não houve verba para tanto.

Talvez para o ano. Para já aí está a

primeira edição do Zona Não Vigia-

da, criado também para abalar pre-

conceitos e estigmas. Seja do centro

para a margem, como o contrário.

CoabitaçãoO Bairro de Chelas foi um projecto

do arquitecto Tomás Taveira e, diz

Mónica Calle, “é um dos seus traba-

lhos mais interessantes em termos

de escala, de proporção, de harmo-

nia e de lugares públicos”. Não é,

explica, um lugar “desumanizado”,

pelo contrário: houve “um cuidado

estético interessante nestes bairros

construídos para retornados de to-

das as camadas sociais”.

É final de tarde, homens jogam às

cartas na rua e quando nos aproxi-

mamos dizem-nos que são ex-guar-

das prisionais, com um deles a ter

um desabafo curioso: “Reformei-me

e vivo aqui há dois anos e nunca aqui

tive problemas. Daqui já ninguém

me tira. Este é o bairro que conheço

onde sinto que existe maior sentido

de pertença.”

Não muito longe, no singular altar

da igreja São Maximiliano Kolbe —

todo envidraçado, avista-se o exte-

rior —, a pintura que se situa por bai-

Há um preconceito em relação a territórios como a Zona J. Os de fora acham que ali são todos marginais, os do bairro “acham que se forem ao centro são mal tratados”

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xo da cruz representa simultanea-

mente um santo e um prisioneiro.

Apesar de a maior parte das pessoas

com quem falamos afirmar que a es-

tigmatização que o bairro já sofreu

se diluiu nos últimos anos, e que exis-

te um sólido um sentimento de per-

tença e de auto-estima, não vale a

pena romantizar: ainda há tensões.

Não é difícil perceber que existe

um preconceito social em relação a

territórios como a Zona J. O curioso

é que o preconceito é devolvido da

margem para o centro e existe cons-

ciência disso. Pelo menos é o que

nos diz Tó, assim, sem apelido (“To-

dos me tratam dessa forma). Os de

fora, conta, acham que ali são todos

marginais, e os do bairro “não fazem

questão de sair porque acham que

se forem ao centro são mal trata-

dos”.

Ou seja, quem vive no centro ten-

de a conotar negativamente quem

habita na periferia. E o cumprimen-

to é devolvido, com os da periferia a

acharem o centro confuso, conflitu-

oso e perigoso. Uma coisa é certa:

muitas das zonas periféricas acabam

por ser lugares de experimentação

social e cultural. Não é por acaso que

em muitos países é lá que irrompe a

maior parte das movimentações cul-

turais mais arriscadas. O facto de

serem por norma espaços híbridos,

onde pessoas de origens e condições

diversas coabitam, tanto pode origi-

nar tensão como potenciar a criati-

vidade. Na verdade, as paisagens são

cada vez mais móveis e esquizofré-

nicas. Na Zona J sente-se isso, tanto

na paisagem humana como na pai-

sagem urbana, principalmente nos

últimos anos: o apartamento social

coabita com o condomínio privado

com vista para o Tejo.

Este movimento de baralhação de

referentes é também um dos desíg-

nios que têm norteado o percurso

da editora Príncipe, uma das aliadas

do festival, representada por DJ Li-

locox & DJ Maboku (os Casa da Mãe

Produções) e DJ Firmeza, três dos

nomes que têm ganho visibilidade

nos últimos anos, da periferia para

o mundo, ao lado de Marfox, Nigga

Fox, Black Sea Não Maya, Nidia Mi-

naj e outros. Mensalmente, têm le-

vado a sua música inspirada em vá-

rias expressões urbanas (do kuduro

ao afro-house, passando pelo tarra-

xo ou batida) ao MusicBox e ao Lux,

em Lisboa, ou aos mais diversos clu-

bes de dança e revistas mundanas

da Europa e dos Estados Unidos.

Foi há dois anos que falámos com

DJ Maboku pela primeira vez. Na

altura era um ilustre desconhecido.

Hoje a sua música viaja pelo país e

pelo estrangeiro. “Aconteceram

muitas coisas, muitas viagens, mui-

tas saídas, desde então, e daqui

Maria Filomena (em cima) criou os seus filhos no bairro; Dona Sanha, guineense (em baixo), tem 30 anos de Zona J

A nova sede da Casa Conveniente ainda é um lugar algo inóspito, misto de escombros e entulho

“É bom para o bairro, para pararem de dizer mal dele. Às vezes dizem que há assaltos. Não sei. O que existe, isso sim, é boa vizinhança”Dona Sanha, moradora

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para a frente ainda vai ser melhor;

este festival acaba por traduzir isso

também”, confia ele, afirmando

que sábado vai passar uma série de

novos temas da sua autoria. Reside

em Queluz, mas mantém cumplici-

dades com família e amigos da

Quinta do Mocho, perto de Saca-

vém, de onde vêm também Firme-

za ou Marfox.

“Espero que venha gente de todos

esses lados”, afirma, “porque, de-

pois de termos levado esta música

ao centro de Lisboa e do mundo,

está na altura de a fazermos ouvir

aqui, onde ela também pertence.

Este festival já devia ter acontecido

há mais tempo. Andamos lá por fo-

ra, mas o pessoal daqui não nos che-

gou a ouvir”.

Má fama sem proveitoQuem tem assistido aos aconteci-

mentos da Príncipe são as irmãs Ma-

ria e Júlia Reis, ou seja as Pega Mons-

tro, que levarão as canções rock do

seu mais recente álbum, Alfarroba,

ao evento. Aparentemente não en-

contraremos pontos de contacto

entre o seu rock impetuoso, juvenil

e profundamente refrescante e a

música física e serpenteante das noi-

tes Príncipe. Nada mais errado. As

formas musicais são diferentes, mas

a energia primordial é a mesma: “Va-

mos a quase todas as noites da Prín-

cipe porque são muito inspiradoras

em termos de música e ambiente”,

reflecte Maria, acrescentando que

é a primeira vez que as duas “esta-

cionam” em Chelas. “Na verdade

acho que só estive aqui, de passa-

gem, para Xabregas.” Não devem

ser as únicas. Vivem no centro de

Lisboa, no Saldanha, e a Zona J pa-

rece-lhes uma entidade remota. E

no entanto fica mesmo ali, entre as

Olaias, Marvila e Cabo Ruivo, perto

da malha urbana da cidade e ao mes-

mo tempo parecendo longe dela,

separada por vales.

“Quando tocamos em Lisboa é

sempre no centro, portanto vai ser

óptimo fazê-lo aqui, provavelmente

para pessoas que nunca nos viram”,

diz Júlia. “A ideia do festival é ópti-

ma, e a cena de ser à pala é uma

opção democrática”, refere Maria,

acrescentando que aquilo que mais

a entusiasma é a “possibilidade de

agregar o pessoal daqui”: “Mesmo

que não venham por nós, que apa-

reçam pelo evento em si.”

Depois de uma digressão pelo Rei-

no Unido, resultante da edição e da

distribuição do novo álbum pela edi-

tora inglesa Upset The Rhythm, e de

vários concertos em Portugal, a du-

pla diz que as reacções têm sido

muito boas. “Estamos a tocar de for-

ma diferente e o concerto está mais

poderoso e sólido porque temos

uma ideia mais clara do rock que

queremos.” Elas não o referem, mas

o rock que praticam também teve a

O ringue de futebol da Zona J: aqui actuarão o português Norberto Lobo e os ingleses Newham Generals, entre outros

DJ Maboku e as Pega Monstro: também eles não viriam normalmente dar concertos a Chelas

“Acredito que o gesto artístico implica ética, comunidade e a possibilidade de uma relação ou de agir em pequena escala”Mónica Calle, encenadora

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ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015 | 9

sua génese em bairros periféricos

de grandes cidades.

Temos a memória curta, mas na

sua esmagadora maioria as músicas

populares hoje instituídas — do rock

ao fado, dos blues ao hip-hop — eram

na origem formas de expressão des-

qualificadas, praticadas por amado-

res sem veleidades artísticas, muitas

vezes rejeitadas pelas classes domi-

nantes e nascidas nas periferias das

grandes cidades. Na fase de legiti-

mação, foram muitas vezes associa-

das à marginalidade ou a questões

identitárias. Raramente foram en-

caradas como simples arte. Nas for-

mas musicais de rua que têm conhe-

cido protagonismo nos últimos

anos, os processos repetem-se, seja

no kuduro luso-angolano de Lisboa,

no baile funk do Rio de Janeiro ou

no grime londrino.

Esta última corrente vai estar re-

presentada por duas gerações de

activistas britânicos, os mais vetera-

nos Newham Generals de D Double

E e o mais novato Jammz, auxiliado

pelo DJ e histórico radialista Logan

Sama. Síntese mutante que engloba

batidas electrónicas, elementos de

jungle e ambientes sombrios sacu-

didos por subgraves, o grime impôs-

se nos primeiros anos da década de

2000, reconhecendo um novo fulgor

nos últimos tempos. O género nas-

ceu nos bairros mais desfavorecidos

do Este londrino, onde novas gera-

ções criavam música com computa-

dores rudimentares ou consolas de

jogos vídeo, aplicando o conceito de

faça-você-mesmo.

Quando perguntamos a Tó se ele

sabe o que é grime, diz-nos que não.

Hoje em dia está mais interessado

em hip-hop português, com história

em Chelas e um nativo bem conhe-

cido (Sam The Kid), e sobretudo em

kizomba. Não tanto por causa da

música, mas pela dança. “Para mim,

música é movimento e sensualida-

de”, ri-se ele, na direcção de Maria

Filomena, que continua a passear o

seu cão.

Ali, toda a gente parece conhecer-

se. “Este é o bairro onde criei os

meus filhos e gosto dele, embora

existam, como em todos os lados,

problemas, como o facto de haver

pessoas que têm altos rendimentos

e habitam [em casas] com rendas

camarárias baixas”, afirma ela, rela-

tivizando de seguida o que acaba de

dizer. “Mas, enfim, isso são proble-

mas menores. Embora este bairro

tivesse má fama no passado, era uma

fama sem proveito. Claro que existe

um pouco de tudo, mas aqui as pes-

soas entreajudam-se e isso é tudo. Se

não fosse isso, já estava no céu.”

É essa ideia de comunidade, de

“relações reais”, como lhe chama

Mónica Calle, que trouxe uma artis-

ta ao bairro, ainda por cima em dias

onde o clima constante no mundo

é a indiferença. “Acredito que o ges-

to artístico implica ética, comunida-

de e a possibilidade de uma relação

ou de agir em pequena escala. Aqui

estou longe de um centro — pelo me-

nos de uma certa ideia de centro —

onde existem conflitos e perdas de

energia. É válido, mas não é a minha

coisa. Sinto-me mais perto da vida

e da possibilidade de interrogar o

que é isso do gesto artístico, embo-

ra não seja de forma nenhuma uma

coisa conceptual.”

É isso. A Zona J, geograficamente,

parece uma ilha, “separada da cida-

de”, diz Mónica Calle, mas ao mes-

mo tempo personifica “movimentos

que são profundamente contempo-

râneos e que têm a ver com a cultu-

ra no sentido universal, seja dança,

teatro ou música”.

Como tornar central, através de

um projecto artístico, um bairro-ilha

chamado Zona J, eis a questão. Uma

coisa parece certa: vai levar tempo a

quebrar estigmas e a superar medos,

e vai ser preciso insistir. Mas é possí-

vel, dizem-no Mónica Calle e a edito-

ra Príncipe, cada uma à sua maneira.

Há momentos em que a arte pode

antecipar transformações sociais, ou

pelo menos contribuir para as acele-

rar. Amanhã, a primeira edição do

Zona Não Vigiada, na Zona J, em Che-

las, pode ser um desses momentos.

4 Outubrodomingo, 19:00h — M/6

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN

musica.gulbenkian.ptmecenasgrandes intérpretes

mecenascoro gulbenkian

mecenasciclo piano

mecenasconcertos de domingo

mecenasmúsica de câmara

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AriannaSavall

Hirundo MarisChants du Sudet du Nord

músicas do mundo

aria

nna

sava

ll ©

dr

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10 | ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015

Acontecimento, define o di-

cionário, é “coisa ou caso

inesperado ou que produz

sensação”. Se Songs to

Play, o mais recente álbum

de Robert Forster, produ-

zirá sensação? Isso depende do gru-

po de pessoas em quem o disco for

testado — certamente que sim, se

nos ficarmos pelos fãs dos Go-Be-

tweens, mas para além deles, e para

além da definição que o dicionário

consagra, este disco é um aconteci-

mento simplesmente pelo facto de

surgir. É que desde The Evangelist,

a sensação anterior do senhor Fors-

ter, passaram sete anos.

The Evangelist foi escrito na ressa-

ca da morte de Grant McLennan,

companheiro de sempre de Forster

nos Go-Betweens, a mais subvalori-

zada banda da história da pop. Tal-

vez aquele disco o tivesse esgotado,

julgámos. “Na verdade”, diz Forster

ao telefone desde Brisbane, na Aus-

trália — a sua terra natal, para onde

regressou anos após os Go-Betweens

terem chegado ao fim pela primeira

vez —, “mal acabei The Evangelist quis

que houvesse um intervalo de cinco

anos até ao disco seguinte”.

Nada comum no mundo da pop

actual, onde a regra é fazer um dis-

co, partir em digressão por dois anos

e lançar nova obra no regresso. Mas

não Forster, ele não se move pelos

mesmos ditames. “Na altura achei

que estava num novo estádio da mi-

nha carreira. E queria deixar passar

algum tempo. Sabia que o que fizes-

se a seguir seria outro capitulo.”

Uma das razões para isto prendia-

se com os acontecimentos terminais

que levaram a The Evangelist. “O meu

último álbum tinha saído muito pró-

ximo da morte do Grant, e estava

muito ligado a essa morte. Havia can-

ções dele no disco, canções que ele

não tinha acabado. E na altura tam-

bém estava a escrever sobre música,

a produzir música e a fazer o livro

dos Go-Betweens [que saiu na recen-

te compilação da obra da banda].”

Além disso, Forster “queria man-

dar uma mensagem, e só podia fazê-

lo com tempo”. A mensagem “de

que ia voltar refrescado, com nova

energia”, um dado que Songs to Play

CCCCCCCCCCooooooooooommmmmmmmmmmmoooooooooo rrrrrrrrrrreeeeeeeeeeeaaaaaaaaaaaccccccccccççççççççççãããããããããããããoooooooooo ààààààààà mmmmmmmmmmmooooooooooorrrrrrrrrrttttttttttteeeeeeeeee dddddddddddeeeeeeeeee GGGGGGGGGGGrrrrrrrraaaaaaaannnnnnnnnnttttttttttt MMMMMMMMMMccccccccccLLLLLLLLLLLeeeeeeeeeennnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnaaaaaaaaaannnnnnnnnn,,,,,,,,, ssssssssseeeeeeeeeeuuuuuuuuuuu ccccccccccccooooooooooommmmmmmmmmmmpppppppppppaaaaaaaaaaannnnnnnnnnnhhhhhhhhhhheeeeeeeeeeiiiiiiiiiirrrrrrrrrrrooooooooo dddddddddddeeeeeeeee ssssssssssseeeeeeeeeeemmmmmmmmmmmmmppppppppppprrrrrrrrrreeeeeeeee nnnnnnnnnnoooooooooossssssssss GGGGGGGGGGGGooooooooooo--------BBBBBBBBBBBeeeeeeeeetttttttttwwwwwwwwwwweeeeeeeeeeeeeeeeeennnnnnnnnnssssssssss,,,,,,,, RRRRRRRRRRRRRoooooooooobbbbbbbbbbbbeeeeeeeerrrrrrrrttttttttt FFFFFFFFFFFooooooooorrrrrrrrrsssssssstttttttttteeeeeeeeeeeerrrrrrrrrr eeeeeeeeeeeessssssssscccccccccrrrrrrrreeeeeeeeevvvvvvvvvvvveeeeeeeeeeeuuuuuuuuu TTTTTTTTTTTThhhhhhhhhhheeeeeeeee EEEEEEEEEEEvvvvvvvvvaaaaaaaaaaannnnnnnnnggggggggggeeeeeeeeeellllllllliiiiiiiisssssssstttttttttt..... DDDDDDDDDDeeeeeeeeeppppppppppoooooooooiiiiiiiiisssssssss,,,,, ssssssssiiiiiiiiillllllllllêêêêêêêêêênnnnnnnnncccccccccciiiiiiiiioooooooooo dddddddddduuuuuuuuuurrrrrrrrraaaaaaannnnnttttttttteeeeeee ssssssssseeeeeeeeettttttteeeeeeeee aaaaaaaannnnnnnoooooooosssssssss..... OOOOOOOO rrrrrrreeeeeeggggggggrrrrrrrrreeeeeeeesssssssssssssoooooooo ffffffffaaaaaaaazzzzz----ssssssseeeeeee aaaaaggggggooooooorrrrrraaaaa cccccccccoooooooooommmmmm SSSSSSSooooooonnnnnngggggggssssss tttttooooooooo PPPPPPPPPPPPllllllllaaaaaaaaayyyyyyyyyy,,,,, uuuuuuuuummmmmmmmmm ccccclllllááááááásssssssssssssssiiiiicccccccccoooooo iiiiiiiiiinnnnnnnnnnnsssssssssstttttttttttaaaaaaaaaaannnnnnnnnntttttttttââââââââââânnnnnnnnnneeeeeeeeeeoooooooo......

A vida depois de Grant

Robert Forster não se vê a fazer um disco de dois em dois anos, mas está a trabalhar num livro: “É uma biografia e envolve a minha vida”

STEP

HEN

BO

OTH

mmmmm

Robert

Forster

Songs to Play

Tapete Records

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ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015 | 11

confirma. O próprio título do disco

indica esse reposicionamento —

brincar era algo que estava radical-

mente afastado de The Evangelist,

um álbum muito mais pesado.

Valha a verdade, Foster nunca foi

prolífico. “Nos anos 1980 [quando

os Go-Betweens, a banda que criou

com McLennan, começaram], se

escrevesse duas canções de que gos-

tasse num ano já ficava contente.

Éramos dois a compor — a duas can-

ções por ano tinha quatro em dois

anos, e se o Grant fizesse o mesmo

tínhamos praticamente um disco.”

