Upload
jennyacevedo2012
View
175
Download
2
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Citation preview
1
Referência: Fiorentini, D. Learning and professional development of mathematics teacher in research
communities. Sisyphus – Journal of Education. 2013 (No prelo).
APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL DO
PROFESSOR DE MATEMÁTICA EM COMUNIDADES INVESTIGATIVAS1
Dario Fiorentini (FE/Unicamp)
Resumo:
Este artigo tem por objetivo identificar, descrever e compreender as aprendizagens e o
desenvolvimento profissional do professor que participa de comunidades investigativas.
Para analisar e interpretar narrativamente esse processo, foi selecionado o caso de uma
professora de matemática que, ao longo de sua carreira, participou de três comunidades
investigativas, sendo duas profissionais e uma acadêmica. A análise apoia-se na teoria
social de aprendizagem em comunidades, com adaptações para comunidades
profissionais e investigativas de professores. Além de descrever os contextos do
processo de aprendizagem, foi realizada uma análise narrativa do caso, tendo por base
sua história de participação e reificação no interior dessas comunidades. Os resultados
mostram que a professora, mediante colaboração de parceiros críticos de comunidades
investigativas, sejam elas acadêmicas ou profissionais, desenvolveu, como um dos
indícios de aprendizagem e desenvolvimento profissional, uma profissionalidade com
postura investigativa, desvendando continuamente outros saberes e possibilidades sobre
o que se ensina e se aprende nas escolas, tendo também mudado o modo de trabalhar e
de relacionar-se com os alunos e com o conhecimento matemático e didático-
pedagógico, sobretudo em classes de alunos com dificuldades de aprendizagem.
Palavras-chave: Aprendizagem profissional, Professor de matemática; Comunidades
investigativas; Desenvolvimento profissional; Análise narrativa.
Introdução
O objetivo deste artigo é identificar, descrever e compreender o processo de
aprendizagem e o desenvolvimento profissional do professor de matemática a partir de
sua participação e reificação em comunidades investigativas.
Iniciamos este texto com uma breve descrição dos contextos, isto é, das
comunidades investigativas, onde ocorreram as aprendizagens e o desenvolvimento
profissional a serem investigados. Apresentamos, depois, as bases teóricas deste estudo,
1 Este estudo faz parte da Bolsa de Produtividade em Pesquisa do autor no CNPq (PQ – 1D).
Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no “Seminário Práticas Profissionais dos professores de
Matemática” realizado na Universidade de Lisboa, em fev/2013, tendo recebido contribuições
importantes de Luís Menezes (ESE de Viseu), de João Pedro da Ponte (IE/UL) e de outros revisores
anônimos da Revista Sisyphus, aos quais agradeço. Agradeço também a colaboração de Vanessa Crecci e
de Eliane Matesco Cristovão (Doutorandas da Unicamp).
2
com destaque para a teoria social da aprendizagem em comunidades de prática, e a
revisão bibliográfica sobre aprendizagem e desenvolvimento profissional em
comunidades profissionais e investigativas.
Em seguida, tecemos considerações sobre o percurso metodológico deste estudo,
onde destacamos o estudo de caso de uma professora-investigadora que participou de
três comunidades investigativas e nossa opção pela análise narrativa (Bolívar,
Domingo e Fernandez, 2001; Galvão, 2007) do processo de aprendizagem e
desenvolvimento profissional da referida professora, tendo por base sua participação e
suas reificações nessas comunidades.
Por fim, historiamos o processo de aprendizagem e desenvolvimento da
professora a partir de sua participação nas comunidades de investigação, no qual
destacamos e analisamos narrativamente alguns episódios e reificações nessas
comunidades.
Os contextos de aprendizagem e desenvolvimento profissional deste estudo
Considerando os propósitos deste artigo, descrevemos, inicialmente, os três
contextos de aprendizagem e desenvolvimento profissional considerados neste estudo.
Esses contextos foram por nós caracterizados como comunidades investigativas porque
tinham como prática comum realizar, em um ambiente de colaboração, estudos,
análises, investigações e escrita de artigos sobre o processo de ensinar e aprender
matemática na escola básica.
O mais antigo é o Grupo de Pesquisa sobre Práticas Pedagógicas em Matemática
(PraPeM) que surgiu, em 1995, com cariz de comunidade investigativa acadêmica
vinculado à Pós-Graduação em Educação da Unicamp, visando dar suporte teórico-
metodológico às pesquisas de mestrandos e doutorandos. Trata-se de uma comunidade
colaborativa na relação universidade-escola, pois seus participantes têm a possibilidade
de realizar, de maneira compartilhada, estudos e investigações de problemas e
demandas de interesse dos professores escolares. As investigações do grupo tem girado
em torno de dois eixos básicos: um relacionado às práticas de ensinar e aprender
matemática nas escolas, com investigações etnográficas sobre o cotidiano escolar e/ou
investigações dos professores sobre suas próprias práticas; o outro relacionado à
formação e ao desenvolvimento profissional de professores em um contexto de práticas
reflexivas e investigativas e, geralmente, colaborativas entre formadores e professores.
3
O segundo contexto surge, em 1997, de um programa de formação contínua de
professores (Curso de Especialização) oferecido pelo PraPeM, quando é constituído um
grupo de cinco professores escolares e dois formadores do PraPeM com o propósito de
apoiar colaborativamente os projetos investigativos dos professores sobre suas práticas
de ensinar matemática na escola. Este grupo teve continuidade após a conclusão do
curso, prolongando-se até final de 1999, visando à publicação de um livro, intitulado
“Por Trás da Porta, que Matemática Acontece?” (Fiorentini & Miorim, 2001a),
contendo as investigações dos professores em forma de análises narrativas.
O processo colaborativo de investigação da própria prática, nessa comunidade
investigativa, apresenta alguma proximidade com os Lesson Studies japoneses (Doig &
Groves, 2011), pois compreendiam: um momento inicial de planejamento conjunto das
aulas de cada professor; um segundo momento de implementação do plano de aulas,
acompanhado de registros escritos, algumas gravações em áudio das atividades de sala
de aula e documentação das produções escritas dos alunos; e um terceiro momento de
análise conjunta das atividades desenvolvidas, onde os registros das atividades e a
produção dos alunos eram avaliados e analisados coletivamente inicialmente para
projetar novas ações e, posteriormente, para escrever o livro (Fiorentini & Miorim,
2001b, p.35).
O terceiro contexto é o Grupo de Sábado (GdS) que surgiu, em 1999,
congregando, de um lado, professores de matemática da escola básica, interessados em
estudar, refletir e investigar sobre o ensino de matemática nas escolas; e, de outro,
acadêmicos (professores universitários, mestrandos e doutorandos), interessados em
investigar o processo de formação contínua e de desenvolvimento profissional de
professores em um contexto colaborativo de reflexão e investigação sobre a prática. O
GdS tem essa denominação porque reúne-se quinzenalmente, aos sábados de manhã.
O GdS, embora tenha sido um subgrupo do PraPeM, sempre teve autonomia de
gestão, e ambos têm buscado discutir e desenvolver estudos e aportes teórico-
metodológicos, sob uma perspectiva sociocultural, que concebam e tratem: (1) a prática
pedagógica em matemática como complexa e plural, envolvendo múltiplas dimensões,
em constante mudança; (2) o professor de Matemática como sujeito capaz de produzir e
ressignificar, a partir da prática, saberes da atividade profissional e sua própria
constituição profissional; (3) a formação do professor como um processo contínuo e
sempre inconcluso, que tem início antes da licenciatura e se prolonga por toda vida,
ganhando força, principalmente, nos processos compartilhados de práticas reflexivas e
4
investigativas (Carvalho e Fiorentini, 2013). Até 2013, o GdS havia publicado, entre
artigos em periódicos e anais, cinco livros contendo histórias e investigações, sendo a
maioria análises narrativas de aulas de matemática.
Estes grupos têm sido objeto de análise de vários estudos. Dentre esses,
destacamos Fiorentini et al. (2005) e Fiorentini (2009) que têm investigado a
aprendizagem dos participantes do GdS em seus 12 anos de existência.
Uma característica comum dessas comunidades é sua heterogeneidade, pois
contam com a participação de professores da escola e de formadores e acadêmicos da
universidade. Essa heterogeneidade, entretanto, não é vista de maneira hierárquica ou
desigual, mas com diferentes conhecimentos e excedentes de visão entre os participantes
(Bakhtin, 2003). Os professores da escola básica, por exemplo, trazem como excedente
de visão, em relação aos formadores e futuros professores, um saber de experiência
relativo ao ensino da matemática nas escolas e conhecem as condições e as
possibilidades de determinadas tarefas e práticas letivas. Os conhecimentos que
mobilizam e produzem são situados na complexidade de suas práticas, sendo esta a
principal referência nos processos de negociação de sentidos e significados durante a
elaboração de tarefas, de análise de episódios ou situações de ensino-aprendizagem, a
apropriação ou validação dos saberes da prática escolar e também daqueles oriundos da
pesquisa acadêmica.
Os formadores da universidade, por sua vez, têm como excedente de visão as
teorias e metodologias a partir das quais produzem análises, interpretações e
compreensões das práticas escolares vigentes, com o propósito de problematizá-las e
desnaturalizá-las. Os futuros professores, que começaram a participar do GdS a partir de
2003, apresentam como excedente em relação aos demais participantes, suas habilidades
no uso das tecnologias de informação e comunicação e uma maior proximidade ou
compreensão das culturas de referência dos alunos da escola básica.
