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Zona J
Festival Zona Não Vigiada
Sext
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Christian RizzoHomens de mãos dadas Bienal de Lyon A questão modernista
O bairro abre-se à cidade
2 | ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015
Ruy Belo teve por Esplendor na Relva (em cima), de Elia Kazan, a paixão devastadora que inscreveu no poema homónimo
Ruy Belo: uma poesia que gostava de ir ao cinemaÉ uma das cenas mais
comovedoras da história do
cinema. A jovem Deanie Loomis
(Natalie Wood), que começa a
perceber que os tempos em que
nada parecia poder ameaçar o seu
intenso, inocente e correspondido
amor por Bud (Warren Beatty) já
passaram e não irão voltar, é
obrigada pela professora a ler alto,
na aula, o excerto dum célebre
poema de William Wordsworth
em que se diz que apesar de nada
poder trazer de volta “a hora do
esplendor na relva, da glória na
flor”, não devemos chorá-lo, mas
antes ir buscar forças ao que ficou
(irremediavelmente) para trás.
Deanie não aguenta e sai
disparada da sala, batendo com a
porta, num choro convulsivo.
O filme é, claro, Esplendor na
Relva (1961), de Elia Kazan, que
exerceu sobre Ruy Belo, escreve
João Bénard da Costa, “uma
paixão tão devastadora” como a
que no filme uniu os dois
adolescentes. Em Homem de
Palavra(s), de 1969, o livro de Ruy
Belo mais notoriamente marcado
pelo cinema, o poeta dedica à
personagem interpretada por
Natalie Wood um notável soneto,
que abre com esta quadra: “eu sei
que deanie loomis não existe/ mas
entre as mais essa mulher
caminha/ e a sua evolução segue
uma linha/ que à imaginação pura
resiste”. E um pouco adiante este
arrepiante parêntesis: “(e aquele
que no auge a não olhar/ que
saiba que passou e que jamais//
lhe será dado ver o que ela era)”.
O cinema teve um impacto
profundo na obra de Ruy Belo,
que não se resumia apenas aos
poemas em que expressamente
evoca filmes e actores, como
Humphrey Bogart, Na morte de
Marilyn, No way out (título
original de Falsa Acusação, de
Mankiewicz) ou Vício de matar,
escrito a pretexto do filme de
Arthur Penn sobre Billy The Kid.
É esta relação do poeta com a
sétima arte que serve de mote à
sessão especial Ruy Belo. ‘Talvez
um dia eu entre no cinema’ que o
Medeia Monumental apresenta
na próxima segunda-feira em
Lisboa, a partir das 21h. A sessão
abre com uma leitura de poemas
de Ruy Belo pelo actor Pedro
Lamares, seguindo-se uma
intervenção do ensaísta António
M. Feijó sobre A Deanie Loomis
de Ruy Belo e a exibição de um
breve filme familiar de Luís
Filipe Lindley Cintra, rodado em
Vila do Conde com Ruy Belo e
Teresa Belo: O lugar onde o
coração se esconde. Depois do
intervalo, a noite fecha com a
projecção do filme Esplendor na
Relva.
Ficha TécnicaDirectora Bárbara Reis
Editores Vasco Câmara,
Inês Nadais
Design Mark Porter,
Simon Esterson
Directora de arte Sónia Matos
Designers Ana Carvalho,
Carla Noronha, Mariana Soares
E-mail: [email protected]
Luís Miguel Queirós
Sumário4: Festival Zona Não VigiadaBem-vindos à Zona J
10: Robert ForsterDepois dos Go-Betweens
14: Christian RizzoEntre homens
16: Bienal de LyonO Modernismo (outra vez) em questão
22: Bernardo CarvalhoA Internet é um lugar estranho Fl
ash
Miguel Gomes continua a sua conversa sobre este país: Portugal circa 2014. O Desolado, segundo volume de As Mil e Uma Noites, chegou ontem às salas. Pág. 30
Vamos conhecer os Arcade Fire ao cinema?Os meses que nos deram
Reflektor, o quarto disco dos
Arcade Fire, saído em 2013. Os
concertos e a festa que se
seguiram ao lançamento. Arcade
Fire — The Reflektor Tapes, que se
estreou no Festival de Toronto e
agora chega aos cinemas
portugueses, é mais um
daqueles documentários que
acompanham as bandas e nos
dão a conhecer um bocadinho
extra das suas vidas e dos seus
processos criativos. No caso, a
vida e os processos criativos dos
excêntricos Arcade Fire, aquela
banda que vimos crescer corria o
ano de 2005 em Paredes de
Coura.
É uma viagem ao mundo dos
Arcade Fire com tudo o que isso
implica. Reflektor, o quarto e
último álbum dos canadianos,
foi um disco de transformação e
essa transformação foi registada
para que todos possamos
entender o caminho da banda.
Kahlil Joseph andou com os
Arcade Fire nos últimos dois
anos e desse encontro resultou
este documentário que vai das
gravações do disco, onde se
nota que estão mais dançantes,
aos concertos aparatosos, como
aquele que nos deram em 2014
no Rock in Rio Lisboa, às
entrevistas, ao dia-a-dia de cada
um dos membros da banda.
O documentário estreou-se no
Festival de Toronto e agradou
ao público e à crítica. Agora
chega aos cinemas, ainda que
não a todos. Em Portugal,
Arcade Fire — The Reflektor Tapes
só vai ser exibido este fim-de-
semana nos cinemas UCI (El
Corte Inglés, em Lisboa, Dolce
Vita Tejo, na Amadora, e
Arrábida, em Gaia). Até
domingo, estas salas vão ter
uma sessão especial às 21h30 (o
preço é diferente de uma sessão
normal: 9.70 euros). Depois
disso, ver os bastidores dos
Arcade Fire só mesmo em DVD,
numa edição que trará
conteúdo exclusivo, incluindo
seis músicas inéditas.
TERESA BELO
ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015 | 3
Já chegaram a Montréal, ao
Centro Canadiano de
Arquitectura (CCA), os arquivos
que Álvaro Siza decidiu doar, no
ano passado, a esta instituição
que é uma referência mundial na
disciplina. E parte deles deu já
origem a uma nova exposição,
inaugurada ontem numa das
galerias do Centro.
Coin, îlot, quartier, villes. Álvaro
Siza à Berlin et à La Haye é o
título da mostra, que reúne
maquetas, esquissos, desenhos,
plantas e ainda fotografias feitas
actualmente por Giovanni
Chiaramonte, Alessandra
Chemollo e Peter de Ruig de dois
projectos pioneiros e marcantes
para a afirmação internacional
do arquitecto português: os
prédios de habitação Bonjour
Tristesse (1982-83), em Berlim, e
Punt en Komma (1985-89), em
Haia. O próprio Álvaro Siza foi
convidado a deslocar-se ao
Canadá para falar da sua
arquitectura e destas obras em
particular, em duas conferências
(esgotadas há vários dias) no
próprio CCA, em Montréal
(ontem), e no auditório da
Faculdade de Arquitectura, da
Paisagem e do Design John H.
Daniels da Universidade de
Toronto (hoje). Ambas terão
transmissão directa via Twitter.
A exposição Coin, îlot, quartier,
villes, comissariada por Eszter
Steierhoffer, responsável pelo
departamento de arquitectura
contemporânea do CCA, tem a
particularidade de se juntar
àquela que esta instituição vem
dedicando, desde Maio, ao
programa SAAL — Le logement au
Portugal de 1974 à 1976 —, e que se
manterá até 4 de Outubro. Siza,
que a instituição canadiana
apresenta como “um dos
precursores de uma nova
linguagem arquitectónica
moderna adaptada ao contexto
social e cultural de Portugal”, é,
de resto, um nome em foco nessa
mostra, que documenta como a
arquitectura e os arquitectos se
envolveram na mudança das
condições de vida das populações
mais desfavorecidas logo a seguir
ao 25 de Abril de 1974. Realizados
na década a seguir à experiência
do SAAL, e aproveitando a
projecção internacional dessa
aventura, os edifícios Bonjour
Tristesse e Punt en
Komma “partilham semelhanças
no que diz respeito à escala e ao
programa”, e “exprimem a
capacidade de Siza de “reflectir
um carácter urbano local”, diz o
CCA.
Antes destas exposições, o
arquitecto matosinhense tinha já
apresentado uma exposição —
Alturas de Macchu Picchu — e uma
conferência no CCA, na Primavera
de 2012. Sérgio C. Andrade
João Bénard da Costa para a rentrée em cinema e DVD
Jorge Mourinha
É, talvez, uma das mais singulares
operações da exibição e edição
cinematográfica portuguesa nos
últimos tempos: celebrar não um
realizador ou um filme, mas uma
figura central para toda uma
geração de cinéfilos portugueses.
João Bénard da Costa, antigo
director da Cinemateca Portuguesa,
foi alvo de um aclamado filme
documental assinado por Manuel
Mozos, Outros Amarão as Coisas que
Eu Amei, que se estreou no
DocLisboa em 2014 e tem
entretanto feito assinalável carreira
internacional, com exibições na
Viennale ou no festival de Roterdão.
O documentário chegará às salas no
próximo dia 8 de Outubro e
marcará a “abertura” de uma
operação da distribuidora
Alambique que celebra a
importância de João Bénard da
Costa enquanto divulgador e
programador. A 15 de Outubro, será
reposto em grande écrã Johnny
Guitar, o western mítico de Nicholas
Ray com Joan Crawford e Sterling
Hayden que era o filme preferido
de Bénard da Costa e que se tornou
no emblema maior da sua cinefilia.
No mesmo dia, será lançada uma
A afirmação internacional de Siza na década de 80 deve muito às experiências Bonjour Tristesse e Punt en Komma
colecção de oito DVD sob o
genérico No Meu Cinema — título do
programa que o director da
Cinemateca animou na RTP-2,
apresentando e comentando uma
série de filmes em intervenções
dirigidas por Margarida Gil. Os oito
filmes escolhidos são À Beira do
Mar Azul (1933), de Boris Barnet,
Feras Humanas (1941), de Fritz
Lang, O Rio Sagrado (1951), de Jean
Renoir, Para Sempre Mozart (1996),
de Jean-Luc Godard, Peregrinação
Exemplar (1966), de Robert
Bresson, Sentimento (1954), de
Luchino Visconti, Um Caso de Vida
ou de Morte (1946), de Michael
Powell e Emeric Pressburger, e Um
Verão de Amor (1951), de Ingmar
Bergman — todos enquadrados
pelas intervenções de Bénard da
Costa. Os DVD poderão ser
encontrados nas lojas Fnac ou
através do site da distribuidora.
Álvaro Siza faz mais um round no Canadá
DANIEL ROCHA
D A N Ç A • S Á B 2 6 S E T
D ’ A P R È S U N E H I S T O I R E V R A I EE S T R E I A N A C I O N A L ⁄ C O A P R E S E N T A Ç Ã O
C I R C U L A R – F E S T I V A L D E A R T E S P E R F O R M A T I V A S
⁄C H R I S T I A N R I Z Z O ( F R )
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4 | ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015
quer
A
sair da redoma
J Zona
ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015 | 5
Faz parte de Lisboa, mas ao mesmo tempo parece estar fora de tudo, como uma ilha cortada da cidade. Amanhã há uma razão para ir a Chelas: o festival Zona Não Vigiada quer transformar um bairro condenado à margem num novo centro.
Alguns adolescentes ouvem
música nas arcadas das
traseiras de um prédio. Os
mais novos brincam uns
com os outros ou circulam
de bicicleta. Vislumbram-
se homens sentados à porta de um
café, estando, apenas. Uma senhora
passeia o cão e mete conversa com
quem passa. E há também quem
aproveite o sol da tarde para esten-
der a roupa.
Tarde de um dia de semana de
forte calor no Condado, na Zona J
de Chelas, em Lisboa, um daqueles
bairros que são parte integrante da
cidade, mas que ao mesmo tempo
parecem estar à margem, numa re-
doma, como uma ilha. É um local
aonde quem é de fora não vai por
acaso ou de passagem. Tem de exis-
tir uma motivação.
Amanhã ela existe. Chama-se Zo-
na Não Vigiada, e é festival para se
desenrolar entre as 15h e as 21h no
ringue de futebol da Zona J, com en-
trada gratuita, contando com por-
tugueses como Norberto Lobo, Igua-
nas, Pega Monstro, DJ Lilocox & DJ
Maboku e DJ Firmeza, e com os in-
gleses Newham Generals e Jammz
& Logan Sama. O inglês Skepta, que
esteve programado, foi cancelado.
A iniciativa partiu da Casa Conve-
niente/Zona Não Vigiada, a estrutu-
ra teatral, ali sediada, da encenado-
ra Mónica Calle. Com ela colabora
nesta festival a associação Filho Úni-
co, que, através da actividade de
programação musical, ou da edito-
ra Príncipe, tem desencadeado o
mesmo tipo de movimentos que nos
levam a interrogar o papel das mar-
gens e do centro na produção cul-
tural contemporânea.
No caso de Mónica Calle, o objec-
tivo é mesmo agir a partir da mar-
gem, sobre a margem, e daí questio-
nar e reposicionar o centro. Nos
últimos dois anos, ali tem feito es-
pectáculos teatrais e outras acções
que vão nessa direcção. O festival
deste fim-de-semana pretende re-
forçar a criação de percursos dentro
do bairro e como fomentar um mo-
vimento do centro para a margem,
trazendo pessoas para a Zona J que
normalmente não viriam, ao mesmo
tempo que tenta captar públicos do
interior do bairro para acções a que
estes não normalmente não têm
acesso.
“A vivência aqui é muito à base da
música, nada é tão forte como ela
no sentido de criar relações”, afirma
Mónica Calle, “e a ideia para o festi-
val começa um pouco aí. Por um
lado interessa-nos apelar à partici-
pação das comunidades dos diferen-
tes bairros da periferia, e é ao mes-
mo tempo também uma tentativa
de aproximar o bairro da cidade,
dando-lhe centralidade, trazendo
pessoas de fora que de outra forma
nunca viriam e tentando criar fluxos
nos dois sentidos”.
Por agora, a nova casa da compa-
nhia ainda é um lugar algo inóspito,
misto de escombros e entulho, es-
tando para breve a requalificação
total. Ao lado vive Dona Sanha, 70
anos, os últimos 30 vividos ali, vin-
da da Guiné-Bissau; fomos encontrá-
la a estender a roupa.
A Casa Conveniente de Mónica Calle, a dupla DJ Lilocox & DJ Maboku e as Pega Monstro: nenhum é de lá, mas todos se cruzarão amanhã na Zona J, resultado da vontade de um festival que quer criar um movimento em direcção à periferia
Vítor Belanciano (texto)Pedro Elias (fotografia)
6 | ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015
“Desde que o teatro veio para aqui
que isto ganhou outra animação, e
o festival é também bom porque é
dessas coisas que sentimos falta”,
diz. “É bom para o bairro, para pa-
rarem de dizer mal dele. Gosto mui-
to de viver aqui. Nunca tive proble-
mas. Às vezes dizem que há assaltos.
Não sei. Deixo muitas vezes a porta
aberta e se o faço é porque tenho
confiança. O que existe, isso sim, é
boa vizinhança.”
Descobrir-seCircula-se com a encenadora pela
zona e percebe-se que já deixou
marca, com manifestações de afec-
to constantes. O restaurante perto
do recinto onde se desenrolará o
festival fornecerá refeições ao artis-
tas. Ali não muito longe, numa as-
sociação, funcionará o camarim.
Todos querem participar de uma
forma ou de outra, acreditando no
trabalho que está a ser desencade-
ado. É o caso de Daniela, Keil e Ilda,
entre os 12 e 15 anos, que também
querem ajudar. “É fantástico termos
aqui o festival porque precisamos
de mais actividade deste género
aqui, dando mais visibilidade aos
nossos talentos”, diz Ilda. “Ao mes-
mo tempo é bom porque não temos
de nos deslocar ao centro de Lisboa
para ver este tipo de iniciativas.”
Na memória das três está inscrita
ainda a participação num dos mais
recentes trabalhos de companhia,
Drive-In, realizado ao ar livre, no
parque de estacionamento em fren-
te ao espaço Casa Conveniente, in-
cluindo uma equipa mista de acto-
res profissionais e amadores. “Mo-
ramos mesmo aqui ao lado e a
Mónica acabou por nos convidar”,
conta Daniela. “Foi uma óptima ex-
periência, nunca tinha feito algo
parecido e agora gostava de conti-
nuar.” Keil refere que o mais difícil
“foi decorar o texto” e confrontar-se
com os seus próprios medos, por ir
representar para amigos e familia-
res, enquanto Ilda fala de um pro-
cesso de revelação: “Foi como se
estivesse a descobrir-me pela pri-
meira vez, a sentir um novo eu, e
isso é qualquer coisa de fantástico.
Nunca tinha experimentado nada
de semelhante.”
O objectivo de ir para a Zona J re-
monta a 2010, em consequência do
impacto, artístico e pessoal, de um
trabalho que Mónica Calle desenvol-
veu com reclusos do Estabelecimen-
to Prisional de Vale de Judeus. “Den-
tro desse grupo de teatro havia pes-
soas daqui, que foram as primeiras
a terminar as penas de prisão, e
quando isso aconteceu começaram
a trabalhar connosco na Casa Con-
veniente, no âmbito de um espec-
táculo sobre o Heiner Müller.”
Em 1991, no Cais do Sodré, a actriz
e encenadora havia ocupado uma
loja abandonada e, mais tarde, o
desactivado Bar Luso, numa zona
então conhecida pelos lugares de
má fama e pelo ambiente marialva.
Ali se manteve até há dois anos. A
partir do momento em que anteviu
que o local se iria transformar num
dos centros da nova Lisboa boémia
e turística, desejou sair. Agora, aos
48 anos, está a recomeçar tudo de
novo.
Poderia ter ido para o Intendente,
o Martim Moniz, a Almirante Reis,
Santa Apolónia, Cabo Ruivo ou Al-
cântara, enfim, zonas da cidade on-
de é relativamente fácil discernir
movimentos de regeneração. Mas
não. A sua aposta foi mais radical,
seguindo os actores que havia co-
nhecido em Vale de Judeus até Che-
las. “Foram eles que me convence-
ram, dizendo-me que havia aqui
imensas qualidades e talentos que
apenas pecavam por não circularem
muito fora daqui. E vim a confirmar
isso, descobrindo imensos músicos,
bailarinos, pessoas que fizeram
workshops de teatro e até gente da
moda.”
O gesto que a levou ao Cais do So-
dré, repetiu-o no sentido de Chelas.
“Não me interessa ter aqui um cir-
cuito fechado, mas pensar como
fazer tráficos nos dois sentidos, in-
terrogando o que é central e perifé-
rico. Esta não foi uma escolha casu-
al. A vinda para cá correspondeu ao
facto de o Cais do Sodré ter deixado
de ser um sitio de margem e de flu-
xos. Era necessário recomeçar outra
vez.”
Fala-se com ela, deambula-se pe-
lo bairro, e os seus olhos brilham,
contando-nos que a ideia inicial era
criar um festival em cinco espaços
diferenciados, de forma a que o pú-
blico circulasse, tomando conheci-
mento dos vários pontos do territó-
rio. Mas não houve verba para tanto.
Talvez para o ano. Para já aí está a
primeira edição do Zona Não Vigia-
da, criado também para abalar pre-
conceitos e estigmas. Seja do centro
para a margem, como o contrário.
CoabitaçãoO Bairro de Chelas foi um projecto
do arquitecto Tomás Taveira e, diz
Mónica Calle, “é um dos seus traba-
lhos mais interessantes em termos
de escala, de proporção, de harmo-
nia e de lugares públicos”. Não é,
explica, um lugar “desumanizado”,
pelo contrário: houve “um cuidado
estético interessante nestes bairros
construídos para retornados de to-
das as camadas sociais”.
É final de tarde, homens jogam às
cartas na rua e quando nos aproxi-
mamos dizem-nos que são ex-guar-
das prisionais, com um deles a ter
um desabafo curioso: “Reformei-me
e vivo aqui há dois anos e nunca aqui
tive problemas. Daqui já ninguém
me tira. Este é o bairro que conheço
onde sinto que existe maior sentido
de pertença.”
Não muito longe, no singular altar
da igreja São Maximiliano Kolbe —
todo envidraçado, avista-se o exte-
rior —, a pintura que se situa por bai-
Há um preconceito em relação a territórios como a Zona J. Os de fora acham que ali são todos marginais, os do bairro “acham que se forem ao centro são mal tratados”
ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015 | 7
xo da cruz representa simultanea-
mente um santo e um prisioneiro.
