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ROSENFIELD, Kathrin (2016) Ritmo e música no pensamento de poetas e filósofos: de Hölderlin a Rilke e Heidegger. Per Musi. Ed. por Fausto Borém e Lia Tomás. Belo Horizonte: UFMG, n.35, p.15‐45. 15 DOI: 10.1590/permusi20163502 ARTIGO CIENTÍFICO Ritmo e música no pensamento de poetas e filósofos: de Hölderlin a Rilke e Heidegger Rhythm and Music in the contemplation of poets and philosophers: from Hölderlin to Rilke and Heidegger Kathrin Rosenfield Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil. [email protected] Resumo: Desde o pré‐romantismo alemão, a música mantém relações cada vez mais íntimas com a poesia e a literatura. Rastreamos aqui alguns dos modos de aproximação destas duas formas diversas de expressão artística, mostrando como a literatura explora a alteridade da música para intensificar as dimensões afetivas e reflexivas da poesia. Trata‐se de uma tradição poderosa que se estende de românticos como Hölderlin e Tieck até Rilke e além, ocupando um lugar de destaque no pensamento de Schopenhauer, Nietzsche, Heidegger. As reflexões de Rilke recebem um lugar de destaque neste artigo, mediante a tradução de suas anotações de leitura do famoso ensaio de Nietzsche, O nascimento da tragédia a partir do espírito da música. Palavraschave:literatura e música; reflexão crítica e filosófica. Abstract: Since German pre‐romanticism, music has being keeping a closer relationship with poetry and literature. We have collected a few ways of approaching these two different forms of art expression, demonstrating how literature explores the alterity of music in order to intensify the affective and reflexive emotions of poetry. It deals with a powerful tradition that comprises ‘romantic’ authors from Hölderlin to Tieck to Rilke, and play an important role in the reasoning of Schopenhauer, Nietzsche and Heidegger. Rilke’s reflections have been given special emphasis in this article, which is shown by means of his translated reading notes of the famous essay The Birth of Tragedy through the Spirit of Music. Keywords: literature and music; critical and philosophical reflection. Data de recebimento: 12/12/2015 Data de aprovação final: 15/04/2016

Ritmo e música no pensamento de poetas e filósofos: de Hölderlin a

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ROSENFIELD,Kathrin(2016)Ritmoemúsicanopensamentodepoetasefilósofos:deHölderlinaRilkeeHeidegger.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.15‐45.

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DOI:10.1590/permusi20163502

ARTIGOCIENTÍFICO

Ritmoemúsicanopensamentodepoetasefilósofos:deHölderlinaRilkeeHeidegger

RhythmandMusicinthecontemplationofpoetsandphilosophers:fromHölderlintoRilkeandHeidegger

KathrinRosenfieldUniversidadeFederaldoRioGrandedoSul,PortoAlegre,RS,[email protected]:Desdeopré‐romantismoalemão,amúsicamantémrelaçõescadavezmaisíntimascomapoesiaealiteratura.Rastreamosaquialgunsdosmodosdeaproximaçãodestas duas formas diversas de expressão artística, mostrando como a literaturaexploraaalteridadedamúsicaparaintensificarasdimensõesafetivasereflexivasdapoesia. Trata‐se de uma tradição poderosa que se estende de românticos comoHölderlineTieckatéRilkeealém,ocupandoumlugardedestaquenopensamentodeSchopenhauer, Nietzsche, Heidegger. As reflexões de Rilke recebem um lugar dedestaquenesteartigo,mediantea traduçãodesuasanotaçõesde leiturado famosoensaiodeNietzsche,Onascimentodatragédiaapartirdoespíritodamúsica.Palavras‐chave:literaturaemúsica;reflexãocríticaefilosófica. Abstract: Since German pre‐romanticism, music has being keeping a closerrelationshipwithpoetryandliterature.Wehavecollectedafewwaysofapproachingthesetwodifferentformsofartexpression,demonstratinghowliteratureexploresthealterityofmusicinordertointensifytheaffectiveandreflexiveemotionsofpoetry.Itdealswithapowerfultraditionthatcomprises ‘romantic’authors fromHölderlintoTiecktoRilke,andplayanimportantroleinthereasoningofSchopenhauer,Nietzscheand Heidegger. Rilke’s reflections have been given special emphasis in this article,whichisshownbymeansofhistranslatedreadingnotesofthefamousessayTheBirthofTragedythroughtheSpiritofMusic.Keywords:literatureandmusic;criticalandphilosophicalreflection.

Dataderecebimento:12/12/2015

Datadeaprovaçãofinal:15/04/2016

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1‐Introdução

Nareflexão filosófica sobreamúsicadesenham‐se,entreo finaldoséculoXVIIIeo

iníciodoXX,duas concepçõesqueora seopõem,ora se combinam: amúsica como

princípiocriativoqueconstituiarazãodeserdaarteesuainteligibilidadeintrínseca

(porém diversa do pensamento discursivo); e a musicalidade como força obscura,

potencialmente irracional e pulsional (triebhaft, instintiva). Para compreender o

interesse de artistas como Rilke pelas ideias de Nietzsche, será talvez interessante

rastrear rapidamente as ideias relacionadas com o ritmo, a música e a Stimmung

(tonalidade,atmosfera)quemarcamosdoisúltimosséculos.

Schiller éprovavelmenteumadas fontespara todas as concepçõesposterioresque

derivam da poesia da música. Deriva a inspiração poética de um “estado musical

indeterminado”queprecedequalquerimagem,representaçãoouideia.Amusicalidade

é, assim, amatriz, o envelopequeabriga,numa fusãoperfeita, oEueomundo.Na

musicalidadesuperamosdemodoingênuoaclivagemcósmicaqueisolaoindivíduodo

tododocosmos.Apoesiamoderna,entretanto,tornou‐seconsciente(demais)desta

clivagem; para apagar esta tomadade consciência dolorosamanifesta na “natureza

cósmicadogritodepavor”(istoe,nomomentomıticodeclivagemdoEuedoTodo

natural, Allnatur des Schreckensschreies). Essa consciência dolorosa marca o

surgimento do “sentimental” (que contrasta com o ingênuo) da poesia romantic‐

moderna,quereforçaaexpressividadesentimentaldaperda,ocantolutuoso(BOHRER,

1998,p.141).

Hegelpareceretomaredesdobrarestavisãoquandoconcebeoritmoeo“soar”(Tönen)

sãoconcebidoscomooprópriomovimentodoespírito,comoencarnaçãoconcretada

lógica e da verdade. Na Fenomenologia do Espírito, o filósofo usa uma inusitada

metáfora que se refere à essência da verdade como ritmo delirante, «tontear (ou

delírio)báquico».Emoutraspalavras,Hegelaproximaaverdadelógicadoprocesso

(estético)deintegraçãorítmica,queamitologiaatribuiàpotênciadodeusDionysos

ouBaco:

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Aaparição(Erscheinung)éosurgirepassar,o[processo]queelemesmonãosurgeepassa,masqueéemsimesmoeconstituiaefetividadeeomovimentodavidadaverdade.Overdadeiroéassimodelíriobáquiconoqualnenhumelemento‐momentoescapaàembriaguez(Hegel,1970,Ph3,46,Hegel,2002,FE53).

Afrasereiteraaideia,onipresenteemtodaaintrodução,da«naturezalíquida»que

unifica osmomentos distintos e sucessivos. A ‘liquidez’ reconduz o diverso para a

unidade e, assim, constitui a necessidade lógica (atemporal); aomesmo tempo, ela

torna perceptível a unidade orgânica da coisa ela mesma no tempo. Em vários

momentos,Hegelilustraestaideiacomexemplos:obotão,aflor,afrutaeasementese

recalcam e excluem mutuamente ao longo do tempo, embora todas estas fases

constituam,para«avidadotodo»momentosde«igualnecessidade»(HEGEL,1970

Ph 3, 12); outro exemplo é o do embrião, da criança recém‐nascida e do homem

racional como figuras que desenvolvem no tempo/espaço seu potencial, efetuando

assimsuaverdadeintrínsecaeatemporal.(Ph3,18e3,25).Oritmoeamusicalidade

constituem,assim,aessênciadoespírito,otrabalhodanegatividade(movimentopuro)

quemedeiaapassagemdosaspectosenergéticosconcretos,daviolênciacruel,parao

reconhecimentodoespíritoquehabitaaprópriaconcretudedomundo1.

ComoGoethe,Hegelacentuaamediaçãoeaconciliaçãoapaziguadoradoritmoeda

musicalidade, cuja qualidade matemática permite sintetizar as tensões entre

determinações; pendor para des‐sensualizar e espiritualizar a atividade artística; a

música,comsuasanalogiasmatemáticas,presta‐separticularmentebemparaestefim.

Nomesmosentido,Hegelrefere‐setambémàpinturanãorepresentativacomomúsica

objetiva2:“purosoaremcores”(TöneninFarben),puratransição,fusão,dissolver‐se.

                                                            1Ritmo é a alteridade do Espírito diante dos conteúdos configurados em conceitos (ou figuraçõesestéticashistóricas).Necessidadelógicadoir‐adiantedoEspírito=concebidacomoritmo:racionaléoritmodotodoorgânico,saberdoconteúdoenquantoconceitoeessência:figuraçãoconcretamovendo‐seasimesma(HEGEL,1970,Ph3,55;FE60);Cf.tambématensãoentreopensamentoquedeslizapelasrepresentaçõesVSoefeitodasíntesereflexivaqueocorrecoma interrupçãodedeslizedestraído,ocontragolpedoconceito(Ph3,57‐58;FE62‐3)2Cf.aexpressãoHegeliana“einTönen inFarben”: “soar [nasinfonia]dascores”nosconfereanoçãotangível da “transição pura” (purer Übergang) que permite apreender ao mesmo tempo as coresdeterminadasedistintaseomodocomosedissolvemnumacorde(verschmelzen,auflösen) (HEGEL,1970.Ae,14,228‐30).

