Preceitos de Vida
SABEDORIADO
DALAI LAMA
DUGPA RlMPOCHÉPrefácio e organização de Jean-Paul Bourre
SABEDORIA AMERÍNDIAPrefácio e organização de Jean-Paul Bourre
MAHATMA GANDHIPrefácio e organização de Henri Stern
PENSAMENTOS E MEDITAÇÕESKahlil Gibran
SABEDORIA DO DALAI LAMAPrefácio e organização de Bernard Baudouin
SABEDORIA JUDAICAPrefácio do Rabi Josy Eisenberge organização de Pierre Lurçat
SABEDORIA CHINESA*Tradução do Chinês e apresentaçãode Patrice Serres
' A publicar.
Tradução
MIGUEL MASCARENHAS
SABEDORIADO
DALAI LAMAPrefácio e organizaçãode Bernard Baudouin
Pergaminho
*- Jt^^Q^. Jr*
SABEDORIA DO DALAI LAMABernard Baudouin
Traduzido do originalPréceptes de vie du Dalài'LamaPresses du ChâteletISBN: 2-84592-025-3
copyright © 2001, Presses du Châtelet.
Todos os direitos reservados. Este livro não pode ser reproduzido,no todo ou em parte, por qualquer processo mecânico, fotográfico,electrónico, ou por meio de gravação, nem ser introduzido numabase de dados, difundido ou de qualquer forma copiado para usopúblico ou privado - além do uso legal como breve citação em
artigos e críticas - sem prévia autorização do editor.
copyright © 2002, da tradução: Editora Pergaminho
. ' • • ' • "VDireitos reservados
para a língua portuguesa (Portugal)à Editora Pergaminho, Lda.
Cascais, Portugal
1a edição, 20021a, 2a reimpressões, 2002
ISBN 972-711-204-8
Prefácio
TENTAR ADQUIRIR E MANTER UM ESTADO DE ESPÍRITOdisponível, percorrer dia após dia o caminho deuma meditação pessoal, familiarizar-se com omaior número possível de pensamentos positivos,esquecer-se de si próprio a fim de melhor abrir-seaos outros, procurar ter tempo para ler, recitar,
rezar...São estes os actos simples e verdadeiros a que
nos convida permanentemente, através do seu lu-minoso exemplo, Gyalwa Tenzin Gyatso, o 142
Dalai Lama.Prémio Nobel da Paz, divulgador do pensa-
mento tibetano e infatigável mensageiro da tole-rância, Sua Santidade o Dalai Lama fornece-nosnos seus escritos palavras simples que veiculam j
PREFÁCIO
uma «filosofia de vida» capaz de transcender oquotidiano, em frases que se sucedem com uma
evidência impalpável, mas sempre presente, à ima-gem de uma corrente de serenidade que não só
nos obriga ao questionamento de nós próprios,
como revela a nossa própria inspiração.
Já que, de facto, se trata de uma revelação, umarevelação que, por intermédio de um preceito, de
uma imagem ou de uma metáfora, conduz cada
um de nós até ao limiar do essencial. A intenção
não é tanto a de dispensar a boa palavra, mas a de
se infiltrar nos meandros da nossa consciência e
eventualmente pôr em evidência a aberração de
algumas das nossas impaciências. É por essa ra-
zão que o pensamento do Dalai Lama se materia-
liza em «palavras de luz», palavras essas que, para
além das diferenças de origem ou de cultura, in-
terpelam em cada um de nós uma idêntica huma-
nidade, ajudando-nos a regressar à raiz comum
de todo o ser humano, a encontrar o caminho da
paz interior, a plantar as sementes da nossa pró-
pria realização e a olhar os outros como nos olha-
mos a nós próprios.
Todos aqueles que, desejando entrar no sécu-
lo XXI abrindo o seu coração e libertando a suaalma, procuram uma espiritualidade autêntica e
não-agressiva encontrarão nestes preceitos uma
PREFACIO
força e uma verdade que, transcendendo o Budis-
mo, dão acesso ao mais generoso ecumenismo.Para além das raças, das culturas e das religiões,
e através das suas palavras simples e iluminadas,
Sua Santidade o Dalai Lama conduz-nos à fonte
de todos os apaziguamentos.
Introdução
POR QUE RAZÃO NOS DEVERÍAMOS INTERESSAR PELA
sabedoria de vida do Dalai Lama?
O título da presente obra suscita este género
de interrogação. Por que razão, com efeito, não
privilegiar os valores preconizados por um qual-
quer outro representante de uma das grandes reli-
giões monoteístas? Ou por tal ou tal dirigente de
uma organização humanitária internacional, ou
mesmo por este ou aquele homem de Estado?
Muito simplesmente porque aquilo a que se
referem estas páginas não é da ordem do poder
ou do lugar que o indivíduo ocupa socialmente,
nada tendo a ver com a preeminência histórica
ou hierárquica, e menos ainda com uma qualquer
12 • INTRODUÇÃO
notoriedade de casta ou de classe. E se é certoque, graças à sua evolução pessoal e à sua imensacultura, aquele que aqui nos fala está com-pletamente impregnado de espiritualidade, tam-
bém não deixa de ser verdade que não se trata do
chefe espiritual de centenas de milhões de indi-
víduos cujas afirmações evocam a sabedoria, massim de um homem que se dirige aos outros ho-
mens, uma vez que os conhece e os compreende.
Um homem no qual estão vivos todos os valo-
res de uma longínqua tradição e que, por outro
lado, possui uma capacidade fenomenal de co-
municar que o faz percorrer o mundo inteiro com
uma facilidade que nunca se altera. Se algum ho-
mem marcou o último quartel do século XX pela
sua omnipresença, o seu carisma, a sua teimosia
em dar a conhecer o destino do seu povo - e, atra-
vés dele, os sofrimentos de todos os homens -,
esse homem é indubitavelmente Sua Santidade o
Dalai Lama.
Não se trata aqui da personagem oficial, des-
cendente de uma longa linhagem de seres eleitos,
tendo por missão revelar os valores do dharma,
nem do exilado que fugiu do seu país há mais de
quarenta anos. O ângulo sob o qual ele se nosapresenta, hoje, através desta Sabedoria, aproxi-
ma-o de outros seres de excepção, tais como o
INTRODUÇÃO • 13
Mahatma Ghandi ou Martin Luther King, com
os quais ele partilha um pensamento rico e forte,aliado a uma poderosa espiritualidade, ou, numaúnica palavra, uma humanidade que o torna ime-
diatamente acessível a todos aqueles que o escu-
tam - e que ao mesmo tempo aceitam ouvi-lo.Numa época em que o mundo parece enlou-
quecer, em que os usos e costumes deixaram de
desempenhar o seu papel aglutinador e em que os
grupos e as comunidades se desmembram cada vez
mais, empobrecendo as trocas; numa época emque os homens se tornam cada vez mais solitários
e se sentem cada vez mais perdidos e repletos de
interrogações, continuamente envolvidos em lu-
tas e ameaçando-se uns aos outros em permanência;
numa época em que as referências empalidecem
perigosamente... os homens procuram, escutam,
olham e revelam a sua necessidade de saber, de
compreender e de se tranquilizar.
O século XX foi terrivelmente fascinante, pe-
las descobertas que se fizeram, pelos avanços tec-
nológicos que se concretizaram e pela modernida-
de galopante e a incessante aceleração que o
caracterizaram. Mas foi também um século ter-
rivelmente devastador para muitos povos e para
muitos homens, que viu gerações inteiras seremsacrificadas em nome do poder ou do progresso.
14 INTRODUÇÃO
Sem esquecer o próprio planeta, pilhado, devasta-
do, despojado das suas florestas e poluído semquaisquer escrúpulos.
A tal ponto que muitos indivíduos, sentindo -
-se confusos por terem deixado de perceber que
lugar deviam ocupar neste mundo, decidiram, de
uma forma progressiva ou repentina, alterar por
completo as suas vidas. Em muitos casos, tais in-
divíduos tornaram-se presas fáceis para as ideo-
logias na moda - religiosas ou produtivistas -, as
quais, em definitivo, pouco ou nada se preocupa-vam com o devir do homem.
A queda acelerava-se e a perda de sentido am-
plificava-se cada vez mais. A sociedade moderna,
dita «avançada», desenvolvia uma economia agres-
sivamente capitalista, mas ao mesmo tempo per-
mitia que fossem massacradas ou que morressem
de fome populações inteiras vivendo em locais que
um avião pode atingir em algumas horas. As pes-
soas gabavam-se da sua situação brilhante e do seu
salário confortável, mas desviavam o olhar quan-
do se cruzavam com o vizinho desempregado.
Algumas dessas pessoas adaptaram-se per-
feitamente a esta mutação dos valores humanos
e sociais. Outras, porém, recusando passar sim-
plesmente um traço sobre os valores éticos e mo-
INTRODUÇÃO 15
rais dos seus antepassados, não quiseram seguir o
mesmo caminho.Foi neste contexto que alguns indivíduos, de-
sorientados por uma sociedade desumanizada e
por instâncias religiosas incapazes de pôr em práti-
ca as suas concepções dogmáticas, encontraram
o Budismo - através de leituras, por ocasião de
uma conferência ou durante uma viagem. Muito
rapidamente, passados os primeiros contactos, um
mestre impôs-se: o Dalai Lama.
Tudo pareceu diferente, então. Estava ali um
homem que, a despeito de ser detentor do Prémio
Nobel da Paz e um líder religioso merecedor da
veneração de que era objecto no mundo inteiro,
falava uma linguagem acessível a todos. Um ho-
mem que não procurava aumentar o número dos
seus adeptos, mas simplesmente convencer, em
termos concretos, por intermédio da sua própria
paz interior e graças à sua realidade pessoal.
E foi assim que inúmeros homens e mulheres
reencontraram uma fé, um «sentido» e uma força
que deu origem a um novo sentimento de con-
fiança, a uma renovada vontade de viver e a uma
tranquila aceitação da morte, reflectindo um re-
nascimento espiritual que era da sua exclusiva
responsabilidade.
16 INTRODUÇÃO
Sua Santidade o Dalai Lama não fala, narra.Sua Santidade o Dalai Lama não ensina,
mostra.Mas, acima de tudo, Sua Santidade o Dalai
Lama não se encontra noutro lugar qualquer,numa qualquer esfera ou bola etérea: ele está pre-
sente, surpreendentemente presente dia após dia
no quotidiano mais imediato. Ele sabe ser simulta-
neamente o Dalai Lama e dar uma conferência
ou aparecer na televisão. O seu olhar cruza o nos-
so e, muitas vezes, mostra-nos o caminho.
É esta presença constante, nos livros e nos
media, mas também no terreno, a fim de dar a
conhecer o Budismo ou com o objectivo de de-
fender o seu povo oprimido, que torna o Dalai
Lama uma personagem de excepção. Uma excep-
ção espiritual e humanista de uma rara intensida-
de, cuja força se origina no facto de não se impor
a ninguém, de dar sem esperar receber seja o que
for, desejando apenas que as sementes plantadas
aqui e ali consigam germinar um dia, ou que pelo
menos elas permitam que aqueles que as recebem
encontrem a paz interior e a harmonia, apoian-
do-se na sua própria identidade, em suma, encon-
trando um estado de vida mais satisfatório.
Os preceitos de sabedoria do Dalai Lama in-terpelam cada um de nós, porque balizam o nosso
INTRODUÇÃO 17
percurso com verdades que, embora simples, têm
o poder de questionar as nossas escolhas e os nos-
sos actos, as nossas certezas e as nossas interroga-
ções, já que nos reenviam incessantemente para
a sua real autenticidade. O Dalai Lama oferece -
-nos assim o mais belo dos presentes: a liberdade
de conhecer e de escolher.
O SER
ACTOS
OS DEZ ACTOS POSITIVOS SÃO OS SEGUINTES: PROTEGER
a vida, partilhar os seus bens, observar uma ética
sexual, dizer a verdade, falar com benevolência,
proferir palavras apaziguadoras, dispensar conse-
lhos úteis, cultivar o contentamento, ter uma
20 O SER
atitude benevolente e adoptar pontos de vista jus-tos. E os dez actos negativos são: matar, roubar,praticar a incontinência sexual, mentir, semear adiscórdia, falar com rudeza, maldizer, invejar, ter
uma atitude maldosa e adoptar pontos de vistafalsos.
AUTORIDADE
A AUTORIDADE ÚLTIMA DEVE REPOUSAR SEMPRE NA
razão individual e na análise crítica.
BEM-ESTAR
DADO QUE o NOSSO BEM-ESTAR FUNDAMENTAL DEPENDE
dos outros, mais vale preocuparmo-nos com eles,
ainda que muitas vezes tenhamos tendência paraacreditar que fizemos tudo sozinhos.
CORPO
DlA APÓS DIA, ATÉ CHEGAR A HORA DA NOSSA MOR-
TE, comemos e bebemos a fim de alimentar o nos-
so corpo. Alguém como eu, com mais de sessenta
O SER •
anos, que peso de comida terei ingurgitado e que
quantidade de carne terei consumido durante es-
ses seis decénios? Teria porventura sido preferí-
vel ter nascido animal, insecto por exemplo, pois
dessa forma teria feito menos mal a outros seres
vivos.
EXISTÊNCIA
«O GERME DA EXISTÊNCIA CÍCLICA É A CONSCIÊNCIA, E
os objectos representam o seu domínio de activi-
dade; assim sendo, quando nos apercebemos de que
os objectos não possuem existência em si mesmos,
o germe da existência cíclica morre.» Aryaveda.
HARMONIA
QUANDO OLHO SIMPLESMENTE os INSECTOS, AS FOR-
migas, as abelhas e todos esses animais inocentes,
sinto muitas vezes uma certa forma de respeito
por eles. Porquê? Porque apesar de não terem ne-
nhuma religião, nenhuma constituição, nenhu-
ma polícia, absolutamente nada, eles vivem em
harmonia na lei da existência, a lei da Natureza.
21
22 O SER
UMA VEZ QUE PARTILHAMOS TODOS ESTE PEQUENO
planeta chamado Terra, temos de aprender a vi-ver em harmonia, em paz uns com os outros ecom a Natureza. Não se trata simplesmente deum sonho, trata-se, isso sim, de uma necessidade.Nós dependemos uns dos outros em tantos domí-nios que não podemos continuar a viver emcomunidades isoladas e a ignorar o que se passano exterior. Nós precisamos de ajudar os outros ede ser ajudados quando nos deparamos com difi-culdades, e devemos fazer com que os outros be-neficiem da nossa boa sorte.
HUMILDADE
O DESEJO DE SERMOS SUPERIORES AOS OUTROS OU DE
conhecer a glória só pode ter um resultado: umrenascimento inferior, na forma de um ser idiota,miserável e feio. Pelo contrário, se nos mostrar-mos humildes e considerarmos os outros maisimportantes do que nós mesmos, seremos conduzi-dos a um renascimento nos reinos mais elevados.Da mesma forma, se forçarmos os outros a traba-lhar para nós e a servir-nos, renasceremos mais
O SER
tarde como seus criados ou criados dos seus criados.Em contrapartida, se consagrarmos a nossa vida aservir os outros, renasceremos como reis e líderes.
CONSIDERARMO-NOS SUPERIORES AOS OUTROS EQUIVALE
a sermos nós mesmos o nosso pior inimigo, e talnão pode senão conduzir à ruína. O mal, o medoe o sofrimento que reinam neste mundo têm umaúnica e mesma origem: o apego ao «Eu».
ASSIM COMO FIZEMOS O VOTO DE NOS CONSAGRAR
unicamente a ajudar os outros, deveríamos consi-derar que, doravante, o nosso corpo lhes perten-ce. Por conseguinte, não devemos nunca utilizaruma parte do nosso corpo para algo que não sejaútil aos outros. Seja o que for que possamos verde bom em nós, temos de o arrancar e de o colo-car ao serviço dos outros.
AQUELE QUE ADOPTA UMA ATITUDE HUMILDE VÊ ASsuas qualidades reforçarem-se, e aquele que é or-gulhoso torna-se ciumento em relação aos outrose zanga-se com eles, donde resulta a tristeza queassola a nossa sociedade.
23
24 • O SER
HOJE EM DIA PENSO QUE CERTOS MESTRES ORIENTAIS,
permanentemente rodeados por ferventes adep-tos ocidentais, se tornam muito cheios de si mes-mos. E igualmente o caso dos homens de negó-cios e dos comerciantes que, quando os seus em-preendimentos correm bem, o fazem saber atra-vés dos anéis e dos luxuosos relógios que usam.No Tibete, colocariam nas orelhas brincos extre-mamente caros. Claro que, a longo termo, os brin-cos nada mais fazem do que alongar as orelhas.
O SER 25
MÉRITO
GRAÇAS A UMA PEQUENA ACUMULAÇÃO DE MÉRITO, OB-tivemos já uma preciosa vida humana; e todo omérito restante irá traduzir-se, nesta vida, por umcerto grau de prosperidade. Por conseguinte, e dadoque o pequeno capital de que dispomos se esgotaráfatalmente, devemos desde já começar a economi-zar, evitando cair no erro de gastar as nossas eco-nomias sem acumular outras que as possam subs-tituir. Não podemos permitir que o nosso capitalde mérito se esgote, porque isso significaria que maiscedo ou mais tarde seríamos arrastados para uma
vida feita de sofrimento e de infelicidade.
TEMER o SOFRIMENTO É A MELHOR MANEIRA DE PREVE-nir as causas da nossa própria queda, porque dessaforma podemos purificar as negatividades e cons-tituir grandes reservas de mérito. Ao aumentar omérito que já possuímos, tornamo-nos capazes demanter a cólera à distância. E, graças a uma prá-tica adaptada, conseguiremos, dia após dia, confe-rir um sentido pleno à nossa condição humana.
ESTA VIDA HUMANA, TÃO DIFÍCIL DE OBTER E TÃO FÁCIL
de perder, é condicionada por certos factores, algunsdos quais provêm de acções virtuosas realizadasnuma vida anterior - acções frequentes e repetidas,porém, não actos bondosos isolados e superficiais.Nós devemos começar desde já - e desde já não sig-nifica amanhã, mas agora - a desenvolver o nossomérito. A mais ínfima manifestação de orgulho, deanimosidade ou de egoísmo - sensações que todosnós conhecemos e que podem invadir-nos a qual-quer momento - destrói o mérito acumulado. É poismuito pouco provável que o mérito do passado, gra-ças ao qual conseguimos aceder a esta vida, perma-neça intacto, o que significa que temos de o renovare de o desenvolver sem pensar no «capital» que pen-
samos já ter adquirido.
26 O SER O SER 27
MORALIDADE
GRAÇAS À PRÁTICA DA MORALIDADE, QUE SIGNIFICAnão permitir que as três portas do nosso corpo,da nossa palavra e do nosso espírito se envolvamem actividades malsãs, adquirimos a capacidadede estar atentos e de ser conscientes. O funda-mento da trajectória budista é, pois, a moralidade.
POSITIVO
QUANTO MAIS CULTIVARMOS UM ESPÍRITO DESEJOSO DEser benéfico para os outros, maiores serão a nossapaz e a nossa felicidade. O facto de estarmos interior-mente em paz permite-nos contribuir com maioreficácia para a felicidade e para a paz dos outros.A transformação do espírito e o desenvolvimentode uma atitude positiva constituem a principal fon-te de felicidade para numerosas vidas futuras.
REALIDADE
PORQUE É QUE, MAU GRADO o NOSSO PROFUNDO DESEJOde ser felizes, estamos sempre a ser confrontados
_
com o sofrimento e com a dor? Do ponto de vistabudista, isso acontece em consequência de certasconcepções «defeituosas» que temos quanto aomodo de apreender o mundo e de nos relacionar-
mos com ele. Na raiz desta mentira, o Budismoidentifica quatro pontos de vista erróneos. O pri-meiro consiste em considerar as coisas e osacontecimentos — que são impermanentes e tran-sitórios — como eternos, permanentes e invariá-veis. O segundo, em se sentirem como agradáveiscoisas e acontecimentos que são fonte de insatis-fação e de sofrimento. O terceiro ponto de vistaerrado é que nós temos frequentemente tendên-
cia para considerar como puras e desejáveis coi-sas que de facto são impuras. E o quarto reside nanossa tendência para projectar uma noção de
existência concreta sobre acontecimentos e coisasque, na realidade, não possuem uma tal autonomia.
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RESPONSABILIDADE
A GERAÇÃO MAIS VELHA DOS 5,7 MIL MILHÕES DE SERES
humanos que povoam actualmente o nosso plane-ta, a geração à qual pertenço, prepara-se para di-zer adeus a este mundo, e é pois à juventude quecompete carregar a responsabilidade do futuro.
28 O SER O SER 29
Jovens, assumam pois, por favor, a vossa responsa-bilidade, tornando-vos conscientes das vossas po-
tencialidades, adquirindo confiança em vós mes-mos e dando provas de abertura de espírito, de
compaixão e de solidariedade. A frescura e a for-ça da juventude não deveriam diminuir, e é vossaobrigação cultivar esse entusiasmo.
NÓS SABEMOS QUE INICIAR UMA GUERRA NUCLEAR
actualmente, por exemplo, seria uma forma de sui-
cídio; ou que poluir o ar ou os oceanos a fim de
obter vantagens imediatas conduziria à destrui-
ção dos fundamentos da nossa sobrevivência.
À medida que os indivíduos e as nações se tornam
cada vez mais interdependentes, não temos outra
alternativa senão a de desenvolver o que eu desig-
no por um sentido de «responsabilidade universal».
A FIM DE ENFRENTAR O DESAFIO DO NOVO SÉCULO QUE
agora se inicia, todos os homens deverão desen-
volver um sentido mais lato da responsabilidadeuniversal. Cada um de nós terá de aprender a não
trabalhar apenas para si próprio, para a sua família
ou para a sua nação, mas também em proveito detoda a espécie humana. Raciocinar em termos de
nação ou de país deixou de estar na moda, e a
responsabilidade universal tornou-se a chave dasobrevivência humana. Ora, como os grandes
movimentos humanos nascem graças a iniciativasindividuais, o que realmente faz a diferença é o tra-
balho individual a pensar no bem-estar comum.
SER COMPASSIVO NÃO É SUFICIENTE, NÓS TEMOS o DEVER
de agir. A acção comporta dois aspectos, um dosquais consiste em vencer as distorções e as an-
gústias do nosso próprio espírito, o que tem como
consequência inevitável o afastamento da cóle-
ra. Esta acção nada tem a ver com a compaixão.
Já o outro aspecto reveste um carácter mais so-
cial, mais público, e consiste - se estivermos real-
mente preocupados em ser úteis para os outros -
em nos empenharmos, em nos implicarmos num
combate contra os males que assolam o mundo.
MUITAS DAS COISAS QUE NÓS DESEJAMOS NÃO PODERIAM
existir sem a participação directa ou indirecta de
muitas outras pessoas. Assim sendo, e uma vez
que todos nós temos o mesmo direito de ser feli-zes e estamos todos interligados, o interesse dos
biliões de seres humanos que povoam a Terra é
30 O SER O SER 31
mais importante que o de uma pessoa isolada, sejaqual for a sua importância como indivíduo. E éreflectindo sobre este facto que podemos desen-volver um sentido da responsabilidade global.
FUNDAMENTALMENTE, CADA INDIVÍDUO É RESPONSÁVEL
pelo bem-estar da Humanidade e da Terra, já queesta é a nossa única morada e não temos qualquer
outro refúgio. Assim sendo, todos nós nos devemos
preocupar não apenas com os nossos companheiroshumanos, mas também com os insectos, as plantas
e os animais, assim como com o planeta no seu todo.De qualquer modo, a iniciativa tem de partir dos
indivíduos. Em contrapartida, só mobilizando o con-junto das forças individuais à escala do mundo se
conseguirá obter um impacte efectivo.
AGORA QUE o MUNDO SE TORNOU UM LUGAR BEM MAIS
pequeno do que antigamente, muitas coisas de-
pendem de cada um de nós. Para se conseguiravançar de uma forma positiva, o factor principal
é o espírito humano, a consciência humana, jáque apenas ela fornece o sentido de empenhamen-
to indispensável para se construir um mundo
melhor.
NÓS NÃO PRECISAMOS NEM DE NOS TORNAR RELIGIOSOS,
nem de aderir a uma ideologia. O essencial é culti-varmos boas qualidades humanas, pois dessa for-ma seremos capazes de desenvolver o nosso sentidoda responsabilidade universal, o qual se relacio-na com todos os aspectos da vida moderna.
