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GESTÃO E TERRITÓRIO: O CASO DA EMPRESA FLEISCHMANN & ROYAL NO NOROESTE FLUMINENSE AUGUSTO CÉSAR PINHEIRO DA SILVA' ABSTRACT Territory and management: a study of the Fleíschmann & Royal Corporatíon's strategíes in the Northwest of Rio de Janeiro state Based on the author's master's the- sis, lhe artiele makes use of the eoneepts of territory and territorial management to analyze the strate- gies followed by the Fleisehmann & Royal Corporation in northwest- em Rio de Janeiro state. By means of a seríes of modernization projeets put forth in lhe last three deeades, Fleisehmann & Royal has signifieant/y altered the strueture of the regional dairy aetivities, whieh now present an inereasing monop- sonie nature. 1. Considerações iniciais Na ciência geográfica, a importância dada à identificação e análise dos agentes e atores que agem e interagem nos diferentes espaços mundiais, torna mais intrincado o estudo das complexas organizações sócio-econômi- co-político-culturais encontradas, atualmente, na superfície do planeta. Numa forte dinâmica interativa associações, conflitos e resistências tendem a ser estabelecidos e, assim, a partir deles, a Geografia se enriquece e amplifica a sua densidade, tornando-se um ponto de crescente interesse para a socieda- de moderna . . Mestre em Geografia pela UFRJ. Este artigo analisa algumas das principais práti- cas corporativas da Empresa de Produtos Alimentícios Fleischmann & Royal num espaço de produção leiteira do sudeste brasileiro, espaço este que compõe um sig- nificativo território de gestão da empresa em questão. Este tema foi desenvolvido na dissertação de mestrado do autor, defendida em setembro de 1996.

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GESTÃO E TERRITÓRIO: O CASO DAEMPRESA FLEISCHMANN & ROYAL NO

NOROESTE FLUMINENSE

AUGUSTO CÉSAR PINHEIRO DA SILVA'

ABSTRACT

Territory and management:a study of the Fleíschmann & Royal Corporatíon's strategíes

in the Northwest of Rio de Janeiro state

Based on the author's master's the-sis, lhe artiele makes use of theeoneepts of territory and territorialmanagement to analyze the strate-gies followed by the Fleisehmann& Royal Corporation in northwest-em Rio de Janeiro state. By means

of a seríes of modernizationprojeets put forth in lhe last threedeeades, Fleisehmann & Royal hassignifieant/y altered the strueture ofthe regional dairy aetivities, whiehnow present an inereasing monop-sonie nature.

1. Considerações iniciais

Na ciência geográfica, a importância dada à identificação e análise dosagentes e atores que agem e interagem nos diferentes espaços mundiais,torna mais intrincado o estudo das complexas organizações sócio-econômi-co-político-culturais encontradas, atualmente, na superfície do planeta. Numaforte dinâmica interativa associações, conflitos e resistências tendem a serestabelecidos e, assim, a partir deles, a Geografia se enriquece e amplifica asua densidade, tornando-se um ponto de crescente interesse para a socieda-de moderna .

. Mestre em Geografia pela UFRJ. Este artigo analisa algumas das principais práti-cas corporativas da Empresa de Produtos Alimentícios Fleischmann & Royal numespaço de produção leiteira do sudeste brasileiro, espaço este que compõe um sig-nificativo território de gestão da empresa em questão. Este tema foi desenvolvido nadissertação de mestrado do autor, defendida em setembro de 1996.

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Essa interatividade de forças que se estabelece no espaço mundialpossui magnitudes e intensidades distintas e atuam nas mais variadas esca-las de apreensão do real. Das forças locais às forças de abrangência planetá-ria, cadeias espaciais de poder são ordenadas, em determinados momentoshistóricos, construindo/reconstruindo territórios onde forças convergentes edivergentes convivem, cada qual com seus interesses e desejos, tentandoatingir os seus objetivos da melhor maneira possível.

Os grupos econômicos, por sua capacidade associativista, controlesobre importantes recursos humanos, tecnológicos e econômicos e sua dinâ-mica mobilidade, nas diversas instâncias dos poderes público e privado, sãoimportantes fontes para os estudos de gestão do território, pois viabilizam oentendimento de variadas dinâmicas espaciais que, pelas suas complexida-des, ramificam-se nos diversificados setores produtivos da sociedade global.Este poder se reflete espacialmente pela organização de formas distintas deprodução econômica e pela existência de variados padrões sócio-espaciaisque, díspares, convivem numa sociedade onde a desigualdade é a regra enão a exceção.

Estabelecendo práticas de associação/cooptação com importantesinstrumentos de ação espacial e exercendo forte influência sobre as deci-sões das macro e micropolíticas governamentais, as empresas que com-põem esses grupos têm significativo peso na configuração de padrõesespaciais particulares e locais, o que exige uma revalorização dos estu-dos empíricos nos diferentes "espaços apropriados" (RAFFESTIN, 1993),objetivando avaliar, com maior clareza, os territórios definidos por essesagentes de gestão espacial.

Essa tendência se adequa ao novo padrão de gestão definido pela atu-ai desconcentração das decisões políticas do âmbito federal. Segundo MA-CHADO (1995), a gestão é um processo político que envolve as mais varia-das instâncias do poder público, fato que vem ampliando a força dos podereslocais, com a retomada do processo democrático no país. Isto tem geradouma descentralização das decisões que, a nível dos investimentos públicos eprivados, significa uma administração mais ampla de fatias maiores de recur-sos por escalas de poder de menor abrangência espacial. Assim sendo, asempresas corporativas buscam adaptar as práticas de suas diferentes unida-des espaciais às tendências locais de administração dos poderes constituí-dos e representativos do lugar, identificando, fundamentalmente, as realida-des locais - estágio de desenvolvimento de sua estrutura sócio-econômica,potencial de investimento de suas elites e importância dos seus instrumentosde representação político-social. Isto, sem dúvida alguma, abre um significa-tivo leque de estratégias a serem desenvolvidas por esses poderosos agen-tes de organização espacial que podem - e devem - ser identificadas, anali-sadas e incorporadas nos estudos geográficos de território, complexificando,ainda mais, a análise dos "espaços apropriados" e das possibilidades para asua gestão.

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2. A importância da Fleischmann & Royalna economia nacional

Aplicando-se o perfil teórico, anteriormente visto, à análise a seguir,busca-se entender as dinâmicas e as interações espaciais de uma unidadefabril - a agroindústria Leite Glória - pertencente à Empresa Produtos Ali-mentícios Fleischmann & Royal LIda, no seu território de ação. Esta empresaé uma das muitas que compõem o importante grupo econômico NabiscoHolding Corpo (de capital majoritário americano e com sede em New Jersey,EUA), de importante representatividade no espaço econômico mundial, e queconta com um variado e intrincado número de unidades que caracterizam oseu multifacetamento e a sua articulação na "economia-mundo".