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Schopenhauer insurge‐se contra estas concepções racionais que espiritualizam o

prazerestético.Eledescartaocaráter“desinteressado”dojuízoestéticodeKante,mais

ainda,afilosofiadasmediaçõeshegelianasquelevamdacertezasensível,àconsciência

eàautoconsciência:istoé,aumreconhecimentoreflexivodoindivíduoedomundo.A

ideiadeumsaltológico(numconflitonoqualumsujeitofazsuaaleiesetornalivre),

éparaSchopenhauerumerrodoidealismo.EmOMundocomovontadeerepresentação,

ele concebe a individuação não como umprocesso que garante a liberdade, nem a

autonomiadosujeito.Poisoprincipiumindividuationiséapenasumdosaspectosdo

princípio da razão suficiente. Na individuação, a autoconsciência acompanha os

impulsos corporais e é inseparavelmente tingida por eles; ela não é uma instância

autônoma.Acapacidadedejulgaredeliberarsãoinerentesaosmodosdepercepção3.

Estanovaconcepçãoqueoscilaentreumadimensãomaterialistaeumamística,insere‐

senavisãoschopenhauerianadocorpo.Esteédadoparanósdeduasmaneiras:deum

lado,comoobjetofísico,e,talcomooutrosobjetosmateriaisexternos,sujeitoàsleisda

física;deoutro,atravésdanossapercepçãoimediataquesurgedohabitarconsciente

destecorpo,dosmovimentosintencionais,dasensaçãodeprazeres,doreseestados

emocionais.Noprimeiromodoonossocorpoexisteparanóscomorepresentação–

istoé,externo,comoobjeto.Nosegundoelesemanifestacomovontade,movimento

subjetivo,interno:Schopenhauernãoseparaoatodeliberado(aintençãodemover)

domovimentofísico.Ambossãounidoscomoosdoisladosdeumamoedae,portanto,

sãoinseparáveis.Aaçãodocorpoéaobjetivação,aencarnaçãodavontade.Emoutras

palavras,ohomemnãoémestreracionalquereinasobreocorpo,masaprópriarazão

écomoqueumarolhaqueflutuanosfluxosdeummardeforçasobscuras.

Comotranscenderomundorepletodeviolência,feiura,destruiçãoqueresultadeste

estar‐e‐ser‐impulsionado? Schopenhauer reconhece (na experiência estética) uma

possibilidade de ultrapassar a veemência da vontade que opõe os indivíduos e

                                                            3Schopenhauer vincula o principium individuationis com espaço e tempo, com a racionalidade e anecessidade, com sistemacidade e determinismo. Seus conceitos de princípio de razão suficiente eprincípiodeindividuaçãocomprimemtodooaparatoconceitualdeKant:asformaspurasdoespaçoedotempo,easdozecategoriasdoentendimento(unidade,pluralidade,totalidade,realidade,negaçãolimitaçãosubstância,causalidade,reciprocidade,possibilidade,atualidade,necessidade).

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fragmentaomundoemrepresentaçõesisoladasehostis.Aprópriaexperiênciainterior

viabilizaumrecolhimentoàcontemplaçãodomovimentoqueopõeospolossubjetivo

e objetivo, e esta contemplação abre o “espaço” de um estado perceptivo que nos

distanciadoimpulsivoiradianteequedeixaaparecerumaideiaalémdavontadeeda

dor(WWV,#34).Masapenasogênioartísticoécapazdepermanecernoestadopuro

dapercepçãoestéticaqueseaproximadavisãodasIdeiasplatônicas(WWV,#50).

Schopenhauerestabeleceaseguintehierarquiadasartesqueculminanapoesiaena

música:Arquitetura,escultura,pintura,poesia–amúsicatranscendetodasestasartes,

poisnela,todasasformassãotransitórias,purasrelaçõesquenãosedeixamcaptarde

modoisoladoeestático.Estaformadeexpressãoédiametralmenteopostaàlinguagem

científicaquefixaosobjetoseosisolaabstratamentesegundoparâmetrosarbitrários

(medição,número,experimentosartificiais).

Namúsicaavontadetransfigura‐seemtensõesqueunem‐ao‐opor,quemedeiamentre

contrastes,queharmonizammesmoquandousamdissonâncias.Músicaé,portanto,

umacópiapurificadadaprópriavontade.Schopenhauerconcebeaexperiênciaestética

comoharmonizaçãodosofrimentodaindividuação:

Estaencerraemsi,domesmomodo,objetoesujeito,umavezqueestessão sua única forma: nela, contudo, ambosmantêm estritamente oequilíbrio: e como também aqui o objeto nada mais é do que arepresentaçãodosujeito,assimtambémosujeito,dissolvendo‐seporinteironoobjetocontemplado,passaaseresteobjeto,namedidaemquetodaaconsciêncianãoémaisdoqueasua imagemmaisnítida(WWV,#34).

Estecompartilharfusionalseexpressanasimagensdofluir,deslizar,pairar,envolver

eentrelaçar.Amúsicaéamaismetafísicadasartes,naescutadasharmoniasentramos

nomundodasformasplatônicas,contemplamossímbolosdasIdeias,poisasrelações

dossonssãocomoosmodelossublimesdosobjetosdomundo.

Nietzsche segue Schopenhauer na oposição contra o vetor racional do pensamento

hegeliano, sem perceber num primeiro momento quão próximo suas ideias

permanecemdadialéticahegeliana.Eleoreconheceapenasposteriormente,quando

escreveoTentamedeautocríticaparaasegundaediçãodeOnascimentodatragédia

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do espírito da música. Na sua obra de juventude, ele procura pôr em evidência

princípios derivados da observação empírica mais sóbria (e despojada dos

pressupostosmoraisdosempiristasingleses).Osprincípiosdionisíacoeapolíneosão

concebidoscomo“pulsões”(Triebe)elementares.ODionisíacocomopotencialdeforça

solta, comparável ao impacto vital e emocional da música nas suas manifestações

espontâneas,populares.OApolíneocomoforçaantagônica,estabilizaçãodaenergiana

imagem.ÉnítidaaoposiçãodeNietzscheaosestereótiposclassicistasquandopõeem

relevo asmarcas vitais e cruas do sompuro damúsica popular4. Seja como for, o

filósofoassinalaumaespéciededegradédasdissonânciasparoxísticasdogritoritual

nos sacrifícios primitivos (Sacéias de Zagreus na Frígia, por exemplo) para o

refinamento rítmico, melódico e musical depurado do coro dionisíaco: o princípio

dionisíaco, tal como se manifesta no coro trágico é considerado como uma forma

avançada e complexa da arte. O equilíbrio formal é testemunho do trabalho de

harmonização que a pulsão formal e o rigor do apolíneo imprimiram sobre os

derramamentosembriagadosdopulsardionisíaco.

MasjábemantesdeNietzscheeSchopenhauersurgiram,entreospoetasromânticos

alemães, algunspensadoresqueenfatizaramopotencial estético‐afetivodamúsica:

sua capacidade de agir diretamente sobre a sensibilidade e a disposição não é

propriamente irracional; ela antes constitui uma outra dimensão da vivência e da

existênciacomoumtodo;nelasemanifestaapresençadealgoradicalmenteOutro,que

nãopodesersubsumidoaoentendimento,masantesoenvolve.Forma‐seassim,em

pleno idealismo e classicismo deWeimar (com suas preferências pela ponderação

iluminista) uma contracorrente que acompanha como um som inquietante e

ameaçador as teorias damediaçãomusical: o (pré)romantismo nas suas vertentes

atmosféricaeirônicas.

                                                            4SeriainteressantedesenvolverhipótesesemtornodaideiaqueNietzschesefaziadamúsicapopular.Poisascomposiçõesdesuaautoriaemnadalembramosfestivaisderecitaçãomusicalpopular,talcomoexistemaindahojeemCretaecujascaracterísticasseencaixamperfeitamentenasobservaçõesteóricasdeNietzsche.

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ApalavraStimmung refere‐se, em sentido filosófico, a umpermanecer transfixona

mera possibilidade – encontro com uma dimensão de energias e emoções que nos

ultrapassam, sensações, angústias que correspondem à manifestação de potências

irredutíveis ao domínio psicológico; a Stimmung (atmosfera, tom) é a resposta

imediata a uma alteridade extrema, potencialmente ameaçadora (o vago, outro

anônimo,inominável),masexpõe‐seaele,deslocaocentrodapercepçãodaaçãodo

Eu(falanteepensante)paraoalgoindeterminado(atmosferaoutra).

Para eosromânticos,oritmoeamúsicasituam‐senumadimensãodaexperiência

além dos sentidos conceituais que se desenham com clareza na consciência, num

horizonte no extremo limite da significação calculável – horizonte este, no qual a

“consciênciasuspendeaconsciência”.(HÖLDERLIN,1994,DKV2,917)

JáopensamentodeHölderlinconsideravao“ritmo”,i.e,apeculiaridadedomovimento

da representação, comoumprocedimentooutro e irredutível à lógicadiscursiva.A

lógicapoéticadistingue‐se,assim,da firmezadopensamentoedocálculoracionais.

Inacessível à consciência e ao entendimento, a dimensão rítmica não é, entretanto,

irracional no sentido psicológico do termo; apenas leva em consideração o

imponderáveldasconstelaçõesmuitocomplexascujohorizonteserá,evidentemente,

acontingência,oacasoeotemposempreinconcluso.ORomantismocolocouoritmoe

amúsicanocentrodareflexãoestética.Amúsicacorrespondeaopensamentocomo

formapeculiardaconsciência(elanegaopensamentodemodopeculiar).

