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p. 305 Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, n. 25, p. 305-313, 2009 A TEORIA DO BEM JURÍDICO E A PROTEÇÃO PENAL DE VALORES SUPRAINDIVIDUAIS 1 THE THEORY OF LEGAL RIGHTS AND THE CRIMINAL PROTECTION OF SUPRA-INDIVIDUAL VALUES Bruno Rotta Almeida 2 Mestrando em Ciências Criminais pela PUC-RS RESUMO Este artigo tenta expor a importância da doutrina do bem jurídico na ciência penal e na discussão sobre a proteção penal de valores não individuais. Para tanto, traça-se o progresso desta teoria desde o seu primeiro momento, no século XIX. Abordam-se, ainda, os critérios de seleção daqueles bens e valores fundamentais da sociedade que devam ser objeto de tutela penal nos diferentes períodos históricos. Por fim, propõe-se uma abreviada discussão sobre as novas categorias de bens – supraindividuais, difusos ou coletivos – e suas incidências no sistema jurídico-penal. PALAVRAS-CHAVE: Bem jurídico-penal. Direito Penal. Bens supraindividuais. ABSTRACT This work attempts to reveal the importance of the legal rights doctrine in criminal science and in the discussion on the criminal protection of non-individual values. For such, the progress of the referred theory is traced, starting from its origins, in the 19 th century. Therefore, we present the criteria for the selection of these rights and fundamental values of society that should be the objects of criminal protection in different historical periods. Finally, a brief discussion is proposed on the new categories of rights (supra-individual, diffuse and collective) and their incidence on the Criminal Legal System. KEYWORDS Criminal legal rights. Criminal Law. Supra-individual rights. SUMÁRIO 1 Introdução 2 Da noção de pecado como crime à ideia de bem jurídico como objeto de tutela 2.1 A disparidade da discussão propedêutica de Binding e Liszt sobre o “bem” 3 Do advento das teorias críticas no período da pretensa “superioridade da raça ariana” às teorias sociológicas do pós-guerra 4 As teorias constitucionais como fronteira ao campo de abrangência estatal na seleção dos bens jurídicos 5 A proposta de discussão: As novas categorias de bens como bens jurídicos susce- tíveis de tutela penal? 6 Conclusão 7 Bibliografia 1 Enviado em 23/4, aprovado em 6/7 e aceito em 30/7/2009. 2 E-mail: [email protected].

16-50-1-PB 0015019

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A teoria do bem jurídico penal em valores supraindividuaisAutor: Bruno Rotta

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  • p. 305 Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, n. 25, p. 305-313, 2009

    A TEORIA DO BEM JURDICO E A PROTEO PENAL DE VALORES SUPRAINDIVIDUAIS1

    THE THEORY OF LEGAL RIGHTS AND THE CRIMINAL PROTECTION OF SUPRA-INDIVIDUAL VALUES

    Bruno Rotta Almeida2

    Mestrando em Cincias Criminais pela PUC-RS

    RESUMO

    Este artigo tenta expor a importncia da doutrina do bem jurdico na cincia penal e na discusso

    sobre a proteo penal de valores no individuais. Para tanto, traa-se o progresso desta teoria

    desde o seu primeiro momento, no sculo XIX. Abordam-se, ainda, os critrios de seleo daqueles

    bens e valores fundamentais da sociedade que devam ser objeto de tutela penal nos diferentes

    perodos histricos. Por fim, prope-se uma abreviada discusso sobre as novas categorias de bens

    supraindividuais, difusos ou coletivos e suas incidncias no sistema jurdico-penal.

    PALAVRAS-CHAVE: Bem jurdico-penal. Direito Penal. Bens supraindividuais.

    ABSTRACT

    This work attempts to reveal the importance of the legal rights doctrine in criminal science and

    in the discussion on the criminal protection of non-individual values. For such, the progress of

    the referred theory is traced, starting from its origins, in the 19th century. Therefore, we present

    the criteria for the selection of these rights and fundamental values of society that should be the

    objects of criminal protection in different historical periods. Finally, a brief discussion is proposed

    on the new categories of rights (supra-individual, diffuse and collective) and their incidence on the

    Criminal Legal System.

    KEYWORDS

    Criminal legal rights. Criminal Law. Supra-individual rights.