O problema de Forster, explica ao

Ípsilon, é que não é “naturalmente

um músico”: “Não sou o Paul Weller

nem o Paul Simon. Sou alguém que

sabe tocar bem guitarra e tem ideias,

mas não consigo criar a torto e a di-

reito. Não sou um virtuoso. As can-

ções saem como explosões e depois

vão embora.” Com o tempo, diga-se,

tornou-se num bom guitarrista rit-

mo. “Sim”, diz ele. “Do mesmo tipo

que o Lou Reed era. Mas isso não é

talento, é trabalho. Posso tocar gui-

tarra ritmo e um piano. Chega para

fazer uma canção pop.”

Em busca de vidaÉ uma palavra que aqui faz sentido,

ao contrário do que acontecia em

The Evangelist: pop. “The Evangelist

era um disco muito melancólico e

sombrio. Desta feita queria escrever

canções orelhudas, melódicas, lú-

dicas e leves. O que não é obrigato-

riamente menor. Pode fazer-se algo

mais leve e ainda especial. E todas

as canções de Songs to Play têm esse

sentimento de reagir a esse disco. O

da morte do Grant. É uma procura

de felicidade, de vida.”

A morte de Grant, seu colega des-

de garoto, magoou Forster até ao

tutano. “Quando ele morreu os Go-

Betweens acabaram de vez. A banda

éramos os dois, não fazia sentido

continuar sem ele. Mas não me ima-

ginava a fazer álbuns a solo. Todas

as ideias, todos os sentimentos iam

para banda. Quando se está numa

banda faz-se tudo pela banda.”

Veio a morte de Grant e Forster

demorou “quase dois anos” até co-

meçar a sentir-se “normal outra vez”.

“Havia como que um nevoeiro à mi-

nha volta. Fazer o disco ajudou-me a

prosseguir”. A actividade de crítico

musical, ainda que noutro sentido,

também. “Ouvir a música dos outros

e tentar perceber como a criaram não

ajuda a escrever uma canção, mas

torna-te mais consciente do que estás

a fazer. A decidir se terá um piano,

se a bateria entra ou não.”

Há pianos em Songs to Play. E me-

tais. E órgãos. E coros. E violinos. Um

deles, o de I’m so happy for you, lem-

bra The Clark sisters, canção do ál-

bum Tallulah, dos Go-Betweens. E há

proto-bossa-nova. Ou seja: o plano

de fazer canções grandes e lúdicas e

leves foi mais do que alcançado. Mais

ainda: estas canções são clássicos ins-

tantâneos, com grandes refrães que

não se esforçam por mostrar as suas

qualidades mas facilmente nos põem

a cantarolar. Grandes canções exi-

miamente arranjadas, com um bom

gosto a toda a prova.

É uma proeza que deixa Forster

contente — tem a noção de que con-

seguiu fazer o que queria fazer. E

está contente com a sua vida, com as

opções que tomou, com tudo o que

viveu. “Tive a sorte de estar em Lon-

dres nos anos 1980, que era um mun-

do muito diferente do que tudo o que

eu conhecera antes. Conhecer a mi-

nha mulher na Alemanha mudou-me

e deixou-me muito feliz. Voltar para

Brisbane para formar uma família

também me mudou. Sou abençoa-

“Sei tocar bem guitarra e tenho ideias, mas não consigo criar a torto e a direito. As canções saem como explosões e depois vão embora”

do”, diz Forster, hoje um conversa-

dor muito mais sereno do que há

década e meia. “Fiz uma opção pela

família”, explica. “Passo muito tem-

po com os meus dois filhos adoles-

centes. Somos muito próximos, o

que tem sido muito importante para

nós. De modo que não queria viver

aquela vida de seis meses na estrada,

queria estar com eles.” Financeira-

mente, conta, é difícil. “Vivemos um

pouco no fio da navalha, e não há

luxos. Mas foi sempre assim. O que

não é problema quando não se tem

filhos. Quando há filhos é que se pre-

cisa de segurança. Mas até agora,

apesar de tudo isto, funcionou.”

Ligeiramente inseguro em relação

à recepção que o disco pode ter,

Forster pergunta-nos o que achámos.

Quando o elogiamos, agradece várias

vezes. Claramente, o ser vagamente

arrogante que liderava os Go-Betwe-

ens mudou um pouco. Agora tam-

bém joga noutro campeonato — nun-

ca antes poderíamos imaginá-lo a

fazer um quase-gospel como Turn on

the rain, deste álbum.

Agora está “numa fase em que tu-

do pode acontecer”. “Não me vejo

a fazer um disco de dois em dois

anos. Mas vai haver surpresas. Estou

a trabalhar num livro que pode sair

em pouco tempo — é uma biografia

e envolve a minha vida.”

Paramos por um segundo a tentar

rememorar a nossa imensa quanti-

dade de informação sobre os Go-

Betweens. “Não era o Robert que

tinha o plano de ser escritor, antes

de começar os Go-Betweens?”, per-

guntamos. “Não, não”, responde

ele. “O Grant é que queria escrever

livros e fazer filmes. Eu não. Mas

toda a gente tem o sonho de escre-

ver um livro um dia. Sempre o quis

fazer. mas não sabia se conseguia.”

Ficamos meio encabulados — por

termos falhado uma informação tão

simples e por trazermos de novo o

nome de McLennan à conversa.

Mas ele já ultrapassou a pequena

memória que trouxemos. “Então

gostaste do disco, foi? De qual gos-

taste mais?” E assim continuamos

por uns minutos. A falar de can-

ções, o assunto preferido de Robert

Forster.

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12 | ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015

Uma banda soul/funk com tiques progressivos e psicadélicos, vinda da Austrália, a deixar aguados Animal Collective, Erykah Badu e Prince? Sim, existe, chama-se Hiatus Kaiyote e tem em Choose Your Weapon o seu surpreendente disco de revelação.

Há que amar uma história de

reconhecimento global que

começa em Avey Tare (dos

Animal Collective) e, em

cinco curtos passos, chega

a Erykah Badu. E é tão mi-

lagrosamente fácil de seguir que os

australianos Hiatus Kaiyote conse-

guem reconstituir toda a cadeia que

fez com que de uma banda de nome

estranho, e a que logo se torceriam

o nariz e o pescoço por precaução,

se transformasse numa banda de no-

me estranho a que logo meio mundo

se quer entregar sem resistência an-

tes de ouvir a primeira nota. Cami-

nhemos então por essa cadeia de

gente rendida a esta sonoridade soul/

funk polvilhada de psicadelismo com

trejeitos futuristas: Avey Tare ouviu

um qualquer tema dos Kaiyote na

rádio, ficou suficientemente impres-

sionado para falar disso a Angel De-

radoorian (ex-Dirty Projectors), An-

gel partilhou a descoberta com o

baterista, produtor e homem forte

dos The Roots ?uestlove, este passou

a palavra a James Poyser (compositor

ao serviço de Erykah Badu) e Poyser

mostrou o quarteto-maravilha aus-

traliano a Badu.

?uestlove não demorou a fazer sa-

ber que muito de vez em quando

surge uma banda pela qual está dis-

posto a alienar amigos (não esclare-

cendo se tal se deve a varrer da sua

vida quem não partilhe o seu entu-

siasmo, se será motivo de ofensa

mortal para alguns o facto de decla-

rar publicamente a sua admiração

por um grupo de desconhecidos e

não por gente próxima que lhe im-

plora 15 segundos de abnegada pu-

blicidade, se simplesmente tem de

cortar no número de amizades por

deixar de ter tempo para todos a fim

de poder ouvir esta música em paz);

Badu anunciou, sem rodeios, estar

apaixonada. Meses mais tarde, tam-

bém Prince partilhou o vídeo de

Nakamarra no Twitter, incitando os

seus seguidores a clicarem no link

até à revelação daquela banda aloja-

da, entre milhões de outras, no mes-

mo YouTube em que todos aguardam

impacientemente a sua sorte. O ví-

deo, por estes dias, conta com mais

de 1,2 milhões de visualizações.

Graças a esse coro ecléctico de

admiração, do universo pop em es-

trepitosa expansão assinado pelos

Animal Collective ao soul/funk aber-

to à contaminação de Badu, perce-

be-se, com um mínimo de rigor, a

paisagem que se encontra nos dois

álbuns dos australianos: soul e funk,

com certeza, mas sobrevivente a

pazadas de psicadelismo, viagens

imaginárias a África e uma tal poro-

sidade a diferentes géneros que, no

capítulo da excentricidade pop, se

diria o primo tardio (e nos antípo-

das) dos idos Mler Ife Dada. Ouvindo

Tawk Tomahawk e o fabuloso segun-

do álbum Choose Your Weapon, não

é fácil acreditar que esta música que

complexifica a soul tenha, em gran-

de parte, surgido na ressaca de um

desaire amoroso da vocalista Nai

Palm e resulte, antes de mais, de um

mês a acampar no deserto, num pro-

cesso solitário de purga afectiva.

No regresso, Nai começou de ime-

diato a procurar uma banda que a

auxiliasse a engrandecer as canções

que bolçara no retiro. “Conheci-a

na rua quando ela veio falar comigo

à porta de um café”, conta o bate-

rista Perrin Moss ao Ípsilon. E talvez

seja esse lado algo acidental da for-

ma como os Hiatus se juntaram que

permite a emergência de uma mú-

sica tão pouco lógica, juntando gen-

te com os ouvidos enfiados em funk

da década de 70, na cantora maliana

Oumou Sangaré, em jazz, música

clássica indiana e beats de toda a

proveniência ou na electrónica-noi-

se-punk dos Lightning Bolt — que

tudo isto se junte e, sobretudo, que

faça sentido, é uma vitória troante

contra o bom-senso. Custa verda-

deiramente a crer que estes estre-

meções de ritmo trazendo a rebo-

que sintetizadores esfusiantes, como

Shaolin monk motherfunk, Breathing

underwater ou Swamp thing, possam

ter alguma vez existido como temas

para voz e guitarra.

“Acho que temos sorte”, comenta

Moss sobre esta união de esforços

que a poucos pareceria uma boa

formulação teórica. “Acontece sim-

plesmente sermos o grupo certo de

pessoas na mesma sala. É muito in-

teressante estarmos a aprender co-

mo pensam os nossos companheiros

de banda e, aos poucos, aperceber-

mo-nos de como as ideias de todos

acabam por estar ligadas.”

Duro, muito duroKaiyote é nome de uma agência de

viagens especializada em progra-

mas de observação de pássaros. Nai

Palm é uma confessa apaixonada

por ornitologia; ainda assim, a cor-

ruptela de coiote e a sua coincidên-

cia com o nome da agência é um

mero acaso, uma confirmação ape-

nas de que a bizarria dos australia-

nos encontra eco no mundo. Tal

eco, graças também ao prestigiado

clube de fãs que reuniram logo com

o lançamento de Tawk Tomahawk,

em 2013, apanhou-os de surpresa

e, por outro lado, atirou-os para

uma vida para a qual não estavam

preparados. Tanto assim que Cho-

ose Your Weapon foi composto nos

pequenos intervalos escavados a

custo entre as constantes solicita-

ções para digressões. “Fomos to-

cando, continuámos e continuá-

mos”, diz Perrin, lembrando o es-

tado de transe em que a banda se

viu metida. “Queríamos lançar um

novo álbum mas não conseguía-

mos, estávamos cansados e cheios

de concertos, até que percebemos

que isto não pára, está sempre em

movimento.”

Apesar de afirmar que os quatro

já se habituaram a este ritmo, Perrin

vai repetindo que “é duro, muito

duro” suportar este modo de vida.

“Continuamos a fazê-lo, mas anda-

mos exaustos, ficamos com o corpo

todo fodido.” E é por isso que pare-

cem soar as campainhas da inevita-

bilidade quando se pergunta se não

estará na hora de se mudarem para

a Europa ou os Estados Unidos, lu-

gares a partir dos quais seria menos

penoso, oneroso e demorado partir

em digressão — cujo roteiro costuma

incidir, precisamente, nesses terri-

tórios. “Talvez estivéssemos um

pouco menos longe de casa se vi-

vêssemos em Londres ou em Nova

Iorque porque os concertos seriam

mais frequentes e mais concentra-

dos geograficamente, não teríamos

de fazer estes rounds muito inten-

sos”, concede Mason.

A situação do grupo, no entanto,

pode estar prestes a mudar — se a

sua crescente reputação mundo

fora equilibrar as contas ao propor-

cionar um menor número de con-

certos e mais bem pagos. Mas é

também verdade que ouvindo Cho-

ose Your Weapon pode intuir-se que

todo o cansaço não será de mais se

tiver como consequência entre os

músicos esta tão aguda ausência de

filtros que, como o confirma Moss,

uma canção só é dada por termina-

da quando está já a abarrotar de

ideias de todos. Perrin diz que até

gostava que a música dos quatro se

simplificasse, mas o mais natural

seria esse tratamento de limpeza

acabar por trair uma música a que

chamam, numa auto-ironia que não

despreza um mínimo de preciosis-

mo, “multidimensional polyrhyth-

mic gangster shit”.

Delírios do deserto funk australiano

Gonçalo Frota

mmmmm

Hiatus

Kayiote

Choose Your

Weapon

Flying Buddha;

distri. Sony

Music

Page 13: 25 Set Ipsilon

ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015 | 13

No final, morremos todos.

E depois? O que se segue

talvez seja um lugar para-

disíaco, ou um sítio onde

estão todos os nossos ami-

gos, ou um espaço onde se

conseguem preservar os feitos, ma-

teriais e espirituais, da vida que

conhecemos.

Por muito especulativa que pare-

ça, esta conversa tem uma base

científica, garante a Mala Voadora.

Na sua mais recente criação, que

se estreia amanhã na Fábrica ASA,

em Guimarães, e depois segue para

o Centro Cultural de Belém, em Lis-

boa (2 a 8 de Outubro), a compa-

nhia parte da obra de um neuro-

cientista norte-americano para uma

reflexão sobre o que acontece de-

pois do fim. É uma breve história

da morte — ou daquilo que a vida

pode ser depois dela.

A peça foi escrita pelo director

da Mala Voadora, Jorge Andrade, a

partir de Sum (do latim Cogito ergo

sum, a frase mil vezes citada de Re-

né Descartes), um livro lançado em

2009 por David Eagleman. A obra

original é composta por 40 contos

sobre a vida depois da morte, entre

os quais Uma breve história dos in-

terruptores da morte, publicada pe-

la revista científica Nature. Nessa e

nas outras pequenas histórias de

Sum, o escritor-cientista especula

sobre possibilidades de prolongar

a vida depois da morte, partindo

de investigações que estão realmen-

te em curso um pouco por todo o

mundo, como a clonagem ou a hi-

pótese de digitalizar a informação

contida num cérebro.

O livro de Eagleman chegou às

mãos do director da Mala Voadora

no ano passado, em Inglaterra, du-

rante a fase inicial de criação de The

Paradise Project (co-produção com

a companhia britânica Third Angel,

uma espécie de alma-gémea da com-

panhia de Jorge Andrade e José Ca-

pela). “O que me cativou foi a ideia

de que, mesmo a partir da morte,

do fim, consegue-se especular e

criar”, explica. O espectáculo é, por

isso, “uma espécie de festival de

ideias” sobre a morte.

Jorge Andrade assume também

que a entrada num universo de fic-

ção-científica lhe permitiu introdu-

zir um contraste entre as possibili-

dades da técnica e a ideia de Deus,

que, enquanto crente não-pratican-

te, tinha também interesse em pro-

blematizar. “Isto passa-se numa al-

tura hipotética em que Deus mor-

reu, os homens esqueceram-se dele,

e agora está para ali, como uma chá-

vena”, explica. Um tempo em que,

quanto mais o homem domina a

criação, mais se afasta da ideia de

um criador.

BrainstormingFestival encerra uma trilogia sobre

a ideia de paraíso que a companhia

inaugurou, em 2013, com Paraíso 1,

e que prosseguiu em The Paradise

Project (2014). Porém, desta feita, o

paraíso que aqui se debate é aquele

que poderemos eventualmente en-

contrar depois da morte. Não cor-

responde exactamente à ideia de

Céu da religião católica, mas a um

espaço onde haverá uma vida após

a vida. As possibilidades são ficcio-

nadas, mas parecem emergir de

uma base científica. De resto, a nova

produção da companhia abre a por-

ta para o espectáculo seguinte, que

está já a ser preparado, em que a

ideia de ficção-científica estará ain-

da mais presente: a Mala Voadora

quer debruçar-se agora sobre os uni-

versos paralelos.

Mas como se transpõe um uni-

verso de ficção-científica para o

teatro? O cinema colonizou o ima-

ginário colectivo com uma ideia de

ficção-científica assente em recur-

A Mala Voadora acredita que é possível criar mesmo a partir da ideia de fi m. Festival, o novo espectáculo da companhia, é o teatro a meter-se no buraco da fi cção científi ca.

Samuel Silva

Uma breve história da morte

sos, sobretudo tecnológicos, a que

o teatro não consegue aceder. “Me-

temo-nos num buraco”, começa

por ironizar Jorge Andrade. Mas a

resposta não está muito longe da-

quilo que o teatro sempre faz: “Te-

mos de desenvolver uma linguagem

que comunique com o público essa

especulação sobre o futuro. Essa

ideia não pode passar por recursos

que são próprios do cinema. Por-

tanto, é o texto que nos vai dar es-

sa possibilidade.”

O espectáculo que este sábado

encerra o programa de comemora-

ções do décimo aniversário do Cen-

tro Cultural Vila Flor constrói-se à

volta de um dispositivo que propõe

a morte como tema de um brains-

torm numa empresa. Quatro fun-

cionários discutem a viabilidade de

transformar a vida depois da morte

num negócio, mas a discussão rapi-

damente foge do campo corporati-

vo para se fixar nas especulações

filosóficas sobre o que pode acon-

tecer depois de morrermos. Por

mais que tentem escapar da ideia

da morte, acabam sempre absorvi-

dos por ela.

Apesar de a morte ser um tema

inescapável, o texto assume, não

raras vezes, um tom humorístico,

sarcástico. Essa intenção tem, aliás,

continuidade na cenografia de José

Capela, que remete para o mundo

corporativo mas com um toque iró-

nico evidente. Há computadores,

secretárias e cadeiras reais, mas é

um telão a ocupar o espaço poste-

rior da cena, como que a lembrar

que tudo ali não passa de uma fa-

chada. O ambiente é algo kitsch, ins-

pirado nos catálogos de lojas de

móveis, com os preços pendurados

em todos os objectos em cena a

acentuarem essa ideia: “Está tudo à

venda. Nós já vendemos uma vida

depois da morte, porque já não há

mais nada para vender.”