Apesar de a maior parte das pessoas
com quem falamos afirmar que a es-
tigmatização que o bairro já sofreu
se diluiu nos últimos anos, e que exis-
te um sólido um sentimento de per-
tença e de auto-estima, não vale a
pena romantizar: ainda há tensões.
Não é difícil perceber que existe
um preconceito social em relação a
territórios como a Zona J. O curioso
é que o preconceito é devolvido da
margem para o centro e existe cons-
ciência disso. Pelo menos é o que
nos diz Tó, assim, sem apelido (“To-
dos me tratam dessa forma). Os de
fora, conta, acham que ali são todos
marginais, e os do bairro “não fazem
questão de sair porque acham que
se forem ao centro são mal trata-
dos”.
Ou seja, quem vive no centro ten-
de a conotar negativamente quem
habita na periferia. E o cumprimen-
to é devolvido, com os da periferia a
acharem o centro confuso, conflitu-
oso e perigoso. Uma coisa é certa:
muitas das zonas periféricas acabam
por ser lugares de experimentação
social e cultural. Não é por acaso que
em muitos países é lá que irrompe a
maior parte das movimentações cul-
turais mais arriscadas. O facto de
serem por norma espaços híbridos,
onde pessoas de origens e condições
diversas coabitam, tanto pode origi-
nar tensão como potenciar a criati-
vidade. Na verdade, as paisagens são
cada vez mais móveis e esquizofré-
nicas. Na Zona J sente-se isso, tanto
na paisagem humana como na pai-
sagem urbana, principalmente nos
últimos anos: o apartamento social
coabita com o condomínio privado
com vista para o Tejo.
Este movimento de baralhação de
referentes é também um dos desíg-
nios que têm norteado o percurso
da editora Príncipe, uma das aliadas
do festival, representada por DJ Li-
locox & DJ Maboku (os Casa da Mãe
Produções) e DJ Firmeza, três dos
nomes que têm ganho visibilidade
nos últimos anos, da periferia para
o mundo, ao lado de Marfox, Nigga
Fox, Black Sea Não Maya, Nidia Mi-
naj e outros. Mensalmente, têm le-
vado a sua música inspirada em vá-
rias expressões urbanas (do kuduro
ao afro-house, passando pelo tarra-
xo ou batida) ao MusicBox e ao Lux,
em Lisboa, ou aos mais diversos clu-
bes de dança e revistas mundanas
da Europa e dos Estados Unidos.
Foi há dois anos que falámos com
DJ Maboku pela primeira vez. Na
altura era um ilustre desconhecido.
Hoje a sua música viaja pelo país e
pelo estrangeiro. “Aconteceram
muitas coisas, muitas viagens, mui-
tas saídas, desde então, e daqui
Maria Filomena (em cima) criou os seus filhos no bairro; Dona Sanha, guineense (em baixo), tem 30 anos de Zona J
A nova sede da Casa Conveniente ainda é um lugar algo inóspito, misto de escombros e entulho
“É bom para o bairro, para pararem de dizer mal dele. Às vezes dizem que há assaltos. Não sei. O que existe, isso sim, é boa vizinhança”Dona Sanha, moradora
8 | ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015
para a frente ainda vai ser melhor;
este festival acaba por traduzir isso
também”, confia ele, afirmando
que sábado vai passar uma série de
novos temas da sua autoria. Reside
em Queluz, mas mantém cumplici-
dades com família e amigos da
Quinta do Mocho, perto de Saca-
vém, de onde vêm também Firme-
za ou Marfox.
“Espero que venha gente de todos
esses lados”, afirma, “porque, de-
pois de termos levado esta música
ao centro de Lisboa e do mundo,
está na altura de a fazermos ouvir
aqui, onde ela também pertence.
Este festival já devia ter acontecido
há mais tempo. Andamos lá por fo-
ra, mas o pessoal daqui não nos che-
gou a ouvir”.
Má fama sem proveitoQuem tem assistido aos aconteci-
mentos da Príncipe são as irmãs Ma-
ria e Júlia Reis, ou seja as Pega Mons-
tro, que levarão as canções rock do
seu mais recente álbum, Alfarroba,
ao evento. Aparentemente não en-
contraremos pontos de contacto
entre o seu rock impetuoso, juvenil
e profundamente refrescante e a
música física e serpenteante das noi-
tes Príncipe. Nada mais errado. As
formas musicais são diferentes, mas
a energia primordial é a mesma: “Va-
mos a quase todas as noites da Prín-
cipe porque são muito inspiradoras
em termos de música e ambiente”,
reflecte Maria, acrescentando que
é a primeira vez que as duas “esta-
cionam” em Chelas. “Na verdade
acho que só estive aqui, de passa-
gem, para Xabregas.” Não devem
ser as únicas. Vivem no centro de
Lisboa, no Saldanha, e a Zona J pa-
rece-lhes uma entidade remota. E
no entanto fica mesmo ali, entre as
Olaias, Marvila e Cabo Ruivo, perto
da malha urbana da cidade e ao mes-
mo tempo parecendo longe dela,
separada por vales.
“Quando tocamos em Lisboa é
sempre no centro, portanto vai ser
óptimo fazê-lo aqui, provavelmente
para pessoas que nunca nos viram”,
diz Júlia. “A ideia do festival é ópti-
ma, e a cena de ser à pala é uma
opção democrática”, refere Maria,
acrescentando que aquilo que mais
a entusiasma é a “possibilidade de
agregar o pessoal daqui”: “Mesmo
que não venham por nós, que apa-
reçam pelo evento em si.”
Depois de uma digressão pelo Rei-
no Unido, resultante da edição e da
distribuição do novo álbum pela edi-
tora inglesa Upset The Rhythm, e de
vários concertos em Portugal, a du-
pla diz que as reacções têm sido
muito boas. “Estamos a tocar de for-
ma diferente e o concerto está mais
poderoso e sólido porque temos
uma ideia mais clara do rock que
queremos.” Elas não o referem, mas
o rock que praticam também teve a
O ringue de futebol da Zona J: aqui actuarão o português Norberto Lobo e os ingleses Newham Generals, entre outros
DJ Maboku e as Pega Monstro: também eles não viriam normalmente dar concertos a Chelas
“Acredito que o gesto artístico implica ética, comunidade e a possibilidade de uma relação ou de agir em pequena escala”Mónica Calle, encenadora
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sua génese em bairros periféricos
de grandes cidades.
Temos a memória curta, mas na
sua esmagadora maioria as músicas
populares hoje instituídas — do rock
ao fado, dos blues ao hip-hop — eram
na origem formas de expressão des-
qualificadas, praticadas por amado-
res sem veleidades artísticas, muitas
vezes rejeitadas pelas classes domi-
nantes e nascidas nas periferias das
grandes cidades. Na fase de legiti-
mação, foram muitas vezes associa-
das à marginalidade ou a questões
identitárias. Raramente foram en-
caradas como simples arte. Nas for-
mas musicais de rua que têm conhe-
cido protagonismo nos últimos
anos, os processos repetem-se, seja
no kuduro luso-angolano de Lisboa,
no baile funk do Rio de Janeiro ou
no grime londrino.
Esta última corrente vai estar re-
presentada por duas gerações de
activistas britânicos, os mais vetera-
nos Newham Generals de D Double
E e o mais novato Jammz, auxiliado
pelo DJ e histórico radialista Logan
Sama. Síntese mutante que engloba
batidas electrónicas, elementos de
jungle e ambientes sombrios sacu-
didos por subgraves, o grime impôs-
se nos primeiros anos da década de
2000, reconhecendo um novo fulgor
nos últimos tempos. O género nas-
ceu nos bairros mais desfavorecidos
do Este londrino, onde novas gera-
ções criavam música com computa-
dores rudimentares ou consolas de
jogos vídeo, aplicando o conceito de
faça-você-mesmo.
Quando perguntamos a Tó se ele
sabe o que é grime, diz-nos que não.
Hoje em dia está mais interessado
em hip-hop português, com história
em Chelas e um nativo bem conhe-
cido (Sam The Kid), e sobretudo em
kizomba. Não tanto por causa da
música, mas pela dança. “Para mim,
música é movimento e sensualida-
de”, ri-se ele, na direcção de Maria
Filomena, que continua a passear o
seu cão.
Ali, toda a gente parece conhecer-
se. “Este é o bairro onde criei os
meus filhos e gosto dele, embora
existam, como em todos os lados,
problemas, como o facto de haver
pessoas que têm altos rendimentos
e habitam [em casas] com rendas
camarárias baixas”, afirma ela, rela-
tivizando de seguida o que acaba de
dizer. “Mas, enfim, isso são proble-
mas menores. Embora este bairro
tivesse má fama no passado, era uma
fama sem proveito. Claro que existe
um pouco de tudo, mas aqui as pes-
soas entreajudam-se e isso é tudo. Se
não fosse isso, já estava no céu.”
É essa ideia de comunidade, de
“relações reais”, como lhe chama
Mónica Calle, que trouxe uma artis-
ta ao bairro, ainda por cima em dias
onde o clima constante no mundo
é a indiferença. “Acredito que o ges-
to artístico implica ética, comunida-
de e a possibilidade de uma relação
ou de agir em pequena escala. Aqui
estou longe de um centro — pelo me-
nos de uma certa ideia de centro —
onde existem conflitos e perdas de
energia. É válido, mas não é a minha
coisa. Sinto-me mais perto da vida
e da possibilidade de interrogar o
que é isso do gesto artístico, embo-
ra não seja de forma nenhuma uma
coisa conceptual.”
É isso. A Zona J, geograficamente,
parece uma ilha, “separada da cida-
de”, diz Mónica Calle, mas ao mes-
mo tempo personifica “movimentos
que são profundamente contempo-
râneos e que têm a ver com a cultu-
ra no sentido universal, seja dança,
teatro ou música”.
Como tornar central, através de
um projecto artístico, um bairro-ilha
chamado Zona J, eis a questão. Uma
coisa parece certa: vai levar tempo a
quebrar estigmas e a superar medos,
e vai ser preciso insistir. Mas é possí-
vel, dizem-no Mónica Calle e a edito-
ra Príncipe, cada uma à sua maneira.
Há momentos em que a arte pode
antecipar transformações sociais, ou
pelo menos contribuir para as acele-
rar. Amanhã, a primeira edição do
Zona Não Vigiada, na Zona J, em Che-
las, pode ser um desses momentos.
4 Outubrodomingo, 19:00h — M/6
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
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dr
10 | ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015
Acontecimento, define o di-
cionário, é “coisa ou caso
inesperado ou que produz
sensação”. Se Songs to
Play, o mais recente álbum
de Robert Forster, produ-
zirá sensação? Isso depende do gru-
po de pessoas em quem o disco for
testado — certamente que sim, se
nos ficarmos pelos fãs dos Go-Be-
tweens, mas para além deles, e para
além da definição que o dicionário
consagra, este disco é um aconteci-
mento simplesmente pelo facto de
surgir. É que desde The Evangelist,
a sensação anterior do senhor Fors-
ter, passaram sete anos.
The Evangelist foi escrito na ressa-
ca da morte de Grant McLennan,
companheiro de sempre de Forster
nos Go-Betweens, a mais subvalori-
zada banda da história da pop. Tal-
vez aquele disco o tivesse esgotado,
julgámos. “Na verdade”, diz Forster
ao telefone desde Brisbane, na Aus-
trália — a sua terra natal, para onde
regressou anos após os Go-Betweens
terem chegado ao fim pela primeira
vez —, “mal acabei The Evangelist quis
que houvesse um intervalo de cinco
anos até ao disco seguinte”.
Nada comum no mundo da pop
actual, onde a regra é fazer um dis-
co, partir em digressão por dois anos
e lançar nova obra no regresso. Mas
não Forster, ele não se move pelos
mesmos ditames. “Na altura achei
que estava num novo estádio da mi-
nha carreira. E queria deixar passar
algum tempo. Sabia que o que fizes-
se a seguir seria outro capitulo.”
Uma das razões para isto prendia-
se com os acontecimentos terminais
que levaram a The Evangelist. “O meu
último álbum tinha saído muito pró-
ximo da morte do Grant, e estava
muito ligado a essa morte. Havia can-
ções dele no disco, canções que ele
não tinha acabado. E na altura tam-
bém estava a escrever sobre música,
a produzir música e a fazer o livro
dos Go-Betweens [que saiu na recen-
te compilação da obra da banda].”
Além disso, Forster “queria man-
dar uma mensagem, e só podia fazê-
lo com tempo”. A mensagem “de
que ia voltar refrescado, com nova
energia”, um dado que Songs to Play
CCCCCCCCCCooooooooooommmmmmmmmmmmoooooooooo rrrrrrrrrrreeeeeeeeeeeaaaaaaaaaaaccccccccccççççççççççãããããããããããããoooooooooo ààààààààà mmmmmmmmmmmooooooooooorrrrrrrrrrttttttttttteeeeeeeeee dddddddddddeeeeeeeeee GGGGGGGGGGGrrrrrrrraaaaaaaannnnnnnnnnttttttttttt MMMMMMMMMMccccccccccLLLLLLLLLLLeeeeeeeeeennnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnaaaaaaaaaannnnnnnnnn,,,,,,,,, ssssssssseeeeeeeeeeuuuuuuuuuuu ccccccccccccooooooooooommmmmmmmmmmmpppppppppppaaaaaaaaaaannnnnnnnnnnhhhhhhhhhhheeeeeeeeeeiiiiiiiiiirrrrrrrrrrrooooooooo dddddddddddeeeeeeeee ssssssssssseeeeeeeeeeemmmmmmmmmmmmmppppppppppprrrrrrrrrreeeeeeeee nnnnnnnnnnoooooooooossssssssss GGGGGGGGGGGGooooooooooo--------BBBBBBBBBBBeeeeeeeeetttttttttwwwwwwwwwwweeeeeeeeeeeeeeeeeennnnnnnnnnssssssssss,,,,,,,, RRRRRRRRRRRRRoooooooooobbbbbbbbbbbbeeeeeeeerrrrrrrrttttttttt FFFFFFFFFFFooooooooorrrrrrrrrsssssssstttttttttteeeeeeeeeeeerrrrrrrrrr eeeeeeeeeeeessssssssscccccccccrrrrrrrreeeeeeeeevvvvvvvvvvvveeeeeeeeeeeuuuuuuuuu TTTTTTTTTTTThhhhhhhhhhheeeeeeeee EEEEEEEEEEEvvvvvvvvvaaaaaaaaaaannnnnnnnnggggggggggeeeeeeeeeellllllllliiiiiiiisssssssstttttttttt..... DDDDDDDDDDeeeeeeeeeppppppppppoooooooooiiiiiiiiisssssssss,,,,, ssssssssiiiiiiiiillllllllllêêêêêêêêêênnnnnnnnncccccccccciiiiiiiiioooooooooo dddddddddduuuuuuuuuurrrrrrrrraaaaaaannnnnttttttttteeeeeee ssssssssseeeeeeeeettttttteeeeeeeee aaaaaaaannnnnnnoooooooosssssssss..... OOOOOOOO rrrrrrreeeeeeggggggggrrrrrrrrreeeeeeeesssssssssssssoooooooo ffffffffaaaaaaaazzzzz----ssssssseeeeeee aaaaaggggggooooooorrrrrraaaaa cccccccccoooooooooommmmmm SSSSSSSooooooonnnnnngggggggssssss tttttooooooooo PPPPPPPPPPPPllllllllaaaaaaaaayyyyyyyyyy,,,,, uuuuuuuuummmmmmmmmm ccccclllllááááááásssssssssssssssiiiiicccccccccoooooo iiiiiiiiiinnnnnnnnnnnsssssssssstttttttttttaaaaaaaaaaannnnnnnnnntttttttttââââââââââânnnnnnnnnneeeeeeeeeeoooooooo......
A vida depois de Grant
Robert Forster não se vê a fazer um disco de dois em dois anos, mas está a trabalhar num livro: “É uma biografia e envolve a minha vida”
STEP
HEN
BO
OTH
mmmmm
Robert
Forster
Songs to Play
Tapete Records
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confirma. O próprio título do disco
indica esse reposicionamento —
brincar era algo que estava radical-
mente afastado de The Evangelist,
um álbum muito mais pesado.
Valha a verdade, Foster nunca foi
prolífico. “Nos anos 1980 [quando
os Go-Betweens, a banda que criou
com McLennan, começaram], se
escrevesse duas canções de que gos-
tasse num ano já ficava contente.
Éramos dois a compor — a duas can-
ções por ano tinha quatro em dois
anos, e se o Grant fizesse o mesmo
tínhamos praticamente um disco.”
O problema de Forster, explica ao
Ípsilon, é que não é “naturalmente
um músico”: “Não sou o Paul Weller
nem o Paul Simon. Sou alguém que
sabe tocar bem guitarra e tem ideias,
mas não consigo criar a torto e a di-
reito. Não sou um virtuoso. As can-
ções saem como explosões e depois
vão embora.” Com o tempo, diga-se,
tornou-se num bom guitarrista rit-
mo. “Sim”, diz ele. “Do mesmo tipo
que o Lou Reed era. Mas isso não é
talento, é trabalho. Posso tocar gui-
tarra ritmo e um piano. Chega para
fazer uma canção pop.”
Em busca de vidaÉ uma palavra que aqui faz sentido,
ao contrário do que acontecia em
The Evangelist: pop. “The Evangelist
era um disco muito melancólico e
sombrio. Desta feita queria escrever
canções orelhudas, melódicas, lú-
dicas e leves. O que não é obrigato-
riamente menor. Pode fazer-se algo
mais leve e ainda especial. E todas
as canções de Songs to Play têm esse
sentimento de reagir a esse disco. O
da morte do Grant. É uma procura
de felicidade, de vida.”
A morte de Grant, seu colega des-
de garoto, magoou Forster até ao
tutano. “Quando ele morreu os Go-
Betweens acabaram de vez. A banda
éramos os dois, não fazia sentido
continuar sem ele. Mas não me ima-
ginava a fazer álbuns a solo. Todas
as ideias, todos os sentimentos iam
para banda. Quando se está numa
banda faz-se tudo pela banda.”
Veio a morte de Grant e Forster
demorou “quase dois anos” até co-
meçar a sentir-se “normal outra vez”.
“Havia como que um nevoeiro à mi-
nha volta. Fazer o disco ajudou-me a
prosseguir”. A actividade de crítico
musical, ainda que noutro sentido,
também. “Ouvir a música dos outros
e tentar perceber como a criaram não
ajuda a escrever uma canção, mas
torna-te mais consciente do que estás
a fazer. A decidir se terá um piano,
se a bateria entra ou não.”
Há pianos em Songs to Play. E me-
tais. E órgãos. E coros. E violinos. Um
deles, o de I’m so happy for you, lem-
bra The Clark sisters, canção do ál-
bum Tallulah, dos Go-Betweens. E há
proto-bossa-nova. Ou seja: o plano
de fazer canções grandes e lúdicas e
leves foi mais do que alcançado. Mais
ainda: estas canções são clássicos ins-
tantâneos, com grandes refrães que
não se esforçam por mostrar as suas
qualidades mas facilmente nos põem
a cantarolar. Grandes canções exi-
miamente arranjadas, com um bom
gosto a toda a prova.
É uma proeza que deixa Forster
contente — tem a noção de que con-
seguiu fazer o que queria fazer. E
está contente com a sua vida, com as
opções que tomou, com tudo o que
viveu. “Tive a sorte de estar em Lon-
dres nos anos 1980, que era um mun-
do muito diferente do que tudo o que
eu conhecera antes. Conhecer a mi-
nha mulher na Alemanha mudou-me
e deixou-me muito feliz. Voltar para
Brisbane para formar uma família
também me mudou. Sou abençoa-
“Sei tocar bem guitarra e tenho ideias, mas não consigo criar a torto e a direito. As canções saem como explosões e depois vão embora”
do”, diz Forster, hoje um conversa-
dor muito mais sereno do que há
década e meia. “Fiz uma opção pela
família”, explica. “Passo muito tem-
po com os meus dois filhos adoles-
centes. Somos muito próximos, o
que tem sido muito importante para
nós. De modo que não queria viver
aquela vida de seis meses na estrada,
queria estar com eles.” Financeira-
mente, conta, é difícil. “Vivemos um
pouco no fio da navalha, e não há
luxos. Mas foi sempre assim. O que
não é problema quando não se tem
filhos. Quando há filhos é que se pre-
cisa de segurança. Mas até agora,
apesar de tudo isto, funcionou.”
Ligeiramente inseguro em relação
à recepção que o disco pode ter,
Forster pergunta-nos o que achámos.