    SUMRIO

    1 Introduo 2 Da noo de pecado como crime ideia de bem jurdico como objeto de tutela

    2.1 A disparidade da discusso propedutica de Binding e Liszt sobre o bem 3 Do advento das

    teorias crticas no perodo da pretensa superioridade da raa ariana s teorias sociolgicas do

    ps-guerra 4 As teorias constitucionais como fronteira ao campo de abrangncia estatal na seleo

    dos bens jurdicos 5 A proposta de discusso: As novas categorias de bens como bens jurdicos susce-

    tveis de tutela penal? 6 Concluso 7 Bibliografia

    1 Enviado em 23/4, aprovado em 6/7 e aceito em 30/7/2009.2 E-mail: [email protected].

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    1 Introduo

    Criada no sculo XIX, com o objetivo de limitar o legislador penal, a doutrina do

    bem jurdico surge como um aspecto fundamental no estudo da teoria do delito. No mesmo

    sentido, buscam-se fixar em concreto, supondo a relao entre bem jurdico e sano

    penal critrios para selecionar aqueles bens e valores fundamentais da sociedade, uma

    vez que somente estes devem ser objeto de ateno do construtor da lei penal.

    Por assim dizer, a cincia do Direito Penal importante para concretizar, selecionar

    e individualizar racionalmente os interesses merecedores de proteo penal. Agrega-se

    a esse ponto uma relao na qual a pena imposta uma consequncia ocasionada pela

    condio axiolgica do bem, e este tem sua relevncia exatamente na proteo exercida

    pela pena. Para Francisco de Assis Toledo:

    Os bens so, pois, coisas reais ou objetos ideais dotados de valor, isto , coisas materiais e objetos imateriais que, alm de serem o que so, valem. Por isso so, em geral, apetecidos, procurados, disputados, defendidos, e, pela mesma razo, expostos a certos perigos e ataques ou sujeitos a determinadas leses. (TOLEDO, 1994, p. 15)

    Na mesma perspectiva, ainda que os valores a serem protegidos variem conforme

    o modelo de sociedade, tornando-se utpica a real concretizao na identificao do

    bem jurdico por meio da funo da pena, encontra-se neste tema, diretamente conexo

    ao Direito Penal moderno, uma importncia primordial para um Estado Democrtico e

    Social de Direito.

    2 Da noo de pecado como crime ideia de bem jurdico como objeto de tutela

    Em pocas mais remotas, dentro de um contexto teolgico, o ilcito penal era

    entendido como uma ofensa grave contra os deuses: antes de tudo, um pecado. J no

    Iluminismo, h uma substituio da razo da autoridade pela autoridade da razo, dita

    como progresso da vida. Desponta desse movimento uma viso diferente da sociedade,

    em que o Direito Penal entendido como um sistema de controle social, evitando o

    arbtrio judicial em relao gravidade das penas impostas. Era uma ideia de secula-

    rizao, separando o Direito Penal das leis divinas e do poder religioso. Consoante Luiz

    Regis Prado:

    Na filosofia penal iluminista, o problema punitivo estava completamente desvincu-lado das preocupaes ticas e religiosas; o delito encontrava sua razo de ser no contrato social violado e a pena era concebida somente como medida preventiva. (PRADO, 2003, p. 28)

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    Dessa forma, o ilcito penal tornara-se uma leso de um direito subjetivo alheio,

    ou seja, pratica um crimen aquele que atentar contra a liberdade garantida pelo

    contrato social. Como era entendido por alguns autores, o crime, em lato sensu, uma

    ao contrria ao direito alheio, cominada na lei penal. Em outras palavras, a partir

    da teoria contratualista inserida na atmosfera penal, surge o delito entendido como

    ofensa a um direito subjetivo e individual, sendo este direito um propenso garantidor da

    liberdade pessoal. Seguindo essa linha, Carrara, ilustre representante da Escola Clssica

    Italiana, tambm considera o crime como violao a um direito subjetivo. Segundo

    Cesare Bonesana, o marqus de Beccaria,

    Alguns delitos destroem imediatamente a sociedade, ou quem a representa; alguns ofendem a segurana particular de um cidado na vida, nos bens ou na honra; outros so aes contrrias quilo que cada um obrigado a fazer, ou a no fazer, com vistas ao bem pblico. (BECCARIA, 1979, p. 86)

    Nesse contexto, somados leso a direitos subjetivos, danosidade social e

    necessidade da pena, surgem como elementos bsicos da poltica criminal contra

    a arbitrariedade da justia como tambm, limitando o legislador penal, de modo a

    favorecer ou garantir os bens individuais os seguintes aspectos: o contratualismo, sendo

    o contrato social o fundamento do jus puniendi; o legalismo, delitos e penas descritos

    na lei; o utilitarismo, no sentido da pena como meio de defesa social; e a secularizao,

    representativa da autonomia do Direito Penal em relao s leis divinas.

