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ROSENFIELD,Kathrin(2016)Ritmoemúsicanopensamentodepoetasefilósofos:deHölderlinaRilkeeHeidegger.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.15‐45.

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DOI:10.1590/permusi20163502

ARTIGOCIENTÍFICO

Ritmoemúsicanopensamentodepoetasefilósofos:deHölderlinaRilkeeHeidegger

RhythmandMusicinthecontemplationofpoetsandphilosophers:fromHölderlintoRilkeandHeidegger

KathrinRosenfieldUniversidadeFederaldoRioGrandedoSul,PortoAlegre,RS,[email protected]:Desdeopré‐romantismoalemão,amúsicamantémrelaçõescadavezmaisíntimascomapoesiaealiteratura.Rastreamosaquialgunsdosmodosdeaproximaçãodestas duas formas diversas de expressão artística, mostrando como a literaturaexploraaalteridadedamúsicaparaintensificarasdimensõesafetivasereflexivasdapoesia. Trata‐se de uma tradição poderosa que se estende de românticos comoHölderlineTieckatéRilkeealém,ocupandoumlugardedestaquenopensamentodeSchopenhauer, Nietzsche, Heidegger. As reflexões de Rilke recebem um lugar dedestaquenesteartigo,mediantea traduçãodesuasanotaçõesde leiturado famosoensaiodeNietzsche,Onascimentodatragédiaapartirdoespíritodamúsica.Palavras‐chave:literaturaemúsica;reflexãocríticaefilosófica. Abstract: Since German pre‐romanticism, music has being keeping a closerrelationshipwithpoetryandliterature.Wehavecollectedafewwaysofapproachingthesetwodifferentformsofartexpression,demonstratinghowliteratureexploresthealterityofmusicinordertointensifytheaffectiveandreflexiveemotionsofpoetry.Itdealswithapowerfultraditionthatcomprises ‘romantic’authors fromHölderlintoTiecktoRilke,andplayanimportantroleinthereasoningofSchopenhauer,Nietzscheand Heidegger. Rilke’s reflections have been given special emphasis in this article,whichisshownbymeansofhistranslatedreadingnotesofthefamousessayTheBirthofTragedythroughtheSpiritofMusic.Keywords:literatureandmusic;criticalandphilosophicalreflection.

Dataderecebimento:12/12/2015

Datadeaprovaçãofinal:15/04/2016

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1‐Introdução

Nareflexão filosófica sobreamúsicadesenham‐se,entreo finaldoséculoXVIIIeo

iníciodoXX,duas concepçõesqueora seopõem,ora se combinam: amúsica como

princípiocriativoqueconstituiarazãodeserdaarteesuainteligibilidadeintrínseca

(porém diversa do pensamento discursivo); e a musicalidade como força obscura,

potencialmente irracional e pulsional (triebhaft, instintiva). Para compreender o

interesse de artistas como Rilke pelas ideias de Nietzsche, será talvez interessante

rastrear rapidamente as ideias relacionadas com o ritmo, a música e a Stimmung

(tonalidade,atmosfera)quemarcamosdoisúltimosséculos.

Schiller éprovavelmenteumadas fontespara todas as concepçõesposterioresque

derivam da poesia da música. Deriva a inspiração poética de um “estado musical

indeterminado”queprecedequalquerimagem,representaçãoouideia.Amusicalidade

é, assim, amatriz, o envelopequeabriga,numa fusãoperfeita, oEueomundo.Na

musicalidadesuperamosdemodoingênuoaclivagemcósmicaqueisolaoindivíduodo

tododocosmos.Apoesiamoderna,entretanto,tornou‐seconsciente(demais)desta

clivagem; para apagar esta tomadade consciência dolorosamanifesta na “natureza

cósmicadogritodepavor”(istoe,nomomentomıticodeclivagemdoEuedoTodo

natural, Allnatur des Schreckensschreies). Essa consciência dolorosa marca o

surgimento do “sentimental” (que contrasta com o ingênuo) da poesia romantic‐

moderna,quereforçaaexpressividadesentimentaldaperda,ocantolutuoso(BOHRER,

1998,p.141).

Hegelpareceretomaredesdobrarestavisãoquandoconcebeoritmoeo“soar”(Tönen)

sãoconcebidoscomooprópriomovimentodoespírito,comoencarnaçãoconcretada

lógica e da verdade. Na Fenomenologia do Espírito, o filósofo usa uma inusitada

metáfora que se refere à essência da verdade como ritmo delirante, «tontear (ou

delírio)báquico».Emoutraspalavras,Hegelaproximaaverdadelógicadoprocesso

(estético)deintegraçãorítmica,queamitologiaatribuiàpotênciadodeusDionysos

ouBaco:

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Aaparição(Erscheinung)éosurgirepassar,o[processo]queelemesmonãosurgeepassa,masqueéemsimesmoeconstituiaefetividadeeomovimentodavidadaverdade.Overdadeiroéassimodelíriobáquiconoqualnenhumelemento‐momentoescapaàembriaguez(Hegel,1970,Ph3,46,Hegel,2002,FE53).

Afrasereiteraaideia,onipresenteemtodaaintrodução,da«naturezalíquida»que

unifica osmomentos distintos e sucessivos. A ‘liquidez’ reconduz o diverso para a

unidade e, assim, constitui a necessidade lógica (atemporal); aomesmo tempo, ela

torna perceptível a unidade orgânica da coisa ela mesma no tempo. Em vários

momentos,Hegelilustraestaideiacomexemplos:obotão,aflor,afrutaeasementese

recalcam e excluem mutuamente ao longo do tempo, embora todas estas fases

constituam,para«avidadotodo»momentosde«igualnecessidade»(HEGEL,1970

Ph 3, 12); outro exemplo é o do embrião, da criança recém‐nascida e do homem

racional como figuras que desenvolvem no tempo/espaço seu potencial, efetuando

assimsuaverdadeintrínsecaeatemporal.(Ph3,18e3,25).Oritmoeamusicalidade

constituem,assim,aessênciadoespírito,otrabalhodanegatividade(movimentopuro)

quemedeiaapassagemdosaspectosenergéticosconcretos,daviolênciacruel,parao

reconhecimentodoespíritoquehabitaaprópriaconcretudedomundo1.

ComoGoethe,Hegelacentuaamediaçãoeaconciliaçãoapaziguadoradoritmoeda

musicalidade, cuja qualidade matemática permite sintetizar as tensões entre

determinações; pendor para des‐sensualizar e espiritualizar a atividade artística; a

música,comsuasanalogiasmatemáticas,presta‐separticularmentebemparaestefim.

Nomesmosentido,Hegelrefere‐setambémàpinturanãorepresentativacomomúsica

objetiva2:“purosoaremcores”(TöneninFarben),puratransição,fusão,dissolver‐se.

                                                            1Ritmo é a alteridade do Espírito diante dos conteúdos configurados em conceitos (ou figuraçõesestéticashistóricas).Necessidadelógicadoir‐adiantedoEspírito=concebidacomoritmo:racionaléoritmodotodoorgânico,saberdoconteúdoenquantoconceitoeessência:figuraçãoconcretamovendo‐seasimesma(HEGEL,1970,Ph3,55;FE60);Cf.tambématensãoentreopensamentoquedeslizapelasrepresentaçõesVSoefeitodasíntesereflexivaqueocorrecoma interrupçãodedeslizedestraído,ocontragolpedoconceito(Ph3,57‐58;FE62‐3)2Cf.aexpressãoHegeliana“einTönen inFarben”: “soar [nasinfonia]dascores”nosconfereanoçãotangível da “transição pura” (purer Übergang) que permite apreender ao mesmo tempo as coresdeterminadasedistintaseomodocomosedissolvemnumacorde(verschmelzen,auflösen) (HEGEL,1970.Ae,14,228‐30).

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Schopenhauer insurge‐se contra estas concepções racionais que espiritualizam o

prazerestético.Eledescartaocaráter“desinteressado”dojuízoestéticodeKante,mais

ainda,afilosofiadasmediaçõeshegelianasquelevamdacertezasensível,àconsciência

eàautoconsciência:istoé,aumreconhecimentoreflexivodoindivíduoedomundo.A

ideiadeumsaltológico(numconflitonoqualumsujeitofazsuaaleiesetornalivre),

éparaSchopenhauerumerrodoidealismo.EmOMundocomovontadeerepresentação,

ele concebe a individuação não como umprocesso que garante a liberdade, nem a

autonomiadosujeito.Poisoprincipiumindividuationiséapenasumdosaspectosdo

princípio da razão suficiente. Na individuação, a autoconsciência acompanha os

impulsos corporais e é inseparavelmente tingida por eles; ela não é uma instância

autônoma.Acapacidadedejulgaredeliberarsãoinerentesaosmodosdepercepção3.

Estanovaconcepçãoqueoscilaentreumadimensãomaterialistaeumamística,insere‐

senavisãoschopenhauerianadocorpo.Esteédadoparanósdeduasmaneiras:deum

lado,comoobjetofísico,e,talcomooutrosobjetosmateriaisexternos,sujeitoàsleisda

física;deoutro,atravésdanossapercepçãoimediataquesurgedohabitarconsciente

destecorpo,dosmovimentosintencionais,dasensaçãodeprazeres,doreseestados

emocionais.Noprimeiromodoonossocorpoexisteparanóscomorepresentação–

istoé,externo,comoobjeto.Nosegundoelesemanifestacomovontade,movimento

subjetivo,interno:Schopenhauernãoseparaoatodeliberado(aintençãodemover)

domovimentofísico.Ambossãounidoscomoosdoisladosdeumamoedae,portanto,

sãoinseparáveis.Aaçãodocorpoéaobjetivação,aencarnaçãodavontade.Emoutras

palavras,ohomemnãoémestreracionalquereinasobreocorpo,masaprópriarazão

écomoqueumarolhaqueflutuanosfluxosdeummardeforçasobscuras.