Por sua vez, a Fleischmann & Royal, empresa que atua no setoralimentar e é um dos braços econômicos do grupo no país, possui inúme-ras unidades em território brasileiro que atuam nos mais variados setoresda indústria nacional. Com onze fábricas espalhadas pelo país e sete fili·ais de vendas, ela atua, tradicionalmente, no setor agroalimentar nacionaldesde a década de 30. Especificamente no setor leiteiro, a Fleischmann &Royal possui, além da unidade fabril Itaperuna, indústria beneficiadora deleite em pó, outras duas unidades transformadoras de leite no país, locali-zadas nas cidades de Governador Valadares (Minas Gerais) e Itapetininga(Bahia).

Maior das três indústrias beneficiadoras de leite da empresa em solobrasileiro, a unidade Itaperuna - inicialmente uma pequena indústriatransformadora de capital nacional (Leite Glória) - passou a ser assessoradapela empresa Fleischmann em 1961, dando continuidade aos projetosexpansionistas desse empreendimento americano na economia nacional, pro-cesso esse iniciado em 1931, com a alocação de uma fábrica de fermento empó, na cidade de Petrópolis (RJ). Especificamente no setor agropastoril brasi-leiro e claramente identificado no espaço leiteiro do noroeste/norte fluminense,sul capixaba e da zona da mata mineira, esse grande empreendimento docapital urbano-industrial internacional vem encontrando caminhos bem espe-cíficos para desenvolver suas práticas de caráter corporativo na área e definirum território de ação.

Atualmente, a unidade Itaperuna da Fleischmann & Royal produz leiteem pó instantâneo e integral, creme de leite, leite condensado e em pó des-natado e soro de leite em pó. Diversificando a sua atuação em outras áreasdo setor alimentar, a empresa americana tem investido na ampliação da pro-dução de alimentos e sobremesas finas destinados às classes A e AA. Estatendência vem se concretizando com os atuais investimentos na área de bis-coitos finos - Biscoitos Nabisco - e nas variações lácteas destinadas às clas-ses média e média-alta, como iogurtes, creme de leite e leite condensadoque, atualmente, são os produtos mais lucrativos da empresa. O seu controlesobre a matéria-prima leite passa a ser, portanto, fundamental para os seus

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projetos, o que explica os altos investimentos da empresa para a moderniza-ção de suas atividades no seu território.

Administrando, diretamente, seis Postos de Recolhimento de leite(PRls) estrategicamente alocados em municípios-chave na sua área de atu-ação, a leite Glória coordena fatia significativa da matéria-prima produzidana importante bacia leiteira da área, organizando lá suas práticas corporativas.Para os PRls localizados nos municípios que lhe dão nome -Italva, Carangola,Alegre, Cambucí, Porciúncula e Muriaé - converge a produção leiteira deaproximadamente 2.000 produtores locais ligados à indústria beneficiadora eà cooperativa de Itaperuna (CAPll), o que confere à empresa um importantepapel no processo de gerenciamento da atividade leiteira regional.

3. A conjuntura histórica definidora da parceriaempresa americana / agroindústria / cooperativa no

Noroeste Fluminense

Para um melhor entendimento das atuais práticas para a gestão doterritório implementadas, na área em estudo, pela Fleischmann & Royal, trêsmomentos - entendidos por essa análise como fundamentais - foram seleci-onados e temporizados para uma real compreensão da evolução das dinâmi-cas gerenciais e espaciais da corporação naquele espaço produtivo. A em-presa americana vem desenvolvendo estratégias bastante significativas paraconcretizar a sua participação no lucrativo mercado brasileiro de alimentos,particularmente no setor de leite e derivados. Para tal, o estabelecimento deum território de ação se fez fundamental e, para defini-lo e redefini-Io, estaempresa vem desenvolvendo diferentes estratégias, ao longo de sua história,para expandir seus investimentos e suas ações para outras áreas produtorasde leite, além de sua base gerencial, a região noroeste fluminense.

Fundamental observar que, para a estruturação de suas práticas degestão territorial na área, houve a evolução de uma importante parceria defi-nida entre os elementos gerenciadores da atividade leiteira regional, a partirda entrada do capital corporativo na região noroeste. Um grupo de represen-tantes da Fleischmann & Royal foi ciceronado, em meados dos anos 50, porgrandes pecuaristas da região de Itaperuna e de Muriaé associados à Coope-rativa Agro-Pecuária de Itaperuna LIda. - CAPll, importante e tradicional co-operativa fundada por pecuaristas itaperunenses em 1941 e que possui, ain-da hoje, uma expressão regional bastante significativa - a fim de estimulá-losa investir no promissor setor de transformação das potenciais áreas leiteiraslocalizadas nos vales dos rios Pomba e Muriaé. Essas articulações políticasenvolveram personagens e entidades bastante significativas nas decisões deinvestimentos a níveis local, estadual e internacional, como os principaispecuaristas da região (coordenadores político-administrativos da CAPll e dopoder político local), a Associação Comercial do Estado do Rio de Janeiro (ACERJ)

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e vários representantes comerciais de empresas internacionais com forte proje-ção no mercado da época, entre estes a Havister e a Standard Oil.

Interessados pelo que foi observado e vencendo barreiras culturaisregionalistas, muitas vezes intransigentes e enraizadas na área pelos ideaispopulistas e nacionalistas vigentes naquele momento político, os represen-tantes da empresa americana se associaram (com o apoio político da CAPll)à indústria leite Glória como assessora de marketing, nos setores de comer-cialização e distribuição dos seus produtos no mercado brasileiro, utilizando-se, para isso, de novas tecnologias e de modernas técnicas de comercializa-ção e derivação da matéria-prima.

O impacto espacial da empresa americana na região noroestefluminense, a partir dessas associações, resultou em um projeto de gestãoterritorial único, e a atividade leiteira regional se diversificou e se dinamizou,além de sua capacidade de produção ter sido significativamente ampliada. Amodernização da produção foi acarretando, porém, a ampliação, de formagradual e constante, das graves contradições existentes nos espaços produ-tores de leite das áreas atingidas pelos projetos corporativos da empresaamericana, elevando o processo de exclusão sócio-econômica numa área jábastante afligida por atrasos estruturais significativos que limitam aincrementação da atividade em que foi especializada.