Quando o elogiamos, agradece várias
vezes. Claramente, o ser vagamente
arrogante que liderava os Go-Betwe-
ens mudou um pouco. Agora tam-
bém joga noutro campeonato — nun-
ca antes poderíamos imaginá-lo a
fazer um quase-gospel como Turn on
the rain, deste álbum.
Agora está “numa fase em que tu-
do pode acontecer”. “Não me vejo
a fazer um disco de dois em dois
anos. Mas vai haver surpresas. Estou
a trabalhar num livro que pode sair
em pouco tempo — é uma biografia
e envolve a minha vida.”
Paramos por um segundo a tentar
rememorar a nossa imensa quanti-
dade de informação sobre os Go-
Betweens. “Não era o Robert que
tinha o plano de ser escritor, antes
de começar os Go-Betweens?”, per-
guntamos. “Não, não”, responde
ele. “O Grant é que queria escrever
livros e fazer filmes. Eu não. Mas
toda a gente tem o sonho de escre-
ver um livro um dia. Sempre o quis
fazer. mas não sabia se conseguia.”
Ficamos meio encabulados — por
termos falhado uma informação tão
simples e por trazermos de novo o
nome de McLennan à conversa.
Mas ele já ultrapassou a pequena
memória que trouxemos. “Então
gostaste do disco, foi? De qual gos-
taste mais?” E assim continuamos
por uns minutos. A falar de can-
ções, o assunto preferido de Robert
Forster.
12 | ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015
Uma banda soul/funk com tiques progressivos e psicadélicos, vinda da Austrália, a deixar aguados Animal Collective, Erykah Badu e Prince? Sim, existe, chama-se Hiatus Kaiyote e tem em Choose Your Weapon o seu surpreendente disco de revelação.
Há que amar uma história de
reconhecimento global que
começa em Avey Tare (dos
Animal Collective) e, em
cinco curtos passos, chega
a Erykah Badu. E é tão mi-
lagrosamente fácil de seguir que os
australianos Hiatus Kaiyote conse-
guem reconstituir toda a cadeia que
fez com que de uma banda de nome
estranho, e a que logo se torceriam
o nariz e o pescoço por precaução,
se transformasse numa banda de no-
me estranho a que logo meio mundo
se quer entregar sem resistência an-
tes de ouvir a primeira nota. Cami-
nhemos então por essa cadeia de
gente rendida a esta sonoridade soul/
funk polvilhada de psicadelismo com
trejeitos futuristas: Avey Tare ouviu
um qualquer tema dos Kaiyote na
rádio, ficou suficientemente impres-
sionado para falar disso a Angel De-
radoorian (ex-Dirty Projectors), An-
gel partilhou a descoberta com o
baterista, produtor e homem forte
dos The Roots ?uestlove, este passou
a palavra a James Poyser (compositor
ao serviço de Erykah Badu) e Poyser
mostrou o quarteto-maravilha aus-
traliano a Badu.
?uestlove não demorou a fazer sa-
ber que muito de vez em quando
surge uma banda pela qual está dis-
posto a alienar amigos (não esclare-
cendo se tal se deve a varrer da sua
vida quem não partilhe o seu entu-
siasmo, se será motivo de ofensa
mortal para alguns o facto de decla-
rar publicamente a sua admiração
por um grupo de desconhecidos e
não por gente próxima que lhe im-
plora 15 segundos de abnegada pu-
blicidade, se simplesmente tem de
cortar no número de amizades por
deixar de ter tempo para todos a fim
de poder ouvir esta música em paz);
Badu anunciou, sem rodeios, estar
apaixonada. Meses mais tarde, tam-
bém Prince partilhou o vídeo de
Nakamarra no Twitter, incitando os
seus seguidores a clicarem no link
até à revelação daquela banda aloja-
da, entre milhões de outras, no mes-
mo YouTube em que todos aguardam
impacientemente a sua sorte. O ví-
deo, por estes dias, conta com mais
de 1,2 milhões de visualizações.
Graças a esse coro ecléctico de
admiração, do universo pop em es-
trepitosa expansão assinado pelos
Animal Collective ao soul/funk aber-
to à contaminação de Badu, perce-
be-se, com um mínimo de rigor, a
paisagem que se encontra nos dois
álbuns dos australianos: soul e funk,
com certeza, mas sobrevivente a
pazadas de psicadelismo, viagens
imaginárias a África e uma tal poro-
sidade a diferentes géneros que, no
capítulo da excentricidade pop, se
diria o primo tardio (e nos antípo-
das) dos idos Mler Ife Dada. Ouvindo
Tawk Tomahawk e o fabuloso segun-
do álbum Choose Your Weapon, não
é fácil acreditar que esta música que
complexifica a soul tenha, em gran-
de parte, surgido na ressaca de um
desaire amoroso da vocalista Nai
Palm e resulte, antes de mais, de um
mês a acampar no deserto, num pro-
cesso solitário de purga afectiva.
No regresso, Nai começou de ime-
diato a procurar uma banda que a
auxiliasse a engrandecer as canções
que bolçara no retiro. “Conheci-a
na rua quando ela veio falar comigo
à porta de um café”, conta o bate-
rista Perrin Moss ao Ípsilon. E talvez
seja esse lado algo acidental da for-
ma como os Hiatus se juntaram que
permite a emergência de uma mú-
sica tão pouco lógica, juntando gen-
te com os ouvidos enfiados em funk
da década de 70, na cantora maliana
Oumou Sangaré, em jazz, música
clássica indiana e beats de toda a
proveniência ou na electrónica-noi-
se-punk dos Lightning Bolt — que
tudo isto se junte e, sobretudo, que
faça sentido, é uma vitória troante
contra o bom-senso. Custa verda-
deiramente a crer que estes estre-
meções de ritmo trazendo a rebo-
que sintetizadores esfusiantes, como
Shaolin monk motherfunk, Breathing
underwater ou Swamp thing, possam
ter alguma vez existido como temas
para voz e guitarra.
“Acho que temos sorte”, comenta
Moss sobre esta união de esforços
que a poucos pareceria uma boa
formulação teórica. “Acontece sim-
plesmente sermos o grupo certo de
pessoas na mesma sala. É muito in-
teressante estarmos a aprender co-
mo pensam os nossos companheiros
de banda e, aos poucos, aperceber-
mo-nos de como as ideias de todos
acabam por estar ligadas.”
Duro, muito duroKaiyote é nome de uma agência de
viagens especializada em progra-
mas de observação de pássaros. Nai
Palm é uma confessa apaixonada
por ornitologia; ainda assim, a cor-
ruptela de coiote e a sua coincidên-
cia com o nome da agência é um
mero acaso, uma confirmação ape-
nas de que a bizarria dos australia-
nos encontra eco no mundo. Tal
eco, graças também ao prestigiado
clube de fãs que reuniram logo com
o lançamento de Tawk Tomahawk,
em 2013, apanhou-os de surpresa
e, por outro lado, atirou-os para
uma vida para a qual não estavam
preparados. Tanto assim que Cho-
ose Your Weapon foi composto nos
pequenos intervalos escavados a
custo entre as constantes solicita-
ções para digressões. “Fomos to-
cando, continuámos e continuá-
mos”, diz Perrin, lembrando o es-
tado de transe em que a banda se
viu metida. “Queríamos lançar um
novo álbum mas não conseguía-
mos, estávamos cansados e cheios
de concertos, até que percebemos
que isto não pára, está sempre em
movimento.”
Apesar de afirmar que os quatro
já se habituaram a este ritmo, Perrin
vai repetindo que “é duro, muito
duro” suportar este modo de vida.
“Continuamos a fazê-lo, mas anda-
mos exaustos, ficamos com o corpo
todo fodido.” E é por isso que pare-
cem soar as campainhas da inevita-
bilidade quando se pergunta se não
estará na hora de se mudarem para
a Europa ou os Estados Unidos, lu-
gares a partir dos quais seria menos
penoso, oneroso e demorado partir
em digressão — cujo roteiro costuma
incidir, precisamente, nesses terri-
tórios. “Talvez estivéssemos um
pouco menos longe de casa se vi-
vêssemos em Londres ou em Nova
Iorque porque os concertos seriam
mais frequentes e mais concentra-
dos geograficamente, não teríamos
de fazer estes rounds muito inten-
sos”, concede Mason.
A situação do grupo, no entanto,
pode estar prestes a mudar — se a
sua crescente reputação mundo
fora equilibrar as contas ao propor-
cionar um menor número de con-
certos e mais bem pagos. Mas é
também verdade que ouvindo Cho-
ose Your Weapon pode intuir-se que
todo o cansaço não será de mais se
tiver como consequência entre os
músicos esta tão aguda ausência de
filtros que, como o confirma Moss,
uma canção só é dada por termina-
da quando está já a abarrotar de
ideias de todos. Perrin diz que até
gostava que a música dos quatro se
simplificasse, mas o mais natural
seria esse tratamento de limpeza
acabar por trair uma música a que
chamam, numa auto-ironia que não
despreza um mínimo de preciosis-
mo, “multidimensional polyrhyth-
mic gangster shit”.
Delírios do deserto funk australiano
Gonçalo Frota
mmmmm
Hiatus
Kayiote
Choose Your
Weapon
Flying Buddha;
distri. Sony
Music
ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015 | 13
No final, morremos todos.
E depois? O que se segue
talvez seja um lugar para-
disíaco, ou um sítio onde
estão todos os nossos ami-
gos, ou um espaço onde se
conseguem preservar os feitos, ma-
teriais e espirituais, da vida que
conhecemos.
Por muito especulativa que pare-
ça, esta conversa tem uma base
científica, garante a Mala Voadora.
Na sua mais recente criação, que
se estreia amanhã na Fábrica ASA,
em Guimarães, e depois segue para
o Centro Cultural de Belém, em Lis-
boa (2 a 8 de Outubro), a compa-
nhia parte da obra de um neuro-
cientista norte-americano para uma
reflexão sobre o que acontece de-
pois do fim. É uma breve história
da morte — ou daquilo que a vida
pode ser depois dela.
A peça foi escrita pelo director
da Mala Voadora, Jorge Andrade, a
partir de Sum (do latim Cogito ergo
sum, a frase mil vezes citada de Re-
né Descartes), um livro lançado em
2009 por David Eagleman. A obra
original é composta por 40 contos
sobre a vida depois da morte, entre
os quais Uma breve história dos in-
terruptores da morte, publicada pe-
la revista científica Nature. Nessa e
nas outras pequenas histórias de
Sum, o escritor-cientista especula
sobre possibilidades de prolongar
a vida depois da morte, partindo
de investigações que estão realmen-
te em curso um pouco por todo o
mundo, como a clonagem ou a hi-
pótese de digitalizar a informação
contida num cérebro.
O livro de Eagleman chegou às
mãos do director da Mala Voadora
no ano passado, em Inglaterra, du-
rante a fase inicial de criação de The
Paradise Project (co-produção com
a companhia britânica Third Angel,
uma espécie de alma-gémea da com-
panhia de Jorge Andrade e José Ca-
pela). “O que me cativou foi a ideia
de que, mesmo a partir da morte,
do fim, consegue-se especular e
criar”, explica. O espectáculo é, por
isso, “uma espécie de festival de
ideias” sobre a morte.
Jorge Andrade assume também
que a entrada num universo de fic-
ção-científica lhe permitiu introdu-
zir um contraste entre as possibili-
dades da técnica e a ideia de Deus,
que, enquanto crente não-pratican-
te, tinha também interesse em pro-
blematizar. “Isto passa-se numa al-
tura hipotética em que Deus mor-
reu, os homens esqueceram-se dele,
e agora está para ali, como uma chá-
vena”, explica. Um tempo em que,
quanto mais o homem domina a
criação, mais se afasta da ideia de
um criador.
BrainstormingFestival encerra uma trilogia sobre
a ideia de paraíso que a companhia
inaugurou, em 2013, com Paraíso 1,
e que prosseguiu em The Paradise
Project (2014). Porém, desta feita, o
paraíso que aqui se debate é aquele
que poderemos eventualmente en-
contrar depois da morte. Não cor-
responde exactamente à ideia de
Céu da religião católica, mas a um
espaço onde haverá uma vida após
a vida. As possibilidades são ficcio-
nadas, mas parecem emergir de
uma base científica. De resto, a nova
produção da companhia abre a por-
ta para o espectáculo seguinte, que
está já a ser preparado, em que a
ideia de ficção-científica estará ain-
da mais presente: a Mala Voadora
quer debruçar-se agora sobre os uni-
versos paralelos.
Mas como se transpõe um uni-
verso de ficção-científica para o
teatro? O cinema colonizou o ima-
ginário colectivo com uma ideia de
ficção-científica assente em recur-
A Mala Voadora acredita que é possível criar mesmo a partir da ideia de fi m. Festival, o novo espectáculo da companhia, é o teatro a meter-se no buraco da fi cção científi ca.
Samuel Silva
Uma breve história da morte
sos, sobretudo tecnológicos, a que
o teatro não consegue aceder. “Me-
temo-nos num buraco”, começa
por ironizar Jorge Andrade. Mas a
resposta não está muito longe da-
quilo que o teatro sempre faz: “Te-
mos de desenvolver uma linguagem
que comunique com o público essa
especulação sobre o futuro. Essa
ideia não pode passar por recursos
que são próprios do cinema. Por-
tanto, é o texto que nos vai dar es-
sa possibilidade.”
O espectáculo que este sábado
encerra o programa de comemora-
ções do décimo aniversário do Cen-
tro Cultural Vila Flor constrói-se à
volta de um dispositivo que propõe
a morte como tema de um brains-
torm numa empresa. Quatro fun-
cionários discutem a viabilidade de
transformar a vida depois da morte
num negócio, mas a discussão rapi-
damente foge do campo corporati-
vo para se fixar nas especulações
filosóficas sobre o que pode acon-
tecer depois de morrermos. Por
mais que tentem escapar da ideia
da morte, acabam sempre absorvi-
dos por ela.
Apesar de a morte ser um tema
inescapável, o texto assume, não
raras vezes, um tom humorístico,
sarcástico. Essa intenção tem, aliás,
continuidade na cenografia de José
Capela, que remete para o mundo
corporativo mas com um toque iró-
nico evidente. Há computadores,
secretárias e cadeiras reais, mas é
um telão a ocupar o espaço poste-
rior da cena, como que a lembrar
que tudo ali não passa de uma fa-
chada. O ambiente é algo kitsch, ins-
pirado nos catálogos de lojas de
móveis, com os preços pendurados
em todos os objectos em cena a
acentuarem essa ideia: “Está tudo à
venda. Nós já vendemos uma vida
depois da morte, porque já não há
mais nada para vender.”
14 | ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015
Christian Rizzo admite que nunca tinha posto tanta dança nas suas peças como em D’après une histoire vraie. Foi o que trouxe de uma ida a Istambul em 2004: outra maneira, muito do Sul da Europa, nada gender, de carregar o palco de testosterona.
É uma memória tão forte que
Christian Rizzo não se lem-
bra de nada.
Uma noite, há 11 anos, o co-
reógrafo francês (Cannes,
1968) viu um grupo de ho-
mens invadirem um palco em Istam-
bul com a sua maneira tão do Sul de
dançar (ombro com ombro, braço
com braço, cabeça com cabeça) e is-
so ficou para sempre com ele, ao pon-
to de mais de uma década depois ter
construído a partir do muito pouco
de que se lembrava o espectáculo que
em 2013 estreou no Festival de Avig-
non e que este sábado chega ao Tea-
tro Municipal Rivoli, no Porto, onde
abre mais uma edição do Circular —
Festival de Artes Performativas.
É uma informação que ele dá logo
no título, D’après une histoire vraie,
como que a vincular esta epifania — a
epifania de um lugar onde a energia
extraordinariamente primitiva e ex-
traordinariamente poderosa do fol-
clore se cruza com os corpos pós-
modernos de oito bailarinos e a pul-
são de vida e morte de duas baterias
siamesas — a um espaço e a um tem-
po precisos. Tão precisos que (repe-
timo-nos, porque ele se repete ao
telefone) Christian Rizzo não se lem-
bra de nada: “Sim, o título desta pe-
ça não evita a referência ao ponto de
partida, mas é tudo um bocado mais
complexo do que isso... É verdade
que, num festival em Istambul, a
meio de um espectáculo que eu ab-
solutamente esqueci, vi um pequeno
fragmento de uma dança tradicional
turca que se inscreveu em mim de
uma maneira fortíssima. Foi tão es-
tranho ter-me esquecido de tudo à
excepção desse minúsculo momen-
to. Porque é que eu, que venho da
dança contemporânea, fui mais to-
cado pelo folclore do que pelo resto
do espectáculo, teoricamente mais
próximo da língua coreográfica que
eu falo?”.
Boa pergunta — tão boa que Chris-
tian Rizzo demorou mais de dez
anos a responder e mesmo depois
de D’après une histoire vraie continua
em dificuldades (ad noctum, a cria-
ção que estreará no início de No-
vembro em Nantes, continua a sua
pesquisa em torno das formas da
dança popular). Parte do que o dei-
xou sem chão em Istambul, porém,
está neste espectáculo em que ten-
tou reconstituir “uma memória per-
sistente”, “a memória de uma sen-
sação profunda e quase arcaica”:
homens que dançam, e que dançam
assim desde sempre. É uma memó-
ria como outra qualquer? De todo,
é a memória que o libertou: literal-
mente, porque D’après une histoire
vraie foi a peça em que se separou
da tralha com que costumava en-
cher o palco nos seus espectáculos
sempre entre a coreografia e a ins-
talação, mas também de forma su-
bliminar, ou seja na raiz da sua pró-
pria história coreográfica, porque
em nenhuma das peças anteriores
se tinha dançado tanto.
Avancemos por partes. Para o en-
cher com estes oito bailarinos vin-
dos, acidentalmente ou não, do Sul
da Europa ou do Sul do mundo —
entre Fabien Almakiewicz, Yair Ba-
relli, Massimo Fusco, Miguel García
Christian Rizzo juntou oito bailarinos (que, acidentalmente ou não, carregam consigo uma história do Sul da Europa ou do Sul do mundo) e dois músicos para restaurar uma ideia: homens a dançarem entre eles
Homens de
MARC DOMAGE
Inês Nadais
mãos dadas
ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015 | 15
Llorens, Pep Garrigues, Kerem Gele-
bek, Filipe Lourenço, Roberto Mar-
tinez há passaportes portugueses,
espanhóis, italianos, turcos, israeli-
tas, peruanos... — e com os dois ba-
teristas franceses, Didier Ambact e
King Q4, que quis que ali se confron-
tassem (se é uma conversa ou uma
guerra nunca percebemos bem),
Christian Rizzo teve de esvaziar o
palco, rompendo com os instintos
hiper-cenográficos alimentados por
todo um passado nas artes visuais
(estudou na Villa Arson, em Nice),
na música (teve uma banda em Tou-
louse), na moda (teve uma marca de
roupa) e na criação de figurinos (por
exemplo para Mathilde Monnier, Em-
manuelle Huynh, Mark Tompkins,
George Appaix e Vera Mantero). To-
da a conversa que queria iniciar com
D’après une histoire vraie precisava
disso, de uma folha em branco, para
poder acontecer. “Tinha de deixar o
palco aos bailarinos. Este é um es-
pectáculo em que eu desapareço
atrás dos corpos deles. Parece-me
que a escrita coreográfica é suficien-
temente forte para existir sozinha.”
Mas não é verdade que não haja nada
em cima do palco: “Há um tapete,
há ângulos, há ainda assim uma ce-
nografia. O vazio não existe, cria-se
— e para o criar, para o tornar visível,
é preciso que estejam lá coisas.”
Também isso foi uma epifania, em-
bora definitivamente o actual direc-
tor artístico do Centre Coréographi-
que National deMontpellier Langue-
doc-Roussilon esteja mais interessado
no que aconteceu em cima desse va-
zio. “Não é verdade que esta seja a
minha peça mais movimentada, mas
talvez seja de facto a mais dançada.
Sempre houve muito movimento nos
meus espectáculos, só que costuma-
va estar equilibrado com a cenogra-
fia, com a luz, com outras formas de
movimento — nunca estava só nos
bailarinos, havia outras coisas a me-
xerem-se. E sim, a dança — sinto que
vai ficar. Não porque enquanto core-
ógrafo me tenha viciado nela, mas
porque é a questão que realmente
quero discutir neste momento.”