Page 14: 25 Set Ipsilon

14 | ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015

Christian Rizzo admite que nunca tinha posto tanta dança nas suas peças como em D’après une histoire vraie. Foi o que trouxe de uma ida a Istambul em 2004: outra maneira, muito do Sul da Europa, nada gender, de carregar o palco de testosterona.

É uma memória tão forte que

Christian Rizzo não se lem-

bra de nada.

Uma noite, há 11 anos, o co-

reógrafo francês (Cannes,

1968) viu um grupo de ho-

mens invadirem um palco em Istam-

bul com a sua maneira tão do Sul de

dançar (ombro com ombro, braço

com braço, cabeça com cabeça) e is-

so ficou para sempre com ele, ao pon-

to de mais de uma década depois ter

construído a partir do muito pouco

de que se lembrava o espectáculo que

em 2013 estreou no Festival de Avig-

non e que este sábado chega ao Tea-

tro Municipal Rivoli, no Porto, onde

abre mais uma edição do Circular —

Festival de Artes Performativas.

É uma informação que ele dá logo

no título, D’après une histoire vraie,

como que a vincular esta epifania — a

epifania de um lugar onde a energia

extraordinariamente primitiva e ex-

traordinariamente poderosa do fol-

clore se cruza com os corpos pós-

modernos de oito bailarinos e a pul-

são de vida e morte de duas baterias

siamesas — a um espaço e a um tem-

po precisos. Tão precisos que (repe-

timo-nos, porque ele se repete ao

telefone) Christian Rizzo não se lem-

bra de nada: “Sim, o título desta pe-

ça não evita a referência ao ponto de

partida, mas é tudo um bocado mais

complexo do que isso... É verdade

que, num festival em Istambul, a

meio de um espectáculo que eu ab-

solutamente esqueci, vi um pequeno

fragmento de uma dança tradicional

turca que se inscreveu em mim de

uma maneira fortíssima. Foi tão es-

tranho ter-me esquecido de tudo à

excepção desse minúsculo momen-

to. Porque é que eu, que venho da

dança contemporânea, fui mais to-

cado pelo folclore do que pelo resto

do espectáculo, teoricamente mais

próximo da língua coreográfica que

eu falo?”.

Boa pergunta — tão boa que Chris-

tian Rizzo demorou mais de dez

anos a responder e mesmo depois

de D’après une histoire vraie continua

em dificuldades (ad noctum, a cria-

ção que estreará no início de No-

vembro em Nantes, continua a sua

pesquisa em torno das formas da

dança popular). Parte do que o dei-

xou sem chão em Istambul, porém,

está neste espectáculo em que ten-

tou reconstituir “uma memória per-

sistente”, “a memória de uma sen-

sação profunda e quase arcaica”:

homens que dançam, e que dançam

assim desde sempre. É uma memó-

ria como outra qualquer? De todo,

é a memória que o libertou: literal-

mente, porque D’après une histoire

vraie foi a peça em que se separou

da tralha com que costumava en-

cher o palco nos seus espectáculos

sempre entre a coreografia e a ins-

talação, mas também de forma su-

bliminar, ou seja na raiz da sua pró-

pria história coreográfica, porque

em nenhuma das peças anteriores

se tinha dançado tanto.

Avancemos por partes. Para o en-

cher com estes oito bailarinos vin-

dos, acidentalmente ou não, do Sul

da Europa ou do Sul do mundo —

entre Fabien Almakiewicz, Yair Ba-

relli, Massimo Fusco, Miguel García

Christian Rizzo juntou oito bailarinos (que, acidentalmente ou não, carregam consigo uma história do Sul da Europa ou do Sul do mundo) e dois músicos para restaurar uma ideia: homens a dançarem entre eles

Homens de

MARC DOMAGE

Inês Nadais

mãos dadas

Page 15: 25 Set Ipsilon

ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015 | 15

Llorens, Pep Garrigues, Kerem Gele-

bek, Filipe Lourenço, Roberto Mar-

tinez há passaportes portugueses,

espanhóis, italianos, turcos, israeli-

tas, peruanos... — e com os dois ba-

teristas franceses, Didier Ambact e

King Q4, que quis que ali se confron-

tassem (se é uma conversa ou uma

guerra nunca percebemos bem),

Christian Rizzo teve de esvaziar o

palco, rompendo com os instintos

hiper-cenográficos alimentados por

todo um passado nas artes visuais

(estudou na Villa Arson, em Nice),

na música (teve uma banda em Tou-

louse), na moda (teve uma marca de

roupa) e na criação de figurinos (por

exemplo para Mathilde Monnier, Em-

manuelle Huynh, Mark Tompkins,

George Appaix e Vera Mantero). To-

da a conversa que queria iniciar com

D’après une histoire vraie precisava

disso, de uma folha em branco, para

poder acontecer. “Tinha de deixar o

palco aos bailarinos. Este é um es-

pectáculo em que eu desapareço

atrás dos corpos deles. Parece-me

que a escrita coreográfica é suficien-

temente forte para existir sozinha.”

Mas não é verdade que não haja nada

em cima do palco: “Há um tapete,

há ângulos, há ainda assim uma ce-

nografia. O vazio não existe, cria-se

— e para o criar, para o tornar visível,

é preciso que estejam lá coisas.”

Também isso foi uma epifania, em-

bora definitivamente o actual direc-

tor artístico do Centre Coréographi-

que National deMontpellier Langue-

doc-Roussilon esteja mais interessado

no que aconteceu em cima desse va-

zio. “Não é verdade que esta seja a

minha peça mais movimentada, mas

talvez seja de facto a mais dançada.

Sempre houve muito movimento nos

meus espectáculos, só que costuma-

va estar equilibrado com a cenogra-

fia, com a luz, com outras formas de

movimento — nunca estava só nos

bailarinos, havia outras coisas a me-

xerem-se. E sim, a dança — sinto que

vai ficar. Não porque enquanto core-

ógrafo me tenha viciado nela, mas

porque é a questão que realmente

quero discutir neste momento.”

AlegriaCerto, mas o que haverá assim de tão

novo na dança para Christian Rizzo

querer discuti-la agora, 20 anos de-

pois de lá ter chegado? Justamente,

temos de reformular a pergunta: o

que haverá assim de tão velho na

dança para Christian Rizzo querer

discuti-la agora, 20 anos depois de

lá ter chegado? “O processo de cria-

ção de D’après une histoire vraie trou-

xe-me a uma diferença fundamental

que separa a dança contemporânea

da dança tradicional: a diferença en-

tre a autoria e o anonimato. Aquela

dança tradicional turca que eu vi em

Istambul carregava o peso, e ao mes-

mo tempo a força, do anonimato:

não a marca de um autor, mas a mar-

ca de sucessivas gerações, de suces-

sivas transmissões.”

Para um artista habituado a ver-se

como the name above the title desde

1996 — o ano em que, depois de mui-

tas participações como intérprete em

criações de coreógrafos como Hervé

Robbe ou Rachid Ouramdane, se

aventurou a fundar a sua própria es-

trutura, L’Association Fragile —, é

uma gigantesca mudança de para-

digma. “Tenho, é claro, uma história

como autor. Mas até essa história

transporta a história de imensos anó-

nimos. Quero pensar sobre isso — so-

bre o lugar onde acaba uma história

anónima da dança e começa uma

história autoral, sobre o tipo de in-

fluência que o folclore pode exercer

sobre uma escrita coreográfica con-

temporânea”, diz ao Ípsilon.

A forma como isso se faz na peça

que este sábado estará no Porto é

subtil — e ao mesmo tempo esmaga-

dora. Mais do que discutir as catego-

rias do anónimo e do autoral, do

popular e do contemporâneo no con-

texto de uma prática mista (os movi-

mentos dos bailarinos descendem

muito difusamente de vários reper-

tórios tradicionais, mas têm a escrita

de Christian Rizzo em cima), D’après

une histoire vraie resgata do folclore

uma certa maneira muito do Sul da

Europa, e com toda a energia patriar-

cal que essa ascendência implica, de

inscrever o corpo masculino, e com

ele uma ideia visceral (ele diz: “nada

gender”) de comunidade, na dança

e no mundo. Foi aliás nisso que todos

se concentraram durante o processo

de criação: não houve nenhum tra-

balho de recolha do repertório tra-

dicional, antes um trabalho indivi-

dual, primeiro (o do coreógrafo,

para “fazer emergir uma recorda-

ção”), e colectivo, depois (o de todos,

músicos incluídos, sobre “o imaginá-

rio associado ao folclore”), disposto

a restaurar aquilo que verdadeira-

mente tocou Christian Rizzo em Is-

tambul. “Finalmente percebi que a

razão pela qual senti tanta empatia

com aquela forma de dançar foi ter-

me dado a ver homens a dançarem

entre eles. E é tão anormal, hoje, as-

sociarmos homens à dança: as repre-

sentações masculinas habituais estão

sempre ligadas ao desporto, à caça,

à guerra, aos carros... E pelos vistos

nem sempre foi assim”, sublinha.

Ao longo do processo, formas tí-

picas desse repertório que vai do Sul

da Europa ao Mediterrâneo e ao Mé-

dio Oriente encaixaram-se — nem

sempre sem atrito — na prática de

um coreógrafo viciado “na queda e

no toque”. No final, Rizzo e os seus

intérpretes tinham verdadeiramen-

te descoberto “a alegria de poder

dançar em roda, de poder dançar

de mãos dadas, de poder dançar

num galope constante”, e a estranha

familiaridade de descender “de uma

comunidade que dança”.

É sobretudo disso que ele se lem-

bra agora, da alegria: “Não sei como

teria sido se tivesse feito esta peça

com um elenco misto — ou só com

mulheres. Mas sei o que aconteceu

com estes dez homens: foram mui-

to mais longe do que normalmente

vai um elenco que se junta apenas

para fazer um espectáculo. Torna-

ram-se um verdadeiro bando.”

O tipo de bando que joga à bola

no intervalo dos ensaios, sim. Mas

também o tipo de bando que dança

de mãos dadas.

“Não sei como teria sido com um elenco misto — ou só com mulheres. Mas estes dez homens foram mais longe do que normalmente vai um elenco. Tornaram-se um bando” Christian Rizzo

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Page 16: 25 Set Ipsilon

16 | ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015

Um fi lme 3D de Cyprien Gaillard e uma instalação de Emmanuelle Lainé rasgam a paisagem discreta da Bienal de Lyon. Nestes dois trabalhos, a “vida moderna” é o passado a enformar o presente. E o presente a olhar para trás sem medo. Sim, vamos voltar a falar do Modernismo.

Duas obras de arte não fazem

uma bienal. Por muito boas

que sejam. Mas podem

abrir uma clareira funda-

mental. E a Bienal de Lyon

deste ano tem duas dessas

obras dentro — presenças excepcio-

nais no capítulo de estreia de uma

nova trilogia de edições temáticas,

desta vez dedicadas ao reequacio-

namento do “moderno”.

O impulso do tema geral de Lyon

traz pouca novidade. De resto, sur-

preende que se decida reconsiderá-lo

depois do marco constituído pela 12.ª

edição da Documenta de Kassel. “Is

modernity our antiquity?”, pergunta-

va a Documenta em 2007. Todo um

programa através do qual Roger M.

Buergel, o director artístico desse ano,

pretendeu recuperar o espírito da

primeira Documenta de sempre — a

de 1955. Então, no rescaldo da Segun-

da Guerra Mundial, Arnold Bode, ar-

tista e académico alemão perseguido

pelo Terceiro Reich, era um refugiado

de regresso a casa. Pensou aquela que

se tornaria numa das mais relevantes

mostras periódicas de arte do mundo

como olhar retrospectivo sobre o Mo-

dernismo. Uma maneira de apresen-

tar ao país aquilo que o regime nazi

banira como “arte degenerada”.

O Modernismo, pois: chegados ao

século XXI, é não apenas o Moder-

nismo como a própria ideia de Mo-

dernidade que ficam em causa na

pergunta de Buergel.

“A Modernidade é a nossa Anti-

guidade?” — em seis palavras lança-

va-se a possibilidade da passagem

de uma era de presente a passado.

Não uma era qualquer: a Moderni-

dade — que podemos defender co-

mo nossa, ainda em curso. Também

não um seu simples deslizar rumo

ao anonimato do esquecimento, an-

tes a sua ascensão a equivalente da

Antiguidade — a clássica, ali onde se

articulou o conceito do que o Oci-

dente entenderia como arte. Ou se-

ja, em seis palavras tratava-se de

declarar uma era como ciclo (re)

fundador que se abriu e fechou no

tempo, matéria passível já de revi-

sitação arqueológica.

Num brevíssimo texto, Buergel

explicou o que o levou à formulação

da pergunta: “É bastante óbvio que

a modernidade, ou o seu destino,

exercem uma influência profunda

nos artistas contemporâneos. Parte

da atracção pode derivar do facto

de ninguém saber realmente se está

viva ou morta. Parece estar em ruí-

nas depois das catástrofes totalita-

ristas do século XX (exactamente as

mesmas catástrofes que de alguma

forma instigou). Parece totalmente

comprometida pela aplicação bru-

talmente parcial das suas demandas

universais (liberdade, igualdade,

fraternidade) ou pelo simples facto

de a modernidade e o colonialismo

terem andado, e provavelmente ain-

da andarem, de mãos dadas. Ainda

assim, a imaginação das pessoas es-

tá cheia das visões e das formas da

modernidade (e não apenas da

Bauhaus, mas também de enquadra-

mentos teóricos transformados em

palavras-chave contemporâneas co-

mo ‘identidade’ e ‘cultura’). Resu-

mindo, parece que estamos tanto

dentro como fora da modernidade,

tão repelidos pela sua violência mor-

tal como seduzidos pelas suas mais

imodestas aspirações ou potenciais:

que possa, apesar de tudo, haver um

horizonte planetário para todos os

vivos e os mortos.”

Na Documenta, como agora em

Lyon, havia uma armadilha: a pos-

sibilidade da queda infértil na dis-

cussão sobre se os contextos euro-

peus que a partir de meados do sé-

culo XVIII levaram ao que se

entendeu como Mundo Moderno

desembocaram ou não, já na segun-

da metade do século XX, numa Pós-

ou Hiper-modernidade, segundo

proclamado por autores como Fran-

çois Lyotard, Zygmunt Bauman e

Gilles Lypovetsky. Depois de déca-

das de especulação e produção te-

órica à volta desta hipótese, Ralph

Rugoff, o comissário de Lyon, opta

por ignorar a discussão. Escolhe um

regresso a Baudelaire — o primeiro

dos modernos. E a sua preocupação

primeira é a distinção entre “Moder-

nidade” e “Modernismo”.

Sob o título La vie moderne — reti-

rado directamente de O pintor da

vida moderna (1863) —, Rugoff reflec-

te como a própria expressão “a vida

moderna” se tornou ambígua, encer-

rando hoje “uma assombrosa incer-

teza temporal”: “No uso quotidiano,

o adjectivo ‘moderno’ ainda implica

qualquer coisa de recente ou novo,

mas esta frase carrega uma longa

história que pode servir para indicar

o momento actual, mesmo quando

sugere uma relíquia de um tempo

ido”, escreve o curador num dos seus

textos para a bienal. Acrescentando

o que visou conseguir ao evocar Bau-

delaire: “Questionar — não tanto o

‘moderno’, mas a natureza do nosso

presente e o tipo de diálogos que es-

tabelece com o passado.”

Outra pergunta colocada por Ru-

goff e que intensifica problemáticas:

“O impulso para anunciar um corte

limpo com o passado, para instigar

a ruptura com a tradição é o gesto

modernista por excelência. Será en-

tão possível que o nosso desejo re-

corrente de declarar o fim da era

moderna seja, na realidade, mera-

mente um sintoma da modernidade

que aspira a enterrar?”

Já em Farewell to an Idea: Episodes

from a History of Modernism (1999),

o historiador norte-americano T. J.

Clark se antecipava à pergunta da

Documenta propondo o Modernismo

“O contemporâneo é emoldurado como um infinito horizonte do agora. Porém, está longe de ser um campo uniforme do novo e recente”Ralph Rugoff

ser ou

não ser?

Moderno:

Vanessa Rato, em Lyon

Page 17: 25 Set Ipsilon

ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015 | 17

— e não a Modernidade — como a nos-

sa antiguidade. Nessa obra, Clark

propunha a ideia de uma ruptura ex-

trema: a de que talvez a relação ico-

noclasta do Modernismo com o seu

passado tenha sido tão absoluta que

nos tenha vedado qualquer possibi-

lidade de revisitar seja o que for antes

dele; a ideia de que se o Modernismo

se instituiu como guerra contra as

formas antigas talvez estejamos ago-

ra em guerra contra uma guerra; mas

também a ideia de que, se assim é,

então talvez estejamos a passar pela

secularização absoluta do homem,

e, com isso, a viver a completude

triunfante do moderno.

De acordo com esta tese, o ho-

mem contemporâneo perfilar-se-ia

como um ser em guerra diária con-

tra os fundamentos e a actualidade

da sua própria identidade. O mesmo

que declará-lo como agente do de-

sencantamento extremo.

Rugoff não segue essa exacta via.

Propõe um cenário mais generalista:

um em que as várias trajectórias do

projecto modernista enformam ainda

activamente as percepções e os mais

destacados temas do nosso tempo.

“Com demasiada frequência, o con-

temporâneo é emoldurado como um

tipo desenraizado de presente perpé-

tuo, um infinito horizonte do agora.

Porém, um exame ainda que fugaz

dos acontecimentos à volta do globo

revela que a nossa paisagem ‘contem-

porânea’ está longe de ser um campo

uniforme do novo e recente.”

É preciso, diz Rugoff, termos um

“sentido fluido” da forma como “vá-

rios momentos no tempo se ligam ao

momento actual, confrontando-nos

com ligações inesperadas entre

eles”.

Contra o desaparecimentoÉ difícil não pensar uma e outra vez

na mesma frase de Faulkner: o pas-

sado nunca morre, o passado nem

sequer é ainda passado.

O passado é uma dimensão crucial

do presente. Qualquer presente. E

demonstra uma estranha resiliência

contra o desaparecimento. Como diz

Rugoff, “não é fácil deixá-lo para

trás”. Talvez não seja sequer desejá-

vel, como sugerem os dois mais in-

teressantes trabalhos de Lyon. O

primeiro dos quais Nightlife, um fil-

me 3D de Cyprien Gaillard (Paris,

1980). Porventura, também, a mais

consensual das escolhas de Rugoff.