Antes de prosseguir, cabe esclarecer que não se trata de fazer apologia às
comunidades de aprendizagem ou de investigação. Isso porque, conforme Hargreaves e
Fink (2007), nem toda comunidade de aprendizagem gera empoderamento ou maior
autonomia profissional a seus participantes; depende dos motivos e propósitos pelos
quais uma comunidade se constitui e se engaja. As comunidades, por exemplo, podem
se constituir monitoradas, controladas ou movidas por agentes externos e/ou por
motivos pragmáticos contrários à emancipação dos estudantes e professores. Por outro
lado, as comunidades de empoderamento e de liderança sustentável tendem a construir
5
seus próprios conhecimentos e motivações, movidos por princípios político-
emancipatórios ou de inclusão e justiça social, tais como, melhorar a aprendizagem de
todos os alunos, isto é, promover uma aprendizagem problematizadora, ampla e
profunda para todos os jovens e não apenas para alguns.
Essas considerações nos permitem vislumbrar diferentes modalidades de
comunidades investigativas de professores. Elas podem ser acadêmicas, escolares ou
situar-se na fronteira entre essas duas.
As acadêmicas, por serem monitoradas/governadas institucionalmente pela
universidade, podem ser endógenas, voltadas aos seus problemas teóricos e sem vínculo
com as práticas escolares. Podem ser colonizadoras das práticas escolares, ou
colaborativas, abertas aos problemas e demandas dos professores escolares e das
escolas, podendo manter uma agenda de estudo conjunto dos mesmos, como é o caso do
grupo PraPeM e do grupo colaborativo que surgiu do curso de especialização.
As escolares, por serem governadas a partir do território escolar, também podem
ser endógenas, abertas à colaboração e parceria da universidade, ou esperam ser
colonizadas pela universidade.
As comunidades fronteiriças se situam na fronteira entre a escola e a
universidade e possuem, normalmente, mais liberdade de ação e de definição de uma
agenda própria de trabalho e estudo, sem serem monitoradas institucionalmente pela
escola ou pela universidade. A fronteira é um lugar livre onde podem se reunir
interessados de comunidades diferentes que se aventuram na construção e
problematização do conhecimento, podendo ser também investigativas. Por outro lado,
é também lugar de perigo, de transgressão do instituído na escola e na academia. Tendo
em vista as diferentes origens de seus participantes, os encontros tendem a ser
entremeados por narrativas de acontecimentos que ocorrem nas comunidades de origem
de cada um. Entretanto, o que se produz e se aprende nessa comunidade tem forte
impacto na vida pessoal e profissional de cada participante.
O GdS pode ser considerado uma comunidade fronteiriça, pois, embora os
professores se reúnam na Universidade, os encontros acontecem, aos sábados, dia em
que não há atividades acadêmicas formais, nem controle de frequência e de
desempenho. Há, entretanto, um compromisso mútuo entre os participantes, de construir
um espaço conjunto e agradável de estudo e investigação, e liberdade para propor
agendas de trabalho de interesse comum.
6
Aprender em comunidades profissionais
Sob a perspectiva da teoria social da aprendizagem (Lave e Wenger, 1991;
Wenger, 2001), toda aprendizagem é situada em uma prática social que acontece
mediante participação ativa em práticas de comunidades sociais e construção de
identidades com essas comunidades. Os saberes em uma comunidade de prática são
produzidos e evidenciados através de formas compartilhadas de fazer e entender dentro
da comunidade, as quais resultam de dinâmicas de negociação, envolvendo participação
plena ou periférica legítima2 e reificação na (ou a partir da) comunidade.
A participação, conforme nossa interpretação dessa teoria, é um processo pelo
qual os membros de uma comunidade compartilham, discutem e negociam significados
sobre o que fazem, falam, pensam e produzem conjuntamente. Participar, portanto,
significa engajar-se na atividade própria da comunidade; apropriar-se da prática, dos
saberes e dos valores da mesma e também contribuir para o desenvolvimento da própria
comunidade, sobretudo de seus membros e de seu repertório de saberes (Fiorentini,
2009).
Reificação, para Wenger (2001), significa tornar em coisa, a qual não se refere
apenas a objetos materiais ou concretos (textos, tarefas, materiais manipulativos).
Refere-se também a conceitos, ideias, rotinas, registros escritos e teorias que dão
sentido às práticas da comunidade. A participação e a reificação são, portanto,
processos interdependentes e essenciais à aprendizagem e à constituição de identidades
de/em uma comunidade.
A teoria da aprendizagem situada em uma comunidade de prática, conforme
Lave (1996, p. 8), se apoia em quatro premissas referentes ao conhecimento e à
aprendizagem na prática:
(1) O conhecimento sempre se constrói e se transforma ao ser usado;
(2) A aprendizagem é parte integrante da atividade no/com o mundo, em
todos os momentos. Ou seja, produzir aprendizagem não se constitui um
problema;
(3) O que se aprende é sempre complexamente problemático;
(4) A aquisição de conhecimento não é uma simples questão de absorver
conhecimento.
2 Lave & Wenger (1991) desenvolveram o conceito de participação periférica legítima para explicar e
compreender o processo pelo qual os recém-chegados a uma comunidade tornam-se membros plenos da
mesma. Pois, para um recém-chegado tornar-se, mediante participalção e aprendizagem situada, um
membro qualificado e conhecedor das práticas de uma comunidade, precisa se envolver em um
movimento que vai da periferia a uma participação plena e efetiva nas práticas da comunidade.
7
Tendo por base essa teoria, questionamos: o que seria, então, uma aprendizagem
docente em uma comunidade de professores de matemática que atuam na escola básica?
Que práticas seriam formativas no interior dessa comunidade? Nesse contexto, parece
fazer sentido os programas de formação contínua de professores que têm, como foco de
estudo, a análise e problematização das práticas de ensinar e aprender dos próprios
professores envolvidos. Nesses programas, os formadores e professores podem, juntos e
colaborativamente, elaborar tarefas de ensino ou analisar episódios de aula, os quais
podem ser registrados em vídeos ou narrados oralmente ou por escrito pelos próprios
professores participantes. Esses programas se justificam, porque as práticas cotidianas
(com seus procedimentos, discursos e conhecimentos) são carregados de valores,
finalidades e saberes que, embora sejam plenos de sentido e significado para a formação
e o desenvolvimento humanos, podem, devido à naturalização e à rotina das mesmas –
como destaca Foucault (1977) – ter-se tornado naturais e válidas por si mesmas,
ocultando desvios, ideologias e relações de poder.
No processo de problematização e desnaturalização das práticas cotidianas de
ensinar e aprender nas escolas, as comunidades de aprendizagem profissional
heterogêneas podem ser úteis, sobretudo se envolverem pessoas com diferentes
conhecimentos e práticas sociais. Conforme Ponte et al (2009), embora as comunidades
heterogêneas tenham mais dificuldades em construir uma linguagem comum e ajustar
seus propósitos e modos de trabalho, os diferentes pontos de vista e a diversidade de
experiências e de saberes dos participantes podem proporcionar maior empoderamento à
comunidade, principalmente no sentido de perceber, identificar e analisar nuances,
possibilidades e limites das práticas que são objeto de estudo e trabalho do grupo. Essa
diversidade da comunidade pode, assim, resultar aos seus membros uma aprendizagem
mais intensa e profunda.
Ponte et al. (2009, p. 202), ao analisar três estudos3 que investigaram
aprendizagem docente em comunidades de professores de matemática, verificaram que
uma importante e significativa “variedade de uma comunidade de aprendizagem ocorre
quando essa comunidade se estabelece como uma comunidade de investigação, ou seja,
quando a investigação sobre algum assunto se torna parte do objetivo de todo o grupo”.
3 Apresentados no 15th ICMI Study: Fiorentini et al. (2005); Ponte & Serrazina (2005); Van den Heuvel-
Panhuizen & De Goeij (2005).
8
Essa, portanto, é uma poderosa forma de uma comunidade construir conhecimento e de
aprender, como veremos a seguir.
Aprender em comunidades investigativas
Toda comunidade investigativa é também uma comunidade de aprendizagem e
de prática. Mas nem toda comunidade de aprendizagem, mesmo que seja reflexiva, é
uma comunidade investigativa. A prática reflexiva difere da prática investigativa, por
esta última exigir um processo sistemático de tratamento de um fenômeno ou problema
educativo, isto é, a prática investigativa do professor pressupõe um processo metódico
de coleta e tratamento de informações acerca do fenômeno, conforme Beillerot (2001) e
Cochran-Smith & Lytle (2009). Exige que o professor-investigador, a partir de uma
determinada perspectiva (recorte, foco ou questão investigativa), faça registros escritos,
organize suas ideias e revise e analise suas práticas, buscando e produzindo, assim, uma
melhor compreensão do trabalho docente e, no final desse processo, “apresente
publicamente um relatório final escrito do estudo desenvolvido” (Fiorentini &
Lorenzato, 2006, p. 75).
Para Jaworski (2008, p. 312), o professor que participa de uma inquiry
community realiza investigações de aulas e assume, como parte de seu trabalho, o papel
de interrogar, explorar e analisar sua prática pedagógica.