Comotranscenderomundorepletodeviolência,feiura,destruiçãoqueresultadeste

estar‐e‐ser‐impulsionado? Schopenhauer reconhece (na experiência estética) uma

possibilidade de ultrapassar a veemência da vontade que opõe os indivíduos e

                                                            3Schopenhauer vincula o principium individuationis com espaço e tempo, com a racionalidade e anecessidade, com sistemacidade e determinismo. Seus conceitos de princípio de razão suficiente eprincípiodeindividuaçãocomprimemtodooaparatoconceitualdeKant:asformaspurasdoespaçoedotempo,easdozecategoriasdoentendimento(unidade,pluralidade,totalidade,realidade,negaçãolimitaçãosubstância,causalidade,reciprocidade,possibilidade,atualidade,necessidade).

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fragmentaomundoemrepresentaçõesisoladasehostis.Aprópriaexperiênciainterior

viabilizaumrecolhimentoàcontemplaçãodomovimentoqueopõeospolossubjetivo

e objetivo, e esta contemplação abre o “espaço” de um estado perceptivo que nos

distanciadoimpulsivoiradianteequedeixaaparecerumaideiaalémdavontadeeda

dor(WWV,#34).Masapenasogênioartísticoécapazdepermanecernoestadopuro

dapercepçãoestéticaqueseaproximadavisãodasIdeiasplatônicas(WWV,#50).

Schopenhauerestabeleceaseguintehierarquiadasartesqueculminanapoesiaena

música:Arquitetura,escultura,pintura,poesia–amúsicatranscendetodasestasartes,

poisnela,todasasformassãotransitórias,purasrelaçõesquenãosedeixamcaptarde

modoisoladoeestático.Estaformadeexpressãoédiametralmenteopostaàlinguagem

científicaquefixaosobjetoseosisolaabstratamentesegundoparâmetrosarbitrários

(medição,número,experimentosartificiais).

Namúsicaavontadetransfigura‐seemtensõesqueunem‐ao‐opor,quemedeiamentre

contrastes,queharmonizammesmoquandousamdissonâncias.Músicaé,portanto,

umacópiapurificadadaprópriavontade.Schopenhauerconcebeaexperiênciaestética

comoharmonizaçãodosofrimentodaindividuação:

Estaencerraemsi,domesmomodo,objetoesujeito,umavezqueestessão sua única forma: nela, contudo, ambosmantêm estritamente oequilíbrio: e como também aqui o objeto nada mais é do que arepresentaçãodosujeito,assimtambémosujeito,dissolvendo‐seporinteironoobjetocontemplado,passaaseresteobjeto,namedidaemquetodaaconsciêncianãoémaisdoqueasua imagemmaisnítida(WWV,#34).

Estecompartilharfusionalseexpressanasimagensdofluir,deslizar,pairar,envolver

eentrelaçar.Amúsicaéamaismetafísicadasartes,naescutadasharmoniasentramos

nomundodasformasplatônicas,contemplamossímbolosdasIdeias,poisasrelações

dossonssãocomoosmodelossublimesdosobjetosdomundo.

Nietzsche segue Schopenhauer na oposição contra o vetor racional do pensamento

hegeliano, sem perceber num primeiro momento quão próximo suas ideias

permanecemdadialéticahegeliana.Eleoreconheceapenasposteriormente,quando

escreveoTentamedeautocríticaparaasegundaediçãodeOnascimentodatragédia

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do espírito da música. Na sua obra de juventude, ele procura pôr em evidência

princípios derivados da observação empírica mais sóbria (e despojada dos

pressupostosmoraisdosempiristasingleses).Osprincípiosdionisíacoeapolíneosão

concebidoscomo“pulsões”(Triebe)elementares.ODionisíacocomopotencialdeforça

solta, comparável ao impacto vital e emocional da música nas suas manifestações

espontâneas,populares.OApolíneocomoforçaantagônica,estabilizaçãodaenergiana

imagem.ÉnítidaaoposiçãodeNietzscheaosestereótiposclassicistasquandopõeem

relevo asmarcas vitais e cruas do sompuro damúsica popular4. Seja como for, o

filósofoassinalaumaespéciededegradédasdissonânciasparoxísticasdogritoritual

nos sacrifícios primitivos (Sacéias de Zagreus na Frígia, por exemplo) para o

refinamento rítmico, melódico e musical depurado do coro dionisíaco: o princípio

dionisíaco, tal como se manifesta no coro trágico é considerado como uma forma

avançada e complexa da arte. O equilíbrio formal é testemunho do trabalho de

harmonização que a pulsão formal e o rigor do apolíneo imprimiram sobre os

derramamentosembriagadosdopulsardionisíaco.

MasjábemantesdeNietzscheeSchopenhauersurgiram,entreospoetasromânticos

alemães, algunspensadoresqueenfatizaramopotencial estético‐afetivodamúsica:

sua capacidade de agir diretamente sobre a sensibilidade e a disposição não é

propriamente irracional; ela antes constitui uma outra dimensão da vivência e da

existênciacomoumtodo;nelasemanifestaapresençadealgoradicalmenteOutro,que

nãopodesersubsumidoaoentendimento,masantesoenvolve.Forma‐seassim,em

pleno idealismo e classicismo deWeimar (com suas preferências pela ponderação

iluminista) uma contracorrente que acompanha como um som inquietante e

ameaçador as teorias damediaçãomusical: o (pré)romantismo nas suas vertentes

atmosféricaeirônicas.

                                                            4SeriainteressantedesenvolverhipótesesemtornodaideiaqueNietzschesefaziadamúsicapopular.Poisascomposiçõesdesuaautoriaemnadalembramosfestivaisderecitaçãomusicalpopular,talcomoexistemaindahojeemCretaecujascaracterísticasseencaixamperfeitamentenasobservaçõesteóricasdeNietzsche.

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ApalavraStimmung refere‐se, em sentido filosófico, a umpermanecer transfixona

mera possibilidade – encontro com uma dimensão de energias e emoções que nos

ultrapassam, sensações, angústias que correspondem à manifestação de potências

irredutíveis ao domínio psicológico; a Stimmung (atmosfera, tom) é a resposta

imediata a uma alteridade extrema, potencialmente ameaçadora (o vago, outro

anônimo,inominável),masexpõe‐seaele,deslocaocentrodapercepçãodaaçãodo

Eu(falanteepensante)paraoalgoindeterminado(atmosferaoutra).

Para eosromânticos,oritmoeamúsicasituam‐senumadimensãodaexperiência

além dos sentidos conceituais que se desenham com clareza na consciência, num

horizonte no extremo limite da significação calculável – horizonte este, no qual a

“consciênciasuspendeaconsciência”.(HÖLDERLIN,1994,DKV2,917)

JáopensamentodeHölderlinconsideravao“ritmo”,i.e,apeculiaridadedomovimento

da representação, comoumprocedimentooutro e irredutível à lógicadiscursiva.A

lógicapoéticadistingue‐se,assim,da firmezadopensamentoedocálculoracionais.

Inacessível à consciência e ao entendimento, a dimensão rítmica não é, entretanto,

irracional no sentido psicológico do termo; apenas leva em consideração o

imponderáveldasconstelaçõesmuitocomplexascujohorizonteserá,evidentemente,

acontingência,oacasoeotemposempreinconcluso.ORomantismocolocouoritmoe

amúsicanocentrodareflexãoestética.Amúsicacorrespondeaopensamentocomo

formapeculiardaconsciência(elanegaopensamentodemodopeculiar).

UmdospoemasdeTieckevocao“pensamento”suigenerisdamúsicaedapoesia:Em

docessonspensaoamor/Razãolhecausaestranheza/Otompreferecomcerteza/

Para o belo ficar melhor. 5Em outras palavras, a musicalidade produz, tal como a

fantasia romântica, o “maravilhoso extremo”, o “infinito” (Hoffmann), e, com isto, a

exploração de regiões particularmente suscetíveis de suscitar angústia e medo

(Beethoven,Mozart),evocandoaomesmotempoumadimensãoradicalmenteoutra–

                                                            5LiebedenktinsussenTonen/DennGedankenstehnzufern/NurinTonenmagsiegren/Alleswassiewillverschonern(Tieck).

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que se manifesta ora de modo angelical, ora no registro demoníaco (motivo que

aparecetambémnanoveladeKleist,SantaCeciliaouopoderdamusica).