CRENTES ou NÃO, NÓS SOMOS ANTES DE TUDO o MAISseres humanos. E, na nossa condição de sereshumanos, temos a sorte de poder observar as con-sequências positivas ou negativas dos nossos ac-
tos, a curto e a longo prazo. De um ponto de vistamoral, nós temos a grande responsabilidade de nos
ocuparmos não apenas dos nossos semelhantes,mas também das outras espécies animais e dosoutros seres sensíveis, bem como do nosso meioambiente. Devemos, pois, esforçarmo-nos por ter
uma vida digna e por sermos pessoas afectuosas,o que beneficiará não só a nossa vida individual,mas igualmente a nossa família e toda a comunidade.
s
E INDISPENSÁVEL DESENVOLVER UM SENTIDO DE COM-
paixão, de interesse comum e de pertença à comu-
32 • O SER
nidade. Temos de tomar consciência de que se onosso vizinho, alguém que nos é próximo ou o lugar
onde vivemos forem ameaçados, quem é ameaçadosomos nós e, portanto, devemos imperativamente
adoptar uma visão mais global e considerar a Hu-s
manidade como uma família. E certo que existem
raças diferentes, costumes diferentes, religiões dife-rentes - e se quisermos encontrar diferenças pode-
remos sempre encontrá-las, de facto -, mas também
não deixa de ser verdade que partilhamos todos o
mesmo planeta, o que significa que, se os outros so-
frem, nós também sofremos e que, se eles forem feli-s
zes, nós também o seremos. E neste espírito que
necessitamos de um sentido de responsabilidade glo-
bal, de uma responsabilidade universal.
SIMPLICIDADE
TER UMA VIDA SIMPLES É A MELHOR FORMA DE NOS SEN-
tirmos felizes. A simplicidade é extremamente impor-
tante para a felicidade e, nesse sentido, reduzir ao
máximo os nossos desejos e satisfazermo-nos com
aquilo que temos (roupas, comida, abrigo) é vital.
Da mesma forma, sentimos uma alegria intensaquando abandonamos os estados de espírito negati-
vos e quando ajudamos os outros na meditação.
O SER 33
TOLERÂNCIA
A VERDADEIRA TOLERÂNCIA É A POSIÇÃO ABERTA QUE
um indivíduo adopta perante um incidente parti-cular ou uma outra pessoa, quando de facto teria
a possibilidade de agir de uma outra forma. To-
mando em consideração certos factores, ele deci-
de não reagir de uma forma negativa: eis a verda-deira tolerância.
O QUE É QUE A TOLERÂNCIA NOS ENSINA? Os NOSSOS
filhos podem ensinar-nos a sermos pacientes, mas
apenas o nosso inimigo nos pode ensinar a tole-rância. Ou seja, o nosso inimigo é como que o
nosso professor e, se sentirmos respeito por ele
em vez de cólera, a nossa compaixão desenvolve-
-se. Este tipo de compaixão é a verdadeira com-
paixão, aquela que assenta sobre crenças sólidas.
VONTADE
SE DESEJARMOS ATINGIR O NIRVANA, TEMOS SEM DÚVI-
da de aspirar a uma melhor existência futura.
34 O SER
Antes, porém, devemos tomar consciência da
importância da vida presente, porque, se não com-
preendermos a utilidade da nossa vida actual e se
não procurarmos ter uma existência sensata, esfor'
çando-nos por desenvolver a compaixão e a aten-
ção aos outros, é absolutamente inútil pensar em
melhores vidas futuras. Uma vez que a libertação
do ciclo das existências é possível, temos impera-
tivamente de treinar o espírito na procura do «es-
tado de buda», uma motivação que podemos
desenvolver pensando que todos os seres sensí-
veis são iguais a nós no seu desejo de felicidade e
de rejeição do sofrimento. Cada um de nós pode,
pois, fazer o voto de conduzir um número infinito
de seres sensíveis até ao «estado de buda», supre-
mo e inultrapassável. Nesta óptica, temos de
desenvolver duas qualidades indissociáveis: o mé-
todo e a sabedoria.
O AMOR E
A FELICIDADE
AMOR
SE HOUVER AMOR, HÁ TAMBÉM A ESPERANÇA DE EXIS-
tirem verdadeiras famílias, assim como uma fra-
ternidade, uma serenidade e uma paz autênticas.
Mas se o amor abandonar o nosso espírito e se
continuarmos a ver os outros homens como inimi-gos, então, sejam quais forem os nossos conhe-
36 O AMOR E A FELICIDADE
cimentes, a nossa educação ou o nosso sucesso
material, tudo o que conseguiremos obter será
sofrimento e confusão, e os seres humanos con-
tinuarão a enganar-se uns aos outros e a lutar en-
tre si. Basicamente, todos os homens partilham o
mesmo estado de sofrimento; procurar enganar o
outro ou destruí-lo é, pois, algo de inútil e des-
provido de qualquer sentido. O fundamento de
toda a prática espiritual é o amor.
O QUE EU ENTENDO POR «AMOR» REVELA-SE NO RECO-
nhecimento claro da existência da outra pessoa e
graças a um autêntico respeito pelo bem-estar e
pelos direitos dos outros. No entanto, o amor que
se baseia num forte apego em relação àqueles de
quem somos próximos, tal como ele aparece na
prática religiosa, necessita ainda de ser purifica-
do, sendo fundamental desenvolver um certo grau
de indiferença.
SERÁ QUE NÓS ACEITAMOS O FACTO DE QUE O AMOR
desempenha um papel importante na vida humana?
Que ele tem o poder de nos consolar quando nos
tornamos impotentes e cheios de preocupações,
O AMOR E A FELICIDADE 37
velhos e solitários? Trata-se de uma força que de-veríamos desenvolver e utilizar, mas que muitas
vezes temos tendência para negligenciar, nomea-damente quando somos muito novos e sentimos
um falso sentimento de segurança. A forma mais
razoável de amar os outros assenta no reconheci-
mento do simples facto de que cada ser vivo tem
o mesmo direito e o mesmo desejo que nós de ace-
der à felicidade e de não sofrer. Cada indivíduo é
uma unidade de vida comparável a todas as ou-
tras na sua procura constante da felicidade.
FELICIDADE
A FELICIDADE É UM ESTADO DE ESPÍRITO. DlSPOR DE
conforto físico, mas ter o espírito num estado de
confusão e de agitação, não é a felicidade. Felici-
dade significa tranquilidade de espírito.
A FELICIDADE É ALGO QUE RELEVA DO MENTAL, E NEM
as máquinas a podem oferecer nem a podemos
comprar. O dinheiro e a riqueza são fontes parciais
de felicidade, não são a felicidade em si mesma.
A felicidade deve desenvolver-se em nós, e é algo
que ninguém nos pode dar. Ela nasce da tranquili-
38 O AMOR E A FELICIDADE
dade e da paz de espírito, e não depende de facto-
res exteriores tais como o conforto material, umaboa educação ou uma vida bem-sucedida. A fon-te principal da felicidade é a confiança interior.
Estar atento aos outros e desenvolver a afeição
em relação aos nossos irmãos humanos - eis os
factores dos quais depende a nossa felicidade.
O AMOR E A FELICIDADE • 39
SE QUISERMOS TER UMA VIDA FELIZ E REPLETA DE SENTI-
do devemos utilizar de uma forma construtiva a
nossa inteligência humana, bem como a nossa ca-
pacidade de ser altruístas e de estar atentos aos
outros. O amor, a compaixão e o perdão são ine-
rentes à natureza humana. A fé vem mais tarde.
Graças à fé, podemos ter uma vida feliz e próspe-
ra, mas tal é impossível se não nos preocuparmos
com os outros, se recusarmos comprometer-nosou assumir as nossas responsabilidades.
EMBORA A POSSAMOS ATINGIR, A FELICIDADE NÃO É
uma coisa simples. E para chegarmos a ela temosde passar por muitos patamares. O Budismo faz
assim referência aos quatro factores de realização
pessoal: a riqueza, a satisfação, a espiritualidadee a iluminação. Reunidos, estes factores incluem
tudo aquilo que constitui a procura da felicidade
por um indivíduo.
O PRIMEIRO PASSO QUE TEMOS DE DAR NA PROCURA
da felicidade é o estudo. Nós devemos antes de
mais tomar consciência do quão nefastas são asemoções e os comportamentos negativos e do
quão benéficas são as emoções positivas; e, de-
pois, que tais emoções negativas não são apenas
prejudiciais para nós, mas também o são para a
sociedade no seu conjunto e para o futuro do nos-
so planeta, o que reforça a nossa determinação
de enfrentá-las e vencê-las. A partir do momento
em que o aspecto salutar das emoções e dos
comportamentos positivos se torna claro, nós de-
cidimos firmemente cuidar dessas emoções posi-
tivas, desenvolvendo-as e fazendo-as crescer, se-
jam quais forem as dificuldades que tivermos de
enfrentar. Existe assim uma espécie de boa vonta-
de espontânea emanando do interior. Através
deste processo de aprendizagem, deste processode análise que visa identificar os pensamentos e
as emoções salutares distinguindo-as das maléfi-cas, conseguimos desenvolver pouco a pouco uma
firme vontade de mudar, compreendendo que a
chave da nossa felicidade e do nosso desenvolvi-
40 O AMOR E A FELICIDADE
mento está nas nossas mãos, e que de modo al-
gum podemos deixar fugir uma tal ocasião.
ATINGIR A VERDADEIRA FELICIDADE PODE PROVOCAR
uma transformação na nossa atitude e na nossa
maneira de pensar, e esse facto nem sempre é evi-
dente, pois nele estão implicados numerosos fac-
tores, em diferentes domínios. Seria vão, por
exemplo, pensar que existe apenas uma chave e
que aquele que a possui nada mais tem a fazer do
que deixar a vida correr.
Para o nosso corpo funcionar bem, temos de
lhe fornecer vários tipos de vitaminas e de ele-
mentos nutritivos. Pois bem! O mesmo se passa
no que se refere à luta contra um estado de espí-
rito negativo a fim de se aceder à felicidade: ela
exige a utilização de diferentes métodos. Adoptar
um pensamento particular ou praticar uma qual-
quer técnica uma ou duas vezes não é suficiente.
A transformação exige tempo.
O ESPÍRITO
ATENÇÃO
UMA CONDUTA CONFORME A UMA CERTA ÉTICA EXIGE
que estejamos sempre atentos e conscientes daqui-
lo que fazemos. Esta atenção e esta consciência,
que uma prática baseada na ética permite desen-
volver, facilitarão por outro lado a meditação.
42 O ESPIRITO
ATITUDE MENTAL
O NOSSO ESTADO DE ESPÍRITO DEVERIA SER PACÍFICO E
calmo, mesmo perante as situações inquietantes
que tão frequentemente ocorrem na vida. À ima-
gem de uma onda, que nasce no mar e desaparece
no mar, essas inquietações desaparecem pouco
depois de surgirem - e portanto não deveriam ter
um efeito negativo na nossa atitude mental.
E verdade que não podemos eliminar todas as
emoções negativas. Não obstante, se a nossa atitu-
de mental inicial for saudável e calma, elas serão
incapazes de a afectar. Além disso, se permanecer-
mos calmos, a nossa tensão arterial não se altera,
o que só pode ser benéfico para a nossa saúde.
E EVIDENTE QUE A TRANQUILIDADE MENTAL É UM FAC-
tor determinante para se ter uma boa saúde. E se
quiser permanecer saudável, em vez de consultar
um médico olhe para o que está dentro de si e
tente utilizar o seu próprio potencial. Além de
todas as outras vantagens, sair-lhe-á bastantemais barato!...
O ESPÍRITO 43
A NOSSA ATITUDE MENTAL REVELA-SE ABSOLUTAMEN-
te essencial nas relações que mantemos com osoutros, dado que é nela que reside a verdadeirafonte da felicidade, até para um não-crente. Emesmo que estejamos de boa saúde, beneficiemosde algum conforto e tenhamos inúmeros amigos,a causa primeira de uma vida feliz encontra-se
dentro de nós.
NAS NOSSAS RELAÇÕES COM AS PESSOAS, QUANTO MAIS
o nosso espírito estiver fechado, maiores serão as
possibilidades de sentirmos medo e uma sensaçãode desconforto. Ao invés, se dermos provas deabertura de espírito, sentir-nos-emos completa-mente à vontade. Tal é a minha experiência. To-das as pessoas que encontro, seja um homem céle-
bre, um mendigo ou uma pessoa comum, são iguaispara mim, e a coisa mais importante é sorrir e ar-vorar um rosto humano autêntico. Já as diferençasentre as religiões, as culturas e as línguas, assim
como o facto de a pessoa ser instruída ou sem edu-cação, rica ou pobre, são totalmente irrelevantes.O facto de abrir o meu coração e o meu espíritofaz com que considere simplesmente as pessoas
44 O ESPIRITO
como amigos, o que se revela de grande utilidade.E se posteriormente a situação se alterar, tenhosempre a possibilidade de adaptar a minha atitu-
de às circunstâncias. Penso, pois, que é essencialcomeçar por criar um terreno propício para a tro-
ca, já que isso gera normalmente uma resposta
positiva ao nível humano. É por essa razão, aliás,
que o medo é, quanto a mim, algo de que nos te-mos de livrar a todo o custo.
SE, NA NOSSA VIDA QUOTIDIANA, DERMOS PROVAS DE
que possuímos qualidades tais como a compaixão
ou a capacidade de perdoar, então o nosso espíri-
to permanecerá sempre em paz, imune às influên-
cias exteriores, por mais hostis que sejam as cir-
cunstâncias. Isto significa que a compaixão é uma
fonte de felicidade. Por outro lado, e dado que
quando sentimos ressentimento ou ódio não con-
seguimos ser felizes, temos de concluir que a ati-
tude mental é o factor que determina a felicidadeou a tristeza.
O ESPIRITO 45
UMA BOA SAÚDE E UM ESPÍRITO ESTÁVEL GARANTEM-
-nos uma vida sã e um futuro feliz. Podemos até
estar rodeados pelos melhores amigos e dispor das
maiores vantagens materiais, mas a verdade é quesem estabilidade interior e uma atitude mental
positiva nunca poderemos ser felizes.
DESDE A CONCEPÇÃO ATÉ À MORTE, A NOSSA VIDAdepende dos outros, e é importante compreender
a que ponto os outros seres sensíveis nos são pre-
ciosos e úteis. A partir do momento em que to-
mamos consciência disso, a nossa atitude negati-
va em relação a eles começa a modificar-se.
A NOSSA ATITUDE EM RELAÇÃO ÀS OUTRAS PESSOAS
deveria ser sempre positiva e nós deveríamos es-
tar interessados nelas por uma questão de princí-
pio, sem sequer ser necessário sentir por elas pie-
dade ou condescendência. Deveríamos acima de
tudo tratá-las com o máximo respeito, dado que
elas são preciosas, e mesmo considerá-las como
sagradas e superiores a nós.
A HUMILDADE E A HONESTIDADE ATRAEM MUITAS VE-
zes pessoas que gostam de se aproveitar dos ou-
tros. Porém, mesmo quando somos confrontados
com esse género de pessoa, devemos banir qual-
46 O ESPÍRITO
quer sentimento negativo. O melhor ainda é ten-tar analisar a situação, já que permitir que essa
pessoa faça o que pretende ré velar-se-á no fim decontas nefasto para ela. E é por isso que nós deve-
mos adoptar «contra-medidas», não porque essa
pessoa nos fez mal, mas porque queremos o seubem a longo termo.
O BUDISMO INSITE NA FORMAÇÃO E NA TRANSFORMA-
ção do espírito, porque todos os acontecimentos
resultam das nossas acções. Nós designamos isto
por karma, lei do karma ou lei da causalidade,
segundo a qual o nosso futuro depende das ac-
ções que praticamos hoje. De todas as acções ver-
bais, mentais e físicas, a acção mental é a que se
situa no nível mais elevado. A motivação mental
é inquestionavelmente o factor-chave.
As mesmas acções verbais ou físicas podem ser
positivas em certos momentos e negativas nou-
tros, dependendo das motivações mentais. A ac-ção mental é assim superior às outras, já que em
definitivo todos os acontecimentos dependem do
nosso próprio espírito. O objectivo último é a li-
bertação ou «moksha», um estado mental do qual
toda a emoção negativa foi expurgada. Moksha,
ou nirvana, é uma qualidade mental.
O ESPÍRITO 47
A MINHA EXPERIÊNCIA MOSTROU-ME QUE QUANTO MAIS
calmos estamos, mais pensamos em boas acções
(ser altruísta, por exemplo) e mais as colocamosem prática, e que, consequentemente, maiores são
os benefícios. Esse estado mental, essas qualida-
des são extremamente úteis para se ter uma vida
feliz e próspera. Uma atitude compassiva e um
sentido apurado do interesse de outrem não são
benéficos apenas para a paz de espírito, são-no
igualmente para a saúde.
SE PROCURARMOS MANTER SEMPRE VIVO UM SENTIMEN-
to de compaixão, de afeição e de gentileza, abrir-
-se-á automaticamente uma porta no nosso inte-
rior através da qual podemos comunicar muito
mais facilmente com as outras pessoas. Descobri-
mos então que os outros seres humanos são iguais
a nós e sentimo-nos mais capazes de estabelecer
relações com eles, o que torna o nosso espírito
amistoso. A partir desse momento, deixamos denos sentir obrigados a dissimular e libertarão-nos
das sensações de medo, de dúvida e de inseguran-
ça. Em retorno, essa atitude cria nas outras pes-
soas uma sensação de confiança em relação a nós.
48 O ESPÍRITO O ESPIRITO 49
«Possa o meu sofrimento servir para aliviar os so-frimentos que os outros seres sentem.»
CONSCIÊNCIA
EXISTEM TRÊS NÍVEIS DE CONSCIÊNCIA: A CONSCIÊNCIA
do estado iluminado, ou nível grosseiro (bruto)
de consciência; a consciência do estado de sonho,mais subtil do que a anterior; e a consciência du-
rante o sono sem sonhos, a mais subtil de todas.Da mesma forma, os três estados - o nascimento,
a morte e o estado intermédio - são igualmente
definidos em função da subtileza do seu nível de
consciência. O renascimento e a reencarnação
fundamentam-se igualmente nesses diferentesestados de consciência.
TANTO NOS BONS COMO NOS MAUS PERÍODOS, QUER
sejamos pobres ou ricos e felizes ou infelizes, quer
permaneçamos em casa ou viajemos para o estran-
geiro a fim de conhecer uma aldeia, uma cidade,
um mosteiro ou um qualquer lugar retirado, quer
estejamos acompanhados ou sozinhos e sejam
quais forem os sofrimentos que tivermos de su-
portar, devemos sempre pensar que nesse mesmomomento inumeráveis seres sensíveis sentem os
mesmos sofrimentos, e dizer para nós mesmos:
O PRIMEIRO INSTANTE DE CONSCIÊNCIA NESTA VIDA NÃO
se produz sem causa e não provém de algo que secaracterize por ser permanente ou inanimado.Trata-se de um momento de discernimento e deiluminação, que não pode deixar de ser precedi-do por um outro momento de discernimento e deiluminação. E impossível que esse primeiro ins-tante de consciência possa provir de qualqueroutra coisa que não de uma vida anterior.
NA INTERPRETAÇÃO BUDISTA, CONSIDERA-SE QUE A
consciência não pertence ao domínio físico, sen-do por isso incapaz de criar o menor obstáculo. Ea partir das acções desta consciência que nascemtodas as emoções, todas as ilusões e todos os erroshumanos. Contudo, a natureza inerente a estaconsciência permite também eliminar todos es-ses erros e instaurar uma paz duradoura e umafelicidade verdadeira.
EXISTEM DIFERENTES NÍVEIS DE CONSCIÊNCIA MENTAL,desde o mais grosseiro ao mais subtil. Neste mo-
50 O ESPIRITO O ESPIRITO 51
mento, a nossa consciência está num certo nívelde actividade. Durante o estado de sonho, ela atin-ge um outro nível, mais subtil; ela atingirá ainda
um outro estádio por ocasião do declínio da nos-sa vida e passará por outras etapas antes de atin-
gir a mais alta e a mais subtil de todas, no mo-
mento da morte, quando atingimos um estado deconsciência global. Nos nossos derradeiros ins-
tantes, a consciência grosseira desaparece, en-
quanto, exteriormente, deixamos de respirar. O
fim da respiração parece anunciar a nossa morte,
mas na realidade a vida continua no estado de
consciência mais subtil. A verdadeira natureza do
espírito corresponde a este nível de consciência
subtil, livre de toda a ilusão (já que as ilusões são
próprias das etapas intermédias da consciência).
AS ESCOLAS BUDISTAS AFIRMAM GERALMENTE QUE NÃO
é possível determinar um início para a consciên-
cia, dado que nesse caso teríamos de aceitar a ideia
de um primeiro instante de consciência sem cau-
sa e proveniente de parte alguma, o que estaria
em contradição com um dos princípios fundamen-
tais do Budismo, a lei da causa e efeito. O Budismo
aceita a natureza de dependência da realidade,
segundo a qual tudo acontece em consequência
Ha interacção de certas causas e condições. Os
budistas consideram, por conseguinte, que a maisínfima parte de consciência deve ser produzida
por causas e condições, sejam elas quais forem.A principal e a mais substancial destas causas de-
verá ser uma forma qualquer de experiência, já
que a matéria é incapaz de produzir consciência
sozinha. A consciência deve, pois, forçosamente,
provir de um exemplo anterior de consciência.
QUANDO FALAMOS DA CONTINUIDADE DA CONSCIÊN-
cia, que não tem início, não deveríamos limitar a
nossa compreensão dela apenas ao nível mais
grosseiro da existência. Os budistas referem-se a
um nível mais subtil de consciência, nomeada-
mente «a natureza luminosa do espírito», que eles
consideram como contínua e sem fim, e é basea-
dos nisto que os budistas afirmam que o eu não
tem qualquer início nem qualquer fim.
O POTENCIAL PARA SE ATINGIR A PERFEIÇÃO, O POTEN-
cial para se aceder à plena iluminação, existe em
cada um de nós. Na realidade, este potencial não
é nada mais do que a natureza essencial do espíri-to, que é considerada como sendo a verdadeira
52 O ESPÍRITO O ESPÍRITO 53
natureza da luz e do conhecimento. Graças a umaprática espiritual progressiva, nós temos a possibi-lidade de eliminar os obstáculos que nos impe-dem de desenvolver até à perfeição essa sementededicada à iluminação. E, à medida que ultra-passamos os obstáculos, a qualidade inerente ànossa consciência manifesta-se cada vez mais, atéatingir o mais alto nível de perfeição, que é muitosimplesmente o espírito iluminado de Buda.
NÓS PODEMOS TRANSFORMAR EM PROFUNDIDADE O
nosso espírito, uma vez que está na sua naturezaadaptar-se àquilo que lhe é familiar. Dado que nãotem consistência física e material, a consciêncianão resiste àquilo que se lhe opõe, antes segue aqui-lo que lhe é habitual. As dores emocionais, por seulado, também não se materializam, mas revelam--se extremamente poderosas porque nos habi-tuámos a elas há muito tempo. E se continuamos asuportá-las, apesar desta familiaridade, é simples-mente por uma questão de hábito. Se nos familia-rizarmos constantemente com a prática, é inegávelque podemos conseguir modificar o nosso espírito.
A NATUREZA DO NÍVEL DE CONSCIÊNCIA MAIS SUBTIL,
que é pura e imaculada, é algo que todos os seres
ensíveis partilham. Em relação a ela, não só todosOs seres vivos são iguais, como se encontram todosna mesma situação: quando as condições ade-quadas estiverem reunidas, a nossa natureza de Bu-
da evoluirá para o «estado de buda» omnisciente.
,-/> í\.,
ESPERANÇA
A NOSSA VIDA QUOTIDIANA, SOBRETUDO NO FUTURO,
A longo prazo, depende em grande parte da espe-
rança. Não há qualquer garantia em relação ao
futuro, salvo aquela que repousa na esperança.
Esperar significa qualquer coisa de bom, uma vezque ninguém espera algo de mau. O verdadeiro
objectivo da nossa vida é, pois, a felicidade: nós
queremos viver dias, semanas e anos mais felizes,ter uma família mais feliz, viver no seio de uma
comunidade humana mais feliz. E na medida em
que a atitude mental é um factor da maior impor-
tância, penso que deveríamos manifestar mais inte-
resse em relação ao nosso desenvolvimento interior.
