Visao Militar Brasileira Da Guerra Do Chaco3932

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Perspectiva del Brasil del desarrollo de la Guerra del chaco

Citation preview

  • Antteses, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, pp. 649-667 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

    A viso militar brasileira da Guerra do Chaco: projeo geopoltica e rivalidade internacional na Amrica do Sul Brazilian military vision of the Chaco War: projection geopolitics and international rivalry in South America

    Helder Gordim da Silveira

    RESUMO Examina-se a forma como o meio militar brasileiro avaliou a Guerra do Chaco (1932-1935), entre o Paraguai e a Bolvia, a partir de relatrios e anlises oficiais acerca da situao-limite culminante do conflito. Busca-se propor que essa viso informada pelas doutrinas de carter geopoltico que se consolidaram no pas ao longo dos anos 1920, encontrando contri-buio decisiva na obra de Mario Travassos, no princpio da dcada seguinte. A rivalidade tradicional com a Argentina em torno da su-premacia estratgica na Amrica do Sul foi assim atualizada na viso militar brasileira da Guerra. PALAVRAS-CHAVE: Guerra do Chaco; Geopo-ltica; Pensamento Militar; Brasil; Argentina.

    ABSTRACT It examines how the military Brazilian evaluated the Chaco War (1932-1935) between Paraguay and Bolivia, from official reports and analysis on the state limit peak of the conflict. Goal is to propose that this view is informed by the character of geopolitical doctrines that have been consolidated in the country throughout the 1920s, finding definite contribution to the work of Mario Travassos, at the beginning of the next de-cade. The traditional rivalry with Argentina over the strategic supremacy in South America was updated so the Brazilian military view of War. KEYWORDS: Chaco War; Geopolitics; Military Thought; Brazil; Argentina.

    O presente artigo parte de uma pesquisa mais ampla em que se buscou

    examinar as formas pelas quais os servios diplomticos do Brasil e da

    Argentina intervieram na questo do Chaco Boreal, envolvendo o Paraguai e a

    Bolvia nos anos 1930. Procurou-se ali perceber de que modo o pensamento

    geopoltico do contexto, associado aos interesses mais imediatos de Buenos

    Aires e do Rio de Janeiro, informaram os rumos da ingerncia de ambos os

    pases no processo de busca pela paz no transcurso da guerra (1932-35) e na

    construo de um arranjo internacional mais duradouro para a regio, durante

    a Conferncia de Buenos Aires (1935-39).

    Nessa perspectiva, assumia decisiva relevncia o posicionamento dos

    meios militares de ambos os pases quanto ao conflito e no que toca definio

    Doutor em Histria e Professor da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) / Brasil.

  • Helder Gordim da Silveira A viso militar brasileira da Guerra do Chaco: projeo geopoltica e rivalidade internacional...

    Antteses, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, pp. 649-667 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

    650

    dos interesses nacionais a ele associados, a mdio e longo prazos. Dar-se-,

    assim, destaque ao modo como circulou nas esferas militares brasileiras uma

    interpretao sobre a Guerra, situando-a no contexto sul-americano e indicando

    suas repercusses imediatas e potenciais sobre a segurana e a projeo dos

    interesses do pas neste cenrio, de modo a revelar certos padres de percepo

    acerca da insero internacional brasileira, em boa medida informados por

    noes do pensamento geopoltico.

    Importa notar que foge deste objetivo estrito de anlise, foco do presente

    artigo, travar um dilogo de maior flego com a relativamente extensa

    bibliografia atualmente disponvel acerca do impacto da Guerra do Chaco nas

    formas de organizao e percepo institucional das Foras Armadas sul-

    americanas, parte da qual aponta, de fato, para concluses, se no opostas,

    certamente diversas daquelas aqui apresentadas.