K.H.Bohrerrecordaqueoapegomusicaldospoetasromânticosaosprincípiosdosom

edoritmolevaraThomasMannaformularaseguinteequação:amúsicaseigualaao

romantismocomoumtodo–romantismoentendidocomoaquelemovimento(tardio)

de Beethoven a Wagner que começa a desenhar‐se como ameaça para o humano

normativo(BOHRER,1998,p.37‐38).Sehouverumaobraquesintetizademaneira

exemplar o intenso diálogo dos pensadores e poetas alemães com a (filosofia da)

música,estaobraé,semdúvida,DoutorFaustusdeThomasMann.Escritoentre1943

e47, este romance alegorizaos efeitos ultimamentenocivosdeuma tensãoque se

perfila desde o início do século XIX – a que opõe a fluidez dos estados sensíveis

(musicaiserítmicos)àfirmezadosconceitosejuízos.Hádoispersonagensdecaráter

diametralmenteoposto:AdrianLeverkühn,omúsicoquepactuacomMefistófelespara

assegurar‐se25anosdegenialidadeexpressiva;eSerenusZeitblom,oamigo‐cronista

pacato que narra a história do gênio comprometido com o mal como derradeira

tentativa de criar uma mediação entre o inominável dos estados maravilhosos e

angustiantes,deumlado,earacionalidadehumanista,dooutro.Odesejosedentode

maiscriatividadeevida(sobrehumanaesubumana)representamnãosomenteolado

noturnoe irracionaldo fascismoquepôsemxequearazão iluminista,masevocam

tambémasprincipaisposturasartísticasquesedesenharamaolongodoséculoXIXe

noséculoXX.EntreBeethoveneWagnercomeçaocultodapotênciaexpressiva,cujo

daimonencarnaodesejodoinfinito,absoluto,maravilhoso.

Este outromodo de ser, sentir e pensar – acessível somente através da atmosfera,

coloração e tonalidade (Stimmung) – exerce uma influência decisiva também sobre

DelacroixeBaudelaire,e,maistarde,sobreasvanguardasdomodernismo.

Nãoé amúsica como tal,masa ritmicidadee amusicalidadedapoesia ‐ ou seja, a

essência lírica – que fornece a base da reflexão filosófica sobre as relações de

determinadasqualidades atmosféricas comopensamento conceitual. Pelaprimeira

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vez, concede‐se umestatuto filosófico próprio aos sons, tons, timbres e ritmosque

coloramosafetossemserempsicológicos.

NoséculoXX,estaqualidadeatmosféricasetransformará,naobradeHeidegger,na

categoria ontológica da disposição. Heidegger eleva a Gestimmtheit (disposição,

afinação)aoníveldeumacategoriaetransformaaessênciado lirismo,aStimmung

românticaemcategoriaexistencial.Elaexpressaummodoespecíficodatemporalidade

do pavor (HEIDEGGER, Ser e Tempo, 2001, p.134‐141, 182), dimensão existencial

supra‐pessoal que antecede a consciência e permanece clivada da tomada de

consciênciapsicológica(BORHER,2000,p.55)6.

Heideggerapoiaseusconceitosnasconstelaçõesmetafóricas“auráticas”dedoispoetas

(Hölderlin e Rilke) que estruturam a reflexão heideggeriana em conformidade às

potencialidadesexpressivasdafalalírica:

O estar contido, no meio‐termo atmosférico entre medo eacanhamento,otraçofundamentaldaatmosferafundamental:nele,oser‐aíseafinacomaquietudedoderradeirodeusquepassa.Aosercriativonestaatmosferafundamentaldoser‐aí,ohomemsetornaoguardiãodestaquietude.(HEIDEGGER,1994,Bd.65,S.17).

2‐Rilkeeoespíritonietzscheanodamúsica:

“Amelodiacomoluzdapoesia”

Na juventudedeRilke, descoberta e o estudodaobradeNietzschemarcaramuma

etapadecisivanocaminhodestepoetalíricoqueé,semdúvida,umdosguardiõesmais

destacadosdaquietude.Nasuaobra, temosacessoaumaevidênciamusicalqueos

                                                            6Cf.Tb.SprachenderIronie,SprachendesErnstes,“DieHeideggerscheReduktionundVereinheitlichungvonHölderlinsSprache”,p.375ss.

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jogosdelinguagemespeculativosdeHeideggerconjuram,sem,noentantoalcançara

intensidadeexpressivadomodopoético.

Rilkenasceuem1875,umpoucocedodemaisparaserumjovemmodernista.Além

disto,nasceuemPraga,numcontextofamiliar,socialegeográficoburguêsresistenteà

inovaçãoedoqualelesedistancioucedo.Ébemconhecidoquesuapoesiasuscitou

algumasresistênciasentremodernistasavessosaanjoseourivesariaspoéticas,mas

mesmo assim seusDinggedichte exercem ainda hoje um impactomarcante sobre a

poesiaalemã,e,noBrasil,sobreosconcretistas.OcuidadoespecialqueRilkededicaà

forma e à superfície concretas das coisasmanifesta‐se, primeiro, na reflexão sobre

músicaefilosofia,estende‐sedepoisparaaesculturaepintura,erecebeseupolimento

definitivo graças às experiências pessoais de fracasso e sofrimento. Seus primeiros

textos críticos já mostram afinidades com Nietzsche, por exemplo, quando aborda

temas como “A melodia das coisas”. Mais tarde, Rilke se inspira na profunda e

prolongadacontemplaçãodeartistasplásticos–emparticularemRodineCézanne.A

dedicaçãoaotrabalhoseráparaRilkeagrandeliçãodeRodinnocaminhoquelevadas

convençõescotidianasdevoltaparaaconcretude“coisal”,istoé,àpresençatangível

dascoisasnasuaestranhasingularidadematerial.Veremostambémnostextossobre

Nietzschequeaforçaeaintensidade–nãoarepresentaçãodetemasemotivos–estão

nocentrodointeressedopoeta.Nietzscheelogiouasuperficialidadedospoetasgregos

comocaminhomaisdiretoparaumaprofundidadequesuperaametafísicapomposa

dospensadorescontemporâneos;demodoanálogo,Rilkeéatraídopelacapacidade‐

singelaeplana–doolhardeCézanne,cujasvisõesdissolvemostemaseastécnicas

convencionais.Comeleaprendeaverdenovo–osimplesestar‐aídascoisascaptadas

num jogode cores.O seroutrodas coisas‐cores–materiais‐e‐imateriais–exerceo

efeitodeumarevelaçãominimalistasobreoolharàprocuradesentido.Nuncafixaro

sentidoapenas,sempreretornaraocaminhodesuaevocação–aoritmoeamelodia

trazendoàtonaarevelaçãodasimplescoisidade:eisaexperiênciadeterminantepara

apoéticadeRilke.Háosmaisdiversosnomesparaestamúsicadefundo–entreeles

“oexcedentedeDeus”, istoé,a forçacriadoraqueaindanãose fixouemcriaçõese

fenômenos conhecidos. O paradoxo de forças que atravessam e ultrapassam a

concretude dos objetos dados, seu potencial assustador e eufórico, fascina Rilke

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tambémnaleituradaobradeNietzsche,emparticulardeONascimentodatragédia,

anotadoporeleem1900,aos25anos.

EstasanotaçõesmarginaissãofragmentosdelivreassociaçãodoleitorRilkeemtorno

do ensaio de juventude deNietzsche.Mais pessoal que um resumo ou uma leitura

comentada,elasfazempartedeumasériedetextosquetestemunhamdoimpactoque

Nietzsche deixou na sensibilidade e no pensamento do poeta quando jovem. O

interessepelanovafilosofiapós‐hegelianafoidespertadocedo.Em1892,Rilke,então

com17anos,recebeudopaiaediçãodasobrasdeSchopenhauer,oqueindicaqueeste

autorjácontavaentreospensadoresaceitáveisatéparaasensibilidadedaburguesia.

Estas leituras,semdúvida,prepararamocaminhoparaarecepçãomaravilhadadas

obras deNietzsche. Sentimos nos textos desta época umnítido entusiasmo com as

posturas anticristãs do filósofo e afinidades ainda mais intensas com a veemência

nietzscheana contra o espírito filisteu da sociabilidade burguesa. Estas simpatias

juvenis levam Rilke a compor, no início de 1896, um pequeno conto intitulado O

Apóstolo7,testemunhodasleiturasprecocese“mal‐digeridas”deDarwineNietzsche”

(LEPPMANNapudKA,III,809).Ocontoexpõeaaversãoaosentimentalismoqueos

hábitos convencionais teceram ao redor do amor cristão.O personagem sombrio e

misteriosodocontoproclamaumcredoaodes‐amorerecusaas fáceismentirasda

misericórdiaqueasociedadeusacomoornamentosediversões,juntocomorestodo

aparatodistinto:seuschás,pratasejoias,ricostecidosdedamascoeiguarias.

Asátiraé,naspalavrasdopróprioautor,uma“profissãodefé[nietzscheana]emparte

profundamenteséria,empartesatírica”(KA,III,809)e,também,umaversãoprecoce

daconcepçãoexigentedoamorqueRilkeelaboraráaolongodadécadaseguinte,por

exemplo,nosdoispoemasaDonJuan(1907e1908).

Uma resenha da época aponta que neste conto “[...] as doutrinas deNietzsche são

demonstradas com nitidez gritante, e servidas em pratos cheios. É obrigatório ler

                                                            7RedigidoemPraga1896(KAIII,47‐52).

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aquilo para sentirmos a confusão do Übermensch nietzscheano”. 8 O próprio Rilke

reconheceumaistardequeváriasdesuasobrasprecocesadotaramdeNietzscheum

“espíritoanti‐cristãoexcessivamenteirado”(einebeinahrabiateAntichristlichkeit)9;

assim,comoporexemplo,nospoemasGlaubensbekenntnis(profissãode fé),Christus

amKreuz(Cristonacruz),Christus‐Visionen(VisõesdeCristo)ouDerBriefdesjungen

Arbeiters(Cartadeumjovemoperário)10.