4. As fases da parceria entre os agentes gerenciadoresda atividade leiteira no Noroeste Fluminense

A parceria definida, em 1961, entre a empresa Fleischmann (capitalinternacional), as forças políticas locais e não-locais (Estado/cooperativa) e aagroindústria Leite Glória (capital nacional) resultou na coordenação e na or-ganização conjunta da atividade leiteira da área por esses três agentes. Con-siderada a primeira fase de gestão da corporação americana sobre o espaçoprodutivo da região, este momento significou a chegada do "ideológico exter-no" da empresa, no lugar- global x local- (SANTOS, 1993), e esse empreen-dimento internacional, devido às suas potencialidades financeiras, tecnológicase organizacionais amplamente mais modernas e diversificadas do que osempreendimentos nacionais (FREDERICO, 1981 " conseguiu, lentamente,suplantar a indústria local e a principal instituição responsável pela preserva-ção e pela luta dos interesses político-econômicos dos pecuaristas regionais:a CAP1L. Essa cooperativa, então cooptada, passou a ser "diluída, difundidae dirigida" (SILVA,1991 lno espaço produtor de matéria-prima, pela empresaamericana, para a obtenção dos seus próprios fins. O controle do territóriopassou, então, a ser efetivado por práticas gerenciais corporativas, em queestratégias de gestão e políticas locais de gerenciamento da produção leitei-ra passaram a ser definidas pela Fleischmann & Royal. a partir da identifica-ção dos interesses e dos desejos dos cooperativados da comunidade. Carac-

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terizada como fundamental para a definição de suas práticas de gestão, aassociação da empresa americana, com cooperativas para a legitimação deseus projetos, fez com que essas entidades associativistas assumissem odiscurso modernizador das elites locais (intensamente atreladas ao interessecorporativo), perpetuando a hegemonia política destas na área e, ao mesmotempo, concretizou os projetos de reprodução de capital da corporação e suaexpansão na área.

Ao entrarem em contato com o potencial de reprodução do capital daempresa americana, suas lógicas operacionais e sua ideologia, os produto-res leiteiros sentiram-se pressionados a se inserir, dentro do grau de necessi-dade do sistema, nos circuitos de troca que passaram a ser gerenciados pelacorporação. A incorporação das avançadas técnicas de produção pela tradi-cional agropecuária do noroeste fluminense acabou por criar - ao longo daspráticas de gestão da empresa - uma estratificação ainda mais acentuadados produtores locais, alterando as bases da produção leiteira e excluindoparte significativa dos pecuaristas do mercado competitivo. A concentraçãopromovida pelo processo impactante de tecnologia no setor especializou aregião para um novo estágio da produção de excedente, sendo que o leiterecebeu a maior faixa dos recursos para atender às necessidades daagroindústria emergente. Funções locais e regionais foram reorganizadas e omercado urbano passou a determinar o montante da produção leiteira. Essasáreas, então, atingidas por essa dinâmica, passaram a fazer parte de umsignificativo território de gestão da Fleischmann & Royal no espaço leiteirobrasileiro, já que a corporação organizando a produção, a níveis local e regi-onal, passou a expandir novas tecnologias em diferentes setores produtivos,criando uma dependência acentuada entre ela e esses espaços, tecnologica-mente mais atrasados.

Para concretizar essa importante fase inicial de gestão da empresa foifundamental a utilização do marketing na definição de estratégias dacorporação para a organização da produção leiteira na área. Uma das impor-tantes táticas empresariais foi a vinculação da tradicional marca Glória aonome Fleischmann & Royal na mídia. A identificação da população do noro-este fluminense, entre pecuaristas e consumidores, com os produtos Glória éhistórica e afetiva. Os pecuaristas mais tradicionais - e isso passa atravésdas gerações de produtores de leite - ainda confiam no nome Glória "que éum nome da terra, que a gente confia e que surgiu dos esforços da populaçãolocal" (pecuarista itaperunense em entrevista de campo/1995). Para essespecuaristas, a parceria GlórialFleischmann & Royal não implicou mudançassubstanciais na agroindústria local, mas sim uma modernização "necessá-ria". Fundamental para a conquista da confiança dos fornecedores de maté-ria-prima e dos consumidores dos produtos Glória, esse tipo de práticacorporativa foi identificada por DAVIDOVICH, quando a autora atestou que"uma empresa necessita se adaptar a imagem da comunidade, como meio deevitar a atuação sindical e evitar os conflitos sociais" (1987: 11).

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Após assumir a responsabilidade na distribuição, comercialização emodernização do marketingdos produtos Glória, a Fleischmann & Royal pas-sou, posteriormente, em 06 de dezembro de 1976, a ter o controle acionárioda agroindústria local, gerenciando, diretamente, o beneficiamento da produ-ção regional de leite. Além dessa importante mudança no gerenciamento daindustrialização da matéria-prima produzida regionalmente, a empresa ame-ricana passou a diversificar os produtos Glória e a ampliar sua área de atua-ção no mercado de laticínios do país. Este momento é definido como o inícioda segunda fase do projeto de gestão do território da corporação na área emestudo.

Fase definida pela internacionalização da decisão, (já que o capitalacionário da Leite Glória passou a ser controlado pela empresa Fleischmann& Royal), esta agilizou suas práticas corporativas naquele espaço regionalfluminense. A CAPIL, totalmente envolvida pelo poder multi facetado da cor-poração, passou a ser o seu "braço direito" na área absorvendo, cada vezmais, os ideais de modernização, disseminados pelo empreendimento ameri-cano para a atividade leiteira. A partir desse momento, um controle mais efe-tivo sobre a qualidade do leite a ser beneficiado foi exigido pela direção da"nova indústria Leite Glória" que iniciou um controle mais efetivo do leite for-necido pela cooperativa para a transformação. Buscando uma matéria-primacom maior teor de gordura, baixa acidez e com uma menor taxa de impure-zas, a Fleischmann & Royal lançou o programa Qualítotal (qualidade totalpara os produtos da empresa), no início dos anos 80.

Uma nova estrutura e outra dinâmica de produção foram necessáriaspara o cumprimento das necessidades de reprodução do capital da empresaamericana, sendo que a ação espacial da CAPIL passou a ser controladamais intensamente pela agroindústria, a fim de que a cooperativa cumprisseos objetivos da corporação para a transformação da matéria-prima. Sendouma fase de qualificação da produção leiteira, este momento implica, neces-sariamente, a maximização do gerenciamento da atividade regional, a partirdai racionalizada, cada vez mais, com o intuito de se obter um padrão interna-cional de qualidade para os produtos Glória.

A CAPIL, como instrumento institucional fundamental para a concreti-zação da gestão territorial da Fleischmann & Royal na região, teve que exigirde seus associados (através do oferecimento de uma assistência técnica maisapurada e direta, além da ampliação de serviços que pudessem melhorar acapacidade de produção dos seus cooperados), um aumento da qualidade damatéria-prima a ser beneficiada. Sob essa nova dinâmica regional, a coope-rativa incentivou os seus cooperados a entrarem nas linhas de crédito agríco-la, para que estes pudessem consumir insumos que viabilizassem a melhoriade qualidade/produtividade da atividade; porém, esses créditos bancários,como foi analisado por CORADINI (1981), atenderam apenas a uma pequenaparcela de agricultores que não correspondiam, necessariamente, aos me-nos capitalizados e mais necessitados de terem acesso ao mercado. Um maior

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endividamento dos agricultores, porém, foi possível devido às satisfatóriascondições creditícias existentes garantidas pelo PDPL (Programa de Desen-volvimento da Pecuária de Leite), que ampliava os prazos de carência para opagamento dos empréstimos adquiridos, além de juros subsidiados abaixodos oferecidos ao mercado pelo sistema bancário da época.