Jaworski (2008) é uma educadora matemática que tem utilizado, em seus
estudos e pesquisas, o termo “inquiry community”. Ela, entretanto, distingue duas
maneiras de significar o termo inquiry no campo da Educação Matemática. Uma que
utiliza como ferramenta de ensino e aprendizagem, como é o caso das investigações
matemáticas ou do ensino com investigação. A outra o utiliza como uma forma de ser,
de modo que a identidade do indivíduo ou grupo, dentro de uma comunidade de
investigação, estaria enraizada em uma forma de inquérito:
Desenvolver a investigação, como uma forma de ser, envolve tornar-se ou assumir o
papel de um inquiridor; tornando-se uma pessoa que questiona, explora, investiga e
pesquisa, sendo esta uma prática normal. Essa visão tem muito em comum com o que
Cochran-Smith e Lytle (1999) têm denominado de ‘investigação como postura’, isto é, a
postura de professores que se engajam em um modo investigativo de ser (Jaworski,
2008, p, 312).
Essa identidade construída pelos professores em uma comunidade, que têm em
comum a reflexão e a investigação sobre a própria prática, se aproxima do que temos
9
chamado, apoiados em Cochran-Smith e Lytle (2009, p.57), de uma profissionalidade
docente calcada em uma postura investigativa:
O trabalho de investigação da prática assume que os praticantes geram conhecimento
local da prática, assumindo uma postura investigativa tanto sobre o conhecimento
gerado por outros fora do contexto local quanto sobre o que é construído através dos
esforços conjuntos dos praticantes, trabalhando em comunidades de investigação (p.
57).
Essa profissionalidade docente investigativa é, no presente estudo, concebida como
um dos indícios de desenvolvimento do professor em uma comunidade investigativa.
Essa profissionalidade, entretanto, não pode ser definida ou caracterizada apenas pelos
saberes base de uma profissão nem pela capacidade de os profissionais identificarem e
resolverem problemas em situação de incerteza; ela é perspectivada, também, a partir
dos princípios e valores ético-políticos cultivados pelos profissionais em uma
comunidade (Fiorentini, 2009).
Isso coloca em xeque as relações de poder que existem entre a comunidade
escolar e a comunidade acadêmica e, sobretudo, as políticas públicas.
Em uma comunidade investigativa, nós não estamos satisfeitos com o estado normal do
ensino. Estamos sempre enfrentando nossa prática com uma atitude de questionamento,
não para mudar tudo do dia para a noite, mas para começar a explorar o que é possível
fazer a mais, pensar diferente, fazer perguntas, e buscar entender, colaborando com os
outros na tentativa de fornecer respostas para elas (Wells, 1999). Nesta atividade, se o
nosso questionamento é sistemático e nos propomos intencionalmente a investigar
nossas práticas, nos tornamos pesquisadores (Jaworski, 2008, pp. 313-314).
Nesse contexto, tanto a profissionalidade investigativa quanto as comunidades
investigativas não nascem prontas. Elas constituem-se, primeiro, pelo questionamento,
problematização e desnaturalização do que se ensina e aprende na escola e que,
aparentemente, parece ser normal e, depois, por um processo sistemático de busca de
resposta ou compreensão dos questionamentos. Entendemos que a ruptura de uma
prática se dá pelo esgarçamento de sua continuidade e não pela sobreposição de algo
novo sem relacionar ou contrastar com a cultura vigente de sala de aula. É nesse
processo de problematização das práticas vigentes que a atuação dos formadores ganha
importância e relevância, sobretudo na fase inicial de uma comunidade com pretensões
de se tornar investigativa. Com o tempo, todos os professores que desenvolvem uma
postura investigativa assumem essa função de questionar as práticas.
O estudante que ingressa na pós-graduação passa a fazer parte da comunidade
acadêmica, a qual geralmente é formada por pequenas comunidades de investigação que
são os grupos de pesquisa. Nessas comunidades, os estudantes produzem e negociam
significados sobre o que estão aprendendo ou investigando, compartilham reflexões e
10
saberes, aprendem a produzir trabalhos científicos, assumem o compromisso de realizar
investigações e usam, para atingir seus objetivos, os recursos e exigências da
comunidade acadêmica. Embora os debates e a comunicação oral sejam largamente
utilizados nessas situações, a linguagem escrita representa um papel de destaque como
instrumento mediador da aprendizagem e da comunicação. Nesse sentido, podemos
considerar o texto da dissertação de mestrado ou de doutorado como a principal
reificação do professor-pesquisador na comunidade acadêmica.
Desenvolvimento Profissional e aprendizagem
O desenvolvimento profissional do professor é concebido, neste estudo, como
um processo contínuo que se estende ao longo de toda sua vida pessoal e profissional,
tendo início antes de ingressar na licenciatura e que “acontece nos múltiplos espaços e
momentos da vida de cada um, envolvendo aspectos pessoais, familiares, institucionais
e socioculturais” (Rocha e Fiorentini, 2006, p. 146). Trata-se, portanto, de um processo
complexo que envolve o professor como uma totalidade humana permeada de
sentimentos, desejos, utopias, saberes, valores e condicionamentos sociais e políticos
(Fiorentini e Castro, 2003).
Nessa concepção de desenvolvimento profissional, o professor é visto, conforme
Ponte (1998), como principal protagonista de sua formação e de sua cultura
profissional, exercendo um movimento de “dentro para fora” em busca do
conhecimento e da melhoria de sua prática docente.
Day (1999), ao apontar alguns indicadores de desenvolvimento profissional dos
professores, destaca que esse é um processo pelo qual
Os professores reveem, renovam e ampliam seu compromisso como agentes de
mudança, tendo em vista os fins e valores do ensino. É também o meio pelo
qual eles adquirem e desenvolvem criticamente o conhecimento, as habilidades
e a inteligência emocional essencial para o bom pensamento, planejamento e
prática profissional com crianças, jovens e colegas, através de cada fase de suas
vidas docentes (pp. 20-21).
Day (1999) entende o desenvolvimento profissional como um processo que
envolve múltiplas “experiências espontâneas de aprendizagem”, considerando-as como
indicadores ou marcos na descrição do desenvolvimento do professor. Entretanto, o
modo como os professores aprendem em comunidades, ainda tem sido pouco
investigado pelos estudos que tratam do desenvolvimento profissional. Além disso,
11
esses indicadores e marcos têm sido obtidos a partir das percepções dos próprios
professores, em entrevistas ou narrativas orais e escritas, ou extraídos de outros estudos
sem que sejam investigados detalhadamente em situação de prática ou em situação de
análise compartilhada em uma comunidade.
Entendemos que as circunstâncias e o contexto em que as aprendizagens
docentes ocorrem têm papel importante na compreensão do processo de vir a ser
professor e na constituição de sua profissionalidade docente. O contexto de
aprendizagem pode ser uma oficina, a própria sala de aula, um grupo colaborativo
homogêneo ou heterogêneo que tem como prática discutir e analisar as práticas de
ensinar e aprender.
Embora essas aprendizagens sejam situadas, os professores aprendem e se
desenvolvem profissionalmente, conforme Cochran-Smith e Lytle (2009), quando
geram conhecimentos locais da prática através do trabalho em comunidades
investigativas e teorizam e constroem seu trabalho em articulação com o contexto
social, cultural e político mais amplo. Nesse sentido, o desenvolvimento profissional,
para ser captado, requer, por parte do investigador, a realização de movimentos de
aproximação e de afastamento em relação ao que é circunstancial ou pontual no
processo de aprendizagem, pois o processo de constituição do professor só pode ser
percebido e compreendido pelo investigador em um movimento diacrônico, isto é, ao
longo do tempo. A história oral e as reificações escritas pelo próprio docente podem
ajudar o investigador a ter acesso aos sentidos e significados que cada professor atribui
ao seu processo de desenvolvimento profissional.
Por isso, o investigador, interessado em compreender como os professores
aprendem e se desenvolvem profissionalmente, necessita centrar foco de análise, ora em
momentos pontuais e situados da aprendizagem docente e ora no movimento diacrônico
do processo de desenvolvimento do professor ao longo do tempo, considerando os
contextos, lugares, práticas e interações que podem ter contribuído para seu processo de
constituir-se professor. A seguir, explicitamos com mais detalhes o processo
investigativo deste estudo.
Aspectos metodológicos deste estudo
Para identificar, descrever e compreender algumas aprendizagens profissionais
decorrentes da participação do professor-pesquisador em comunidades investigativas, e
12
também alguns indícios de seu desenvolvimento profissional, podemos desenvolver
estudos de caso de professores que participaram, com trabalhos de investigação, em
comunidades investigativas.
De acordo com a teoria social da aprendizagem (Lave & Wenger, 1991), a
aprendizagem situada em uma comunidade pode ser captada mediante descrição e
análise dos processos de participação e reificação dos participantes nessa comunidade.
Com base nesse objetivo e nesse pressuposto, podemos, então, eleger a seguinte
questão investigativa como orientadora para o presente estudo: Que aprendizagens são
evidenciadas pelo professor que investiga sua prática e participa de comunidades
investigativas e como se desenvolve profissionalmente, mediante participação e
reificação nesses contextos?
Um modo de investigar a aprendizagem em comunidades de prática, segundo
Lave e Wenger (2002, p. 168), é por meio da análise da “produção, transformação e
mudança histórica das pessoas” que delas participam e como se desenvolvem ao longo
do tempo e constituem sua identidade no seio das mesmas.