Em comparação com estas obras precoces, as anotações sobre O Nascimento da

Tragédia, que aqui apresentamos em tradução comentada, são mais maduras e

refletidas. Elas permitem entrever as convicções pessoais mais profundas e

duradourasdopoeta.OimpulsoparaumestudosistemáticodaobradeNietzscheveio

deLouAndreas‐Salome,amigapessoaldofilósofoqueredigiuváriosensaiossobresua

obra. Ela desempenhou o papel de uma verdadeira mentora e tutora para Rilke,

introduzindo‐onaculturadeseupaísdeorigem,aRússiaeviabilizandooacessodo

jovempoetaacírculospsicanalíticosefilosóficosdaépoca.Abreverelaçãoamorosae

o subsequente afastamento de Lou transformou‐se numa produtiva “educação

sentimental”que fortaleceuavocaçãodeRilkepelapoesiavoltadaparaestadosde

aberturaevisãoquemetamorfoseiamoestadoamoroso.

Oquecontanavisãoreveladoraéaestranhaconcretudedaevanescência,acoisaque

sesubtraicomoobjeto,queédeummodoqueosnomeseasrepresentaçõescaptam

inadequadamente.Éestaposturaqueconferesuaauratragicamenteangelicalàobra

deRilke:amúsicadopermanentedevir‐no‐desvanecermanifesta‐secomparticular

nitideznaobratardia(ElegiasdeDuíno),nasquaissedesvelamasafinidadesrilkeanas

com a poética de Hölderlin, cujas ideias sobre ritmo e lógica poética antecipam o

“espíritodamúsica”deNietzscheeo“ritmodefundo”deRilke.

***

                                                            8 Cf. os trechos da resenha de Leppmann (in: Musen, Heft 6, maio‐junho 1896), reproduzidos nocomentáriodaediçãocrítica(KA,III,809).9TrechodacartaaMarieVonThurnundTaxis,17dezembro,1912,(KA,III,809).10Nenhumdestespoemasfoitraduzidoparaoportuguês.

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NoBrasil,olirismotrágicodeRilketeveenormeimpactosobreGuimarãesRosa,cuja

procura de Sachlichkeit concreta e de elevação elegíaca ou “hímnica” (de hino,

ditirambo) manifesta‐se na estrutura rítmica e musical de Grande Sertão: Veredas.

EmboraapoesiadeRilkepossapareceralheiaàsrudespolémicasdeNietzscheouas

travessias rosianas, os três autores compartilham a mesma dedicação poética à

essênciatrágicaeà“matériavertente”.Masadescobertadestaafinidadedo“Mestre

seráfico” comos poetas‐pensadores trágicos requer uma leituramais aprofundada.

Assim,nãoédesesurpreenderqueapoesiadeRilkejáfoiassociadacom“bijusdeum

níquel”. Ninguémmenos que Décio Pignatari, naBufoneriaBrasiliensis 1 –OPoeta

Virgem, pronunciou este veredicto. Tampouco é difícil compreender porque

modernistas e concretistas mais sóbrios repudiaram os afãs erótico‐marciais do

Corneto eascelebraçõesórficasdosSonetosaOrfeu.Masesterepúdio talvezesteja

maisumrechaçodaenfáticarecepçãobrasileiradosanos1940e50,queparticipoudo

“misticismodefachada”doqualPauldeMandistanciouopoetanasuaintroduçãoàs

obrasdeRilkenaFrança(MAN,1972).Logoemseguida,entretanto,osconcretistas

superamsuaaversãoda“intensavogaderilkeanismo”(CAMPOS,2001;SARAIVA,1984)

eodesdémdepoetascomoNeruda(queesnobou“rilkistas,misterizantes,falsosbrujos

existenciales”noseuCantoGeneral,V,LosPoetasCelestes,1950).HaroldoeAugustode

Campos11simplesmentedeixaramdeladoocultomessiânicoquealgunsprestarama

Rilke e debruçaram‐se sobre o que importa – a atualidade dosNovosPoemas, dos

poemas‐coisa(Dinggedichte)easElegiasdeDuíno.

3‐Rilke:umdosmestresda“vidatrágicaesuspensa”

EmboraRilketenhapercorridotodasasfasestípicasdofindesciècle,elenãopodeser

identificadocomnenhumadelas–nemcomocredonaturalista,darwinianoeateu,com

seusbonssentimentospelopovo(daseinfacheVolk),portrabalhadoreseprostitutas;

nem como esteticismodecadentista com seuspendores por umvagomisticismo e

                                                            11Ver:CAMPOS,H.PoesiadeVanguardaAlemãeBrasileira,In:Aartenohorizontedoprovável,SãoPaulo,Perspectiva,1969.

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doutrinas esotéricas, cujos livros de cabeceira eram Schopenhauer, Wilde ou

D’Annunzio; e tampouco com o vigor nietzscheano do Zarathustra, nem com a fé

panteístadosqueconfiamnanatureza,natranscendênciadosmovimentoscósmicose

naexpressãocorporaldeartistascomoIsadoraDuncan.

Afinadocomotrágicoverterdascoisas,comafluidezdasconfiguraçõesmomentâneas

detodosossentimentos,reflexõeseatos,Rilkesedestacapelaposiçãoaquémealém

dos movimentos do seu tempo. O fascínio juvenil pelo ateísmo quase religioso de

Nietzsche, a delicadeza refinada de sua violência e a sutileza criteriosa (quase

coreográfica)deseuiconoclasmocertamenteconsolidousuadedicaçãoaotrabalhode

dissolverasimagensemnovasconstelaçõesmelódicaserítmicas.

AsanotaçõessãoumestudointuitivoeassociativodotextodeNietzschequeprocura

fortalecerapoéticadojovempoeta,nãoumapublicação.RilkeusavaaediçãoFriedrich

Nietzsche,DieGeburtderTragögie.Oder:GriechenthumundPessimismus.NeueAusgabe

mit dem Versucheiner Selbstkritik. Leipzig, Verlag von E. W. Fritzsch, 1889. O

manuscritoencontrava‐seentreospapeisdeLouAndreas‐Salomé,queestimulouo

interessedeRilkeemNietzscheeFreud.

4‐Pequenoparêntesis:ainfluênciadeSchopenhauer

easuperaçãodosofrimentoedasolidão

As leituras de Schopenhauer e de Nietzsche fazem, portanto, parte do cerne do

desenvolvimentopoéticoeexistencialdeRilke.AolerSchopenhauerem1892(aobra

completafoipresentedopai),elesedebatecomoconflitoseminaldesuavidaedesua

futurapoética–astensõesquenãosomenteseparam,masunemdoreprazer,aartee

a vida. A arte é para Rilke harmonia paralela à natureza, pois as próprias coisas

determinamasordensestéticascomoimagenspurasdasrelaçõesentreasforçasda

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vida.ÉdestaconcepçãoquedecorremtambémasreservasdeRilkecomrelaçãoao

expressionismo,quandoestecelebraacapacidadecriativadeumsujeitoquesecoloca

acima da relação com os objetos. A familiaridade com Schopenhauer e Nietzsche

permitirão compreender melhor a relação de Rilke com as “coisas” enquanto

mediadores das relações puras – visão de umUr‐Phänomen– isto é, da ideia vista

atravéseparaalémdavontadeedador(WWWV,#34).

Há,porém,umaspectodafilosofiaschopenhauerianaqueRilkerejeitadeimediato:a

ideiadequeaconciliaçãodefinitivadosofrimentopossaocorrersomentenodomínio

da moral, através da renúncia. Seguindo Nietzsche, ele se revolta contra a ideia

schopenhaueriana da grande arte como renúncia ao feixe de pulsões difusas que

impulsionama“vontade”.Artenãoé,paraele,superaçãodavontadenemdavida,mas

retraçãonumespaçoquefavoreceasforçascriativasdavidaeabreumnovoacessoàs

coisas concretas: é uma solidãono cernedavida concretaqueprotegeo artistada

dispersãoameaçadora;poisvivernomundoimplicanumaperdadasforçasartísticas

enaacomodaçãonasconvenções.Afamiliaridadeexcessivadispersaaforçarítmica,

fixaamelodiacomotemacompreensível,ordenaeclassificamotivos,domesticandoo

quehádeameaçadoreestranhosnelesemvezdedissolverastensões.

***

Certostemaseideias“nietzscheanos”afloramjánas“Anotaçõessobreamelodiadas

coisas” (cf. Anexo, no final deste texto). Comparando a pintura dos “primitivos”

italianos(figurasdesantoscujascabeçasaparecemisoladasporauréolasdouradas)

com os mestres do chiaroscuro, Rilke destaca os efeitos poéticos “musicais” da

combinaçãododesenhocomastonalidadesdacor,desombraeluz.ÉcomoseRilke

falasse,comoutrostermosepalavras,datensãoentreoprincípioapolíneo(clareza

nítida, compreensível e definida) e o dionisíaco (o fluido epifânico do ritmo e da

melodiaparaalémdasnotas),deforçasqueestãoatrásdascoisasrepresentadas,as

atravessam e envolvem. Estas forças – musicais, rítmicas ou dionisíacas, como

Nietzsche os chamará – representam o princípio de unificação e de vitalidade que

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reanima o que foi violentamente separado e isolado. Nas “Marginália” podemos

destacarosseguintestópicoscomonúcleosdaleiturarilkeanadeNietzsche:

música como energia cósmica precisa ser contida nas “vasilhas” do canto

popular;

amúsicaentendidacomo“granderitmodefundo”éo“livreexcedentedeDeus”,

istoé,umaforçaaindanãoligadaquesobroudacriação;

ritmoemúsicaconstituemopotencialcriativo;

músicacomopotênciaunificadoraepromessacomunitária;

músicacomoforçaàesperadaimagem;

música como potência fusional é promessa de liberação das formas e

convençõespetrificadas;

amelodiatransfiguraetornadispensáveloenredo(históriaracional);

amúsicacomoforçaoriginárianãopodeserinstrumentalizadacomodecoração;

oespíritodamúsicacomoalmadaintegridade(social,políticaepessoal)grega;

músicaéfluxoilimitado;

acriaçãoartística(canto,imagem,drama,escultura)sãoesforçosdecaptaro

excessomusical.