UmdospoemasdeTieckevocao“pensamento”suigenerisdamúsicaedapoesia:Em

docessonspensaoamor/Razãolhecausaestranheza/Otompreferecomcerteza/

Para o belo ficar melhor. 5Em outras palavras, a musicalidade produz, tal como a

fantasia romântica, o “maravilhoso extremo”, o “infinito” (Hoffmann), e, com isto, a

exploração de regiões particularmente suscetíveis de suscitar angústia e medo

(Beethoven,Mozart),evocandoaomesmotempoumadimensãoradicalmenteoutra–

                                                            5LiebedenktinsussenTonen/DennGedankenstehnzufern/NurinTonenmagsiegren/Alleswassiewillverschonern(Tieck).

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que se manifesta ora de modo angelical, ora no registro demoníaco (motivo que

aparecetambémnanoveladeKleist,SantaCeciliaouopoderdamusica).

K.H.Bohrerrecordaqueoapegomusicaldospoetasromânticosaosprincípiosdosom

edoritmolevaraThomasMannaformularaseguinteequação:amúsicaseigualaao

romantismocomoumtodo–romantismoentendidocomoaquelemovimento(tardio)

de Beethoven a Wagner que começa a desenhar‐se como ameaça para o humano

normativo(BOHRER,1998,p.37‐38).Sehouverumaobraquesintetizademaneira

exemplar o intenso diálogo dos pensadores e poetas alemães com a (filosofia da)

música,estaobraé,semdúvida,DoutorFaustusdeThomasMann.Escritoentre1943

e47, este romance alegorizaos efeitos ultimamentenocivosdeuma tensãoque se

perfila desde o início do século XIX – a que opõe a fluidez dos estados sensíveis

(musicaiserítmicos)àfirmezadosconceitosejuízos.Hádoispersonagensdecaráter

diametralmenteoposto:AdrianLeverkühn,omúsicoquepactuacomMefistófelespara

assegurar‐se25anosdegenialidadeexpressiva;eSerenusZeitblom,oamigo‐cronista

pacato que narra a história do gênio comprometido com o mal como derradeira

tentativa de criar uma mediação entre o inominável dos estados maravilhosos e

angustiantes,deumlado,earacionalidadehumanista,dooutro.Odesejosedentode

maiscriatividadeevida(sobrehumanaesubumana)representamnãosomenteolado

noturnoe irracionaldo fascismoquepôsemxequearazão iluminista,masevocam

tambémasprincipaisposturasartísticasquesedesenharamaolongodoséculoXIXe

noséculoXX.EntreBeethoveneWagnercomeçaocultodapotênciaexpressiva,cujo

daimonencarnaodesejodoinfinito,absoluto,maravilhoso.

Este outromodo de ser, sentir e pensar – acessível somente através da atmosfera,

coloração e tonalidade (Stimmung) – exerce uma influência decisiva também sobre

DelacroixeBaudelaire,e,maistarde,sobreasvanguardasdomodernismo.

Nãoé amúsica como tal,masa ritmicidadee amusicalidadedapoesia ‐ ou seja, a

essência lírica – que fornece a base da reflexão filosófica sobre as relações de

determinadasqualidades atmosféricas comopensamento conceitual. Pelaprimeira

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vez, concede‐se umestatuto filosófico próprio aos sons, tons, timbres e ritmosque

coloramosafetossemserempsicológicos.

NoséculoXX,estaqualidadeatmosféricasetransformará,naobradeHeidegger,na

categoria ontológica da disposição. Heidegger eleva a Gestimmtheit (disposição,

afinação)aoníveldeumacategoriaetransformaaessênciado lirismo,aStimmung

românticaemcategoriaexistencial.Elaexpressaummodoespecíficodatemporalidade

do pavor (HEIDEGGER, Ser e Tempo, 2001, p.134‐141, 182), dimensão existencial

supra‐pessoal que antecede a consciência e permanece clivada da tomada de

consciênciapsicológica(BORHER,2000,p.55)6.

Heideggerapoiaseusconceitosnasconstelaçõesmetafóricas“auráticas”dedoispoetas

(Hölderlin e Rilke) que estruturam a reflexão heideggeriana em conformidade às

potencialidadesexpressivasdafalalírica:

O estar contido, no meio‐termo atmosférico entre medo eacanhamento,otraçofundamentaldaatmosferafundamental:nele,oser‐aíseafinacomaquietudedoderradeirodeusquepassa.Aosercriativonestaatmosferafundamentaldoser‐aí,ohomemsetornaoguardiãodestaquietude.(HEIDEGGER,1994,Bd.65,S.17).

2‐Rilkeeoespíritonietzscheanodamúsica:

“Amelodiacomoluzdapoesia”

Na juventudedeRilke, descoberta e o estudodaobradeNietzschemarcaramuma

etapadecisivanocaminhodestepoetalíricoqueé,semdúvida,umdosguardiõesmais

destacadosdaquietude.Nasuaobra, temosacessoaumaevidênciamusicalqueos

                                                            6Cf.Tb.SprachenderIronie,SprachendesErnstes,“DieHeideggerscheReduktionundVereinheitlichungvonHölderlinsSprache”,p.375ss.

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jogosdelinguagemespeculativosdeHeideggerconjuram,sem,noentantoalcançara

intensidadeexpressivadomodopoético.

Rilkenasceuem1875,umpoucocedodemaisparaserumjovemmodernista.Além

disto,nasceuemPraga,numcontextofamiliar,socialegeográficoburguêsresistenteà

inovaçãoedoqualelesedistancioucedo.Ébemconhecidoquesuapoesiasuscitou

algumasresistênciasentremodernistasavessosaanjoseourivesariaspoéticas,mas

mesmo assim seusDinggedichte exercem ainda hoje um impactomarcante sobre a

poesiaalemã,e,noBrasil,sobreosconcretistas.OcuidadoespecialqueRilkededicaà

forma e à superfície concretas das coisasmanifesta‐se, primeiro, na reflexão sobre

músicaefilosofia,estende‐sedepoisparaaesculturaepintura,erecebeseupolimento

definitivo graças às experiências pessoais de fracasso e sofrimento. Seus primeiros

textos críticos já mostram afinidades com Nietzsche, por exemplo, quando aborda

temas como “A melodia das coisas”. Mais tarde, Rilke se inspira na profunda e

prolongadacontemplaçãodeartistasplásticos–emparticularemRodineCézanne.A

dedicaçãoaotrabalhoseráparaRilkeagrandeliçãodeRodinnocaminhoquelevadas

convençõescotidianasdevoltaparaaconcretude“coisal”,istoé,àpresençatangível

dascoisasnasuaestranhasingularidadematerial.Veremostambémnostextossobre

Nietzschequeaforçaeaintensidade–nãoarepresentaçãodetemasemotivos–estão

nocentrodointeressedopoeta.Nietzscheelogiouasuperficialidadedospoetasgregos

comocaminhomaisdiretoparaumaprofundidadequesuperaametafísicapomposa

dospensadorescontemporâneos;demodoanálogo,Rilkeéatraídopelacapacidade‐

singelaeplana–doolhardeCézanne,cujasvisõesdissolvemostemaseastécnicas

convencionais.Comeleaprendeaverdenovo–osimplesestar‐aídascoisascaptadas

num jogode cores.O seroutrodas coisas‐cores–materiais‐e‐imateriais–exerceo

efeitodeumarevelaçãominimalistasobreoolharàprocuradesentido.Nuncafixaro

sentidoapenas,sempreretornaraocaminhodesuaevocação–aoritmoeamelodia

trazendoàtonaarevelaçãodasimplescoisidade:eisaexperiênciadeterminantepara

apoéticadeRilke.Háosmaisdiversosnomesparaestamúsicadefundo–entreeles

“oexcedentedeDeus”, istoé,a forçacriadoraqueaindanãose fixouemcriaçõese

fenômenos conhecidos. O paradoxo de forças que atravessam e ultrapassam a

concretude dos objetos dados, seu potencial assustador e eufórico, fascina Rilke

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tambémnaleituradaobradeNietzsche,emparticulardeONascimentodatragédia,

anotadoporeleem1900,aos25anos.

EstasanotaçõesmarginaissãofragmentosdelivreassociaçãodoleitorRilkeemtorno

do ensaio de juventude deNietzsche.Mais pessoal que um resumo ou uma leitura

comentada,elasfazempartedeumasériedetextosquetestemunhamdoimpactoque

Nietzsche deixou na sensibilidade e no pensamento do poeta quando jovem. O

interessepelanovafilosofiapós‐hegelianafoidespertadocedo.Em1892,Rilke,então

com17anos,recebeudopaiaediçãodasobrasdeSchopenhauer,oqueindicaqueeste

autorjácontavaentreospensadoresaceitáveisatéparaasensibilidadedaburguesia.

Estas leituras,semdúvida,prepararamocaminhoparaarecepçãomaravilhadadas

obras deNietzsche. Sentimos nos textos desta época umnítido entusiasmo com as

posturas anticristãs do filósofo e afinidades ainda mais intensas com a veemência

nietzscheana contra o espírito filisteu da sociabilidade burguesa. Estas simpatias

juvenis levam Rilke a compor, no início de 1896, um pequeno conto intitulado O

Apóstolo7,testemunhodasleiturasprecocese“mal‐digeridas”deDarwineNietzsche”

(LEPPMANNapudKA,III,809).Ocontoexpõeaaversãoaosentimentalismoqueos

hábitos convencionais teceram ao redor do amor cristão.O personagem sombrio e

misteriosodocontoproclamaumcredoaodes‐amorerecusaas fáceismentirasda

misericórdiaqueasociedadeusacomoornamentosediversões,juntocomorestodo

aparatodistinto:seuschás,pratasejoias,ricostecidosdedamascoeiguarias.