ESTAMOS NUMA ÉPOCA EM QUE, DE UMA MANEIRA
geral, os seres humanos possuem uma natureza
muito inteligente, viva, maligna e criativa quan-
54 O ESPIRITO O ESPIRITO 55
do o seu objectivo é cometer acções não virtuo-sas, mas que deixa de ter a mesma força e a mes-ma qualidade quando têm de se concentrar nodharma. Seja qual for o grau de consciência da
nossa sociedade, não há dúvida de que, de umponto de vista individual, cada um de nós pode
avaliar a sua própria capacidade para ultrapassar
os sofrimentos, considerando a pobre natureza quey
é a sua. E pois importante ter esperança e, por
outro lado, recorrer a um método novo, com o
qual nunca nos familiarizámos nas nossas vidas
passadas, capaz de nos fornecer meios para nos
libertarmos, a nós e aos outros seres sensíveis, dociclo das existências.
ESPIRITO
OS DIFERENTES ESTADOS DE ESPÍRITO «SUJOS», TAIS
como as ilusões e os estados emotivos e cogniti-
vos, não só são acidentais e ocasionais como nãoperduram, uma vez que surgem num dado mo-
mento e desaparecem logo a seguir.
TREINAR o NOSSO ESPÍRITO É UMA ARTE. A PRÓPRIA
vida é uma arte. O aspecto físico desta arte não
_
me interessa, todavia. Medito, simplesmente, e
treino o meu espírito. E, do ponto de vista da apa-rência exterior, a natureza na sua forma primitiva
é igualmente uma arte.
SERÁ QUE O ESPÍRITO PODE PERCEPCIONAR O ESPÍRITO?
É impossível responder, posto que o espírito não
pode ser sujeito e objecto ao mesmo tempo. O es-pírito perturba, quer o queira quer não, tudo aqui-
lo que observa e, afortiori, se o objecto da observa-ção for ele mesmo. O espírito é incapaz de se ver
completamente a si mesmo. E, no entanto, o prin-
cipal instrumento de purificação do espírito é o
próprio espírito. O espírito é o seu próprio cria-dor a cada instante que passa. Donde a sua res-
ponsabilidade essencial.
O ESPÍRITO É CAPAZ DE SE DESEMBARAÇAR DAS IMPU-
rezas que o sujam e de se elevar até ao mais alto
nível e, portanto, pode e deve transformar- se a si
mesmo. Nós, seres humanos, começamos todos
com as mesmas capacidades, mas depois apenas
alguns procuram desenvolvê-las. Por outro lado,
abandonarão -nos à preguiça do espírito com gran-de facilidade, tanto mais facilmente quanto essa
56 O ESPIRITO
preguiça se esconde sob a aparência de activida-
de, que nos faz andar de um lado para o outro,
embrenhados em cálculos de todo o tipo e em mil
telefonemas. Trata-se, contudo, de actividades que
apenas mobilizam os níveis mais elementares e gros-
seiros do espírito e que nos escondem o essencial.
O BUDISMO É ATEU NO SENTIDO EM QUE NÃO RECO-
nhece um deus criador. O Budismo fundamenta-
-se na autocriação, já que considera que as nos-
sas acções modelam cada acção da nossa vida.
Deste ponto de vista, o Budismo não é uma reli-
gião, mas sim uma ciência do espírito.
TODA A QUESTÃO ESTÁ EM SABER SE NÓS TEMOS VERDA-
deiramente a capacidade de modificar o nosso espírito,
ou se podemos desenvolver um espírito positivo, ate-
nuando o nosso espírito negativo. A resposta é sem
qualquer dúvida afirmativa, e tal deve-se a uma ra-
zão simples: o espírito não possui nenhuma forma, ne-
nhum estado. Deste ponto de vista, o espírito é como o
corpo físico, muito difícil de controlar, demasiado fle-
xível... Não obstante, quando persistimos num esforço
continuado, depois de algum tempo podemos consta-tar a mudança.
O ESPÍRITO 57
A PAZ MENTAL DEVE PROVIR DO ESPÍRITO. NÃO HÁ
ninguém que não deseje sentir felicidade e prazer.
Islo entanto, basta comparar o prazer físico e a
dor física com o prazer mental e a dor mental para
compreender que o espírito domina, que ele é su-
perior, mais eficaz. Por conseguinte, se o nosso
objectivo for o de atingir a paz mental, ré vela-se
de grande utilidade recorrer a certos métodos es-
pecíficos, graças aos quais poderemos aprofundars
o nosso conhecimento sobre o espírito. E nisto
que, quanto a mim, reside o essencial.
O OBJECTIVO DE TODAS AS RELIGIÕES É AJUDAR OS SERES
humanos a tornarem-se melhores, mais sensíveis e
mais criativos. Mas enquanto que, para algumas,
tal objectivo passa pela oração ou pela penitência,
o Budismo visa acima de tudo a transformação e o
aperfeiçoamento do espírito. Comparando-a às
actividades físicas e verbais, a actividade mental é
mais subtil e mais difícil de controlar. As activida-
des do corpo e da palavra são mais evidentes, mais
fáceis de aprender e de praticar, e é por isso que as
investigações relativas ao espírito são mais delica-
das e difíceis de concretizar.
58 O ESPIRITO
A PARTIR DO MOMENTO EM QUE NOS EMPENHAMOS NO
despertar e na iluminação do espírito, e mesmo
que estejamos implicados no sofrimento do cicloda existência, tornamo-nos dignos de respeito
para os budas, que também são iluminados. O me-
nor fragmento de diamante é uma jóia notável
que ultrapassa todos os outros ornamentos. O es-
pírito iluminado, que se assemelha ao diamante
mesmo quando é ínfimo, eclipsa todas as quali-
dades daqueles que procuram a libertação pessoal.
O ESPÍRITO QUE SE ILUMINA É UMA SEMENTE CAPAZ DE
nos conduzir ao «estado de buda»; é um campo
no qual se podem cultivar todas as qualidades
positivas e o solo sobre o qual tudo se apoia; é o
deus da riqueza que elimina a pobreza, um pai que
protege todos os bodhisattvas e uma jóia que res-
ponde a todos os desejos; é um vaso miraculoso
que satisfaz todos os nossos desejos, uma arma-
dura que nos protege dos maus pensamentos, uma
espada que decapita as emoções impuras e um
escudo que detém todos os ataques; é um gancho
que nos retira das águas do ciclo das existências e
um turbilhão que dispersa todos os obstáculos
O ESPÍRITO 59
entais; é a aprendizagem concentrada engloban-do todas as orações e todas as actividades dos
bodhisattvas; é um lugar sagrado diante do qual
cada um de nós pode fazer oferendas.
A PRIMEIRA ETAPA NO DESENVOLVIMENTO DO DESPER-
tar e da iluminação do espírito, que tem a ver como interesse que manifestamos pelos outros, con-
siste em tomarmos consciência dos graves erros
relacionados com o egoísmo assim como das
vantagens do altruísmo. Uma prática essencial
para desenvolver essa iluminação consiste em tro-
car o nosso lugar com os outros. E indispensável,
desde o início, considerar os seres sensíveis com
afeição. Deveríamos pensar neles como se fossem
agradáveis e atraentes e tentar sentir por eles um
verdadeiro interesse, e isto é algo que exige uma
serenidade constante.
TODOS os NOSSOS PROBLEMAS PROVÊM DO NOSSO ESPÍ-
rito indisciplinado, e esta indisciplina nasce do
egoísmo. Nós estamos divididos entre a esperan-
ça e a inquietação, somos confrontados com o
medo do insucesso e, de um modo geral, aponta-
mos o dedo aos outros, acusando-os de todos os
60 O ESPÍRITO
males. Mas a verdadeira raiz do problema, a fontede todos os problemas e a origem de todos os im-previstos, reside na atitude egocêntrica que per-siste no nosso coração.
A NATUREZA DO ESPÍRITO É O SIMPLES DISCERNIMENTO
e a consciência. A experiência passada não é mais
do que um objecto da memória e os nossos pro-
jectos futuros não passam de especulações. No fim
de contas, os acontecimentos do passado e do fu-
turo não são mais do que criações do espírito. Por
conseguinte, todas as nossas experiências, sejam
elas positivas ou negativas, agradáveis ou doloro-
sas, são criações do espírito.
O ESPÍRITO 61
As EXPERIÊNCIAS MAIS DIVERSAS SÃO MANIFESTAÇÕES
do espírito. As acções variam consoante o nosso
espírito é ou não disciplinado, consoante ele é po-
sitivo ou negativo. O meio ambiente interno - o
corpo físico do indivíduo - e o externo - o lugar
onde ele se exprime - condicionam a força da
acção, e a qualidade desta acção depende do
carácter do nosso espírito, que pode ser disciplina-
do ou não. Assim sendo, os inumeráveis níveis de
felicidade e de sofrimento, assim como a própria
L trutura do meio ambiente, dependem da natu-
íeza do nosso espírito, e é por isso que a reco-mendação para que o disciplinemos é de tal modo
importante.
MUITO EMBORA SEJA BENÉFICO MEDITAR SOBRE A PRÁ-
tica do despertar e da iluminação do espírito, pro-
vocando dessa forma uma transformação mental,
nós não temos necessidade de nos comportar ou
de falar de um modo inabitual para mostrar que
passámos a ser uma outra pessoa. Todas as nossas
práticas que visam o treino do espírito devem ser
invisíveis do exterior e conduzir interiormente a
grandes progressos.
SE O NOSSO ESTADO DE ESPÍRITO É POBRE E A NOSSA
capacidade limitada, como poderemos satisfazeras expectativas dos outros? Ter vontade de os aju-
dar não é suficiente. Em primeiro lugar, temos de
nos treinar a fim de perceber melhor as suas as-
pirações, o que implica eliminar todos os defeitos
que nos impedem de ver as coisas como elas real-
mente são. Os obstáculos à omnisciência são as
ilusões, tais como o desejo, a cólera, o orgulho e a
ignorância, mas igualmente as marcas que elas
62 O ESPÍRITO
deixam no espírito depois de terem sido elimina-das. Porém, e dado que a verdadeira natureza doespírito é o discernimento, a pureza e o conheci-mento, temos a possibilidade de o purificar emprofundidade, atingido dessa forma esse discerni-mento de consciência que nós designamos por om-nisciência.
O CORPO FÍSICO AGE COMO UMA CAUSA SECUNDÁRIA
nas modificações subtis do espírito, não como umacausa fundamental. A matéria não pode nuncatornar-se espírito e reciprocamente, o que signi-fica que o espírito tem de ter a sua origem no es-pírito. O espírito desta vida vem do espírito davida anterior e serve de causa ao espírito da próxi-ma vida. Quando reflectimos na morte e a man-temos permanentemente no nosso espírito, a nos-sa vida enche-se de sentido.
O ESPÍRITO É MUITO MAIS IMPORTANTE QUE O CORPO. As-
sim sendo, e na medida em que é o estado do nossoespírito que, desde o nível mais baixo ao mais alto,nos permite suportar, ou apenas sentir, o sofrimento,nós deveríamos conceder uma muito maior impor-tância à nossa forma de pensar. A preparação do nos-so espírito é, pois, extremamente importante.
O ESPÍRITO 63
O NOSSO ESPÍRITO DEVE SER NOBRE, BENEVOLENTE E
aberto, nem agitado nem combativo e capaz denos fazer avançar mais rapidamente quando ascircunstâncias exteriores são favoráveis. Comece
a exercitá-lo já esta noite, não espere mais.
As NOSSAS ACÇÕES FÍSICAS E A NOSSA PALAVRA DE-
pendem do poder do espírito. E ele é capaz de
transformar as más acções, mesmo no caso de al-
guém com uma existência puramente mundana.
Por mais que o espírito de uma dada pessoa esteja
mergulhado na ignorância, basta um vestígio, ain-da que ínfimo, de vontade para transformar os
actos negativos em boas acções.
O KARMA DEPENDE DO CONTROLO, OU DA FALTA DE
controlo, do nosso espírito. O controlo mental
baseia-se na presença de ilusões, que resultam da
ignorância. Assim sendo, o espírito entrega-se àignorância. Todas as imperfeições interiores e ex-
teriores derivam deste processo: um espírito in-
disciplinado por causa das ilusões, a crença numa
existência individual independente...
64 O ESPÍRITO
QUANDO UM INDIVÍDUO CONTROLA PERFEITAMENTE oseu espírito, todas as imperfeições interiores eexteriores, assim como as suas consequências, sãoeliminadas.
EM CONSEQUÊNCIA DA ILUSÃO, OS ERROS DO ESPÍRITO
parecem numa primeira abordagem inultrapas-sáveis. Mas, dado que a sua origem é ilusória, elessão apenas temporários. As falsas concepções nãosuportam as qualidades positivas e virtuosas doespírito, o que faz com que nós tenhamos doisestados de espírito, cada um deles excluindo ooutro, um com um fundamento sólido e o outronão. A consequência disto é que, quando desen-volvemos as qualidades positivas, as negativasdesagregam-se pouco a pouco até desapareceremcompletamente. Quando o calor e a luz aumen-tam, o frio e a obscuridade diminuem.
EXISTEM NUMEROSAS ETAPAS NA TRANSFORMAÇÃO DOespírito e, a certos níveis, a análise racional não énecessária, já que a fé e a devoção se desenvol-vem através de uma prática centrada na con-
O ESPIRITO 65
I gntração. Sozinha, porém, a concentração nãoUesenvolve uma grande energia. E se o nosso ob-lectivo for o de acumular ao infinito as boas qua-lidades do espírito, não basta familiarizarmo-noscom o objecto da nossa meditação, é necessárioapelar igualmente à reflexão e à razão, pois elasfornecem um fundamento sólido e coerência à ex-periência meditativa do praticante. Para os religio-sos que atingiram o nível mais elevado, o conheci-mento é indispensável. No entanto, se tivéssemosde optar entre um espírito cheio de conhecimen-tos adquiridos e um espírito nobre, escolheríamoseste último, sem dúvida o mais importante, dadoque um espírito nobre é em si mesmo um verda-
deiro benefício.
O TREINO DO ESPÍRITO É IMPERATIVO E NÃO DEVERIA
ser considerado como dependente da religião. Aprática de uma determinada técnica ou de umdeterminado método de formação do espírito de-veriam, isso sim, fazer parte da vida quotidianade cada um de nós. Embora o espírito não tenhacor nem forma e seja difícil de identificar, o seupoder é imenso. E se por vezes ele parece difícilde apreender, de modificar e de controlar é por-que depende em grande parte do momento esco-
66 O ESPÍRITO
Ihido, da nossa vontade, da nossa determinação eda nossa sabedoria. Se dermos provas de determi-nação e de sabedoria - a sabedoria implicando oconhecimento -, treinar o espírito torna-se aqui-lo que de mais importante há a fazer.
A CONSCIÊNCIA MAIS SUBTIL DO ESPÍRITO NÃO TEM NEM
princípio nem fim, já que ela é a sua natureza últi-
ma. Não me refiro à natureza absoluta. A naturezaúltima é qualquer coisa de puro, e mesmo o espírito
mais grosseiro tem a sua própria natureza última,
podendo ser influenciado pelas emoções negativas,
mas também pelos pensamentos positivos. Todas as
emoções negativas assentam na ignorância, e a ig-norância não possui qualquer base sólida.
O ESPIRITO 67
A CONSCIÊNCIA, OU O ESPÍRITO, É UMA ENERGIA SUBTIL
na qual todas as coisas se reflectem e cuja nature-
za profunda é luminosa. A palavra tibetana shepa
quer dizer «estar consciente de qualquer coisa».
Assim, exceptuando o cérebro humano, existem
condições e causas mais profundas e mais subtis
da consciência humana sem as quais o espírito
humano não se pode desenvolver. Designa-se istopor «clara luz», o espírito subtil mais profundo.
n HOSSO ESPÍRITO É UMA ENTIDADE SÓLIDA, OU PELO
hienos aparece como tal, mas na realidade exis-
ftem diferentes géneros de espíritos. O espíritohumano é particularmente sofisticado, e a técni-
ca do budista para atingir a paz de espírito é elimi-
nar a perturbação mental, o que automaticamenteaumenta a felicidade e a paz. Existem muitos ca-
minhos para se atingir a paz e combater a ansie-
dade, e o conhecimento das Duas Verdades é um
deles. Em geral, a prática espiritual actua como
estabilizador. E o mesmo se pode dizer da paz.
ASSIM COMO SE DIZ QUE O ESPÍRITO NÃO TEM UM INÍ-
CIO, diz-se igualmente que não tem um fim, dadoque nada existe que possa destruir a nossa apti-
dão fundamental para o conhecimento e para a
experiência. No entanto, certos estados de espí-
rito, tais como as experiências sensoriais, as quais
dependem do nosso corpo físico, podem cessar
quando o seu suporte físico deixa de existir, ou
seja, no momento da morte.
O FACTO DE SERMOS FELIZES OU DE SOFRERMOS DE-
pende da eficácia com que disciplinamos o nosso
O ESPÍRITO
espírito. Um estado de espírito disciplinado, um
estado de espírito espiritualmente transformado,conduz à felicidade, ao passo que um estado de
espírito indisciplinado, subjugado pela dor e pelaangústia, conduz ao sofrimento.
A REFLEXÃO PESSOAL PERMITE-NOS COMPREENDER
que o espírito de base, ou a natureza da cons-
ciência, é neutro, que ele não é nem negativo
nem positivo, e por outro lado permite-nos des-
cobrir que muitos dos nossos pensamentos ne-
gativos e das nossas emoções têm origem na nossa
forma fundamentalmente imperfeita de com-
preender a realidade do mundo e a nossa pró-
pria realidade, uma falsa impressão que é ali-
mentada pela percepção do vazio. Além disso,
nós apercebemo-nos de que as emoções negati-
vas, de um lado, e a perspicácia, do outro, se
opõem directamente. Esta última, porém, baseia-
-se na experiência e na reflexão, ao passo que
aquelas não possuem qualquer fundamento real,
quer na razão quer na experiência. Examinando
todos estes pontos em conjunto e cultivando a
nossa percepção do vazio, torna-se possível eli-
minar todas as nossas angústias mentais.
O ESPIRITO 69
QUANTO MAIS ELEVADO FOR o NÍVEL DE TRANQUILIDA-
de do nosso espírito, maior será a nossa paz de
espírito e a nossa capacidade de apreciar uma vida
feliz e alegre. É no entanto importante não confun-dir esse estado de espírito calmo e tranquilo com
um estado de espírito insensível ou mesmo apáti-co. Possuir um estado de espírito calmo e tranqui-
lo não significa que se atingiu o desprendimento
absoluto. Essa paz provém da afeição e da compai-
xão, o que significa que tem origem num altíssimo
nível de sensibilidade e de sentimento.
O TREINO SISTEMÁTICO DO ESPÍRITO - QUE TORNA A
felicidade constante e provoca a verdadeira trans-
formação interior, através da selecção e da con-
centração nos estados mentais positivos e do com-bate aos estados mentais negativos - é possível
graças à estrutura e ao funcionamento do cére-bro. Nós nascemos com um cérebro geneticamen-
te ligado a comportamentos instintivos e estamos
programados, mental, emocional e fisicamente,
para responder ao nosso meio ambiente de uma
rorma que nos permita sobreviver. Estes dados debase são codificados num número incalculável de
70 O ESPÍRITO
células nervosas que respondem a todos os aconteci-mentos, a todas as experiências e a todos os pensa-mentos. O nosso cérebro não é estático, no entanto,nem determinado de uma forma irrevogável, mas simtotalmente adaptável. E é este traço fisiológico notá-vel que toma possível a transformação do nosso espí-rito. Mobilizando os nossos pensamentos e pratican-do novos modos de reflexão, temos a possibilidade dereorganizar as nossas células nervosas e modificar aforma de trabalhar do nosso cérebro. Assim, a transfor-mação interior começa pela aprendizagem e implicauma disciplina que consiste em substituir o condicio-namento negativo por um condicionamento positi-vo. Treinar o espírito para se ser feliz é, pois, perfeita-mente possível.
s
E EXTREMAMENTE IMPORTANTE MANTER O ESPÍRITO AC-
tivo e sempre desperto. Se a energia mental dimi-nuir, a elevação do espírito torna-se impossível.
O ESPÍRITO ESTÁ EM PERPÉTUO DEVIR. ASSIM SENDO,
na medida em que existe sempre um meio demudar e que a transformação é sempre possível,pouco importa a intensidade da emoção perturba-dora. Fazer um esforço, eis o que vale realmente apena.
O ESPÍRITO • 71
PURIFICAR o ESPÍRITO SIGNIFICA CONTRARIAR E ARRAN-
car todas as raízes das perturbações emocionais e
da ignorância - sejam elas inatas ou formadas
conceptualmente -, assim como todas as tendên-
cias kármicas que temos vindo a acumular desde
sempre.
O ESPÍRITO HUMANO É ÚNICO E PRECIOSO. DOTADO
de uma maleabilidade e de uma capacidade de sa-
bedoria inabituais, ele é capaz de evoluir a uma
velocidade que não tem equivalente em nenhu-
ma outra forma de vida. O homem tanto pode
cair na mais profunda obscuridade espiritual,
como atingir o estado supremo da perfeita ilumi-
nação, e isso depende apenas dele. Se cultivar-
mos o nosso espírito com métodos espirituais e
fizermos escolhas de vida positivas e criativas, re-
colheremos sem sombra de dúvida os benefícios de
uma tal atitude. Em contrapartida, se nos con-
tentarmos em perseguir objectivos superficiais e
não prestarmos atenção às necessidades mais pro-
fundas do espírito, espera-nos inevitavelmente a
frustração e a confusão.
72 O ESPIRITO
INTELIGÊNCIA
OS INSECTOS PODEM SER IMPOTENTES E FRACOS, MAS
eles não destroem o seu meio ambiente nem os
seus semelhantes. Nós qualificamo-nos como se-
res humanos e pensamos ser muito inteligentes,
mas com que objectivo utilizamos a nossa inteli-
gência? Para enganar os outros, para os prejudi-
car e abusar da sua boa fé. Quando nos compara-
mos aos outros seres sensíveis, devemos tentar
apreciar as suas qualidades positivas. E quando
nos observamos a nós próprios, devemos procu-
rar reconhecer os nossos erros e corrigi-los.
A HUMANIDADE
É PRECISO FAZER DE MODO A QUE CADA DIA DA NOSSA
vida tenha um sentido.
É ABSOLUTAMENTE NECESSÁRIO DESENVOLVER A NOSSA
vontade de dar um sentido a cada dia que passa -
porque esta preciosa forma humana só tem senti-
do relativamente ao potencial que contém.
L
ABNEGAÇÃO
SE OUTROS SERES SENSÍVEIS O CALUNIAREM OU DES-
prezarem, troçarem de si ou o ignorarem, tenta-
rem tirar-lhe a vida ou o brutalizarem, ofereça-
-Ihes o seu corpo para eles fazerem com ele o que
quiserem. Em seguida, reflicta: «Já que eu dei este
74 A HUMANIDADE
corpo a todos os seres sensíveis num gesto vindodo fundo do coração, que eles o utilizem e se sir-
vam dele como entenderem. Eu não sinto necessi-dade de o proteger, e eles que façam o que bem
desejarem, desde que isso não prejudique nin-guém. Que nunca aconteça que quem quer que
se volte para mim tenha de recuar sem ter atingin-
do o seu objectivo. Se alguém sentir ódio ou aver-
são em relação a mim, que isso seja a causa da
realização do seu desígnio. E se alguém se mos-
trar sarcástico comigo ou tentar prejudicar-me,
que essa pessoa possa atingir o "estado de buda".»
A HUMANIDADE 75
ALTRUÍSMO
A ESTRUTURA DE BASE DA SOCIEDADE HUMANA EXIGE
um sentido da responsabilidade baseado no altruís-
mo e na compaixão. A fonte última da felicidade é
o altruísmo. O sucesso da vida depende da de-terminação, da vontade e da coragem. E a fonte
desta coragem e desta determinação é o altruísmo.
SE QUISERMOS ATINGIR O «ESTADO DE BL7DA», TEMOS
de desenvolver um profundo altruísmo e realizar
boas acções. Nós dependemos amplamente dos
feres sensíveis que nos rodeiam, porque sem elesg0 teríamos a possibilidade de desenvolver o al-
L-uísmo infinito a fim de atingir o «estado de buda».rNós devemos a nossa reputação, a nossa riqueza e
os nossos amigos aos outros seres sensíveis.
GERALMENTE, DESCREVO A ESSÊNCIA DO DHARMA EM
duas frases: se puder, ajude os outros e sirva-os; ese não o puder fazer, evite ao menos prejudicá-los.