5‐Anexo1‐RainerMariaRilke:“Marginaliaemtornode

FriedrichNietzsche:‘ONascimentodaTragédia’,1900”12

Doseuinterior,amelodiadáàluzapoesia,eistosempredenovo;aformaestróficada

cançãopopularnosdizisto,enadamais:observeiestefenômenosemprecomespanto,

atéfinalmenteencontrarapresenteexplicação.

                                                            12TraduçãodeKathrinRosenfield.

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Asestrofesdacançãopopular13podemsercomparadascomvasilhasrecebendoaágua

deumafontequejorraclara.Ricaerápidaelaencheasprimeirasvasilhasfestivasque

lheforampreparadas.Maselasnãoestancamseujorro.Eopovoterminaportrazer

todasasvasilhasdeseuusocotidianoedeixaaáguaenchê‐lasatéficarempesadas.E

ascriançasestendemasmãosemconchas.

Amúsica(ogranderitmodefundo)deveria,portanto,sercompreendidacomo:aforça

intataquefluilivreequenosinspiracertopavorquandopercebemosqueelanãoentra

nas nossas obras para vir a conhecer‐se no fenômeno,mas que paira por cima de

nossas cabeças, despreocupada e alheia, como se nós não existíssemos. Como não

somoscapazes,porém,desuportaraforçaintata(i.e.opróprioDeus),estabelecemos

relaçõescom imagens,destinose figurasecolocamosnoseucaminhosempremais

coisasqueacomparamcomalgo14,poiselamesmapassa,orgulhosacomoumvitorioso,

aolargodetodososfenômenos.

AinfinitaliberdadedeDeusfoilimitadapelacriação.Comcadacoisaumpedaçodesua

forçaficouvinculado.Masnãoésuavontadetodaqueseencontravinculadanacriação.

Amúsica(ritmo)éolivreexcedentedeDeus,quenãoseesgotouaindanosfenômenos,

eesteritmoéodesafiodosartistasquandosentemaurgênciaindistinta,aposteriori,

                                                            13RilkereageàideiainovadoradeNietzschequerealçouovigordoselementospopularesnatragédia.NoentenderdeNietzsche,asformaspetrificadasdapoesiaeruditatornam‐seflexíveisaoabrir‐seàsformasdeexpressãoespontâneaseemocionalmentecarregadas.Éaatmosferaou,comodizRilke,atelade fundo rítmica que dá acesso ao que há de sofrido, cruel, grotesco na experiência (heroica). Esta“música” da vidaque se expressapara alémdo conhecidoda forma clássica eda elegância artísticaformalmenteacabada.AtragédiaclássicanãoéparaNietzsche,ofimdeumprocessoderefinamentolinear, mas uma criação oriunda de uma ruptura com convenções cristalizadas, que abre espaço àirrupção de elementos heterogêneos da cultura popular (mitos arcaicos e cortejos rituais com suaritmicidadeegestualidadepróprias).UmaafinidadenaturalcomasideiasdeNietzschejásemostranofato que as primeiras obras de Rilke, por exemplo,Larenopfer (Sacrifícios aos deuses do lar, 1895)partemdascançõespopularestchecas.Umdospoemasmaisprecoces,Volksweise,evocaaemoçãoeaintensidadedaalmanascançõesdopovodaBoémia.14Aconcepçãovitalísticadamúsica(comoforça,ritmo,movimentoelementar)quesimultaneamentesustentaeameaçaaexistênciadoindivíduoedasociedadecarregaoecodosterroresdainfânciadopoeta (muito semelhantes ao personagem Marcel de Proust). Para ambos, escrever é uma forma(existencialeterapêutica)defazerfaceàmemóriainvoluntárianaqualseentretecemreminiscênciaspavorosas e maravilhosas. Criar imagens é dar forma e manter em limites suportáveis este fundoinquietante.Aincapacidadedeabrangerapletoradaforçacriativa(musicalerítmica)éumdosmotivosdefundodoStundenbuch(LivrodasHoras),cujaprimeirapartesurgiuem1899.Ovolumeseapresentacomo um constante jorro de imagens – verdadeira maré que a criatividade precisa estancar comincessantesperífrases,comparações.

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decompletaromundonaquelesentidoqueestaforçacriariaaoprolongarsuacriação

–eestacriaçãoerigiriaimagensderealidadesqueaindaaguardamairrupção.15

O Coro: para compreender corretamente a significação do sonho é necessário que

vejamososonhador.Nossaparticipaçãoseintensificaquandonãoéumserhumano,

um ente apenas, mas vários que se sentem ritmicamente movidos pelo

compartilhamento de seu sonho; eles então ocasionamaqueles fenômenos que são

representadoscomoocorrendoforadeseussentidos,comoaçãonumpalco,talqualse

desenrolam no interior [dos sonhadores] . Estes sonhadores são aomesmo tempo

capazesdenoslivrardomedoedosconstrangimentosdaação,poiselespermanecem

sempreiguaisasimesmos.Paracompartilhar,noentanto,seuserintocável,oqualnão

deve ser triturado pela crueldade de seus sonhos, é necessário que eles sejam

parecidosconosco,fraternos,nãonascoisascontingentes,masnoquetocaostraços

permanentesdenossoser.Nósnossalvamosdojogomovimentadodopalcotomando

refúgionoscírculoscalmosdesuadança,esuasegurançaeproximidadenosdevolvem

aaptidãodenosalegrarmoscomopavorosoenquantoalgopassageiro;desejamosaté

mesmoacatástrofe,paramirarmos,atravésdaqueda,oeternoqueanimaocoro.

Tal como a cultura grega se desenvolveu através do olho, a nossa amadurece pelo

sentimento.Ondeelescriaram,comodrama,umportoseguroeumrefúgioparaoolho,

nós temosque auxiliar o sentimento. Se a tragédia ática exigiaumcorovisível, nós

temosquetentardeconstruirodramamodernoapartirdeumcorosensível16,evê‐lo

atravésdeste.

                                                            15Cf.ImGespräch1898/9“Artesignifica,nãosaberqueomundojáestáaíefazerumnovomundo[...]Nuncaacabar.Nuncaterumsétimodia.Nuncaverquetudoébom[...]Eisminharazãocontraele(i.éDeus)[...]Poiselenãofoiartista,eistoétãotriste[...],deveríamosrecomeçarnolugarondeDeusparou[...].Navidaistosignifica,comohomem.”(KA,IV,838)16Cf.“SobreaMelodiadascoisas”,umconjuntodeanotaçõesnasquaisRilkefixasuasideiassobreofundoinacessíveldavida,domundoedascoisas.Atarefadoartistaéprecisamenteestaaberturaquepermiteo confronto com a “tela de fundo rítmica” (rythmischerHintergrund). Na leitura doNascimento daTragédia, Rilke associa sua ideia do “fundo rítimico” com a dança rítmica e musical “do coro daantiguidadequeabsorveuasabedoriamaissábia(dasweisereWissen)”.Estasabedoriacriatural,arcaica,imemorial–queNietzscheatribuíaaovelhoSileno–estávoltadapara“aquiloqueune”oshomens“nascoisasàtrásdeles”(KA,IV,103‐113),emoposiçãoaovalorsemânticoouintelectualqueconferedomíniosobreomundo.

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Odeleitedoestadodionisíacocomsuaaniquilaçãodasfronteirascomunsdaexistência

contém,enquantodura,umelemento letárgiconoqualmergulhatudoquefoivivido

pessoalmentenopassado.Assimháumabismodoesquecimentoqueseparaomundo

cotidianododionisíaco.

A vida dionisíaca é um viver‐em‐tudo17ilimitado, e em comparação a ela as coisas

cotidianassãocomoumamascaradaridícula.Masaartemedeiaaexperiênciadeque

estamascaradaéaúnicapossibilidadedeentrar,oraevez,nestasconexõesimensas

queseestendemparaalémdemomentosemetamorfoses.

Umpúblicodeespectadorestalcomonósoconhecemoseraimpensávelparaosgregos:

nosseusteatroscadaum[...]eracapazdeveredominarouniversoculturalcompleto

aoseuredore,nestavisãosaciada,podiaidentificar‐secomosmembrosdocoro;[o

espectador]sentiaqueera,elemesmo,umdeles.

Comonãoépossívelcolocardiantedeumgrupodesereshumanosumarealidadeque

cadaumpossasentirecompreenderdomesmomodo,éprecisointerporentreopúblico

eacenaumolhocujoolhartranquilopercebeaaçãoacadamomentocomocorretae

verdadeira18.Eopúblicoprecisacorrigirsuacompreensãoapartirdesteolhoetornar‐

se,graçasaele,umsócorpoimenso,quetomaumaposiçãouniformecomrelaçãoaos

acontecimentosnopalco.