Asátiraé,naspalavrasdopróprioautor,uma“profissãodefé[nietzscheana]emparte

profundamenteséria,empartesatírica”(KA,III,809)e,também,umaversãoprecoce

daconcepçãoexigentedoamorqueRilkeelaboraráaolongodadécadaseguinte,por

exemplo,nosdoispoemasaDonJuan(1907e1908).

Uma resenha da época aponta que neste conto “[...] as doutrinas deNietzsche são

demonstradas com nitidez gritante, e servidas em pratos cheios. É obrigatório ler

                                                            7RedigidoemPraga1896(KAIII,47‐52).

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aquilo para sentirmos a confusão do Übermensch nietzscheano”. 8 O próprio Rilke

reconheceumaistardequeváriasdesuasobrasprecocesadotaramdeNietzscheum

“espíritoanti‐cristãoexcessivamenteirado”(einebeinahrabiateAntichristlichkeit)9;

assim,comoporexemplo,nospoemasGlaubensbekenntnis(profissãode fé),Christus

amKreuz(Cristonacruz),Christus‐Visionen(VisõesdeCristo)ouDerBriefdesjungen

Arbeiters(Cartadeumjovemoperário)10.

Em comparação com estas obras precoces, as anotações sobre O Nascimento da

Tragédia, que aqui apresentamos em tradução comentada, são mais maduras e

refletidas. Elas permitem entrever as convicções pessoais mais profundas e

duradourasdopoeta.OimpulsoparaumestudosistemáticodaobradeNietzscheveio

deLouAndreas‐Salome,amigapessoaldofilósofoqueredigiuváriosensaiossobresua

obra. Ela desempenhou o papel de uma verdadeira mentora e tutora para Rilke,

introduzindo‐onaculturadeseupaísdeorigem,aRússiaeviabilizandooacessodo

jovempoetaacírculospsicanalíticosefilosóficosdaépoca.Abreverelaçãoamorosae

o subsequente afastamento de Lou transformou‐se numa produtiva “educação

sentimental”que fortaleceuavocaçãodeRilkepelapoesiavoltadaparaestadosde

aberturaevisãoquemetamorfoseiamoestadoamoroso.

Oquecontanavisãoreveladoraéaestranhaconcretudedaevanescência,acoisaque

sesubtraicomoobjeto,queédeummodoqueosnomeseasrepresentaçõescaptam

inadequadamente.Éestaposturaqueconferesuaauratragicamenteangelicalàobra

deRilke:amúsicadopermanentedevir‐no‐desvanecermanifesta‐secomparticular

nitideznaobratardia(ElegiasdeDuíno),nasquaissedesvelamasafinidadesrilkeanas

com a poética de Hölderlin, cujas ideias sobre ritmo e lógica poética antecipam o

“espíritodamúsica”deNietzscheeo“ritmodefundo”deRilke.

***

                                                            8 Cf. os trechos da resenha de Leppmann (in: Musen, Heft 6, maio‐junho 1896), reproduzidos nocomentáriodaediçãocrítica(KA,III,809).9TrechodacartaaMarieVonThurnundTaxis,17dezembro,1912,(KA,III,809).10Nenhumdestespoemasfoitraduzidoparaoportuguês.

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NoBrasil,olirismotrágicodeRilketeveenormeimpactosobreGuimarãesRosa,cuja

procura de Sachlichkeit concreta e de elevação elegíaca ou “hímnica” (de hino,

ditirambo) manifesta‐se na estrutura rítmica e musical de Grande Sertão: Veredas.

EmboraapoesiadeRilkepossapareceralheiaàsrudespolémicasdeNietzscheouas

travessias rosianas, os três autores compartilham a mesma dedicação poética à

essênciatrágicaeà“matériavertente”.Masadescobertadestaafinidadedo“Mestre

seráfico” comos poetas‐pensadores trágicos requer uma leituramais aprofundada.

Assim,nãoédesesurpreenderqueapoesiadeRilkejáfoiassociadacom“bijusdeum

níquel”. Ninguémmenos que Décio Pignatari, naBufoneriaBrasiliensis 1 –OPoeta

Virgem, pronunciou este veredicto. Tampouco é difícil compreender porque

modernistas e concretistas mais sóbrios repudiaram os afãs erótico‐marciais do

Corneto eascelebraçõesórficasdosSonetosaOrfeu.Masesterepúdio talvezesteja

maisumrechaçodaenfáticarecepçãobrasileiradosanos1940e50,queparticipoudo

“misticismodefachada”doqualPauldeMandistanciouopoetanasuaintroduçãoàs

obrasdeRilkenaFrança(MAN,1972).Logoemseguida,entretanto,osconcretistas

superamsuaaversãoda“intensavogaderilkeanismo”(CAMPOS,2001;SARAIVA,1984)

eodesdémdepoetascomoNeruda(queesnobou“rilkistas,misterizantes,falsosbrujos

existenciales”noseuCantoGeneral,V,LosPoetasCelestes,1950).HaroldoeAugustode

Campos11simplesmentedeixaramdeladoocultomessiânicoquealgunsprestarama

Rilke e debruçaram‐se sobre o que importa – a atualidade dosNovosPoemas, dos

poemas‐coisa(Dinggedichte)easElegiasdeDuíno.

3‐Rilke:umdosmestresda“vidatrágicaesuspensa”

EmboraRilketenhapercorridotodasasfasestípicasdofindesciècle,elenãopodeser

identificadocomnenhumadelas–nemcomocredonaturalista,darwinianoeateu,com

seusbonssentimentospelopovo(daseinfacheVolk),portrabalhadoreseprostitutas;

nem como esteticismodecadentista com seuspendores por umvagomisticismo e

                                                            11Ver:CAMPOS,H.PoesiadeVanguardaAlemãeBrasileira,In:Aartenohorizontedoprovável,SãoPaulo,Perspectiva,1969.

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doutrinas esotéricas, cujos livros de cabeceira eram Schopenhauer, Wilde ou

D’Annunzio; e tampouco com o vigor nietzscheano do Zarathustra, nem com a fé

panteístadosqueconfiamnanatureza,natranscendênciadosmovimentoscósmicose

naexpressãocorporaldeartistascomoIsadoraDuncan.

Afinadocomotrágicoverterdascoisas,comafluidezdasconfiguraçõesmomentâneas

detodosossentimentos,reflexõeseatos,Rilkesedestacapelaposiçãoaquémealém

dos movimentos do seu tempo. O fascínio juvenil pelo ateísmo quase religioso de

Nietzsche, a delicadeza refinada de sua violência e a sutileza criteriosa (quase

coreográfica)deseuiconoclasmocertamenteconsolidousuadedicaçãoaotrabalhode

dissolverasimagensemnovasconstelaçõesmelódicaserítmicas.

AsanotaçõessãoumestudointuitivoeassociativodotextodeNietzschequeprocura

fortalecerapoéticadojovempoeta,nãoumapublicação.RilkeusavaaediçãoFriedrich

Nietzsche,DieGeburtderTragögie.Oder:GriechenthumundPessimismus.NeueAusgabe

mit dem Versucheiner Selbstkritik. Leipzig, Verlag von E. W. Fritzsch, 1889. O

manuscritoencontrava‐seentreospapeisdeLouAndreas‐Salomé,queestimulouo

interessedeRilkeemNietzscheeFreud.

4‐Pequenoparêntesis:ainfluênciadeSchopenhauer

easuperaçãodosofrimentoedasolidão

As leituras de Schopenhauer e de Nietzsche fazem, portanto, parte do cerne do

desenvolvimentopoéticoeexistencialdeRilke.AolerSchopenhauerem1892(aobra

completafoipresentedopai),elesedebatecomoconflitoseminaldesuavidaedesua

futurapoética–astensõesquenãosomenteseparam,masunemdoreprazer,aartee

a vida. A arte é para Rilke harmonia paralela à natureza, pois as próprias coisas

determinamasordensestéticascomoimagenspurasdasrelaçõesentreasforçasda

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vida.ÉdestaconcepçãoquedecorremtambémasreservasdeRilkecomrelaçãoao

expressionismo,quandoestecelebraacapacidadecriativadeumsujeitoquesecoloca

acima da relação com os objetos. A familiaridade com Schopenhauer e Nietzsche

permitirão compreender melhor a relação de Rilke com as “coisas” enquanto

mediadores das relações puras – visão de umUr‐Phänomen– isto é, da ideia vista

atravéseparaalémdavontadeedador(WWWV,#34).

Há,porém,umaspectodafilosofiaschopenhauerianaqueRilkerejeitadeimediato:a

ideiadequeaconciliaçãodefinitivadosofrimentopossaocorrersomentenodomínio

da moral, através da renúncia. Seguindo Nietzsche, ele se revolta contra a ideia

schopenhaueriana da grande arte como renúncia ao feixe de pulsões difusas que

impulsionama“vontade”.Artenãoé,paraele,superaçãodavontadenemdavida,mas

retraçãonumespaçoquefavoreceasforçascriativasdavidaeabreumnovoacessoàs

coisas concretas: é uma solidãono cernedavida concretaqueprotegeo artistada

dispersãoameaçadora;poisvivernomundoimplicanumaperdadasforçasartísticas

enaacomodaçãonasconvenções.Afamiliaridadeexcessivadispersaaforçarítmica,

fixaamelodiacomotemacompreensível,ordenaeclassificamotivos,domesticandoo

quehádeameaçadoreestranhosnelesemvezdedissolverastensões.