AlegriaCerto, mas o que haverá assim de tão
novo na dança para Christian Rizzo
querer discuti-la agora, 20 anos de-
pois de lá ter chegado? Justamente,
temos de reformular a pergunta: o
que haverá assim de tão velho na
dança para Christian Rizzo querer
discuti-la agora, 20 anos depois de
lá ter chegado? “O processo de cria-
ção de D’après une histoire vraie trou-
xe-me a uma diferença fundamental
que separa a dança contemporânea
da dança tradicional: a diferença en-
tre a autoria e o anonimato. Aquela
dança tradicional turca que eu vi em
Istambul carregava o peso, e ao mes-
mo tempo a força, do anonimato:
não a marca de um autor, mas a mar-
ca de sucessivas gerações, de suces-
sivas transmissões.”
Para um artista habituado a ver-se
como the name above the title desde
1996 — o ano em que, depois de mui-
tas participações como intérprete em
criações de coreógrafos como Hervé
Robbe ou Rachid Ouramdane, se
aventurou a fundar a sua própria es-
trutura, L’Association Fragile —, é
uma gigantesca mudança de para-
digma. “Tenho, é claro, uma história
como autor. Mas até essa história
transporta a história de imensos anó-
nimos. Quero pensar sobre isso — so-
bre o lugar onde acaba uma história
anónima da dança e começa uma
história autoral, sobre o tipo de in-
fluência que o folclore pode exercer
sobre uma escrita coreográfica con-
temporânea”, diz ao Ípsilon.
A forma como isso se faz na peça
que este sábado estará no Porto é
subtil — e ao mesmo tempo esmaga-
dora. Mais do que discutir as catego-
rias do anónimo e do autoral, do
popular e do contemporâneo no con-
texto de uma prática mista (os movi-
mentos dos bailarinos descendem
muito difusamente de vários reper-
tórios tradicionais, mas têm a escrita
de Christian Rizzo em cima), D’après
une histoire vraie resgata do folclore
uma certa maneira muito do Sul da
Europa, e com toda a energia patriar-
cal que essa ascendência implica, de
inscrever o corpo masculino, e com
ele uma ideia visceral (ele diz: “nada
gender”) de comunidade, na dança
e no mundo. Foi aliás nisso que todos
se concentraram durante o processo
de criação: não houve nenhum tra-
balho de recolha do repertório tra-
dicional, antes um trabalho indivi-
dual, primeiro (o do coreógrafo,
para “fazer emergir uma recorda-
ção”), e colectivo, depois (o de todos,
músicos incluídos, sobre “o imaginá-
rio associado ao folclore”), disposto
a restaurar aquilo que verdadeira-
mente tocou Christian Rizzo em Is-
tambul. “Finalmente percebi que a
razão pela qual senti tanta empatia
com aquela forma de dançar foi ter-
me dado a ver homens a dançarem
entre eles. E é tão anormal, hoje, as-
sociarmos homens à dança: as repre-
sentações masculinas habituais estão
sempre ligadas ao desporto, à caça,
à guerra, aos carros... E pelos vistos
nem sempre foi assim”, sublinha.
Ao longo do processo, formas tí-
picas desse repertório que vai do Sul
da Europa ao Mediterrâneo e ao Mé-
dio Oriente encaixaram-se — nem
sempre sem atrito — na prática de
um coreógrafo viciado “na queda e
no toque”. No final, Rizzo e os seus
intérpretes tinham verdadeiramen-
te descoberto “a alegria de poder
dançar em roda, de poder dançar
de mãos dadas, de poder dançar
num galope constante”, e a estranha
familiaridade de descender “de uma
comunidade que dança”.
É sobretudo disso que ele se lem-
bra agora, da alegria: “Não sei como
teria sido se tivesse feito esta peça
com um elenco misto — ou só com
mulheres. Mas sei o que aconteceu
com estes dez homens: foram mui-
to mais longe do que normalmente
vai um elenco que se junta apenas
para fazer um espectáculo. Torna-
ram-se um verdadeiro bando.”
O tipo de bando que joga à bola
no intervalo dos ensaios, sim. Mas
também o tipo de bando que dança
de mãos dadas.
“Não sei como teria sido com um elenco misto — ou só com mulheres. Mas estes dez homens foram mais longe do que normalmente vai um elenco. Tornaram-se um bando” Christian Rizzo
CONTACTOS Av. Brasília Doca de Alcântara (Norte) Tel. 213 585 200 [email protected] BILHETEIRA Tel. 213 585 244 [email protected] SERVIÇO EDUCATIVO Tel. 213 585 299 [email protected]
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16 | ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015
Um fi lme 3D de Cyprien Gaillard e uma instalação de Emmanuelle Lainé rasgam a paisagem discreta da Bienal de Lyon. Nestes dois trabalhos, a “vida moderna” é o passado a enformar o presente. E o presente a olhar para trás sem medo. Sim, vamos voltar a falar do Modernismo.
Duas obras de arte não fazem
uma bienal. Por muito boas
que sejam. Mas podem
abrir uma clareira funda-
mental. E a Bienal de Lyon
deste ano tem duas dessas
obras dentro — presenças excepcio-
nais no capítulo de estreia de uma
nova trilogia de edições temáticas,
desta vez dedicadas ao reequacio-
namento do “moderno”.
O impulso do tema geral de Lyon
traz pouca novidade. De resto, sur-
preende que se decida reconsiderá-lo
depois do marco constituído pela 12.ª
edição da Documenta de Kassel. “Is
modernity our antiquity?”, pergunta-
va a Documenta em 2007. Todo um
programa através do qual Roger M.
Buergel, o director artístico desse ano,
pretendeu recuperar o espírito da
primeira Documenta de sempre — a
de 1955. Então, no rescaldo da Segun-
da Guerra Mundial, Arnold Bode, ar-
tista e académico alemão perseguido
pelo Terceiro Reich, era um refugiado
de regresso a casa. Pensou aquela que
se tornaria numa das mais relevantes
mostras periódicas de arte do mundo
como olhar retrospectivo sobre o Mo-
dernismo. Uma maneira de apresen-
tar ao país aquilo que o regime nazi
banira como “arte degenerada”.
O Modernismo, pois: chegados ao
século XXI, é não apenas o Moder-
nismo como a própria ideia de Mo-
dernidade que ficam em causa na
pergunta de Buergel.
“A Modernidade é a nossa Anti-
guidade?” — em seis palavras lança-
va-se a possibilidade da passagem
de uma era de presente a passado.
Não uma era qualquer: a Moderni-
dade — que podemos defender co-
mo nossa, ainda em curso. Também
não um seu simples deslizar rumo
ao anonimato do esquecimento, an-
tes a sua ascensão a equivalente da
Antiguidade — a clássica, ali onde se
articulou o conceito do que o Oci-
dente entenderia como arte. Ou se-
ja, em seis palavras tratava-se de
declarar uma era como ciclo (re)
fundador que se abriu e fechou no
tempo, matéria passível já de revi-
sitação arqueológica.
Num brevíssimo texto, Buergel
explicou o que o levou à formulação
da pergunta: “É bastante óbvio que
a modernidade, ou o seu destino,
exercem uma influência profunda
nos artistas contemporâneos. Parte
da atracção pode derivar do facto
de ninguém saber realmente se está
viva ou morta. Parece estar em ruí-
nas depois das catástrofes totalita-
ristas do século XX (exactamente as
mesmas catástrofes que de alguma
forma instigou). Parece totalmente
comprometida pela aplicação bru-
talmente parcial das suas demandas
universais (liberdade, igualdade,
fraternidade) ou pelo simples facto
de a modernidade e o colonialismo
terem andado, e provavelmente ain-
da andarem, de mãos dadas. Ainda
assim, a imaginação das pessoas es-
tá cheia das visões e das formas da
modernidade (e não apenas da
Bauhaus, mas também de enquadra-
mentos teóricos transformados em
palavras-chave contemporâneas co-
mo ‘identidade’ e ‘cultura’). Resu-
mindo, parece que estamos tanto
dentro como fora da modernidade,
tão repelidos pela sua violência mor-
tal como seduzidos pelas suas mais
imodestas aspirações ou potenciais:
que possa, apesar de tudo, haver um
horizonte planetário para todos os
vivos e os mortos.”
Na Documenta, como agora em
Lyon, havia uma armadilha: a pos-
sibilidade da queda infértil na dis-
cussão sobre se os contextos euro-
peus que a partir de meados do sé-
culo XVIII levaram ao que se
entendeu como Mundo Moderno
desembocaram ou não, já na segun-
da metade do século XX, numa Pós-
ou Hiper-modernidade, segundo
proclamado por autores como Fran-
çois Lyotard, Zygmunt Bauman e
Gilles Lypovetsky. Depois de déca-
das de especulação e produção te-
órica à volta desta hipótese, Ralph
Rugoff, o comissário de Lyon, opta
por ignorar a discussão. Escolhe um
regresso a Baudelaire — o primeiro
dos modernos. E a sua preocupação
primeira é a distinção entre “Moder-
nidade” e “Modernismo”.
Sob o título La vie moderne — reti-
rado directamente de O pintor da
vida moderna (1863) —, Rugoff reflec-
te como a própria expressão “a vida
moderna” se tornou ambígua, encer-
rando hoje “uma assombrosa incer-
teza temporal”: “No uso quotidiano,
o adjectivo ‘moderno’ ainda implica
qualquer coisa de recente ou novo,
mas esta frase carrega uma longa
história que pode servir para indicar
o momento actual, mesmo quando
sugere uma relíquia de um tempo
ido”, escreve o curador num dos seus
textos para a bienal. Acrescentando
o que visou conseguir ao evocar Bau-
delaire: “Questionar — não tanto o
‘moderno’, mas a natureza do nosso
presente e o tipo de diálogos que es-
tabelece com o passado.”
Outra pergunta colocada por Ru-
goff e que intensifica problemáticas:
“O impulso para anunciar um corte
limpo com o passado, para instigar
a ruptura com a tradição é o gesto
modernista por excelência. Será en-
tão possível que o nosso desejo re-
corrente de declarar o fim da era
moderna seja, na realidade, mera-
mente um sintoma da modernidade
que aspira a enterrar?”
Já em Farewell to an Idea: Episodes
from a History of Modernism (1999),
o historiador norte-americano T. J.
Clark se antecipava à pergunta da
Documenta propondo o Modernismo
“O contemporâneo é emoldurado como um infinito horizonte do agora. Porém, está longe de ser um campo uniforme do novo e recente”Ralph Rugoff
ser ou
não ser?
Moderno:
Vanessa Rato, em Lyon
ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015 | 17
— e não a Modernidade — como a nos-
sa antiguidade. Nessa obra, Clark
propunha a ideia de uma ruptura ex-
trema: a de que talvez a relação ico-
noclasta do Modernismo com o seu
passado tenha sido tão absoluta que
nos tenha vedado qualquer possibi-
lidade de revisitar seja o que for antes
dele; a ideia de que se o Modernismo
se instituiu como guerra contra as
formas antigas talvez estejamos ago-
ra em guerra contra uma guerra; mas
também a ideia de que, se assim é,
então talvez estejamos a passar pela
secularização absoluta do homem,
e, com isso, a viver a completude
triunfante do moderno.
De acordo com esta tese, o ho-
mem contemporâneo perfilar-se-ia
como um ser em guerra diária con-
tra os fundamentos e a actualidade
da sua própria identidade. O mesmo
que declará-lo como agente do de-
sencantamento extremo.
Rugoff não segue essa exacta via.
Propõe um cenário mais generalista:
um em que as várias trajectórias do
projecto modernista enformam ainda
activamente as percepções e os mais
destacados temas do nosso tempo.
“Com demasiada frequência, o con-
temporâneo é emoldurado como um
tipo desenraizado de presente perpé-
tuo, um infinito horizonte do agora.
Porém, um exame ainda que fugaz
dos acontecimentos à volta do globo
revela que a nossa paisagem ‘contem-
porânea’ está longe de ser um campo
uniforme do novo e recente.”
É preciso, diz Rugoff, termos um
“sentido fluido” da forma como “vá-
rios momentos no tempo se ligam ao
momento actual, confrontando-nos
com ligações inesperadas entre
eles”.
Contra o desaparecimentoÉ difícil não pensar uma e outra vez
na mesma frase de Faulkner: o pas-
sado nunca morre, o passado nem
sequer é ainda passado.
O passado é uma dimensão crucial
do presente. Qualquer presente. E
demonstra uma estranha resiliência
contra o desaparecimento. Como diz
Rugoff, “não é fácil deixá-lo para
trás”. Talvez não seja sequer desejá-
vel, como sugerem os dois mais in-
teressantes trabalhos de Lyon. O
primeiro dos quais Nightlife, um fil-
me 3D de Cyprien Gaillard (Paris,
1980). Porventura, também, a mais
consensual das escolhas de Rugoff.
O assistente a oferecer óculos 3D
à entrada da sala pode perfilar-se
como pré-aviso para o desastre —
afinal, são raras as propostas em que
a escolha técnica pareça justificar-se
por adequação aos fins. Puro pre-
conceito neste caso em que todos
os temores caem por terra aos pri-
meiros segundos: Nightlife é uma
experiência profundamente sedu-
tora. Do princípio ao fim. E sob
Nightlife, de Thierry Gaillard, sobrepõe sucessivas referências: O Pensador de Rodin, o movimento de protesto contra a Guerra do Vietname, as quatro medalhas de ouro de Jesse Owens em Berlim...
18 | ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015
todos os pontos de vista — técnicos,
plásticos, conceptuais.
No início está O Pensador, de Ro-
din. Ou, mais concretamente, uma
das versões em bronze cuja execu-
ção o escultor supervisionou e que,
no filme de Gaillard, é uma presen-
ça monumental que aparece a rodar
pelo espaço, aparentemente ao al-
cance do nosso toque. Uma ilusão
fugaz. E que rapidamente se vê subs-
tituída por uma lenta cadência de
imagens de flores, plantas e árvores
fustigadas por ventos nocturnos. Pri-
meiro uma família de estrelícias co-
mo grandes pássaros de bico agudo
e coroas de plumas coloridas.
As imagens são densas e pausa-
das. Como uma coreografia com
gotas de água a saltarem dos corpos
e a desfazerem-se no escuro. E, de-
pois, há o entorno — talvez a entrada
de um prédio.
Em geral, deambulamos por pai-
sagens urbanas mais ou menos de-
soladas, desabitadas e áridas, povo-
adas apenas por um intenso motim
vegetal.
Aquilo a que assistimos podiam
ser danças rituais alimentadas por
drogas. Palmeiras, carvalhos e zim-
bros — todos numa espécie de tran-
se hipnótico. Até a intensidade dos
movimentos de uma série de árvo-
res contra uma vedação de arame
farpado insinuar urgência e violên-
cias maiores. Como se as plantas
procurassem na verdade libertar-se
dos grilhões impostos pela humani-
dade e pelas suas arquitecturas. Co-
mo se estivéssemos, na verdade, a
assistir a uma revolta.
E que estádio é este que estamos
agora a sobrevoar? E que evento ce-
lebra o enorme fogo de artifício com
que Gaillard termina o filme?
A sequência de imagens de Ni-
ghtlife é misteriosa e a imersão na
sua noite profundamente românti-
ca. É uma experiência sublime,
acentuada ainda pela hipnose do
pequeno trecho de uma canção que
se repete infinitamente. Umas vezes
é claramente audível, outras abafa-
do, longínquo, mas é sempre a mes-
ma frase: “I was born a loser” — “nas-
ci um perdedor”.
Podíamos ficar por aqui, instala-
dos nas incógnitas deste embalo da
mais pura fruição estética. No en-
tanto, a profundidade total do abis-
mo de Nightlife abre-se ainda mais
vasta com as narrativas por trás das
imagens.
Gaillard não oferece significados.
É preciso procurá-los. Por exemplo,
saber que as filmagens decorreram
tanto na Europa como nos Estados
Unidos. E que a versão usada de O
Pensador pertence ao Museu de Ar-
te de Cleveland.
A partir da sua realização, em
1880-1881, O Pensador passou, em
geral, a ser assumido como símbolo
do pensamento e do conhecimento,
nomeadamente do acto de reflexão
por trás da criação poética ou artís-
tica ( já que representaria Dante, o
autor de A Divina Comédia). Foi já
no arranque do século XX que se
tornou também num símbolo do
movimento socialista francês e da
luta pelos princípios gerais de justi-
ça social lançados pela Revolução.
Il paraît que le fond de l’être est en train de changer, de Emmanuelle Lainé: ao mesmo tempo uma instalação in progress e o seu próprio espelho
ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015 | 19
Liberdade, igualdade, fraternida-
de — as reivindicações da organiza-
ção norte-americana Weather Un-
derground, tida como de extrema-
esquerda, não fugiam a esta matriz.
Menos claros são os motivos por que
em 1970 esta facção dos Students
for a Democratic Society, apoiante
do black power e envolvida na fuga
de Timothy Leary da prisão, decidiu
dinamitar “O Pensador de Cleve-
land” em protesto contra a guerra
do Vietname. Seja como for, a peça
foi parcialmente destruída e nunca
foi restaurada. Assim, é com uma
versão dinamitada do pensamento
e da liberdade que Gaillard começa
o seu filme. E, desde logo, também,
com o refrão que nos acompanhará
até ao fim: “I was born a loser” foi a
versão inicial do tema que, por im-
posição da sua editora, o cantor ja-
maicano Alton Ellis acabou por gra-
var como I was born a winner.
A mudarDe perdedor a vencedor — era o espí-
rito dos tempos da luta pelos direitos
civis dos negros nos Estados Unidos.
E, no seu filme, Gaillard introduz qua-
se imperceptivelmente ambas as ver-
sões. O perdedor mais presente do
que o vencedor. Nomeadamente
quando sobrevoamos o estádio de
Berlim onde, nos Jogos Olímpicos de
1936, Jesse Owens ganhou quatro me-
dalhas de ouro, expondo ao ridículo
a ideologia do Terceiro Reich.
Nesse ano, para além das meda-
lhas, o comité olímpico ofereceu aos
atletas vencedores pequenos reben-
tos de carvalho. Owens plantou o
dele na Escola Secundária Rhodes,
em Cleveland, onde estudou e trei-
nou. É dos poucos (se não o único)
carvalhos do Comité Olímpico de
1936 ainda sobreviventes. O carva-
lho que no filme de Gaillard se vê
iluminado pela passagem de um he-
licóptero e que parece desmembrar-
se ao vento, com pedaços da casca
a voarem pelos ares.
Tal como toda a restante vegetação
— as estrelícias, as bananeiras, os
“zimbros de Hollywood”... —, é uma
presença exótica na paisagem norte-
americana — não-autóctone. Constitui
mais uma camada de significado e de
tempos acumulados sob a imensa en-
cenação orquestrada por Gaillard.
Ralph Rugoff refere como muitos
dos trabalhos da edição deste ano
da bienal “se deslocam inesperada-
mente de cenários actuais para re-
ferências históricas”. Nightlife é uma
dessas obras. Da mesma família alar-
gada de trabalhos em que “as ima-
gens do presente são uma espécie
de palimpsesto estratificado com
traços de momentos anteriores”. A
via de Emmanuelle Lainé (Paris,
1973).
O título da grande instalação que
a artista apresenta em Lyon propõe
desde logo uma grelha de leitura: Il
paraît que le fond de l’être est en train
de changer. À letra, é dizer que “pa-
rece que o fundo do ser está a mu-
dar”.
A natureza transitória do tempo,
do ser e do estar está em causa num
trabalho para o qual a artista traba-
lhou in situ durante três semanas,
ocupando a sua sala do Museu de
Arte Contemporânea com presenças
de naturezas e origens diversas. Plan-
tas artificiais, bidões industriais, bal-
des de tinta, uma vassoura, a mão de
um manequim a apontar algures pa-
ra o horizonte através de uma janela:
é o processo habitual de Lainé — tra-
balhar em estreita relação com a ar-
quitectura dos seus espaços exposi-
tivos; a acumulação.
Apesar do cuidado na composição
— notório, por exemplo, nas combi-
nações cromáticas —, podíamos es-
tar a entrar no atelier de um artista.
O caos ordenado podia correspon-
der a diferentes zonas de trabalho
com diferentes projectos em curso
e o fio de pensamento de uma mes-
ma pessoa como elo superior. Cons-
tituiria, por si só, uma narrativa
complexa e cheia de pequenas nar-
rativas dentro. No entanto, a reali-
dade do espaço de Lainé é estratifi-
cada de forma mais deliberada.
Enquanto foi arranjando e rear-
ranjando o espaço, à medida que
novos elementos surgiram e foram
introduzidos, Lainé fotografou dife-
rentes momentos de existência das
sua instalação in progress. Uma vez
ampliadas, essas imagens são agora
as duas maiores paredes da instala-
ção. Podiam ser espelhos. A não ser
por pequenas deslocações — um bal-
de branco simplesmente deixado
perto de um velho pano cheio de
tinta cor-de-rosa, o balde-espelho
bidimensional caído por terra junto
ao mesmo pano; uma vassoura de
palha bidimensional encostada a
uma parede, o seu espelho tridimen-
sional caído no chão; um pequeno
objecto de ferro que já só existe en-
quanto imagem, outro apenas tridi-
mensional... Um fresco contempo-
râneo com efeitos de trompe-l’oeil e
mise en abîme dentro.