    Em um momento ulterior, ao adentrar no positivismo da Escola Histrica, Birnbaum

    foi o primeiro autor a introduzir no Direito Penal a ideia de bem jurdico material como

    objeto de tutela, e no mais a ofensa a um direito subjetivo como fundamento da sano

    penal. Afirmava ele: Se se quer tratar o delito como leso, o essencial relacionar

    necessariamente este conceito com a sua natureza; no com um direito, seno como

    um bem [...] sempre bem, no o direito, o que se v diminudo (apud MALARE,

    1992, p. 27). Desse modo, o que resulta ofendido no homicdio o bem da vida, e no o

    direito subjetivo vida, como diziam os iluministas.

    2.1 A disparidade da discusso propedutica de Binding e Liszt sobre o bem

    Aps o importante momento histrico da doutrina do bem jurdico, em decorrncia

    da sua introduo ao estudo do crime, surgem distintas tcnicas de ensino; entre elas, a

    de Binding, com uma dimenso formal, por meio de um jusracionalismo positivista, e a de

    Von Lizst, a partir de uma relao entre bem jurdico e indivduo ou sociedade, diante de

    um positivismo naturalista. Para Binding, o bem jurdico de criao livre do legislador,

    tudo o que importante para a ordem jurdica, definido da seguinte maneira:

  • p. 308 Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, n. 25, p. 305-313, 2009

    Tudo o que em si mesmo no um direito, mas que aos olhos do legislador de valor como condio da vida sana da comunidade jurdica, em cuja manuteno inclume e livre de perturbaes tem interesse desde seu ponto de vista e que por isso faz esforos por meio de suas normas para assegurar-lhe diante de leses ou perigos no desejados. (BINDING apud GOMES, 2002, p. 77)

    Assim, entende o autor que o delito uma ofensa a um direito de obedincia

    estatal, sendo que agredindo a este ofender tambm o bem jurdico, por vincular-se

    este norma. Todavia, para Von Liszt:

    Bem jurdico o interesse juridicamente protegido. Todos os bens jurdicos so interesses vitais do indivduo ou da comunidade. A ordem jurdica no cria o inte-resse, ele criado pela vida; mas a proteo do Direito eleva o interesse vital categoria de bem jurdico [...] os interesses vitais resultam das relaes da vida entre os mesmos indivduos ou entre os particulares e a sociedade organizada em Estado e vice-versa [...] a ordem jurdica delimita as esferas de ao (Machtge-biete) de cada um [...] faz da situao da vida (Lebensverhltnis) uma situao do Direito (Rechtsverhltnis) [...] a proteo jurdica que presta a ordem do Direito aos interesses da vida a proteo pelas normas (Normenssachtz). Bem jurdico e norma so os conceitos fundamentais do Direito. (VON LISZT, s/d. t. 2, p. 6)

    Ao contrrio do que pensa Binding bem jurdico de criao exclusiva do

    legislador , para Von Liszt no h tal exclusividade, pois o interesse transformado em

    bem jurdico est presente na sociedade. Ainda, o fim do direito o de proteger os

    interesses do homem, sendo estes anteriores norma. Portanto, a lei no cria o bem

    jurdico, mas o encontra. De qualquer maneira, as duas metodologias encontram um

    ponto comum. Em virtude de ser a norma o meio pelo qual se considera um bem como

    merecedor de tutela estatal, o Estado a tem para o exerccio de uma poltica criminal.

    3 Do advento das teorias crticas no perodo da pretensa superioridade da raa

    ariana s teorias sociolgicas do ps-guerra

    Em meados do sculo XX, por meio das orientaes espiritualistas influenciadas

    pela filosofia axiolgica do neokantismo, a noo de bem jurdico foi menosprezada,

    deixando de ser a essncia do conceito de delito, o qual passou a ser considerado como

    mera leso norma ou violao de um dever.