O fim do PDPL - um programa federal de incentivo à pecuária leiteirano país - desestruturou não só a produção de leite, mas também o própriocooperativismo capiliano que, perdendo seu significativo apoio financeiro es-tatal, se viu à mercê das poderosas "forças do mercado aberto". Assim sen-do, a CAPIL, como uma "cooperativa empresarialmente desenvolvida" per-deu, rapidamente, a sua influência sobre a produção leiteira regional, pelafalta de recursos para a manutenção de um quadro funcional satisfatório e pornão conseguir manter a sua densa estrutura espacial, até então adequada aintensa produção da região. Perdendo a confiança dos seus cooperados enão representando mais os interesses do lugar, já que comprometida com aspolíticas rnaxlmlzadoras da empresa americana, a cooperativa passou a com-por O mercado consumidor da Fleischmann & Royal, sua principal aliada atéentão.

A decadência e o fim do PDPL, no final dos anos 80, determinaram oinício da atual fase de gestão do território da corporação na área. Esta fase écaracterizada por um aumento significativo do controle direto da Leite Glóriasobre a captação da matéria-prima, fase esta que era, até meados dos anos80, monopolizada pela CAPIL. Utilizando-se dos princípios de governamen-talidade" dessa importante instituição local, a Fleischmann & Royal criou la-ços de interdependência com a cooperativa, estendendo e ampliando a suagestão na região. Da relação inicial indústria nacional I empresa, ou seja,Leite Glória / Fleischmann & Royal, a parceria se transformou em indústriacooptada / cooperativa (Fleischmann & Royal / CAPI L), estruturando um novoestágio de gestão da atividade leiteira na área em estudo.

A terceira e atual fase foi iniciada em 1987 quando a Fleischmann &Royal passou a arrendar os PRLs pertencentes à CAPIL controlando, maisefetivamente, o processo de captação e resfriamento do leite que converge,diariamente, para a unidade fabril em Itaperuna. O primeiro PRL capilianoque passou a ser diretamente gerenciado pela Leite Glória foi o localizado no

1 CORADINI classifica como "cooperativismo empresarialmente desenvolvido", ascooperativas associadas ao capital mono/oligopolista. Essas cooperativas "extrapolama sua atuação para além da agricultura stricto sensu, aprofundando as suas contra-dições com o seu quadro social em geral" (1981:52).2 A empresa tem consciência de que, para o exercício efetivo de suas práticas gestoras,precisará se relacionar e combinar forças com outras instituições. Estas, envolvidaspelo grande poder gerenciador da empresa, serão cooptadas por ações corporativase passarão, a partir de então, a servir como um instrumento da ação empresarial noespaço. Esse controle se chama governamentalidade (FOUCAULT,1984).

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município de Italva (ex-distrito do município de Campos) em 1987. Adquirindoexperiência nessa importante fase do processo de transformação da matéria-prima, a empresa americana continuou a ampliar o seu controle direto sobreo espaço leiteiro da área ao construir, dois anos mais tarde (1989), um novoPRL em Minas Gerais (PRL Carangola), expandindo o seu território de gestãopara além dos limites políticos do estado do Rio de Janeiro. Um ano maistarde (1990) foi inaugurado o PRL capixaba de Alegre, ampliando-se, aindamais, sua área de atuação nessa importante bacia leiteira do sudeste. Con-cretizando seus planos para um controle efetivo do processo de captação damatéria-prima, a Fleischmann & Royal passou a administrar, diretamente, maisdois PRLs pertencentes à CAPIL, no ano de 1991. Cambuci (comprado) ePorciúncula (arrendado) passaram a ser controlados pela corporação queestendeu, ao mesmo tempo, a sua área de gestão ao inaugurar ummoderníssimo PRL, no importante vale do Rio Muriaé (município mineiro deMuriaé), na Zona da Mata, finalizando a sua expansão sobre os espaços pro-dutores de leite da área.

A dinâmica horizontal da Fleischmann & Royal acabou por relegar umpapel secundário à CAPIL no processo de captação de matéria-prima, e acooperativa, pela falta de maiores recursos e pelo efeito "rolo compressor"exercido pelas políticas da corporação, transformou-se em mais uma unida-de pertencente à empresa na região, como se fosse um sétimo PRL. Ou seja,da parceria inicial entre os elementos gestores da atividade leiteira regionalresultou a compra de um dos empreendimentos (a indústria nacional) e acooptação do outro (a CAPIL), o que mostra a unilateridade dessa parceria.

Concretizada, espacialmente, pelo seu efetivo controle das fases degerenciamento da produção leiteira - da captação até a comercialização - aempresa Fleischmann & Royal atravessa hoje uma intensa fase de profissio-nalização da atividade, quando novas práticas espaciais são planejadas eimplementadas, diretamente por ela, para concretizar a produção e reprodu-ção do seu capital corporativo, como se verá a seguir.

5. O atual estágio das relações empresa americana Icooperativas! produtores leiteiros no território de gestão

da Fleischmann & Royal

A abertura política do país e a globalização dos mercados implementa-ram a chegada de outros agentes com poder de gestão no espaço regionalterritorializado pela Fleischmann & Royal. a partir dos anos 90. O exemplomais claro se refere à italiana Parmalat, que, utilizando-se de práticas deparceria semelhantes às da empresa americana, dinamizou as relações deprodução na área, ao procurar, cada vez mais, impor seu estilo de gestão(mais agressivo e diretivo que o da gerenciadora da marca Glória). AFleischmann & Royal, afetada em seu papel monopolizador na região, tenta

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reagir ao grande potencial financeiro da empresa concorrente, ampliando emodernizando suas dinâmicas espaciais.

Para COUTINHO e FERRAZ, a atual tendência de modernização dasatividades industriais implementadas pelas empresas que atuam na econo-mia nacional foi viabilizada pela chamada globalização da economia. Segun-do eles,

"o empresariado brasileiro foi posto em xeque; a recessão daseconomias interna e externa, acompanhada de uma abertura demercado, ainda que tardia e tímida, começou a assombrar o con-fortável mar de tranqüilidade em que a indústria se achava insta-lada, resultado dos longos anos de letargia em que esta viveu àsombra de políticas protecionistas. Assim, quem não corresseem direção às mudanças - busca da competitividade, através daredução de custos, de uma maior produtividade, de uma maiorqualidade dos produtos e dos serviços e confiabilidade nos pra-zos assumidos com os clientes - provocando uma revolução nosvelhos conceitos, teria os dias contados" (1994:127).

Seguindo essa tendência, a atual fase de profissionalização da ativida-de leiteira desenvolvida pela Fleischmann & Royal, pode ser observada pelocrescimento da rigidez contratual dos pecuaristas associados à empresaamericana e às cooperativas a ela associadas.

Para justificar a substituição da CAPIL na coordenação direta da coletaregional de leite, a empresa Fleischmann & Royal tem utilizado dados estatís-ticos significativos, entre os quais os fornecidos pela Associação Brasileirade Produtores de Leite "B" (ABPLB), para comprovar o seu fraco desempe-nho no controle de matéria-prima de qualidade (leite "B"), no Brasil (Gráfico 1).