                                                            17Cf. as ideias análogas a este desejode viver‐em‐tudo, que encontramos quase um século antes naidentificaçãodeHölderlincomseupersonagemtrágicoEmpédocles:“Empédocles,[...]inimigomortaldetodaexistênciaunilaterale,poristo,insatisfeitotambémquandoviveemcircunstânciasrealmentebelas, [e um ser] inconstante, sofrido, simplesmente porque não suporta o que há de específico edeterminadonascircunstânciaserelações;apenasoquefoisentidonumgrandeeamploacordocomtodososviventespodepreenchê‐loplenamente;elesofresimplesmenteporquenãoconseguevivereamarcomelescomumcoraçãoonipresenteeintensocomoumdeus,elivreeespraiadocomoumdeus,simplesmenteporqueeleestá,assimqueseucoraçãoeseupensamentoapreendemascoisasexistentes,acorrentadoàleidasucessão”(DKV,2,421).18Amúsicaeadançadocorosãoumaherançadoscortejosdionisíacosrituaisarcaicos.Natragédiaamúsicaasseguraaparticipação imediatadoespectador,queestápresenteemcorpo‐e‐alma.Elanãoapenascontagia,masdáacessotambémaoprocessopoéticoocorrendoentreaslinhasdotexto,atrásdaspalavrasenofundorítmicodascoisas.EstasideiastêmgrandeafinidadecomaideiadeHölderlinàpropósitodaafinidadeentre‘lógicapoética’eoritmo:oequilíbriorítmicodaapresentaçãodapeçacomoumtodosuspendeovalorconvencional(semantismoestático)dasrepresentaçõessucessivas.(DKV,2,p.849)

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Ocorodesátirosé,numprimeiromomento,umavisãodamassadionisíaca,talcomo

porsuavezomundodopalcoéumavisãodestecorodesátiros:aforçadestavisãotem

o poder de nos tornar insensíveis às impressões da ‘realidade’, tornando‐nos

indiferentesparacomoolhardoshomenscultivadosqueocupamosgradientesdo

anfiteatro.

Nocoro,oespectadorreconhece‐seasimesmo,liberadodetudoquelheécontingente

e temporal(seinemZufälligenundZeitlichen),desuacultura,eelecompreende,por

estedesvio, a visãodaquele coroque se apresentana ação, ele a compreende e ao

mesmotemposuperaseupeso.

Agoraocoroditirâmbicorecebeatarefadeestimularadisposiçãodosespectadores

atéaquelegraudodionisíacoquelhespermitever,quandooheróitrágicoentraem

cena, não mais a máscara deformada do ser humano, mas uma visão encarnada

(Visionsgestalt)nascida,porassimdizer,deseupróprioencantamento.

Não seriam as danças e canções dos povos selvagens ditirambos congelados neste

ponto de vista preparatório, [ditirambos] que não conseguiram chegar ao

amadurecimentonodrama?

Omagnífico ‘saber fazer’ dograndegênio, oqualnão recebe suapaganemmesmo

atravésdosofrimentoeterno,oorgulhoamargodoartista–eisoconteúdoeaalmada

poesia de Ésquilo, enquanto Sófocles com seu Édipo entoou o prelúdio do canto

vitoriosodosanto.

Oatocriadordoartistatemalgoequivalentesomentenoocasosofridodonão‐artista:

ambosocasionamumaviolência imensanos seresmelancólicos (schwersinnig). Por

sobre o túmulo de um santo, despertam homens novos em número igual aos que

acordamsobreaobraimortaldeumartistacriativo(einSchaffender).

Éprecisocolocarnopalcoaquelaaçãoquepermitaestimularnosentimentodecada

indivíduoumaexperiênciaviávelequeajacomapotênciaviolentadeumaimensamão,

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arrastandoeunindoamassadosespectadores19.Oeventoestimuladordeveocorrer

deformaindependentedostatusdasfigurasrepresentadas,doseumeioedotempoda

ação,numsegundopalcoideal,queseapresentacomoocenáriodaquelereencontro

celebrado pelas almas liberadas dos espectadores que criaram afinidades nesta

intensificação.Aaçãodeveocuparosegundolugarquelhecabetambémnodrama(de

modoanálogoaoqueacontecenapintura),dandolugaraumacontecimentorealmente

artístico.Opalconãodevetornar‐semaisreal,próximadaverdade,masprecisater

maisafinidadescomaaparênciaeabeleza.Algocomumaoshomens(nãoaoshomens

deumaclasse,deumtempo,deumamoral),masaoshomenscomotais,precisasurgir

por detrás da ação, como se fosse uma lembrança que une e que convoca todos a

lembrarem‐seearefletiremsobreainfânciaquetêmemcomum;énesteponto,nãono

âmbitodocenárioedoenredorelativamentecontingentes,quedeveaconteceroque

importaeoqueredime.Nãoojogo,masamelodiadojogo20deveseraforçasintética

unificadora(dasZusammenfassende),poiscadaumseencontraráemacontecimentos

eexperiênciasqueseguiramoritmojustamentedestamelodia,(paraaqualapeçaé

somenteumaentremilinterpretações).(OrenascimentodeDionisos.[Nietzsche,cap.

8])

Depois do crepúsculo no qual findou a noite titanesca sempre pronta para a luta,

levantou‐seamanhãdeHomero,quedeulimitesdivinasàscoisas.Eseusolestendeu

sua alegria sublime sobre o rosto das coisas.Mas toda esta ordemparecia ter sido

criadacomoumabelapaisagemparaatempestadedionisíacapoderpassar.

Édesepensarquearapidezcolossalcomqueseproduzemosprogressosinteriores

emSócrates, tornouultrapassadas todas as possibilidades dopensamento, também

aquelasquepoderiamtersurgidodeseuinconsciente;assim,oinstintoempobrecido

                                                            19Segundooeditordaediçãocomentada(KA,IV,839),RilkeprojetaaquiumasnasoutrasasidéiasdeMaeterlinckedeNietzsche.NumacartaàatrizElseVonhoff,do10dedezembrode1901(KA,IV,190‐9),eleescreve:“Maeterlinck[...]procuralocalizar[comofundamento]algumsentimentoelementar[...]algosimples,próximodeumaxiomaequeseadéqüeàdimensãodacançãopopular,suasnostalgiasemedos,suacrença...eleprocuraumadasgrandesatmosferasdefundosobreasquaisrepousariam,comoqueempilares,osmúltiploseconfusoscorredoresdolabirintodasemoçõeshumanas(Empfindungen)”(193).20Cf.Anotaçõesparaamelodiadascoisas,emparticularaintrodução(KA,IV,103‐113)

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ficoudemãosvaziasepodedefender‐seapenasaodarsinaisdealertaeimpedimento.

Nãoseriaoinconscientesemprecondenadoaestepapelquandosetratadecabeças

logicamentemuito ativas e talentosas? Somentena prisão (que acontece depois da

eliminaçãodesuapersonalidadedasposiçõesdeliderançanavidapública),quandoa

força lógica ficou ociosa, este instintomanifestou‐se timidamente, ressoando como

umanostalgianosilêncioqueprecedeuamorte.Suaalmaansiavapormúsica.Eos

lábiosressequidosnoventodoverbobeberamintuiçõesnocálicedossons.E,talvez,

nãoforadascoisaspassadasqueeletirouaforçaparamorrer,talveznãoforadesua

obra,masjustodaquelanovapromessa;assimelefoiparaamortecomosefossepara

odiaseguinte,sentindoqueesteseriaodiadamúsica21.

Acreditamosna‘vidaeterna’,eisoqueexclamaatragédia;enquantoamúsicaéaideia

imediatadestavida.Étotalmentediversooalvonaartedoescultor:aquiApolosupera

o sofrimento do indivíduo através da glorificação esplendorosa da eternidade da

aparência, aquiabelezaévitoriosasobreo sofrimento inerenteàvida,adorépor

assimnegadaeborradadostraçosdanatureza.

Comrelaçãoaopretextoqueusamosparaaplicaragrandemúsicadionisíacaaocaso

particularenquantoimagemeparáboladesta,poderíamosdizerquehápretextosmais

emenossignificativosequeomaisagudoéomitoelemesmo,emparticularomito

trágico.Otrágiconãosedeixademodoalgumdeduzirdaarteenquantobelaaparência,

apenasamúsicapermitecompreenderaalegriaparacomadestruiçãodoindivíduo.

“Acreditamos na vida eterna”, grita a tragédia, enquanto a música é a ideia mais

imediatadavida.

                                                            21Fusãodasideiasnietzschianascomaideiafreudianadoinconsciente.OndeateoriadeFreudensinaqueorecalqueeacensuranãoalteramaforçadapulsão,porém(aorepresarapulsão)terminamporprejudicar a própria racionalidade (introduzindo atos falhos, lapsos, e formações neuróticas), Rilkeidentificao inconscienteeo instintocomoforçasempobrecidasedebilitadaspelarazão.Masaforçaracionalelógicaéprejudicialsomentenasuaformaaplicadaàpreceitoseconvençõessociais,nãoemsimesma contrária ao instinto. Nesta fase de sua obra, Rilke acredita que, uma vez superados osimperativosdavidasocial,aforçalógicaabrir‐se‐iadenovoàplenitudeeintensidadedodionisíaco,doinstintoedoinconsciente.