***

Certostemaseideias“nietzscheanos”afloramjánas“Anotaçõessobreamelodiadas

coisas” (cf. Anexo, no final deste texto). Comparando a pintura dos “primitivos”

italianos(figurasdesantoscujascabeçasaparecemisoladasporauréolasdouradas)

com os mestres do chiaroscuro, Rilke destaca os efeitos poéticos “musicais” da

combinaçãododesenhocomastonalidadesdacor,desombraeluz.ÉcomoseRilke

falasse,comoutrostermosepalavras,datensãoentreoprincípioapolíneo(clareza

nítida, compreensível e definida) e o dionisíaco (o fluido epifânico do ritmo e da

melodiaparaalémdasnotas),deforçasqueestãoatrásdascoisasrepresentadas,as

atravessam e envolvem. Estas forças – musicais, rítmicas ou dionisíacas, como

Nietzsche os chamará – representam o princípio de unificação e de vitalidade que

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reanima o que foi violentamente separado e isolado. Nas “Marginália” podemos

destacarosseguintestópicoscomonúcleosdaleiturarilkeanadeNietzsche:

música como energia cósmica precisa ser contida nas “vasilhas” do canto

popular;

amúsicaentendidacomo“granderitmodefundo”éo“livreexcedentedeDeus”,

istoé,umaforçaaindanãoligadaquesobroudacriação;

ritmoemúsicaconstituemopotencialcriativo;

músicacomopotênciaunificadoraepromessacomunitária;

músicacomoforçaàesperadaimagem;

música como potência fusional é promessa de liberação das formas e

convençõespetrificadas;

amelodiatransfiguraetornadispensáveloenredo(históriaracional);

amúsicacomoforçaoriginárianãopodeserinstrumentalizadacomodecoração;

oespíritodamúsicacomoalmadaintegridade(social,políticaepessoal)grega;

músicaéfluxoilimitado;

acriaçãoartística(canto,imagem,drama,escultura)sãoesforçosdecaptaro

excessomusical.

5‐Anexo1‐RainerMariaRilke:“Marginaliaemtornode

FriedrichNietzsche:‘ONascimentodaTragédia’,1900”12

Doseuinterior,amelodiadáàluzapoesia,eistosempredenovo;aformaestróficada

cançãopopularnosdizisto,enadamais:observeiestefenômenosemprecomespanto,

atéfinalmenteencontrarapresenteexplicação.

                                                            12TraduçãodeKathrinRosenfield.

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Asestrofesdacançãopopular13podemsercomparadascomvasilhasrecebendoaágua

deumafontequejorraclara.Ricaerápidaelaencheasprimeirasvasilhasfestivasque

lheforampreparadas.Maselasnãoestancamseujorro.Eopovoterminaportrazer

todasasvasilhasdeseuusocotidianoedeixaaáguaenchê‐lasatéficarempesadas.E

ascriançasestendemasmãosemconchas.

Amúsica(ogranderitmodefundo)deveria,portanto,sercompreendidacomo:aforça

intataquefluilivreequenosinspiracertopavorquandopercebemosqueelanãoentra

nas nossas obras para vir a conhecer‐se no fenômeno,mas que paira por cima de

nossas cabeças, despreocupada e alheia, como se nós não existíssemos. Como não

somoscapazes,porém,desuportaraforçaintata(i.e.opróprioDeus),estabelecemos

relaçõescom imagens,destinose figurasecolocamosnoseucaminhosempremais

coisasqueacomparamcomalgo14,poiselamesmapassa,orgulhosacomoumvitorioso,

aolargodetodososfenômenos.

AinfinitaliberdadedeDeusfoilimitadapelacriação.Comcadacoisaumpedaçodesua

forçaficouvinculado.Masnãoésuavontadetodaqueseencontravinculadanacriação.

Amúsica(ritmo)éolivreexcedentedeDeus,quenãoseesgotouaindanosfenômenos,

eesteritmoéodesafiodosartistasquandosentemaurgênciaindistinta,aposteriori,

                                                            13RilkereageàideiainovadoradeNietzschequerealçouovigordoselementospopularesnatragédia.NoentenderdeNietzsche,asformaspetrificadasdapoesiaeruditatornam‐seflexíveisaoabrir‐seàsformasdeexpressãoespontâneaseemocionalmentecarregadas.Éaatmosferaou,comodizRilke,atelade fundo rítmica que dá acesso ao que há de sofrido, cruel, grotesco na experiência (heroica). Esta“música” da vidaque se expressapara alémdo conhecidoda forma clássica eda elegância artísticaformalmenteacabada.AtragédiaclássicanãoéparaNietzsche,ofimdeumprocessoderefinamentolinear, mas uma criação oriunda de uma ruptura com convenções cristalizadas, que abre espaço àirrupção de elementos heterogêneos da cultura popular (mitos arcaicos e cortejos rituais com suaritmicidadeegestualidadepróprias).UmaafinidadenaturalcomasideiasdeNietzschejásemostranofato que as primeiras obras de Rilke, por exemplo,Larenopfer (Sacrifícios aos deuses do lar, 1895)partemdascançõespopularestchecas.Umdospoemasmaisprecoces,Volksweise,evocaaemoçãoeaintensidadedaalmanascançõesdopovodaBoémia.14Aconcepçãovitalísticadamúsica(comoforça,ritmo,movimentoelementar)quesimultaneamentesustentaeameaçaaexistênciadoindivíduoedasociedadecarregaoecodosterroresdainfânciadopoeta (muito semelhantes ao personagem Marcel de Proust). Para ambos, escrever é uma forma(existencialeterapêutica)defazerfaceàmemóriainvoluntárianaqualseentretecemreminiscênciaspavorosas e maravilhosas. Criar imagens é dar forma e manter em limites suportáveis este fundoinquietante.Aincapacidadedeabrangerapletoradaforçacriativa(musicalerítmica)éumdosmotivosdefundodoStundenbuch(LivrodasHoras),cujaprimeirapartesurgiuem1899.Ovolumeseapresentacomo um constante jorro de imagens – verdadeira maré que a criatividade precisa estancar comincessantesperífrases,comparações.

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decompletaromundonaquelesentidoqueestaforçacriariaaoprolongarsuacriação

–eestacriaçãoerigiriaimagensderealidadesqueaindaaguardamairrupção.15

O Coro: para compreender corretamente a significação do sonho é necessário que

vejamososonhador.Nossaparticipaçãoseintensificaquandonãoéumserhumano,

um ente apenas, mas vários que se sentem ritmicamente movidos pelo

compartilhamento de seu sonho; eles então ocasionamaqueles fenômenos que são

representadoscomoocorrendoforadeseussentidos,comoaçãonumpalco,talqualse

desenrolam no interior [dos sonhadores] . Estes sonhadores são aomesmo tempo

capazesdenoslivrardomedoedosconstrangimentosdaação,poiselespermanecem

sempreiguaisasimesmos.Paracompartilhar,noentanto,seuserintocável,oqualnão

deve ser triturado pela crueldade de seus sonhos, é necessário que eles sejam

parecidosconosco,fraternos,nãonascoisascontingentes,masnoquetocaostraços

permanentesdenossoser.Nósnossalvamosdojogomovimentadodopalcotomando

refúgionoscírculoscalmosdesuadança,esuasegurançaeproximidadenosdevolvem

aaptidãodenosalegrarmoscomopavorosoenquantoalgopassageiro;desejamosaté

mesmoacatástrofe,paramirarmos,atravésdaqueda,oeternoqueanimaocoro.

Tal como a cultura grega se desenvolveu através do olho, a nossa amadurece pelo

sentimento.Ondeelescriaram,comodrama,umportoseguroeumrefúgioparaoolho,

nós temosque auxiliar o sentimento. Se a tragédia ática exigiaumcorovisível, nós

temosquetentardeconstruirodramamodernoapartirdeumcorosensível16,evê‐lo

atravésdeste.

                                                            15Cf.ImGespräch1898/9“Artesignifica,nãosaberqueomundojáestáaíefazerumnovomundo[...]Nuncaacabar.Nuncaterumsétimodia.Nuncaverquetudoébom[...]Eisminharazãocontraele(i.éDeus)[...]Poiselenãofoiartista,eistoétãotriste[...],deveríamosrecomeçarnolugarondeDeusparou[...].Navidaistosignifica,comohomem.”(KA,IV,838)16Cf.“SobreaMelodiadascoisas”,umconjuntodeanotaçõesnasquaisRilkefixasuasideiassobreofundoinacessíveldavida,domundoedascoisas.Atarefadoartistaéprecisamenteestaaberturaquepermiteo confronto com a “tela de fundo rítmica” (rythmischerHintergrund). Na leitura doNascimento daTragédia, Rilke associa sua ideia do “fundo rítimico” com a dança rítmica e musical “do coro daantiguidadequeabsorveuasabedoriamaissábia(dasweisereWissen)”.Estasabedoriacriatural,arcaica,imemorial–queNietzscheatribuíaaovelhoSileno–estávoltadapara“aquiloqueune”oshomens“nascoisasàtrásdeles”(KA,IV,103‐113),emoposiçãoaovalorsemânticoouintelectualqueconferedomíniosobreomundo.

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Odeleitedoestadodionisíacocomsuaaniquilaçãodasfronteirascomunsdaexistência

contém,enquantodura,umelemento letárgiconoqualmergulhatudoquefoivivido

pessoalmentenopassado.Assimháumabismodoesquecimentoqueseparaomundo

cotidianododionisíaco.