Estando localizada na fatia que corresponde aos 42% ("outras empre-sas") a Fleischmann & Royal procura justificar a intensificação dos seus pro-jetos para a qualificação do leite produzido na área. Além disso, a corporaçãotem feito grandes investimentos para ampliar o seu espaço de atuação emregiões onde a produção de leite é de melhor qualidade - como no sul doestado do Espírito Santo - buscando um controle mais significativo sobreuma maior parcela de leite tipo "B".

Essas transformações no processo de gerenciamento da atividade lei-teira na área também atingem, significativamente, as cooperativas associa-das à empresa americana. Nas suas dinâmicas articulações espaciais, aFleischmann & Royal manteve, ao longo de sua associação com a agroindústriaGlória, fortes relações comerciais com o cooperativismo regional, não se limi-tando, apenas, às suas estreitas relações com a CAPIL. Atrelada a diversascooperativas da área, principalmente durante as décadas de 70 e 80, a em-presa americana manteve amplos contratos de compra e fornecimento dematéria-prima com as entidades associativistas de Itaocara, São Fidélis,

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GRÁFICO 1

PARTICIPAÇÃO DE EMPRESAS DE LATiCíNIOSNO BRASIL, NO MERCADO INTERNO DE LEITE B,

NO ANO DE 1993.

O1JIRAS

NESTLÉ16%

60/0

ITAMBÉ (MG)8%

PARMALAT9%

Fonte: Associação Brasileira de Produtores de Leite B (ABPLB).

Miracema (estado do Rio de Janeiro), e Muriaé e Leopoldina (estado de Mi-nas Gerais), além da CAPIL, que participavam, ativamente, do fornecimentodiário à agroindústria; mas, devido às mudanças das práticas gerenciais dacorporação - principalmente com o advento do Qualitotal, quando a empresapassou a enfatizar a contenção de custos e o aumento da eficiência total naprodução - grande parte desses vínculos foram cortados. Apesar disso, aFleischmann & Royal se associou, recentemente, a outras duas cooperativasque complementam seu abastecimento diário de matéria-prima - a Coopera-tiva de Laticínios de Guaçuí (COLAGUA), localizada no município capixabade Guaçuí, e a Cooperativa Agropecuária do Vale do Itabapoana Ltda (CAVIL),do município fluminense de Bom Jesus de Itabapoana.

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A dinâmica acima descrita mostra, claramente, o desenvolvimento dafase de antecipação espacial" implementada pela empresa americana, aoorganizar o seu território de gestão. A Fleischmann & Royal, com essa inten-sa parceria, estava interessada em manter os espaços produtivos, coordena-dos por aquelas cooperativas, atrelados a sua lógica corporativa, estabele-cendo, para tal, com essas unidades captadoras de matéria-prima, uma par-ceria parcial (porém significativa), pois passaria a influenciar aqueles espa-ços, sem gerenciá-los diretamente. Com a desassociação da maior parte da-quelas cooperativas da complexa rede de fornecimento da Fleischmann &Royal e a associação de outras unidades captadoras de matéria-prima, no-vos interesses da empresa sobre outras áreas produtoras foram definidos,territorializando novos espaços, o que indica o intenso dinamismo da corpo-ração e a sua forte mobilidade espacial. Versátil em suas articulações espaci-ais, o empreendimento americano coordena, mesmo que indiretamente, aprodução de outros espaços que poderão ser, dentro de suas necessidades,somados ou não ao seu controle direto.

A reserva de território engendrada pela Fleischmann & Royal está deacordo com a lógica da empresa em manter a sua influência regional cadavez mais presente. A parceria com a CAPIL e a transformação desse instru-mento econômico, político e administrativo, numa unidade da corporação,acabaram por definir as atuais dinâmicas da corporação naquele espaço re-gional. A concretização dos projetos corporativos para o cooperativismo naárea, eliminando a influência política dessa entidade, como um empreendi-mento que deveria - como uma de suas premissas básicas - lutar por umaregulação do mercado leiteiro local e regional, através da ação coletiva, aca-bou por redefinir o novo papel das cooperativas na dinâmica espacial da em-presa. A ineficiência da CAPIL pode ser atestada pela sua atual falta decondições político-econômicas para barganhar junto a Fleischmann & Royaluma política de preços mais justa para seus associados e pecuaristas emgeral, submentendo-se, portanto, à lógica maximizadora de lucros desseempreendimento.

. Apesar da aparente ampliação associativista da empresa americanacom outras cooperativas, há uma clara tendência de abandono de suas rela-ções com associações de produtores na área. A empresa Fleischmann & Royalconsidera o cooperativismo uma organização comunitária ultrapassada que

3 Ao identificar etapas para a gestão do território desenvolvidas por grupos econômi-cos, CORRÊA (1992) definiu uma importante fase, denominada por ele de antecipa-ção espacial. Segundo o autor, esta prática pode ser entendida como a definiçãoprévia de uma unidade funcional por determinada empresa, num espaço ainda nãoafetado, efetivamente, pelas suas práticas de gestão, o que significaria uma reservade território. Atribui-se, portanto, às intensas relaçôes entre a corporação americanae as cooperativas da região. uma forma de antecipação espacial da empresaFleischmann & Royal para a definição do seu território de gestão.

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não corresponde mais às necessidades reprodutoras do seu capital; portan-to, desvinculá-Ias do processo transformador estaria de acordo com as atuaistendências existentes no mercado de transformação de leite. Para a empresaamericana, essas organizações associativistas não evoluíram a sua capaci-dade administrativa e continuam a desenvolver um papel paternalista junto aseus associados, falo que tem acarretado um choque entre os interessescooperativistas e os objetivos empresariais, que buscam eficiência na ati-vidade e uma mentalidade empresarial nos seus fornecedores de matéria-prima.

Outro vetor de significativa repercussão espacial é a maximização dosfluxos captadores de matéria-prima desenvolvidos, atualmente, pela empre-sa americana. Esta tendência pode ser atestada pelo enxugamento das li-nhas de coleta de leite e a conseqüente desassociação dos pecuaristas pou-co produtivos. Perante o novo quadro competitivo que se apresenta com aabertura do mercado de laticínios no país, a Fleischmann & Royal tem ques-tionado os seus gastos para a manutenção de um quadro de associados quedesenvolvem uma atividade leiteira de baixa produtividade. Dentre osparâmetros da agroindústria, o pequeno pecuarista é aquele produtor queproduz até 45 litros de leite/dia durante a safra, sendo que o micro-produtorordenha até 15 litros de leite diários. A empresa americana, questionando oscustos que possui junto a esses produtores com a manutenção da linhas deleite que não atingem um coeficiente de densidade- mínimo, concluiu não servantajoso manter a coleta de uma quantidade de leite que não atinja a umaquota mínima de 50 litros/dia. Com essa nova política para a captação damatéria-prima (já desenvolvida pela agroindústria Laticínios Paulista), a cor-poração procura eliminar os produtores e as linhas de coleta que tornam aatividade pouco lucrativa, ampliando-se, assim, a produtividade no setor.