O assistente a oferecer óculos 3D

à entrada da sala pode perfilar-se

como pré-aviso para o desastre —

afinal, são raras as propostas em que

a escolha técnica pareça justificar-se

por adequação aos fins. Puro pre-

conceito neste caso em que todos

os temores caem por terra aos pri-

meiros segundos: Nightlife é uma

experiência profundamente sedu-

tora. Do princípio ao fim. E sob

Nightlife, de Thierry Gaillard, sobrepõe sucessivas referências: O Pensador de Rodin, o movimento de protesto contra a Guerra do Vietname, as quatro medalhas de ouro de Jesse Owens em Berlim...

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18 | ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015

todos os pontos de vista — técnicos,

plásticos, conceptuais.

No início está O Pensador, de Ro-

din. Ou, mais concretamente, uma

das versões em bronze cuja execu-

ção o escultor supervisionou e que,

no filme de Gaillard, é uma presen-

ça monumental que aparece a rodar

pelo espaço, aparentemente ao al-

cance do nosso toque. Uma ilusão

fugaz. E que rapidamente se vê subs-

tituída por uma lenta cadência de

imagens de flores, plantas e árvores

fustigadas por ventos nocturnos. Pri-

meiro uma família de estrelícias co-

mo grandes pássaros de bico agudo

e coroas de plumas coloridas.

As imagens são densas e pausa-

das. Como uma coreografia com

gotas de água a saltarem dos corpos

e a desfazerem-se no escuro. E, de-

pois, há o entorno — talvez a entrada

de um prédio.

Em geral, deambulamos por pai-

sagens urbanas mais ou menos de-

soladas, desabitadas e áridas, povo-

adas apenas por um intenso motim

vegetal.

Aquilo a que assistimos podiam

ser danças rituais alimentadas por

drogas. Palmeiras, carvalhos e zim-

bros — todos numa espécie de tran-

se hipnótico. Até a intensidade dos

movimentos de uma série de árvo-

res contra uma vedação de arame

farpado insinuar urgência e violên-

cias maiores. Como se as plantas

procurassem na verdade libertar-se

dos grilhões impostos pela humani-

dade e pelas suas arquitecturas. Co-

mo se estivéssemos, na verdade, a

assistir a uma revolta.

E que estádio é este que estamos

agora a sobrevoar? E que evento ce-

lebra o enorme fogo de artifício com

que Gaillard termina o filme?

A sequência de imagens de Ni-

ghtlife é misteriosa e a imersão na

sua noite profundamente românti-

ca. É uma experiência sublime,

acentuada ainda pela hipnose do

pequeno trecho de uma canção que

se repete infinitamente. Umas vezes

é claramente audível, outras abafa-

do, longínquo, mas é sempre a mes-

ma frase: “I was born a loser” — “nas-

ci um perdedor”.

Podíamos ficar por aqui, instala-

dos nas incógnitas deste embalo da

mais pura fruição estética. No en-

tanto, a profundidade total do abis-

mo de Nightlife abre-se ainda mais

vasta com as narrativas por trás das

imagens.

Gaillard não oferece significados.

É preciso procurá-los. Por exemplo,

saber que as filmagens decorreram

tanto na Europa como nos Estados

Unidos. E que a versão usada de O

Pensador pertence ao Museu de Ar-

te de Cleveland.

A partir da sua realização, em

1880-1881, O Pensador passou, em

geral, a ser assumido como símbolo

do pensamento e do conhecimento,

nomeadamente do acto de reflexão

por trás da criação poética ou artís-

tica ( já que representaria Dante, o

autor de A Divina Comédia). Foi já

no arranque do século XX que se

tornou também num símbolo do

movimento socialista francês e da

luta pelos princípios gerais de justi-

ça social lançados pela Revolução.

Il paraît que le fond de l’être est en train de changer, de Emmanuelle Lainé: ao mesmo tempo uma instalação in progress e o seu próprio espelho

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ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015 | 19

Liberdade, igualdade, fraternida-

de — as reivindicações da organiza-

ção norte-americana Weather Un-

derground, tida como de extrema-

esquerda, não fugiam a esta matriz.

Menos claros são os motivos por que

em 1970 esta facção dos Students

for a Democratic Society, apoiante

do black power e envolvida na fuga

de Timothy Leary da prisão, decidiu

dinamitar “O Pensador de Cleve-

land” em protesto contra a guerra

do Vietname. Seja como for, a peça

foi parcialmente destruída e nunca

foi restaurada. Assim, é com uma

versão dinamitada do pensamento

e da liberdade que Gaillard começa

o seu filme. E, desde logo, também,

com o refrão que nos acompanhará

até ao fim: “I was born a loser” foi a

versão inicial do tema que, por im-

posição da sua editora, o cantor ja-

maicano Alton Ellis acabou por gra-

var como I was born a winner.

A mudarDe perdedor a vencedor — era o espí-

rito dos tempos da luta pelos direitos

civis dos negros nos Estados Unidos.

E, no seu filme, Gaillard introduz qua-

se imperceptivelmente ambas as ver-

sões. O perdedor mais presente do

que o vencedor. Nomeadamente

quando sobrevoamos o estádio de

Berlim onde, nos Jogos Olímpicos de

1936, Jesse Owens ganhou quatro me-

dalhas de ouro, expondo ao ridículo

a ideologia do Terceiro Reich.

Nesse ano, para além das meda-

lhas, o comité olímpico ofereceu aos

atletas vencedores pequenos reben-

tos de carvalho. Owens plantou o

dele na Escola Secundária Rhodes,

em Cleveland, onde estudou e trei-

nou. É dos poucos (se não o único)

carvalhos do Comité Olímpico de

1936 ainda sobreviventes. O carva-

lho que no filme de Gaillard se vê

iluminado pela passagem de um he-

licóptero e que parece desmembrar-

se ao vento, com pedaços da casca

a voarem pelos ares.

Tal como toda a restante vegetação

— as estrelícias, as bananeiras, os

“zimbros de Hollywood”... —, é uma

presença exótica na paisagem norte-

americana — não-autóctone. Constitui

mais uma camada de significado e de

tempos acumulados sob a imensa en-

cenação orquestrada por Gaillard.

Ralph Rugoff refere como muitos

dos trabalhos da edição deste ano

da bienal “se deslocam inesperada-

mente de cenários actuais para re-

ferências históricas”. Nightlife é uma

dessas obras. Da mesma família alar-

gada de trabalhos em que “as ima-

gens do presente são uma espécie

de palimpsesto estratificado com

traços de momentos anteriores”. A

via de Emmanuelle Lainé (Paris,

1973).

O título da grande instalação que

a artista apresenta em Lyon propõe

desde logo uma grelha de leitura: Il

paraît que le fond de l’être est en train

de changer. À letra, é dizer que “pa-

rece que o fundo do ser está a mu-

dar”.

A natureza transitória do tempo,

do ser e do estar está em causa num

trabalho para o qual a artista traba-

lhou in situ durante três semanas,

ocupando a sua sala do Museu de

Arte Contemporânea com presenças

de naturezas e origens diversas. Plan-

tas artificiais, bidões industriais, bal-

des de tinta, uma vassoura, a mão de

um manequim a apontar algures pa-

ra o horizonte através de uma janela:

é o processo habitual de Lainé — tra-

balhar em estreita relação com a ar-

quitectura dos seus espaços exposi-

tivos; a acumulação.

Apesar do cuidado na composição

— notório, por exemplo, nas combi-

nações cromáticas —, podíamos es-

tar a entrar no atelier de um artista.

O caos ordenado podia correspon-

der a diferentes zonas de trabalho

com diferentes projectos em curso

e o fio de pensamento de uma mes-

ma pessoa como elo superior. Cons-

tituiria, por si só, uma narrativa

complexa e cheia de pequenas nar-

rativas dentro. No entanto, a reali-

dade do espaço de Lainé é estratifi-

cada de forma mais deliberada.

Enquanto foi arranjando e rear-

ranjando o espaço, à medida que

novos elementos surgiram e foram

introduzidos, Lainé fotografou dife-

rentes momentos de existência das

sua instalação in progress. Uma vez

ampliadas, essas imagens são agora

as duas maiores paredes da instala-

ção. Podiam ser espelhos. A não ser

por pequenas deslocações — um bal-

de branco simplesmente deixado

perto de um velho pano cheio de

tinta cor-de-rosa, o balde-espelho

bidimensional caído por terra junto

ao mesmo pano; uma vassoura de

palha bidimensional encostada a

uma parede, o seu espelho tridimen-

sional caído no chão; um pequeno

objecto de ferro que já só existe en-

quanto imagem, outro apenas tridi-

mensional... Um fresco contempo-

râneo com efeitos de trompe-l’oeil e

mise en abîme dentro.

Em última análise, podemos pen-

sar em objectos tornados imagem

e, depois, de novo devolvidos à sua

condição primeira de objectos. Po-

demos também imaginar este como

um processo ininterrupto, passível

de ser repetido uma e outra vez. Fi-

caríamos perante um momento in-

finito. Nunca exactamente igual.

Nunca radicalmente distinto.

É como a História. Como uma ci-

dade enterrada na areia — um dia a

areia é soprada e o que estava por

baixo vem subitamente à tona.

O passado nunca morre. O passa-

do nem sequer é ainda passado.

O Ípsilon viajou a convite da Bienal de Lyon

Muitos dos trabalhos da bienal “deslocam-se inesperadamente de cenários actuais para referências históricas”

Informações 21 790 51 55 · [email protected] · www.culturgest.ptTicketline Reservas e informações: 1820 (24 horas)��·��Pontos de venda: Agências Abreu, Galeria Comercial

Campo Pequeno, Casino Lisboa, C.C. Dolce Vita, El Corte Inglés, Fnac, Megarede, Worten e www.ticketline.sapo.pt

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Nuno Costa DetoxCiclo “Jazz +351”�· Comissário: Pedro CostaJAZZ SEX 9 DE OUTUBRO · 21H30 · 5€ · M6

“Dá prazer ouvir e nunca é previsível. Não sinto que seja preciso pedir mais de um disco.” Mário Laginha sobre Detox, que estará na base do concerto desta noite.

House of Dancede Tina SatterTEATRO SEX 9, SÁB 10, DOM 11 DE OUTUBRO · 21H30 (DOM, 17H) · 15€ · M12

Sapateado, tensões que brotam e sonhos que regressam à vida num espetáculo a que o New York Times chamou “encantadoramente excêntrico”, servido pela escrita irónica e generosa de uma das mais entusiasmantes criadoras nova-iorquinas.

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Page 20: 25 Set Ipsilon

20 | ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015

Doze anos, 20 números, 136 colaboradores: a Telhados de

Vidro é definitivamente mais do que o brinquedo de um grupo de

amigos

A Telhados de Vidro, dirigida

pelos poetas Manuel de

Freitas e Inês Dias, editores da Averno, chegou

ao seu 20.º número, um

volume de quase 250 páginas

que inclui, em separata, um

livro de Adília Lopes. É talvez

a mais relevante revista literária

portuguesa deste início do século

XXI.

Uma

com qualidadesLuís Miguel Queirós

revista

Page 21: 25 Set Ipsilon

ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015 | 21

De Herberto Helder ou An-

tónio Barahona a Adília

Lopes e José Miguel Silva,

a revista Telhados de Vidro

acolhe um elenco de cola-

boradores demasiado di-

versificado para poder ser conotada

com um qualquer movimento, mas

também não é tão ecléctica que se

torne anódina. É exigente no plano

gráfico, mas evita a exuberância.

Tem na poesia o seu centro de gra-

vidade, mas dá espaço a todo o gé-

nero de textos. A sua dimensão po-

lítica é notória, mas os seus autores

cobrem todo o espectro ideológico.

Lançada em 2003 pelos fundadores

da então recém-criada editora Aver-

no, os poetas Manuel de Freitas e

Inês Dias, chega agora ao seu 20.º

número, uma longevidade assinalá-

vel para uma revista que faz questão

de não receber quaisquer apoios,

salvo aquele que resulta das colabo-

rações (sempre inéditas) enviadas

pelos autores convidados.

O número inaugural tinha 11 cola-

boradores e 90 páginas. Doze anos

mais tarde, este número 20 que ago-

ra chega às bancas (às poucas bancas

que distribuem a revista), tem 41 co-

laboradores e 238 páginas, e oferece

ainda em separata um livro inédito

de Adília Lopes, Comprimidos.

A sobrevivência e a consolidação

da revista não surpreendem o poe-

ta e dramaturgo Jaime Rocha, seu

colaborador regular: “É das poucas

ilhas poéticas que existem no país,

e é uma ideia diferente de revista,

que consegue uma junção pouco

habitual da qualidade dos textos

com a qualidade gráfica.” Daí que

os autores tenham prazer em cola-

borar, argumenta, dando o exemplo

da romancista Hélia Correia, sua

companheira: “Nunca tinha pensa-

do em colaborar, mas quando a con-

vidaram pela primeira vez, como já

conhecia a revista, ficou entusias-

madíssima.” E agora, “de cada vez

que a convidam”, conclui, “saem-

lhe sempre bons poemas que de

outro modo não escreveria”.

Os poemas de Hélia Correia que

integram este último número con-

firmam-no. Um deles, escrito a pre-

texto da morte de Herberto Helder,

é mesmo um dos momentos altos

da revista: “(...) Julga que o apa-

nhou: não apanhou./ Opera no va-

zio. E não lhe chamo/ nem cabra

nem cadela, esses abusos/ vocabu-

lares das imprecações./ Não terá

nome de animal, de algo que possa/

agarrar-se ao meu peito e comover-

me./ Não terá nome algum. (...)”.

Este agigantado número 20, no

qual também Jaime Rocha participa

com mais um ciclo do conjunto An-

jos Tardios, dá bem ideia da quali-

dade, mas também da variedade

estética, geracional, e até geográfica

dos colaboradores. Num inventário

necessariamente resumido, refiram-

se poetas que se estrearam na déca-

da de 70, como A. M. Pires Cabral,

Helder Moura Pereira, Paulo da Cos-

ta Domingos, Emanuel Jorge Botelho

ou Fernando Guerreiro, autores dos

anos 80, como Rui Baião ou José

Carlos Soares, e ainda nomes mais

recentes, do próprio Manuel de Frei-

tas a Rui Pires Cabral, João Almeida,

Miguel Martins, Renata Correia Bo-

telho ou Tiago Araújo.

A estes e outros autores vêm ain-

da juntar-se três recomendáveis po-

etas brasileiros: Fabio Weintraub e

Pádua Fernandes, ambos na casa

dos 40 anos, e Luca Argel, nascido

em 1988. De modos diversos, todos

eles partilham dessa energia inven-

tiva que marca muita da lírica bra-

sileira recente, mas doseada por

uma aspereza e uma violência que

os afasta das tendências mais feéri-

cas e culturalistas de alguns dos seus

conterrâneos.

Como em todos os números da Te-

lhados de Vidro, não faltam também

traduções de autores estrangeiros:

poemas do norte-americano Gerard

Malanga, o poeta-dançarino-fotó-

grafo que fundou com Andy Warhol

a revista Interview, da romena fran-

cófona Linda Maria Baros, do argen-

tino Mariano Peyrou, e ainda duas

cartas de Novalis.

Os textos em prosa que fecham a

revista não são menos variados: An-

tónio Barahona partilha as suas Pon-

derações àcêrca do paradoxo da fé,

Isabel Nogueira reflecte sobre a ima-

gem cinematográfica, Maria Filome-

na Molder assina um ensaio intitu-

lado Amor do longínquo, obediência

à proximidade, e Manuel de Freitas

redige mais um dos seus Incipit —

um ciclo dedicado a livros de estreia

notáveis —, lembrando desta vez a

Lírica Consumível (1965) de Arman-

do Silva Carvalho.

O inventário das colaborações é

tão heterogéneo que permite adivi-

nhar que o método de organização

da revista é um tanto peculiar: “Ca-

da número é sempre uma incógnita:

dos 20 ou 30 autores que convida-

mos, nunca sabemos qual vai ser ao

certo o elenco final, nem o que ire-

mos receber”, explica Manuel de

Freitas. A regra é simples: o convi-

dado manda o que quiser, poema,

ficção, ensaio, ele é que sabe. Às ve-

zes corre manifestamente bem.

Veja-se o número 4, ao qual Herber-

to Helder fez chegar duas notáveis

prosas inéditas, enquanto Joaquim

Manuel Magalhães enviava o longo

poema Homossexualidade, talvez um

dos textos mais importantes que a

revista até hoje publicou.

Que nesta diversidade de vozes se

pressinta ainda assim uma coerên-

cia essencial, só pode dever-se aos

critérios de escolha dos organizado-

res, que Freitas resume com laco-

nismo: “Escolhemos autores de

quem gostamos.” Só que este “gos-

tar” não se restringe à apreciação

da obra. “Há um lado ético que está

para lá do texto: só convidamos al-

guém cuja postura ética nos inspire

alguma cumplicidade, e isto tanto

vale para poetas como para ensaís-

tas ou tradutores”, assegura.

“Postura ética” não tem aqui qual-

quer conotação político-ideológica.

Freitas acha, aliás, que “é impossível

definir em termos políticos” uma

revista que inclui autores “muito

alinhados à esquerda”, mas também

“monárquicos, conservadores ou

anarquistas”. O que interessa, diz,

é que sejam “coerentes com as suas

opções, como o António Manuel

Couto Viana o era à direita, ou o João

Almeida o é à esquerda”.

Se olharmos para o já extenso rol

de 136 colaboradores da revista, uma

das linhas de força das escolhas dos

seus editores parece ser o desejo de

recuperar bons poetas que tinham

saído um pouco de cena, como Fáti-

ma Maldonado, Carlos Poças Falcão,

José António Almeida ou Gil de Car-

valho, para citar apenas alguns nomes

de qualidade mais indiscutível.

Ao mesmo tempo, a Telhados de

Vidro tem divulgado muitos poetas

da geração de Manuel de Freitas,

alguns um pouco mais velhos, co-

mo Vítor Nogueira, Ana Paula Iná-

cio, Rui Pires Cabral, José Miguel

Silva ou Miguel Martins, e outros

mais novos, como Renata Correia

Botelho, Miguel-Manso ou Diogo

Vaz Pinto, mas não parece andar

muito à procura de novos talentos.