A vida dionisíaca é um viver‐em‐tudo17ilimitado, e em comparação a ela as coisas

cotidianassãocomoumamascaradaridícula.Masaartemedeiaaexperiênciadeque

estamascaradaéaúnicapossibilidadedeentrar,oraevez,nestasconexõesimensas

queseestendemparaalémdemomentosemetamorfoses.

Umpúblicodeespectadorestalcomonósoconhecemoseraimpensávelparaosgregos:

nosseusteatroscadaum[...]eracapazdeveredominarouniversoculturalcompleto

aoseuredore,nestavisãosaciada,podiaidentificar‐secomosmembrosdocoro;[o

espectador]sentiaqueera,elemesmo,umdeles.

Comonãoépossívelcolocardiantedeumgrupodesereshumanosumarealidadeque

cadaumpossasentirecompreenderdomesmomodo,éprecisointerporentreopúblico

eacenaumolhocujoolhartranquilopercebeaaçãoacadamomentocomocorretae

verdadeira18.Eopúblicoprecisacorrigirsuacompreensãoapartirdesteolhoetornar‐

se,graçasaele,umsócorpoimenso,quetomaumaposiçãouniformecomrelaçãoaos

acontecimentosnopalco.

                                                            17Cf. as ideias análogas a este desejode viver‐em‐tudo, que encontramos quase um século antes naidentificaçãodeHölderlincomseupersonagemtrágicoEmpédocles:“Empédocles,[...]inimigomortaldetodaexistênciaunilaterale,poristo,insatisfeitotambémquandoviveemcircunstânciasrealmentebelas, [e um ser] inconstante, sofrido, simplesmente porque não suporta o que há de específico edeterminadonascircunstânciaserelações;apenasoquefoisentidonumgrandeeamploacordocomtodososviventespodepreenchê‐loplenamente;elesofresimplesmenteporquenãoconseguevivereamarcomelescomumcoraçãoonipresenteeintensocomoumdeus,elivreeespraiadocomoumdeus,simplesmenteporqueeleestá,assimqueseucoraçãoeseupensamentoapreendemascoisasexistentes,acorrentadoàleidasucessão”(DKV,2,421).18Amúsicaeadançadocorosãoumaherançadoscortejosdionisíacosrituaisarcaicos.Natragédiaamúsicaasseguraaparticipação imediatadoespectador,queestápresenteemcorpo‐e‐alma.Elanãoapenascontagia,masdáacessotambémaoprocessopoéticoocorrendoentreaslinhasdotexto,atrásdaspalavrasenofundorítmicodascoisas.EstasideiastêmgrandeafinidadecomaideiadeHölderlinàpropósitodaafinidadeentre‘lógicapoética’eoritmo:oequilíbriorítmicodaapresentaçãodapeçacomoumtodosuspendeovalorconvencional(semantismoestático)dasrepresentaçõessucessivas.(DKV,2,p.849)

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Ocorodesátirosé,numprimeiromomento,umavisãodamassadionisíaca,talcomo

porsuavezomundodopalcoéumavisãodestecorodesátiros:aforçadestavisãotem

o poder de nos tornar insensíveis às impressões da ‘realidade’, tornando‐nos

indiferentesparacomoolhardoshomenscultivadosqueocupamosgradientesdo

anfiteatro.

Nocoro,oespectadorreconhece‐seasimesmo,liberadodetudoquelheécontingente

e temporal(seinemZufälligenundZeitlichen),desuacultura,eelecompreende,por

estedesvio, a visãodaquele coroque se apresentana ação, ele a compreende e ao

mesmotemposuperaseupeso.

Agoraocoroditirâmbicorecebeatarefadeestimularadisposiçãodosespectadores

atéaquelegraudodionisíacoquelhespermitever,quandooheróitrágicoentraem

cena, não mais a máscara deformada do ser humano, mas uma visão encarnada

(Visionsgestalt)nascida,porassimdizer,deseupróprioencantamento.

Não seriam as danças e canções dos povos selvagens ditirambos congelados neste

ponto de vista preparatório, [ditirambos] que não conseguiram chegar ao

amadurecimentonodrama?

Omagnífico ‘saber fazer’ dograndegênio, oqualnão recebe suapaganemmesmo

atravésdosofrimentoeterno,oorgulhoamargodoartista–eisoconteúdoeaalmada

poesia de Ésquilo, enquanto Sófocles com seu Édipo entoou o prelúdio do canto

vitoriosodosanto.

Oatocriadordoartistatemalgoequivalentesomentenoocasosofridodonão‐artista:

ambosocasionamumaviolência imensanos seresmelancólicos (schwersinnig). Por

sobre o túmulo de um santo, despertam homens novos em número igual aos que

acordamsobreaobraimortaldeumartistacriativo(einSchaffender).

Éprecisocolocarnopalcoaquelaaçãoquepermitaestimularnosentimentodecada

indivíduoumaexperiênciaviávelequeajacomapotênciaviolentadeumaimensamão,

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arrastandoeunindoamassadosespectadores19.Oeventoestimuladordeveocorrer

deformaindependentedostatusdasfigurasrepresentadas,doseumeioedotempoda

ação,numsegundopalcoideal,queseapresentacomoocenáriodaquelereencontro

celebrado pelas almas liberadas dos espectadores que criaram afinidades nesta

intensificação.Aaçãodeveocuparosegundolugarquelhecabetambémnodrama(de

modoanálogoaoqueacontecenapintura),dandolugaraumacontecimentorealmente

artístico.Opalconãodevetornar‐semaisreal,próximadaverdade,masprecisater

maisafinidadescomaaparênciaeabeleza.Algocomumaoshomens(nãoaoshomens

deumaclasse,deumtempo,deumamoral),masaoshomenscomotais,precisasurgir

por detrás da ação, como se fosse uma lembrança que une e que convoca todos a

lembrarem‐seearefletiremsobreainfânciaquetêmemcomum;énesteponto,nãono

âmbitodocenárioedoenredorelativamentecontingentes,quedeveaconteceroque

importaeoqueredime.Nãoojogo,masamelodiadojogo20deveseraforçasintética

unificadora(dasZusammenfassende),poiscadaumseencontraráemacontecimentos

eexperiênciasqueseguiramoritmojustamentedestamelodia,(paraaqualapeçaé

somenteumaentremilinterpretações).(OrenascimentodeDionisos.[Nietzsche,cap.

8])

Depois do crepúsculo no qual findou a noite titanesca sempre pronta para a luta,

levantou‐seamanhãdeHomero,quedeulimitesdivinasàscoisas.Eseusolestendeu

sua alegria sublime sobre o rosto das coisas.Mas toda esta ordemparecia ter sido

criadacomoumabelapaisagemparaatempestadedionisíacapoderpassar.

Édesepensarquearapidezcolossalcomqueseproduzemosprogressosinteriores

emSócrates, tornouultrapassadas todas as possibilidades dopensamento, também

aquelasquepoderiamtersurgidodeseuinconsciente;assim,oinstintoempobrecido

                                                            19Segundooeditordaediçãocomentada(KA,IV,839),RilkeprojetaaquiumasnasoutrasasidéiasdeMaeterlinckedeNietzsche.NumacartaàatrizElseVonhoff,do10dedezembrode1901(KA,IV,190‐9),eleescreve:“Maeterlinck[...]procuralocalizar[comofundamento]algumsentimentoelementar[...]algosimples,próximodeumaxiomaequeseadéqüeàdimensãodacançãopopular,suasnostalgiasemedos,suacrença...eleprocuraumadasgrandesatmosferasdefundosobreasquaisrepousariam,comoqueempilares,osmúltiploseconfusoscorredoresdolabirintodasemoçõeshumanas(Empfindungen)”(193).20Cf.Anotaçõesparaamelodiadascoisas,emparticularaintrodução(KA,IV,103‐113)

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ficoudemãosvaziasepodedefender‐seapenasaodarsinaisdealertaeimpedimento.

Nãoseriaoinconscientesemprecondenadoaestepapelquandosetratadecabeças

logicamentemuito ativas e talentosas? Somentena prisão (que acontece depois da

eliminaçãodesuapersonalidadedasposiçõesdeliderançanavidapública),quandoa

força lógica ficou ociosa, este instintomanifestou‐se timidamente, ressoando como

umanostalgianosilêncioqueprecedeuamorte.Suaalmaansiavapormúsica.Eos

lábiosressequidosnoventodoverbobeberamintuiçõesnocálicedossons.E,talvez,

nãoforadascoisaspassadasqueeletirouaforçaparamorrer,talveznãoforadesua

obra,masjustodaquelanovapromessa;assimelefoiparaamortecomosefossepara

odiaseguinte,sentindoqueesteseriaodiadamúsica21.

Acreditamosna‘vidaeterna’,eisoqueexclamaatragédia;enquantoamúsicaéaideia

imediatadestavida.Étotalmentediversooalvonaartedoescultor:aquiApolosupera

o sofrimento do indivíduo através da glorificação esplendorosa da eternidade da

aparência, aquiabelezaévitoriosasobreo sofrimento inerenteàvida,adorépor

assimnegadaeborradadostraçosdanatureza.

Comrelaçãoaopretextoqueusamosparaaplicaragrandemúsicadionisíacaaocaso

particularenquantoimagemeparáboladesta,poderíamosdizerquehápretextosmais

emenossignificativosequeomaisagudoéomitoelemesmo,emparticularomito

trágico.Otrágiconãosedeixademodoalgumdeduzirdaarteenquantobelaaparência,

apenasamúsicapermitecompreenderaalegriaparacomadestruiçãodoindivíduo.

“Acreditamos na vida eterna”, grita a tragédia, enquanto a música é a ideia mais

imediatadavida.