Uma das formas de compreender e descrever esse processo é por meio da
análise narrativa, a qual consiste, segundo Bolívar, Domingo e Fernandez (2001), em
produzir a narração de um acontecimento, ou do processo de desenvolvimento de uma
pessoa mediante atribuição de sentido e significado, destacando os elementos comuns e
singulares que configuram a história de cada sujeito ao longo do tempo. A tarefa do
investigador, nesse tipo de análise, “é configurar os elementos dos dados em uma
história que unifique e dê significado aos dados, com a finalidade de expressar, de modo
autêntico, a vida individual, sem manipular a voz dos participantes” (p. 110)4.
Com o propósito de desenvolver uma análise narrativa com certa profundidade,
optamos em tomar apenas um caso. Trata-se do caso de uma professora brasileira
(Eliane Matesco Cristovão)5 que teve uma trajetória de participação e reificação em três
comunidades com características investigativas.
Dentre os vários docentes de escola com participação em comunidades
investigativas que temos em nosso banco de dados, a professora Eliane é o único caso
de participação em três dessas comunidades. A presente investigação adquire, assim, o
status de um estudo de caso, pois “apresenta características singulares que o faz
4 Para saber mais sobre análise narrativa ver:
Galvão (2005): http://www.scielo.br/pdf/ciedu/v11n2/12.pdf Riessman: http://cmsu2.ucmo.edu/public/classes/Baker%20COMM%205820/narrative%20analysis.riessman.pdf Freitas & Fiorentini (2007): http://webp.usf.edu.br/itatiba/mestrado/educacao/uploadAddress/Horizontes_25_1_06[11067].pdf Cury (2013): http://alexandria.ppgect.ufsc.br/files/2013/04/Fernando1.pdf. Carvalho (2007): http://ruc.udc.es/dspace/bitstream/2183/5039/1/AS_3-2.pdf. 5 Por consentimento e preferência da própria professora, mantivemos, neste estudo, seu nome real.
13
merecedor de um investimento especial” do investigador (Fiorentini & Lorenzato, 2006,
p. 110). Este estudo assume também uma abordagem qualitativa, pois foi submetido a
um processo de análise narrativa, o qual demanda um tratamento acentuadamente
interpretativo.
Para analisar e interpretar narrativamente o processo de aprendizagem e
desenvolvimento profissional da professora Eliane, tomamos por base sua participação e
suas reificações no interior das três comunidades investigativas, conforme descrevemos
no início deste artigo. Essas reificações compreendem elaboração e discussão de tarefas
de ensino, registros ou episódios de aulas narrados ou documentados pelo professor,
análises narrativas de aulas, textos produzidos e publicados, tais como capítulos de
livro, artigos publicados em periódicos ou em Anais de congresso, dissertações de
mestrado, atas ou gravações de encontros do grupo, dentre outros. Utilizamos, também,
depoimentos, reflexões e percepções da professora sobre sua aprendizagem no interior
das comunidades.
Além disso, para historiar o processo de desenvolvimento profissional da
professora Eliane nas comunidades de investigação, foram tomados como parâmetros
alguns eixos de análise e interpretação: sua trajetória histórico-cultural e os motivos que
a levaram a participar de cada comunidade investigativa; a problematização e a
negociação de significados, no seio da comunidade; os saberes mobilizados nas práticas
de ensinar e aprender matemática; as questões que mobilizaram suas práticas
investigativas; a análise compartilhada das tarefas e atividades de ensino e
aprendizagem; a identificação das principais aprendizagens auferidas durante a
participação na comunidade, com destaque para os saberes conceituais, didático-
pedagógicos e curriculares; e a identificação e descrição das mudanças percebidas e de
seu desenvolvimento profissional.
A seguir, analisamos e interpretamos narrativamente a trajetória estudantil e
profissional de Eliane que foi captada a partir de suas múltiplas reificações orais e
escritas no contexto de sua participação em três comunidades de estudo e investigação,
após ter concluído a licenciatura em Matemática. Embora a textualização dessa
trajetória siga um percurso cronológico de vida profissional da professora, as reificações
selecionadas para análise não seguem a ordem cronológica em que foram produzidas.
Por exemplo, podemos utilizar, convenientemente, uma reificação recente da professora
para analisar narrativamente seu início de carreira. O último ano de referência da
trajetória da professora Eliane, para a realização deste estudo, é 2013. Neste ano, Eliane
contava com 42 anos de idade e 21 anos de carreira docente, sendo 20 como docente da
escola básica.
14
Análise narrativa de aprendizagem e
desenvolvimento profissional da professora Eliane
Ao participar do Grupo de Pesquisa PraPeM, do qual resultou sua dissertação de
mestrado (Cristovão, 2007), Eliane reificou sobre seu processo de escolarização e opção
pela carreira. Afirmou ter sempre estudado em escolas públicas e, a partir do 9º ano,
frequentou escola noturna para poder trabalhar durante o dia. Por influência de sua
professora de matemática, ingressou na licenciatura noturna em Matemática, na
Unicamp. Lembra ter tido muitas dificuldades nas disciplinas de Cálculo, circunstância
que a levou a se dar “conta da falta de bagagem cultural e científica”. Diz não ter
desistido do curso para mostrar a seu pai que era capaz de vencer seus desafios
(Cristovão, 2007, p. 7).
Começou a lecionar quando estava no terceiro ano da licenciatura. Lembra que,
no início da docência, tentava imitar seus melhores professores da escola básica e de
outros, procurava fazer o contrário. Esse início antecipado da docência lhe possibilitou,
após concluir a licenciatura, fazer um curso de Especialização na FE/Unicamp que a
marcou profundamente, tendo sido decisivo para seu desenvolvimento profissional. O
curso lhe possibilitou realizar, como trabalho final, uma investigação sobre a própria
prática, a qual foi desenvolvida com o apoio de um grupo colaborativo constituído por
mais quatro colegas de curso e dois formadores de professores que foram os
orientadores dos cinco docentes-estudantes. Esse grupo foi, portanto, sua primeira
comunidade investigativa. Como ela própria diz, foram dois anos de encontros onde
“cada um podia contar com a contribuição de todos para preparar e analisar suas
práticas de sala de aula, para (re)significar a história de sua própria constituição
profissional” (Ibid., p.9). Os resultados dessa primeira experiência investigativa de
Eliane (Cristovão, 2001) foram publicados em um livro organizado pelos formadores
(Fiorentini & Miorim, 2001a).
Fiorentini & Miorim (2001b) destacaram, em relação a esse processo
investigativo, que o grupo adotou, como metodologia de ensino, uma abordagem
exploratória e problematizadora de produção e negociação de significados. Por esta ter
sido uma abordagem inovadora para os professores, em que davam voz aos alunos e os
desafiavam a fazer registros sobre seus processos de pensamento e de significação das
ideias matemáticas, os professores frequentemente entravam em crise e questionavam
15
essa abordagem didático-pedagógica. Daí a importância do grupo para apoiar a análise e
a percepção da riqueza e das dificuldades de aprendizagem dos alunos.
Para compreender melhor esse processo colaborativo, trazemos aqui um
pequeno episódio de seu projeto de ensino-pesquisa, em classes do 6º ano, intitulado
“Pelos caminhos de uma nova experiência no Ensino de Geometria”, o qual demandou
um período de tempo de 36 horas-aula. Em uma de suas primeiras aulas, Eliane
procurou explorar noções de geometria a partir do Tangram, tendo, naquele dia,
solicitado aos alunos que comparassem o triângulo médio com o quadrado menor das
peças do Tangram e encontrassem uma forma de verificar se um deles era maior ou
igual ao outro. Embora uma de suas classes tenha produzido respostas satisfatórias, a
partir de dobraduras, recortes ou sobreposição das figuras, justificando a equivalência
das áreas das duas figuras, Eliane ficou desapontada com a outra classe em relação ao
alto número de respostas escritas aparentemente sem sentido, tais como: “O quadrado
porque ele tem 4 lados iguais e 4 retas e o triângulo só tem 3 pontas e três retas”; “O
triângulo é maior que o quadrado, os lados são maiores...”; “O triângulo é maior por
causa dos ângulos são maiores”; etc. (Cristovão, 2001, p. 63).
Ao ser questionada pelo grupo colaborativo sobre a diferença de gestão da
atividade nas duas classes, Eliane, lembrou que, na classe em que os alunos
apresentaram respostas satisfatórias, um dos alunos, logo no início da atividade,
perguntara: “maior, como assim?”. Ela, então, negociou com eles o significado de maior
relacionado à quantidade de papel ou à área das figuras geométricas. Isso, entretanto,
não aconteceu com a outra classe.
A análise coletiva desse episódio contribuiu para que Eliane aprendesse que o
papel do professor, além de elaborar boas tarefas ou desafios matemáticos, precisa
também completar a tríade de ensino, conforme Potari & Jaworski (2002), sendo
sensível ao que os alunos dizem com suas respostas e significações e fazendo a gestão
da aprendizagem, mediante negociação dos significados necessários ao bom
desenvolvimento das atividades em classe.