“Não temos editado muitos poetas

com menos de 30 anos”, reconhe-

ce Freitas. “Não aparecem natural-

mente com a qualidade que o jus-

tificasse e não vale a pena estar a

inventá-los: há tanta gente a escre-

ver bem e tanta coisa a merecer ser

traduzida...”.

Agitar as águasAos autores literários da revista,

juntam-se os artistas convidados a

colaborar nas capas, que incluem

nomes como Lourdes Castro, Carlos

Nogueira, Pedro Calapez, Luis Ma-

nuel Gaspar, Adriana Molder ou Lu-

ís Henriques, entre muitos outros.

Uma variedade que, também no pla-

no visual, não põe em causa a coe-

rência da revista, cujo arranjo grá-

fico foi concebido pelo principal

cúmplice de Manuel de Freitas e

Inês Dias na fase inicial do projecto,

Olímpio Ferreira, que morreria pre-

cocemente em 2007.

“Creio que há uma harmonia no

modo como as várias capas convi-

vem, e que essa unidade em coisas

tão diversas, que incluem desenhos,

colagens, fotografias, se deve muito

ao trabalho gráfico do Olímpio”, diz

Luis Manuel Gaspar, observando

que a Telhados de Vidro “tem uma

lógica de sobriedade, de não osten-

tação, mas é feita com um cuidado

invulgar”.

Convidado para ilustrar o número

inaugural da Telhados de Vidro, Gas-

par colaborou ainda em vários nú-

meros como poeta, e assina agora a

capa do livro-separata de Adília Lo-

pes, para a qual desenhou uma bela

cabeça de gato. “Quando me convi-

daram, achei que teria graça unificar

as duas capas em volta dos gatos”,

diz, referindo-se à capa deste núme-

ro 20, para a qual Daniela Gomes

desenhou também um gato preto,

empoleirado numa poltrona. Para

se perceber as pequenas cumplici-

dades mais privadas de que também

se tece a revista, tem graça sabermos

que o modelo do gato de Gaspar é a

gata de Daniela Gomes, Anita, e que

o gato que esta desenhou é por sua

vez o saudoso Barnabé, de Manuel

de Freitas e Inês Dias, e que a pol-

trona é a de Mário Botas, que a pin-

tou com um dos seus galgos enros-

cados no assento.

Quando mostraram a Gaspar o

projecto da Telhados de Vidro, este

diz ter-se lembrado dos esforços de

Vítor Silva Tavares para ressuscitar,

em meados dos anos 80, a velha re-

vista & etc, que dirigira em 1973 e

1974. “A Telhados de Vidro tem uma

personalidade bem vincada, mas

acho que há uma espécie de passa-

gem de testemunho, como se a re-

vista que Vítor Silva Tavares não

conseguiu fazer nos anos 80 se ti-

vesse materializado de outra forma

20 anos mais tarde”, disse ao Ípsi-

lon, sem saber que o histórico editor

de Herberto ou Luiz Pacheco já só

teria um dia de vida.

Mas se o espírito da & etc pode ter

ressurgido na Telhados de Vidro, tal-

vez seja legítimo encontrar um pre-

cedente mais próximo na efémera

revista As Escadas Não Têm Degraus,

que António M. Feijó, João Miguel

Fernandes Jorge e Joaquim Manuel

Magalhães dirigiram para a Cotovia

entre 1989 e 1991. O formato e a or-

ganização têm algumas afinidades

e as duas publicações partilham vá-

rios autores.

Absurdo é querer continuar a ver

numa revista cujo elenco de colabo-

radores já soma 136 nomes “o órgão

dos poetas sem qualidades”, expres-

são em tempos usada por um críti-

co. Se no primeiro número podiam

ainda pressentir-se alguns ecos da

polémica gerada pelo prefácio que

Manuel de Freitas escrevera pouco

antes para a sua antologia Poetas

Sem Qualidades (2002), a Telhados

de Vidro rapidamente demonstrou

que visava bastante mais alto do que

servir de brinquedo a um grupo de

amigos apostados em irritar os Dan-

tas dos nossos dias.

Se privilegiarmos a qualidade dos

autores, a mistura de criação e re-

flexão, a consistência editorial e grá-

fica, a vontade de intervir no pre-

sente e de agitar (e separar) algumas

águas, mas também a reavaliação

crítica do cânone literário mais re-

cente, é até difícil não reconhecer

na Telhados de Vidro a revista literá-

ria portuguesa mais relevante sur-

gida nesta primeira década e meia

do século XXI.

“Há um lado ético que está para lá do texto: só convidamos alguém cuja postura ética nos inspire alguma cumplicidade”Manuel de Freitas

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22 | ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015

O décimo romance de Bernardo Carvalho é sobre a incapacidade de comunicar este presente incessantemente mutante e narcisista. Reprodução põe o dedo na ferida do debate político pós-Internet, o lugar do lugar-comum.

A Internet cria “um leitor mais burro e mais violento”

Isabel Lucas

Bernardo Carvalho estava a

viver em Berlim quando o

convidaram a escrever um

conto para os dez anos da

Festa Literária de Paraty. O

sentido de urgência que o

levou a escrevê-lo não se esgotou e

o conto tornou-se um romance, Re-

produção. É uma reacção a este mun-

do que privilegia o discurso único e

a leitura de primeiro grau, e a esta

ideia de que existe uma verdade,

quando a democracia tem pouco a

ver com absolutos.

Num aeroporto, um homem é de-

tido. É um brasileiro, estudante de

chinês, que as autoridades associam

a um caso de tráfico. A acção do dé-

cimo romance de Bernardo Carva-

lho — vencedor, a par com Dalton

Trevisan, do prémio Portugal Tele-

com em 2003, com Nove Noites (Co-

tovia) — desenrola-se à medida que

o monólogo do estudante de chinês,

leitor de blogues, activo nas redes

sociais, entra num ritmo alucinado,

em que ele despeja informação, ma-

nifesta opiniões e defende uma coi-

sa e o seu contrário de forma tão

convicta quanto irritante. O prota-

gonista serve a Bernardo de Carva-

lho, o escritor de 55 anos natural do

Rio de Janeiro, para compor um ro-

mance de denúncia irónico, inquie-

to e angustiante no modo como ex-

põe manifestações de linguagem e

através delas faz o retrato de uma

época para a qual parece faltar um

discurso à altura.

Este romance parece ter

nascido de um impulso. Foi

assim?

Sim, um pouco por uma urgência

que veio de uma observação políti-

ca. Acabei reconhecendo em pesso-

as que abomino, em discursos que

odeio, coisas com as quais concor-

do. Acontece ouvir alguém, estar de

acordo e acompanhar o discurso,

acreditando que é bom, e de repen-

te dar-me conta de que quem falava

era um representante da extrema-

direita, por exemplo. Essa mobili-

dade dos discursos, o terem saído

do lugar de conforto no qual eu po-

dia reconhecê-los, inquieta-me.

O seu estudante de chinês diz

que “a contradição é a força e

a fraqueza da democracia”. O

livro interroga-se sobre o que

acontece quando se acaba com

o contraditório no discurso.

Também no discurso ficcional?

Claro. A grandeza da democracia é

que se pode conviver com a contra-

dição. Nas sociedades autoritárias

existe uma deliberação única de

uma fonte única. Uma vez entrevis-

tei o Lévi-Strauss e ele dizia que a

grandeza e a fraqueza das socieda-

des ocidentais é que elas trazem

dentro um gene suicida. A sua gran-

deza é mostrar a própria vulnerabi-

lidade. Mas ao mesmo tempo isso

possibilita muitos extremismos. Co-

mmmmm

Reprodução

Bernardo

Carvalho

Quetzal

Bernardo Carvalho vem de um país “sem leitores”, o Brasil: “No livro há esse desespero de uma língua, de uma escrita feita para um mundo que não quer recebê-la”

Page 23: 25 Set Ipsilon

ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015 | 23

mo é que uma sociedade que defen-

de os direitos humanos faz o que faz

com os palestinianos, por exemplo?

Há muitas contradições internas que

enfraquecem o próprio discurso da

democracia. Vejo uma espécie de

oportunismo generalizado de apro-

priação dos discursos, o que é mui-

to assustador. O livro não apresenta

solução; é o retrato dessa perplexi-

dade e desse incómodo; dessa im-

potência perante a apropriação dos

discursos que antes estavam bem

definidos.

O discurso está sempre em

forma de monólogo. Essa

escolha pretende sublinhar

uma ilusão de diálogo?

É outra urgência. Não há a fala de

um interlocutor. Expressa a ideia da

Internet, um lugar de espelho em

que se acha que se está numa rela-

ção com o outro e na verdade se

está sempre a reproduzir o mesmo.

É quase uma relação narcisista.

Falta o contraditório?

Exacto. Tudo o que é contradição

você apaga. Parece que há abertura

ao outro mas só se procura o mes-

mo. Posso aprender algumas coisas,

mas estão sempre dentro de uma

circunscrição que já domino por

antecedência. É uma espécie de es-

paço hedonista e isso é muito per-

verso porque a partir do momento

em que se entra nisso é como uma

droga; é uma fonte de prazer abso-

luto e elimina qualquer necessidade

de esforço, de contradição.

Ilusão de companhia; ilusão

de conhecimento; ilusão de

opinião; ilusão de informação;

ilusão sobre a capacidade do

discurso actual para reflectir

a realidade actual. Há uma

incapacidade de comunicar?

Acho que sim. Parece que com esta

proliferação de opiniões todo o

mundo passou a se expressar e no

final talvez não haja muita diferença

entre os milhões de opiniões; elas

acabam no lugar-comum.

É a tal reprodução de que fala

o título?

É. Mas iludida. As opiniões são in-

satisfatórias. Isso é estranho. Dá

uma sensação de incompletude, de

uma opacidade que não permite que

se enxergue o mundo de verdade.

E é infinito.

Qual é a sua relação com a

Internet?

Sou viciado. Não passo dez minutos

fora da Internet. Sou um doente.

Quis dar a perspectiva crítica de

uma situação na qual estou realmen-

te perdido.

Os jornais e os meios de

informação que têm função de

mediar a realidade passaram a

ser decididos pelos leitores, com

o mercado a definir conteúdos

e o leitor a transformar-se em

decisor. Se o leitor não gostar, o

jornal não dá.

É muito perverso. O princípio seria

mais democrático. Questiona-se a

autoridade do jornal porque tem na

origem um interesse económico pre-

ciso. A ideia é que a Internet pulve-

riza essa autoridade dos media, o

que parece bom, dá um sentido de

democratização à informação, mas

perdem-se noções de hierarquia,

padrões, modelos, e é difícil estabe-

lecer qualquer tipo de diálogo se

não houver um parâmetro. Esses

parâmetros perderam-se na bara-

funda de opiniões e de informações

e acreditamos em absolutamente

tudo o que se publica na Internet.

Talvez isso estivesse nos media, mas

lá há mediação, uma auto-censura

que não permite reproduzir qual-

quer coisa. Isso põe muitas coisas

em causa, sobretudo a ideia da ver-

dade, é como se fosse uma segunda

natureza.

Há uma interrogação sobre a

função do romance quando

uma personagem remete

o género para um lugar de

facilidade, que não reflecte

nem reage à realidade...

Tenho uma relação com a ficção li-

terária um pouco semelhante à de

uma religião, quase dogmática.

Acredito que se pode chegar à ver-

dade por meio da literatura. Acho

que a verdade só pode ser alcançada

de uma maneira indirecta, transver-

sal, mediada, e vejo a literatura co-

mo uma forma de reflexão muito

sofisticada. Uma forma não só de

retratar a realidade, ou de ser refle-

xo da realidade, mas também de

aceder à verdade. Com a Internet

isso foi pelo ar, não há ironia. É sem-

pre um discurso de primeiro grau.

Cria leitores iletrados para a litera-

tura, para a ironia, para a reflexão.

A Internet muda o leitor?

Muda, mas para um leitor mais bur-

ro e mais violento. É o mesmo leitor

que não suporta ver uma caricatura

do profeta Maomé, que a ficção pos-

sa ser uma reflexão sobre a realida-

de e não a própria realidade. Acho

assustador esse leitor que a Internet

incentiva, sem instrumentos para

entender a ironia e o distanciamen-

to. A ideia de romance que defendo

é uma resistência a essa facilidade,

a essa naturalidade da Internet. O

romance, como o entendo, é um

instrumento de guerra contra a per-

cepção naturalista do texto em ge-

ral, como se a letra fosse necessaria-

mente a verdade e não uma reflexão

sobre o mundo. Faço isso ao mesmo

tempo que brinco, que vou dizendo

coisas de que discordo com muita

convicção. Quanto mais eu dizia coi-

sas horríveis, mais prazer eu tinha,

mais feliz eu ficava. Ia escrevendo

aquilo como se fosse um vómito, e

foi com muito prazer.

O modo como o faz torna

difícil distinguir autor de

personagem. Alguma vez sentiu

essa colagem de identidade?

A aventura e o risco eram justamen-

te esses, me confundir nessa voz hor-

rível. Há um pouco de autobiografia,

ele diz algumas coisas em que acre-

dito, e também estudei chinês, tam-

bém tive uma professora como a

dele. E ele vai perdendo a ironia, o

riso se esvai numa espécie de des-

conforto e mal-estar. Nos discursos

do horror é difícil detectar fronteiras.

É aí que está o horror. Tudo vem da

inabilidade de discernir onde está o

bem e onde está o mal.

Já escreveu muito sobre o

Oriente, volta lá agora para

encontrar o sítio de que se

tem medo, o sítio da língua

do futuro, sem memória, sem

passado. Porquê?

Há uma personagem que diz que

quantas mais línguas houver no mun-

do menos chances há de o ser huma-

no desaparecer, e que quanto menos

línguas houver mais o ser humano

fica vulnerável. Eu queria falar de

uma certa pasteurização pela língua.

Podia ser o inglês, mas escolhi o chi-

nês porque era uma língua periférica

para o Ocidente e ganhou hegemo-

nia. Hoje é uma língua do poder. Há

a ideia da língua absoluta, que se im-

põe e vai destruindo as outras, tor-

nando o homem mais vulnerável

pela falta de diversidade. O português

fez isso com as línguas indígenas. O

Brasil tinha centenas de línguas que

foram desaparecendo.

O estudante diz: “o que eu

estou querendo dizer só poder

ser dito na língua do futuro”.

Esta incapacidade da língua em

relação ao presente de que fala

inquieta-o?

Como escritor, o que toca mais é a

ideia da língua escrita. No Brasil isso

é muito peculiar, sendo um país ile-

trado. Escrevo num país onde não

se lê. Por um lado, há uma coisa in-

teressante, de que pode ser um ex-

celente exemplo o Machado de Assis

quando escreveu o Memórias Póstu-

mas de Brás Cubas e passou dos ro-

mances mais tradicionais para uma

espécie de revolução: ele teve cons-

ciência de que não devia nada a nin-

guém e isso deu-lhe liberdade de

escrever uma coisa revolucionária.

Mas há também uma angústia de

fundo: escrever sem leitores, escre-

ver para um mundo que não lê. No

livro há esse desespero de uma lín-

gua, de uma escrita feita para um

mundo que não quer recebê-la. É

como se fosse uma teimosia, uma

resistência.

“A Internet é um lugar de espelho em que se acha que se está numa relação com o outro e na verdade se está sempre a reproduzir o mesmo”

ENRI

C V

IVES

-RU

BIO

Page 24: 25 Set Ipsilon

24 | ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015

Livr

os

Poesia

Uma inclinação musical para a quedaUma antologia

suficientemente ampla e

produtiva para permitir uma

releitura, ou a descoberta,

de um dos mais importantes

poetas revelados nas últimas

décadas. Hugo Pinto Santos

Sunny Bar

Manuel de Freitas

(Org. Rui Pires Cabral)Alambique

mmmmm

“A poesia”,

escreveu Sartre,

“é um quem

perde ganha. E o

poeta autêntico

escolhe perder, a

ponto de morrer

para ganhar”.

Seria decerto

ínvio arriscar um lema desta

concisão para alguém com um

percurso de poesia tão importante

e amplo quanto o de Manuel de

Freitas. No entanto, nas palavras

do autor de O Ser e O Nada

encontram-se pistas que se podem

revelar úteis na leitura desta

poesia. Poderíamos começar por

propor a perda como princípio

norteador, ou pelo menos passível

de organizar uma leitura mais ou

menos abrangente, como a que

aconselha uma antologia. Perda

da própria vida, mas também

aquela que atinge as palavras,

incapazes de deter esse terramoto

em constante anúncio, até à

aniquilação final. No que se

descreve o arco da existência,

muito mais do que da

“vidinha” — que pode ou não

estar em casa nos versos de

Manuel de Freitas. A morte de

que, por fim, se trata, naquele

trecho, é elemento axial do ganho

que, uma vez postulado, regressa

ao outro cabo da equação para

tornar a ser perda. Uma proposta

que talvez encontre não se dirá

apaziguamento mas uma breve

ilustração em Cronofobia (Assírio

& Alvim, 2002) – “Sou

contemporâneo de Villon/ e

escrevo às vezes a Montaigne,/

arguto mas demasiado absorto/ no

renome e na sabedoria instável/

dos seus livros anotados.” O teor

ironicamente trans-histórico deste

poema não autoriza a supor uma

concepção indulgente do sujeito

como entidade que viva acima das

suas possibilidades terrenas.

Tanto mais que a corrente irónica

que percorre estes versos mais

não fará do que adensar-se até ao

último verso, onde já aflora a

“mão que nunca lerá José

Saramago”. O que, de resto,

apenas sai reforçado pela

referência a Montaigne, que crava

neles a qualidade “ondulante e

diversa” com que o francês

descreveu o homem. Eis,

portanto, quase um paradigma

para a situação daquele que fala

pelo poema. A morte e a

inviabilidade da vida (na sua

incapacidade de ser fixada, ou

simplesmente fruída) convergem

para alguém que, mais do que

elevar-se acima do tempo, o sofre.

Conforme defende, de forma

modelar, Silvina Rodrigues Lopes,

espaços como o da taberna

salvam-se de constituírem

alegorias porque se tornam

“pedaços de sensações que

apagam as histórias que os

poderiam demarcar” (p. 197).