                                                            21Fusãodasideiasnietzschianascomaideiafreudianadoinconsciente.OndeateoriadeFreudensinaqueorecalqueeacensuranãoalteramaforçadapulsão,porém(aorepresarapulsão)terminamporprejudicar a própria racionalidade (introduzindo atos falhos, lapsos, e formações neuróticas), Rilkeidentificao inconscienteeo instintocomoforçasempobrecidasedebilitadaspelarazão.Masaforçaracionalelógicaéprejudicialsomentenasuaformaaplicadaàpreceitoseconvençõessociais,nãoemsimesma contrária ao instinto. Nesta fase de sua obra, Rilke acredita que, uma vez superados osimperativosdavidasocial,aforçalógicaabrir‐se‐iadenovoàplenitudeeintensidadedodionisíaco,doinstintoedoinconsciente.

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Nasartesplásticas,Apolosuperaosofrimentodoindividuoatravésdaglorificaçãoda

eternidadedofenômeno,enquantoaartedionisíacacelebraliteralmenteafugaeterna

dasimagens,dosfenômenoseaparências(Erscheinungen).

Omesmoabusoque sofre amúsicaquandoela é forçada a coloraraposteriori um

fenômeno(clamordabatalha,p.ex.)podemosencontrartambémnalírica,‐apenas–

quando entendemosmúsica aqui (como já tentei fazê‐lo antes) no sentido daquele

ritmoprimáriodofundo,cujosaberouviriniciaacriaçãolíricaquesealimentadesua

redençãonasimagensquesurgem.Amaioriadospoemasnãosãoimagensarrancadas

aofrêmitodamúsicaestranhaeintocadaquejorraeflui,elasnãogiramcomorodas

demoinhonacorrentezadaáguaquecai,massãocomomoinhosparaosquaisuma

imensa labuta terá de levar águas longínquas e sonolentas a mover a roda com

impulsosrelutantesevagarosos.Nos temposemqueosritmossaltameesguicham

(rauschend22),todasasvasilhastêmdeserpreparadasparabelamenteacolheraforça

movente,eteremosdeexportudoquehádematerialparaolustrodoscéus,demodo

que estes teçam na trama das coisas os fios de ouro que acabam o festivamente

desenho.

O mito trágico pode ser compreendido somente como uma trama de imagens

(Verbildlichung)dasabedoriadionisíacacomosmeiosartísticosapolíneos[...]Ste.127.

Anteriormenteaomitotrágicojádeveexistiraquelaação‘musical’cujopalco/cenário

éoespaçonoqualosespectadoresseencontram,levadospelosentimentodeuniãoe

unidade (Einheit)23. Tal como o coro da antiguidade que apresentava suas danças

ditirâmbicasnoespaçoelevado[doteatro],assimdeveosentimentocomeçaradançar

                                                            22Aconcepçãorilkeanadoritmoedamelodiacomo forçaselementaresdopoeta líricoapóia‐senãosomentenas ideiasdeNietzsche,mas tambémemMaeterlinck.Para ilustraro ladoperformáticodateoriarítmicadopoeta,HorstNalewskirelataaanedotadaestadadeRilkenacasadeHeinrichVogeler;Rilketantoacompanhavasuasrecitaçõescomgestosebatidasqueagovernantaescutava,perplexa,ospassosmovimentosrítmicosdeRilkenoquartoacima.(KA,IV,839).–MaspormaisqueRilkeapostassenaforçarítmica,elecomeçoumaistardeadesconfiardomodoassociativoedeslizantequeameaçaapoesia e a criação em geral com sua monotonia e falta de rigor do pensamento. “Eu poderia tercontinuado indefinidamente a fazer taisversos, [...] edepois, oque?”[cartaaKatharinaKippenberg](RILKE,1942,p.164).23Este ideal de uma sensibilidade compartilhada (sensus communis – condição de possibilidade dacomunidade livre) opõe‐se ao espectro da massa histérica ou fanática (cuja unidade se baseia emnecessidadessociaisecarênciaspsicológicas).

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na alma elevada do espectador único e uno que se compõe, como por milagre, de

centenasdesereshumanosquandoobservaojogoteatral.Tenhoonítidosentimento

dequeocorodeveserinstauradonoespectador,nãonoespectadorsingular,masno

estar‐junto(Gemeinsamkeit)surpreendentemente festivode todos, comunidadeesta

que deve criar‐se por um prólogo e prelúdio (Vorspiel) antes do drama. Somente

quandoumúnicohomematemporal,nãoquinhentoshomensdehoje,sesentamdiante

do palco aguardando [o drama desta re‐união], terá algum sentido o levantar da

cortina24.

Seaplicássemosestespreceitosaodrama[moderno],estariamrestabelecidostambém

aquiosdireitosdamelodiadefundo.Perseguindoesteintuito,Eurípidestãosomente

seguiuseusentimentoseguroecerteiro(gutesGefühl),quandocolocounoprólogoa

narrativado conteúdode suaspeças, pois este conteúdo jánão foimais tiradodos

mitosantigos25.Nodramanovo/moderno,omesmoteriadeacontecernesteprólogo

que tenho em mente (mesmo quando se trata de um material mítico realmente

conhecido), pois osmitos não sãomais tão vivos nos dias de hoje emais suscitam

lembrançasescolaresmortasdoqueverdadeirasrelaçõespoéticas.Oprólogoteriade

1) unir os espectadores, fundindo‐os e construindo aquele palco imaginário que

moveráseussentimentos,e,2)contarparaopúblico,duranteoprocessodesuafusão,

atramadaaçãoiminente,deformaqueaforçaque,deoutromodo,sedissipariaem

tensãoecuriosidade,ficariaguardadaparaumaverdadeiraparticipação.–

Aquelamortedatragédiafoiaomesmotempoamortedomito.Atéentão,osgregos

tinhamtãosomenteapossibilidadedevinculartudooqueviviameexperimentavam

diretamente com seus mitos, mais: de compreendê‐lo tão somente através deste

vínculo.

                                                            24Anostalgiadaunidadede todasascoisas–desereshumanosdediferentesclasseseordens,mastambémdeanimaiseplantas,coisasfabricadasouminerais–éomotordosrituaisdionisíacos,dosmitose lendas. Seus ecos ressurgem nas lembranças infantis, e, em particular, nasmelodias e narrativascompartilhadasqueconstituem,paraRilke(comoparaHölderlin),olastrounificadordasociabilidadeedacultura.25EmboraosenredosdosmitostrágicosdeEurípedespossamsernovos,esteúltimodostrêsgrandestrágicosantecipanoprólogoa“história”e,satisfazendoacuriosidade,liberaaatençãodopúblicoparaa ação poética do drama.Brecht retoma esta ideia e a combina como estranhamentopara suscitarconsideraçõescríticasdopúblico.

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À propósito Ste. 135. Na tragédia ática antiga, tudo o que é contado ainda estava

vinculado com os velhosmitos conhecidos; e como estes eram as únicas imagens‐

parábolaspelasquais fluíame jorravamos tons semprenovos como forçase cores

diversas, não havia como sobrevalorizar a “matéria” do enredo. Somente com o

aumentodospretextosocorreuemtodasasartesestasobrevalorização,simplesmente

porqueestesenredos‐pretextosnãoerammais,comoosmitos,conteúdosfamiliares,

[porém]suscitavaminteressepelanovidadedomaterial26.Assim,oolharperdeucada

vezmaisavisãodaúnicacoisaimportante,dofundo[musical,rítmico],atéperder‐se

deveznasconfusõesdaaçãodoenredo,esgotando‐seneles.Apinturafoiaprimeiraa

encontrarocaminhodevoltadestaerrância,poiselagostadesevoltar,sempredenovo

para os motivos tradicionais bem conhecidos e tem o sentido vivo e natural da

vantageminerenteaofatoqueoespectadornãoprecisacomeçaradebater‐secomo

conteúdodaimagem.

AtrásdemimhácorossombriosFlorestasruflamemareschiam;Edosombrossolta‐seopeso,Quandoportrás,nofundoOuço,maisamploqueomeu,Umhálitoqueenvolveomundo.Eseiquepossoconfiar,QueminhasmãosnãomeenganamSedelasnovasformasemanamEqueopesotodoaturamParapoder,quandorespiram,Nopeitofundooartragar.(18demarço1900)

Música,suavizadapelaaçãodoenredo:eisoqueexpressariaaessênciadodramade

modomaissucinto;enumsentidomaisamplopoderíamosdizer:aaplicação,noepara

o nossomundo, da força livre deDeus que não foi concebida paranós27. Ao gasto

aparentedesta força anosso favor corresponde a aparenteperfeiçãoda criaçãodo

                                                            26Em outras palavras: em vez da sensibilidade e do pensamento estarem abertos ao fundo rítmico(inquietanteemaravilhoso)daexistência,aconsciênciaadquireumfocomaisestreito;assim,elasedeslocaparadeterminadofoco(político,social,familiar,histórico,artísticoetc.)eadquireaformadoconhecimentoedodomínio,queviabilizamareflexãoeaaçãodosindivíduosedascomunidades.27Rilkeafirmaaquisuavisãodomundodes‐centrado.DesdeHölderlineKleist,oserhumanonãoémaisocentro,nemopontodereferênciaúnicodouniverso.Arazãodeserdaarteédamúsicaéprecisamentedenosdaracessoaoutrasdimensõesdaexistênciaedoser.

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mundoatravésdabeleza–aarteé,portanto,ocomplementodaimagemdeDeus,que

expressaomundorealapenasparcialmente.

Comaforçadapotênciadionisíaca,istoé,doelementoquefluiritmicamenteeéhostil

àsformas,forçosamentecrescemtambém,enquantoresistência,abelezaeorigorda

forma.Aquelepovocujaspulsõesdionisíacassãoasmaisveementes,rugindocommais

força, precisa ter o maior rigor na formação pessoal e na de suas obras, e isto,

simplesmenteparapodersubsistir.Ojúbilodesatadodacomoçãoíntimaintensificaa

tranquilidadeflexíveldaformaqueelemove.