Em última análise, podemos pen-
sar em objectos tornados imagem
e, depois, de novo devolvidos à sua
condição primeira de objectos. Po-
demos também imaginar este como
um processo ininterrupto, passível
de ser repetido uma e outra vez. Fi-
caríamos perante um momento in-
finito. Nunca exactamente igual.
Nunca radicalmente distinto.
É como a História. Como uma ci-
dade enterrada na areia — um dia a
areia é soprada e o que estava por
baixo vem subitamente à tona.
O passado nunca morre. O passa-
do nem sequer é ainda passado.
O Ípsilon viajou a convite da Bienal de Lyon
Muitos dos trabalhos da bienal “deslocam-se inesperadamente de cenários actuais para referências históricas”
Informações 21 790 51 55 · [email protected] · www.culturgest.ptTicketline Reservas e informações: 1820 (24 horas)��·��Pontos de venda: Agências Abreu, Galeria Comercial
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“Dá prazer ouvir e nunca é previsível. Não sinto que seja preciso pedir mais de um disco.” Mário Laginha sobre Detox, que estará na base do concerto desta noite.
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Sapateado, tensões que brotam e sonhos que regressam à vida num espetáculo a que o New York Times chamou “encantadoramente excêntrico”, servido pela escrita irónica e generosa de uma das mais entusiasmantes criadoras nova-iorquinas.
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20 | ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015
Doze anos, 20 números, 136 colaboradores: a Telhados de
Vidro é definitivamente mais do que o brinquedo de um grupo de
amigos
A Telhados de Vidro, dirigida
pelos poetas Manuel de
Freitas e Inês Dias, editores da Averno, chegou
ao seu 20.º número, um
volume de quase 250 páginas
que inclui, em separata, um
livro de Adília Lopes. É talvez
a mais relevante revista literária
portuguesa deste início do século
XXI.
Uma
com qualidadesLuís Miguel Queirós
revista
ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015 | 21
De Herberto Helder ou An-
tónio Barahona a Adília
Lopes e José Miguel Silva,
a revista Telhados de Vidro
acolhe um elenco de cola-
boradores demasiado di-
versificado para poder ser conotada
com um qualquer movimento, mas
também não é tão ecléctica que se
torne anódina. É exigente no plano
gráfico, mas evita a exuberância.
Tem na poesia o seu centro de gra-
vidade, mas dá espaço a todo o gé-
nero de textos. A sua dimensão po-
lítica é notória, mas os seus autores
cobrem todo o espectro ideológico.
Lançada em 2003 pelos fundadores
da então recém-criada editora Aver-
no, os poetas Manuel de Freitas e
Inês Dias, chega agora ao seu 20.º
número, uma longevidade assinalá-
vel para uma revista que faz questão
de não receber quaisquer apoios,
salvo aquele que resulta das colabo-
rações (sempre inéditas) enviadas
pelos autores convidados.
O número inaugural tinha 11 cola-
boradores e 90 páginas. Doze anos
mais tarde, este número 20 que ago-
ra chega às bancas (às poucas bancas
que distribuem a revista), tem 41 co-
laboradores e 238 páginas, e oferece
ainda em separata um livro inédito
de Adília Lopes, Comprimidos.
A sobrevivência e a consolidação
da revista não surpreendem o poe-
ta e dramaturgo Jaime Rocha, seu
colaborador regular: “É das poucas
ilhas poéticas que existem no país,
e é uma ideia diferente de revista,
que consegue uma junção pouco
habitual da qualidade dos textos
com a qualidade gráfica.” Daí que
os autores tenham prazer em cola-
borar, argumenta, dando o exemplo
da romancista Hélia Correia, sua
companheira: “Nunca tinha pensa-
do em colaborar, mas quando a con-
vidaram pela primeira vez, como já
conhecia a revista, ficou entusias-
madíssima.” E agora, “de cada vez
que a convidam”, conclui, “saem-
lhe sempre bons poemas que de
outro modo não escreveria”.
Os poemas de Hélia Correia que
integram este último número con-
firmam-no. Um deles, escrito a pre-
texto da morte de Herberto Helder,
é mesmo um dos momentos altos
da revista: “(...) Julga que o apa-
nhou: não apanhou./ Opera no va-
zio. E não lhe chamo/ nem cabra
nem cadela, esses abusos/ vocabu-
lares das imprecações./ Não terá
nome de animal, de algo que possa/
agarrar-se ao meu peito e comover-
me./ Não terá nome algum. (...)”.
Este agigantado número 20, no
qual também Jaime Rocha participa
com mais um ciclo do conjunto An-
jos Tardios, dá bem ideia da quali-
dade, mas também da variedade
estética, geracional, e até geográfica
dos colaboradores. Num inventário
necessariamente resumido, refiram-
se poetas que se estrearam na déca-
da de 70, como A. M. Pires Cabral,
Helder Moura Pereira, Paulo da Cos-
ta Domingos, Emanuel Jorge Botelho
ou Fernando Guerreiro, autores dos
anos 80, como Rui Baião ou José
Carlos Soares, e ainda nomes mais
recentes, do próprio Manuel de Frei-
tas a Rui Pires Cabral, João Almeida,
Miguel Martins, Renata Correia Bo-
telho ou Tiago Araújo.
A estes e outros autores vêm ain-
da juntar-se três recomendáveis po-
etas brasileiros: Fabio Weintraub e
Pádua Fernandes, ambos na casa
dos 40 anos, e Luca Argel, nascido
em 1988. De modos diversos, todos
eles partilham dessa energia inven-
tiva que marca muita da lírica bra-
sileira recente, mas doseada por
uma aspereza e uma violência que
os afasta das tendências mais feéri-
cas e culturalistas de alguns dos seus
conterrâneos.
Como em todos os números da Te-
lhados de Vidro, não faltam também
traduções de autores estrangeiros:
poemas do norte-americano Gerard
Malanga, o poeta-dançarino-fotó-
grafo que fundou com Andy Warhol
a revista Interview, da romena fran-
cófona Linda Maria Baros, do argen-
tino Mariano Peyrou, e ainda duas
cartas de Novalis.
Os textos em prosa que fecham a
revista não são menos variados: An-
tónio Barahona partilha as suas Pon-
derações àcêrca do paradoxo da fé,
Isabel Nogueira reflecte sobre a ima-
gem cinematográfica, Maria Filome-
na Molder assina um ensaio intitu-
lado Amor do longínquo, obediência
à proximidade, e Manuel de Freitas
redige mais um dos seus Incipit —
um ciclo dedicado a livros de estreia
notáveis —, lembrando desta vez a
Lírica Consumível (1965) de Arman-
do Silva Carvalho.
O inventário das colaborações é
tão heterogéneo que permite adivi-
nhar que o método de organização
da revista é um tanto peculiar: “Ca-
da número é sempre uma incógnita:
dos 20 ou 30 autores que convida-
mos, nunca sabemos qual vai ser ao
certo o elenco final, nem o que ire-
mos receber”, explica Manuel de
Freitas. A regra é simples: o convi-
dado manda o que quiser, poema,
ficção, ensaio, ele é que sabe. Às ve-
zes corre manifestamente bem.
Veja-se o número 4, ao qual Herber-
to Helder fez chegar duas notáveis
prosas inéditas, enquanto Joaquim
Manuel Magalhães enviava o longo
poema Homossexualidade, talvez um
dos textos mais importantes que a
revista até hoje publicou.
Que nesta diversidade de vozes se
pressinta ainda assim uma coerên-
cia essencial, só pode dever-se aos
critérios de escolha dos organizado-
res, que Freitas resume com laco-
nismo: “Escolhemos autores de
quem gostamos.” Só que este “gos-
tar” não se restringe à apreciação
da obra. “Há um lado ético que está
para lá do texto: só convidamos al-
guém cuja postura ética nos inspire
alguma cumplicidade, e isto tanto
vale para poetas como para ensaís-
tas ou tradutores”, assegura.
“Postura ética” não tem aqui qual-
quer conotação político-ideológica.
Freitas acha, aliás, que “é impossível
definir em termos políticos” uma
revista que inclui autores “muito
alinhados à esquerda”, mas também
“monárquicos, conservadores ou
anarquistas”. O que interessa, diz,
é que sejam “coerentes com as suas
opções, como o António Manuel
Couto Viana o era à direita, ou o João
Almeida o é à esquerda”.
Se olharmos para o já extenso rol
de 136 colaboradores da revista, uma
das linhas de força das escolhas dos
seus editores parece ser o desejo de
recuperar bons poetas que tinham
saído um pouco de cena, como Fáti-
ma Maldonado, Carlos Poças Falcão,
José António Almeida ou Gil de Car-
valho, para citar apenas alguns nomes
de qualidade mais indiscutível.
Ao mesmo tempo, a Telhados de
Vidro tem divulgado muitos poetas
da geração de Manuel de Freitas,
alguns um pouco mais velhos, co-
mo Vítor Nogueira, Ana Paula Iná-
cio, Rui Pires Cabral, José Miguel
Silva ou Miguel Martins, e outros
mais novos, como Renata Correia
Botelho, Miguel-Manso ou Diogo
Vaz Pinto, mas não parece andar
muito à procura de novos talentos.
“Não temos editado muitos poetas
com menos de 30 anos”, reconhe-
ce Freitas. “Não aparecem natural-
mente com a qualidade que o jus-
tificasse e não vale a pena estar a
inventá-los: há tanta gente a escre-
ver bem e tanta coisa a merecer ser
traduzida...”.
Agitar as águasAos autores literários da revista,
juntam-se os artistas convidados a
colaborar nas capas, que incluem
nomes como Lourdes Castro, Carlos
Nogueira, Pedro Calapez, Luis Ma-
nuel Gaspar, Adriana Molder ou Lu-
ís Henriques, entre muitos outros.
Uma variedade que, também no pla-
no visual, não põe em causa a coe-
rência da revista, cujo arranjo grá-
fico foi concebido pelo principal
cúmplice de Manuel de Freitas e
Inês Dias na fase inicial do projecto,
Olímpio Ferreira, que morreria pre-
cocemente em 2007.
“Creio que há uma harmonia no
modo como as várias capas convi-
vem, e que essa unidade em coisas
tão diversas, que incluem desenhos,
colagens, fotografias, se deve muito
ao trabalho gráfico do Olímpio”, diz
Luis Manuel Gaspar, observando
que a Telhados de Vidro “tem uma
lógica de sobriedade, de não osten-
tação, mas é feita com um cuidado
invulgar”.
Convidado para ilustrar o número
inaugural da Telhados de Vidro, Gas-
par colaborou ainda em vários nú-
meros como poeta, e assina agora a
capa do livro-separata de Adília Lo-
pes, para a qual desenhou uma bela
cabeça de gato. “Quando me convi-
daram, achei que teria graça unificar
as duas capas em volta dos gatos”,
diz, referindo-se à capa deste núme-
ro 20, para a qual Daniela Gomes
desenhou também um gato preto,
empoleirado numa poltrona. Para
se perceber as pequenas cumplici-
dades mais privadas de que também
se tece a revista, tem graça sabermos
que o modelo do gato de Gaspar é a
gata de Daniela Gomes, Anita, e que
o gato que esta desenhou é por sua
vez o saudoso Barnabé, de Manuel
de Freitas e Inês Dias, e que a pol-
trona é a de Mário Botas, que a pin-
tou com um dos seus galgos enros-
cados no assento.
Quando mostraram a Gaspar o
projecto da Telhados de Vidro, este
diz ter-se lembrado dos esforços de
Vítor Silva Tavares para ressuscitar,
em meados dos anos 80, a velha re-
vista & etc, que dirigira em 1973 e
1974. “A Telhados de Vidro tem uma
personalidade bem vincada, mas
acho que há uma espécie de passa-
gem de testemunho, como se a re-
vista que Vítor Silva Tavares não
conseguiu fazer nos anos 80 se ti-
vesse materializado de outra forma
20 anos mais tarde”, disse ao Ípsi-
lon, sem saber que o histórico editor
de Herberto ou Luiz Pacheco já só
teria um dia de vida.
Mas se o espírito da & etc pode ter
ressurgido na Telhados de Vidro, tal-
vez seja legítimo encontrar um pre-
cedente mais próximo na efémera
revista As Escadas Não Têm Degraus,
que António M. Feijó, João Miguel
Fernandes Jorge e Joaquim Manuel
Magalhães dirigiram para a Cotovia
entre 1989 e 1991. O formato e a or-
ganização têm algumas afinidades
e as duas publicações partilham vá-
rios autores.
Absurdo é querer continuar a ver
numa revista cujo elenco de colabo-
radores já soma 136 nomes “o órgão
dos poetas sem qualidades”, expres-
são em tempos usada por um críti-
co. Se no primeiro número podiam
ainda pressentir-se alguns ecos da
polémica gerada pelo prefácio que
Manuel de Freitas escrevera pouco
antes para a sua antologia Poetas
Sem Qualidades (2002), a Telhados
de Vidro rapidamente demonstrou
que visava bastante mais alto do que
servir de brinquedo a um grupo de
amigos apostados em irritar os Dan-
tas dos nossos dias.
Se privilegiarmos a qualidade dos
autores, a mistura de criação e re-
flexão, a consistência editorial e grá-
fica, a vontade de intervir no pre-
sente e de agitar (e separar) algumas
águas, mas também a reavaliação
crítica do cânone literário mais re-
cente, é até difícil não reconhecer
na Telhados de Vidro a revista literá-
ria portuguesa mais relevante sur-
gida nesta primeira década e meia
do século XXI.
“Há um lado ético que está para lá do texto: só convidamos alguém cuja postura ética nos inspire alguma cumplicidade”Manuel de Freitas
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22 | ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015
O décimo romance de Bernardo Carvalho é sobre a incapacidade de comunicar este presente incessantemente mutante e narcisista. Reprodução põe o dedo na ferida do debate político pós-Internet, o lugar do lugar-comum.
A Internet cria “um leitor mais burro e mais violento”
Isabel Lucas
Bernardo Carvalho estava a
viver em Berlim quando o
convidaram a escrever um
conto para os dez anos da
Festa Literária de Paraty. O
sentido de urgência que o
levou a escrevê-lo não se esgotou e
o conto tornou-se um romance, Re-
produção. É uma reacção a este mun-
do que privilegia o discurso único e
a leitura de primeiro grau, e a esta
ideia de que existe uma verdade,
quando a democracia tem pouco a
ver com absolutos.
Num aeroporto, um homem é de-
tido. É um brasileiro, estudante de
chinês, que as autoridades associam
a um caso de tráfico. A acção do dé-
cimo romance de Bernardo Carva-
lho — vencedor, a par com Dalton
Trevisan, do prémio Portugal Tele-
com em 2003, com Nove Noites (Co-
tovia) — desenrola-se à medida que
o monólogo do estudante de chinês,
leitor de blogues, activo nas redes
sociais, entra num ritmo alucinado,
em que ele despeja informação, ma-
nifesta opiniões e defende uma coi-
sa e o seu contrário de forma tão
convicta quanto irritante. O prota-
gonista serve a Bernardo de Carva-
lho, o escritor de 55 anos natural do
Rio de Janeiro, para compor um ro-
mance de denúncia irónico, inquie-
to e angustiante no modo como ex-
põe manifestações de linguagem e
através delas faz o retrato de uma
época para a qual parece faltar um
discurso à altura.
Este romance parece ter
nascido de um impulso. Foi
assim?
Sim, um pouco por uma urgência
que veio de uma observação políti-
ca. Acabei reconhecendo em pesso-
as que abomino, em discursos que
odeio, coisas com as quais concor-
do. Acontece ouvir alguém, estar de
acordo e acompanhar o discurso,
acreditando que é bom, e de repen-
te dar-me conta de que quem falava
era um representante da extrema-
direita, por exemplo. Essa mobili-
dade dos discursos, o terem saído
do lugar de conforto no qual eu po-
dia reconhecê-los, inquieta-me.
O seu estudante de chinês diz
que “a contradição é a força e
a fraqueza da democracia”. O
livro interroga-se sobre o que
acontece quando se acaba com
o contraditório no discurso.
Também no discurso ficcional?
Claro. A grandeza da democracia é
que se pode conviver com a contra-
dição. Nas sociedades autoritárias
existe uma deliberação única de
uma fonte única. Uma vez entrevis-
tei o Lévi-Strauss e ele dizia que a
grandeza e a fraqueza das socieda-
des ocidentais é que elas trazem
dentro um gene suicida. A sua gran-
deza é mostrar a própria vulnerabi-
lidade. Mas ao mesmo tempo isso
possibilita muitos extremismos. Co-
mmmmm
Reprodução
Bernardo
Carvalho
Quetzal
Bernardo Carvalho vem de um país “sem leitores”, o Brasil: “No livro há esse desespero de uma língua, de uma escrita feita para um mundo que não quer recebê-la”
ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015 | 23
mo é que uma sociedade que defen-
de os direitos humanos faz o que faz
com os palestinianos, por exemplo?
Há muitas contradições internas que
enfraquecem o próprio discurso da
democracia. Vejo uma espécie de
oportunismo generalizado de apro-
priação dos discursos, o que é mui-
to assustador. O livro não apresenta
solução; é o retrato dessa perplexi-
dade e desse incómodo; dessa im-
potência perante a apropriação dos
discursos que antes estavam bem
definidos.
O discurso está sempre em
forma de monólogo. Essa
escolha pretende sublinhar
uma ilusão de diálogo?
É outra urgência. Não há a fala de
um interlocutor. Expressa a ideia da
Internet, um lugar de espelho em
que se acha que se está numa rela-
ção com o outro e na verdade se
está sempre a reproduzir o mesmo.
É quase uma relação narcisista.
Falta o contraditório?
Exacto. Tudo o que é contradição
você apaga. Parece que há abertura
ao outro mas só se procura o mes-
mo. Posso aprender algumas coisas,
mas estão sempre dentro de uma
circunscrição que já domino por
antecedência. É uma espécie de es-
paço hedonista e isso é muito per-
verso porque a partir do momento
em que se entra nisso é como uma
droga; é uma fonte de prazer abso-
luto e elimina qualquer necessidade
de esforço, de contradição.
Ilusão de companhia; ilusão
de conhecimento; ilusão de
opinião; ilusão de informação;
ilusão sobre a capacidade do
discurso actual para reflectir
a realidade actual. Há uma
incapacidade de comunicar?
Acho que sim. Parece que com esta
proliferação de opiniões todo o
mundo passou a se expressar e no
final talvez não haja muita diferença
entre os milhões de opiniões; elas
acabam no lugar-comum.
É a tal reprodução de que fala
o título?
É. Mas iludida. As opiniões são in-
satisfatórias. Isso é estranho. Dá
uma sensação de incompletude, de
uma opacidade que não permite que
se enxergue o mundo de verdade.
E é infinito.
Qual é a sua relação com a
Internet?
Sou viciado. Não passo dez minutos
fora da Internet. Sou um doente.
Quis dar a perspectiva crítica de
uma situação na qual estou realmen-
te perdido.
Os jornais e os meios de
informação que têm função de
mediar a realidade passaram a
ser decididos pelos leitores, com
o mercado a definir conteúdos
e o leitor a transformar-se em
decisor. Se o leitor não gostar, o
jornal não dá.
É muito perverso. O princípio seria
mais democrático. Questiona-se a
autoridade do jornal porque tem na
origem um interesse económico pre-
ciso. A ideia é que a Internet pulve-
riza essa autoridade dos media, o
que parece bom, dá um sentido de
democratização à informação, mas
perdem-se noções de hierarquia,
padrões, modelos, e é difícil estabe-
lecer qualquer tipo de diálogo se
não houver um parâmetro. Esses
parâmetros perderam-se na bara-
funda de opiniões e de informações
e acreditamos em absolutamente
tudo o que se publica na Internet.
Talvez isso estivesse nos media, mas
lá há mediação, uma auto-censura
que não permite reproduzir qual-
quer coisa. Isso põe muitas coisas
em causa, sobretudo a ideia da ver-
dade, é como se fosse uma segunda
natureza.
Há uma interrogação sobre a
função do romance quando
uma personagem remete
o género para um lugar de
facilidade, que não reflecte
nem reage à realidade...
Tenho uma relação com a ficção li-
terária um pouco semelhante à de
uma religião, quase dogmática.