Motivo pelo qual aquele

enquadramento nem se diaboliza,

nem se eleva a uma condição

mitificadora que está claramente

vedada pela razão medida dos

versos — mesmo se eles

assentam em experiências, ou

na recriação delas, marcadas

pela disrupção e por estados

anímicos vizinhos da abjecção e

da náusea. O “conluio/ diário de

taberna” (p. 11) explicitamente

denuncia a venalidade daquele

suposto altar, através da assunção

do ar consumido que por ali

circula. A taberna é, então, apenas

um dos espaços eleitos para a

problematização do que é, no

fundo, uma só questão — “Porque

isto/ que não passa, sabemo-lo

bem, é a vida// ou a morte, uma

perda que dura/ e não se apaga

assim, sob um cerco de navalhas

ou de inúteis, vigorosos/

sentimentos.” (p. 43) A sequência

“a vida// ou a morte”, apesar do

artifício rítmico e gráfico da

mudança de estrofe (ou também

por ele), demonstra-no-lo. Vida e

morte são a mesma causa. O

ritmo, a posição dos vocábulos, no

tecer e articular da frase e do

verso, dão a forma harmonizada e

a musicalidade a um caos nunca

enjeitado, nunca sobremaneira

buscado. Quanto aos vivos, eles

são descritos como “mortos

imperfeitos” (p. 103). Mas assim

como a morte é “essa certeza

improvável” (p. 48), também a

vida é o indizível. Não no sentido

de um excesso de dados e

empenho pessoal do sujeito num

projecto que o deixe assoberbado,

mas pela inviabilidade das

definições mais absolutas e

positivas do que ela seja — “O

resto, a vida, fica para outra vez.”

(p. 37) Porque não há como

abarcá-la, como dizê-la.

Retomando as palavras de Sartre,

dir-se-ia que Manuel de Freitas é

um poeta autêntico porque a

perda que a sua poesia tão

amplamente tematiza é levada até

às últimas consequências. Isto

é: o ponto em que a morte se

ausculta, com lucidez e sem

dramaticidades deslocadas,

no pleno pulsar da vida. O que dá

sentido ao vivido enquanto

projecto congeminado num

horizonte parco que,

necessariamente, trava a

totalidade da expansão, mas

também concentra nos momentos

efectivamente experienciados o

fulgor possível de uma

determinada clarividência.

Sunny Bar não é a primeira

antologia que se realiza da poesia

de Manuel de Freitas; é, na

verdade, a quinta. Cabe, no

entanto, referir que esta recolha,

organizada por Rui Pires Cabral, é

a segunda editada nestes moldes

em Portugal. A primeira

colectânea antológica da poesia

do autor foi organizada pelo poeta

e crítico espanhol José Ángel

Cilleruelo: El Cielo del

Occidente (Calambur, 2004).

A seguinte viu a luz do outro

lado do oceano, por mão do poeta

e crítico brasileiro Luis Maffei:

Poemas de Manuel de Freitas,

Portugal, 0 (Oficina Raquel,

2007). Maffei foi, ainda,

responsável pela mais recente

antológica do poeta: Manuel de

Freitas — Ciranda da Poesia

(EdUERJ, 2014). Entre nós,

publicou-se, antes de Sunny Bar, A

Última Porta, com selecção e

posfácio de José Miguel Silva

(Assírio & Alvim, 2010). Sem

querer fazer uma tempestade num

copo de água com esse simples

dado, talvez não seja um acaso

que todos os organizadores das

referidas obras fossem poetas.

E, possivelmente, não menos

significativo, em dois casos

poetas-críticos. Em relação a

esta última estirpe, como diz o

poeta irlandês David Wheatley

(também ele um representante da

espécie), “existe a tentação de

ler o hífen como um sinal de

subtracção”. Mas é certo que a

leitura selectiva e necessariamente

opinativa de um poeta (crítico ou

não) será, com grande

probabilidade, uma operação de

interesse acrescido. Pese embora

aquilo que T.S. Eliot apelidou

(com acrimónia) de “workshop

criticism”, ou seja, uma visão

afunilada e paroquial da poesia

dos outros praticantes dela, não é

difícil conceber para estes poetas

e críticos uma visão peculiar e

lúcida da poesia de um outro

poeta.

No caso de Rui Pires Cabral, as

posições e as escolhas não se

explicitaram, ao contrário do que

sucedeu com José Miguel Silva —

ainda que este resumisse as suas

opções com uma característica

secura epigramática: “Sobre a

selecção dos poemas não tenho

muito a dizer. Escolhi

simplesmente os que me parecem

melhores, com toda a

subjectividade própria duma

ciência tão inexacta como é a do

gosto literário.” Em Sunny Bar,

Rui Pires Cabral não fez

Manuel de Freitas é um poeta autêntico no sentido em que leva a perda, que a sua poesia tão amplamente tematiza, até às últimas consequências

INÊS DIAS

Page 25: 25 Set Ipsilon

ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015 | 25

acompanhar os poemas por si

escolhidos de quaisquer

palavras justificativas ou que

evitassem esse protocolo. (O

exemplar posfácio de Silvina

Rodrigues Lopes fornece um

contraponto crítico que ostenta a

marca da invulgar penetração

daquela ensaísta.) Se poderá

lamentar-se que Rui Pires Cabral

não tenha dito mais, há, por outro

lado, que arriscar alguma coisa e

pensar num poeta que encontrou

a sua bússola em certo

refreamento expressivo e no

controlo da subjectividade que tão

discretamente se acende na sua

poesia.

Os poemas antologiados

compreendem-se entre o livro de

estreia de Freitas, Todos Contentes

e Eu Também (Campo das Letras,

2000), e Ubi Sunt (Averno, 2014).

De fora ficam algumas

plaquettes, edições de autor e

publicações de circulação

mais ou menos restrita. O que

não impede que Rui Pires

Cabral tenha recolhido

composições provenientes de 25

livros diferentes. Uma produção

que não se pode dizer que seja

habitual num poeta estreado há 15

anos e na qual é possível detectar

tendências evolutivas, como as

estudadas pelo ensaio de Silvina

Rodrigues Lopes que encerra

Sunny Bar — “o

desaparecimento de um certo

tipo de ironia que se vai

dando em livros posteriores”

(p. 197) —, mas também linhas de

força que percorrem toda a sua

escrita — “noite e música são

carne das palavras, e não apenas a

resposta auto-hipnótica à vontade

de esquecimento” (p. 190);

“Qualquer expressão reconhecível

trazida para o poema vem atraída

pelo seu movimento

descontextualizador, pela

perturbação dos vínculos a um

antes referenciável” (id.).

O passado espera-nos amanhãA enorme poesia do catalão

Joan Margarit numa edição

prodigiosa. Maria da

Conceição Caleiro

Misteriosamente Feliz. Uma

Antologia

Joan Margarit

(Org. Miguel Filipe Mochila)Língua Morta

mmmmm

A Língua Morta

editou uma

antologia

bilingue de

poemas escritos

entre 1970 e 2015

por Joan

Margarit, um dos

poetas maiores

dos nossos tempos. Catalão,

nascido em 1938, está traduzido

em diferentes línguas, do

castelhano ao euskera, do inglês

ao alemão, do russo ao hebraico.

Em português, idioma em que

apenas estava publicado Casa da

Misericórdia (OVNI, 2009), surge

agora esta edição prodigiosa. Para

além de um curto prefácio do

autor, encontramos notas úteis de

tradução e um longo posfácio (As

casas e as perdas — notas para uma

leitura da poesia de Joan Margarit)

que lança os alicerces do mundo

deste poeta. E ainda uma

biobibliografia no final.

Poeta e arquitecto, Joan

Margarit é uma figura culta, íntima

e cosmopolita no que convoca,

desprendendo do singular uma

ressonância universal, uma

reverberação que deixa cada

semente modesta a vibrar

longamente dentro do leitor; é um

fazedor de frátrias, e aí reside a

sua maior diferença face ao

quotidiano sem mundo dos

demais. De resto, é ele o tradutor

da sua própria poesia (ou, melhor,

o conversor da sua própria poesia,

posto que habita duas línguas

suas: o castelhano e o catalão).

Nela, há diversos dados

autobiográficos (pessoais,

geracionais, políticos) que podem

reconhecer-se com facilidade: teve

quatro filhos, três raparigas e um

rapaz, mas morreram dois (Anna

pouco depois de ter nascido, em

1967; Joana, que sofria de uma

doença genética rara e de origem

desconhecida, o Síndrome de

Rubinstein-Taybi, com um cancro,

aos 30 anos). Também por isso, a

morte está presente sob cada

passo.

O húmus que acolhe a semente

desta poesia — e quase em

simultâneo, em paradoxo a faz

deflagrar — é uma espécie de

tristeza mansa, uma maneira de

amar suspendendo o longínquo,

uma dor ou uma sabedoria vegetal

do tempo, do envelhecimento, da

ruína pré-anunciada e já

vivenciada de tudo. O que se

traduz antes de mais no uso do

imperfeito (a duração infinda) e

numa textualidade aparentemente

natural mas de facto feita de uma

manipulação de certos recursos

que se quer apagada (o

apagamento em si, a subtracção, a

retirada do sujeito, para além de

maneira de fazer, são tema: há

uma hemorragia das instâncias do

poder e do querer): paralelismos,

repetições inebriantes, cadências

que musicalizam uma toada que

se diria elegíaca. Mesmo quando

os dícticos precisam no texto o

tempo e o espaço, mesmo quando

se escreve interrompido por um

atrito qualquer, o passado (a sua

sempre memória) talha o sujeito e

é esse atrito na duração que

Joan Margarit, poeta e tradutor da sua própria poesia, faz eclodir nela imagens belas e surpreendentes, sempre sob a égide disfórica da melancolia e do luto

Um dos motivos psicopolíticos fundamentais

do nosso tempo é aquele de onde emerge a

palavra “mentira”, em torno da qual se

organiza grande parte da subjectividade

política. E o que anima esta subjectividade

nem é já o ressentimento nem a decepção,

aquela “raiva de ter sido enganado” que George Grosz

disse ser a disposição cínico-reflexiva da sociedade da

República de Weimar e que permitiu a Hitler chegar

ao poder prometendo a erradicação da mentira. O que

a anima é, antes, algo menos agónico, uma

“tonalidade epocal” responsável por um forte niilismo

eleitoral. De certo modo, governar e mentir sempre

foram sinónimos. Há quem afirme, com preceitos de

sabedoria antiga, que assim é porque a verdade dos

soberanos foi sempre diferente da vontade dos servos.

Mas da defesa que Platão faz das “nobres mentiras”

até à formulação muito eufemística de Hannah

Arendt, segundo a qual “ninguém duvidou alguma vez

de que é difícil a relação difícil entre verdade e a

política”, persistente é o discurso teórico e doutrinário

que nos fala das mentiras como instrumentos

legítimos da profissão política. A experiência dos

totalitarismos dos século XX ministrou uma lição: os

regimes totalitários são fundados no primado da

mentira. É uma conclusão que tanto inspirou George

Orwell como Alexandre Koyré, o autor de The Political

Function of the Modern Lie. Entre nós, deu-se nos

últimos tempos um fenómeno discursivo de alguma

importância: acusar um político de ser mentiroso

deixou de ser uma prerrogativa da linguagem da “rua”

e entrou sem cerimónias nas disposições do debate

político. Tornou-se um argumento usado nas

instâncias que, até há pouco, nunca tinham descido

abaixo das “inverdades”, na escala das virtudes

políticas. Isso não se deve a um recrudescimentos da

mentira (Koyré é muito claro quanto à época em que

se dá a hipertrofia da mentira: “O homem moderno —

do genus totalitário — nada na mentira, respira a

mentira, é prisioneiro da mentira em cada instante da

sua vida”), mas a dois outros factores: em primeiro

lugar, os políticos passaram a exercer a sua actividade

num palco, estão sempre expostos e em plena

representação (raramente fogem ou evitam na

medida do possível essa condição porque aquilo de

que são escravos é também o que lhes dá poder e

capital simbólico); em segundo lugar, a política

tornou-se uma especialidade técnico-gestionária que

tem como meio os números e uma imensa série de

dados que só podem ser uma de duas coisas: ou são

verdades de facto ou são falsidades. A mentira em

política já não é a “inverdade” que estava a meio

caminho entre as ilusões da ideologia e as mentiras

factuais. E, por isso, começou a tornar-se matéria para

uma acusação deste tipo: “O senhor, que é meu par, é

mentiroso”. Quando a política tinha uma dimensão

ideológica e era sobretudo uma política das ideias, a

mentira predominante, aquela em nome da qual se

praticavam quase todas as outras, era a mentira da

ideolgia. Refiro-me ao conceito marxista de ideologia

que, se não coincide inteiramente com a mentira e o

erro, conduz-nos, pelo menos, para o lugar de uma

não-verdade, para um véu que encobre a realidade. O

que há então de novo, nesta questão da mentira

política, é que passou a ser difícil, nas acuais

circunstâncias, defender concepções

substancialmente estéticas da política, como a de um

teórico completamente anti-ético como Carl Schmitt,

porque o triunfo da mentira de facto, aquela que

autoriza a que se diga a um político que ele é

mentiroso, não trouxe apenas consigo este

rebaixamento da política ao discurso de gente

mentirosa; caucionou também o seu contrário, uma

ideologia ética de uma pobreza confrangedora.

Estação Meteorológica

A mentira como vocaçãoAntónio Guerreiro

RUI GAUDÊNCIO

Page 26: 25 Set Ipsilon

26 | ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015

morte/ que apagou todo aquele

brilho/ atrás dos vidros

embaciados do passado.// A Mari,

o teu sorriso, o seu sorriso,/ o

cheiro a balneários de piscinas,/ e

tu nadando, nadando até à

morte.// Agora a Mari sabe-o,

despede-se/ de ti olhando as suas

filhas. Sim, a Mari,/ a Mari grávida,

que negou/ fazer os exames: não

temia/ ter uma criança como tu.”

Ficção

Relatório íntimoRomance fragmentário

sobre a angústia e o desgaste

provocados pela vida

doméstica, pela maternidade

e pelo casamento. José Riço

Direitinho

Departamento de Especulações

Jenny Offill

(Trad. José Miguel Silva)Relógio D’Água

mmmmm

Neste segundo

romance da

norte-americana

Jenny Offill (n.

1968), a

narradora é uma

escritora que

vive em Nova

Iorque, está

casada há sete anos, e tem uma

filha pequena. Escreveu um

romance há alguns anos, mas,

devido ao nascimento da criança e

aos afazeres domésticos (presume-

se), o segundo livro tem vindo a

ser sucessivamente adiado; a

angústia provocada pelo facto é

evidente. A protagonista de

Departamento de Especulações,

que trabalha como revisora para

uma revista científica, acaba

também por aceitar um outro

emprego como ghostwriter de um

milionário que quer escrever uma

história do programa espacial. O

marido, que os outros conhecem

“pela sua generosidade” para com

quem sofre (vítimas de doenças ou

de terramotos um pouco por todo

o mundo), parece ausentar-se da

sua vida, como se o casamento o

tivesse sentado num pedestal que

aos poucos se afasta dela. “Que

fizeste hoje?, perguntavas ao

chegar a casa do trabalho, e eu

fazia o possível por criar do nada

uma história qualquer.”

Personagem secundária neste

romance, o marido vive numa

espécie de “espaço em branco”,

dissimulado numa estranha

bruma, e mesmo quando o

casamento fica em perigo porque

ele a trai não abandona esse

espaço. “Ambos têm dificuldade

em arranjar coragem para entrar

no Teatrinho dos Sentimentos

Feridos.”

Em Departamento de

Especulações, o leitor acompanha

o desenrolar de um casamento,

sobretudo “aquele” casamento,

visto apenas do lado da mulher,

numa visão que ela pretende

honesta e sem hipocrisias, e que

nos é apresentada como se

estivéssemos a ler um diário, um

relatório íntimo que não deve ser

compartilhado. “As pessoas são

bem intencionadas. É nisto que

ele acredita. Então, como é que

casou comigo? Eu odeio

facilmente e amiúde.” Tanto a

narrativa como a forma que Jenny

Offill escolheu para o romance —

parágrafos com espaçamento

cria o poema. Daí que o ethos

desta poesia seja cerimónia e

elegantemente disfórico mas

mesmo assim não nocturno,

avançando misteriosamente feliz.

Em praticamente todos os

poemas o autor escreve para

um tu; é uma poesia

intimamente dialógica,

prova da sua explosão

nascida para o aberto, seja o

outro desdobramento do eu

ou um nome explicitado ( Joana,

Raquel, Mari, uma figura mais ou

menos conhecida, um lugar...):

“Um telhado longínquo/ a estante

vazia de um director de

orquestra(...)/ o teu quarto ao

clarear do dia/ (...) perdura no

mais fundo: é donde vimos./ e é o

lugar onde vai ficando a vida”. Um

aspecto a sublinhar, subliminar a

quem escreve, sensível a quem lê,

é o pressentimento de um rumor

(rumor de ti), um rumor inaudível,

surdo e lírico, sempre presente e

no entanto desfazendo qualquer

presença.

Em Margarit, a poesia é também

modo de misericórdia. Na agonia

de Joana, escreve um poema

chamado Poesia: “Como Sisifo,/ a

vida para mim é esta rocha/

Carrego-a e conduzo-a até ao alto.

(...)/ é uma forma de esperança.

(...)/ Penso que teria sido mais

triste/ se não tivesse podido

arrastar uma pedra/ sem outro

motivo que não fosse o amor./

Levá-la por amor até ao alto”; leia-

se, na mesma senda, Perde-se o

sinal, talvez um dos seus poemas

mais belos e mais dilacerantes:

“Não tenhas piedade do que

foste,/ porque a piedade é

demasiado breve:/ não dá tempo

para construir nada./ de noite,

num pequeno aeroporto,/ vês um

avião que vai subindo./ vai-se

perdendo o sinal. /E convences-te

de que vives/uma época que, sem

esperança, / é já a mais feliz da tua

vida./ há uma outra poesia, haverá

sempre,/ como há uma outra

música./ A de Beethoven surdo.

Quando se perde o sinal.”

O poeta desenha espaços

fazendo neles eclodir imagens

belas e surpreendentes, com

referentes pouco usuais (as

muletas azuis da Joana, o barulho

na noite chuvosa de um carro do

lixo), sempre sob a égide disfórica

da melancolia, da perda.

Experiências singulares, que,

estranhamente, não se

enclausuram, antes fazem

comunidade, remetem para o

aberto, expandem-se e expandem

o leitor — e isso é uma grande arte.