Seguindo a sua lógica empresarial, a empresa americana tem procura-do modernizar ainda mais as suas relações nos espaços produtoresterritorializados por ela. Através de vários projetos modernizadores ("Cana-Uréia", "Convênio com Lojas", "Prêmio Produtividade"), a Fleischmann & Royalprocura incrementar a produtividade no setor e ampliar a sua competitividadena área. Entretanto, entre as tendências atuais, o maior destaque é o projetode terceirização das fases de captação e armazenamento da atividade leitei-ra. Sendo uma de suas principais dinâmicas desenvolvidas nesta década, oProjeto "Leite a Granel" deverá transformar, intensamente, as relações entreos atores envolvidos na atividade, criando novas dinâmicas produtivas querepercutirão naqueles espaços leiteiros.

• O coeficiente de densidade é definido pela relação entre a quantidade de litros deleite colatados e a quilometragem percorrida pelo caminhão que explora a linha deleite. Para que seja vantajoso para o empreendimento que explora a linha de coleta,o coeficiente obtido precisa ter o valor mínimo de 10, a fim de a relação custo/bene-fício seja satisfatória para quem capta a matéria-prima.

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Reavaliando a sua dinâmica de expansão horizontal implementadadurante a década de 80, a Fleischmann & Royal vem procurando, nos anos90, descentralizar o seu controle gerencial direto sobre as fases iniciais daatividade industrial, a partir da redinamização das funções espaciais dospecuaristas associados, Segundo a empresa, os altos custos para a manu-tenção dos PRLs existentes têm direcionado os seus atuais investimentospara a construção de Micro-PRLs, que são mini-postos de coleta e resfriamentode matéria-prima alocados em fazendas escolhidas por critérios definidos pelacorporação, Essa lógica pode ser explicada pela "maximização de lucros atra-vés da minimização dos custos", já que a construção de novas unidades doporte dos seis PRLs, gerenciados pela Fleischmann & Royal, não estaria deacordo com as atuais dinâmicas de redução de gastos para a pecuária leitei-ra, atividade esta que não está correspondendo, na área, à produtividadedesejada pela corporação.

Como pode ser observado no Gráfico 2, a produção leiteira, nos últi-mos 15 anos, vem acompanhando o tamanho do rebanho, indicando a manu-tenção da baixa produtividade da atividade leiteira por cabeça ordenhada.Apoiada nesses dados fornecidos pela EMBRAPA/CNPGL, a empresa ameri-cana procura justificar seus projetos de reestruturação da atividade no seuterritório de ação, procurando reverter o quadro desfavorável na relação pro-dução/produtividade que tem atingido os seus objetivos corporativos.

Tentando reverter o quadro de baixa produtividade identificado no grá-fico, o Projeto "Leite a Granel" visa creditar aos pecuaristas mais produtivos eestrategicamente mais bem localizados em relação aos PRLs da empresa asfunções de captadores, resfriadores e armazenadores do leite produzido poreles e pelos demais pecuaristas associados. Para tanto, cada um dos seisPRL deverá definir, através de um estudo aprofundado da produtividade e dasvantagens locacionais das propriedades, dez fazendas, onde modernatecnologia será implementada. Denominada de Fazendas Acompanhadas,esta fase tem por objetivo acompanhar todo o processo da produção leiteiradessas propriedades, fornecendo a assistência técnica e a prestação de ser-viços necessários para que haja a intensificação da produção de leite, nessesestabelecimentos. Estes, por sua vez, deverão se tornar "exemplos" a seremseguidos pelas demais propriedades, dando a exata visão de que forma pode-se obter uma alta produtividade no setor leiteiro. O apoio técnico será desdeas formas mais modernas para o manejo do gado (formas alternativas dealimentação do rebanho) até possibilidades e estratégias para o armazena-mento do leite.

Os pecuaristas selecionados serão subsidiados para a aquisição depotentes resfriadores que serão alocados nessas propriedades, após a verifi-cação do potencial armazenador dessas fazendas - este obtido pela força decaptação da área onde estas se situam; sendo definida, a partir do interesseda empresa e da capitalização do produtor, a potência funcional dosresfriadores a serem adquiridos e instalados. Esses produtores, que terão

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GRÁFICO 2

íNDICES DE NÚMERO DE VACAS ORDENHADASE DE PRODUTIVIDADE DO REBANHO BRASILEIRO

ENTRE 1980 E 1993.

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IANOS I

Base: NQde vacas 100 = 16.512,969 eProdutividade 100 = 675,97 litros/vaca/ano.

Fonte: EMBRAPAlCNPGL

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alta tecnologia de armazenamento e resfriamento injetadas em suas fazen-das, serão devidamente treinados para uma correta utilização dos resfriadorese para uma avaliação pertinente da qualidade do leite a ser recebido em suaspropriedades. Ao se tornarem Micro-PRLs, essas fazendas serão pontos deconvergência da maior parte do leite produzido numa determinada área quecompõe o território de gestão da empresa americana.

Complementando essa dinâmica maximizadora, a agroindústria temampliado sua tecnologia no setor de captação e transporte de matéria-prima,ao adquirir modernos caminhões-tanque que podem coletar uma quantidademaior de leite junto aos PRLs e, futuramente, nos Micro-PRLs. Com umacapacidade de armazenamento e de resfriamento que chega a 30 mil litrosde leite, esses grandes caminhões são denominados de "PRLs móveis", poispodem manter a qualidade da matéria-prima inalterada por uma semana. Di-minuindo os gastos com transporte, captação, armazenamento e resfriamentoda matéria-prima, o Projeto "Leite a Granel" objetiva também, ao financiarresfriadores para os produtores de leite, desafogar os seus seis PRLs, quepoderão ampliar sua capacidade de armazenamento, ficando liberados parafuturas dinâmicas a serem traçadas pela corporação.

Atualmente, o Projeto "Leite a Granel" está em pleno andamento (emmaior ou menor grau, dependendo da estrutura sócio-político-econômica doespaço leiteiro atingido por ele), organizando dinâmicas modernizantes, alémde definir e redefinir papéis e funções espaciais para as cooperativas associ-adas e os produtores rurais, o que afetará, em curto prazo, a produção leiteirado noroeste fluminense e das demais áreas atingidas pelos projetos de ges-tão do território da corporação americana.

Cabe aqui destacar que, apesar desses projetos "modernizantes", semuma ação política eficiente e consciente, os resultados esperados pela em-presa americana não deverão ser concretizados, o que poderá acarretar naeliminação dos micros e pequenos pecuaristas do processo produtivo da área.Sem uma discussão ampla da sociedade sobre os efeitos da "modernizaçãoconservadora" em espaços produtivos, como os do noroeste fluminense, euma ação político-econômica realmente consistente dos instrumentos degerenciamento da atividade leiteira regional - enfatizando-se a do poder pú-blico, em todas as suas escalas de atuação e das cooperativas e associaçãode produtores - esta classe de pecuaristas, lançada à própria sorte no merca-do e sem a mínima estrutura para uma competição real, parece estar fadadaao desaparecimento.