Esse e outros episódios mostram que a interlocução de Eliane com outros
parceiros interessados em compreender a prática de ensinar e aprender matemática –
principalmente com os formadores e acadêmicos da universidade que possuem um
excedente de visão, conforme Bakhtin (2003), sobre os professores da escola em relação
a outros modos de ensinar e aprender matemática e à possibilidade de inter-relacionar
ensino e investigação – foi fundamental para seu desenvolvimento profissional, sendo
isso reconhecido pela própria professora.
16
Foi principalmente nesses momentos de discussão com... o grupo... que percebi
a importância de ter alguém para compartilhar os conflitos pelos quais passamos
ao tentar uma inovação. Sozinho é muito difícil inovar e, mais difícil ainda,
analisar a prática (Cristovão, 2001, p.58).
A perspectiva investigativa do projeto consistia que cada professor do grupo
produzisse uma análise narrativa relativa à sua experiência educativa, descrevendo com
detalhes: o processo de produção e negociação de significados; as significações e
aprendizagens matemáticas dos alunos; os dilemas e tensões tanto pessoais como da
classe ou da escola presentes no processo de inovação; e os novos conhecimentos
profissionais que cada professor produziu nesse processo (Fiorentini & Miorim, 2001b,
p.43).
Ao participar dessa comunidade investigativa, Eliane deu início a uma prática
investigativa que lhe possibilitou desenvolver a investigação como atitude de
questionamento e análise em relação à sua prática de ensinar. Postura que encontra eco
nos estudos de Cochran-Smith & Lytle (1999) e Jaworski (2008). Essa prática/postura
investigativa pode ser depreendida das análises que Eliane tece sobre a relação entre sua
prática de ensinar e sua prática de investigar:
É difícil ser professora e investigadora ao mesmo tempo. Nessa experiência educativa
tentei conciliar as duas coisas. Minha maior preocupação como professora: ensinar e
aprender geometria com compreensão e prazer. Enquanto investigadora: analisar e
compreender como se dá o processo de ensino e aprendizagem quando priorizamos uma
prática de produção e negociação de significados (Cristovão, 2001, p. 45).
Anos mais tarde, ao teorizar sobre essa experiência, onde destaca o processo de
compartilhá-la com outros colegas e de escrever sobre ela – sendo esta uma forma de
refletir e investigar sua prática –, reconhece que a mesma contribuiu para desenvolver
uma profissionalidade crítica e questionadora sobre suas aulas, sendo este mais um
indício de seu desenvolvimento profissional:
Essa experiência deu início ao processo de constituição de minha própria postura
investigativa. Foi quando comecei a perceber a importância de compartilhar nossas
experiências de sala de aula por meio da escrita e, ainda, o quanto o processo de
escrever e reescrever nos permite refletir sobre nossa prática pedagógica... Após a
escrita do livro, meu olhar para a sala de aula, para os alunos especialmente, passou a
ser mais crítico e questionador (Cristovão, 2009, p. 18-19).
Outra experiência significativa à aprendizagem e ao desenvolvimento
profissional de Eliane foi sua participação no Grupo de Sábado, a partir de 2003. Sua
principal motivação para ingressar nesse grupo foi decorrente de sua participação
anterior na comunidade que escreveu o livro “Por Trás da Porta, que matemática
acontece?”, reconhecendo ter sido um período de grandes aprendizagens.
Ao ingressar no GdS, logo identificou-se com a prática do mesmo, vendo nessa
nova comunidade a possibilidade de retomar os processos de reflexão e investigação
17
sobre sua prática em um ambiente de colaboração e de escrita de análises narrativas de
aulas de matemática, como evidencia o episódio a seguir.
Em sua primeira participação no GdS, quando o grupo problematizava o
conceito de perímetro, um colega (Rogério) entregou ao grupo uma tarefa para que
todos a resolvessem (Figura 1).
Eliane e alguns colegas do GdS e todos os alunos do 8º ano de Rogério,
encontraram uma medida de 40 cm para o perímetro da Figura A. Outros, porém,
obtiveram 60 cm, incluindo também o perímetro interno.
O grupo, a partir desses resultados, iniciou uma negociação de significados sobre
o conceito de perímetro. Alguns levantaram a hipótese de que as tarefas e definições dos
livros didáticos, em uso nas escolas, induziam um sentido incorreto de perímetro, dando
origem ao que Brousseau (1986) denominou de “obstáculo de origem didática”.
Rogério, inclusive, havia desenvolvido, com seus alunos do 8º ano, uma pequena
investigação sobre como os livros didáticos apresentavam as tarefas e definições sobre
perímetro, tendo verificado que, tanto as definições, tais como “perímetro é a soma dos
lados de uma figura geométrica”, ou é “a medida do contorno de uma figura
geométrica”, quanto as tarefas com figuras “bem comportadas”, isto é, não vazadas,
contribuíam para uma construção fraca do conceito de perímetro.
Eliane e os acadêmicos do grupo, entretanto, questionaram o modo como
Rogério havia elaborado a tarefa com a figura vazada. Argumentavam que a forma
como a tarefa havia sido elaborada configurava-se como uma “pegadinha”, na qual a
figura B poderia ser considerada sobreposta à figura A, não favorecendo a
problematização e o reconhecimento do perímetro interno. Eliane sentiu-se motivada a
elaborar uma tarefa que pudesse explorar ou problematizar o sentido de perímetro,
colocando em xeque o sentido que vem sendo internalizado tanto por professores
quanto por alunos. Visando isso, trouxe ao grupo uma tarefa com várias figuras
geométricas, sendo algumas delas não convencionais (Figura 2). Sua hipótese era que os
Figura 1: Tarefa elaborada
por Rogério (Ezequiel, 2003)
18
alunos conseguiriam, mediante negociação de sentidos no grupo, chegar a uma melhor
resolução e significação de perímetro, ressignificando, desse modo, o conceito que
tinham de perímetro. As figuras, em uma primeira elaboração da tarefa, continham as
medidas dos lados. Ao ser questionada pelos acadêmicos sobre a necessidade ou
pertinência dessas informações, Eliane optou por não informá-las. Esse aprendizado é
evidenciado em sua análise narrativa dessa experiência, ao escrever, como justificativa
para essa opção, que faz “parte do processo de formação do aluno, que ele aprenda a
obter os dados de uma situação-problema, rompendo, assim, com a pedagogia da
facilitância, isto é, a pedagogia que dá tudo pronto e mastigado aos alunos” (Cristovão,
2003, p.36).
Calculem o perímetro das figuras abaixo do modo que vocês consideram mais correto
Fig C Fig D
Fig EFig F
É interessante destacar que a expressão pedagogia da facilitância foi introduzida
e reificada oralmente no grupo no ano 2000 e passou a ser incorporada ao repertório
discursivo do GdS, sendo frequentemente utilizada como modo de questionar e
desnaturalizar a prática de utilização mecânica de procedimentos ou dicas, visando
facilitar a performance do aluno na resolução de exercícios e problemas matemáticos.
Embora esta expressão já fosse de uso corrente no grupo, Jiménez Espinosa (2002),
somente dois anos mais tarde de seu surgimento, seria o primeiro participante do grupo
a reificar por escrito, em sua tese de doutorado, essa expressão, tendo analisado uma
discussão do grupo acerca do significado da pedagogia da facilitância. Em síntese,
Jiménez destacou que os professores da escola, de um lado, a relacionaram a uma
“cultura pedagógica que pode gerar nos alunos uma atitude mecânica e pouco reflexiva
diante do saber” e os acadêmicos, de outro, a relacionaram com os obstáculos de origem
didática que, conforme Brousseau (1986), são simplificações didáticas introduzidas
pelos professores visando facilitar a seus alunos a memorização de um fato ou algum
procedimento de cálculo ou resolução de problemas (Jiménez, 2002, p. 144).
Figura 2: Tarefa elaborada por Eliane
(Cristovão, 2003).
19
Entretanto, no episódio em análise, Eliane teve acesso à expressão a partir da
narrativa de Rogério, participante do GdS desde o ano 2000. Isso aconteceu quando
Rogério levantou a hipótese de que seus alunos não consideraram o perímetro interno
no cálculo do perímetro da figura vazada, porque os livros didáticos e a cultura escolar
preferem “adotar a pedagogia da facilitância, subestimando a capacidade de raciocínio
dos alunos” (Ezequiel, 2003, p. 32). Eliane mostra que não apenas que se apropriou
dessa reificação do grupo, mas também passou a utilizá-la em sua análise narrativa,
tendo, entretanto, produzido sua própria reificação: “pedagogia da facilitância... é a que
dá tudo pronto e mastigado aos alunos”.
Com base em Lave & Wenger (1991), podemos dizer que o GdS, ao validar essa
reificação bem como sua opção didática de não informar as medidas dos lados das
figuras geométricas (Figura 2), passou a reconhecê-la, já a partir dos primeiros
encontros, como um membro legítimo dessa comunidade de estudo e investigação.
Alguém que se identificou com as práticas do grupo e é capaz de contribuir para o
desenvolvimento dos saberes dessa comunidade.
Ao retomar a tarefa validada pelo grupo (Figura 2) para aplicá-la aos seus
alunos, Eliane optou por recortar essas figuras em papel cartão, acreditando que, desse
modo, poderia evitar que os alunos confundissem a parte vazada da Figura C como uma
figura sobreposta à outra.