Até que o fio se estanca e a posia

de Margarit — dilacerada, cruel,

elíptica e abrutamente — faz

estremecer a mansidão, ferindo-a

como a lâmina que corta em Mari:

“Ela acompanhou-te durante

muito tempo/ todas as tardes,

para ir à escola e à natação./ Foi a

tua confidente, a amiga/ daquela

dolorosa adolescência/ de lua de

hospital e de azuis tardes/ de lenta

juventude.// A tua Mari,/ as suas

últimas visitas, quando os olhos/

te pesavam para dentro com uma

Jenny Off ill consegiu ultrapassar as “regras”, repetidas até à exaustão, da ficção norte-americana contemporânea

Page 27: 25 Set Ipsilon

ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015 | 27

duplo entre eles, como se cada um

desses fragmentos funcionasse

como uma página ou como um

pensamento avulso que pudesse

existir por si mesmo fora do

contexto — impelem o leitor para

esta sensação de ser um voyeur da

intimidade da narradora.

O romance é assim uma

espécie de puzzle em que o

leitor se vai perguntando onde e

quando pode encaixar todas

aquelas peças que lhe vão sendo

sucessivamente atiradas. A

narrativa não é linear na forma,

pois é interrompida com

frequência por fragmentos que a

uma primeira leitura nada terão a

ver com aquilo que está a ser

contado: provérbios ( japoneses,

árabes, …), máximas de filósofos

gregos, “conselhos para esposas,

por volta de 1896”, respostas a um

questionário de personalidade,

avaliações de alunos, frases

sentenciosas de filósofos

modernos, versos de poetas como

Ovídio, T. S. Eliot ou Rilke,

citações de escritores, factos

científicos curiosos, resultados de

inquéritos sociológicos, pequenas

histórias. Tudo serve a Jenny Offill

para montar a história, tarefa que

por vezes quase se assemelha a

um “fluxo de consciência em

blocos”, que vai sendo

sucessivamente interrompido por

pensamentos soltos que se

atravessam no caminho. A

narradora está esgotada e exausta.

O significado de cada fragmento

(alguns são mesmo “opacos”)

quase nunca é revelado, é um

trabalho deixado para o leitor,

como este: “A evolução

determinou que chorássemos

quando estamos a ser

abandonados. Que fizéssemos o

máximo de ruído possível, para

que a tribo voltasse atrás para nos

vir buscar.”

A escrita angustiante (mas por

vezes divertida) de Offill insinua-

se, não revela, é mantida sob

controlo mesmo quando tudo

parece desmoronar-se, e é aqui

que a sua ironia se faz sentir de

vez em quando. Ao não dar um

sentido óbvio aos fragmentos,

transcende o seu próprio sentido,

e nisto (sobretudo quando narra

pequenas histórias de meia dúzia

de linhas) assemelha-se à escrita

de Lydia Davis, como neste

exemplo: “No parque infantil,

uma mulher explica o seu dilema.

Encontraram finalmente uma

moradia de três andares com

jardim, em óptimo estado, num

bairro encantador e longe de

escolas problemáticas. Mas agora

ela conclui que perde grande

parte do dia a procurar num dos

pisos objectos que na realidade

deixou num dos outros dois.”

Jenny Offill, que ensina escrita

criativa em várias universidades

norte-americanas, conseguiu com

Departamento de Especulações

ultrapassar as “regras”, repetidas

quase até à exaustão, da mais

recente ficção americana, e

escreveu um romance singular

difícil de classificar.

com cuidado, atento ao mapa

imaginário que o artista desenhou:

as irregularidades do chão integram-

se na intervenção e as linhas

desenhadas pela mão do artista

sobrepõem-se às rectas e aos

ângulos desenhados pelas cordas.

A geometria organiza e desenha

os espaços e os percursos, cercando

e orientando o espectador. Mas

Robbio entende-a como uma

interpretação, entre outras, do

mundo. Veja-se a instalação 14Bis,

em que cordas invisíveis seguram e

soltam pequenos paus de madeira.

Face a uma geometrização do

mundo, a exposição ousa propor a

irredutível percepção do

espectador e a imperfeição da

natureza. No ar, como que

levitando, as peças permitem a

imaginação de outras linhas, de

outras formas; confrontam o

espectador com as convenções da

geometria. Na sala seguinte, as

paredes foram cobertas de vinil

autocolante negro. Podiam ser

monocromos, mas são sobretudo

fundos negros em que linhas (feitas

de cordel e desenhadas) traçam

ângulos e formas geométricas

frágeis, furtivas. Mostram-se e

escondem-se consoante os

movimentos do espectador no

espaço. A partir dessa realidade,

Nicolás Robbio convida-nos então a

observar, a ver outra. Aquela que os

recortes (em forma de círculos)

feitos na parede permitem entrever:

no exterior, o jardim do Pavilhão.

Expo

siçõ

es

Da geometria para a realidadeO regresso a Lisboa de Nicolás

Robbio, numa exposição feita

de deslocamentos e desenho.

José Marmeleira

Observações de uma realidade

sincopada

De Nicolás Robbio.

Escultura, Instalação.

mmmmq

Lisboa. Pavilhão Branco. Campo Grande, 245.

Tel.: 217513200. 3ª a Dom., das 10h às 13h e das

14h às 18h. Até 27/09.

Autor de duas exposições notáveis

em 2099 — na Galeria Marz, em

Lisboa, e em Emissores Reunidos,

uma iniciativa do Museu de

Serralves —, Nicolás Robbio (Mar

Del Plata, Argentina, 1975) regressa

à esfera pública da arte portuguesa

com a transfiguração interior de

um edifício. As quatro salas do

Pavilhão Branco tornaram-se, sob a

acção do artista, cenários de um

movimento que se dobra em dois:

a par do deslocamento realizado

sobre os materiais, os objectos, as

escalas e a percepção, testemunha-

se a deslocação do espectador no

espaço, qual sujeito cuidadoso e

intrigado.

Observações de uma realidade

sincopada, comissariada por Filipa

Oliveira, começa no exterior. Uma

parede de vidro apoiada num

ângulo de 90 graus está coberta de

areia, sinalizando a transformação

que aguarda os visitantes. Passada a

porta, o efeito do gesto revela-se:

vê-se uma dissecção do monte de

areia, um recorte, que permite olhar

o seu interior. Entre o dentro e o

fora, o natural e o analítico, Porção

— este é o nome da peça — é um

prólogo dos encontros seguintes,

Na primeira sala, elevam-se nove

aquários, deixando ver

pequeníssimos objectos e materiais.

Como os descrever? Podem ser

dioramas cujas superfícies o vidro e

a água alteram, ou paisagens

habitadas por formas elementares

ou geométricas. Tente-se outra

descrição: são, também, “retratos”

do peso, da leveza, da visibilidade e

da invisibilidade, da fragilidade;

representações ou fragmentos de

uma natureza infinita.

Os materiais usados por Nicolás

Robbio exploram os sentidos

associados a estes conceitos. Cartão,

açúcar, esferovite, metal, terra,

tinta, plantas, pedras permitem-lhe

imobilizar tensões, simetrias,

ilusões. E se em alguns aquários é a

marca de uma dimensão escultórica

que assoma, noutros é o desenho

ténue que, sob a água, se manifesta.

Na segunda sala, o artista colocou

uma quadrícula sobre objectos

recorrentes no seu trabalho (pregos

e cordas) e outros materiais. A

mudança da escala obriga a uma

reorientação dos sentidos do

espectador. Este tem de ver para não

cair, para não destruir a obra. Andar

Os aquários de Nicolás Robbio são “retratos” do peso e da leveza, da visibilidade e da invisibilidade: fragmentos da natureza infinita

SO FAR, SO CLOSEExposição de Cindy Ng

Entre Macau e o Douro, paisagens efémeras em pintura, fotografia e arte interactiva.

co-organização

mecenas principal

www.museudooriente.pt

curadoriaseguradora oficial

CARAVELA Companhia de Seguros, S.A.

25 SETEMBRO | 23 OUTUBRO

MUSEU DO ORIENTE

Page 28: 25 Set Ipsilon

Jones, é possível observar que,

apesar de uma vida atribulada e de

um período “negro” ligado às

drogas duras que quase acabou com

a sua carreira, Evans nunca deixou

de evoluir e manteve intacta a sua

alma e a sua personalidade

musicais. Esta é decerto a razão pela

qual este período é considerado

como uma segunda vida do pianista,

uma segunda oportunidade para

mostrar ao mundo de que massa era

feito o génio musical que marcas tão

profundas deixou no legado do

piano no jazz. E se nem todas as

gravações incluídas nesta caixa têm

o mesmo nível superlativo daquelas

realizadas no final dos anos 50 ou

nos anos 60, a verdade é que estão

aqui presentes toda a profunda

beleza e toda a profunda emoção

que marcaram a obra de um dos

maiores poetas do jazz.

Pop

A mesma canção No novo disco, os Low

voltam a derrubar e a

levantar quem os ouve.

José Marmeleira

Low

Ones and SixesSub Pop; distri. Popstock

mmmmq

E eis mais um disco dos Low.

Desde 2011 que, num intervalo

regular de dois anos, a banda de

Duluth,

Minnesota tem

vindo a lançar

um novo

trabalho diante

do bocejo

discreto de uma boa parte da

imprensa musical. A monotonia

da música justificará, dirão

alguns, semelhante reacção. É

verdade que com The Great

Destroyer dançaram o rock & roll

e hoje usam, sem complexos, os

recursos da electrónica. Mas a

aproximação ao mainstream e a

presença da caixa de ritmos não

os desviou do caminho.

Permaneceram fiéis aos tempos

lentos, às harmonias vocais, às

guitarras. Ainda cantam a mesma

canção.

Não sendo uma obra-prima

como Things We Lost in Fire (2001)

e Trust (2002), Ones and Sixes não

se queda na impaciência

taciturna dos trabalhos mais

recentes. Resolve os esboços das

canções, sem as perder por

timidez ou pressa. Progride até ao

fim, sempre com o mesmo

volume, a mesma intensidade,

reafirmando o lugar dos Low na

música popular dos últimos 20

anos. Em Into you é muito bonito

ouvir Mimi Parker a recuperar o

fôlego e a clareza que muitas

associaram à country. Não que

isso signifique a afirmação de um

registo em detrimento de outro.

Noutras faixas, a voz da baterista

surge e apaga-se em lamentos e

suspiros (ouça-se The inoccents),

ou desperta a de Alan Sparhawk

para nunca mais a largar,

formando um dueto com a força

de um coro.

Do guitarrista, escuta-se aquela

veemência dorida, que se foi

tornando rara. Expande-se,

embora receosa, em No

comprende, e aflige-se à beira da

ira em Lies, um dos grandes tema

pop deste disco. A cadência da

percussão, a fluidez das vozes,

que se vão sobrepondo e

trocando de lugar, são veículos

perfeitos para uma balada

perseguida pela melodia e cujo

significado os Low deixam à

liberdade das memórias e das

vidas dos ouvintes. No

compreende e Spanish translation

também são temas fortes,

aproximando o artifício da

electrónica ao minimalismo dos

primeiros álbuns. Insinuam

alusões à imigração nos Estados

Unidos, mas, entre a gravidade

das batidas e da distorção e a

delicadeza das notas de piano, as

palavras abrem caminho para as

meditações habituais dos Low: a

desilusão, a incerteza, o

ressentimento, que marcam as

relações humanas, ainda

alimentam o espírito e a escrita

do duo (Steve Garrington, o

guitarrista que em 2008 veio

substituir Matt Livingston, é um

espectador desse trabalho)

Nos Low, é difícil falar em

optimismo ou luz. São uma banda

Disc

osJazz

Second LifeToda a profunda beleza das

gravações de Bill Evans para

a Fantasy. Rodrigo Amado

Bill Evans

The Complete Fantasy RecordingsFantasy/Concord; distri. Universal

mmmmm

Na altura em que

se cumprem

os 35 anos da

morte de Bill

Evans, a norte-

americana

Concord Music Group lança esta

segunda reedição da caixa de nove

CD que compila todas as gravações

realizadas pelo lendário pianista

para a label Fantasy. Aqui, para além

de alguns clássicos absolutos —

como os duetos com Tony Bennett

ou Cross-Currents, o álbum que

reúne o trio de Bill Evans (com

Eddie Gomez no contrabaixo e Eliot

Zigmund na bateria) a Lee Konitz

(sax alto) e Warne Marsh (sax tenor)

—, encontram-se também o primeiro

álbum gravado para a editora, The

Tokyo Concert, e o disco a solo Alone

(Again), ambos nomeados para os

Grammy Awards, e ainda uma

entrevista realizada por Marian

McPartland para o seu programa de

rádio, Piano Jazz.

Ao longo desta série de 98 temas,

gravados ao vivo e em estúdio entre

1973 e 1979 com colaboradores entre

os quais se incluem o guitarrista

Kenny Burrell, o contrabaixista Ray

Brown ou o baterista Philly Joe

Considerado uma segunda vida de Bill Evans, o período a que estas gravações correspondem exibe toda a profunda beleza e toda a profunda emoção de um génio que deixou um legado ao jazz

Não há optimismo nem luz nos Low: as canções da banda aquietam e comunicam as emoções com baladas e marchas fúnebres

ZORA NORLIC

Page 29: 25 Set Ipsilon

de estoicos que aquietam e

comunicam as emoções com

baladas e marchas fúnebres.

Derrubam e levantam quem os

ouve com a mesma serenidade.

Ouçam, sem pausas, What part of

me, Landslide e Lies, canções em

que, sob o pesar e a dor, se

esconde um estranho conforto. O

da mesma canção contra as

rasteiras terríveis da vida.

Uma banda sábia

Eleventh Dream Day

Works for TomorrowThrill Jockey; distri. Flur

mmmmm

Trajecto

curiosíssimo e

desprezado, o

dos Eleventh

Dream Day. Nos

finais dos anos

80, seguiram as pisadas dos REM

e dos Hüsker Dü, sem o sucesso

dos primeiros e sem a desilusão

dos segundos. Findada a relação

com a Atlantic (da qual

resultaram três álbuns),

continuaram a gravar e dar

concertos, movidos pela

persistência de Rick Rizzo e Janet

Beveridge Bean, a dupla que, em

1983, iniciou esta aventura

musical.

Sim, os Eleventh Dream Day são

velhos e o que trazem em Works

For Tomorrow, o 13.º álbum,

repete um estilo, uma sonoridade.

Há décadas que adaptam o fragor

das guitarras de Neil Young à

pressa do punk, evitando

mutações e saltos estílicos. As

referências permanecem

canónicas, reconhecíveis (Lou

Reed, Wipers, X, Television, Patti

Smith). O que transcende então a

mera familiaridade? Uma

sabedoria digna, construída ao

longo de décadas, que se

materializa nas canções.

O primeiro tema é um elogio do

grito que Iggy Pop sempre ouviu

no rock. A bateria marca o passo

com o baixo, até que Janet rosna

“I’m gonna take it from the inside/

I’m gonna take it slow!”. Entre os

solos e os acordes límpidos das

guitarras, repetirá até à exaustão

estes versos, numa catarse

comovente. Não são poesia? Claro

que não. Eles só existem se

envolvidos, animados pelo som.

Sem este, são como fotogramas

cortados de um filme. As

dinâmicas entre os músicos, as

harmonias vocais (de Rizzo e

Janet), a estridência da bateria dão

um sentido às palavras, elevam-

nas, por mais banais que sejam. Na

faixa que tem o mesmo título do

disco, Rizzo confronta-se sozinho

com o passado e o presente até as

guitarras, a bateria e o teclado

libertarem a voz de Janet, para um

coro final. Snowblind oferece à

composição original de Judy

Henske e Jerry Yester uma

ferocidade inédita, dominada pela

voz da vocalista/baterista. É o

momento em que o grupo revela,

também, a sua versatilidade, com

solos a rodos, feedback e uma

precisão respeitosa de John

Bonham.

A história não é estranha aos

Eleventh Dream Day. Em Go tell it

acampam em Nova Iorque, nos

anos 70, enquanto espreitam para

Cleveland e suspiram pela soul de

Chicago. Sim, há aqui uma

homenagem, mas, acima de tudo,

a reivindicação de um parentesco

com protagonistas de outras

épocas (partilhado aliás com os

Dream Syndicate, de Steve Wynn e

Kendra Smith). Os grandes

momentos chegam com Deep

lakes, indie-rock sereno,

pacificado, segredado a duas

vozes, e na maravilhosa The

unknowing, uma das melhores

canções do ano. Frágil,

imperfeita, longa, avança pelas

mãos de um acorde simples, com

uma força justa e retemperadora:

“The storm knocked the power out/

Everything started melting down/

And I swear/ That when I heard the

rain/ I knew I’d never want for

anything anymore”, cantam os

dois vocalistas. J.M.

Estranho mundo novo

Volcano Skin

A Few Moments Of Sleeping

And WakingEd. Autor

mmmqm

Em 2013

estrearam-se

com um EP

promissor,

Travelling With

The Wrong Maps,

e, dois anos depois, chegou o

álbum de estreia, A Few Moments

of Sleeping and Waking. Os

Volcano Skin são um trio (César

Zembia, vocalista; Nuno Maltês,

baixista e guitarrista; Sérgio

Lemos, baterista), mas fazem

música com mais gente dentro.

Aliás, a enumeração dos

instrumentos de cada um,

factualmente correcta, peca por

escassa. Sim, muito mais se passa

aqui: ouvem-se saxofones,

theremins, estranhos acordeões

(serão?) ou programações

electrónicas.

Música de intersecções, esta dos

Volcano Skin. Anunciam-se em Slow

trail com uma vaga de saxofones

que se há-de tornar zumbido a

assombrar a guitarra tremeluzente

como em cave onde encerraram o

pós-punk, assim acentuando o

nebuloso mistério das palavras que

ouvimos e que se sucedem com a

aleatoriedade frenética dos

tempos demasiado rápidos que

vivemos: “Coffee, water, drink,

write it down, again, again”.

Os Volcano Skin são música

tensa que nos apanha

desprevenidos: vibrafone a

embalar-nos nos sonhos do

vocalista, estamos em Silly,

apenas para nos atirar para um

refrão convulsivo, ruidoso,

paranóico. São Captain Beefheart

a formar uma banda no-wave com

João Peste (a óptima

Constantinople street), são

rock’n’roll movido a percussão e

cowbell e iluminado por latidos à

Iggy Pop (“What is it that makes

today’s politicians so appealing?”).