Acredito que se pode chegar à ver-
dade por meio da literatura. Acho
que a verdade só pode ser alcançada
de uma maneira indirecta, transver-
sal, mediada, e vejo a literatura co-
mo uma forma de reflexão muito
sofisticada. Uma forma não só de
retratar a realidade, ou de ser refle-
xo da realidade, mas também de
aceder à verdade. Com a Internet
isso foi pelo ar, não há ironia. É sem-
pre um discurso de primeiro grau.
Cria leitores iletrados para a litera-
tura, para a ironia, para a reflexão.
A Internet muda o leitor?
Muda, mas para um leitor mais bur-
ro e mais violento. É o mesmo leitor
que não suporta ver uma caricatura
do profeta Maomé, que a ficção pos-
sa ser uma reflexão sobre a realida-
de e não a própria realidade. Acho
assustador esse leitor que a Internet
incentiva, sem instrumentos para
entender a ironia e o distanciamen-
to. A ideia de romance que defendo
é uma resistência a essa facilidade,
a essa naturalidade da Internet. O
romance, como o entendo, é um
instrumento de guerra contra a per-
cepção naturalista do texto em ge-
ral, como se a letra fosse necessaria-
mente a verdade e não uma reflexão
sobre o mundo. Faço isso ao mesmo
tempo que brinco, que vou dizendo
coisas de que discordo com muita
convicção. Quanto mais eu dizia coi-
sas horríveis, mais prazer eu tinha,
mais feliz eu ficava. Ia escrevendo
aquilo como se fosse um vómito, e
foi com muito prazer.
O modo como o faz torna
difícil distinguir autor de
personagem. Alguma vez sentiu
essa colagem de identidade?
A aventura e o risco eram justamen-
te esses, me confundir nessa voz hor-
rível. Há um pouco de autobiografia,
ele diz algumas coisas em que acre-
dito, e também estudei chinês, tam-
bém tive uma professora como a
dele. E ele vai perdendo a ironia, o
riso se esvai numa espécie de des-
conforto e mal-estar. Nos discursos
do horror é difícil detectar fronteiras.
É aí que está o horror. Tudo vem da
inabilidade de discernir onde está o
bem e onde está o mal.
Já escreveu muito sobre o
Oriente, volta lá agora para
encontrar o sítio de que se
tem medo, o sítio da língua
do futuro, sem memória, sem
passado. Porquê?
Há uma personagem que diz que
quantas mais línguas houver no mun-
do menos chances há de o ser huma-
no desaparecer, e que quanto menos
línguas houver mais o ser humano
fica vulnerável. Eu queria falar de
uma certa pasteurização pela língua.
Podia ser o inglês, mas escolhi o chi-
nês porque era uma língua periférica
para o Ocidente e ganhou hegemo-
nia. Hoje é uma língua do poder. Há
a ideia da língua absoluta, que se im-
põe e vai destruindo as outras, tor-
nando o homem mais vulnerável
pela falta de diversidade. O português
fez isso com as línguas indígenas. O
Brasil tinha centenas de línguas que
foram desaparecendo.
O estudante diz: “o que eu
estou querendo dizer só poder
ser dito na língua do futuro”.
Esta incapacidade da língua em
relação ao presente de que fala
inquieta-o?
Como escritor, o que toca mais é a
ideia da língua escrita. No Brasil isso
é muito peculiar, sendo um país ile-
trado. Escrevo num país onde não
se lê. Por um lado, há uma coisa in-
teressante, de que pode ser um ex-
celente exemplo o Machado de Assis
quando escreveu o Memórias Póstu-
mas de Brás Cubas e passou dos ro-
mances mais tradicionais para uma
espécie de revolução: ele teve cons-
ciência de que não devia nada a nin-
guém e isso deu-lhe liberdade de
escrever uma coisa revolucionária.
Mas há também uma angústia de
fundo: escrever sem leitores, escre-
ver para um mundo que não lê. No
livro há esse desespero de uma lín-
gua, de uma escrita feita para um
mundo que não quer recebê-la. É
como se fosse uma teimosia, uma
resistência.
“A Internet é um lugar de espelho em que se acha que se está numa relação com o outro e na verdade se está sempre a reproduzir o mesmo”
ENRI
C V
IVES
-RU
BIO
24 | ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015
Livr
os
Poesia
Uma inclinação musical para a quedaUma antologia
suficientemente ampla e
produtiva para permitir uma
releitura, ou a descoberta,
de um dos mais importantes
poetas revelados nas últimas
décadas. Hugo Pinto Santos
Sunny Bar
Manuel de Freitas
(Org. Rui Pires Cabral)Alambique
mmmmm
“A poesia”,
escreveu Sartre,
“é um quem
perde ganha. E o
poeta autêntico
escolhe perder, a
ponto de morrer
para ganhar”.
Seria decerto
ínvio arriscar um lema desta
concisão para alguém com um
percurso de poesia tão importante
e amplo quanto o de Manuel de
Freitas. No entanto, nas palavras
do autor de O Ser e O Nada
encontram-se pistas que se podem
revelar úteis na leitura desta
poesia. Poderíamos começar por
propor a perda como princípio
norteador, ou pelo menos passível
de organizar uma leitura mais ou
menos abrangente, como a que
aconselha uma antologia. Perda
da própria vida, mas também
aquela que atinge as palavras,
incapazes de deter esse terramoto
em constante anúncio, até à
aniquilação final. No que se
descreve o arco da existência,
muito mais do que da
“vidinha” — que pode ou não
estar em casa nos versos de
Manuel de Freitas. A morte de
que, por fim, se trata, naquele
trecho, é elemento axial do ganho
que, uma vez postulado, regressa
ao outro cabo da equação para
tornar a ser perda. Uma proposta
que talvez encontre não se dirá
apaziguamento mas uma breve
ilustração em Cronofobia (Assírio
& Alvim, 2002) – “Sou
contemporâneo de Villon/ e
escrevo às vezes a Montaigne,/
arguto mas demasiado absorto/ no
renome e na sabedoria instável/
dos seus livros anotados.” O teor
ironicamente trans-histórico deste
poema não autoriza a supor uma
concepção indulgente do sujeito
como entidade que viva acima das
suas possibilidades terrenas.
Tanto mais que a corrente irónica
que percorre estes versos mais
não fará do que adensar-se até ao
último verso, onde já aflora a
“mão que nunca lerá José
Saramago”. O que, de resto,
apenas sai reforçado pela
referência a Montaigne, que crava
neles a qualidade “ondulante e
diversa” com que o francês
descreveu o homem. Eis,
portanto, quase um paradigma
para a situação daquele que fala
pelo poema. A morte e a
inviabilidade da vida (na sua
incapacidade de ser fixada, ou
simplesmente fruída) convergem
para alguém que, mais do que
elevar-se acima do tempo, o sofre.
Conforme defende, de forma
modelar, Silvina Rodrigues Lopes,
espaços como o da taberna
salvam-se de constituírem
alegorias porque se tornam
“pedaços de sensações que
apagam as histórias que os
poderiam demarcar” (p. 197).
Motivo pelo qual aquele
enquadramento nem se diaboliza,
nem se eleva a uma condição
mitificadora que está claramente
vedada pela razão medida dos
versos — mesmo se eles
assentam em experiências, ou
na recriação delas, marcadas
pela disrupção e por estados
anímicos vizinhos da abjecção e
da náusea. O “conluio/ diário de
taberna” (p. 11) explicitamente
denuncia a venalidade daquele
suposto altar, através da assunção
do ar consumido que por ali
circula. A taberna é, então, apenas
um dos espaços eleitos para a
problematização do que é, no
fundo, uma só questão — “Porque
isto/ que não passa, sabemo-lo
bem, é a vida// ou a morte, uma
perda que dura/ e não se apaga
assim, sob um cerco de navalhas
ou de inúteis, vigorosos/
sentimentos.” (p. 43) A sequência
“a vida// ou a morte”, apesar do
artifício rítmico e gráfico da
mudança de estrofe (ou também
por ele), demonstra-no-lo. Vida e
morte são a mesma causa. O
ritmo, a posição dos vocábulos, no
tecer e articular da frase e do
verso, dão a forma harmonizada e
a musicalidade a um caos nunca
enjeitado, nunca sobremaneira
buscado. Quanto aos vivos, eles
são descritos como “mortos
imperfeitos” (p. 103). Mas assim
como a morte é “essa certeza
improvável” (p. 48), também a
vida é o indizível. Não no sentido
de um excesso de dados e
empenho pessoal do sujeito num
projecto que o deixe assoberbado,
mas pela inviabilidade das
definições mais absolutas e
positivas do que ela seja — “O
resto, a vida, fica para outra vez.”
(p. 37) Porque não há como
abarcá-la, como dizê-la.
Retomando as palavras de Sartre,
dir-se-ia que Manuel de Freitas é
um poeta autêntico porque a
perda que a sua poesia tão
amplamente tematiza é levada até
às últimas consequências. Isto
é: o ponto em que a morte se
ausculta, com lucidez e sem
dramaticidades deslocadas,
no pleno pulsar da vida. O que dá
sentido ao vivido enquanto
projecto congeminado num
horizonte parco que,
necessariamente, trava a
totalidade da expansão, mas
também concentra nos momentos
efectivamente experienciados o
fulgor possível de uma
determinada clarividência.
Sunny Bar não é a primeira
antologia que se realiza da poesia
de Manuel de Freitas; é, na
verdade, a quinta. Cabe, no
entanto, referir que esta recolha,
organizada por Rui Pires Cabral, é
a segunda editada nestes moldes
em Portugal. A primeira
colectânea antológica da poesia
do autor foi organizada pelo poeta
e crítico espanhol José Ángel
Cilleruelo: El Cielo del
Occidente (Calambur, 2004).
A seguinte viu a luz do outro
lado do oceano, por mão do poeta
e crítico brasileiro Luis Maffei:
Poemas de Manuel de Freitas,
Portugal, 0 (Oficina Raquel,
2007). Maffei foi, ainda,
responsável pela mais recente
antológica do poeta: Manuel de
Freitas — Ciranda da Poesia
(EdUERJ, 2014). Entre nós,
publicou-se, antes de Sunny Bar, A
Última Porta, com selecção e
posfácio de José Miguel Silva
(Assírio & Alvim, 2010). Sem
querer fazer uma tempestade num
copo de água com esse simples
dado, talvez não seja um acaso
que todos os organizadores das
referidas obras fossem poetas.
E, possivelmente, não menos
significativo, em dois casos
poetas-críticos. Em relação a
esta última estirpe, como diz o
poeta irlandês David Wheatley
(também ele um representante da
espécie), “existe a tentação de
ler o hífen como um sinal de
subtracção”. Mas é certo que a
leitura selectiva e necessariamente
opinativa de um poeta (crítico ou
não) será, com grande
probabilidade, uma operação de
interesse acrescido. Pese embora
aquilo que T.S. Eliot apelidou
(com acrimónia) de “workshop
criticism”, ou seja, uma visão
afunilada e paroquial da poesia
dos outros praticantes dela, não é
difícil conceber para estes poetas
e críticos uma visão peculiar e
lúcida da poesia de um outro
poeta.
No caso de Rui Pires Cabral, as
posições e as escolhas não se
explicitaram, ao contrário do que
sucedeu com José Miguel Silva —
ainda que este resumisse as suas
opções com uma característica
secura epigramática: “Sobre a
selecção dos poemas não tenho
muito a dizer. Escolhi
simplesmente os que me parecem
melhores, com toda a
subjectividade própria duma
ciência tão inexacta como é a do
gosto literário.” Em Sunny Bar,
Rui Pires Cabral não fez
Manuel de Freitas é um poeta autêntico no sentido em que leva a perda, que a sua poesia tão amplamente tematiza, até às últimas consequências
INÊS DIAS
ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015 | 25
acompanhar os poemas por si
escolhidos de quaisquer
palavras justificativas ou que
evitassem esse protocolo. (O
exemplar posfácio de Silvina
Rodrigues Lopes fornece um
contraponto crítico que ostenta a
marca da invulgar penetração
daquela ensaísta.) Se poderá
lamentar-se que Rui Pires Cabral
não tenha dito mais, há, por outro
lado, que arriscar alguma coisa e
pensar num poeta que encontrou
a sua bússola em certo
refreamento expressivo e no
controlo da subjectividade que tão
discretamente se acende na sua
poesia.
Os poemas antologiados
compreendem-se entre o livro de
estreia de Freitas, Todos Contentes
e Eu Também (Campo das Letras,
2000), e Ubi Sunt (Averno, 2014).
De fora ficam algumas
plaquettes, edições de autor e
publicações de circulação
mais ou menos restrita. O que
não impede que Rui Pires
Cabral tenha recolhido
composições provenientes de 25
livros diferentes. Uma produção
que não se pode dizer que seja
habitual num poeta estreado há 15
anos e na qual é possível detectar
tendências evolutivas, como as
estudadas pelo ensaio de Silvina
Rodrigues Lopes que encerra
Sunny Bar — “o
desaparecimento de um certo
tipo de ironia que se vai
dando em livros posteriores”
(p. 197) —, mas também linhas de
força que percorrem toda a sua
escrita — “noite e música são
carne das palavras, e não apenas a
resposta auto-hipnótica à vontade
de esquecimento” (p. 190);
“Qualquer expressão reconhecível
trazida para o poema vem atraída
pelo seu movimento
descontextualizador, pela
perturbação dos vínculos a um
antes referenciável” (id.).
O passado espera-nos amanhãA enorme poesia do catalão
Joan Margarit numa edição
prodigiosa. Maria da
Conceição Caleiro
Misteriosamente Feliz. Uma
Antologia
Joan Margarit
(Org. Miguel Filipe Mochila)Língua Morta
mmmmm
A Língua Morta
editou uma
antologia
bilingue de
poemas escritos
entre 1970 e 2015
por Joan
Margarit, um dos
poetas maiores
dos nossos tempos. Catalão,
nascido em 1938, está traduzido
em diferentes línguas, do
castelhano ao euskera, do inglês
ao alemão, do russo ao hebraico.
Em português, idioma em que
apenas estava publicado Casa da
Misericórdia (OVNI, 2009), surge
agora esta edição prodigiosa. Para
além de um curto prefácio do
autor, encontramos notas úteis de
tradução e um longo posfácio (As
casas e as perdas — notas para uma
leitura da poesia de Joan Margarit)
que lança os alicerces do mundo
deste poeta. E ainda uma
biobibliografia no final.
Poeta e arquitecto, Joan
Margarit é uma figura culta, íntima
e cosmopolita no que convoca,
desprendendo do singular uma
ressonância universal, uma
reverberação que deixa cada
semente modesta a vibrar
longamente dentro do leitor; é um
fazedor de frátrias, e aí reside a
sua maior diferença face ao
quotidiano sem mundo dos
demais. De resto, é ele o tradutor
da sua própria poesia (ou, melhor,
o conversor da sua própria poesia,
posto que habita duas línguas
suas: o castelhano e o catalão).
Nela, há diversos dados
autobiográficos (pessoais,
geracionais, políticos) que podem
reconhecer-se com facilidade: teve
quatro filhos, três raparigas e um
rapaz, mas morreram dois (Anna
pouco depois de ter nascido, em
1967; Joana, que sofria de uma
doença genética rara e de origem
desconhecida, o Síndrome de
Rubinstein-Taybi, com um cancro,
aos 30 anos). Também por isso, a
morte está presente sob cada
passo.
O húmus que acolhe a semente
desta poesia — e quase em
simultâneo, em paradoxo a faz
deflagrar — é uma espécie de
tristeza mansa, uma maneira de
amar suspendendo o longínquo,
uma dor ou uma sabedoria vegetal
do tempo, do envelhecimento, da
ruína pré-anunciada e já
vivenciada de tudo. O que se
traduz antes de mais no uso do
imperfeito (a duração infinda) e
numa textualidade aparentemente
natural mas de facto feita de uma
manipulação de certos recursos
que se quer apagada (o
apagamento em si, a subtracção, a
retirada do sujeito, para além de
maneira de fazer, são tema: há
uma hemorragia das instâncias do
poder e do querer): paralelismos,
repetições inebriantes, cadências
que musicalizam uma toada que
se diria elegíaca. Mesmo quando
os dícticos precisam no texto o
tempo e o espaço, mesmo quando
se escreve interrompido por um
atrito qualquer, o passado (a sua
sempre memória) talha o sujeito e
é esse atrito na duração que
Joan Margarit, poeta e tradutor da sua própria poesia, faz eclodir nela imagens belas e surpreendentes, sempre sob a égide disfórica da melancolia e do luto
Um dos motivos psicopolíticos fundamentais
do nosso tempo é aquele de onde emerge a
palavra “mentira”, em torno da qual se
organiza grande parte da subjectividade
política. E o que anima esta subjectividade
nem é já o ressentimento nem a decepção,
aquela “raiva de ter sido enganado” que George Grosz
disse ser a disposição cínico-reflexiva da sociedade da
República de Weimar e que permitiu a Hitler chegar
ao poder prometendo a erradicação da mentira. O que
a anima é, antes, algo menos agónico, uma
“tonalidade epocal” responsável por um forte niilismo
eleitoral. De certo modo, governar e mentir sempre
foram sinónimos. Há quem afirme, com preceitos de
sabedoria antiga, que assim é porque a verdade dos
soberanos foi sempre diferente da vontade dos servos.
Mas da defesa que Platão faz das “nobres mentiras”
até à formulação muito eufemística de Hannah
Arendt, segundo a qual “ninguém duvidou alguma vez
de que é difícil a relação difícil entre verdade e a
política”, persistente é o discurso teórico e doutrinário
que nos fala das mentiras como instrumentos
legítimos da profissão política. A experiência dos
totalitarismos dos século XX ministrou uma lição: os
regimes totalitários são fundados no primado da
mentira. É uma conclusão que tanto inspirou George
Orwell como Alexandre Koyré, o autor de The Political
Function of the Modern Lie. Entre nós, deu-se nos
últimos tempos um fenómeno discursivo de alguma
importância: acusar um político de ser mentiroso
deixou de ser uma prerrogativa da linguagem da “rua”
e entrou sem cerimónias nas disposições do debate
político. Tornou-se um argumento usado nas
instâncias que, até há pouco, nunca tinham descido
abaixo das “inverdades”, na escala das virtudes
políticas. Isso não se deve a um recrudescimentos da
mentira (Koyré é muito claro quanto à época em que
se dá a hipertrofia da mentira: “O homem moderno —
do genus totalitário — nada na mentira, respira a
mentira, é prisioneiro da mentira em cada instante da
sua vida”), mas a dois outros factores: em primeiro
lugar, os políticos passaram a exercer a sua actividade
num palco, estão sempre expostos e em plena
representação (raramente fogem ou evitam na
medida do possível essa condição porque aquilo de
que são escravos é também o que lhes dá poder e
capital simbólico); em segundo lugar, a política
tornou-se uma especialidade técnico-gestionária que
tem como meio os números e uma imensa série de
dados que só podem ser uma de duas coisas: ou são
verdades de facto ou são falsidades. A mentira em
política já não é a “inverdade” que estava a meio
caminho entre as ilusões da ideologia e as mentiras
factuais. E, por isso, começou a tornar-se matéria para
uma acusação deste tipo: “O senhor, que é meu par, é
mentiroso”. Quando a política tinha uma dimensão
ideológica e era sobretudo uma política das ideias, a
mentira predominante, aquela em nome da qual se
praticavam quase todas as outras, era a mentira da
ideolgia. Refiro-me ao conceito marxista de ideologia
que, se não coincide inteiramente com a mentira e o
erro, conduz-nos, pelo menos, para o lugar de uma
não-verdade, para um véu que encobre a realidade. O
que há então de novo, nesta questão da mentira
política, é que passou a ser difícil, nas acuais
circunstâncias, defender concepções
substancialmente estéticas da política, como a de um
teórico completamente anti-ético como Carl Schmitt,
porque o triunfo da mentira de facto, aquela que
autoriza a que se diga a um político que ele é
mentiroso, não trouxe apenas consigo este
rebaixamento da política ao discurso de gente
mentirosa; caucionou também o seu contrário, uma
ideologia ética de uma pobreza confrangedora.
Estação Meteorológica
A mentira como vocaçãoAntónio Guerreiro
RUI GAUDÊNCIO
26 | ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015
morte/ que apagou todo aquele
brilho/ atrás dos vidros
embaciados do passado.// A Mari,
o teu sorriso, o seu sorriso,/ o
cheiro a balneários de piscinas,/ e
tu nadando, nadando até à
morte.// Agora a Mari sabe-o,
despede-se/ de ti olhando as suas
filhas. Sim, a Mari,/ a Mari grávida,
que negou/ fazer os exames: não
temia/ ter uma criança como tu.”