Os resultados da aplicação foram positivos e múltiplos, cabendo aqui destacar a
figura geométrica C. Alguns grupos somaram os perímetros externos e internos, dando
um resultado correto e único para o perímetro. Outros deram dois resultados separados:
o perímetro interno e o externo. Vários grupos apenas somaram os lados externos e um
grupo apresentou como resultado final a diferença entre o perímetro externo e o interno.
Para sistematizar a experiência didática, Eliane, após discutir e negociar os
resultados e significados com toda a classe, aplicou um questionário, onde pedia para os
alunos responderam “o que é perímetro?” e “como ele é calculado quando a figura é
vazada ou recortada?”. O retorno do resultado da experiência ao GdS se deu em forma
de uma análise narrativa escrita que, após agregar reflexões e análises produzidas com a
ajuda do grupo, foi publicada no segundo livro do GdS (Cristovão, 2003).
Ao olhar, anos mais tarde, para seus aprendizados no GdS, Eliane destaca que
havia liberdade para socializar “nossos problemas, compartilhar experiências e buscar
fundamentação teórica para entender melhor os desafios e as maneiras diversas de lidar
com eles. Podíamos relatar o que se fazia em sala de aula e contar com diferentes
olhares para compreender melhor nossa própria prática” (Cristovão, 2009, p. 19).
20
No GdS, Eliane participou da escrita de quatro livros do grupo, tendo publicado
cinco análises narrativas de aulas de matemática e três ensaios de sistematização
relativos: à escrita no processo de aprender matemática; às aulas investigativas; e à
colaboração na construção de uma postura investigativa do professor de matemática.
Esse números mostram que sua participação no GdS foi plena e intensa em reificações.
Sua participação nas duas comunidades investigativas aqui descritas e sua
história de vida estudantil e profissional contribuíram para que Eliane se tornasse não
apenas crítica em relação às práticas escolares, mas também sensível e comprometida
com crianças com dificuldades de aprendizagem e ameaçadas de fracasso escolar.
Acreditava que essas crianças também eram capazes de aprender e que, junto a uma
melhor política pública de apoio e valorização do trabalho docente e da escola pública,
cabia à escola e ao professor encontrar alternativas pedagógicas que permitissem a esses
alunos se tornarem também protagonistas e sujeitos da aprendizagem. Esse desafio
motivou-a a realizar o mestrado.
Ao ingressar no mestrado, em 2005, trouxe consigo essa problemática ao grupo
acadêmico PraPeM, onde pôde realizar leituras e estudos que lhe possibilitaram
compreender e tratar teórico-pedagogicamente esse problema. Com base em João Pedro
da Ponte, Ole Skovsmose e em estudos do GdS e PraPeM, assegurou-se que era preciso
romper com o paradigma do exercício e apostar em tarefas e atividades abertas e de
natureza exploratório-investigativa.
Outros autores acadêmicos também foram importantes para a compreensão do
problema. Charlot (2000), por exemplo, ajudou-a a compreender que “o fracasso
escolar não existe, o que existe são alunos fracassados, situações de fracasso, histórias
escolares que terminam mal” (Apud Cristovão, 2007, p. 43). Luiz Carlos de Freitas, por
sua vez, ajudou-a a compreender “as causas da exclusão vivida não só por seus alunos,
mas também por boa parte dos que frequentam a escola pública” sem, no entanto,
apontar alternativas pedagógicas para o enfrentamento deste problema (Ibidem).
Michel de Certeau, ao contrário, levou-a a perceber que sempre há brechas ou
possibilidades para intervir e promover mudanças nas práticas cotidianas da escola.
Essas possibilidades vinham ao encontro de seus conhecimentos construídos
localmente, junto às duas comunidades de prática. Isso a mobilizou a questionar certos
conhecimentos e posicionamentos acadêmicos deterministas, como evidencia a seguinte
afirmação: “não poderia ficar de braços cruzados e esperar chegar o que Freitas chamou
de o ‘projeto histórico transformador das bases de organização da escola e da
sociedade’” (Cristovão, 2007, pp.40-41).
21
O estudo das possibilidades pedagógicas para promover a inclusão escolar de
alunos com dificuldades de aprendizagem em matemática passou, então, a ser o foco de
sua pesquisa de mestrado. Como havia classes de Recuperação de Ciclo II6, estabeleceu
parceria com duas professoras, visando desenvolver um projeto de intervenção em suas
classes. Junto com elas e outros professores interessados constituiu um grupo
colaborativo local – Grupo Colaborativo de Estudos em Educação Matemática
(GCEEM) – passando, portanto, a contar com a interlocução, para sua investigação de
mestrado, de três grupos colaborativos (PraPeM, GdS e GCEEM). Com o GCEEM
planejou, conjuntamente, uma série de tarefas e aulas exploratório-investigativas para as
duas classes, tendo atuado junto com as professoras, em sala de aula, tornando-se, ao
mesmo tempo, professora e investigadora dessa experiência.
Enquanto pesquisadora, buscava respostas, com apoio do PraPeM, à seguinte
pergunta: “Que possibilidades e contribuições uma prática exploratório-investigativa,
mediada pela participação colaborativa de um grupo de professoras, pode trazer para
os processos de ensino e aprendizagem da matemática de alunos de classes de RC-II,
sobretudo evidências de inclusão escolar dos mesmos?” (Cristovão, 2007, p.24).
Chamou essa prática de docência e pesquisa, nas duas classes, de pesquisa-ação
de 1ª ordem, pois compartilhava e analisava a experiência educativa com as parceiras e
com o GCEEM, incluindo momentos de discussão e análise também com o GdS e o
PraPeM.
A meta-análise dessa pesquisa-ação, realizada posteriormente apenas por Eliane,
com apoio do PraPeM, foi denominada de pesquisa-ação de 2ª ordem. Nesse
metaestudo, obteve evidências de inclusão escolar dos alunos a partir de atividades
exploratório-investigativas. Devido à quantidade de material coletado, analisou apenas a
experiência com a classe da Profa. RE. O material de análise foi obtido a partir de
gravações em áudio e vídeo, de portfólios dos alunos, de questionários, de narrativas
das professoras parceiras e de diário de campo da investigadora.
Elegeu cinco eixos por meio dos quais desenvolveu análises e interpretações das
produções e das relações que os alunos estabeleciam com o conhecimento matemático,
consigo mesmos, com os outros e com o processo de ensino e aprendizagem: a
produção matemática dos alunos; a mobilização e (re)significação de seus saberes; suas
mudanças de atitudes e posturas; o protagonismo e a participação ativa dos alunos; e
suas resistências e negatricidades.
6 As classes de Recuperação de Ciclo II, no Brasil, são formadas por alunos retidos no final do Ensino
Fundamental (atualmente 9º ano), por não apresentarem desempenho satisfatório para ingresso no Ensino
Médio.
22
Dentre várias atividades exploratório-investigativas desenvolvidas em uma classe
de alunos do 9º ano em parceria com a professora RE, retidos para recuperação de ciclo,
trazemos, a título de ilustração, dois episódios relacionados à geometria. A tarefa
pretendia revisar e explorar os diferentes tipos de triângulos e a possibilidade de
construção dos mesmos, a partir de um triângulo isósceles (não equilátero) sobre o qual
podiam traçar apenas um segmento de reta. Dentre as várias respostas dos alunos,
Eliane destacou a justificativa dada pelas estudantes Gi e Ta sobre a impossibilidade de
construir, com apenas um traço, um triângulo equilátero a partir de um triângulo
isósceles não equilátero7:
Outro episódio de sua investigação evidencia a criatividade dos alunos e sua
capacidade de negociar a validação da solução encontrada. Trata-se da interpretação que
dois alunos (Da e Em) fizeram de uma tarefa que Eliane elaborou inspirada em uma
proposta de Ponte et al. (2003, p. 72), denominada “Dobragens e cortes”. A dupla
percebeu que era impossível obter um triângulo escaleno, com dois cortes sobre a folha
dobrada. Fizeram, então, primeiro um corte no canto direito inferior da folha dobrada e,
em seguida, desdobraram a parte recortada, obtendo um triângulo isósceles e, sobre este,
fizeram o segundo corte, obtendo um triângulo escaleno.
Eliane e RE, ao tomarem conhecimento que Da e Em tinham conseguido obter
um triângulo escaleno, foram conferir, como fizeram:
Ao levar esses episódios aos grupos GdS e PraPeM, outras interpretações foram
agregadas e outros interlocutores e excedentes de visão, conforme Bakhtin (2003),
7 Transcrição do registro manual: “Triângulo equilátero - não tem como fazer (construir), porque eu
precisaria de (pelo menos) um ângulo de 60º (para então mexer nos outros dois, com um traço, mas) nas
figuras não aparece nenhum” (Cristovão, 2007, p. 99), (parênteses meus).
Figura 4
Eliane: Como vocês conseguiram formar?
Da: Dois cortes, né? Agora o de lados diferentes, olha... um corte, beleza? [Da
dobra o papel ao meio, faz um corte no canto, como Em havia feito antes, e começa
a abrir o papel]
Eliane e Re: Mas... é tudo com ele dobrado!
Da: Não, não! Aqui não tá falando que é só dobrado, ó... [Apontando para o item 2
da tarefa]
Eliane: [Lê a folha da tarefa e concorda]... é... faltou falar assim: numa folha
dobrada ao meio! [muitas gargalhadas]
Da: Tá vendo dona, eu sou esperto! (Colchetes da autora).