A inspiração parece vir da

música sem fronteiras que era o

pós-punk do final da década de

1970 e da seguinte, não no sentido

de fazerem à maneira de quem

quer que seja, mas pela forma

como, tal nessa era, esbatem

géneros em favor da ideia que

conduz cada canção, quer seja a

electrónica subterrânea a penetrar

o mapa identitário sonhado de All

my voices (“I want to be Baudelaire

playing with syphilis”; “I want to be

Rimbaud and Verlaine in a huge

brawl”; “I wish I was Cary Grant”)

ou a versão, em modo punk

experimental, da frenética música

para cinema de animação de Carl

Stalling (Fauno).

Em A Few Moments Of Sleeping

And Waking, os Volcano Skin

apresentam um universo bem

definido na sua indefinição: faz-se

de sombras descobertas no lusco-

fusco e da palavra tão falada quanto

cantada; vive entre o desejo de

placidez e o prazer em mergulhar

no caos; aponta em mil direcções e

guia-nos por elas metodicamente e

com convicção. É um estranho novo

mundo, mas vale a pena perdermo-

nos nele. Mário Lopes

Há décadas que os Eleventh Dream Day adaptam o fragor das guitarras de Neil Young à pressa do punk

A inspiração dos Volcano Skin parece vir da música sem fronteiras que era o pós-punk do final da década de 1970 e da seguinte

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Page 30: 25 Set Ipsilon

Cine

ma Estreiam

Dizes tu, digo euMiguel Gomes filma o

Portugal profundo no seu

mais violento e no seu

mais triste. A realidade,

sem remissão. Luís Miguel

Oliveira

As Mil e Uma Noites, Volume 2

— O Desolado

De Miguel GomesCom Luísa Cruz, Teresa Madruga,

João Pedro Bénard, Gonçalo

Waddington, Joana de Verona

mmmmm

Se o primeiro “volume” de As Mil e

uma Noites fazia jus ao nome — O

Inquieto — com todas aquelas

subidas e descidas e uma

permanente imprevisibilidade, o

segundo “volume” também não

enverga o seu título em vão. É o

episódio mais triste dos três, o que

mais linearmente conserva essa

tonalidade de uma ponta a outra,

aquele que menos consolo oferece

(para além do consolo do cinema,

da ficção, se é que estas coisas

ainda consolam), e aquele que

mais resolutamente mergulha num

universo de desolação — e aqui

chegados convém esquecer “a

crise”, ou pelo menos atenuar a

ideia (embora o genérico inicial a

continue a repetir) de um filme

sobre “o momento”. O Portugal

retratado neste filme é o Portugal

de sempre, cinzento, estranho e

sorumbático, com ou sem a troika

a dar em cima.

Nada, aliás, parece mais

estranho, e mesmo mais

“apolítico”, do que o primeiro

episódio, a história de um

criminoso em fuga por montes e

vales algures no interior do país

(Simão Sem Tripas, nome que

esconde a sua óbvia inspiração, o

tão noticiado caso de Manuel dito

o “Palito”). O cenário é aquele

mesmo interior que Miguel Gomes

já filmara — em Aquele Querido Mês

de Agosto ou no primeiro “volume”

— mas que agora aparece numa

espécie de negativo, desértico e

pedregoso, totalmente isento de

feérie (reservada meramente para

o espaço dos sonhos do

protagonista com festins e orgias,

ainda assim sonhos

singularmente... desolados), sem

lugar para anedotas calorosas e

cúmplices como, ainda no

primeiro volume, o episódio do

galo. É o Portugal “profundo”

dado no seu mais árido e violento,

sem remissão; e como tal, numa

espécie de minimalismo a tender

para o silêncio (Simão está quase

sempre sozinho, quase sempre

calado, a câmara a tirar o máximo

partido dramático do seu rosto tão

pedregoso como a paisagem — o

actor é um “não-actor”, que

voltaremos a ver no terceiro

episódio), é a história mais dura de

toda a série, aquela onde mais se

sentem o tempo, a inacção, a

repetição. A breve, e irónica, e

distanciada, euforia final, quando

as multidões aclamam Simão como

um herói (afinal, apesar dos

crimes, enganou as autoridades

durante um ror de tempo, e isso é

uma coisa que os portugueses

apreciam), é mais a expressão de

um reverso absurdo, de um país

de pernas para o ar, do que um

efeito cómico ou galvanizante — e

instala o volume dois, depois da

“montanha-russa” do volume um,

numa linha recta.

A segunda das três histórias deste

volume é o momento central da

trilogia. Pela “geometria” — é o

episódio do meio do filme do meio

— e pelo facto de o modo da sua

construção conter, de algum modo,

a lógica subjacente à totalidade do

projecto: tudo se liga a tudo, causas

e consequências vivem num

imparável efeito-dominó, a miséria

de uns gera a miséria de outros. É

também o momento mais bizarro,

o segmento em que o realismo,

para todos os efeitos dominante ao

longo da trilogia, é abandonado em

abono de uma espécie de

representação teatral, que leva ao

cúmulo a similitude entre os

espaços (e os “protocolos”) de um

tribunal e de um palco teatral (o

lugar central da acção é, de resto,

um anfiteatro ao ar livre e

nocturno). Há um julgamento a

acontecer, um qualquer crime

menor, mas o que esse crime

menor destapa, à medida que

sucessivas testemunhas vão sendo

ouvidas, é uma cadeia interminável

de pequenos crimes e pequenas

misérias — que inclusivamente

podem chegar da China,

exprimindo a “globalidade” do

efeito-dominó. Construído como

“teatro”, aberto à vacilação dos

códigos de representação (os coros,

as máscaras, os figurantes

alucinados), é porventura o

episódio que mais começa por se

estranhar e que, no fim, como que

por uma magia qualquer, mais se

entranhou.

E, no tom do seu lamento final,

prepara o caminho para a terceira

história, Os Donos de Dixie, esta a

mais triste e mais pudica de todas.

Um bairro algures nos subúrbios de

Lisboa, um tempo outonal apenas

raramente interrompido (para os

banhos de sol das “brasileiras” no

terraço do edifício), um casal em

que ela está doente, ou estão os

dois doentes, um cão que anda de

mão em mão e de dono em dono e

até acaba por ver o seu próprio

fantasma — essa sobreposição

simples, quase arcaica, que fica

como a imagem de uma outra vida

(para todos, não só para o cão) que

não existe. É quase uma história de

“telenovela”, se as histórias de

telenovelas falassem de vidas reais

e dos sítios reais onde as pessoas

vivem. A melancolia enxuta, dura,

dos protagonistas (o casal mais

velho, Teresa Madruga e João Pedro

Bénard, e o casal mais novo, Joana

de Verona e Gonçalo Waddington)

como dos secundários (Margarida

Carpinteiro, Isabel Cardoso) é

comovente — pela simples razão de

que se acredita facilmente nela:

acredita-se nele a ler o Record,

acredita-se que todos achem que o

Say you say me de Lionel Richie é a

canção mais bonita do mundo.

Acredita-se, ainda, que todas as

histórias daquele prédio — para as

quais estas personagens servem de

“abre-te sésamo” — são ao mesmo

tempo únicas e muito comuns, têm

a ver com pessoas específicas e

com uma comunidade inteira em

grande escala (os despejos, por

exemplo).

E com esta reinvenção do

“drama social” drenado de todos

os clichés do “drama social” se

chega ao fim do segundo volume

de As Mil e Uma Noites. A seguir

virão Xerazade, ela própria, e os

passarinheiros da Musgueira.

A Leste do paraísoAnton Corbijn filma James

Dean antes do estrelato

como um actor em busca

do seu lugar no mundo.

Jorge Mourinha

Life

De Anton CorbijnCom Robert Pattinson,

Dane de Haan, Joel Edgerton

mmmmm

Quem buscar um traço comum

entre os filmes assinados pelo

veterano fotógrafo holandês

Anton Corbijn encontrará à

superfície uma aparente ausência

de traços comuns: uma biografia

do cantor dos Joy Division, Ian

Curtis (Control, 2007), um policial

“antonioniano” (O Americano,

2010), uma adaptação de John le

Carré (O Homem Mais Procurado,

2014) e, agora, um olhar sobre o

James Dean pré-estrelato. Olhando

melhor, contudo, descobre-se o

interesse de Corbijn pelas figuras

que estão simultaneamente “ao

lado” e “no centro” do seu tempo:

o Ian Curtis de Sam Riley em

Control, o Edward Clarke de

George Clooney em O Americano,

o Günther Bachmann de Philip

Seymour Hoffman em O Homem

Mais Procurado, e, finalmente, o

James Dean de Dane de Haan e o

Dennis Stock de Robert Pattinson

em Life são idealistas ambiciosos

que procuram encontrar o seu

lugar num mundo que não lhes dá

grandes tréguas.

Isso é ainda mais

particularmente visível em Life,

filme que é acima de tudo uma

meditação sobre a fama e os

compromissos usando a ascensão

meteórica de um dos grandes

mitos da Hollywood do século XX

como ponto de partida.

Apanhando Dean no “limbo” entre

o término da rodagem e a estreia

de A Leste do Paraíso, num

momento em que o seu nome

ainda não tinha sido anunciado

para Fúria de Viver, Corbijn e o

argumentista Luke Davies

exploram a sua breve relação com

o fotógrafo freelancer Dennis Stock,

Os Donos de Dixie, a história final do volume dois, seria quase uma história de telenovela, se as telenovelas falassem de vidas reais e dos sítios reais onde as pessoas vivem

Page 31: 25 Set Ipsilon

sensorial a dificuldade e o esforço

de subir a uma montanha — e nessa

“gravidade” nunca escamoteada

sugere um outro percurso possível

para o moderno cinema de grande

público de Hollywood, colocando

a técnica ao serviço da história e

preferindo a sobriedade (talvez

demasiado discreta, é verdade)

ao espalhafato. Não o torna um

grande filme, mas faz dele um

objecto francamente

interessante. J.M.

A energia do amadorismo

Por Aqui Tudo Bem

De Pocas PascoalCom Ciomara Morais, Cheila Lima

mmmmm

Estreia-se com vários anos de

atraso (foi exibido no IndieLisboa

de 2012) e isso ainda torna mais

desprotegido um filme cuja maior

simpatia está na sua desarmante

que vê no carisma e na

modernidade do actor a sua

hipótese de fugir ao rame-rame da

fotografia de plateau e passadeira

vermelha. Dean, por seu lado, é

pintado como ambivalente em

relação à fama, apenas a admitindo

nos seus próprios termos e não nos

do jogo viciado da máquina de

relações públicas de Hollywood

contra a qual a sua própria imagem

nos filmes se coloca.

Corbijn encena a parceria entre

Stock e Dean como uma espécie de

“tango apache” entre feras

desesperadas pelo

reconhecimento, uma aliança

circunstancial que tanto pode ser

benéfica para ambos como travar

as suas carreiras, naquele que é o

aspecto francamente mais

interessante de um filme que se

deixa aqui e ali cair em demasia na

reprodução embevecida da

iconografia de época. É sempre

complicado dar corpo a figuras

reais, ainda por cima tão

exploradas como James Dean, mas

Dane de Haan apanha bem a pose e

a atitude do actor (já o Jack Warner

de Ben Kingsley é mais caricatural

do que outra coisa), e Robert

Pattinson faz esquecer de vez o seu

estatuto de ídolo adolescente com

uma interpretação seguríssima que

ancora todo o filme. E o fotógrafo

holandês volta a esquivar-se

elegantemente e deliberadamente

às gavetas onde andamos todos a

querer metê-lo desde o magnífico

Control — filme ao qual ainda não

conseguiu dar sucessor ao mesmo

nível.

As leis da gravidade

Evereste

EverestDe Baltasar KormákurCom Jason Clarke,

Josh Brolin, John Hawkes

mmmmm

Desde a sua estreia em abertura de

Veneza 2015 que Evereste tem

vindo a causar estranheza nas

hostes jornalísticas. “Isto” é a

abertura de Veneza? “Isto” é uma

aposta de fôlego de um grande

estúdio hollywoodiano?

Entendendo-se por “isto” um filme

“classe média”, propulsionado por

um elenco sólido mas de segunda

linha, sem grandes estrelas que

puxem carroça (Keira Knightley e

Jake Gyllenhaal, na prática, são

participações especiais), e

marcando o “exame de admissão”

do islandês Baltasar Kormákur

(Contrabando, 2011; 2 Tiros, 2013) à

“primeira divisão”. Ora está

precisamente nesse desfasamento

entre expectativas e concretizações

a mais-valia do filme.

História verídica de uma

expedição ao Evereste em 1996

que uma tempestade tornou num

desastre, resultando em cinco

mortos, o filme utiliza as

modernas técnicas do cinema-

espectáculo (3D, écrã IMAX de

grande dimensão) para contar um

drama intimista do homem face à

Natureza e a si próprio — Todd van

der Werff, no site Vox, falava de

Evereste como “o Gravidade do

alpinismo” e não é nada

descabido. Evereste começa por

chamar o espectador pela

espectacularidade das imagens,

mas são as histórias das pessoas, e

as pessoas destas histórias, que

mais interessam a Kormákur,

mesmo que parte delas se limitem

a entrar por sair (há, no entanto,

que felicitar a justeza do elenco,

que dá a primazia a actores de

composição e lhes permite a todos

nem que seja uma cena para

mostrarem ao que vêm).

Este não é um filme de heróis e

vilões, nem uma história linear de

um triunfo pessoal; é uma coisa

muito mais difusa, com mais

nuances, mais dramatismo, mais

ambiguidade, que tem lá dentro

mais do que parece. É um filme

sério, talvez sisudo em demasia,

mas que faz sentir ao espectador o

peso de cada passo e de cada

decisão, que traduz de modo

fragilidade. Por Aqui Tudo Bem foi

a primeira longa-metragem da

realizadora angolana Pocas

Pascoal, rodada em Lisboa e

contando a história,

presumivelmente plena de ecos

autobiográficos, de duas irmãs

adolescentes que, ainda durante a

guerra civil, abandonaram Angola

à procura da proverbial “vida

melhor”.

Em termos narrativos e

descritivos, Por Aqui Tudo Bem

tem um lado simples, quase

amador, que é ao mesmo tempo o

seu limite (a quantidade de

episódios desprovidos de

interesse, o naturalismo “por

defeito”) e a fonte da sua

genuinidade. Mesmo quando ela

— a genuinidade — se revela

desajeitadamente: por exemplo na

cena do choro depois do

telefonema que é o momento

crucial do filme (e cena que, na

sua elipse, é a melhor ideia

dramática do filme) vemos bem

que o choro do par de

protagonistas (actrizes não-

profissionais) é “falso”, forçado,

mas é isso que acaba por se tornar

comovente, como se o que Pocas

Pascoal filmasse fosse menos a

representação das suas actrizes do

que o esforço que eles aplicam

para que a representação seja

convincente — não é, mas esse

“não ser” tem qualquer coisa de

muito real. E, por isso, se o filme

nunca chega verdadeiramente a

levantar voo em direcção a lado

algum, fica sempre com isso, com

“qualquer coisa de muito real”,

muito voluntarista, com que é

impossível antipatizar. L.M.O.

Continuam

Homem Irracional

Irrational ManDe Woody AllenCom Joaquin Phoenix,

Parker Posey, Emma Stone

mmmmm

Há um momento durante o qual

pensamos que, afinal, a marcação

2015 do “relógio de ponto” anual

de Woody Allen não é apenas mais

do mesmo: Joaquin Phoenix

injecta uma energia diferente em

Homem Irracional, no papel de um

professor de Filosofia deprimido

que, por uma vez, não é uma

versão disfarçada do realizador/

argumentista. É como se Allen

estivesse disposto a engajar em

discussão o melhor cinema

americano contemporâneo, ao

convocar o actor-fétiche de Paul

Thomas Anderson e ao deixá-lo à

solta a perturbar a estrutura

certinha do seu cinema que se

tornou confortável e

reconfortante, previsível à

distância. E, durante parte

significativa de Homem Irracional,

até o consegue, mesmo que o

dispositivo seja uma variação

sobre um dos seus últimos

verdadeiramente grandes filmes,

Crimes e Escapadelas (1989): o

filósofo insatisfeito redescobre a

vontade de viver ao decidir agir

contra a corrente e cometer um

crime moralmente defensável.

Mas é falso alarme: de lufada de ar

fresco, Homem Irracional tomba

no descalabro, tornando-se talvez

no mais preguiçoso e

desnecessário Allen recente,

desperdiçando a premissa

elegantemente desenhada num

inacreditável chorrilho de passos

em falso que destroem

completamente o que ficou para

trás — para já não falar de um final

que quase faz pouco do

investimento que o espectador fez

no filme. É como se, uma vez

intrigado pela presença de

Phoenix, o cineasta tivesse

decidido que afinal queria era

marcar o ponto e fazer mais do

mesmo e “sabotasse” o seu

próprio filme. De Woody Allen já

não esperamos muito, mas não

esperávamos certamente este

desastre. J.M.

Life cai em demasia na reprodução da iconografia da época

Evereste aparenta ser um filme espectacular: é mais do que isso

Por Aqui Tudo Bem tem um lado simples, quase amador

Homem Irracional: um Woody Allen desnecessário

AS ESTRELAS DO PÚBLICO

JorgeMourinha

Luís M. Oliveira

Vasco Câmara

a Mau mmmmm Medíocre mmmmm Razoável mmmmm Bom mmmmm Muito Bom mmmmm Excelente

Bando de Raparigas mmmmm mmmmm mmmmm

Evereste mmmmm – mmmmm

Homem Irracional mmmmm mmmmm –Life mmmmm – –Jackie & Ryan – mmmmm –As Mil e uma Noites: O Desolado mmmmm mmmmm mmmmm

O Presidente mmmmm mmmmm mmmmm

Por Aqui Tudo Bem mmmmm mmmmm mmmmm

O Rosto da Inocência – mmmmm –A Visita mmmmm mmmmm –

Page 32: 25 Set Ipsilon

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EXISTE UM LIVRO QUE OS RESUME.Vol. 3: A Guerra na Ucrânia.Celebre os 50 anos das publicações D. Quixote com uma edição inéditade 8 livros com os mais marcantes temas da actualidade internacional.Descubra tudo sobre grave crise política que se instalou entre a Ucrâniae a Rússia que resultou na anexação russa da península da Crimeia. Um tema analisado ao pormenor para lhe dar o essencial.

Existembiliões de websites

que falam sobrea guerra na Ucrânia.

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SÁBADO, 26 SETCOM O PÚBLICO

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