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Nasartesplásticas,Apolosuperaosofrimentodoindividuoatravésdaglorificaçãoda

eternidadedofenômeno,enquantoaartedionisíacacelebraliteralmenteafugaeterna

dasimagens,dosfenômenoseaparências(Erscheinungen).

Omesmoabusoque sofre amúsicaquandoela é forçada a coloraraposteriori um

fenômeno(clamordabatalha,p.ex.)podemosencontrartambémnalírica,‐apenas–

quando entendemosmúsica aqui (como já tentei fazê‐lo antes) no sentido daquele

ritmoprimáriodofundo,cujosaberouviriniciaacriaçãolíricaquesealimentadesua

redençãonasimagensquesurgem.Amaioriadospoemasnãosãoimagensarrancadas

aofrêmitodamúsicaestranhaeintocadaquejorraeflui,elasnãogiramcomorodas

demoinhonacorrentezadaáguaquecai,massãocomomoinhosparaosquaisuma

imensa labuta terá de levar águas longínquas e sonolentas a mover a roda com

impulsosrelutantesevagarosos.Nos temposemqueosritmossaltameesguicham

(rauschend22),todasasvasilhastêmdeserpreparadasparabelamenteacolheraforça

movente,eteremosdeexportudoquehádematerialparaolustrodoscéus,demodo

que estes teçam na trama das coisas os fios de ouro que acabam o festivamente

desenho.

O mito trágico pode ser compreendido somente como uma trama de imagens

(Verbildlichung)dasabedoriadionisíacacomosmeiosartísticosapolíneos[...]Ste.127.

Anteriormenteaomitotrágicojádeveexistiraquelaação‘musical’cujopalco/cenário

éoespaçonoqualosespectadoresseencontram,levadospelosentimentodeuniãoe

unidade (Einheit)23. Tal como o coro da antiguidade que apresentava suas danças

ditirâmbicasnoespaçoelevado[doteatro],assimdeveosentimentocomeçaradançar

                                                            22Aconcepçãorilkeanadoritmoedamelodiacomo forçaselementaresdopoeta líricoapóia‐senãosomentenas ideiasdeNietzsche,mas tambémemMaeterlinck.Para ilustraro ladoperformáticodateoriarítmicadopoeta,HorstNalewskirelataaanedotadaestadadeRilkenacasadeHeinrichVogeler;Rilketantoacompanhavasuasrecitaçõescomgestosebatidasqueagovernantaescutava,perplexa,ospassosmovimentosrítmicosdeRilkenoquartoacima.(KA,IV,839).–MaspormaisqueRilkeapostassenaforçarítmica,elecomeçoumaistardeadesconfiardomodoassociativoedeslizantequeameaçaapoesia e a criação em geral com sua monotonia e falta de rigor do pensamento. “Eu poderia tercontinuado indefinidamente a fazer taisversos, [...] edepois, oque?”[cartaaKatharinaKippenberg](RILKE,1942,p.164).23Este ideal de uma sensibilidade compartilhada (sensus communis – condição de possibilidade dacomunidade livre) opõe‐se ao espectro da massa histérica ou fanática (cuja unidade se baseia emnecessidadessociaisecarênciaspsicológicas).

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na alma elevada do espectador único e uno que se compõe, como por milagre, de

centenasdesereshumanosquandoobservaojogoteatral.Tenhoonítidosentimento

dequeocorodeveserinstauradonoespectador,nãonoespectadorsingular,masno

estar‐junto(Gemeinsamkeit)surpreendentemente festivode todos, comunidadeesta

que deve criar‐se por um prólogo e prelúdio (Vorspiel) antes do drama. Somente

quandoumúnicohomematemporal,nãoquinhentoshomensdehoje,sesentamdiante

do palco aguardando [o drama desta re‐união], terá algum sentido o levantar da

cortina24.

Seaplicássemosestespreceitosaodrama[moderno],estariamrestabelecidostambém

aquiosdireitosdamelodiadefundo.Perseguindoesteintuito,Eurípidestãosomente

seguiuseusentimentoseguroecerteiro(gutesGefühl),quandocolocounoprólogoa

narrativado conteúdode suaspeças, pois este conteúdo jánão foimais tiradodos

mitosantigos25.Nodramanovo/moderno,omesmoteriadeacontecernesteprólogo

que tenho em mente (mesmo quando se trata de um material mítico realmente

conhecido), pois osmitos não sãomais tão vivos nos dias de hoje emais suscitam

lembrançasescolaresmortasdoqueverdadeirasrelaçõespoéticas.Oprólogoteriade

1) unir os espectadores, fundindo‐os e construindo aquele palco imaginário que

moveráseussentimentos,e,2)contarparaopúblico,duranteoprocessodesuafusão,

atramadaaçãoiminente,deformaqueaforçaque,deoutromodo,sedissipariaem

tensãoecuriosidade,ficariaguardadaparaumaverdadeiraparticipação.–

Aquelamortedatragédiafoiaomesmotempoamortedomito.Atéentão,osgregos

tinhamtãosomenteapossibilidadedevinculartudooqueviviameexperimentavam

diretamente com seus mitos, mais: de compreendê‐lo tão somente através deste

vínculo.

                                                            24Anostalgiadaunidadede todasascoisas–desereshumanosdediferentesclasseseordens,mastambémdeanimaiseplantas,coisasfabricadasouminerais–éomotordosrituaisdionisíacos,dosmitose lendas. Seus ecos ressurgem nas lembranças infantis, e, em particular, nasmelodias e narrativascompartilhadasqueconstituem,paraRilke(comoparaHölderlin),olastrounificadordasociabilidadeedacultura.25EmboraosenredosdosmitostrágicosdeEurípedespossamsernovos,esteúltimodostrêsgrandestrágicosantecipanoprólogoa“história”e,satisfazendoacuriosidade,liberaaatençãodopúblicoparaa ação poética do drama.Brecht retoma esta ideia e a combina como estranhamentopara suscitarconsideraçõescríticasdopúblico.

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À propósito Ste. 135. Na tragédia ática antiga, tudo o que é contado ainda estava

vinculado com os velhosmitos conhecidos; e como estes eram as únicas imagens‐

parábolaspelasquais fluíame jorravamos tons semprenovos como forçase cores

diversas, não havia como sobrevalorizar a “matéria” do enredo. Somente com o

aumentodospretextosocorreuemtodasasartesestasobrevalorização,simplesmente

porqueestesenredos‐pretextosnãoerammais,comoosmitos,conteúdosfamiliares,

[porém]suscitavaminteressepelanovidadedomaterial26.Assim,oolharperdeucada

vezmaisavisãodaúnicacoisaimportante,dofundo[musical,rítmico],atéperder‐se

deveznasconfusõesdaaçãodoenredo,esgotando‐seneles.Apinturafoiaprimeiraa

encontrarocaminhodevoltadestaerrância,poiselagostadesevoltar,sempredenovo

para os motivos tradicionais bem conhecidos e tem o sentido vivo e natural da

vantageminerenteaofatoqueoespectadornãoprecisacomeçaradebater‐secomo

conteúdodaimagem.

AtrásdemimhácorossombriosFlorestasruflamemareschiam;Edosombrossolta‐seopeso,Quandoportrás,nofundoOuço,maisamploqueomeu,Umhálitoqueenvolveomundo.Eseiquepossoconfiar,QueminhasmãosnãomeenganamSedelasnovasformasemanamEqueopesotodoaturamParapoder,quandorespiram,Nopeitofundooartragar.(18demarço1900)

Música,suavizadapelaaçãodoenredo:eisoqueexpressariaaessênciadodramade

modomaissucinto;enumsentidomaisamplopoderíamosdizer:aaplicação,noepara

o nossomundo, da força livre deDeus que não foi concebida paranós27. Ao gasto

aparentedesta força anosso favor corresponde a aparenteperfeiçãoda criaçãodo

                                                            26Em outras palavras: em vez da sensibilidade e do pensamento estarem abertos ao fundo rítmico(inquietanteemaravilhoso)daexistência,aconsciênciaadquireumfocomaisestreito;assim,elasedeslocaparadeterminadofoco(político,social,familiar,histórico,artísticoetc.)eadquireaformadoconhecimentoedodomínio,queviabilizamareflexãoeaaçãodosindivíduosedascomunidades.27Rilkeafirmaaquisuavisãodomundodes‐centrado.DesdeHölderlineKleist,oserhumanonãoémaisocentro,nemopontodereferênciaúnicodouniverso.Arazãodeserdaarteédamúsicaéprecisamentedenosdaracessoaoutrasdimensõesdaexistênciaedoser.

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mundoatravésdabeleza–aarteé,portanto,ocomplementodaimagemdeDeus,que

expressaomundorealapenasparcialmente.

Comaforçadapotênciadionisíaca,istoé,doelementoquefluiritmicamenteeéhostil

àsformas,forçosamentecrescemtambém,enquantoresistência,abelezaeorigorda

forma.Aquelepovocujaspulsõesdionisíacassãoasmaisveementes,rugindocommais

força, precisa ter o maior rigor na formação pessoal e na de suas obras, e isto,

simplesmenteparapodersubsistir.Ojúbilodesatadodacomoçãoíntimaintensificaa

tranquilidadeflexíveldaformaqueelemove.