    Sobre o assunto, Luiz Flvio Gomes, afirma: [...] o ncleo do delito se afasta

    do conceito de bem jurdico e passa a ser constitudo (a) pela violao de um dever,

    ou (b) pelo desvalor de uma inteno interior, ou (c) pelo rompimento da fidelidade do

    sujeito ou, ainda, (d) pela violao de um valor cultural (GOMES, 2002, p. 80).

  • p. 309 Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, n. 25, p. 305-313, 2009

    Nessas doutrinas crticas ou relativistas , tendo como palco o nacionalismo e o

    socialismo da poca, o bem jurdico, por ter sido entendido como criao discricionria

    do legislador positivismo da Escola Histrica , perdeu sua importncia, pois o que

    realmente importava no era a violao de um bem, mas a vigncia e violao da prpria

    norma imposta por aquele Estado.

    A teoria finalista de Welzel pode ser inserida na concepo das referidas teorias,

    pois relativizou a noo do bem jurdico, uma vez que, conforme este autor, tutelar um

    bem um meio para se chegar a uma proteo tico-social. Para Jakobs, o Direito Penal

    no protege o bem jurdico, mas somente a norma: a ideia do funcionalismo sistmico

    do Direito Penal (JAKOBS, 1995, p. 44 et seq.).

    Aps a 2 Guerra Mundial, a teoria do bem jurdico foi sendo novamente inserida

    no contexto da problemtica penal; at mesmo na Alemanha, onde o nacionalismo e a

    Escola de Kiel haviam abandonado tal proposio. De acordo com Toledo, no Projeto

    Alternativo, da Alemanha Federal, chegou-se a incluir um pargrafo estabelecendo, pra

    no deixar dvidas, que as penas e medidas se destinam proteo dos bens jurdicos

    (TOLEDO, 1994, p. 18).

    Embora a reintroduo do bem jurdico tenha acontecido realmente a partir das

    teorias constitucionais dos anos 1970, as teorias sociolgicas, mesmo no claras quanto

    ao conceito de bem jurdico e, consequentemente, definio de crime, de certa forma,

    ajudaram para tal estudo.

    Eentre vrios tericos, destacam-se Amelung, Calliess e Santiago Mir Puig.

    Amelung, tambm considerado adepto das teorias crticas, entende que o conceito

    de bem jurdico est no centro da teoria sistmica, substituindo-o pela nomenclatura

    danosidade social, sendo que delito o que causa dano sociedade. J Calliess insere

    o conceito de bem jurdico dentro de uma estrutura social de interao, vinculada

    ao Estado Democrtico de Direito, de modo que as sanes penais no tm funo de

    privao, e sim de estabelecer as oportunidades de participao.

    Nessa mesma tica, Mir Puig evidencia que a limitao conceitual do Estado

    est na sociedade. Com isso, bem jurdicos, assim, so condies necessrias de um

    correto funcionamento dos sistemas sociais e sempre que tais condies se traduzem em

    concretas possibilidades de participao do indivduo nos processos de interao social

    (1982, p. 140).

    Muitas so as concepes modernas sociolgicas sobre o tema em questo, porm

    nenhuma delas conseguiu extrair um conceito material preciso a respeito do bem jurdico.

    Tambm no houve convincentes estudos sobre a razo de uma sociedade criminalizar

    determinados atos e outros no. Logo, grande parte da doutrina atual proclamou a

    Constituio como um adequado meio para que a noo do bem jurdico venha a limitar

    o poder punitivo do Estado. Surgem, ento, as teorias constitucionais.

  • p. 310 Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, n. 25, p. 305-313, 2009

    4 As teorias constitucionais como fronteira ao campo de abrangncia estatal na seleo dos bens jurdicos

    Em sntese, essas teorias evidenciam o limite imposto ao Estado perante a

    eleio daqueles bens merecedores de tutela. O conceito de bem jurdico deve ser

    entendido como constitucional, j que a Constituio centra na pessoa e nos seus direitos

    fundamentais a base de toda realidade jurdico-poltica do Estado.