O tema de base dos ensinamentos Theravada
é a possibilidade de atingirmos a nossa própria
libertação. Claro que a compaixão (karuna) de-sempenha um papel nesse processo, ainda que tal
não seja obrigatório. O objectivo é atingir a nossa
própria libertação, mas sem deixar de servir os
outros. O princípio fundamental reside na injun-
ção de que não devemos prejudicar os outros.
No MAHAYANA, O ACENTO É COLOCADO NO ALTRUÍS-
mo ou bodhicitta (que é o desejo de realizar o «esta-
do de buda» tendo em vista servir ou ajudar outros
seres sensíveis). Este estado de espírito budista é
simultaneamente a mensagem fundamental e o trei-
no mais importante, sendo pois obrigatória a mai-or compaixão (mahakaruna) possível. Com efeito,
76 A HUMANIDADE
é nela que o altruísmo encontra a sua origem. Pou-co importa o que nos acontece, uma vez que o nos-so objectivo é ajudar e servir os outros.
DADO QUE TODAS AS COISAS SÃO INTERDEPENDENTES,
a nossa própria satisfação e a nossa felicidade de-
pendem em grande parte dos outros. Se estes, ani-
mais incluídos, estiverem satisfeitos e exterio-
rizarem a sua felicidade ou derem qualquer outra
resposta positiva, então nós poderemos estar satis-feitos.
A HUMANIDADE 77
O ALTRUÍSMO TEM DOIS ASPECTOS. O PRIMEIRO REFE-
re-se às condições que têm de existir para que ele se
possa manifestar, e que são a existência de compaixão
e a aspiração que cada um de nós deve cultivar de de-
sejar sempre o bem-estar de todos os seres sensíveis.
Isto conduz ao segundo aspecto, que é o desejo de se
atingir a iluminação. E é com o objectivo de beneficiar
todos os seres humanos que este desejo deveria desper-tar pouco a pouco em nós.
Treinar-se no altruísmo significa reagrupar o es-sencial de todos os outros treinos espirituais. Assim
lendo, ele pode substituir um grande número de
[técnicas, já que, em definitivo, todos os outros mé-
todos se resumem a uma mesma abordagem.
QUANDO A INTENÇÃO ALTRUÍSTA REPOUSA NA COM-
preensão do vazio, atingimos as duas dimensões da
bodhicitta, a «bodhidtta convencional» e a «bodhi-
citta última». Estes dois treinos, que conduzem à
compaixão e à sabedoria, fornecem ao praticante
um método completo, graças ao qual ele poderá
atingir o mais elevado objectivo espiritual.
A MAIS ELEVADA FORMA DE PRÁTICA ESPIRITUAL RESIDE
no desenvolvimento da intenção altruísta a fim
de se atingir a iluminação em benefício de todos
os seres sensíveis. Trata-se do estado de espírito
mais precioso de todos, da fonte suprema de bene-
fícios e de bondade, que satisfaz simultaneamen-
te a nossa expectativa imediata e a nossa expecta-
tiva última e que está na base mesma de toda a
actividade altruísta. O estado de bodhidtta só pode
no entanto ser realizado se existir um esforço regu-
lar, se se cultivar a disciplina indispensável para o
nosso espírito se formar e se transformar.
l
78 A HUMANIDADE
«BEM-ESTAR», NA ACEPÇÃO BUDISTA, SIGNIFICA Aju-
dar os outros a líber tarem-se totalmente do so-
frimento, e «seres sensíveis» faz referência ao
número infinito de existências no Universo. Esta
aspiração é fundada numa compaixão autêntica
e equânime em relação a todos os seres sensí-
veis. A compaixão traduz-se no desejo - que se
encontra na raiz de toda a intenção altruísta -
de ver todos os seres sensíveis libertos do sofri-
mento.
PARA SE SABER COMO AMAR os OUTROS É NECESSÁ-
rio em primeiro lugar compreender o que signi-
fica amar-se a si mesmo. O altruísmo não significa
simplesmente esquecermo-nos de nós próprios.
Trata-se acima de tudo de refrear os sentimen-
tos egoístas que nos conduzem à exploração dos
outros, ou que fazem com que os tratemos mal.
De um modo geral, o facto de não gostarmos de
nós mesmos, de nos detestarmos, é absolutamen-
te negativo. Uma tal disposição parece-me ex-
tremamente lamentável e não pode conduzir anada de bom.
A HUMANIDADE 79
COMPAIXÃO
L VERDADEIRA COMPAIXÃO NÃO É APENAS UMA RES-
bosta emotiva, mas sim um empenho firme fun-
\dado na razão. Por conseguinte, uma atitude ver-
dadeiramente compassiva em relação aos outros
nunca se altera, mesmo quando eles se compor-
tam de uma forma negativa. Graças a este altruís-
mo universal, temos a possibilidade de desenvol-
ver um sentimento de responsabilidade em relação
aos outros, sentimento esse que se traduz no de-
sejo de os ajudar concretamente a ultrapassar os
seus problemas.
O MAIS ELEVADO GRAU DE TRANQUILIDADE INTERIOR
provém do desenvolvimento do amor e da
compaixão. Quanto mais nos preocuparmos
com a felicidade dos outros, mais o nosso pró-
prio sentido de bem-estar crescerá e se afir-
mará. Cultivar um sentimento caloroso em
relação aos outros abre o espírito e faz cair as
barreiras, e nisso reside a fonte última do su-
cesso na vida.
A HUMANIDADE A HUMANIDADE • 81
A COMPAIXÃO PODE SER DEFINIDA COMO UM ESTADO DE
espírito não-violento, que não agride nem magoa
os outros. É por essa razão que não a podemos con-fundir nem com o apego nem com a intimidade.
UM DOS PRINCIPAIS ASPECTOS DA COMPAIXÃO RESIDE
no facto de que ela respeita os direitos e as opi-
niões dos outros, o que faz com que esteja na base
da reconciliação. O espírito de reconciliação fun-
dado na compaixão trabalha em profundidade,
tenha a pessoa consciência disso ou não. A natu-
reza humana é boa na sua essência, o que significa
que, mesmo quando somos confrontados com a
violência ou outras coisas negativas, a melhor
solução'consiste em retornar à afeição, ou seja,
ao sentimento humano autêntico. Assim sendo,a afeição ou a compaixão não se podem reduzir a
uma questão de religião e revelam-se indispensá-veis na nossa vida quotidiana.
A PROFUNDA COMPAIXÃO E A SABEDORIA SÃO AS QUALI-
dades principais de Buda. Mesmo nos termos mais
quotidianos, quanto mais uma pessoa for inteli-
nte e merecedora de ser conhecida, maior será
respeito que inspira. Da mesma forma, quanto
mais uma pessoa se mostra compassiva, doce eamável, mais deveria ser respeitada. Isto quer di-
zer que, se formos capazes de desenvolver estainteligência e este altruísmo ao mais alto nível,
seremos realmente admiráveis e merecedores de
respeito.
SÓ UMA SENSAÇÃO ESPONTÂNEA DE COMPAIXÃO EM
relação aos outros nos pode levar a agir em seu
favor. A compaixão, no entanto, não surge «meca-
nicamente,». Um tal sentimento, se for sincero,
deve crescer pouco a pouco dentro de nós, desen-
volver-se graças aos nossos cuidados e assentar
na convicção do seu próprio valor. Adoptar uma
atitude amável é pois uma questão de escolha pes-
soal, O comportamento de cada um de nós na
vida de todos os dias é, em definitivo, a verdadei-
ra prova a que a nossa compaixão tem de se sujeitar.
:-^\''>_,
A COMPAIXÃO ORDINÁRIA E O AMOR ENGENDRAM SEN-
sações muito próximas, que, no essencial, se re-sumem a um apego ao seu objecto. Enquanto o
outro nos parece belo ou bom, o nosso amor per-
82 A HUMANIDADE
siste; mas, a partir do momento em que ele ou ela
nos parece menos belo ou menos bom, o nossoamor modifica'se por completo. Mesmo que onosso maior amigo continue a ser a pessoa que
sempre foi, temos a impressão de que se trata de
um inimigo e, em vez de amor, passamos a sentirhostilidade por ele. Em contrapartida, se se tratar
de um amor e de uma compaixão autênticos, o
comportamento e a aparência de uma outra pes-soa não têm qualquer efeito na nossa atitude.
A verdadeira compaixão deriva da percepção que
temos do sofrimento do outro, e é ela que nos faz
sentir responsáveis por ele e desejar fazer qual-quer coisa em seu benefício.
OS BUDISTAS CONSIDERAM QUE O DESENVOLVIMENTO
de uma autêntica compaixão exige, em primeiro
lugar, que pratiquemos a «meditação de igua-
lização e de serenidade», afastando-nos das pes-
soas que nos são muito próximas, e em seguidaque eliminemos os pensamentos negativos em
relação aos nossos inimigos. O essencial é consi-
derar todos os seres sensíveis como iguais; depois,
nesta base, podemos desenvolver progressivamen-te uma verdadeira compaixão em relação a todos
eles. É claro que a compaixão autêntica não é nem
A HUMANIDADE 83
iriedade nem uma espécie de sentimentalismo que,Um última análise, significa passar aos outros amensagem de que eles são inferiores a nós. Pelo
'contrário, uma compaixão autêntica conduz-nosa considerar que os outros são mais importantes
do que nós próprios.
SE PENSARMOS APENAS EM NÓS MESMOS, SE NOS ESQUE-
cermos dos direitos e do bem-estar dos outros ou,
pior ainda, se os explorarmos, seremos forçosa-
mente prejudicados porque ficaremos sem ami-
gos e sem ninguém que se preocupe com o nosso
bem-estar. Se por acaso um qualquer drama nos
atingir, não haverá uma só pessoa para nos confor-
tar - e, pelo contrário, haverá eventualmente al-
guém que se alegrará com o acontecimento. Em
contrapartida, se formos compassivos e altruís-
tas, se nos preocuparmos com o interesse dos ou-
tros, não só faremos amigos muito rapidamente,
seja qual for o lugar onde estivermos, como encon-
traremos apoio e reconforto nos momentos de
infelicidade.
A COMPAIXÃO HUMANA, QUE POR VEZES EU DESIGNO
por «afeição humana», é o factor-chave em rela-
G- ! A HUMANIDADE
A HUMANIDADE 85
cão a tudo aquilo que diz respeito ao homem.Quando consideramos a palma da nossa mão,
admitimos que os nossos cinco dedos são úteis;tal não aconteceria, porém, se os dedos não es-
tivessem ligados a ela. Do mesmo modo, as ac-
ções que não procedem de um sentimento são
perigosas. Se forem determinadas pelo sentido
do humano e por uma boa apreciação dos valo-
res humanos, todas as actividades do homem se
tornam construtivas.
QUANTO MAIS FORTE FOR A NOSSA COMPAIXÃO, MAIOR
será a nossa resistência para enfrentar as prova-
ções e as fazer evoluir em direcção a condições
mais positivas.
A COMPAIXÃO É TAMBÉM UMA FORÇA INTERIOR. FA-
zendo com que a nossa força interior aumente,
nós podemos desenvolver uma determinação fir-
me que nos será útil na nossa luta para sermos
bem-sucedidos, sejam quais forem os obstáculos.
CONSOANTE o NOSSO NÍVEL DE SABEDORIA, EXISTEM
diferentes graus de compaixão, tais como a
C0inpaixão motivada por uma perspicácia autên-
tica em relação à natureza última da realidade,ou a compaixão que emana da apreciação da na-
tureza impermanente da existência, ou ainda acompaixão resultante da tomada de consciênciado sofrimento dos outros seres sensíveis. O nível
da nossa sabedoria, da nossa percepção da natu-
reza da realidade, determina assim o grau de com-
paixão que seremos capazes de desenvolver.
,-'-•• .">..,
À MEDIDA QUE O INDIVÍDUO ACEDE A UMA VISÃO MAIS
profunda da verdadeira natureza da realidade, opoder da sua compaixão e do seu altruísmo desen-
volvem-se cada vez mais, porquanto ele com-preende que a evolução dos seres sensíveis no ci-
clo das existências se deve de facto à ignorância
da natureza da realidade.
NÓS PODERÍAMOS ACREDITAR, PENSANDO NO SOFRI-
mento dos outros e meditando sobre a compai-
xão, que o único efeito desta última seria o deaumentar a dor intensa na qual já nos encontra-mos mergulhados. Isso deveria, no entanto,
unicamente à estreiteza do nosso espírito. A ver-dade é que, se não quisermos ajudar esses seres, o
A HUMANIDADE
seu sofrimento nunca terá fim, mas se mostrar-mos um pouco de compaixão e se fizermos umesforço nesse sentido, mais cedo ou mais tarde ele
cessará. Isto significa que todas as dificuldades porque passamos valem a pena.
NÃO PENSE NUNCA: «SE AJUDAR OS OUTROS, AÇU-
mularei acções positivas e serei uma pessoa vir'
tuosa, o que me permitirá ser feliz no futuro», pois
esse não é o objectivo. Realize acções positivas
com compaixão, do fundo do seu coração, sem se
deixar conduzir pela mais ínfima noção de recorri'pensa pessoal.
HABITUALMENTE, o CONCEITO DE COMPAIXÃO ou DE
amor evoca uma aproximação ou uma sensação
que nos conduz em direcção aos amigos - e tarri'
bem, por vezes e erradamente, a um sentimento
de piedade. Porém, a afeição por outrem que se
tinge de condescendência não é a verdadeira com'
paixão, já que esta se deve basear no respeito e na
convicção de que os outros têm, tal como nós mês'
mós, o direito de ser felizes e de procurar atenuaros seus sofrimentos. Por conseguinte, e dado que
o sofrimento permanece omnipresente, nós deve'
A HUMANIDADE
LOS sentir-nos sempre implicados nos problemas
outros, dando provas de uma autêntica com-
paixão por eles.
FACE AO DESAFIO REPRESENTADO PELA NECESSIDADE
de se estabelecer uma verdadeira paz mundial e
de preservar a Terra, que podemos nós fazer? As
belas frases já não chegam, e na realidade nós
deveríamos procurar desenvolver o amor e a
compaixão no nosso interior. A compaixão é por
essência calma e doce, mas é igualmente muito
poderosa. E embora haja quem considere que é
difícil pô-la em prática e que ela é irrealista, a ver-
dade é que a sua prática conduz ao sucesso, visto
ela ser o sinal de uma verdadeira força interior.
Acresce que não temos de nos tornar religiosos
ou de aderir a uma ideologia para a desenvolver.
Tudo o que temos a fazer é, muito simplesmente,
concentrarmo-nos nas nossas qualidades huma-
nas fundamentais.
SE CONSIDERARMOS O MUNDO NO SEU CONJUNTO, PEN-
SO que a compaixão é mais importante do que a
«religião».
87
A HUMANIDADE A HUMANIDADE
A VERDADEIRA COMPAIXÃO BASEIA-SE NO RECONHE-
cimento do facto de que os outros têm, exacta-
mente como nós, o direito de procurar diminuir
os seus sofrimentos. E mesmo os nossos inimigoso têm! Depois de termos reconhecido esse facto,
podemos interessar-nos pelos outros, desenvolver
o nosso interesse por eles e permitir que a nossa
inquietação se manifeste numa atitude que se desi-
gna por compaixão. A compaixão é imparcial,mesmo em relação aos nossos inimigos.
A PRÁTICA DA COMPAIXÃO NADA TEM DE IDEALISTA.
Trata-se, isso sim, do caminho que nos permite
assumir da melhor forma possível não só os inte-resses dos outros, mas também os nossos. E quan-
to mais nos implicarmos nesta interdependência,
maior será o nosso interesse em assumir o bem-- estar dos outros.
O MEDO SURGE QUANDO OLHAMOS O OUTRO COM SUS-
peita, e é a compaixão que cria a confiança que
nos permite abrirmo-nos aos outros e revelar osnossos problemas, as nossas dúvidas e as nossas
. ,celtezas. Podemos ser crentes ou não, mas en-auanto formos seres humanos, enquanto fizermos
narte da família humana, necessitamos de compai-xão. Do mesmo modo, quando sentimos o calor da
compaixão no nosso interior, o sentido da res-ponsabilidade e do compromisso torna-se não ape-
nas evidente, mas igualmente automático, o que
nos ajuda a atingir a iluminação e nos ensina a
autodisciplina. A afeição humana, ou compaixão,
é pois um dos meios mais eficazes de que dispomospara desenvolver todas as nossas boas qualidades.
NÓS TEMOS UMA CAPACIDADE NATURAL PARA A COM-
paixão e é por isso que reagimos espontaneamen-
te quando vemos alguém atormentado pela dor.
Todos nós possuímos o germe da bondade, e tudoo que temos a fazer é desenvolver essa nossa facul-
dade. Porém, para o conseguir, precisamos de ven-
cer e de ultrapassar a cólera e o ódio, que nada
rnais são do que produtos de uma atitude de en-
cerramento em nós mesmos.
Ao TRABALHAR A COMPAIXÃO, DEVERÍAMOS PENSAR
no sofrimento dos outros seres sensíveis e recor-
dar a dificuldade que sentimos quando somos nós
90 A HUMANIDADE
a sofrer, mesmo que ligeiramente. Embora não quei-ram sofrer, os seres sensíveis não sabem de que for-
ma poderão vencer o sofrimento que os atormenta.E a única maneira de os ajudar consiste em assu-
mir, no nosso âmago, a responsabilidade de con-tribuir para lhes aligeirar o fardo.
A HUMANIDADE 91
A COMPAIXÃO É UM FACTOR CRUCIAL. O FACTO DE
possuirmos um espírito compassivo entreabre au-
tomaticamente uma porta interior que facilita a
comunicação com os nossos companheiros, os
seres humanos, os animais e os insectos. Quandooptamos por uma atitude de abertura, e por ou-
tro lado nada temos a esconder, criamos imedia-
tamente um terreno propício à amizade. Em con-
trapartida, toda a emoção negativa, tal como o
medo, fecha essa porta. Se não efectuarmos essa
preparação, é extremamente difícil conquistar ver-dadeiros amigos. Quer os outros respondam ou
não, não deixa de ser verdade que se sorrirmos
sem desconfiança nem dúvida teremos mais hi-póteses de obter um sorriso de volta.
A PARTIR DO MOMENTO EM QUE NOS TORNAMOS PES-
soas mais compassivas, a nossa confiança afirma-
se cada vez mais. Graças a isso, tornamo-nos mais
calmos e mais felizes, com menos medo. O nosso
espírito abre-se e é com grande facilidade que fa-
zemos amigos e recolhemos sorrisos.
PRECISAMOS DE DESENVOLVER UMA COMPAIXÃO FOR-
te, tão forte que o facto de dar felicidade aos ou-
tros se torna indispensável, e é por isso que temos
de assumir desde já a responsabilidade de que tal
se possa concretizar. No Budismo, a essa compai-
xão dá-se o nome de «grande compaixão».
SE CONSIDERARMOS MAIS ATENTAMENTE A COMPAIXÃO,
descobrimos que ela comporta dois níveis e que,
num primeiro nível, ela pode existir sob a forma
de um simples desejo — ver o outro livrar-se do
seu sofrimento. Todavia, a compaixão pode tam-
bém concretizar-se num plano mais elevado,
quando a emoção vai para além do simples desejo
e inclui a vontade de agir concretamente no sen-
tido de fazer diminuir o sofrimento dos outros.
Neste caso, a um forte pensamento altruísta alia-
-se o sentido da responsabilidade e do empenho
pessoal.
92 A HUMANIDADE A HUMANIDADE 93
NÓS SABEMOS POR EXPERIÊNCIA QUE A NOSSA CAPACI-
dade de nos identificarmos com uma pessoa ou
um animal é tanto maior quanto mais próximosnos sentimos desse ser. Por consequência, umelemento importante da prática espiritual da com-
paixão reside na nossa capacidade de nos sentir-mos «ligados» aos outros e de cultivar a aproxi-
mação a eles, algo que o Budismo descreve comoo «sentido da intimidade» com o objecto da com-
paixão. Quanto mais próximos nos sentimos de
um outro ser, mais compreendemos a que pontoo seu sofrimento é insuportável.
A COMPAIXÃO FAZ PARTE DO NOSSO ESPÍRITO. MAS A
cólera também faz. Ambas fazem parte da nossa
natureza e ambas se situam mais ou menos ao mes-
mo nível. Contudo, a natureza humana é essen-
cialmente doce e compassiva. A cólera, a violên-
cia e a agressividade podem surgir, mas apenas a
um nível secundário, mais superficial; de algum
modo, surgem quando nos sentimos frustrados nos
nossos movimentos em direcção ao amor e à afei-
ção. Na realidade, essas emoções negativas nãofazem parte da nossa natureza fundamental.
DOM
SE ESTIVERMOS EMPENHADOS NA PRÁTICA DO DOM, UMA
grande felicidade e um fulgor deverão ler-se no nos-so rosto. Só é possível praticar o dom com rectidãomental e um sorriso nos lábios.
QUANTO MAIS PENSAMOS NUMA COISA, MAIS ELA SEtorna familiar ao nosso espírito, que não tardaráa orientar-se automaticamente nessa direcção.E mesmo que ainda não tenhamos adquirido acapacidade de ajudar os outros, devemos prepa-rar o nosso espírito para essa tarefa, já que quemtiver um tal pensamento conseguirá mais cedo oumais tarde concretizá-lo. O facto de repetirmosmentalmente estas práticas virtuais e de nos ale-grarmos com elas conduz-nos, pouco a pouco, nadirecção da prática real do dom.
O SIMPLES ACTO DE DAR NÃO CONSTITUI UMA PRÁTICA
de generosidade, e certos critérios devem ser res-peitados. Nunca se deve depreciar a pessoa quesolicita a nossa ajuda. Convém, pelo contrário,ver nela um professor que nos oferece a possibili-
dade de desenvolver a nossa generosidade.
94 A HUMANIDADE
DAR É UMA VIRTUDE BENÉFICA TANTO PARA AQUELE
que dá como para aquele que recebe, pois quemdá amealha mérito, garantindo felicidade e for-tuna no futuro, e quem recebe vê as angústias danecessidade e da pobreza tornarem-se menos pe-sadas.
É ESSENCIAL COMEÇAR POR DESENVOLVER A VONTADE
de dar, a qual se baseia em pensamentos positi-
vos. Há que dar tudo aquilo que podemos, mastambém é importante reiterar sem tréguas o empe-
nho mental de praticar a generosidade, pois é des-sa forma que reforçamos a determinação e a von-tade de o fazer.
A HUMANIDADE 95
TEMOS DE NOS DAR AOS OUTROS SERES E AMÁ-LOS
tanto quanto a nós mesmos. Temos de pensar quepertencemos aos outros e devemos, além disso,assegurar-nos de que o nosso espírito compreen-
de esse novo estádio. Se nós nos damos aos ou-tros, a nossa única tarefa é satisfazer as suas neces-sidades. E dado que lhes oferecemos os nossosolhos, o nosso corpo e as nossas palavras, não
bodemos continuar a utilizar tudo isso apenas noL0sso interesse. E preciso dar sempre prioridade
aos outros.
GENEROSIDADE
A GENEROSIDADE É UMA ATITUDE QUE SE TRADUZ PELA
vontade de dar, sem qualquer hesitação, os nossospróprios bens, os nossos corpos, as nossas virtu-des, etc. Não é no facto de banir a pobreza de to-dos os seres vivos que reside a perfeição da gene-rosidade. Ela é perfeita por constituir o de-senvolvimento último de uma atitude generosa.
O FACTO DE DARMOS AOS OUTROS O QUE POSSUÍMOS
serve um objectivo concreto e ao mesmo tempo
aumenta a nossa prática da generosidade. E noque se refere às virtudes que acumulamos quan-do damos algo, elas devem igualmente ser consa-
gradas ao benefício dos outros.
DEPOIS DE TERMOS TOMADO CONSCIÊNCIA DA FUTILI-
dade de se ser possessivo, deveríamos tentar au-mentar o nosso sentido da generosidade graças à
96 A HUMANIDADE A HUMANIDADE 97
prática, ou seja, dando os nossos bens aos ou-tros. Uma pessoa que toma consciência da futili-
dade de se ser possessivo e que dispersa as suascoisas à sua volta, sem sentir sequer o desejo deajudar os necessitados, é designado por bo~
dhisatwa.
Idade partilhada por todos, à qual se acrescenta aaspiração, igualmente comum a todos os seres hu-
manos, de atingirem a felicidade e de eliminarem
o sofrimento - assim como o direito fundamental
de terem tal aspiração - são de uma importância
capital.