Parece‐mequefoioacasoWagneroresponsávelporNietzschedeimediatodebruçar‐

se sobre esta oportunidade próxima (próxima demais!), aplicando a ela seus

conhecimentos e esperanças que tão pouco combinam com a essência alemã; isto

prejudica grandementeoúltimo terçodo livro. Estedano émaiordoqueousoda

terminologia de Kant e Schopenhauer. Se, em particular, a concepção

SchopenhauerianadamúsicacontribuiumuitoparaadiantarasintençõesdeNietzsche,

aaplicaçãoimediatadetodoomaterialrecém‐descobertoàscriaçõesdeWagnercriam

uma atmosfera decepcionante; na verdade, não queremos que todas estas coisas

elevadaseprometidasserealizemdeimediato,esobretudoacreditamosqueoredator

dolivroteriaacapacidade(enquantopoeta)paratentarde“ressuscitarDionysos”.

6‐Anexo2‐RainerMariaRilke:

“Comrelaçãoàscoisasrussas”28

Nãoseriaoelementodionisíacoaquiloquemoveoscortejos(chorowod)dosrussos?

Enquanto as cantorias dos Sentados – figuras dos antigos cantos heroicos –

representamoscorposdeformapesadaetangível,todasasfronteirasestilhaçamsob

                                                            28 TraduçãodeKathrinRosenfield. 

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do impacto daquelas canções que irrompem acelerando e engolindo os giros dos

cortejoscirculares.

Enãoseriaomitorussooúnicoqueaindatemproximidadesuficientecomasmassas

parapoderserusadomaisumavezcomoparáboladavidalivredosom?–entrenós,

procuraríamosemvãofigurasquepossamsercoreutas,aopassoqueéfácilimaginar

um grupo demujiks apresentando num palco (Vorbühne) cantorias dançantes que

devemsuscitaraquelavisãonaqualoverdadeirodramaseapresenta.Oqueosátiro

expressavaatravésdesuaproximidadeesabedoriadomundoconcreto(Weltnäheund

Weltweisheit), aquilo que perdura, é o que também viria à tona no caso destes

camponesesedesuavisão.Demodoanálogo,odramaseriavisualmenteforteemesmo

assimnãopesariademaissobreosentimento.

Chamaatençãoque,emtodososefeitosmencionados,podemossempresubstituirno

lugardotermo“música”aquelaoutracoisaquenãoémúsica,masqueseexpressado

modomaispuroapenaspelamúsica.Opoetalíriconãoprecisadamúsicaparacriar,

masapenasdaquelasensaçãorítmicaquejánãoprecisariamaisdopoemasepudesse

antesganharvoznamúsica.Enãoqueriaamúsicaemgeraldizeraquelaprimeira,

obscuracausadamúsica, e com istoa causade todaaarte?Força livreemovente,

excessodeDeus?Tambémapinturaeaesculturasótêmoalvodeinterpretaraquela

“música”,degastá‐laemimagens.Eentãoamúsicapoderiaseralgocomoatraição

daquelesritmos,aprimeira formadesuaaplicação,aindanãoaplicadaàscoisasdo

mundo,masaossentimentosesensações,anós.Aistoseguiriaalíricaquenosvincula

docementecomomundoao falardenossossentimentoscomose fossemcoisasdo

mundo;ededentrodalíricadesenvolve‐se,porintermédiodasartesplásticas(quejá

tratamdeummodosimbólicodascoisasdomundo)surgeodrama,ainterpretação

mais imagética e, por isto, a mais perecível dos ritmos ocultos; esta derradeira

interpretação,noentanto,visadespertarnosespectadoresaquelacausaprimáriada

arte, ela destrói a individualidade nos espectadores singulares e cria uma unidade

entre centenas, isto é, um instrumentopara aqueles ruídos de fundodionisíacos. E

assim fecha‐se aqui o círculo. Emergindodamultidão violentamente unificadapela

embriaguezdoolhar,solta‐seumsersingulargraçasasuaforçasombria,isolandosua

figuraedesperdiçandonossonsdeumaflautaodeusquepossuiamultidãoabalada.

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Ooriginárioéobaterdasondasdoilimitadoesuamaisperfeitaecompletaexpressão:

música.Emquasetodasuaamplidãoateladefundomovimentadaganhavoznamúsica,

–aopassoquenodrama,queésuaderradeiraaplicação,encontraseulugarapenas

umapartepequenadestateladefundoqueseincorporanasfigurasdramáticasesguias;

masestaparceladateladefundotemaqueleefeitodetransformarosespectadoresem

uma coisa relativamente ilimitada, surtindo, assim, um palcomomentâneo daquela

maréoriginária(Wellenschlag).

Quantomaior amultidão que é unida pela tragédia,maior será também a cena do

originárioetantomaisimportanteseuefeito.Odramadeve,consequentemente,unir,

sintetizar,namesmamedidaemqueexpressõesartísticasqueestãomaispróximasdo

ritmo originário, (música, lírica) devem tornar solitário[o artista e o espectador] .

Quantomaisamplaecompletaateladefundo[...]

***

7‐Anexo3‐RainerMariaRilke,ParágrafosIII‐XIVde:

“AMelodiadascoisas”29

III. Lembrei: observando,meocorreuqueainda costumamospintar sereshumanos

contra um fundo de ouro. Como os Primitivos. Eles se erguem diante de algo

indeterminado.Àsvezesdiantedeumfundodeouro,àsvezestambémumcinzento.

Àsvezesnaluz,efrequentementecomumbreuimpenetrávelportrás.

IV.Istoécompreensível.Parareconhecerossereshumanoseranecessárioisolá‐los.

Mas depois de uma experiência prolongada cabe recolocar estas contemplações

                                                            29 TraduçãodeKathrinRosenfield. 

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isoladas de novo numa relação, e de acompanhar comumolhar amadurecido seus

gestosamplos.

V.CompareumavezumquadrocomfundodeourodoTrecento(séculoXIV)comuma

dasnumerosascomposiçõesmaistardiasdosmestresitalianos,nosquaisasfigurasse

encontramparaumaSantaConversazionediantedateladefundodeumapaisagem

luminosa no ar luzente de úmbria. O fundo de ouro isola cada uma das figuras, a

paisagematrásdelesbrilhacomoumaalmacomum,dedentrodaqualelesbebemseus

sorrisoseseuamor.

XII.Deilhaemilhanãoháoutrapossibilidade:saltosperigososnosquaisarriscamos

maisdoqueospés.Umconstantepularparaláeparacásecria,comacasoseridículos;

poisacontecequedoisseressaltamumparaooutro,aomesmotempo,deformaque

sóseencontramnoar,edepoisdestatrocapenosaterminamtãoafastados–umlonge

dooutro–comoantes.

XIII. Istonão émuito surpreendente; pois, na verdade, aspontesque levamparaa

uniãoepelasquaisseandacompassosbelosefestivosnãoestãodentrodenós,mas

atrásdenós,bemcomoovemosnaspaisagensdoFraBartholomeooudeLeonardo.A

bemdaverdade,avidaseaguçanaspersonalidadessingulares.Depicoparapico,no

entanto,asendapassaporvaleslargos.

XIV.Quandodoisoutrêspessoasse juntam,nãoestãopor istounidose juntos.São

comomarionetescujosfiosestãoemmãosdiversas.Somentequandoumamãoguia

todos,háalgocomumqueseestendesobreeles,algoqueoslevaaseinclinaremum

diantedooutroouasebater.Etambémasforçasdohomemestão,ondeterminamos

fios,numamãoquesustentaereina.30

                                                            30 Esteparágrafo,emparticular,jáantecipaaideiadomovimentomusicalerítmicoqueguiaemovearepresentaçãoartística(esuarecepçãopelosespectadores).ParaNietzsche,ocorotrágicoéafiguradosonhadorcoletivoquepermiteaosespectadoresentrarnomovimentorítmicododrama(edavida).Emvezdesefixarnosdetalhesisoladosdoenredo,pensandonasignificaçãodecadapersonagemoupalavra,ocoropermiteperceberseumovimento:comoumagrandeonda,amúsicareconfiguraosconteúdostradicionais.

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Disponívelem<http://www.zeno.org/Philosophie/M/Schopenhauer,+Arthur/Die+Welt+als+Wille+und+Vorstellung>.Acessoem:abrilde2014.

Notasobreaautora

Kathrin Rosenfield, Professora Titular no Dpto. de Filosofia da UFRGS, possuigraduação em Letras pela Université de Paris III (Sorbonne‐Nouvelle) (1980),mestradoemAntropologiaHistóricapelaÉcoledesHautesÉtudesenSciencesSociales(1981)edoutoradoemCiênciadaLiteraturapelaUniversidadedeSalzburg(1984).PósDoutoradonaÉcoleNormaleSupérieure(Ulm‐Paris)sobreHölderlineSófocles;ePósDoutoradonaUniversityofMassachusetts,Amherstsobre traduçãoecríticadaobradeRobertMusil eReleiturada versãohölderlinianadeÉdipoRei de Sófocles.AtualmenteéprofessoraassociadadaUniversidadeFederaldoRioGrandedoSul.TemexperiêncianasáreasdeFilosofiaeLiteratura,comênfaseemTeoriaLiterária,atuandoprincipalmente nos seguintes temas: Estética, Filosofia e Literatura, LiteraturasBrasileira,LiteraturasGermanicaeAustriaca,LiteraturaAnglo‐Saxã,Psicanálise,Arte.