Parece‐mequefoioacasoWagneroresponsávelporNietzschedeimediatodebruçar‐

se sobre esta oportunidade próxima (próxima demais!), aplicando a ela seus

conhecimentos e esperanças que tão pouco combinam com a essência alemã; isto

prejudica grandementeoúltimo terçodo livro. Estedano émaiordoqueousoda

terminologia de Kant e Schopenhauer. Se, em particular, a concepção

SchopenhauerianadamúsicacontribuiumuitoparaadiantarasintençõesdeNietzsche,

aaplicaçãoimediatadetodoomaterialrecém‐descobertoàscriaçõesdeWagnercriam

uma atmosfera decepcionante; na verdade, não queremos que todas estas coisas

elevadaseprometidasserealizemdeimediato,esobretudoacreditamosqueoredator

dolivroteriaacapacidade(enquantopoeta)paratentarde“ressuscitarDionysos”.

6‐Anexo2‐RainerMariaRilke:

“Comrelaçãoàscoisasrussas”28

Nãoseriaoelementodionisíacoaquiloquemoveoscortejos(chorowod)dosrussos?

Enquanto as cantorias dos Sentados – figuras dos antigos cantos heroicos –

representamoscorposdeformapesadaetangível,todasasfronteirasestilhaçamsob

                                                            28 TraduçãodeKathrinRosenfield. 

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do impacto daquelas canções que irrompem acelerando e engolindo os giros dos

cortejoscirculares.

Enãoseriaomitorussooúnicoqueaindatemproximidadesuficientecomasmassas

parapoderserusadomaisumavezcomoparáboladavidalivredosom?–entrenós,

procuraríamosemvãofigurasquepossamsercoreutas,aopassoqueéfácilimaginar

um grupo demujiks apresentando num palco (Vorbühne) cantorias dançantes que

devemsuscitaraquelavisãonaqualoverdadeirodramaseapresenta.Oqueosátiro

expressavaatravésdesuaproximidadeesabedoriadomundoconcreto(Weltnäheund

Weltweisheit), aquilo que perdura, é o que também viria à tona no caso destes

camponesesedesuavisão.Demodoanálogo,odramaseriavisualmenteforteemesmo

assimnãopesariademaissobreosentimento.

Chamaatençãoque,emtodososefeitosmencionados,podemossempresubstituirno

lugardotermo“música”aquelaoutracoisaquenãoémúsica,masqueseexpressado

modomaispuroapenaspelamúsica.Opoetalíriconãoprecisadamúsicaparacriar,

masapenasdaquelasensaçãorítmicaquejánãoprecisariamaisdopoemasepudesse

antesganharvoznamúsica.Enãoqueriaamúsicaemgeraldizeraquelaprimeira,

obscuracausadamúsica, e com istoa causade todaaarte?Força livreemovente,

excessodeDeus?Tambémapinturaeaesculturasótêmoalvodeinterpretaraquela

“música”,degastá‐laemimagens.Eentãoamúsicapoderiaseralgocomoatraição

daquelesritmos,aprimeira formadesuaaplicação,aindanãoaplicadaàscoisasdo

mundo,masaossentimentosesensações,anós.Aistoseguiriaalíricaquenosvincula

docementecomomundoao falardenossossentimentoscomose fossemcoisasdo

mundo;ededentrodalíricadesenvolve‐se,porintermédiodasartesplásticas(quejá

tratamdeummodosimbólicodascoisasdomundo)surgeodrama,ainterpretação

mais imagética e, por isto, a mais perecível dos ritmos ocultos; esta derradeira

interpretação,noentanto,visadespertarnosespectadoresaquelacausaprimáriada

arte, ela destrói a individualidade nos espectadores singulares e cria uma unidade

entre centenas, isto é, um instrumentopara aqueles ruídos de fundodionisíacos. E

assim fecha‐se aqui o círculo. Emergindodamultidão violentamente unificadapela

embriaguezdoolhar,solta‐seumsersingulargraçasasuaforçasombria,isolandosua

figuraedesperdiçandonossonsdeumaflautaodeusquepossuiamultidãoabalada.

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Ooriginárioéobaterdasondasdoilimitadoesuamaisperfeitaecompletaexpressão:

música.Emquasetodasuaamplidãoateladefundomovimentadaganhavoznamúsica,

–aopassoquenodrama,queésuaderradeiraaplicação,encontraseulugarapenas

umapartepequenadestateladefundoqueseincorporanasfigurasdramáticasesguias;

masestaparceladateladefundotemaqueleefeitodetransformarosespectadoresem

uma coisa relativamente ilimitada, surtindo, assim, um palcomomentâneo daquela

maréoriginária(Wellenschlag).

Quantomaior amultidão que é unida pela tragédia,maior será também a cena do

originárioetantomaisimportanteseuefeito.Odramadeve,consequentemente,unir,

sintetizar,namesmamedidaemqueexpressõesartísticasqueestãomaispróximasdo

ritmo originário, (música, lírica) devem tornar solitário[o artista e o espectador] .

Quantomaisamplaecompletaateladefundo[...]

***

7‐Anexo3‐RainerMariaRilke,ParágrafosIII‐XIVde:

“AMelodiadascoisas”29

III. Lembrei: observando,meocorreuqueainda costumamospintar sereshumanos

contra um fundo de ouro. Como os Primitivos. Eles se erguem diante de algo

indeterminado.Àsvezesdiantedeumfundodeouro,àsvezestambémumcinzento.

Àsvezesnaluz,efrequentementecomumbreuimpenetrávelportrás.

IV.Istoécompreensível.Parareconhecerossereshumanoseranecessárioisolá‐los.

Mas depois de uma experiência prolongada cabe recolocar estas contemplações

                                                            29 TraduçãodeKathrinRosenfield. 

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isoladas de novo numa relação, e de acompanhar comumolhar amadurecido seus

gestosamplos.

V.CompareumavezumquadrocomfundodeourodoTrecento(séculoXIV)comuma

dasnumerosascomposiçõesmaistardiasdosmestresitalianos,nosquaisasfigurasse

encontramparaumaSantaConversazionediantedateladefundodeumapaisagem

luminosa no ar luzente de úmbria. O fundo de ouro isola cada uma das figuras, a

paisagematrásdelesbrilhacomoumaalmacomum,dedentrodaqualelesbebemseus

sorrisoseseuamor.

XII.Deilhaemilhanãoháoutrapossibilidade:saltosperigososnosquaisarriscamos

maisdoqueospés.Umconstantepularparaláeparacásecria,comacasoseridículos;

poisacontecequedoisseressaltamumparaooutro,aomesmotempo,deformaque

sóseencontramnoar,edepoisdestatrocapenosaterminamtãoafastados–umlonge

dooutro–comoantes.

XIII. Istonão émuito surpreendente; pois, na verdade, aspontesque levamparaa

uniãoepelasquaisseandacompassosbelosefestivosnãoestãodentrodenós,mas

atrásdenós,bemcomoovemosnaspaisagensdoFraBartholomeooudeLeonardo.A

bemdaverdade,avidaseaguçanaspersonalidadessingulares.Depicoparapico,no

entanto,asendapassaporvaleslargos.

XIV.Quandodoisoutrêspessoasse juntam,nãoestãopor istounidose juntos.São

comomarionetescujosfiosestãoemmãosdiversas.Somentequandoumamãoguia

todos,háalgocomumqueseestendesobreeles,algoqueoslevaaseinclinaremum

diantedooutroouasebater.Etambémasforçasdohomemestão,ondeterminamos

fios,numamãoquesustentaereina.30

                                                            30 Esteparágrafo,emparticular,jáantecipaaideiadomovimentomusicalerítmicoqueguiaemovearepresentaçãoartística(esuarecepçãopelosespectadores).ParaNietzsche,ocorotrágicoéafiguradosonhadorcoletivoquepermiteaosespectadoresentrarnomovimentorítmicododrama(edavida).Emvezdesefixarnosdetalhesisoladosdoenredo,pensandonasignificaçãodecadapersonagemoupalavra,ocoropermiteperceberseumovimento:comoumagrandeonda,amúsicareconfiguraosconteúdostradicionais.

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Disponívelem<http://www.zeno.org/Philosophie/M/Schopenhauer,+Arthur/Die+Welt+als+Wille+und+Vorstellung>.Acessoem:abrilde2014.

Notasobreaautora

Kathrin Rosenfield, Professora Titular no Dpto. de Filosofia da UFRGS, possuigraduação em Letras pela Université de Paris III (Sorbonne‐Nouvelle) (1980),mestradoemAntropologiaHistóricapelaÉcoledesHautesÉtudesenSciencesSociales(1981)edoutoradoemCiênciadaLiteraturapelaUniversidadedeSalzburg(1984).PósDoutoradonaÉcoleNormaleSupérieure(Ulm‐Paris)sobreHölderlineSófocles;ePósDoutoradonaUniversityofMassachusetts,Amherstsobre traduçãoecríticadaobradeRobertMusil eReleiturada versãohölderlinianadeÉdipoRei de Sófocles.AtualmenteéprofessoraassociadadaUniversidadeFederaldoRioGrandedoSul.TemexperiêncianasáreasdeFilosofiaeLiteratura,comênfaseemTeoriaLiterária,atuandoprincipalmente nos seguintes temas: Estética, Filosofia e Literatura, LiteraturasBrasileira,LiteraturasGermanicaeAustriaca,LiteraturaAnglo‐Saxã,Psicanálise,Arte.


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