UMA FIRME ASPIRAÇÃO EM SE ATINGIR A ILUMINAÇÃO -
eis a única motivação que deveria existir na prática
da generosidade. Seja qual for a nossa dádiva, ela
tem de ser benéfica para os outros. Deveríamos pra-
ticar a generosidade em benefício dos outros e com
habilidade, isto é, compreendendo que não existe,em definitivo, qualquer parcela do que darmos ou
recebermos que possamos designar por nossa.
HUMANIDADE
INDEPENDENTEMENTE DA RAÇA, DA CRENÇA, DA IDEO-
logia, da pertença a um bloco político (Leste ou
Oeste) ou a uma região económica (Norte ou Sul),
o aspecto essencial e que maior importância as-
sume em todos os povos do mundo reside na sua
humanidade partilhada — ou seja, no facto de
cada indivíduo ser um ser humano. Esta humani'
A VIDA ESPIRITUAL
FE
NÃO NOS DEVEMOS ESQUECER DE QUE, MESMO NO SER
humano mais pervertido e cruel, subsiste uma ín-
fima parcela de amor e de compaixão, a qual um
dia fará dele um Buda.
100 A VIDA ESPIRITUAL
A FÉ DISSIPA A DÚVIDA E A HESITAÇÃO, LIBERTA-NOS
do sofrimento e conduz-nos até à cidade da paz e
da felicidade. E a fé que faz desaparecer a perturba-ção mental e que clarifica o nosso espírito, redu-
zindo o nosso orgulho e afirmando-se como a raiz
da veneração. A fé assemelha-se à nossa mão,capaz de reunir todas as qualidades virtuosas.
EXISTEM TRÊS TIPOS DE FÉ: A FÉ NA ADMIRAÇÃO QUE
sentimos em relação a uma pessoa particular ou a
um estado de existência particular; a aspiração à
fé, que repousa numa espécie de emulação, pois
aspiramos atingir esse estado de existência; e o
terceiro tipo, enfim, que é a fé da convicção.
EXISTEM DIFERENTES TIPOS DE FÉ: UMA DELAS É CLARA E
pura, permitindo apreciar as qualidades do Buda,
do dharma e da comunidade espiritual; outra con-siste numa certa forma de confiança; vem depois a
fé de aspiração, sem dúvida a mais importante, por-
que, nesse caso, não nos contentamos simplesmen-te em venerar as qualidades do Buda, do dharma e
da sangha, mas esforçamo-nos por atingir nós pró'
A VIDA ESPIRITUAL
jos o estado de Buda e as qualidades do dharma,
por nos tornarmos membros da comunidade es-
niritual. Se formos capazes de realizar um tal esfor-podemos ter a certeza de que estamos a prepa-
Irar um melhor nascimento numa vida futura.
PAZ
A PAZ POUCO SIGNIFICA E VALE PARA QUEM ESTÁ A
morrer de fome ou de frio e é incapaz de atenuar
a dor da tortura infligida a um prisioneiro políti-
co ou de consolar aqueles que perderam os seres
que amavam nas inundações provocadas por uma
desflorestação selvagem. A paz só pode perdurar
se os direitos do homem forem respeitados, se as
pessoas se alimentarem convenientemente e se os
indivíduos e as nações forem livres. A verdadeira
paz, quer em relação a nós próprios, quer em re-
lação ao mundo que nos rodeia, só pode ser concre-
tizada através do desenvolvimento da paz mental
101
NÓS TENTAMOS OBTER A PAZ OU A FELICIDADE PRÓ-
porcionada pelo dinheiro, pelo poder, por tudoaquilo que é exterior. Porém, a verdadeira paz, a
serenidade, deveria provir do interior.
102 A VIDA ESPIRITUAL
RELIGIÃO
O OBJECTIVO DA RELIGIÃO NÃO É O DE CONSTRUIR BE-
las igrejas ou templos soberbos, mas sim o de culti-
var qualidades humanas tais como a tolerância, agenerosidade e o amor.
A VIDA ESPIRITUAL 103
TODAS AS RELIGIÕES, COM A FÉ QUE LHES É PRÓPRIA E
mau grado as diferenças filosóficas que as sepa-
ram, têm um mesmo objectivo e todas elas insis-
tem na evolução do homem, no amor, no respeito
pelos outros e na partilha do sofrimento. No quese refere a estes diferentes pontos, todas as religiões
têm mais ou menos a mesma abordagem e o mes-
mo objectivo.
O VERDADEIRO OBJECTIVO DA RELIGIÃO É CONDUZIR
cada um de nós ao controlo de si próprio e não a
criticar os outros. Mais vale, com efeito, criti-
carmo-nos a nós mesmos. O que é que eu faço
para temperar a minha cólera, o meu ódio, o meuorgulho e o meu ciúme? Eis a pergunta que deve-
ria estar permanentemente nos nossos lábios.
£E PRATICARMOS UMA RELIGIÃO DE UMA FORMA
[correcta e sincera, ela acabará por penetrar no
anterior dos nossos corações. E, de facto, é num
fcom coração que reside a essência de todas as re-
ligiões. Eu digo por vezes que o amor e a compai-
fcão constituem uma religião universal e que a
minha religião é exactamente essa. Uma filosofia
complicada gera ainda mais preocupações e pro-
blemas. Se as filosofias sofisticadas forem úteis
para o seu coração, então muito bem: utilize-as
plenamente. Mas se, em contrapartida, elas se tor-
narem um obstáculo no seu esforço para possuir
um bom coração, então o melhor que tem a fazer
é abandoná-las.
EXISTEM MUITAS FILOSOFIAS DIFERENTES. O BUDISMO
e o jainismo, por exemplo, não reconhecem um
Deus criador, ao passo que a crença em Deus é
Para muitas outras religiões a filosofia fundamen-
tal. São sem dúvida duas posições absolutamente
distintas. Entre essas «religiões sem Deus», duas
há cujas filosofias se fundamentam na teoria da
existência de um eu independente, de uma alma
104 A VIDA ESPIRITUAL
independente e permanente, e isso é algo que Os
budistas também não reconhecem. Contudo, 0
objectivo inicial desses diferentes ensinamentosé servir e ajudar os homens, procurando fazer com
que tomem consciência da importância da paz
interior e, dessa forma, contribuindo para esta-belecer a paz no seio da comunidade humana.
TODAS AS RELIGIÕES, SEJAM QUAIS FOREM OS SEUS PON-
tos de vista filosóficos, ensinam-nos antes de tudo
o mais a lutar contra o nosso egoísmo e a servir os
outros. Acontece infelizmente que, por vezes, em
nome da religião, as pessoas lutam entre si em vez
de resolverem os problemas que as dividem. To-
dos os praticantes deveriam compreender que
cada tradição religiosa tem um imenso valor in-
trínseco, pois, graças a ela, podemos obter saúde
mental e espiritual.
TODAS AS RELIGIÕES DO MUNDO TÊM OS MESMOS IDEAIS
de amor e o mesmo desejo de atingir uma grande
humanidade através de uma prática espiritual. A
aspiração de todas elas é ver os seus adeptos torna-
rem-se melhores seres humanos. O objectivo co-
mum de todos os preceitos morais revelados pelos
A VIDA ESPIRITUAL
Landes mestres da humanidade é a generosidade,
não existe religião que não esteja de acordo so-bre a necessidade de se controlar o espírito indis-iplinado, por trás do qual se esconde o egoísmo,
foem corno as raízes de todos os problemas. E cadabma delas, à sua maneira, mostra um caminho que
conduz a um estado espiritual calmo, disciplinado,
ético e sábio, ajudando assim os seres vivos a evi-
tar a miséria e a viver felizes. E é por isso que pen-
sei sempre que todas as religiões têm, fundamen-
talmente, a mesma mensagem.
CADA UM DE NÓS, À SUA MANEIRA, PODE PROPAGAR A
compaixão no coração das pessoas. As civiliza-ções ocidentais concedem actualmente grande im-
portância ao facto de se «encher» o cérebro huma-
no com conhecimento, mas ninguém parece
preocupar-se em encher o coração humano com
compaixão. Ora essa é a verdadeira função da reli-gião.
DEVERIA HAVER UM EQUILÍBRIO ENTRE o PROGRESSO
material e o progresso espiritual, obtido graças aos
Princípios do amor e da compaixão. O amor e a
compaixão são a essência da religião.
105
106 A VIDA ESPIRITUAL A VIDA ESPIRITUAL
NEM OS BUDISTAS CONSEGUEM QUE O CONJUNTO DA PQ-
pulação mundial se torne budista, nem os cristãos
são capazes de converter toda a humanidade aoCristianismo, nem os hindus têm a possibilidade de
governar toda a espécie humana. No decurso dosséculos, as diversas fés e os diversos grandes ensina-
mentos prestaram muitos «serviços» à espécie hu-
mana. Por isso, em vez de passarmos o tempo a criti-
car e a discutir, o melhor que temos a fazer é cultivar
amizades, compreendermo-nos uns aos outros e
esforçarmo-nos por servir a humanidade.
CADA RELIGIÃO, COM A SUA PRÓPRIA FILOSOFIA E AS
suas próprias tradições, tem como objectivo pro-
curar diminuir os sofrimentos do espírito huma-
no. Especular sobre se tal religião é superior a tal
outra revela-se um exercício inteiramente vão.
O que de facto conta é saber qual é a que melhor se
adapta às expectativas de cada um de nós.
ASSIM COMO A DIVERSIDADE DOS HÁBITOS GASTRO-
nómicos corresponde à diversidade dos povos, a
variedade das religiões corresponde à variedade
discípulos. No Tibete, a liberdade religiosa de
que beneficia cada indivíduo está de tal modoancorada na tradição que deu origem a um dita-
do: «Cada lama é a sua própria escola.» A diversi-
dade é, em todos os domínios, simultaneamentebela e necessária.
SABEDORIA
EXISTE UM PODER CAPAZ DE LUTAR CONTRA AS EMO-
ções descontroladas e parasitas, e esse poder é a
sabedoria. Esta sabedoria, que se torna mais clara
e decisiva à medida que nos implicamos na análi-
se e no exame de todas as coisas, caracteriza-sepor ser forte e duradoura.
EXISTEM TRÊS TIPOS DE SABEDORIA, ou TRÊS ETA-pas, na compreensão que as pessoas têm da
realidade. A etapa inicial é a escuta e a aprendi-
zagem, quando lemos ou aprendemos algo. O
segundo estádio é atingido quando, após aaprendizagem, pensamos no tema constante-
mente e a nossa compreensão se torna mais clara
graças a essa familiaridade. É então que come-çamos a sentir certas sensações ou experiências,
108 A VIDA ESPIRITUAL A VIDA ESPIRITUAL 109
um terceiro estádio que é designado por «sabe-
doria adquirida meditativamente», no qual dei-
xamos de compreender o sujeito unicamente do
ponto de vista intelectual, passando a com-
preendê-lo através de uma experiência medi-tativa.
'-S>
DAS DIFERENTES FORMAS DE SABEDORIA, DISTINGUE-
-se a sabedoria que conhece a variedade dos fe-
nómenos e a sabedoria que conhece a natureza
última dos fenómenos. Destas duas formas, a mais
importante é a segunda, pois é ela que nos permi-
te tomar consciência da vacuidade.
PARA QUE o TREINO PARA SE OBTER A SABEDORIA
possa amadurecer, há em primeiro lugar que
desenvolver a concentração meditativa; e,
para desenvolver e apoiar a concentração, é
necessário cultivar o treino da disciplina, que
acalma o espírito e instaura uma atmosfera fa-
vorável à meditação. Quando praticamos o
conjunto destes três treinos superiores de uma
forma perfeita, a libertação do samsara está ga-
rantida.
SILÊNCIO
ACONTECE CRIARMOS UMA IMPRESSÃO DINÂMICA NÃO
dizendo nada; por vezes, podemos transmitir algo
de muito importante permanecendo silenciosos.
ESPIRITUALIDADE
EXISTEM DOIS NÍVEIS DE ESPIRITUALIDADE: A ESPIRITUA-
lidade sem fé religiosa e a espiritualidade com fé
religiosa. A primeira categoria é muito importan-
te, já que a maior parte das pessoas, ainda que
tendo nascido numa ou noutra religião, não se
preocupa com o assunto na sua vida quotidiana e
mostra-se muito mais interessada no dinheiro ous
no conforto material. E possível dizer, neste sen-
tido, que a maioria dos homens no mundo actual
é não-crente.Alguns dos problemas que temos de enfrentar
actualmente são essencialmente produzidos pelo
homem ou são nossa própria criação; deste pon-
to de vista, dir-se-ia que «falta» qualquer coisana nossa forma de pensar ou de compreender. Em
definitivo, e por falta de previdência e desleixo
110 A VIDA ESPIRITUAL
mais do que por vontade própria, nós permitimosque certos problemas adquiram proporções exa-geradas, sem perceber o quão terríveis podem seras consequências de uma tal conduta. Uma espiri-
tualidade liberta da fé religiosa parece-me simulta-
neamente importante e útil, assim como me pa-rece errado pensar que os conceitos de amor, de
compaixão e de perdão são temas puramente reli-giosos. Na realidade, só a nossa estreiteza de espí-
rito nos pode fazer acreditar que tais questõesmorais estão reservadas aos crentes.
A PARTIR DO MOMENTO EM QUE NOS EMPENHAMOS NA
via da espiritualidade, devemos cultivar sólidas qua-
lidades mentais, tal como o recomenda o ensino
dos bodhisatwas. Quando tivermos adquirido a força
e a confiança que nos permitirão prosseguir a nos-sa vida espiritual, mesmo quando as circunstâncias
se revelarem difíceis, chegou o momento de de-
sempenharmos um papel activo no mundo.
VIDA
DEVEMOS REFLECTIR NAQUILO QUE TEM VERDADEIRA-
mente valor na vida, naquilo que dá sentido à
A VIDA ESPIRITUAL 111
nossa existência, e servirmo-nos disso para defi-nir as nossas prioridades. O objectivo da nossa
vida deve ser positivo. Nós não nascemos paracriar problemas aos outros e para os prejudicar.
Se desejarmos que a nossa vida tenha valor, de-vemos desenvolver as qualidades humanas fun-
damentais: a bondade, a gentileza e a compaixão.
Então a nossa vida encher-se-á de sentido e tor-
nar-se-á mais calma e mais feliz.
UMA VIDA DE SER HUMANO LIVRE É PRECIOSA PORQUE
nos fornece a possibilidade e a oportunidade de
cultivar o espírito de iluminação, assim como o
potencial que nos permite realizar grandes coi-
sas. Tendo esta oportunidade, seria absurdo não
a utilizarmos eficazmente. Nenhuma outra criatu-
ra está dotada, como o ser humano, da capacida-
de de fazer o bem.
VIDA ESPIRITUAL
Os CÉREBROS DOS OCIDENTAIS TRABALHAM MUITO E
sempre no sentido da eficácia, o que significa queo espírito se coloca ao serviço do resultado e que,tal como qualquer criado, renuncia à sua indepen-
112 A VIDA ESPIRITUAL
dência. A forma de vida espiritual a que me refir
é completamente diferente, mais desprendida, maisprofunda e sem a obsessão do objectivo a atingir
A ESSÊNCIA DA VIDA ESPIRITUAL É A NOSSA EMOÇÃO,
a nossa atitude em relação aos outros. Quando anossa motivação é pura e sincera, tudo o restovem, por assim dizer, automaticamente. Esta atitu-de justa em relação aos outros baseia-se na genti-leza e no amor, e permite-nos contribuir para arealização da unidade de todos os seres humanos.
DESPERDÍCIO
NÃO NOS PODEMOS CONTENTAR COM O FACTO DE VI-
ver. Durante os vinte primeiros anos da nossa exis-tência, afirmamos que somos demasiado jovens enão estudamos. Depois passamos outros vinteanos a dizer : «Vou começar, vou praticar», masacabamos por nunca passar aos actos. Seguem-seoutros vinte anos, os quais se passam connosco arepetir: «Não consigo, não consigo», e em contí-nuas lamúrias por não podermos estudar vistosermos demasiado velhos e a vista e o ouvido te-rem enfraquecido. E é assim que desperdiçamosas nossas vidas.
A MEDITAÇÃO
DISCIPLINA
A DISCIPLINA É UM ORNAMENTO SUPREMO QUE, USADO
pelo idoso, pelo jovem ou pelo homem de meia-
-idade, gera a felicidade. É o perfume por exce-
lência que, contrariamente aos perfumes ordiná-rios que apenas viajam com o vento, se espalha
114 A MEDITAÇÃO A MEDITAÇÃO 115
espontaneamente em todas as direcções. Unguen-to inigualável, a disciplina alivia as dores da ilu-são, por mais fortes que elas sejam.
MEDITAÇÃO
UMA DAS COISAS QUE A MEDITAÇÃO NOS ENSINA,quando mergulhamos progressivamente em nós
mesmos, é que a paz já existe no nosso interior.
Todos nós sentimos um profundo desejo de paz,
embora muitas vezes ela esteja escondida, masca-
rada de qualquer outra coisa, como se não exis-
tisse. Se examinarmos cuidadosamente a nature-
za humana, constataremos que ela é por essência
boa, bem disposta, prestável. Ora, na minha opi-
nião, o espírito de harmonia aumenta nos dias de
hoje e o nosso desejo de viver em conjunto e em
paz está a tornar- se cada vez mais forte.
QUANDO UTILIZAMOS A PALAVRA «MEDITAÇÃO», É
essencial termos consciência de que ela tem inú-
meras conotações distintas. Por exemplo, as me-
ditações podem ser muito direccionadas, con-templativas, analíticas, etc. Assim, se desejarmos
treinar a nossa capacidade para estar contentes,
meditação deve ser de uma natureza mais analíti-
ca, apontando para as consequências destrutivas dodescontentamento e para as vantagens do conten-
tamento. Através da análise dos prós e dos contras,
podemos reforçar a nossa aptidão para estarmos
contentes. Mas, se a nossa meditação for unicamentedireccionada, sem dimensão analítica, ser-nos-á
muito difícil reforçar essa aptidão, porque um dos
princípios de base em matéria de meditação é que a
prática tem um impacte directo no período pós-me-
ditativo - por exemplo, no nosso comportamento e
nas nossas relações com os outros.
O ANTÍDOTO PARA O ÓDIO É A MEDITAÇÃO SOBRE O
amor. Para vencer o apego ao mundo e às coisas
do mundo, nós temos de trabalhar os skandhas,
ou «agregados». Para contrariar a ignorância, de-
vemos concentrar-nos no movimento da res-piração e na interdependência. A causa da agita-
ção do espírito é a ignorância, que nos impede de
ver a natureza verdadeira das coisas. Ora nós te-
mos a possibilidade de controlar o espírito, gra-
ças à purificação da nossa falsa percepção da reali-
dade. É isso que ensina Buda: se treinarmos o es-pírito, seremos capazes de transformar as condi-
ções nas quais agimos, falamos e pensamos.
116 • A MEDITAÇÃO A MEDITAÇÃO 117
A MEDITAÇÃO CONSTITUI UM MEIO PARA SE TREINAR E
tranformar o espírito. O mais importante para os
nossos objectivos é desenvolver a concentraçãodireccionada para a calma mental, assim como
meditar sobre a bodhicitta. Para a concentraçãoser eficaz, precisamos de nos libertar das distrac-
ções exteriores. O ideal consiste em meditar num
lugar retirado, que favoreça a serenidade física emental.
É MAIS FÁCIL MEDITAR DO QUE FAZER REALMENTE ALGO
pelos outros. E é por isso que penso, por vezes,
que meditar sobre a compaixão significa escolher
a opção passiva, quando a nossa meditação deve-ria constituir a base de toda a acção, deveria fazer
com que agarrássemos a oportunidade de realizarqualquer coisa.
MEDITAR SIGNIFICA FAMILIARIZARMO-NOS COM UM OB-jecto virtual, visando transformar o nosso espíri-
to. Se desejarmos realmente atingir esse objecti-vo, compreender apenas alguns pontos revela-se
insuficiente. Com efeito, nós podemos compreen-
der intelectualmente os benefícios de um espíritoaltruísta sem que a nossa atitude egocêntrica se
altere um milímetro. O nosso egocentrismo só de-saparecerá se essa compreensão se tornar total-
mente familiar. Ora é isto mesmo o que se enten-
de por meditação.
A MEDITAÇÃO PODE SER DE DUAS ORDENS. A MEDITA-
ção analítica utiliza a análise e a reflexão, ao pas-
so que, na meditação direccionada, o espírito se
apoia naquilo que já foi compreendido. Quando
meditamos sobre o amor e a compaixão, tenta-
mos manter e cultivar uma tal atitude no nosso
espírito pensando «que todos os seres sensíveis
possam um dia libertar-se do sofrimento». Já quan-
do meditamos sobre o vazio e a impermanência,
consideramos a impermanência ou o vazio como
o objecto da nossa meditação.
TODOS NÓS TEMOS TENDÊNCIA PARA PENSAR QUE A
hora da nossa morte não está próxima e para nos
agarrarmos à falsa crença de que ela só virá daqui
a muitos anos. E esta impressão de termos diantede nós um futuro muito longo, que se desenrolaindefinidamente, dissuade-nos de realizar um
118 A MEDITAÇÃO A MEDITAÇÃO 119
esforço espiritual sério. O único objectivo da me-ditação sobre a impermanência é o de nos enco-
rajar a empenharmo-nos activamente nas práti-cas espirituais.
QUANDO NOS SENTAMOS PARA REZAR E MEDITAR
encontramos uma certa paz de espírito, somos ca-
pazes de sentir compaixão pelo pobre e pelo ne-
cessitado e de nos mostrarmos mais tolerantes com
os nossos rivais. Graças à meditação, o espírito
acalma-se e torna-se menos agressivo. É no en-
tanto verdadeiramente difícil manter esse estado
de espírito positivo, quando somos confrontados
com as circunstâncias da verdadeira vida. A me-
ditação é um treino, graças ao qual criamos as
condições que nos permitem enfrentar o mundo
real. Mas, se não efectuarmos uma fusão harmo-
niosa entre as fases de meditação e os períodos de
pós-meditação, esse nosso esforço espiritual pode
revelar-se totalmente vão. Com efeito, nós pode-
mos ser amáveis e compassivos durante a nossa
meditação, mas, se alguém nos perseguir e insul-
tar, corremos o risco de nos zangarmos, de nos
tornarmos agressivos e de chegar mesmo ao pon-to de ripostar. Ora, se isso acontecer, toda a genti-
leza, paciência e compreensão que desenvolve-
mós graças à meditação desaparecerá instantanea-mente. É de facto muito fácil ser compassivo ealtruísta quando estamos confortavelmente senta-dos na nossa cadeira, mas a eficácia da nossa prá-
tica só é verdadeiramente posta à prova quando
somos confrontados com um problema concreto.
ATRAVÉS DO PROCESSO DA MEDITAÇÃO, os INDIVÍDUOS
que procuram um renascimento feliz tomam cons-
ciência de que o corpo é «impermanente» e que
está sujeito à decadência, e isto acontece devido
aos movimentos perturbadores e às acções passa-
das, as quais têm origem na ignorância. Tudo aqui-
lo que provém da ignorância deve ser considera-
do desprezível. Aqueles que praticam e procuram
um renascimento feliz meditam principalmente
sobre a impermanência grosseira, observando que
todos nós morremos, que as flores murcham,
que as casas se tornam ruínas. Já aqueles que
procuram a paz do nirvana meditam sobre a im-
permanência subtil, observando que todos os fe-
nómenos dependem de mudanças momentâneas.
O OBJECTIVO DA MEDITAÇÃO SOBRE O SOFRIMENTO NÃO
é provocar mais inquietação, mas sim erradicar
120 A MEDITAÇÃO
as suas causas. A prática da meditação sobre o
verdadeiro caminho conduz à cessação dos sofri-
mentos e das suas causas.
NÓS MEDITAMOS SOBRE O AMOR MEDITANDO SOBRE O
dom do nosso corpo, da nossa riqueza e das nossas
qualidades positivas. Se consagrarmos os nossos
corpos, as nossas riquezas e as nossas qualidades
virtuosas aos outros, eles servirão um objectivo.
Mas se os retivermos e os conservarmos só para
nós, eles apenas gerarão confusão.
ÀS VEZES SENTIMOS QUE AS FORÇAS NEGATIVAS OU
os espíritos maléficos nos estão a perturbar e
então pedimos a alguém que efectue um ritual
capaz de os deter. Porém, o verdadeiro método
para vencer tais problemas consiste em nos em-
penharmos na prática do amor e da compaixão.
Quando descubro que certos espíritos maléfi-
cos estão activos, medito deliberadamente sobre
o amor e a compaixão em sua intenção, e sinto
que isso é de grande utilidade. A meditação
sobre o amor e a compaixão é a nossa melhor
protecção.