Ficção
Relatório íntimoRomance fragmentário
sobre a angústia e o desgaste
provocados pela vida
doméstica, pela maternidade
e pelo casamento. José Riço
Direitinho
Departamento de Especulações
Jenny Offill
(Trad. José Miguel Silva)Relógio D’Água
mmmmm
Neste segundo
romance da
norte-americana
Jenny Offill (n.
1968), a
narradora é uma
escritora que
vive em Nova
Iorque, está
casada há sete anos, e tem uma
filha pequena. Escreveu um
romance há alguns anos, mas,
devido ao nascimento da criança e
aos afazeres domésticos (presume-
se), o segundo livro tem vindo a
ser sucessivamente adiado; a
angústia provocada pelo facto é
evidente. A protagonista de
Departamento de Especulações,
que trabalha como revisora para
uma revista científica, acaba
também por aceitar um outro
emprego como ghostwriter de um
milionário que quer escrever uma
história do programa espacial. O
marido, que os outros conhecem
“pela sua generosidade” para com
quem sofre (vítimas de doenças ou
de terramotos um pouco por todo
o mundo), parece ausentar-se da
sua vida, como se o casamento o
tivesse sentado num pedestal que
aos poucos se afasta dela. “Que
fizeste hoje?, perguntavas ao
chegar a casa do trabalho, e eu
fazia o possível por criar do nada
uma história qualquer.”
Personagem secundária neste
romance, o marido vive numa
espécie de “espaço em branco”,
dissimulado numa estranha
bruma, e mesmo quando o
casamento fica em perigo porque
ele a trai não abandona esse
espaço. “Ambos têm dificuldade
em arranjar coragem para entrar
no Teatrinho dos Sentimentos
Feridos.”
Em Departamento de
Especulações, o leitor acompanha
o desenrolar de um casamento,
sobretudo “aquele” casamento,
visto apenas do lado da mulher,
numa visão que ela pretende
honesta e sem hipocrisias, e que
nos é apresentada como se
estivéssemos a ler um diário, um
relatório íntimo que não deve ser
compartilhado. “As pessoas são
bem intencionadas. É nisto que
ele acredita. Então, como é que
casou comigo? Eu odeio
facilmente e amiúde.” Tanto a
narrativa como a forma que Jenny
Offill escolheu para o romance —
parágrafos com espaçamento
cria o poema. Daí que o ethos
desta poesia seja cerimónia e
elegantemente disfórico mas
mesmo assim não nocturno,
avançando misteriosamente feliz.
Em praticamente todos os
poemas o autor escreve para
um tu; é uma poesia
intimamente dialógica,
prova da sua explosão
nascida para o aberto, seja o
outro desdobramento do eu
ou um nome explicitado ( Joana,
Raquel, Mari, uma figura mais ou
menos conhecida, um lugar...):
“Um telhado longínquo/ a estante
vazia de um director de
orquestra(...)/ o teu quarto ao
clarear do dia/ (...) perdura no
mais fundo: é donde vimos./ e é o
lugar onde vai ficando a vida”. Um
aspecto a sublinhar, subliminar a
quem escreve, sensível a quem lê,
é o pressentimento de um rumor
(rumor de ti), um rumor inaudível,
surdo e lírico, sempre presente e
no entanto desfazendo qualquer
presença.
Em Margarit, a poesia é também
modo de misericórdia. Na agonia
de Joana, escreve um poema
chamado Poesia: “Como Sisifo,/ a
vida para mim é esta rocha/
Carrego-a e conduzo-a até ao alto.
(...)/ é uma forma de esperança.
(...)/ Penso que teria sido mais
triste/ se não tivesse podido
arrastar uma pedra/ sem outro
motivo que não fosse o amor./
Levá-la por amor até ao alto”; leia-
se, na mesma senda, Perde-se o
sinal, talvez um dos seus poemas
mais belos e mais dilacerantes:
“Não tenhas piedade do que
foste,/ porque a piedade é
demasiado breve:/ não dá tempo
para construir nada./ de noite,
num pequeno aeroporto,/ vês um
avião que vai subindo./ vai-se
perdendo o sinal. /E convences-te
de que vives/uma época que, sem
esperança, / é já a mais feliz da tua
vida./ há uma outra poesia, haverá
sempre,/ como há uma outra
música./ A de Beethoven surdo.
Quando se perde o sinal.”
O poeta desenha espaços
fazendo neles eclodir imagens
belas e surpreendentes, com
referentes pouco usuais (as
muletas azuis da Joana, o barulho
na noite chuvosa de um carro do
lixo), sempre sob a égide disfórica
da melancolia, da perda.
Experiências singulares, que,
estranhamente, não se
enclausuram, antes fazem
comunidade, remetem para o
aberto, expandem-se e expandem
o leitor — e isso é uma grande arte.
Até que o fio se estanca e a posia
de Margarit — dilacerada, cruel,
elíptica e abrutamente — faz
estremecer a mansidão, ferindo-a
como a lâmina que corta em Mari:
“Ela acompanhou-te durante
muito tempo/ todas as tardes,
para ir à escola e à natação./ Foi a
tua confidente, a amiga/ daquela
dolorosa adolescência/ de lua de
hospital e de azuis tardes/ de lenta
juventude.// A tua Mari,/ as suas
últimas visitas, quando os olhos/
te pesavam para dentro com uma
Jenny Off ill consegiu ultrapassar as “regras”, repetidas até à exaustão, da ficção norte-americana contemporânea
ípsilon | Sexta-feira 25 Setembro 2015 | 27
duplo entre eles, como se cada um
desses fragmentos funcionasse
como uma página ou como um
pensamento avulso que pudesse
existir por si mesmo fora do
contexto — impelem o leitor para
esta sensação de ser um voyeur da
intimidade da narradora.
O romance é assim uma
espécie de puzzle em que o
leitor se vai perguntando onde e
quando pode encaixar todas
aquelas peças que lhe vão sendo
sucessivamente atiradas. A
narrativa não é linear na forma,
pois é interrompida com
frequência por fragmentos que a
uma primeira leitura nada terão a
ver com aquilo que está a ser
contado: provérbios ( japoneses,
árabes, …), máximas de filósofos
gregos, “conselhos para esposas,
por volta de 1896”, respostas a um
questionário de personalidade,
avaliações de alunos, frases
sentenciosas de filósofos
modernos, versos de poetas como
Ovídio, T. S. Eliot ou Rilke,
citações de escritores, factos
científicos curiosos, resultados de
inquéritos sociológicos, pequenas
histórias. Tudo serve a Jenny Offill
para montar a história, tarefa que
por vezes quase se assemelha a
um “fluxo de consciência em
blocos”, que vai sendo
sucessivamente interrompido por
pensamentos soltos que se
atravessam no caminho. A
narradora está esgotada e exausta.
O significado de cada fragmento
(alguns são mesmo “opacos”)
quase nunca é revelado, é um
trabalho deixado para o leitor,
como este: “A evolução
determinou que chorássemos
quando estamos a ser
abandonados. Que fizéssemos o
máximo de ruído possível, para
que a tribo voltasse atrás para nos
vir buscar.”
A escrita angustiante (mas por
vezes divertida) de Offill insinua-
se, não revela, é mantida sob
controlo mesmo quando tudo
parece desmoronar-se, e é aqui
que a sua ironia se faz sentir de
vez em quando. Ao não dar um
sentido óbvio aos fragmentos,
transcende o seu próprio sentido,
e nisto (sobretudo quando narra
pequenas histórias de meia dúzia
de linhas) assemelha-se à escrita
de Lydia Davis, como neste
exemplo: “No parque infantil,
uma mulher explica o seu dilema.
Encontraram finalmente uma
moradia de três andares com
jardim, em óptimo estado, num
bairro encantador e longe de
escolas problemáticas. Mas agora
ela conclui que perde grande
parte do dia a procurar num dos
pisos objectos que na realidade
deixou num dos outros dois.”
Jenny Offill, que ensina escrita
criativa em várias universidades
norte-americanas, conseguiu com
Departamento de Especulações
ultrapassar as “regras”, repetidas
quase até à exaustão, da mais
recente ficção americana, e
escreveu um romance singular
difícil de classificar.
com cuidado, atento ao mapa
imaginário que o artista desenhou:
as irregularidades do chão integram-
se na intervenção e as linhas
desenhadas pela mão do artista
sobrepõem-se às rectas e aos
ângulos desenhados pelas cordas.
A geometria organiza e desenha
os espaços e os percursos, cercando
e orientando o espectador. Mas
Robbio entende-a como uma
interpretação, entre outras, do
mundo. Veja-se a instalação 14Bis,
em que cordas invisíveis seguram e
soltam pequenos paus de madeira.
Face a uma geometrização do
mundo, a exposição ousa propor a
irredutível percepção do
espectador e a imperfeição da
natureza. No ar, como que
levitando, as peças permitem a
imaginação de outras linhas, de
outras formas; confrontam o
espectador com as convenções da
geometria. Na sala seguinte, as
paredes foram cobertas de vinil
autocolante negro. Podiam ser
monocromos, mas são sobretudo
fundos negros em que linhas (feitas
de cordel e desenhadas) traçam
ângulos e formas geométricas
frágeis, furtivas. Mostram-se e
escondem-se consoante os
movimentos do espectador no
espaço. A partir dessa realidade,
Nicolás Robbio convida-nos então a
observar, a ver outra. Aquela que os
recortes (em forma de círculos)
feitos na parede permitem entrever:
no exterior, o jardim do Pavilhão.
Expo
siçõ
es
Da geometria para a realidadeO regresso a Lisboa de Nicolás
Robbio, numa exposição feita
de deslocamentos e desenho.
José Marmeleira
Observações de uma realidade
sincopada
De Nicolás Robbio.
Escultura, Instalação.
mmmmq
Lisboa. Pavilhão Branco. Campo Grande, 245.
Tel.: 217513200. 3ª a Dom., das 10h às 13h e das
14h às 18h. Até 27/09.
Autor de duas exposições notáveis
em 2099 — na Galeria Marz, em
Lisboa, e em Emissores Reunidos,
uma iniciativa do Museu de
Serralves —, Nicolás Robbio (Mar
Del Plata, Argentina, 1975) regressa
à esfera pública da arte portuguesa
com a transfiguração interior de
um edifício. As quatro salas do
Pavilhão Branco tornaram-se, sob a
acção do artista, cenários de um
movimento que se dobra em dois:
a par do deslocamento realizado
sobre os materiais, os objectos, as
escalas e a percepção, testemunha-
se a deslocação do espectador no
espaço, qual sujeito cuidadoso e
intrigado.
Observações de uma realidade
sincopada, comissariada por Filipa
Oliveira, começa no exterior. Uma
parede de vidro apoiada num
ângulo de 90 graus está coberta de
areia, sinalizando a transformação
que aguarda os visitantes. Passada a
porta, o efeito do gesto revela-se:
vê-se uma dissecção do monte de
areia, um recorte, que permite olhar
o seu interior. Entre o dentro e o
fora, o natural e o analítico, Porção
— este é o nome da peça — é um
prólogo dos encontros seguintes,
Na primeira sala, elevam-se nove
aquários, deixando ver
pequeníssimos objectos e materiais.
Como os descrever? Podem ser
dioramas cujas superfícies o vidro e
a água alteram, ou paisagens
habitadas por formas elementares
ou geométricas. Tente-se outra
descrição: são, também, “retratos”
do peso, da leveza, da visibilidade e
da invisibilidade, da fragilidade;
representações ou fragmentos de
uma natureza infinita.
Os materiais usados por Nicolás
Robbio exploram os sentidos
associados a estes conceitos. Cartão,
açúcar, esferovite, metal, terra,
tinta, plantas, pedras permitem-lhe
imobilizar tensões, simetrias,
ilusões. E se em alguns aquários é a
marca de uma dimensão escultórica
que assoma, noutros é o desenho
ténue que, sob a água, se manifesta.
Na segunda sala, o artista colocou
uma quadrícula sobre objectos
recorrentes no seu trabalho (pregos
e cordas) e outros materiais. A
mudança da escala obriga a uma
reorientação dos sentidos do
espectador. Este tem de ver para não
cair, para não destruir a obra. Andar
Os aquários de Nicolás Robbio são “retratos” do peso e da leveza, da visibilidade e da invisibilidade: fragmentos da natureza infinita
SO FAR, SO CLOSEExposição de Cindy Ng
Entre Macau e o Douro, paisagens efémeras em pintura, fotografia e arte interactiva.
co-organização
mecenas principal
www.museudooriente.pt
curadoriaseguradora oficial
CARAVELA Companhia de Seguros, S.A.
25 SETEMBRO | 23 OUTUBRO
MUSEU DO ORIENTE
Jones, é possível observar que,
apesar de uma vida atribulada e de
um período “negro” ligado às
drogas duras que quase acabou com
a sua carreira, Evans nunca deixou
de evoluir e manteve intacta a sua
alma e a sua personalidade
musicais. Esta é decerto a razão pela
qual este período é considerado
como uma segunda vida do pianista,
uma segunda oportunidade para
mostrar ao mundo de que massa era
feito o génio musical que marcas tão
profundas deixou no legado do
piano no jazz. E se nem todas as
gravações incluídas nesta caixa têm
o mesmo nível superlativo daquelas
realizadas no final dos anos 50 ou
nos anos 60, a verdade é que estão
aqui presentes toda a profunda
beleza e toda a profunda emoção
que marcaram a obra de um dos
maiores poetas do jazz.
Pop
A mesma canção No novo disco, os Low
voltam a derrubar e a
levantar quem os ouve.
José Marmeleira
Low
Ones and SixesSub Pop; distri. Popstock
mmmmq
E eis mais um disco dos Low.
Desde 2011 que, num intervalo
regular de dois anos, a banda de
Duluth,
Minnesota tem
vindo a lançar
um novo
trabalho diante
do bocejo
discreto de uma boa parte da
imprensa musical. A monotonia
da música justificará, dirão
alguns, semelhante reacção. É
verdade que com The Great
Destroyer dançaram o rock & roll
e hoje usam, sem complexos, os
recursos da electrónica. Mas a
aproximação ao mainstream e a
presença da caixa de ritmos não
os desviou do caminho.
Permaneceram fiéis aos tempos
lentos, às harmonias vocais, às
guitarras. Ainda cantam a mesma
canção.
Não sendo uma obra-prima
como Things We Lost in Fire (2001)
e Trust (2002), Ones and Sixes não
se queda na impaciência
taciturna dos trabalhos mais
recentes. Resolve os esboços das
canções, sem as perder por
timidez ou pressa. Progride até ao
fim, sempre com o mesmo
volume, a mesma intensidade,
reafirmando o lugar dos Low na
música popular dos últimos 20
anos. Em Into you é muito bonito
ouvir Mimi Parker a recuperar o
fôlego e a clareza que muitas
associaram à country. Não que
isso signifique a afirmação de um
registo em detrimento de outro.
Noutras faixas, a voz da baterista
surge e apaga-se em lamentos e
suspiros (ouça-se The inoccents),
ou desperta a de Alan Sparhawk
para nunca mais a largar,
formando um dueto com a força
de um coro.
Do guitarrista, escuta-se aquela
veemência dorida, que se foi
tornando rara. Expande-se,
embora receosa, em No
comprende, e aflige-se à beira da
ira em Lies, um dos grandes tema
pop deste disco. A cadência da
percussão, a fluidez das vozes,
que se vão sobrepondo e
trocando de lugar, são veículos
perfeitos para uma balada
perseguida pela melodia e cujo
significado os Low deixam à
liberdade das memórias e das
vidas dos ouvintes. No
compreende e Spanish translation
também são temas fortes,
aproximando o artifício da
electrónica ao minimalismo dos
primeiros álbuns. Insinuam
alusões à imigração nos Estados
Unidos, mas, entre a gravidade
das batidas e da distorção e a
delicadeza das notas de piano, as
palavras abrem caminho para as
meditações habituais dos Low: a
desilusão, a incerteza, o
ressentimento, que marcam as
relações humanas, ainda
alimentam o espírito e a escrita
do duo (Steve Garrington, o
guitarrista que em 2008 veio
substituir Matt Livingston, é um
espectador desse trabalho)
Nos Low, é difícil falar em
optimismo ou luz. São uma banda
Disc
osJazz
Second LifeToda a profunda beleza das
gravações de Bill Evans para
a Fantasy. Rodrigo Amado
Bill Evans
The Complete Fantasy RecordingsFantasy/Concord; distri. Universal
mmmmm
Na altura em que
se cumprem
os 35 anos da
morte de Bill
Evans, a norte-
americana
Concord Music Group lança esta
segunda reedição da caixa de nove
CD que compila todas as gravações
realizadas pelo lendário pianista
para a label Fantasy. Aqui, para além
de alguns clássicos absolutos —
como os duetos com Tony Bennett
ou Cross-Currents, o álbum que
reúne o trio de Bill Evans (com
Eddie Gomez no contrabaixo e Eliot
Zigmund na bateria) a Lee Konitz
(sax alto) e Warne Marsh (sax tenor)
—, encontram-se também o primeiro
álbum gravado para a editora, The
Tokyo Concert, e o disco a solo Alone
(Again), ambos nomeados para os
Grammy Awards, e ainda uma
entrevista realizada por Marian
McPartland para o seu programa de
rádio, Piano Jazz.
Ao longo desta série de 98 temas,
gravados ao vivo e em estúdio entre
1973 e 1979 com colaboradores entre
os quais se incluem o guitarrista
Kenny Burrell, o contrabaixista Ray
Brown ou o baterista Philly Joe
Considerado uma segunda vida de Bill Evans, o período a que estas gravações correspondem exibe toda a profunda beleza e toda a profunda emoção de um génio que deixou um legado ao jazz
Não há optimismo nem luz nos Low: as canções da banda aquietam e comunicam as emoções com baladas e marchas fúnebres
ZORA NORLIC
de estoicos que aquietam e
comunicam as emoções com
baladas e marchas fúnebres.
Derrubam e levantam quem os
ouve com a mesma serenidade.
Ouçam, sem pausas, What part of
me, Landslide e Lies, canções em
que, sob o pesar e a dor, se
esconde um estranho conforto. O
da mesma canção contra as
rasteiras terríveis da vida.
Uma banda sábia
Eleventh Dream Day
Works for TomorrowThrill Jockey; distri. Flur
mmmmm
Trajecto
curiosíssimo e
desprezado, o
dos Eleventh
Dream Day. Nos
finais dos anos
80, seguiram as pisadas dos REM
e dos Hüsker Dü, sem o sucesso
dos primeiros e sem a desilusão
dos segundos. Findada a relação
com a Atlantic (da qual
resultaram três álbuns),
continuaram a gravar e dar
concertos, movidos pela
persistência de Rick Rizzo e Janet
Beveridge Bean, a dupla que, em
1983, iniciou esta aventura
musical.
Sim, os Eleventh Dream Day são
velhos e o que trazem em Works
For Tomorrow, o 13.º álbum,
repete um estilo, uma sonoridade.
Há décadas que adaptam o fragor
das guitarras de Neil Young à
pressa do punk, evitando
mutações e saltos estílicos. As
referências permanecem
canónicas, reconhecíveis (Lou
Reed, Wipers, X, Television, Patti
Smith). O que transcende então a
mera familiaridade? Uma
sabedoria digna, construída ao
longo de décadas, que se
materializa nas canções.
O primeiro tema é um elogio do
grito que Iggy Pop sempre ouviu
no rock. A bateria marca o passo
com o baixo, até que Janet rosna
“I’m gonna take it from the inside/
I’m gonna take it slow!”. Entre os
solos e os acordes límpidos das
guitarras, repetirá até à exaustão
estes versos, numa catarse
comovente. Não são poesia? Claro
que não. Eles só existem se
envolvidos, animados pelo som.
Sem este, são como fotogramas
cortados de um filme. As
dinâmicas entre os músicos, as
harmonias vocais (de Rizzo e
Janet), a estridência da bateria dão
um sentido às palavras, elevam-
nas, por mais banais que sejam. Na
faixa que tem o mesmo título do
disco, Rizzo confronta-se sozinho
com o passado e o presente até as
guitarras, a bateria e o teclado
libertarem a voz de Janet, para um
coro final. Snowblind oferece à
composição original de Judy
Henske e Jerry Yester uma
ferocidade inédita, dominada pela
voz da vocalista/baterista. É o
momento em que o grupo revela,
também, a sua versatilidade, com
solos a rodos, feedback e uma
precisão respeitosa de John
Bonham.