Na concepção Fleischmann & Royal, contudo, uma política de pré-fixa-ção de preços, por exemplo, que estipulasse um valor mínimo do litro de leitepara o produtor, protegendo-o contra sua incapacidade atual de competiçãono atual mercado aberto, acarretaria uma estagnação dos pecuaristas nosseus atuais patamares de produtividade e um conseqüente retrocesso nas"políticas modernizadoras para o setor" implementadas pelo Estado brasilei-ro, ao longo das últimas décadas. Isto provocaria, segundo a empresa, uma

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fuga dos empreendimentos envolvidos com o setor de transformação de leitedo noroeste fluminense e de outras áreas produtoras.

Para a empresa americana, o atual valor pago pelo produto (em média,A$ 0,19 para os pequenos produtores, R$ 0,25 para os médios e R$ 0,32para os grandes) não é um problema primordial a ser resolvido para o estabe-lecimento de uma ordem social e econômica mais justa, no noroestefluminense, porque esses valores são "definidos pelo mercado" sendo, por-tanto, um reflexo do baixo rendimento da atividade. Ao mesmo tempo, a ma-nutenção da atual política de preços para a matéria-prima significaria "o aban-dono da atividade dos pecuaristas pouco produtivos, pois, quem pouco pro-duz, ganhará pouco também, desistindo da atividade, o que melhorará bas-tante a produtividade no setor", afima orgulhosa a empresa, já que para ela apermanência na atividade dos pecuaristas pouco produtivos é o que maisafeta, negativamente e de forma global, o setor leiteiro e a qualidade da maté-ria-prima ofertada para as empresas; sendo, portanto, este o maior empeci-lho para um pleno desenvolvimento no setor.

Confirmando uma política de preços diferenciados ("um peso e duasmedidas"), a empresa acredita que esta é uma forma de "educar" o pecuaristaa se tornar produtivo, "estimulando-os e incentivando-os a produzir mais, se-não terão que abandonar a atividade".

As referidas políticas definidas pela corporação americana para a pro-dução leiteira regional, mostram a atual situação dos pecuaristas associados.Cabe lembrar que, sem o apoio da sua cooperativa - vistas por CORADINI(1982) "como uma espécie de sindicato que exerce efetivamente o lugar decanal político das camadas produtoras e fornecedoras de matéria-prima como mercado urbano" - os produtores se vêem à mercê das políticasmaximizadoras desenvolvidas pelos projetos de gestão da agroindústria emquestão. ACCARINI (1987), preocupado com o novo patamar estabelecidoentre o cooperativismo e os seus associados, a partir do desenvolvimento deentidades associativas "empresarialmente desenvolvidas", chama atençãopara o abandono, principalmente, dos pequenos produtores. Segundo esseautor, "as cooperativas deveriam ser, em face à ausência total de políticaspúblicas de bem-estar social para as populações agrárias, o único instrumen-to político que atenderia as reivindicações dos pecuaristas menos capitaliza-dos, portanto os mais fracos numa economia mais competitiva".

A CAPIL, relegada a um papel subalterno na parceria com aagroindústria, acabou por perder sua representatividade política para promo-ver a necessária consciência social nos seus associados, fato que possibili-taria minar, pelo menos em parte, as ações corporativas e monopsônicas daFleischmann & Royal na área, ao gerar forças e movimentos locais que pu-dessem resistir, mais intensamente, contra as perspectivas maximizadorasaté então desenvolvidas. O retorno da educação cooperativista deveria servista como um ponto fundamental para o resgate da percepção do papel soci-al que a atividade econômica deve desempenhar podendo estimular, a partir

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daí, um novo e mais justo estágio no relacionamento entre os produtores damatéria-prima e o capital beneficiador.

Na sua lógica reprodutora de capital, a empresa americana acreditaser uma tendência "natural" do mercado mundial promover uma "seletividade"entre os pecuaristas. Os que não atingem uma produtividade aceitável, a ní-vel de retorno do capital investido, devem ser encorajados a abandonar aprodução, buscando outros caminhos e outros ramos de atividade econômi-ca. Afirmando a sua lógica maximizadora, a Leite Glória se mostra incisiva aoafirmar ser uma tendência natural, nas bacias leiteiras brasileiras, a formaçãode oligopólios, pois somente grandes empresas do setor serão capazes deampliar e de expandir o seu capital competitivo. Acompanhando a dinâmicaglobal, a Fleischmann & Royal acredita ser a competição entre os grandes gru-pos atuantes no setor agroalimentar brasileiro, "a única possibilidade de desen-volvimento de uma atividade agrícola moderna e produtiva". As outras formas deempreendimento deverão ser, portanto, absorvidas pelas grandes corporações.

Parece que a empresa, ao defender as suas políticas modernizadorase defender o processo oligopólico para o setor de laticínios "como única for-ma de desenvolvimento de um setor moderno e competitivo", esquece-se dasinevitáveis conseqüências negativas a serem enfrentadas, pelo setor, com adeturpação do capitalismo competitivo.

6. Os subterritários da Fleischmann & Royal e agestão de suas diferenças: as lógicas locais para os

projetos corporativos da empresa americana

Fundamentais na sociedade moderna por "seu poder multifuncional emultifacetado; pela ampla escala de suas operações; por sua segmentaçãocorporativa; por suas múltiplas localizações, e por seu enorme poder de pres-são econômica e política" (CORRÊA, 1991 :31), os grupos econômicos sãoagentes de primeira grandeza no processo de territorialização e de gestãodos espaços produtivos mundiais. Organizados gerencialmente em outrosespaços que não naqueles onde se territorializam, esses grupos determinampadrões próprios de produção e de consumo para as atividades econômicase para os mercados de diversos espaços do globo, coordenando uma enormegama de diversidades econômicas, sociais, políticas e culturais.

Com um peso fundamental na implementação de políticas públicas -pois se inserem no quadro de agentes emanadores de poder gerencial - osgrupos econômicos precisam ser entendidos, também, sob a lógica de suaspolíticas próprias, resultantes de sua complexidade estrutural, o que os fazserem capazes de acumular e regular capitais de variadas origens. Comouma associação de empresas com personalidades próprias (VIEIRA Filho,apud SILVA, 1991 l, os grupos se organizam em complexas teias de relações,caracterizando com isto o seu próprio dinamismo. A racionalização, a opera-

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cionalização e a realocação dos recursos das empresas que os compõem,fazem com que eles tenham acesso a várias realidades espaciais e desen-volvam, portanto, diferentes lógicas para a gestão dos espaços apropriados.As intensas relações resultantes de suas práticas complexificam ainda maisa organização dos territórios verticalizados (SANTOS, 1993b), sendo que asempresas que estruturam o grupo, passam a ser ordenadoras e mediadorasdos conflitos que possam existir neles. O poder dessas empresas será senti-do na ordenação das práticas gerenciais do grupo para o espaço apropriado,fazendo com que, a partir das dialéticas resultantes do confronto de forçasespaciais, resultem estruturas sócio-econômicas bastante complexas quecaracterizam a sua territorialização. Apropriados os espaços e definido o ter-ritório, novas normatizações serão viabilizadas pelas modernas técnicas epelo intenso controle social, político e tecnológico dessas empresas sobredeterminada atividade, demandando novas relações sociais e uma nova es-trutura produtiva.