A MEDITAÇÃO 121
NÃO PODEMOS MUDAR O NOSSO ESPÍRITO SEM MEDI-
tação.
OS GRANDES MEDITADORES MEDITAM SEM ROSÁRIO,
observando simplesmente o seu espírito, analisan-
do os fenómenos e pensando profundamente. Esta
é de facto a via correcta, e o treino mais impor-
tante é sempre a meditação, mesmo nas Escritu-
ras que mencionam o tantra do ioga ou os iogasda divindade.
A NATUREZA DOS PENSAMENTOS E DAS EMOÇÕES
humanos é tal que quanto mais nos implicamos
neles, mais potentes se tornam. Assim sendo, nós
devemos desenvolver conscienciosamente os sen-
timentos de amor e de compaixão a fim de os tor-nar mais fortes, bem como cultivar hábitos posi-
tivos através da meditação.
EXISTEM MUITOS TIPOS DE MEDITAÇÃO NO BUDISMO, E
um deles tem por objectivo purificar-nos das emo-
ções perturbadoras. Do ponto de vista budista, pó-
122 • A MEDITAÇÃO
demos dizer que no decurso das nossas vidas pas-sadas mais recentes nos deixámos arrastar pelasemoções perturbadoras, predominando na vidaactual uma delas em particular, por exemplo, odesejo, o ódio, a confusão mental, o orgulho ou ainstabilidade. O problema pode ser resolvido me-ditando-se sobre um objecto capaz de eliminaressa emoção perturbadora predominante.
CHEGOU o MOMENTO DE EXTRAIRMOS A ESSÊNCIA DAvida. Para tal, devemos olhar na direcção dos se-res iluminados, das linhagens de transmissão es-pirituais e da comunidade dos praticantes realiza-dos, bem como consagrar-nos aos ensinamentos.Isto não quer dizer que hoje somos seres ordiná-rios e que amanhã seremos capazes de seguir todas asinstruções, mas sim que estudaremos e contem-plaremos os ensinamentos, lenta e meticulo-samente, e que em seguida trabalharemos de umaforma empenhada a fim de controlar os diferentesníveis de meditação.
A NÃO-VIOLÊNCIA
CALMA
EXISTEM QUATRO ANTÍDOTOS CONTRA A PREGUIÇA: Afé, a intenção, o esforço e a maleabilidade.
124 A NÃO VIOLÊNCIA
Eis o que nós sentimos quando nos encami-nhamos para a calma mental.
A primeira etapa é a «fixação do espírito», a
qual consiste em orientar o espírito na direcção
do objecto da meditação.A segunda etapa é a «fixação contínua», que é
atingida quando conseguimos fixar o nosso pen-
samento no objecto de uma forma contínua.
A terceira etapa é a «refixação»: tomando cons-
ciência de que o espírito se dispersa e fixando de
novo o pensamento no objecto, conseguimospermanecer concentrados neste dois terços do
tempo.A quarta etapa é a a «fixação rigorosa», que é
atingida quando conseguimos utilizar ao máximo
os antídotos contra o desleixo e a excitação.
Após termos atacado e vencido a preguiça insi-
diosa e a excitação, atinge-se a quinta («discipli-
na do espírito»), a sexta («pacificação»), a sétima
(«pacificação total»), a oitava («unicidade de vi-
são») e, enfim, a nona etapa («realização do equi-
líbrio»).
DESENVOLVER A CALMA MENTAL SIGNIFICA CONCEDER-
mos a nós próprios a possibilidade de adquirir
qualidades de espírito sólidas e positivas - a fé,
A NÃO VIOLÊNCIA
por exemplo. O facto de estabilizarmos o nossoespírito no decurso da meditação reforça a nossafé e, graças a isso, podemos compreender e des-
crever o seu verdadeiro conteúdo, assim como o
de outras qualidades espirituais, referindo-nos àtradição religiosa à qual pertencemos.
ESCUTA
É ATRAVÉS DA ESCUTA QUE O NOSSO ESPÍRITO PODE ATIN-
gir a fé e a devoção, e é graças a ela que consegui-
mos desenvolver a alegria e a sabedoria, atingir o
equilíbrio e afastar a ignorância. Assim sendo, vale
a pena implicarmo-nos na escuta, mesmo que isso
nos custe a vida. A escuta assemelha-se à luz de
uma tocha expulsando a obscuridade da ignorân-
cia. Se formos capazes de enriquecer permanente-
mente a nossa mente através da escuta, ninguém
nos poderá roubar essa riqueza, que é indubitavel-mente a riqueza suprema.
GENTILEZA
NÓS DEPENDEMOS DA ATENÇÃO E DA GENTILEZA DOS
nossos pais desde o primeiro instante do nosso
125
126 A NÃO VIOLÊNCIA
nascimento e, numa fase posterior da nossa vida
quando nos tornamos velhos e doentes, continua-mos a depender da gentileza dos outros. Nós de-
pendemos da gentileza dos outros do princípio aofim da nossa vida, por conseguinte. E assim sen-
do, como podemos nós não manifestar gentilezaem relação aos outros entre esses dois momentos?
A ESSÊNCIA DO BUDISMO É A GENTILEZA, A COMPAI-
xão. A gentileza é a essência de todas as religiões,
mas particularmente do Budismo Mahayana. To-
das as pessoas podem praticar a gentileza, mesmo
que não tenham uma fé muito profunda. Na sua
qualidade de ser humano, não há indivíduo que
não aprecie a gentileza. Nós crescemos rodeados
pela gentileza dos nossos pais, e sem ela não pode-
ríamos existir. Para nos convencermos disso bas'
ta observar a evolução psicológica das crianças
que foram educadas sem o amor dos seus pais, ou
que tiveram de viver perturbações familiares.
A FELICIDADE PROVÉM DA GENTILEZA, NÃO DO ÓDIO
ou da cólera. Ninguém pode dizer: «Hoje estou
feliz porque comecei o dia zangado.» Bem pelocontrário, o facto de nos encolerizarmos deixa-
A NÃO VIOLÊNCIA •
pouco à vontade e tristes. Através da genti-
leza, da compreensão e do respeito podemos atin-gir uma autêntica satisfação, seja ao nosso pró-prio nível, seja à escala do planeta. É muito difícil
atingir a paz e a harmonia através da competiçãoe do ódio, e é por isso que a prática da gentileza é
primordial na sociedade humana.
A GENTILEZA NÃO SE DEVE LIMITAR AOS NOSSOS AMI-
gos e parentes, mas abranger todos os seres sensí-
veis. Mesmo quando não foram nossos parentes,
todos os seres sensíveis são benéficos, directa ou
indirectamente, pois é graças à sua gentileza que
temos comida, roupa, casa e tudo aquilo que apreciamosnesta vida. E até o nosso nascimento é fruto da genti-
leza dos nossos pais.
127
NÃO-VIOLENCIA
jf
E DIFÍCIL DETERMINAR SE UMA ACÇÃO É VIOLENTA OU
não-violenta baseando-nos numa acção exterior, já
que isso depende fundamentalmente do que motiva
a acção. Se a motivação for negativa, a acção será
violenta, mesmo que assuma uma aparência doce e
simpática. Pelo contrário, as acções e as palavras
128 A NÃO VIOLÊNCIA A NÃO VIOLÊNCIA 129
severas, mas que resultam de uma motivação since-ra e positiva, são essencialmente iião-violentas. Poroutras palavras, a violência é um poder destrutivoao passo que a não-violência é construtiva.
SE O HOMEM FOSSE AGRESSIVO POR NATUREZA TERIA
nascido com garras e dentes bem afiados - ora
as nossas unhas e dentes são perfeitamenteinofensivos e, além disso, temos uma boca mui-
to pequena. Por outras palavras, nós não estamos
«equipados» para ser agressivos, o que significa
que a natureza profunda dos seres humanos não
pode ser senão a gentileza.
AHIMSA, ou A NÃO-VIOLÊNCIA, É UMA IDEIA PODEROSA
que se tornou conhecida em todo o mundo gra-
ças a Mahatma Ghandi. A não-violência é positi-
va e forte, e a sua verdadeira expressão é a compai-xão. Certas pessoas consideram a compaixão
como uma resposta emotiva e passiva, não como
um estimulante concreto para a acção. Experi-mentar a verdadeira compaixão consiste em de-
senvolver uma sensação de proximidade com osoutros, combinada com um sentimento de res-
ponsabilidade em relação ao seu bem-estar.
A NÃO-VIOLÊNCIA NÃO É APENAS A AUSÊNCIA DE VIO-
lência, é sim abstermo-nos de fazer o mal quandotemos essa oportunidade. A não-violência é como
que o reflexo da expressão do amor humano e da
compaixão humana.
PENSO QUE É MUITO IMPORTANTE CONHECER DOIS NÍ-
veis de espiritualidade, uma espiritualidade ba-
seada na fé religiosa e uma espiritualidade sem fé
religiosa, mas que nos ensina a sermos pessoas
afectuosas. Temos de nos empenhar em sermos
pessoas calorosas e não-violentas. A partir do mo-
mento em que desenvolvemos a atitude mental
da compaixão, a não-violência surge automati-
camente. A não-violência não resulta de palavras
discretas, mas sim de uma acção concreta ou de
actos de compaixão. Quando a compaixão está
presente, a acção não-violenta aparece. Mas
quando o ódio se substitui à compaixão, é quase
sempre a violência que se impõe.
SER NÃO-VIOLENTO SIGNIFICA ESTAR AO SERVIÇO DOS
seus semelhantes. Faz parte da natureza dos seres
130 A NÃO VIOLÊNCIA
humanos desejar a liberdade, a igualdade e a digni-dade. Se nós reconhecemos aos outros um direitoà paz e à felicidade igual ao nosso, não teremos aresponsabilidade de ajudar aqueles que necessi-tam de apoio?
A NÃO-VIOLÊNCIA PASSA PELO DIÁLOGO, PELA UTILIZA-
cão da nossa linguagem, a língua humana. Diálo-go significa compromisso, ou seja, respeito pelospontos de vista e pelos direitos dos outros. Noespírito de reconciliação encontra-se uma verda-deira solução para todos os conflitos ou desacor-dos. Ninguém é sempre vencedor ou perdedor a100%, devendo a verdade situar-se à volta dos 50-50. Hoje em dia, o mundo torna-se cada vez maispequeno, e raciocinar em termos de «nós» e «eles»está ultrapassado.
É O NOSSO INIMIGO QUE NOS ENSINA VERDADEIRAMENTE
a praticar as virtudes da compaixão e da tolerân-cia.
A NÃO-VIOLÊNCIA NÃO SIGNIFICA APENAS NÃO FAZER
mal aos outros, já que na realidade se trata de umacto de compaixão.
A NÃO VIOLÊNCIA 131
PACIÊNCIA
DAR PROVAS DE PACIÊNCIA E DE TOLERÂNCIA EM RELA-
ção a uma pessoa que nos fez mal sem razão não
significa que temos de suportar esse mal, ou que
devemos legitimar os actos dessa pessoa. É im-
portante compreender que ser-se paciente não
significa «ceder» ou dar provas de fraqueza; a pa-
ciência é sobretudo uma posição deliberada que
adoptamos, decidindo não nos vingar de uma pés-s
soa maldosa. E pois um estado de espírito activo
que, em certos casos, pode implicar fortes «con-
tra-medidas». No entanto, mesmo estas medidas
devem ser concretizadas a partir da paciência e
da tolerância.
PARA A NOSSA PACIÊNCIA SE DESENVOLVER É PRECISO
que alguém nos fira voluntariamente, pois só as-
sim temos oportunidade de praticar a tolerância.
Tais pessoas testam a nossa força interior de uma
maneira que mesmo o nosso guru é incapaz de
fazer. Fundamentalmente, a paciência permite que
não desencorajemos.
132 A NÃO VIOLÊNCIA
MUITAS PESSOAS ACREDITAM QUE SER-SE PACIENTE Éum sinal de fraqueza, mas na minha opinião elasestão redondamente enganadas. A cólera, sim, éum sinal de fraqueza, enquanto a paciência é umsinal de força.
EXISTEM DIVERSOS TIPOS DE PACIÊNCIA: A PACIÊNCIA DEse ser indiferente ao mal infligido pelos outros, apaciência de se aceitar voluntariamente uma pro-vação e a paciência desenvolvida através de umaconvicção cujas raízes se encontram no dharma.
UMA PESSOA QUE SE MOSTRA EM TODAS AS CIRCUNS-
tâncias paciente e tolerante goza de uma certatranquilidade. Além de ser feliz e mais equilibra-da emocionalmente, essa pessoa é saudável, donade uma vontade forte e de um bom apetite, e oseu sono é tranquilo.
A PACIÊNCIA PROTEGE-NOS IMPEDINDO-NOS DE FICAR
desanimados quando os outros nos fazem mal, eprotege-nos também das situações nas quais a
A NÃO VIOLÊNCIA •
nossa cólera poderia destruir o conjunto das nos-sas virtudes. A paciência é como uma jóia quetodos admiram, mas é igualmente uma armaduraque nos protege da nossa própria cólera e de todoo mal causado pelos outros.
133
PRATICAR A PACIÊNCIA É A MANEIRA MAIS EFICAZ DEpreservar a paz de espírito.
A ILUMINAÇÃO
ILUMINAÇÃO
O ESPÍRITO DE ILUMINAÇÃO É A INTENÇÃO DE SE ATIN-
gir o «estado de buda», tendo em vista a liberta-ção de todos os seres da infelicidade. Porém, pensarnesse espírito, rezar ou compreendê-lo intelec-tualmente não é suficiente para o desenvolver,
136 • A ILUMINAÇÃO
assim como é impossível cultivá-lo recebendo bên-çãos. Temos de compreender, antes de tudo o maiso que ele nos dá. E temos de o desejar ardente-mente, senti-lo como uma necessidade premen-te, desenvolvendo-o em seguida através da medi-tação e de uma longa habituação.
O DESEJO DE OBTER A ILUMINAÇÃO COM O OBJECTIVO
de sermos o mais benevolentes possível para o
mundo deve ser cultivado e acarinhado até im-pregnar espontaneamente cada uma das nossasactividades, desde o sono à meditação.
DADO QUE TODOS NÓS ATINGIMOS UM CERTO GRAU
DE pureza e de conhecimento, poder-se-ia dizer
que somos todos Budas de diferentes dimensões.
É verdade que o Buda existente em nós é ainda
muito pequeno comparado com o de um ser com-pletamente iluminado, mas atingir totalmente o
«estado de buda» não está fora do nosso alcance.
Podemos eliminar a imperfeição do nosso espíri-to e, graças a um treino correcto, gerar as diver-
sas qualidades da realização, bastando para issoque certas condições estejam reunidas. O nosso
espírito é ainda imperfeito, decerto, mas, se nos
A ILUMINAÇÃO 137
esforçarmos intensamente para desenvolver o
nosso controlo nas diversas meditações, que per-
mitem contrariar esses traços imperfeitos, conse-guiremos sem qualquer dúvida vencê-los.
CULTIVAR o ESPÍRITO DE ILUMINAÇÃO É A VIA QUE PER-
mite realizar as nossas próprias aspirações e as dos
outros. Assim sendo, como poderíamos nós re-nunciar a ele?
FOI-NOS CONCEDIDA A OPORTUNIDADE DE POSSUIR UM
corpo e um espírito, assim como a possibilidade
de encontrar os profundos conhecimentos do
Grande Caminho e, portanto, devemos empe-
nhar-nos na prática de métodos espirituais. Se nós
não praticarmos agora, quando temos uma en-
carnação particularmente apropriada para atin-
gir a iluminação, que esperança poderemos ter de
progredir no futuro?
LIBERTAÇÃO
O DESEJO DE CONTRIBUIR PARA O BEM-ESTAR DOS OU-
tros pode, naturalmente, traduzir uma vontade de
138 • A ILUMINAÇÃO
aliviar as suas dores e os seus sofrimentos físicosimediatos, mas de modo algum se reduz a isso, sig-nificando igualmente uma vontade de ajudar osoutros a atingirem a libertação. E, nesse sentido, te-mos de começar por entender o que significa exac-tamente «libertação». A libertação relaciona-secom a compreensão do vazio, porque o nirvana,tal como os ensinamentos budistas o definem, deveser compreendido na sua qualidade de vazio. Assim,segundo o Budismo, sem compreensão do vazio nãoé realmente possível compreender o que é a verda-deira libertação. E, sem essa compreensão, o desejode atingir a libertação nunca se poderá realizar.
NIRVANA
O QUE É O NIRVANA, ESSE ESTADO DE PROFUNDA PAZ?
Apesar de não desejarmos sofrer, nós experimen-tamos o sofrimento, porque os nossos espíritos sãodominados por emoções alienantes e porque estaindisciplina faz com que acumulemos acções ne-gativas. A indisciplina do espírito é, pois, a causado sofrimento. Assim sendo, se conseguirmos eli-minar as causas que estão na origem das emoçõesperturbadoras, atingiremos o estado de cessação dosofrimento, esse estado de felicidade autêntica e
duradoura denominado nirvana ou libertação.
A ILUMINAÇÃO
SERENIDADE
QUANDO SENTIMOS UMA DOR, DEVEMOS TENTAR DEFI-
nir o que é que podemos fazer para a acalmar. Se
formos bem-sucedidos, não há razão para nos sen-
tirmos inquietos; e se nada pudermos fazer, a in-
quietação também não se justifica.
VERDADE
EU FALO-VOS E VOCÊS OUVEM-ME, E A IMPRESSÃO QUE
temos é a de que existe um orador, uma audiência
e os sons das palavras que pronuncio. Na realida-
de, porém, se eu procurar em mim mesmo não
encontrarei quaisquer palavras, assim como vocês
não as encontrarão se as procurarem, dado que
as palavras são tão vazias quanto o vazio do espa-
ço. Elas não são completamente inexistentes, no
entanto, e têm forçosamente de existir, pois so-
rnos capazes de as perceber. O que eu digo é escuta-do pelas pessoas que me escutam e fá-las reflectir.
As minhas palavras visam um efeito, por conse-guinte, mas se as procurarmos não as poderemos
encontrar. Trata-se de um verdadeiro mistério, que
139
140 • A ILUMINAÇÃO
está relacionado com a natureza «dupla» da verdade.
No BUDISMO, NÓS CONSIDERAMOS A VERDADE RELA-tiva e a verdade absoluta. Do ponto de vista da
verdade absoluta, aquilo que sentimos e expe-
rimentamos na nossa vida quotidiana não passa
de uma ilusão. De todas as formas de ilusões, a
discriminação entre nós próprios e os outros é a
mais negativa, pois ela apenas provoca problemas
para as duas partes. O facto de compreendermos
a verdade última e de meditarmos sobre ela purifi-
ca os nossos pensamentos negativos, conseguin-
do dessa forma destruir o sentido da discrimina-
ção, o que nos ajuda a desenvolver um amor
verdadeiro pelo próximo. A procura da verdade
última é, por consequência, de uma importânciavital.
A PRIMEIRA NOBRE VERDADE AFIRMA A VERDADE DO
sofrimento, o facto de que a nossa felicidade se
afasta constantemente de nós. Tudo aquilo que
possuímos está submetido à impermanência, e
nada do que pensamos como sendo real é perma-
nente. A ignorância, o apego e a cólera são as
A ILUMINAÇÃO •
causas do nosso sofrimento. Assim, a Segunda No-
bre Verdade consiste em compreender a causa
desse sofrimento. Quando conseguimos eliminar
a raiz do sofrimento (as ilusões), atingimos um
estado de cessação do sofrimento, e essa é a Tercei-
ra Nobre Verdade, ou nirvana. A Quarta Nobre
Verdade afirma que existe um caminho que con-
duz à cessação do sofrimento, caminho esse que
temos forçosamente de seguir se quisermos que o
nosso próprio espírito atinja esse estado.
141
A VERDADE «CONVENCIONAL» ENGLOBA TODOS OS FE-
nómenos que não podem conservar a sua identida-
de depois de desintegrados. E fala-se em «verdade
última» quando o fenómeno mantém a sua identi-
dade mesmo depois de ter sido separado mentalmen-
te em várias partes ou desagregado fisicamente.
A VERDADE CONVENCIONAL NÃO PODE FUNCIONAR SEM
restrições, contrariamente à verdade última. Por
exemplo, uma flor é a verdade última segundo este
sistema, já que uma flor é ela própria produzida
por causas e condições e pode igualmente produ-
zir esse efeito.
142 A ILUMINAÇÃO
VAZIO
DAS QUATRO NOÇÕES BUDISTAS FUNDAMENTAIS (AS OU-
trás três são a impermanência, a interdependênciae o sofrimento), o vazio, sunyata, é certamente a mais
misteriosa e a mais difícil de compreender. Em que
consiste esse imenso edifício de experiência e de pen-
samento que, em definitivo, conduz a uma ausência
de substância? E qual é o fundamento desse edifício
e do espírito que o construiu? Se o vazio for a única
realidade não ilusória, capaz de escapar à rede da
maya (força da ilusão) omnipresente, então quem
lançou tal rede? Poderemos nós viver sobre um va-
zio vertiginoso? Será possível imaginar um sonho
sem sonhador? O vazio é uma noção científica.
E nós somos vazios, já que a matéria que nos forma
é, por assim dizer, vazia.
A DOUTRINA DO VAZIO NÃO AFIRMA OU NÃO IMPLICA
a não-existência de todas as coisas e também não
se reduz à tese de que as coisas não podem ser
encontradas quando procuramos a sua essência.O significado do vazio reside na natureza inter-
dependente da realidade.
A ILUMINAÇÃO 143
O VERDADEIRO SIGNIFICADO DO VAZIO EMERGE DA
compreensão do princípio de «criação depen-
dente». Este último afirma que os fenómenos,
na medida em que são criações dependentes
(porque derivam de relações interdependentes
das causas e das condições), são vazios. Eles são
por essência inerentes e interdependentes. Uma
percepção deste ponto de vista reside na com-
preensão do verdadeiro Caminho do Meio. Dito
de outro modo: quando compreendemos a cria-
ção dependente compreendemos igualmente
que não apenas a existência dos fenómenos mas
também a sua identidade dependem de outros
factores.
Assim, a criação dependente pode afastar o
absolutismo e o niilismo, porque a ideia de «de-
pendência» designa uma forma de existência que
exclui a independência ou o absoluto, e que con-
sequentemente liberta o indivíduo destes dois
extremos. Além disso, e dado que a «criação» está
voltada para uma compreensão da existência pelo
facto de as coisas existirem, ela não permite que
o indivíduo caia no niilismo.
144 A ILUMINAÇÃO
NENHUMA CRENÇA ou PRÁTICA QUE NEGA A DOUTRI-
na do vazio consegue explicar o que quer que sejade uma forma coerente. Já as crenças ou pensa-
mentos que aceitam esse princípio de «criação
interdependente», essa doutrina do vazio, são capa-
zes de explicar a realidade com alguma coerência.
EM VEZ DE APREENDER OS FENÓMENOS COMO SENDO
vazios, nós consideramo-los como palpáveis e re-
ais. Podemos, no entanto, graças ao estudo e à
prática, compreender que a verdadeira natureza
das coisas é o vazio, tomando dessa forma cons-
ciência do facto de que as nossas percepções esta-
vam erradas. Além disso, foi precisamente essa
ignorância que originou o desejo e o ódio. Por
outras palavras, a ignorância é a verdadeira raiz
do samsara.
POR QUE É QUE NÓS TEMOS NECESSIDADE DE TOMAR
consciência do vazio? Nós não desejamos sofrer e
sabemos que a causa do sofrimento é o espírito
incontrolado, que, ao percepcionar e compreen-
der as coisas de uma forma errada, faz com que
A ILUMINAÇÃO •
surjam as emoções negativas, as quais o impossibi-s
Htam de atingir a paz. E essa a causa do nosso
sofrimento e, se o queremos evitar, temos dedesenvolver a inteligência que compreende averdadeira natureza dos fenómenos. A falsa per-
cepção surge porque nós não conseguimos ver ascoisas tal e qual elas são.
145
PARA TOMARMOS CONSCIÊNCIA DA PERCEPÇÃO NÃO
conceptual do vazio profundo, temos em primei-
ro lugar de nos familiarizar com esta ideia, desen-
volvendo depois uma compreensão intelectual
dela. É então, quando o vazio do objecto aparece
claramente na meditação, que o vazio se torna
uma realização não conceptual. A consciência ini-
cial do vazio depende de uma reflexão correcta, a
qual constitui a base para o desenvolvimento da
sabedoria. Em última análise, esta sabedoria ba-
sear-se-á numa verdadeira percepção do vazio,
numa experiência válida que nós mesmos, comoos outros, tivermos realmente tido.