    Conforme a didtica de Luiz Regis Prado (2003), as teorias constitucionais podem ser

    agrupadas de acordo com o mtodo de vinculao com a norma constitucional: a) teorias

    de fundamento constitucional estrito, isto , atrelando o bem jurdico somente Consti-

    tuio; b) e teorias de carter geral, percebendo o tema de forma ampla, ou seja,

    tambm abrangendo bens jurdicos implcitos.

    Nas primeiras teorias, destacam-se, entre vrios, os entendimentos de Gonzales

    Rus e Bricola. Aquele entende que o legislador infraconstitucional deve se orientar a

    partir do texto da Constituio, encontrando os bens jurdicos tutelados e a sua forma

    de atuao na poltica criminal. De acordo com Luiz Flvio Gomes, Bricola:

    Ao definir o delito como um fato previsto de forma taxativa na lei e idneo para

    ofender um valor constitucionalmente significativo, sustenta a legitimidade da

    sano penal somente diante da presena de uma violao de um bem que, ainda

    que no tenha o grau de relevncia da liberdade pessoal que sacrificada, est ao

    menos dotada de significao constitucional. (GOMES, 2002, p. 89)

    J nas teorias de carter lato sensu, enfatizam-se, embora demonstrarem certa

    influncia funcionalista, as concepes de Roxin e Rudolphi. Roxin parte da ideia moderna

    de Estado Democrtico e Social de Direito. Segundo ele, para uma existncia em comum,

    preciso que o Direito Penal assegure os bens mais valiosos da sociedade a vida, a

    integridade fsica, a propriedade, entre outros , punindo eventuais ofensas e garantindo

    as prestaes pblicas necessrias existncia do indivduo, como a assistncia social.

    Semelhantemente, Rudolphi, tambm componente do grupo dos adeptos s teorias

    eclticas, sugere um amparo na Constituio, afirmando que o legislador penal ordinrio

    est preso aos valores fundamentais existentes, pois os bens jurdicos j apresentam

    referncia constitucional e no podem resultar em desconformidade com tais valores.

    Faz-se referncia, tambm, a uma corrente intermediria (teoria mista) das

    teorias constitucionais, a qual afirma no haver antagonismos entre as duas diferentes

    concepes recm comentadas.

    Por fim, ainda que alguns autores afirmem que a prpria sociedade quem

    determina quais bens necessitam de tutela penal, muitos autores citaram a Constituio

    como o instrumento mais hbil para a determinar os interesses jurdicos realmente

    merecedores da interveno estatal.

  • p. 311 Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, n. 25, p. 305-313, 2009

    5 A proposta de discusso: as novas categorias de bens como bens jurdicos suscetveis

    de tutela penal?

    Para responder tal pergunta, necessrio traar um sucinto esboo da diviso

    dos valores considerados jurdicos. Os bens jurdicos podem ser da seguinte forma:

    individuais, ou seja, relacionados prpria pessoa (vida, liberdade, propriedade, honra

    etc.); supraindividuais, correspondendo s mais diferentes espcies: bens pblicos

    (segurana pblica, v.g.), institucionais (por exemplo, segurana do Estado) ou difusos

    (meio ambiente, entre outros). Os bens pblicos, institucionais e difusos apresentam

    esse carter supraindividual porque no dizem respeito a um indivduo determinado, ou

    esto relacionados sociedade ou pertencem a uma coletividade.

    A grande polmica, no entanto, est sobre a titularidade do interesse,diga-se, bem

    jurdico. Essa questo, porm, regressa-nos j citada divergncia entre o pensamento

    de Binding e von Liszt, sobre quem seria o titular do bem jurdico. Entretanto, e

    respeitando os importantes ensinamentos dos referidos doutrinadores, procuraremos

    uma soluo em outras observaes.

    bvia a real importncia dos bens supraindividuais no mbito social; entretanto,

    contestvel se esses mesmos bens so merecedores de tutela penal. De acordo com

    uma concepo dualista do bem jurdico, este no s ser individual como tambm

    social ou comunitrio, abrangendo do mesmo modo os bens jurdicos no individuais,

    tambm merecedores de interveno punitiva. Por outro lado, a teoria monista expe o

    bem jurdico a partir de uma concepo estatal ou pessoal e individual.