23
foram mobilizados para compreender o processo de ensino e aprendizagem de crianças
com grandes dificuldades de aprendizagem. No PraPeM, por exemplo, um dos
formadores trouxe o conceito de negatricidade da teoria da multirreferencialidade, o
qual refere-se à “capacidade incrível” do aluno em “desjogar, em responder de uma
forma imprevisível e diferente dos objetivos traçados em nossa ação formadora” (Borba,
apud Cristovão, 2007, p. 103).
A pesquisadora, a partir desse estudo, conclui, entre outros aspectos, que:
Os alunos da RC não são consumidores de massa, que aceitam tudo o que lhes é
transmitido. Trabalhar com eles requer uma mudança de postura de professores e
gestores que precisam ver neles, não apenas rebeldes que não produzem, mas
consumidores críticos do conhecimento que lhes é oferecido” (Idem, p. 15).
Eliane, ao mesmo tempo que se apropria do saber da comunidade acadêmica
para produzir outros sentidos à prática docente, questiona a própria literatura acadêmica
por esta não abrir possibilidades para outras significações e por não reconhecer a
complexidade e a riqueza das práticas escolares e dos saberes de seus atores. Tendo por
base episódios de sala de aula em que os alunos surpreenderam as professoras com suas
respostas e resoluções criativas e inusitadas, Eliane conclui com algumas perguntas:
Alunos em situação de fracasso escolar não produzem conhecimento ou apenas não
conseguem se adequar a um sistema escolar rígido e fechado, onde todas as coisas
precisam ser feitas conforme o que foi prescrito e num tempo determinado? Será que se
dermos mais liberdade para que eles mostrem sua criatividade, eles não nos
surpreenderão? A escola pode permitir esse tipo de trabalho? Na RC II, este seria um
caminho para recuperar a auto estima desses alunos e fazê-los acreditar que são capazes
de aprender matemática? Ao interpretar as atitudes de EM e DA como uma capacidade
para argumentar contra uma regra imposta, podemos valorizar ainda mais a utilização
de uma abordagem que lhes permita ser sujeitos da aprendizagem (Cristovão, 2007,
p.104).
Essa sensibilidade de Eliane em perceber as aprendizagens dos alunos nos
remetem a Lave (1996) quando afirma que a aprendizagem não é um problema para
alunos que se engajam e participam das atividades educativas. Algo sempre aprendem
nesse processo. E esse algo é complexo e muitas vezes oculto, pois podem não vir ao
encontro do objetivo da instrução.
Anos mais tarde, ao fazer um balanço de suas aprendizagens profissionais em
grupos colaborativos ou comunidades investigativas, destaca que, nessas comunidades:
investigamos e compartilhamos experiências de sala de aula; contamos com vários
olhares para compreender melhor essas experiências, sua riqueza e também suas
limitações; encontramos apoio para enfrentar nossos problemas e desafios, buscando
leituras e bases teóricas que venham ao encontro dessas necessidades; analisamos e
escrevemos sobre nossa prática; ao escrever, refletimos e provocamos reflexões
coletivas, atingindo outros professores; nos tornamos críticos, não sendo meros
24
reprodutores de propostas e recomendações externas (academia e políticas públicas);
nos tornamos capazes de construir nossos próprios caminhos, de sermos autores de
nossa prática e de nossas ideias; buscamos o desenvolvimento pessoal e profissional que
queremos e acreditamos, tendo em vista nosso compromisso com a qualidade de ensino
que consideramos ser a mais adequada à formação de nossos estudantes (Cristovão,
2009).
As investigações realizadas por Eliane, primeiramente em comunidades
profissionais e, posteriormente, em uma comunidade acadêmica, tornaram-na, como
destaca Day (1999), uma “agente de mudança”, engajada em rever, renovar e ampliar o
seu compromisso com os propósitos emancipatórios da crianças e jovens. E, também,
proporcionou-lhe poder e competência para questionar o conhecimento gerado por
outros fora do contexto local, conforme Cochran-Smith & Lytle (2009). Esse indício de
desenvolvimento profissional de Eliane tornou-se evidente quando Eliane e outro colega
do GdS lideraram, em 2008 e 2009, no Estado de São Paulo, um movimento de crítica e
resistência às políticas curriculares da Secretaria de Educação, que impôs, para toda a
rede pública paulista, uma proposta meritocrática de ensino, oferecendo bônus para os
professores cujos alunos conseguissem melhor desempenho nos testes padronizados.
Essa política foi implementada sem consulta aos professores e sem levar em
consideração as diferentes realidades e necessidades locais.
A comunidade GdS, liderada por esses docentes, tendo por base os estudos
realizados pelo grupo, tem-se contraposto a essa política homogeneizadora (com
apostilas que forneciam aulas prontas para os professores aplicarem), reivindicando
condições para que os próprios professores possam se organizar em grupos e
comunidades, adquirindo condições para elaborar e desenvolver projetos de melhoria do
ensino nas escolas, tendo por base a avaliação das necessidades locais. O GdS
reivindica que o Estado, além de dar suporte a esses grupos, deveria viabilizar
condições para as universidades colaborarem, mobilizando formadores e futuros
professores para atuarem em parceria com os professores da escola básica.
A partir de 2008, Eliane começou a atuar também no Ensino Superior, motivada
pela vontade de compartilhar com futuros professores o que sabia. Em 2011, ao
ingressar no curso de doutorado, deixou de atuar na escola básica porque a bolsa de
estudo era mais vantajosa do que seu salário de professora do ensino básico. No
primeiro semestre de 2013, ao aspirar estabilidade funcional e um plano de trabalho
compatível com a carreira acadêmica, onde pudesse também desenvolver investigações,
25
foi aprovada em concurso, tornando-se formadora efetiva de professores de matemática
na Universidade Federal de Itajubá (MG).
Conclusões e considerações finais
A análise narrativa de aprendizagem e desenvolvimento profissional,
desenvolvida neste estudo, nos mostra que o processo de tornar-se professor-
investigador em comunidades investigativas é único, singular e complexo, pois depende
tanto das práticas promovidas nessas comunidades, quanto das condições e disposições
de cada professor em participar e entregar-se a essa experiência formativa de trabalho,
estudo e investigação.
A história de participação e reificação da professora Eliane evidencia que sua
participação inicial em duas comunidades investigativas de cariz mais profissional a
motivaram a ingressar em uma comunidade de cariz mais acadêmico, pois via nessa
comunidade a possibilidade de aprofundar a compreensão de problemáticas de sua
prática profissional na escola básica.
Ao encontrar uma comunidade acadêmica aberta ao estudo desse tipo de
problemática, Eliane pôde analisar e evidenciar outras possibilidades de aprendizagem
de alunos considerados fracassados em matemática. Uma dessas foi engajá-los em
atividades exploratório-investigativas, nas quais os alunos, em pequenos grupos,
levantam hipóteses e conjecturas matemáticas que são verificadas, testadas e depois
reificadas em breves relatos escritos apresentados para apreciação e validação de toda a
classe. Apoiada em autores como Bernard Charlot, Michel de Certeau, João Pedro da
Ponte e Cochran-Smith & Lytle e também na colaboração e interlocução com as
professoras parceiras de investigação na escola e com os parceiros críticos das
comunidades PraPeM e GdS, Eliane encontrou sustentação para realizar uma leitura
positiva e analítica sobre os avanços da aprendizagem de alunos considerados
fracassados ou com dificuldades em matemática. Essa leitura analítica e interpretativa
foi suportada também pela apropriação de conceitos importantes, tais como: atividades
exploratório-investigativas; negatricidade; fracasso escolar; inclusão/exclusão escolar;
negociação de significados, tendo evidenciado evolução e desenvolvimento intelectual
26
de alunos com dificuldades de aprendizagem, sendo este um modo de a escola promover
a inclusão de jovens com pensamento divergente.
Do ponto de vista do processo de investigação, a análise narrativa mostrou-se
um recurso metodológico importante para descrever situações de aprendizagem e
marcos de desenvolvimento profissional da professora, entrecruzando interpretações e
significações do investigador e da professora investigada acerca dos acontecimentos
vividos e dos impactos dos mesmos em sua prática e em sua constituição profissional,
ao longo do tempo. De fato, a análise narrativa produzida acerca da trajetória de Eliane
nas comunidades investigativas trouxe indícios concretos de que sua participação e
reificação nessas comunidades exerceram papel fundamental à compreensão e
transformação de suas práticas pedagógicas escolares e de seu desenvolvimento
profissional, sobretudo em relação à constituição de seu modo de ser e atuar na
profissão, o qual expressa uma profissionalidade de cariz reflexivo e investigativo.
Essa postura investigativa – expressão de sua profissionalidade docente
desenvolvida no interior de comunidades investigativas – permite compreender e
redimensionar o que dizem Jaworski (2008) e Cochran-Smith & Lytle (1999, 2009) em
relação a esse conceito. Em síntese, a investigação como uma postura inerente à sua
profissionalidade docente evidencia-se pelo modo como permanentemente questiona,
problematiza, documenta, analisa e ressignifica sua prática pedagógica e a de outros, em
uma comunidade investigativa profissional ou acadêmica, mesmo quando não está
desenvolvendo uma investigação intencional, valorizando, assim, os excedentes de
visão de seus parceiros críticos.