Ao gerenciar o seu território, a empresa Fleischmann & Royal coorde-na a produção leiteira de uma área atingida, irregularmente, por diferentesações de modernização das atividades produtivas que, engendradas por po-líticas públicas ineficazes e ineficientes, não conseguiram viabilizar o ingres-so da grande massa dos produtores regionais no mercado competitivo do"mundo moderno".

Modernizada de forma parcial e incompleta, a região noroestefluminense passou a desempenhar, a partir da chegada da empresaFleischmann & Royal na região, um papel fundamental no processo de repro-dução de capital do grupo econômico, criando, naquele espaço regional, umainadequação entre a lógica gerencial da empresa - onde o ideológico da com-petição passa a ser visto como o que é "moderno e único modelo viável" - e aestrutura produtiva do lugar, tradicionalmente organizada por uma atividadeleiteira de subsistência e desenvolvida, em grande parte, por pecuaristasdescapitalizados.

Uma complexa gama de forças locais e não-locais, convergentes edivergentes se associaram e estabeleceram na região um padrão espacialúnico de atuação, fortalecendo a necessidade de estudos particulares eempíricos das diferentes áreas onde esses agentes de gestão atuam. Essaimportância foi mostrada por GALVÃO, que afirmou a necessidade de obser-vação dos processos peculiares de gestão do território engendrados no inte-rior do estado do Rio de Janeiro. Segundo a autora,

"no contexto de uma agricultura desacreditada como setor pro-dutivo e um espaço relativamente homogeneizado pela pecuáriaextensiva e pela pequena lavoura comercial, emergem empre-endimentos agrários modernos e dinâmicos, em níveis diferenci-ados de capitalização, corporificando modalidades peculiares degestão territorial, com largo envolvimento urbano" (1990:85).

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Ao se identificar e analisar cada uma das unidades (PRLs) que com-põem o território de gestão da Fleischmann & Royal na área em estudo, veri-fica-se que sua territorialização ocorre de acordo com as características lo-cais sob os quais esses Postos de Coleta estão inseridos. Estes, por sua vez,desenvolvem práticas espaciais para a atividade leiteira que correspondem àlógica de gestão da empresa. Porém, como afirma CORRÊA (1992), a impor-tância de se individualizar os estudos das unidades espaciais que compõema estrutura funcional delas é fundamental para se entender a gestão do terri-tório na ciência geográfica. Segundo o autor, "a cada unidade (da empresa) éatribuido, de modo formal ou não, um dado território", o que confirma a neces-sidade dos estudos dessas unidades, individualmente, para o entendimento,a partir da natureza e do papel desempenhado por cada uma delas, do pro-cesso geral de gestão.

Ao delimitarem subterritórios, as unidades desempenham, com certaautonomia, práticas próprias que objetivam formar um contexto lógico e raci-onal de maximização dos recursos e das possibilidades localmente ofereci-dos. Longe de tentarem "homogeneizar o seu território", as empresas procu-ram, através de suas unidades, aproveitar e dimensionar as diferenças e aspossibilidades encontradas para a obtenção do sucesso de seu projeto. Agestão do território é, portanto, na Geografia, a gestão das desigualdades(CORRÊA, 1992).

A partir da construção, compra e arrendamento de várias unidadesarmazenadoras e resfriadoras (PRLs), e da associação de outras à empresaamericana (PRLs e sedes das cooperativas associadas), foi concretizada asua presença nos espaços leiteiros da área, estabelecendo-se uma nova or-denação espacial para os fluxos de matéria-prima a ser beneficiada.

SANTOS (1991) entende como fixos as unidades funcionais de deter-minada empresa que são, nas áreas onde estão alocadas, estruturas produ-tivas e ideológicas concretizadas no espaço geográfico. A espacialização daFleischmann & Royal, através de seus fixos, concretiza a intensa rede derelações entre as diversas áreas que compõem o seu território de gestão. Nocaso desse estudo, os fluxos de matéria-prima (leite) para os fixos (PRLs) doempreendimento americano e das cooperativas a ele associadas acabam porcaracterizar o padrão de gerenciamento da coleta, transporte e armazena-mento da matéria-prima nessas unidades - nos seus subterritórios de atua-ção - e destas para a unidade beneficiadora de leite localizada no centro degestão regional da empresa: a cidade de Itaperuna.

A complexa rede de ligações existente entre as diversas áreas quecompõem o território de ação da empresa, expressa os fluxos entre os fixosimplementados pelas intensas e fundamentais articulações que dinamizam econcretizam a atividade da Fleischmann & Royal na área. O mapa a seguirindica a dimensão dos fluxos entre os fixos da Fleischmann & Royal e dasdemais unidades funcionais subordinadas às lógicas maximizadoras da em-presa, no ano de 1995, dando-se a percepção da complexa malha de rela-

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ções existentes entre os municípios produtores de leite que compõem o seudinâmico território de gestão.

Finalizando a presente contribuição para os estudos espaciais sobreas ações, cada vez mais incisivas e importantes, dos complexos agentes degestão territorial que atuam nos espaços produtivos brasileiros, enfatiza-se,especificamente em relação à pecuária leiteira, a necessidade de pesquisasgeográficas que busquem dar subsídios para efetivas políticas públicas queprocurem diminuir, consideravelmente, a segmentação sócio-econômica dessaatividade, devido ao caráter dual da tecnologia nesse setor, e que ajudem atransformar a persistente visão de que o agricultor não precisa de muito estu-do, mentalidade esta que deve ser transformada através de uma completa eabrangente reforma do sistema educacional rural, encabeçada pelas coope-rativas e associações de produtores. Esses caminhos ampliarão, sem som-bra de dúvida, a capacidade dos trabalhadores rurais autogerenciarem suaatividade econômica, dimimuindo as diferenças entre pecuaristas absorvidospelo mercado e os excluídos da competição capitalista, um dos maiores pro-blemas enfrentados, hoje, pelos gestores da pecuária leiteira do NoroesteFluminense.

O resgate da dignidade dos produtores leiteiros, através dos caminhosacima citados, parece, nos atuais tempos que atravessa a economia brasilei-ra, uma chance fundamental para o redimensionamento da competiçãointercapitalista no campo e uma real possibilidade para significativas mudan-ças nas arcaicas estruturas produtivas que ainda delineiam a agricultura na-cional, neste final de século.

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