    Observa-se, assim, a existncia de, por um lado, uma concepo antropocntrica,

    aquela que coloca o homem como centro de valor: algo bom se o para o homem; e por

    outro, uma ecocntrica, assentando a natureza como um ncleo de valor a fim de proteger

    os recursos naturais em benefcio das geraes futuras. Contudo, podemos compreender

    tambm uma teoria mista, em que se sustenta a existncia de bens jurdicos supraindi-

    viduais, mas to somente ligados ao homem, por si ou pelo o que interessa.

    Dessa forma, podemos verificar vrios entendimentos sobre o tema. Alguns autores,

    como Strantenwerth e Jakobs, sugerem, at mesmo, abandonar a teoria do bem jurdico

    para o Direito Penal. Jakobs afirma que o Direito Penal no protege o bem jurdico, mas a

    norma. Outros doutrinadores Hassemer, Prittwitz, Francisco Muoz Conde, Roxin, Jorge

    de Figueiredo Dias, entre outros compreendem a relevncia da teoria do bem jurdico ao

    Direito Penal. A Escola de Frankfurt (Hassemer, Prittwitz et al.) prope um afastamento

    do Direito Penal das categorias fora dos direitos individuais. Em contrapartida, Figueiredo

    Dias (2007, p. 43 et seq.) entende serem capazes de proteo penal tambm os

    bens relacionados a um aspecto geral isto , supraindividuais, coletivos ou difusos.

  • p. 312 Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, n. 25, p. 305-313, 2009

    Para Roxin (2006, p. 19), a definio de bem jurdico no pode ser limitada a bens jurdicos

    individuais: ela abrange tambm bens jurdicos gerais. Contudo, conforme o mesmo autor,

    estes bens somente so legtimos quando convm ao prprio cidado.

    Por fim, o assunto demonstra sua maior importncia geralmente em razo de

    acontecimentos que causam certo repdio sociedade, em especial os danos causados

    ao meio ambiente; momento pelo qual os legisladores o utilizam para criarem leis com

    o objetivo de proteger a tal bem jurdico, como a Lei dos Crimes Ambientais , Lei n

    9.605/1998 e, mais recentemente, a nova Lei de Biossegurana Lei n 11.105/2005 ,

    inclusive com a observao de um novo postulado jurdico, de preponderante proteo

    ambiental: o princpio da precauo.

    6 Concluso

    Vivemos em uma poca na qual a imprpria interveno penal cada vez maior:

    existe uma forte presena da tutela de bens supraindividuais. A partir de uma viso

    crtica a esse modelo de Direito Penal, encontramos uma concepo individualista

    do bem jurdico-penal, porm orientada por um aspecto misto. Ou seja: tais valores

    jurdicos supraindividuais devem ser explicados conforme a referida orientao indivi-

    dualista (diga-se: antropocntrica).

    O Direito Penal um sistema direcionado ao indivduo: este que ir receber s

    suas costas o peso da violenta interveno punitiva estatal. Portanto, no podemos nos

    fazer de conceitos exclusivamente relacionados a interesses abstratos, sejam coletivos,

    gerais, difusos, etc. Ao menos, para estes bens supraindividuais serem suscetveis de

    tutela penal pelo Estado, um requisito indispensvel: que eles tenham uma considervel

    relao com o indivduo, desempenhando um desenvolvimento pessoal neste.

    Ademais, o sistema penal nada mais do que somente uma das solues possveis

    para a garantia da ordem econmica e social. O controle social pode ser exercido por

    intermdio da famlia, da medicina, da educao, da religio, da atividade artstica,

    dos meios de comunicao, etc. Assim, o controle social penal s deveria entrar em

    funcionamento quando fracassarem os mecanismos primrios, os quais devem interferir

    previamente, e restar gravemente ofendido um bem jurdico relevante, de modo a

    proporcionar a interveno de tal sistema punitivo mais incisivo.

    Por tudo, independentemente da forma de se individualizarem os bens que

    necessitam de tutela penal pelo Estado, no pensamento jurdico moderno h a certeza

    de que a doutrina do bem jurdico, guiada pelos princpios fundamentais proclamados

    no Estado Social e Democrtico de Direito, mais que fundamental para o estudo da

    problemtica penal: tal doutrina limita o legislador e evita a arbitrariedade do Estado.

  • p. 313 Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, n. 25, p. 305-313, 2009

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