O FACTO DE NOS FAMILIARIZARMOS CADA VEZ MAIS
com a visão subtil e profunda do vazio, através do
estudo e da reflexão, faz com que esta «visão» se
146 • A ILUMINAÇÃO
transforme progressivamente em sabedoria. Umasabedoria que resulta da meditação e que alia a«concentração calma» (shamatha) e a «visão su-
perior» (vipashyana), e graças à qual podemos
compreender conceptualmente o significado do
vazio.
O VAZIO SIGNIFICA QUE NENHUM FENÓMENO PODE TER
uma existência própria. Se compreendermos isto,
seremos capazes de compreender a natureza ilusó-
ria de todos os fenómenos.
NÓS UTILIZAMOS PERMANENTEMENTE TERMOS TAIS
como «passado», «presente» e «futuro». Porém,
o passado é, de algum modo, simplesmente memó-
ria e o futuro nada mais é do que o nosso pensa-
mento, já que não passa de um projecto ou de
uma ideia. Só o presente é real. E nem o dia, ou ahora, ou o minuto, ou o segundo, ou uma parte
desse segundo, são o presente. O passado foi-se
embora, o futuro está sempre por vir e não existe
qualquer «presente». Ora, sem a existência de um
presente, nós não podemos identificar um passa-
do e um futuro, apenas podemos constatar que otempo não pára e que continua incessantemente
A ILUMINAÇÃO •
o seu caminho. Disto resulta uma grande confu-
são. Não existe nenhum passado e nenhum futu-
ro - unicamente o presente. No entanto, se nãoexistir nenhum passado nem nenhum futuro tam-
bém não pode existir nenhum presente, já que o
presente depende inteiramente do passado e o
futuro depende inteiramente do presente. Trata-
-se, de facto, de uma lei natural. E não existe qual-
quer outra alternativa ao tempo. Não há dúvida
de que, quando nós dizemos «o tempo», o tempo
existe. Porém, e dado que não podemos ter a per-
cepção abstracta do tempo, ele não pode servir
de referência para o etiquetarmos. E, se investi-
garmos nesse sentido, encontraremos apenas algoque é «vazio».
Contudo, esse vazio não é o nada, significan-
do apenas que não existem entidades ou identida-
des que possamos classificar de independentes,
visto todas as coisas serem interdependentes e que
quando investigamos a natureza última de cada
coisa apenas encontramos uma ausência de exis-
tência independente. E é isto o que nós entende-mos por «vazio».
Tudo o que aparece em relação interdepen-dente é vacuidade. (Nagarjuna.)
147
A MORTE E ORENASCIMENTO
FUTURO
«O AMANHÃ OU UMA PRÓXIMA VIDA, NUNCA SE SABE
o que chega primeiro.» Adágio popular.
IMPERMANENCIA
TODOS OS FENÓMENOS CONDICIONADOS SÃO EFÉMEROS
por natureza e, mal ocorrem, desaparecem. Esta
150 • A MORTE E O RENASCIMENTO
fugacidade resulta apenas da própria causa, semimplicação de mais nenhum outro factor. Tudo
aquilo que é composto por partes ou determina-do por causas e condições é impermanente e pas-
sageiro, e não há nada que permaneça imutável
até à eternidade, pois tudo está em permanentedesintegração. Esta forma de impermanência sub-
til é plenamente confirmada pelas investigações
científicas.
KARMA
SE A EVOLUÇÃO DA ESPÉCIE HUMANA FOSSE APENAS
uma questão de meio ambiente e de modificação
dos genes, dos cromossomas, etc., então não have-
ria qualquer lugar para o karma, que simplesmente
não seria tomado em consideração pelos compo-
nentes físicos dos seres humanos. Contudo, as
células evoluem até se tornarem cada vez mais
complexas e atingirem mais tarde o estádio de
seres humanos. Existem muitas opções, alguns se-
tenta triliões, para o desenvolvimento do ser hu-
mano a partir dos genes parentais. Apenas uma
delas vinga, mas, seja ela qual for, a questão perma-nece: porquê? O karma está directamente relacio-
nado com esta questão.
A MORTE E O RENASCIMENTO
UM DOS POSTULADOS DA TEORIA KÁRMICA É O DE QUE
existe uma relação definida e proporcional entre
a causa e o efeito, e que não há qualquer possibi-lidade de as acções negativas ou os actos maldo-
sos conduzirem à alegria e à felicidade, dado que
estas resultam, por definição, de acções positivas.
Por conseguinte, deste ponto de vista podemos
admirar, mais do que a acção imediata, as verda-deiras causas da alegria.
EM GERAL, QUANDO SE FALA DE KARMA, SOBRETUDO NO
que se refere ao karma negativo e ao karma positi-
vo, é sempre em relação directa com uma certa for-
ma de acção. Isto não quer dizer, no entanto, que
existam acções neutras ou um karma neutro, que
poderia ser considerado um karma da inactividade.
TUDO DEPENDE DA ATITUDE DE CADA UM DE NÓS. Os
seres humanos têm a capacidade de contribuir
para aliviar o sofrimento dos outros, e o facto de
uma pessoa se mostrar totalmente indiferente aobem-estar de uma outra só pode ter para ela con-sequências kármicas negativas.
151
152 A MORTE E O RENASCIMENTO A MORTE E O RENASCIMENTO 153
SEGUNDO o BUDISMO, o QUE DETERMINA VERDADEI-
ramente o nascimento é o karma, as acções que
praticámos durante a vida, sendo que o estado de
espírito no momento da morte desempenha um
papel crucial. Aqueles para quem o Budismo é
familiar saberão já que a doutrina principal ensi-
nada pelo Buda se denomina «as Doze Relações
na Cadeia da Criação Independente». A segunda
relação na cadeia é o karma. No entanto, só a
presença do karma não é suficiente para condu-
zir a um renascimento, e por consequência são
necessários os factores de condicionamento
circunstanciais, tais como as emoções pertur-
badoras e os acontecimentos cognitivos, que cons-
tituem a oitava e nona relações, o apego e a tena-
cidade. Portanto, quando é activada pela força da
oitava e da nona relação, a marca kármica atinge
a maturidade e torna-se a décima relação, a rela-
ção do devir. Assim, a natureza do renascimento
de cada um de nós depende fundamentalmente
das marcas kármicas e do potencial do ser indivi-
dual, acumulados não apenas durante a vida pre-
sente, mas também durante as nossas vidas ante-
riores.
A NATUREZA DO NOSSO RENASCIMENTO É DETERMINA-
da pela nossa «potencialidade kármica» ou «se-
mente kármica» mais forte. Se o indivíduo pos-suir várias forças iguais no que se refere a marcas
kármicas, concretizar-se-á a acção kármica que
se encontra mais próxima da vida presente. E seainda existirem muitas marcas kármicas de uma
natureza similar, deverá concretizar-se e determi-
nar o renascimento seguinte a acção kármica com
a qual o indivíduo está mais familiarizado.
SE NÃO FOR POSSÍVEL EVITAR A MORTE DE ALGUÉM,
apesar de existirem todos os meios de prevenção
possíveis, tal morte ocorre por razões kármicas.
Em geral, considera-se que esse tipo de experiên-
cia de morte tem uma causa kármica. Além dis-
so, mesmo no caso de morte súbita, cujas condi-
ções podem ser entendidas como exteriores, o
karma desempenha um papel. Quando se con-
segue, por exemplo, prolongar a vida de alguém,
o facto de isso ser possível, em si mesmo, ou o
facto de existirem condições suficientes para talacontecer, é de alguma forma uma consequên-cia do karma.
154 A MORTE E O RENASCIMENTO
NÓS DEVERÍAMOS EVITAR TODAS AS ACÇÕES NEGATIVAS,
mesmo as mais ínfimas, e concentrarmo-nos nasacções positivas, por menores que sejam e semnunca substimar o seu valor, uma vez que são asnossas acções que determinam a felicidade e o so-frimento. Tudo aquilo que nós sentimos é, e foisempre, programado pelas nossas acções, as quaisdependem da nossa atitude. O que fazemos e pen-samos na nossa juventude provoca felicidade ousofrimento na nossa velhice, e o que fazemos nes-ta vida determina a felicidade e o sofrimento davida seguinte. As acções deste kalpa conduzirãoàs experiências dos kalpas futuros, e é isso o queentendemos por lei do karma, a lei de causa e
efeito.
TODA A ACÇÃO PROVOCA OBRIGATORIAMENTE RESULTA-dos. Isto significa que sentimos sempre os resul-tados das nossas acções, positivos se elas forempositivas e negativos no caso contrário. Estas ac-ções não só nos seguirão como a sombra de umpássaro que voa no céu, como aumentarão e semultiplicarão. Uma acção positiva ou negativa,mesmo que mínima, pode produzir um resultado
A MORTE E O RENASCIMENTO •
desmesurado, e portanto não devemos pensarque uma determinada acção maldosa é insigni-ficante e que não terá para nós consequênciasnegativas no futuro. Por maior que seja um reci-piente, ele está cheio de gotas de água; do mes-mo modo, as pequenas acções negativas podemrevelar-se muito prejudiciais. Depois de a acção
ter sido realizada, os seus efeitos jamais desapa-
recerão e nós temos de assumir as suas conse-quências para sempre.
155
NÓS SOMOS IMPELIDOS NESTE CICLO DE SOFRIMENTO PE-
las nossas ilusões e pelas acções que elas provo-cam, e passamos a nossa vida a suportar toda a
espécie de altos e baixos, mergulhados num esta-
do de perturbação e de confusão, em virtude das
relações de causa a efeito entre as nossas acções ea nossa experiência. Atingir o nirvana, ou a liber-
tação, significa tornarmo-nos totalmente livres do
peso das acções passadas e da escravatura do dese-
jo, do ódio e da ignorância. Quando somos capa-zes de eliminar as ilusões e o karma, atingindo a
pureza natural do espírito, instala-se uma paz infi-nita e libertamo-nos totalmente do ciclo do sofri-mento.
156 A MORTE E O RENASCIMENTO
O DESENVOLVIMENTO DE UMA PROFUNDA CONVIC-
ção na lei da causa e efeito permite-nos com-
preender as causas e as condições dos nossos
próprios sofrimentos. A nossa felicidade ou a
nossa infelicidade presente não é mais do que
o resultado de acções anteriores, e a evidência
dos sofrimentos é tal que basta a nossa expe-
riência para testemunhar a sua existência. De-
vemos pois compreender que, se desejarmos
evitar o sofrimento, temos de trabalhar desde
já a fim de desenraizar as suas causas. Através
da compreensão do sofrimento e das suas ori-
gens, entrevemos a possibilidade de eliminar a
ignorância, que é a raiz principal do sofrimen-
to, e podemos conceber um estado de cessação,
uma eliminação total dessa ignorância e das ilu-
sões que ela provoca. Quando compreendemos
perfeitamente esse estado de cessação, temos a
possibilidade de desenvolver um desejo real e
espontâneo de o atingir. A nossa compreensão
deveria ser profunda ao ponto de conseguir pôr
em causa a nossa existência inteira, animan-
do-nos com o desejo ardente de atingir esse ob-
jectivo.
A MORTE E O RENASCIMENTO 157
SE FIZERMOS O BEM, CONHECEREMOS A FELICIDADE; SE
fizermos o mal, sofreremos. As nossas acções
kármicas seguem-nos vida após vida, o que expli-
ca por que razão continuam prósperas certas pes-
soas que tiram constantemente prazer de tudo
aquilo que é negativo, ao passo que outras, empe-
nhadas numa prática espiritual, encontram difi-culdades inumeráveis. As acções kármicas foram
realizadas durante um número infinito de vidas,
existindo portanto um número infinito de po-
tencialidades para um número infinito de conse-quências.
As PEQUENAS SEMENTES TÊM A CAPACIDADE DE FAZER
nascer grandes frutos. O mesmo se passa com a
causa profunda e o seu efeito, já que uma peque-
na acção pode ter consequências muito impor-tantes, seja ela positiva ou negativa.
NA COMUNIDADE HUMANA EXISTEM INÚMERAS
diferenças, havendo pessoas que são sempre prós-
peras e outras que nunca conhecem um tal esta-
do, ou as que são infelizes e as que têm uma vida
158 - A MORTE E O RENASCIMENTO
harmoniosa e são donas de uma verdadeira tran-quilidade de espírito. Tudo isto testemunha o facto
de que o nosso destino não está nas nossas mãos.Segundo a filosofia budista, o que determina o
nosso destino são as acções que cometemos tanto
na vida precedente como nesta vida. Quando anossa capacidade, o nosso potencial, amadureceu,
podemos estar certos de que o esforço nos conduzi-
rá ao sucesso, mesmo que tenhamos de enfrentar
circunstâncias difíceis.
A MORTE E O RENASCIMENTO 159
O PESO DO KARMA DEPENDE TAMBÉM DA PESSOA QUE
realiza a acção. Se, com o objectivo de alcançar a
«clara visão», consagrarmos a nossa energia e osnossos esforços ao bem-estar dos outros seres
sensíveis, seremos ainda mais eficazes; porém, se
consagrarmos os nossos esforços a objectivos me-nores, a sua eficácia será menor. Isto aplica-se
igualmente a uma acção negativa: quanto mais
forte for a motivação das ilusões, mais forte será
a acção kármica. E, destas ilusões, a cólera é consi-
derada como a mais forte de todas.
Toda a paz e toda a felicidade provêm do
«karma branco», um karma nobre produzido pela
acumulação de acções justas. É por isso que, in-
sistimos, o único caminho a tomar, o único méto-
do a seguir, consiste na eliminação dos actos, das
palavras e dos pensamentos injustos.
KARMA QUER DIZER «ACÇÃO». Os ACONTECIMENTOS
de amanhã dependem em muito das acções de
hoje, os acontecimentos deste ano são uma con-
sequência do que se passou no ano anterior e os
acontecimentos deste século estão relacionados
com os dos séculos passados. E o facto de as ac-
ções das gerações anteriores afectarem as vidas
das gerações seguintes é igualmente uma forma
de karma. Há no entanto uma grande diferença
entre as acções da responsabilidade de um grupo
de pessoas e as realizadas por uma pessoa sozi-
nha. Nos casos individuais, as acções cometidas
na primeira parte da vida têm um efeito na suasegunda parte.
O KARMA DETERMINA O GÉNERO DE RENASCIMENTO
que um indivíduo pode ter: um bom karma origi-
na um renascimento favorável, e um karma nega-
tivo tem como consequência uma existência dês-
160 • A MORTE E O RENASCIMENTO
favorável. Temos naturalmente de compreenderque, quando falamos do karma, evocamos umexemplo do processo causal e que o karma é ape-nas uma pequena parte desse processo. Quando
falamos de karma não falamos apenas de umacto, falamos também da pessoa que realiza esse
acto. O karma é um acto que implica um agen-
te, uma existência com uma motivação, a qual
determina a causa desse processo.
DEVEMOS CONCENTRAR-NOS NOS NOSSOS INIMIGOS
e meditar no amor, na compaixão e na paciên-
cia, pois isso permite que nos purifiquemos.
O nosso inimigo fornece-nos a oportunidade de
acumular boas qualidades pela prática da pa-
ciência, mas o facto de nos prejudicar fá-lo cair
numa existência desfavorável, na qual perma-s
necerá durante muito tempo. E por causa das
nossas próprias acções negativas realizadas no
passado que um inimigo nos prejudica. Ao fazê-
-Io, porém, ele acumula actos negativos pelos
quais terá de pagar mais tarde. Nesse sentido,
somos de facto nós os responsáveis pela acumu-
lação das acções negativas do adversário e so-
mos nós que o enviamos em direcção aos renas-
cimentos desfavoráveis.
A MORTE E O RENASCIMENTO 161
MORTE
CERTAS PESSOAS, AMÁVEIS, ATRAENTES, FORTES E SAU-
dáveis, mas que apesar disso morrem jovens, sãona realidade mestres disfarçados, pois ensinam--nos a impermanência.
QUANDO CONTEMPLAMOS A MORTE E A IMPERMA-
nência da vida, os nossos espíritos interessam-se
pelas realizações espirituais, assim como uma pes-
soa vulgar se torna medrosa pelo simples facto de
ver o cadáver de um amigo. A meditação sobre a
morte interrompe a atracção pelas actividadespassageiras e sem significado.
A MORTE PODE SURPREENDER-NOS A QUALQUER MO-
mento, e nós temos medo de morrer porque não
sabemos nem o dia nem a hora em que esse
acontecimento se concretizará. Além disso, o
facto de temermos o que vem depois da morte
faz-nos ter medo de ir parar a um lugar des-
conhecido e desagradável, angustiante. Se dese-jarmos morrer «bem», temos de aprender a vi-
162 A MORTE E O RENASCIMENTO
ver «bem». A experiência da morte é de uma
extrema importância, porque a qualidade do
nosso renascimento futuro pode depender do
nosso estado de espírito nesse momento preci-
so. Trata-se mesmo de uma óptima oportuni-
dade para realizarmos um esforço particular, já
que a meditação é capaz de atingir um pico sem
igual nessa altura, como o mostra a conserva-
ção do corpo.
NÃO EXISTE QUALQUER FORMA DE ESCAPAR À MORTE,
assim como não podemos fugir quando estamos
rodeados por quatro montanhas que chegam ao
céu. Estas quatro montanhas, o nascimento, a
velhice, a doença e a morte, não nos deixam
qualquer escapatória. A velhice destrói a juven-
tude, a doença destrói a saúde, a degenerescên-
cia da vida destrói todas as qualidades excelen-
tes e a morte destrói a vida. Mesmo correndo
muito depressa, não podemos fugir da morte.
E também não a podemos deter, nem com a nos-
sa riqueza, nem com frases mágicas ou mantras
e nem mesmo com medicamentos. Prepararmo-
-nos desde já para morrer é, pois, um sinal de
sabedoria.
A MORTE E O RENASCIMENTO 163
A MORTE FAZ PARTE DAS NOSSAS VIDAS E, QUER A AME-
mos quer não, a sua ocorrência é inevitável. As-
sim sendo, em vez de evitar pensar nela, o melhor
que temos a fazer é procurar compreender o seu
significado. Lemos frequentemente nos jornaisque foram cometidos assassínios, que este ou
aquele indivíduo foi morto e, no entanto, a maio-
ria das pessoas parece pensar que a morte só atin-
ge os outros e que portanto é intocável. Trata-
-se, naturalmente, de um erro. Nós possuímos todos
o mesmo corpo e a mesma carne humana, razão
pela qual morreremos todos, sem excepção. Cla-
ro que existe uma grande diferença entre a morte
natural e a morte acidental, mas, fundamental-
mente, a morte ocorrerá mais cedo ou mais tarde.
Talvez seja mais fácil enfrentar a morte se a nossa
atitude perante ela for, desde o início, de aceita-
ção, encarando-a como fazendo parte da nossa vida.
À MEDIDA QUE A MORTE SE TORNA MAIS FAMILIAR E
que adquirimos um certo conhecimento dos seus
processos e temos capacidade de reconhecer os
seus sintomas externos e internos, preparamo-nospara ela cada vez melhor. l
164 A MORTE E O RENASCIMENTO
SE ESTIVERMOS COMPLETAMENTE PREPARADOS NO MO-
mento da morte, conseguiremos manter a nossa
paz de espírito. Ora, a paz de espírito no momen-
to da morte não só nos permite manter a motiva-
ção adequada, como constitui a garantia imedia-
ta de um bom renascimento, de uma melhor vida
futura.
A MORTE CONSTITUI UMA DAS RARAS OCASIÕES EM
QUE é possível transformar o espírito subtil em sa-
bedoria.
NÓS DEVEMOS MODIFICAR A NOSSA ABORDAGEM A ESTA
vida e às nossas vidas futuras, reflectindo em pri-
meiro lugar sobre a impermanência, sobre a cer-
teza da nossa própria morte e, depois, sobre o fac-
to de que nunca poderemos saber daqui a quanto
tempo vamos morrer. Depois da morte não desa-
parecemos, e são as acções positivas e negativas
que realizámos que determinam o nosso renasci-
mento.
A MORTE E O RENASCIMENTO 165
TODAS AS COISAS ESTÃO VOTADAS À DESINTEGRAÇÃO.
E dado que a experiência e o conhecimento são
impermanentes e estão sujeitos à desintegração,o espírito do qual elas resultam não permanece
constante e eterno, sendo igualmente alvo damudança e da desintegração.
CONTRARIAMENTE AOS ANIMAIS E Às FORMAS DE VIDA
inferiores, nós somos capazes de colher o fruto da
iluminação num acto de bondade derradeiro para
nós mesmos e para os outros. No entanto, a mor-
te cerca-nos por todos os lados, ameaçando conti-
nuamente roubar-nos esta preciosa oportunidade,
e tudo o podemos levar connosco quando soar a
hora da nossa morte são as sementes do trabalho
da nossa vida, bem como o nosso conhecimentoespiritual.
O FACTO DE NÃO PENSARMOS NA MORTE E DE A TEN-
tarmos esquecer faz com que nos impliquemos em
actividades relacionadas exclusivamente com esta
vida. Mesmo que a nossa intenção seja a de prati-car o dharma, fá-lo-emos principalmente com o
166 - A MORTE E O RENASCIMENTO
objectivo de obter vantagens nesta vida. Assim,não tomar a morte em consideração conduz a ummodo de existência muito limitado, pensar na
morte remete-nos, pelo contrário, para a nossa
próxima vida. Claro que devemos trabalhar nosentido de manter as nossas condições de vida,
mas sem esquecer a vida que virá a seguir. Nós
temos de pensar na morte e na impermanência,
porque estamos demasiados apegados aos bens
desta vida, sejam eles as nossas possessões, a nos-
sa família, etc. Ter medo da morte, para o pratican-te do dharma, não significa ter medo de se separar
da sua família, das suas riquezas ou do seu pró-
prio corpo. O medo é, deste ponto de vista, total-
mente inútil, dado que nós morreremos forçosa-
mente, mais cedo ou mais tarde. Um medo sem
dúvida mais útil é o de virmos a morrer demasia-
damente cedo, sem termos tido a capacidade de
fazer aquilo que é necessário para assegurar uma
vida futura melhor.
TODOS NÓS SABEMOS QUE A MORTE OCORRERÁ NECCS-
sariamente e que ninguém a pode evitar, sendo
pois preferível prepararmo-nos atempadamente
para ela, em vez de a negligenciar. Numerosas es-
crituras antigas mencionam as vantagens de nos
A MORTE E O RENASCIMENTO •
«lembrarmos» da morte, assim como dos incon-venientes a que nos expomos se a ignorarmos. Senos prepararmos para essa eventualidade, graçasà meditação, o choque será menos duro quando amorte nos atingir, e será mais fácil para nós
enfrentá-la. Por conseguinte, se meditamos sobrea morte não é para nos assustarmos ou para fi-
carmos tristes, mas sim para nos prepararmos paraa enfrentar quando ela ocorrer.
ENQUANTO PERMANECERMOS NO CICLO DAS EXISTÊN-cias, não nos conseguiremos libertar da doença,
da velhice e da morte, sendo pois essencial pre-pararmo-nos para o inevitável, familiarizando-nos
com os processos através dos quais a morte se pro-
duz, assim como com o estado intermediário dasnossas vidas futuras. Se procedermos desta for-
ma, seremos capazes de enfrentar esses aconte-cimentos com determinação e coragem.
A MORTE É INEVITÁVEL, MAS O MOMENTO EM QUE ELA
nos atingirá é incerto. E se aceitarmos enfrentaras coisas tal e qual elas são, verdadeiramente, en-
tão temos de admitir que desconhecemos o quechegará primeiro, se uma nova manhã, se a mor-
167
168 A MORTE í O RENASCIMENTO
te. Nós não podemos ter a certeza absoluta de que
os velhos morrerão antes dos jovens, nem que es-
tes lhes sobreviverão. A atitude mais realista que
podemos adoptar consiste em esperar o melhor,
embora mantendo-nos preparados para o pior.
PODEMOS IR PARA BAIXO DA TERRA, PARA o MAR ou
para o céu, o que não podemos é evitar a morte.
Os membros da nossa própria família separar-se-ao
uns dos outros, mais cedo ou mais tarde, como
folhas dispersas pelo vento. No próximo mês, ou
no mês depois desse, alguns de nós morrerão e o
mesmo acontecerá a outros daqui a alguns anos.