Nesse processo e modo de ser da professora Eliane, não foi apenas ela que
evoluiu e desenvolveu-se profissionalmente. A própria comunidade desenvolveu-se e
desenvolve-se à medida que produz e socializa suas investigações e interage com outras
comunidades congêneres, constituindo uma rede mais ampla de aprendizagem. Isso
permite que as comunidades locais possam adquirir poder e reconhecimento da
comunidade educativa mais ampla e, portanto, condições de questionar e problematizar
os rumos da educação escolar com a sociedade e com o Estado, como ocorreu com
Eliane e a comunidade GdS, quando lideraram um movimento de questionamento e
resistência às políticas curriculares impostas pela Secretaria de Educação do Estado de
São Paulo.
Entretanto, apesar desses avanços e das evidências desse estudo, em relação à
importância de o professor tornar-se um investigador de sua prática e participar de
27
comunidades investigativas, sendo este um contexto rico de aprendizagem e
desenvolvimento profissional e de melhoria das práticas de ensinar e aprender na escola
básica, a cultura escolar e as políticas públicas, no Brasil, ainda não valorizam este tipo
de profissional. E essa foi uma das razões pelas quais Eliane optou por atuar
exclusivamente no Ensino Superior. Excluindo as poucas escolas públicas federais de
ensino básico – onde os docentes têm salário e condições de trabalho, estudo e
investigação equivalentes aos dos professores universitários -, a maioria das escolas
brasileiras continua a não valorizar o professor que quer e gosta de investigar sua
prática, tornando-se, portanto, um não-lugar para o professor com postura ou
profissionalidade investigativa.
Referências
Bakhtin, M. M. (2003). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes.
Beillerot, J. (2001). A pesquisa: esboço de uma análise. In: André, M. O papel da pés-
quisa na formação e na prática dos professores (pp. 71-90). Campinas: Papirus.
Bolivar, A., Domingo, J., & Fernandez, M. (2001). La investigación biográfico-
narrativa em educación: enfoque y metodologia. Madrid: La Muralla.
Brousseau, G. (1986). Fondements et méthodes de la didactique des mathématiques.
Recherches en Didactique des Mathématiques, 7(2), 33-115.
Carvalho, D.L., & Fiorentini, D. (2013). Refletir e investigar a própria prática de
ensinaraprender Matemática na escola. In: Carvalho, D.L. et al. (Org.). Análises
Narrativas de Aulas de Matemática (pp. 11-23). São Carlos: Pedro & João
Editores.
Charlot, B. (2000). Da Relação com o saber: Elementos para uma teoria. Porto Alegre:
Artmed Editora.
Cochran-Smith, M. & Lytle, S. L. (2009). Inquiry as stance: practitioner research for
the next generation. New York: Teacher College Press.
Cochran-Smith, M., & Lytle, S.L. (1999). Relationships of knowledge and practice:
teacher learning in communities. Review of Research in Education, (24), 249–305.
Cristovão, E.M. (2001). Pelos caminhos de uma nova experiência no ensino de
geometria. In: Fiorentini, D., & Miorim, M.A (Org.). Por trás da Porta, que
matemática acontece? (pp. 45-82). Campinas: Editora Gráfica FE/Unicamp.
Cristovão, E.M. (2003). E o perímetro de pegou! In: D. Fiorentini & A. Jiménez
(Orgs.). Histórias de Aulas de Matemática (pp. 35-39). Campinas: Editora Gráfica
FE/Unicamp.
Cristovão, E.M. (2007). Investigações matemáticas na recuperação de ciclo II e o
desafio da inclusão escolar. 152p. Dissertação (Mestrado em Educação).
Campinas: FE/Unicamp.
28
Cristovão, E.M. (2009). O papel da colaboração na construção de uma postura
investigativa do professor de matemática. In: Carvalho, D.L., & Conti, K.C.
(Org.) Histórias de colaboração e investigação na prática pedagógica em
matemática: ultrapassando os limites da sala de aula (pp. 131-148). Campinas:
Alínea.
Day, C. (1999). Developing teachers: the challenges of lifelong learning, London:
Falmer Press.
De Certeau, M. (2007). A invenão do cotidiano. Petrópolis, Vozes.
Doig, B., & Groves, S. (2011). Japanese Lesson Study: Teacher Professional
Development through Communities of Inquiry, Mathematics Teacher Education
and Development, 13(1), 77-93.
Ezequiel, R.S. (2003). Perímetro interno ou externo? In: D. Fiorentini & A. Jiménez
(Orgs.). Histórias de Aulas de Matemática (pp. 31-34). Campinas: Editora Gráfica
FE/Unicamp.
Fiorentini, D. (2009). Quando acadêmicos da universidade e professores da escola
básica constituem uma CoP reflexiva e investigativa. In: D. Fiorentini, R.C.
Grando, R.G.S. Miskulin (Orgs.). Práticas de formação e de pesquisa de
professores que ensinam matemática. Campinas: Mercado de Letras, pp. 233-255.
Fiorentini, D. et al. (2005). Learning through collaboration from professionals with
different knowledges. In: XV ICMI STUDY. Águas de Lindóia, SP, Brazil. v. 1. p.
1-6. Disponível em: http://stwww.weizmann.ac.il/G-math/ICMI/strand2.html.
Fiorentini, D., & Castro, F. (2003). Tornando-se professor de Matemática: O caso de
Allan em Prática de Ensino e Estágio Supervisionado. In: Fiorentini, D. (Org.)
Formação de professores de Matemática: Explorando novos caminhos com outros
olhares (pp. 121-156). Campinas: Mercado de Letras.
Fiorentini, D., & Lorenzato, S. (2006). Investigação em Educação Matemática:
percursos teóricos e metodológicos. Campinas: Autores Associados.
Fiorentini, D., & Miorim, M.A. (2001b). Pesquisar & escreve também é preciso: a
trajetória de um grupo de professores de matemática. In: Fiorentini, D. & Miorim,
M.A. (Org.). (2001a). Por trás da porta, que Matemática acontece? (pp. 12-37).
Campinas: Editora Gráfica FE/Unicamp.
Fiorentini, D., & Miorim, M.A. (Org.). (2001a). Por trás da porta, que Matemática
acontece? Campinas: Editora Gráfica FE/Unicamp.
Foucault, M. (1977). A Vontade do Saber. Rio de Janeiro: Graal.
Galvão, C. (2005). Narrativas em Educação. Ciência & Educação,11 (2): 327-345.
Hargreaves, A., & Fink, D. (2007). Liderança sustentável: desenvolvimento de gestores
da aprendizagem. Porto Alegre: Artmed.
Jaworski, B. (2008). Building and sustaining inquiry communities in mathematics
teaching development: Teachers and Didacticians in Collaboration. In:
International handbook of mathematics teacher education: Vol. 3. Participants in
mathematics teacher education: individuals, teams, communities, and networks.
Wood, T & Krainer, K. (Eds), Sense Publishers, pp. 309-330.
Jiménez, A. (2002). Quando professores de Matemática da escola e da universidade se
encontram: ressignificação e reciprocidade de saberes. Tese (Doutorado em
Educação: Educação Matemática). Campinas: FE/Unicamp.
29
Lave, J. (1996). The practice of learning. In: S. Chaiklin & J. Lave (Edts).
Understanding practice: Perspectives on activity and context (pp. 3-32). York:
Cambridge University Press.
Lave, J., & Wenger, E. (1991). Situated learning: legitimate peripheral participation.
Cambridge, University Press.
Lave, J., & Wenger, E. (2002). Prática, pessoa, mundo social. In: Daniels, H. (org).
Uma Introdução a Vygotsky (pp. 165-173). São Paulo: Edições Loyola.
Ponte, J. P., Zaslavsky, O., Silver, E., Borba, M. C., van den Heuvel-Panhuizen, M.,
Gal, H., Fiorentini, D., & Chapman, O. (2009). Tools and settings supporting
mathematics teachers’ learning in and from practice. In R. Even & D. L. Ball
(Eds.), The Professional Education and Development of Teachers of Mathematics:
The 15th ICMI Study (pp. 185-210). New York, NY: Springer.
Ponte, J. P., & Serrazina, L. (2005). Understanding and transforming practice: A
Portuguese experience. In XV ICMI Study (Vol.1, pp. 1-5). Águas de Lindóia, SP,
Brazil.
Ponte, J.P. (1998). Da formação ao desenvolvimento profissional. In Actas do
Profmat98 (pp. 27-44). Lisboa: APM.
Ponte, J.P., Brocardo, J., & Oliveira, H. (2003). Investigações Matemática na Sala de
Aula. Belo Horizonte: Autêntica Editora.
Potari, D., & Jaworski, B. (2002). Tackling complexity in mathematics teaching
development: Using the teaching triad as a tool for reflection and analysis.
Journal of Mathematics Teacher Education, 5, 351-380.
Rocha, L.P., & Fiorentini, D. (2006). Desenvolvimento profissional do professor de
Matemática em início de carreira no Brasil. Quadrante, 15(1-2), 145-168.
Van den Heuvel-Panhuizen, M., & De Goeij, E. (2005). Offering primary school
teachers a multi-approach experience-based learning setting to become a
mathematics coordinator in their school. In XV ICMI Study (Vol.1, pp. 1-6).
Águas de Lindóia, SP, Brazil.
Wenger, E. (2001). Comunidades de práctica: aprendizaje, significado e identidad.
Barcelona: Paidós. (Original do inglês em 1998).