A história não é estranha aos
Eleventh Dream Day. Em Go tell it
acampam em Nova Iorque, nos
anos 70, enquanto espreitam para
Cleveland e suspiram pela soul de
Chicago. Sim, há aqui uma
homenagem, mas, acima de tudo,
a reivindicação de um parentesco
com protagonistas de outras
épocas (partilhado aliás com os
Dream Syndicate, de Steve Wynn e
Kendra Smith). Os grandes
momentos chegam com Deep
lakes, indie-rock sereno,
pacificado, segredado a duas
vozes, e na maravilhosa The
unknowing, uma das melhores
canções do ano. Frágil,
imperfeita, longa, avança pelas
mãos de um acorde simples, com
uma força justa e retemperadora:
“The storm knocked the power out/
Everything started melting down/
And I swear/ That when I heard the
rain/ I knew I’d never want for
anything anymore”, cantam os
dois vocalistas. J.M.
Estranho mundo novo
Volcano Skin
A Few Moments Of Sleeping
And WakingEd. Autor
mmmqm
Em 2013
estrearam-se
com um EP
promissor,
Travelling With
The Wrong Maps,
e, dois anos depois, chegou o
álbum de estreia, A Few Moments
of Sleeping and Waking. Os
Volcano Skin são um trio (César
Zembia, vocalista; Nuno Maltês,
baixista e guitarrista; Sérgio
Lemos, baterista), mas fazem
música com mais gente dentro.
Aliás, a enumeração dos
instrumentos de cada um,
factualmente correcta, peca por
escassa. Sim, muito mais se passa
aqui: ouvem-se saxofones,
theremins, estranhos acordeões
(serão?) ou programações
electrónicas.
Música de intersecções, esta dos
Volcano Skin. Anunciam-se em Slow
trail com uma vaga de saxofones
que se há-de tornar zumbido a
assombrar a guitarra tremeluzente
como em cave onde encerraram o
pós-punk, assim acentuando o
nebuloso mistério das palavras que
ouvimos e que se sucedem com a
aleatoriedade frenética dos
tempos demasiado rápidos que
vivemos: “Coffee, water, drink,
write it down, again, again”.
Os Volcano Skin são música
tensa que nos apanha
desprevenidos: vibrafone a
embalar-nos nos sonhos do
vocalista, estamos em Silly,
apenas para nos atirar para um
refrão convulsivo, ruidoso,
paranóico. São Captain Beefheart
a formar uma banda no-wave com
João Peste (a óptima
Constantinople street), são
rock’n’roll movido a percussão e
cowbell e iluminado por latidos à
Iggy Pop (“What is it that makes
today’s politicians so appealing?”).
A inspiração parece vir da
música sem fronteiras que era o
pós-punk do final da década de
1970 e da seguinte, não no sentido
de fazerem à maneira de quem
quer que seja, mas pela forma
como, tal nessa era, esbatem
géneros em favor da ideia que
conduz cada canção, quer seja a
electrónica subterrânea a penetrar
o mapa identitário sonhado de All
my voices (“I want to be Baudelaire
playing with syphilis”; “I want to be
Rimbaud and Verlaine in a huge
brawl”; “I wish I was Cary Grant”)
ou a versão, em modo punk
experimental, da frenética música
para cinema de animação de Carl
Stalling (Fauno).
Em A Few Moments Of Sleeping
And Waking, os Volcano Skin
apresentam um universo bem
definido na sua indefinição: faz-se
de sombras descobertas no lusco-
fusco e da palavra tão falada quanto
cantada; vive entre o desejo de
placidez e o prazer em mergulhar
no caos; aponta em mil direcções e
guia-nos por elas metodicamente e
com convicção. É um estranho novo
mundo, mas vale a pena perdermo-
nos nele. Mário Lopes
Há décadas que os Eleventh Dream Day adaptam o fragor das guitarras de Neil Young à pressa do punk
A inspiração dos Volcano Skin parece vir da música sem fronteiras que era o pós-punk do final da década de 1970 e da seguinte
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Cine
ma Estreiam
Dizes tu, digo euMiguel Gomes filma o
Portugal profundo no seu
mais violento e no seu
mais triste. A realidade,
sem remissão. Luís Miguel
Oliveira
As Mil e Uma Noites, Volume 2
— O Desolado
De Miguel GomesCom Luísa Cruz, Teresa Madruga,
João Pedro Bénard, Gonçalo
Waddington, Joana de Verona
mmmmm
Se o primeiro “volume” de As Mil e
uma Noites fazia jus ao nome — O
Inquieto — com todas aquelas
subidas e descidas e uma
permanente imprevisibilidade, o
segundo “volume” também não
enverga o seu título em vão. É o
episódio mais triste dos três, o que
mais linearmente conserva essa
tonalidade de uma ponta a outra,
aquele que menos consolo oferece
(para além do consolo do cinema,
da ficção, se é que estas coisas
ainda consolam), e aquele que
mais resolutamente mergulha num
universo de desolação — e aqui
chegados convém esquecer “a
crise”, ou pelo menos atenuar a
ideia (embora o genérico inicial a
continue a repetir) de um filme
sobre “o momento”. O Portugal
retratado neste filme é o Portugal
de sempre, cinzento, estranho e
sorumbático, com ou sem a troika
a dar em cima.
Nada, aliás, parece mais
estranho, e mesmo mais
“apolítico”, do que o primeiro
episódio, a história de um
criminoso em fuga por montes e
vales algures no interior do país
(Simão Sem Tripas, nome que
esconde a sua óbvia inspiração, o
tão noticiado caso de Manuel dito
o “Palito”). O cenário é aquele
mesmo interior que Miguel Gomes
já filmara — em Aquele Querido Mês
de Agosto ou no primeiro “volume”
— mas que agora aparece numa
espécie de negativo, desértico e
pedregoso, totalmente isento de
feérie (reservada meramente para
o espaço dos sonhos do
protagonista com festins e orgias,
ainda assim sonhos
singularmente... desolados), sem
lugar para anedotas calorosas e
cúmplices como, ainda no
primeiro volume, o episódio do
galo. É o Portugal “profundo”
dado no seu mais árido e violento,
sem remissão; e como tal, numa
espécie de minimalismo a tender
para o silêncio (Simão está quase
sempre sozinho, quase sempre
calado, a câmara a tirar o máximo
partido dramático do seu rosto tão
pedregoso como a paisagem — o
actor é um “não-actor”, que
voltaremos a ver no terceiro
episódio), é a história mais dura de
toda a série, aquela onde mais se
sentem o tempo, a inacção, a
repetição. A breve, e irónica, e
distanciada, euforia final, quando
as multidões aclamam Simão como
um herói (afinal, apesar dos
crimes, enganou as autoridades
durante um ror de tempo, e isso é
uma coisa que os portugueses
apreciam), é mais a expressão de
um reverso absurdo, de um país
de pernas para o ar, do que um
efeito cómico ou galvanizante — e
instala o volume dois, depois da
“montanha-russa” do volume um,
numa linha recta.
A segunda das três histórias deste
volume é o momento central da
trilogia. Pela “geometria” — é o
episódio do meio do filme do meio
— e pelo facto de o modo da sua
construção conter, de algum modo,
a lógica subjacente à totalidade do
projecto: tudo se liga a tudo, causas
e consequências vivem num
imparável efeito-dominó, a miséria
de uns gera a miséria de outros. É
também o momento mais bizarro,
o segmento em que o realismo,
para todos os efeitos dominante ao
longo da trilogia, é abandonado em
abono de uma espécie de
representação teatral, que leva ao
cúmulo a similitude entre os
espaços (e os “protocolos”) de um
tribunal e de um palco teatral (o
lugar central da acção é, de resto,
um anfiteatro ao ar livre e
nocturno). Há um julgamento a
acontecer, um qualquer crime
menor, mas o que esse crime
menor destapa, à medida que
sucessivas testemunhas vão sendo
ouvidas, é uma cadeia interminável
de pequenos crimes e pequenas
misérias — que inclusivamente
podem chegar da China,
exprimindo a “globalidade” do
efeito-dominó. Construído como
“teatro”, aberto à vacilação dos
códigos de representação (os coros,
as máscaras, os figurantes
alucinados), é porventura o
episódio que mais começa por se
estranhar e que, no fim, como que
por uma magia qualquer, mais se
entranhou.
E, no tom do seu lamento final,
prepara o caminho para a terceira
história, Os Donos de Dixie, esta a
mais triste e mais pudica de todas.
Um bairro algures nos subúrbios de
Lisboa, um tempo outonal apenas
raramente interrompido (para os
banhos de sol das “brasileiras” no
terraço do edifício), um casal em
que ela está doente, ou estão os
dois doentes, um cão que anda de
mão em mão e de dono em dono e
até acaba por ver o seu próprio
fantasma — essa sobreposição
simples, quase arcaica, que fica
como a imagem de uma outra vida
(para todos, não só para o cão) que
não existe. É quase uma história de
“telenovela”, se as histórias de
telenovelas falassem de vidas reais
e dos sítios reais onde as pessoas
vivem. A melancolia enxuta, dura,
dos protagonistas (o casal mais
velho, Teresa Madruga e João Pedro
Bénard, e o casal mais novo, Joana
de Verona e Gonçalo Waddington)
como dos secundários (Margarida
Carpinteiro, Isabel Cardoso) é
comovente — pela simples razão de
que se acredita facilmente nela:
acredita-se nele a ler o Record,
acredita-se que todos achem que o
Say you say me de Lionel Richie é a
canção mais bonita do mundo.
Acredita-se, ainda, que todas as
histórias daquele prédio — para as
quais estas personagens servem de
“abre-te sésamo” — são ao mesmo
tempo únicas e muito comuns, têm
a ver com pessoas específicas e
com uma comunidade inteira em
grande escala (os despejos, por
exemplo).
E com esta reinvenção do
“drama social” drenado de todos
os clichés do “drama social” se
chega ao fim do segundo volume
de As Mil e Uma Noites. A seguir
virão Xerazade, ela própria, e os
passarinheiros da Musgueira.
A Leste do paraísoAnton Corbijn filma James
Dean antes do estrelato
como um actor em busca
do seu lugar no mundo.
Jorge Mourinha
Life
De Anton CorbijnCom Robert Pattinson,
Dane de Haan, Joel Edgerton
mmmmm
Quem buscar um traço comum
entre os filmes assinados pelo
veterano fotógrafo holandês
Anton Corbijn encontrará à
superfície uma aparente ausência
de traços comuns: uma biografia
do cantor dos Joy Division, Ian
Curtis (Control, 2007), um policial
“antonioniano” (O Americano,
2010), uma adaptação de John le
Carré (O Homem Mais Procurado,
2014) e, agora, um olhar sobre o
James Dean pré-estrelato. Olhando
melhor, contudo, descobre-se o
interesse de Corbijn pelas figuras
que estão simultaneamente “ao
lado” e “no centro” do seu tempo:
o Ian Curtis de Sam Riley em
Control, o Edward Clarke de
George Clooney em O Americano,
o Günther Bachmann de Philip
Seymour Hoffman em O Homem
Mais Procurado, e, finalmente, o
James Dean de Dane de Haan e o
Dennis Stock de Robert Pattinson
em Life são idealistas ambiciosos
que procuram encontrar o seu
lugar num mundo que não lhes dá
grandes tréguas.
Isso é ainda mais
particularmente visível em Life,
filme que é acima de tudo uma
meditação sobre a fama e os
compromissos usando a ascensão
meteórica de um dos grandes
mitos da Hollywood do século XX
como ponto de partida.
Apanhando Dean no “limbo” entre
o término da rodagem e a estreia
de A Leste do Paraíso, num
momento em que o seu nome
ainda não tinha sido anunciado
para Fúria de Viver, Corbijn e o
argumentista Luke Davies
exploram a sua breve relação com
o fotógrafo freelancer Dennis Stock,
Os Donos de Dixie, a história final do volume dois, seria quase uma história de telenovela, se as telenovelas falassem de vidas reais e dos sítios reais onde as pessoas vivem
sensorial a dificuldade e o esforço
de subir a uma montanha — e nessa
“gravidade” nunca escamoteada
sugere um outro percurso possível
para o moderno cinema de grande
público de Hollywood, colocando
a técnica ao serviço da história e
preferindo a sobriedade (talvez
demasiado discreta, é verdade)
ao espalhafato. Não o torna um
grande filme, mas faz dele um
objecto francamente
interessante. J.M.
A energia do amadorismo
Por Aqui Tudo Bem
De Pocas PascoalCom Ciomara Morais, Cheila Lima
mmmmm
Estreia-se com vários anos de
atraso (foi exibido no IndieLisboa
de 2012) e isso ainda torna mais
desprotegido um filme cuja maior
simpatia está na sua desarmante
que vê no carisma e na
modernidade do actor a sua
hipótese de fugir ao rame-rame da
fotografia de plateau e passadeira
vermelha. Dean, por seu lado, é
pintado como ambivalente em
relação à fama, apenas a admitindo
nos seus próprios termos e não nos
do jogo viciado da máquina de
relações públicas de Hollywood
contra a qual a sua própria imagem
nos filmes se coloca.
Corbijn encena a parceria entre
Stock e Dean como uma espécie de
“tango apache” entre feras
desesperadas pelo
reconhecimento, uma aliança
circunstancial que tanto pode ser
benéfica para ambos como travar
as suas carreiras, naquele que é o
aspecto francamente mais
interessante de um filme que se
deixa aqui e ali cair em demasia na
reprodução embevecida da
iconografia de época. É sempre
complicado dar corpo a figuras
reais, ainda por cima tão
exploradas como James Dean, mas
Dane de Haan apanha bem a pose e
a atitude do actor (já o Jack Warner
de Ben Kingsley é mais caricatural
do que outra coisa), e Robert
Pattinson faz esquecer de vez o seu
estatuto de ídolo adolescente com
uma interpretação seguríssima que
ancora todo o filme. E o fotógrafo
holandês volta a esquivar-se
elegantemente e deliberadamente
às gavetas onde andamos todos a
querer metê-lo desde o magnífico
Control — filme ao qual ainda não
conseguiu dar sucessor ao mesmo
nível.
As leis da gravidade
Evereste
EverestDe Baltasar KormákurCom Jason Clarke,
Josh Brolin, John Hawkes
mmmmm
Desde a sua estreia em abertura de
Veneza 2015 que Evereste tem
vindo a causar estranheza nas
hostes jornalísticas. “Isto” é a
abertura de Veneza? “Isto” é uma
aposta de fôlego de um grande
estúdio hollywoodiano?
Entendendo-se por “isto” um filme
“classe média”, propulsionado por
um elenco sólido mas de segunda
linha, sem grandes estrelas que
puxem carroça (Keira Knightley e
Jake Gyllenhaal, na prática, são
participações especiais), e
marcando o “exame de admissão”
do islandês Baltasar Kormákur
(Contrabando, 2011; 2 Tiros, 2013) à
“primeira divisão”. Ora está
precisamente nesse desfasamento
entre expectativas e concretizações
a mais-valia do filme.
História verídica de uma
expedição ao Evereste em 1996
que uma tempestade tornou num
desastre, resultando em cinco
mortos, o filme utiliza as
modernas técnicas do cinema-
espectáculo (3D, écrã IMAX de
grande dimensão) para contar um
drama intimista do homem face à
Natureza e a si próprio — Todd van
der Werff, no site Vox, falava de
Evereste como “o Gravidade do
alpinismo” e não é nada
descabido. Evereste começa por
chamar o espectador pela
espectacularidade das imagens,
mas são as histórias das pessoas, e
as pessoas destas histórias, que
mais interessam a Kormákur,
mesmo que parte delas se limitem
a entrar por sair (há, no entanto,
que felicitar a justeza do elenco,
que dá a primazia a actores de
composição e lhes permite a todos
nem que seja uma cena para
mostrarem ao que vêm).
Este não é um filme de heróis e
vilões, nem uma história linear de
um triunfo pessoal; é uma coisa
muito mais difusa, com mais
nuances, mais dramatismo, mais
ambiguidade, que tem lá dentro
mais do que parece. É um filme
sério, talvez sisudo em demasia,
mas que faz sentir ao espectador o
peso de cada passo e de cada
decisão, que traduz de modo
fragilidade. Por Aqui Tudo Bem foi
a primeira longa-metragem da
realizadora angolana Pocas
Pascoal, rodada em Lisboa e
contando a história,
presumivelmente plena de ecos
autobiográficos, de duas irmãs
adolescentes que, ainda durante a
guerra civil, abandonaram Angola
à procura da proverbial “vida
melhor”.
Em termos narrativos e
descritivos, Por Aqui Tudo Bem
tem um lado simples, quase
amador, que é ao mesmo tempo o
seu limite (a quantidade de
episódios desprovidos de
interesse, o naturalismo “por
defeito”) e a fonte da sua
genuinidade. Mesmo quando ela
— a genuinidade — se revela
desajeitadamente: por exemplo na
cena do choro depois do
telefonema que é o momento
crucial do filme (e cena que, na
sua elipse, é a melhor ideia
dramática do filme) vemos bem
que o choro do par de
protagonistas (actrizes não-
profissionais) é “falso”, forçado,
mas é isso que acaba por se tornar
comovente, como se o que Pocas
Pascoal filmasse fosse menos a
representação das suas actrizes do
que o esforço que eles aplicam
para que a representação seja
convincente — não é, mas esse
“não ser” tem qualquer coisa de
muito real. E, por isso, se o filme
nunca chega verdadeiramente a
levantar voo em direcção a lado
algum, fica sempre com isso, com
“qualquer coisa de muito real”,
muito voluntarista, com que é
impossível antipatizar. L.M.O.
Continuam
Homem Irracional
Irrational ManDe Woody AllenCom Joaquin Phoenix,
Parker Posey, Emma Stone
mmmmm
Há um momento durante o qual
pensamos que, afinal, a marcação
2015 do “relógio de ponto” anual
de Woody Allen não é apenas mais
do mesmo: Joaquin Phoenix
injecta uma energia diferente em
Homem Irracional, no papel de um
professor de Filosofia deprimido
que, por uma vez, não é uma
versão disfarçada do realizador/
argumentista. É como se Allen
estivesse disposto a engajar em
discussão o melhor cinema
americano contemporâneo, ao
convocar o actor-fétiche de Paul
Thomas Anderson e ao deixá-lo à
solta a perturbar a estrutura
certinha do seu cinema que se
tornou confortável e
reconfortante, previsível à
distância. E, durante parte
significativa de Homem Irracional,
até o consegue, mesmo que o
dispositivo seja uma variação
sobre um dos seus últimos
verdadeiramente grandes filmes,
Crimes e Escapadelas (1989): o
filósofo insatisfeito redescobre a
vontade de viver ao decidir agir
contra a corrente e cometer um
crime moralmente defensável.
Mas é falso alarme: de lufada de ar
fresco, Homem Irracional tomba
no descalabro, tornando-se talvez
no mais preguiçoso e
desnecessário Allen recente,
desperdiçando a premissa
elegantemente desenhada num
inacreditável chorrilho de passos
em falso que destroem
completamente o que ficou para
trás — para já não falar de um final
que quase faz pouco do
investimento que o espectador fez
no filme. É como se, uma vez
intrigado pela presença de
Phoenix, o cineasta tivesse
decidido que afinal queria era
marcar o ponto e fazer mais do
mesmo e “sabotasse” o seu
próprio filme. De Woody Allen já
não esperamos muito, mas não
esperávamos certamente este
desastre. J.M.
Life cai em demasia na reprodução da iconografia da época
Evereste aparenta ser um filme espectacular: é mais do que isso
Por Aqui Tudo Bem tem um lado simples, quase amador
Homem Irracional: um Woody Allen desnecessário
AS ESTRELAS DO PÚBLICO
JorgeMourinha
Luís M. Oliveira
Vasco Câmara
a Mau mmmmm Medíocre mmmmm Razoável mmmmm Bom mmmmm Muito Bom mmmmm Excelente
Bando de Raparigas mmmmm mmmmm mmmmm
Evereste mmmmm – mmmmm
Homem Irracional mmmmm mmmmm –Life mmmmm – –Jackie & Ryan – mmmmm –As Mil e uma Noites: O Desolado mmmmm mmmmm mmmmm
O Presidente mmmmm mmmmm mmmmm
Por Aqui Tudo Bem mmmmm mmmmm mmmmm
O Rosto da Inocência – mmmmm –A Visita mmmmm mmmmm –
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EXISTE UM LIVRO QUE OS RESUME.Vol. 3: A Guerra na Ucrânia.Celebre os 50 anos das publicações D. Quixote com uma edição inéditade 8 livros com os mais marcantes temas da actualidade internacional.Descubra tudo sobre grave crise política que se instalou entre a Ucrâniae a Rússia que resultou na anexação russa da península da Crimeia. Um tema analisado ao pormenor para lhe dar o essencial.
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