Daqui a oitenta ou noventa anos, todos nós, in-
cluindo o Dalai Lama, estaremos mortos. E quan-
do isso acontecer, apenas as nossas realizações es-
pirituais nos poderão ajudar.
O FACTO DE ÀS VEZES NÃO SERMOS BEM-SUCEDIDOS
no que se refere aos assuntos superficiais do mun-
do não tem grande importância, mas o mesmo não
se pode dizer se desperdiçarmos esta preciosa opor-
tunidade oferecida pela vida humana, já que, a
longo prazo, tal atitude acabará por nos aniqui-
A MORTE E O RENASCIMENTO 169
lar. O futuro está nas nossas mãos - quer queira-mos sofrer ao extremo caindo nas esferas de exis-tência não humanas, quer queiramos atingir o es-tado de iluminação. [...] Nós temos nesta vida aoportunidade, a responsabilidade e a capacidadede decidir e de determinar o que serão as nossasvidas futuras e, portanto, deveríamos formar osnossos espíritos de modo a não desperdiçar asnossas vidas - nem mesmo um único dia da nossavida -, preparando-nos para o momento da morte.
QUANDO ESTIVEREM PERANTE A MORTE, os MELHORESpraticantes sentirão prazer, os praticantes de ní-vel médio estarão bem preparados e mesmo os pra-ticantes do nível mais inferior nada lamentarão.Ao atingir o último dia da nossa vida, é muitoimportante que dentro de nós não exista qual-quer lamento, por mínimo que seja, porque umtal pensamento negativo no momento da mortepoderia influenciar o nosso próximo renascimen-to. A melhor forma de fazer com que a vida se tor-ne plena de sentido é escolher a via da compaixão.
SE REFLECTIRMOS SOBRE A MORTE E AIMPERMANÊNCIA,
a nossa vida começa a adquirir sentido. Podemos
pensar que é inútil pensar na morte agora, não só
170 • A MORTE E O RENASCIMENTO
porque morreremos de qualquer modo, mas tam-bém porque isso nos vai deprimir. No entanto, ter
consciência da morte e da impermanência é mui-to importante, porque nunca treinaremos de um
modo suficientemente sério e nunca progredire-mos na trajectória espiritual se os nossos espíritos
estiverem encerrados na ideia de que não depen-
demos da morte. O maior obstáculo ao progresso
espiritual reside no facto de não acreditarmos
verdadeiramente que morreremos um dia.
SE TIVERMOS UMA PERFEITA CONSCIÊNCIA DA MORTE,
se considerarmos que podemos morrer hoje mes-
mo ou amanhã e nos empenharmos realmente no
treino espiritual, poderemos tentar libertar-nos de
todas as fontes de apego às coisas deste mundo,livrando-nos das nossas posses e considerando
irrelevante a prosperidade. Os nossos esforços de-
verão incidir sobretudo na prática. O facto de es-
tarmos conscientes da morte dá um novo sentido àvida e permite-nos morrer sem qualquer mágoa.
REFLECTIR NA CERTEZA DA MORTE EM GERAL E NA
incerteza do momento em que ela nos atingirá sig-nifica prepararmo-nos para o futuro, porque essa
A MORTE E O RENASCIMENTO 171
reflexão permite-nos compreender que a prosperi-
dade e as actividades desta vida são insignificantes.Assim sendo, trabalhar para um proveito a longotermo, para nós mesmos e para os outros, vai-nos
parecer muito mais importante, e a nossa vida pas-sará a ser guiada por esssa nova compreensão.
A CONSCIÊNCIA DA MORTE QUE DEVEMOS MANTER
não é uma consciência ordinária, já que o medo
faz com que sejamos incapazes de nos separar da-
queles que amamos e das nossas posses. Devemos,
isso sim, aprender a temer o facto de morrermos
sem ter posto um fim às causas que conduzem ao
renascimento nas formas de existência mais infe-
riores e sem ter acumulado as causas e as condi-
ções necessárias para um renascimento favorável,já que, se não atingirmos estes dois objectivos, o
medo e o remorso não nos darão tréguas no mo-mento da morte.
É CRUCIAL QUE O NOSSO ESPÍRITO ESTEJA NUM ESTADO
virtuoso quando chegar a hora da nossa morte.
Trata-se da nossa última oportunidade e de modo
algum a podemos deixar fugir. Mesmo que a nos-sa vida tenha sido extremamente «negativa», de-
172 A MORTE E O RENASCIMENTO
vemos fazer um esforço para atingir um estado deespírito virtuoso no momento de morrer, porque,
se nesse momento formos capazes de desenvolveruma compaixão verdadeira e forte, existe umaesperança de renascermos na próxima vida numa
existência favorável.
A MORTE NÃO É MAIS DO QUE A SEPARAÇÃO DA CONS-
ciência e do corpo físico, e é muito difícil explicar
o que é exactamente a vida se não aceitarmos esse
fenómeno que se designa por «consciência». Quan-
do a consciência está ligada ao corpo numa rela-
ção que perdura, designamos esse estado por
«vida»; e quando a relação da consciência com um
corpo particular termina, designamo-lo por «mor-
te». Os nossos corpos são formados por um agre-
gado de componentes químicos e físicos, mas a vida
dos seres vivos é constituída por uma espécie de
agente subtil de pura luz. O facto de ser impossível
medi-lo, porquanto não se trata de um agente físi-
co, não significa que ele não exista.
A MORTE ENGENDRA UM GRANDE SOFRIMENTO, E ISSO
é algo que não podemos desejar. Não obstante, se
formos capazes de aprender a enfrentar a morte,
A MORTE E O RENASCIMENTO 173
esta «preparação» dá-nos a garantia de que nãosentiremos sofrimento. A capacidade de abordara morte com calma e sem tristeza depende da for-
ma como vivemos o nosso quotidiano. Se duran-
te a nossa vida nos esforçarmos por controlar o
nosso espírito, a tranquilidade acaba por se tor-
nar um hábito e, graças a isso, tornamo-nos ca-pazes de enfrentar a morte com desprendimento
quando chegar a altura de o fazer. Se a nossa vida
quotidiana tiver um sentido e for positiva, no mo-
mento de morrer poderemos dizer a nós mesmos:
«Durante toda a minha vida fiz pelo menos qual-
quer coisa com sentido. Teria gostado de perma-
necer um pouco mais neste mundo, é certo, mas
na verdade não há nada que eu lamente.»
QUANDO A HORA DA NOSSA MORTE SOA, o MAIS IM-
portante é manter uma boa atitude, assim como
uma motivação pura e positiva, e isso é algo que
se adquire graças à prática quotidiana. Mesmo que
tenhamos pouco tempo durante a nossa vida para
consagrar a uma actividade espiritual, o facto de
permanecermos atentos no momento da morte e
de tentarmos direccionar o nosso espírito para
qualidades positivas favorece certamente um
melhor renascimento.
174 A MORTE E O RENASCIMENTO
NUNCA PODEREMOS SABER COM ABSOLUTA CERTEZA
quando surgirá o fenómeno denominado «mor-
te», e ninguém pode dizer até quando viverá. Paranos mantermos vivos recorremos a suportes exte-
riores tais como comida, roupa, casa, etc. Mas, seolhássemos mais de perto, veríamos que não existe
qualquer certeza quanto à duração da nossa exis-
tência. Coloque a si próprio a seguinte questão:
«Se morresse hoje, teria eu praticado o suficien-te?» Se for o caso, se tiver praticado correctamen-
te, os seus pensamentos e acções negativas foram
purificados e você terá tido, através dos seus so-
nhos, sinais encora]adores quanto ao seu futuro,
o que significa que não há nada a lamentar. Po-
rém, caso não tenha praticado suficientemente,
você deverá certificar-se se a reencarnação existe
ou não. E, de facto, mais vale para si que ela não
exista.
O FACTO DE NOS EMPENHARMOS NUMA PRÁTICA ESPI-
ritual que implica inumeráveis vidas e um tempomuito longo permite-nos ter uma visão diferenteda morte, pois compreendemos que na realidade
ela faz parte da vida.
A MORTE E O RENASCIMENTO
A MORTE SIGNIFICA QUE O NOSSO CORPO TEM LIMITES
e que, quando já não o conseguimos conservar,morremos e tomamos um outro. O ser essencial,
que é constituído por uma combinação do corpo
e do espírito, persiste depois do falecimento. Ocorpo físico, particular, deixa de existir, mas o
mesmo não acontece com o corpo subtil. Desteponto de vista, o ser não tem princípio nem fim,
permanecendo ele mesmo até atingir o «estadode buda».
O CURSO DE UMA VIDA HUMANA ASSEMELHA-SE A UM
raio no céu ou à queda de um rochedo ao longo
de uma superfície inclinada. As águas correm sem-
pre para baixo e são incapazes de subir na direc-
ção da sua nascente. E nós quase não nos damos
conta de que as nossas vidas se vão esgotando e
que caminham para o seu fim. Os que aceitam o
valor de uma prática espiritual pensarão porven-
tura nas suas vidas futuras, mas a verdade é que,
nos nossos corações, nos concentramos unica-
mente nos objectivos desta nossa vida actual, don-de a confusão que nos prende ao ciclo das existên-
cias. Nós desperdiçamos as nossas vidas. [...] Se
175
176 « A MORTE E O RENASCIMENTO
desejarmos pôr fim a um tal desperdício e come-çar a caminhar numa via espiritual, temos impe-rativamente de meditar na impermanência e nanossa própria mortalidade, no facto de que o nossocorpo é naturalmente impermanente e sujeito àdesintegração desde o primeiro instante da nossavida.
ENQUANTO TRABALHA PARA RESPONDER Às NECESSI-dades da existência, aquele que medita sobre amorte encontra o tempo necessário para gerara energia que transporta a paz e a alegria para asvidas futuras.
MANTER A MORTE PRESENTE NO ESPÍRITO É COMO pos-suir um martelo capaz de quebrar todas as tendên-cias negativas e todas as emoções alienantes.
QUE ESPERANÇA PODE OFERECER A MORTE A UMA PESSOA
materialista e sem experiência espiritual? Tendopassado a sua vida a ignorá-la e a evitar pensarnela, é natural que tal pessoa se sinta totalmentetranstornada e perca toda a sua coragem e con-fiança no momento em que ela surge, já que, como
A MORTE E O RENASCIMENTO 177
nunca se preocupou em pôr em prática os méto-dos que revelam a verdadeira natureza do es-pírito, do nascimento, da vida e da morte, eladesconhece tudo aquilo com que se encontraconfrontada. É durante a vida que se adquire ocontrolo sobre a evolução futura, não na horada morte.
UM DOS ASPECTOS MAIS ATERRORIZADORES DA MORTE,
para a maior parte dos seres humanos, é o factode nos encontrarmos de repente totalmente sós esem outra forma de apoio que não o nosso pró-prio conhecimento espiritual. Quando este é for-te, somos capazes de enfrentar eficazmente todasas circunstâncias nas quais a morte nos projecta;caso contrário, porém, o nosso coração enche-sede lamentações, e só então compreendemos o erroque cometemos ao não ter visado objectivos maisprofundos.
NASCIMENTO
O NASCIMENTO QUE NOS DEU A VIDA QUE TEMOS AC-
tualmente tem um potencial único. Os seres hu-manos são parecidos com os outros seres sensí-
178 A MORTE E O RENASCIMENTO
veis no facto de serem dotados de vida, mas têm a
enorme vantagem de possuir a engenhosidade e a
inteligência. O reconhecimento de que a vida
humana nos oferece uma oportunidade inestimá-
vel permite -nos utilizar a nossa inteligência em
proveito próprio.
REENCARNAÇÃO
É ESSENCIAL COMPREENDER A NATUREZA CÍCLICA DA
existência para nos podermos libertar dela.
TEMOS DE OLHAR PARA O NOSSO CORPO ACTUAL, SE
desejarmos saber o que fizemos no passado; e te-
mos de olhar para aquilo que o nosso espírito pro-
duz no presente, se quisermos saber o que nos
acontecerá no futuro.
ALGUMAS PRÁTICAS, TAIS COMO A BODHICÍTTA, PER-
mitem que o espírito se mantenha tranquilo na
hora da morte, pois ela faz com que a tranquili-
dade surja automaticamente. O momento da
morte é um período muito crítico para o espírito
A MORTE E O RENASCIMENTO • 179
e, se formos capazes de impor uma dinâmica po-
sitiva quando ele ocorre, a morte transformar-se-
-á numa força extremamente poderosa, capaz de
transmitir essa positividade à próxima vida.
NÓS NASCEMOS E NASCEMOS VEZES SEM CONTA, E É
possível que cada ser tenha sido nosso parente
num dado momento. Assim sendo, é provável que
todos os seres deste Universo tenham tido entre
eles laços familiares.
NO CICLO DOS RENASCIMENTOS, QUE SE DENOMINA
samsara, de tempos a tempos surge o fenómeno
da reencarnação. O ciclo dos renascimentos é a
condição básica de toda a vida e, a menos que se
atinja o nirvana, nenhuma existência lhe esca-
pa. Esta condição é dolorosa, dado que ela nos
obriga a viver vidas sucessivas e em níveis que
podem ser bem piores do que aqueles que já
conhecemos no passado. Se o renascimento é
obrigatório, a reencarnação é não só uma esco-
lha, mas também um poder concedido aos indi-
víduos que merecem controlar o seu futuro nas-
cimento.
180 A MORTE E O RENASCIMENTO
PARA NOS LIBERTARMOS DO OCEANO DO SOFRIMENTO,
deveríamos começar por estudar e praticar o ca-
minho da libertação. Podemos esperar obter um
resultado após alguns anos, mas mais importante
do que isso é continuar a treinar durante um gran-
de número de vidas. Em cada uma delas nós preci-
saremos de um suporte adequado para a nossa
prática, a saber, de um corpo humano, sem o qual
será impossível obter o mínimo progresso. Assim
sendo, a primeira etapa nesta trajectória consiste
em assegurar um bom renascimento humano.
É UMA PENA UTILIZARMOS O NOSSO CÉREBRO EM TARE-
fas sem importância. Passar todo o nosso tempo,
até morrer, unicamente ocupados nos assuntos
desta vida, constitui um sinal de fraqueza. [...]x
E verdade que devemos renunciar a esta vida, mas
isso não significa que devemos desinteressarmo-
-nos dela, ou que temos de passar fome, ou que
não devemos cuidar de nós mesmos. Devemos sim
reflectir, relativizando a importância que concede-
mos às aparências desta vida e às aparências das
vidas futuras que nos surgem no espírito, porque,
A MORTE E O RENASCIMENTO 181
em termos de futuro, depois da próxima vida - e
ainda que renasçamos numa vida favorável -
muitas outras haverá ainda.
l
Eu SOU BUDISTA E ACREDITO QUE TODO O SER HUMA-
no pode tomar a forma de um ser inferior. O nos-
so renascimento é condicionado pelas nossas acti-
vidades negativas e pelos nossos actos virtuosos.
Nesta perspectiva, a nossa força kármica é funda-
mental, pois ela é a semente. Contudo, a semente
sozinha não é suficiente - ela tem de agir em inte-
racção com a matéria e com a terra. Da mesma
forma, nós devemos pensar não apenas em ter-
mos de «causa», mas igualmente em termos de
«condições». A matéria principal do nosso invó-
lucro carnal procede dos nossos pais, mas não o
nosso espírito, não o nosso eu.
As MARCAS KÁRMICAS POSITIVAS E NEGATIVAS SÃO
depositadas na consciência subtil. Esta consciên-
cia, conhecida como sendo a consciência primor-
dial, ou clara luz, não tem princípio nem fim. E a
consciência que veio das vidas anteriores e se diri-
ge para as próximas, e são as marcas kármicas que
182 A MORTE E O RENASCIMENTO
ela transporta que engendram as experiências da
dor e da felicidade. No momento da morte, ape-
nas as marcas das nossas acções positivas nos aju-s
dam. E pois importante prepararmo-nos para mor-
rer enquanto estamos vivos e nos podemos em-
penhar num treino sistemático, pois só assim nos
tornaremos capazes de enfrentar a morte quando
a sua hora chegar.
NA HORA DA MORTE PARTIREMOS SÓS, E A ÚNICA LUZ
que nos acompanhará resulta do treino espiri-
tual ou dos actos positivos que realizámos. O
ciclo das existências é pouco fiável, por conse-
guinte, dado que não só temos de renunciar in-
cessantemente ao nosso corpo, como além disso
não podemos contar com a ajuda dos outros, nem
ter a certeza de que eles não tentarão prejudi-
car-nos. Seja qual for a forma como apreciamos
a vida, a verdade é que não há satisfação possí-
vel. Nós entrámos no útero um número infindá-
vel de vezes, sendo portanto impossível seguir a
pista dos nossos nascimentos, e isso indica que
andamos a vaguear pelo ciclo das existências há
uma eternidade.
A MORTE E O RENASCIMENTO 183
RENASCIMENTO
O QUE RENASCE SÃO OS NOSSOS HÁBITOS. ATINGIR A
iluminação significa o fim dos renascimentos, algo
que se traduz por um desprendimento total e uma
completa não-identificação com todos os pensa-mentos, percepções, sensações físicas e ideias.
APÓS A MORTE, OS BUDISTAS FALAM DE TRÊS REINOS
de existência, conhecidos como «o reino da for-
ma», «o reino informe» e «o reino do desejo». O
reino da forma e o reino do desejo comportam am-
bos uma etapa que surge antes do renascimento,
e que é designada por «estado intermediário».
Ainda que a morte nos forneça a melhor ocasião
possível para utilizarmos o nosso nível de consciên-
cia mais subtil, transformando-o em sabedoria, e
ainda que sejamos capazes de agarrar eficazmente
essa oportunidade, existe um estado intermédio
que, embora sendo mais grosseiro no momento
da morte, permanece mais subtil do que a cons-
ciência aquando do renascimento. Mesmo que se-jamos incapazes de agarrar tal oportunidade, o re-
nascimento ocorre e o ciclo prossegue.
184 • A MORTE E O RENASCIMENTO
O QUE NÓS FAZEMOS AGORA TEM, SEGUNDO A LEI DO
karma, consequências para o futuro. O nosso fu-
turo é determinado pelo nosso estado de espíritopresente, mas este é quase sempre dominado pela
ilusão. A nossa aspiração deveria ser atingir a ilu-
minação, mas, se isso se revelar impossível, deve-
ríamos tentar tornarmo-nos livres através do re-
nascimento. E se isso também não for possível,
deveríamos pelo menos plantar as sementes que
permitam um renascimento favorável na próxi-
ma vida, que não nos deixe cair nos reinos de
existência inferiores.
O KARMA É CRIADO POR UMA PESSOA, POR UM SER
vivo. Os seres vivos não são mais do que o eu,
cuja formação se baseia na continuidade da cons-
ciência, cuja natureza é a luminosidade e o discer-
nimento. Trata-se de uma forma de conhecimen-
to precedida por um momento de consciência, o
qual constitui a sua causa. A compreensão de
que a continuidade da consciência não pode ser
esgotada numa só vida fornece-nos um suporte
lógico para a possibilidade da vida depois da
morte.
A MORTE E O RENASCIMENTO 185
O ESPÍRITO SUBTIL MAIS PROFUNDO ESTÁ SEMPRE
presente e, ainda que se modifique momenta-
neamente, a sua continuidade é permanente. Exis-
tem, pois, dois níveis de espírito, um mais grosseiro,
dependendo inteiramente deste corpo, e outro
mais subtil, que se caracteriza por ser eterno.
É neste princípio que se baseia o renascimento.
DO PONTO DE VISTA BUDISTA, A TEORIA DO RENASCI-
mento deveria ser compreendida não a partir do
karma, mas sim da nossa percepção da natureza
da causalidade, uma vez que cada acontecimento
tem forçosamente que ter causas e condições que
o precedem. Isso significa que mesmo um simples
acontecimento cognitivo - envolvendo a cons-
ciência ou o espírito, por exemplo - tem de ter
causas e condições, estando pois envolvido num
processo causal que nos permite verificar a conti-
nuidade sem início da consciência. Depois de ter-
mos sido capazes de desenvolver esta compreen-
são do processo causal, a teoria do renascimento
desenvolve -se naturalmente segundo esse tipo de
compreensão.
186 A MORTE E O RENASCIMENTO
PARA ULTRAPASSAR o APEGO A ESTA VIDA, DIGA A sipróprio que nascemos sozinhos e que sozinhosmorreremos. Quando a morte ocorre, temos for-çosamente de nos separar daqueles que nos sãopróximos, dos nossos amigos, das nossas posses edo nosso corpo. O nascimento e a morte são osdois momentos mais importantes da nossa vida,durante os quais ninguém nos pode ajudar ou par-tilhar os nossos tormentos. Os viajantes passamuma noite na estalagem e depois partem. Do mes-mo modo, enquanto atravessamos o ciclo das exis-tências como o fazemos há tempos sem princípionem fim, os nossos nascimentos temporários sãocomo a paragem nocturna do viajante.
TEMPO
SE QUISER PRATICAR O DHARMA, NUNCA O REMETA
para amanhã. Faça-o hoje mesmo, porque casocontrário há grandes hipóteses de que a mortesurja antes de se decidir a fazê-lo. A morte é cer-ta, mas a hora da sua chegada não o é. E como elapode chegar a qualquer instante, não há tempo aperder.
A MORTE E O RENASCIMENTO 187
É POR NUNCA TERMOS APREENDIDO A FUGACIDADE DA
nossa natureza que nunca compreendemos o quãobreve será a nossa vida. E por ignorância, apegoou animosidade, cometemos toda a espécie deacções nefastas, manifestando indiferença emrelação aos seres sensíveis, apego aos nossos ami-gos e cólera, ciúme e aversão em relação aos nos-sos inimigos. Enquanto isso, as nossas vidas fo-ram-se dissipando e encaminham-se para o seutermo. Nem o dia nem a noite esperam. O tempoconsome-se minuto após minuto, segundo apóssegundo, e as nossas vidas esgotam-se, dirigindo--se inexoravelmente para a sua conclusão.
TRANSFORMAÇÃO
TEMOS DE COMPREENDER QUE É IMPOSSÍVEL IMPOR
qualquer tipo de treino ou de prática visandotransformar os nossos corações. Se, no caso deexercícios físicos, um certo grau de rigor podeconstituir uma ajuda eficaz para se desenvolver adisciplina, é pelo contrário impossível impor pelaforça a disciplina mental que a tranformação dosnossos corações e dos nossos espíritos exige. Esta
188 A MORTE E O RENASCIMENTO A MORTE E O RENASCIMENTO 189
disciplina tem forçosamente de ser fruto de umaaceitação voluntária, a qual deve por sua vez ba-
sear-se no reconhecimento pessoal de certas atitudes. Eé quando aceitamos esta realidade que decidimos vo-
luntariamente seguir uma disciplina espiritual. Esta
forma de nos empenharmos numa trajectória espi-ritual é a única susceptível de transformar os nossos
espíritos.
A CHAVE PARA TRANSFORMAR O NOSSO CORAÇÃO E O
nosso espírito consiste em compreender de que
maneira os nossos pensamentos e as nossas emo-
ções «trabalham». Isto significa que temos de
aprender a identificar os aspectos que se opõem
nos nossos conflitos interiores, compreendendo
em primeiro lugar que os pensamentos e as emo-
ções angustiantes são destrutivas e negativas, e
em seguida tentando fortificar as nossas emoções
e pensamentos positivos, que são os seus antído-
tos. Desta forma, conseguimos progressivamente
reduzir a força da nossa cólera e do nosso ódio.
A FELICIDADE À QUAL TODOS ASPIRAMOS E O SOFRI-
mento que todos instintivamente queremos evi-tar são experiências que resultam de causas e de
condições. A felicidade e o sofrimento não sur-
gem desligados de tudo, mas sim no seguimentodas suas próprias causas e condições. [...] Assim,
acabamos por compreender que a felicidade e o
sofrimento estão sujeitos à mudança e que são im-
permanentes e também que, graças à sua nature-
za transitória, existe uma paridade entre a fe-
licidade e o sofrimento.
A MODIFICAÇÃO E A TRANSFORMAÇÃO SÃO POSSÍVEIS
graças à impermanência, o que significa que exis-
te realmente uma possibilidade de vencer as emo-
ções e os pensamentos negativos.
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ÍNDICE
7 PREFÁCIO11 INTRODUÇÃO
19 O SER35 O AMOR E A FELICIDADE41 O ESPÍRITO73 A HUMANIDADE99 A VIDA ESPIRITUAL
113 A MEDITAÇÃO123 A NÃO-VlOLÊNCIA
135 A ILUMINAÇÃO149 A MORTE E o RENASCIMENTO
191 BIBLIOGRAFIA