    A Guerra e suas repercusses internacionais

    O Chaco Boreal uma das regies do grande territrio do Chaco com,

    aproximadamente, 170.000 Km2, limitado a leste pelo rio Paraguai, a oeste pelo

    Pilcomayo e, ao norte, pelas encostas da serra de Santa Cruz, no centro da

    Amrica do Sul. Esta regio foi disputada, desde a segunda metade do sculo

    XIX, pelo Paraguai e pela Bolvia, que chegaro Guerra, em 1932-35. O

    confronto entre os dois pases mediterrnicos do subcontinente, marcados por

    tragdias militares anteriores, na Guerra do Pacfico e na Guerra da Trplice

    Aliana, alcanou gastos da ordem de 350 milhes de dlares, em um contexto

    de depresso internacional, custando a vida de mais de 90.000 bolivianos e

    paraguaios (CHIAVENATO, 1979; GUERRERO, 1934; GUGGIARI, 1983).

    Constituiu-se, por outro lado, em um inusitado laboratrio para o emprego em

    campo de alguns dos mais avanados equipamentos blicos disponveis na

    Europa e na Amrica, alguns dos quais seriam usados em larga escala na

    Segunda Guerra (ZOOK, 1962).

    A Guerra do Chaco, alm de constituir uma realizao trgica dos

    nacionalismos de elite do Paraguai e da Bolvia, manchados de derrotas

    militares e diplomticas desde o sculo XIX, sofreu ingerncias externas

    decisivas, por dentro e por fora dos mecanismos regulatrios internacionais

  • Helder Gordim da Silveira A viso militar brasileira da Guerra do Chaco: projeo geopoltica e rivalidade internacional...

    Antteses, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, pp. 649-667 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

    651

    ento existentes (COELLO, 1982; SALUM-FLECHA, 1938; ELIO, 1988). Direta

    ou indiretamente, a guerra tocava interesses dos Estados Unidos, da Gr-

    Bretanha, da Liga das Naes, do Sistema Interamericano em construo, de

    grandes trustes petrolferos, como a Standart Oil e dos dois vizinhos poderosos

    e rivais, cujas projees estratgicas nos anos 1930 conferiam excepcional

    relevncia ao conflito: o Brasil e a Argentina (SCENNA, 1976; ROUT, 1970;

    MORENO, 1934; LAMAS, s/d; BARROS, 1938; HILTON, 1983; TULCHIN,

    1983; ETCHEPAREBORDA, 1982)

    A primeira disputa diplomtica relevante em torno do territrio do Chaco

    data de 1853. O tratado de fronteira, assinado neste ano entre a Argentina e o

    Paraguai, reconhecia como pertencente ao territrio deste pas o rio de mesmo

    nome, de margem a margem, abaixo de sua confluncia com o rio Paran. A

    Bolvia protestou, como terceiro interessado, contra os termos do tratado,

    alegando direitos rea ao longo do rio Paraguai, entre os paralelos 20, 21 e 22.

    Aps a Guerra da Trplice Aliana, a Argentina declara a inteno de

    retomar a regio do Chaco, que havia reconhecido como pertencente ao

    territrio paraguaio. O Brasil, cujas tropas ocupavam o Paraguai vencido,

    protestou contra essa inteno da aliada circunstancial do Prata (SCENNA,

    1976; BANDEIRA, 1995). Sob presso diplomtica do Imprio, em 1878,

    Argentina e Paraguai acordam levar a questo arbitragem do presidente norte-

    americano Rutherford Hayes. A arbitragem de Washington decide a favor do

    Paraguai, obrigando a Argentina a retirar-se da regio do Chaco Boreal, a qual j

    ocupava militarmente. A Bolvia novamente protesta contra o resultado da

    arbitragem como terceiro interessado, reiterando a Washington suas pretenses

    no Chaco. Pragmaticamente, o presidente Hayes declara haver arbitrado

    exclusivamente a questo entre o Paraguai e a Argentina. Os alegados direitos

    de La Paz deveriam ser discutidos com Assuncin, em demanda diversa.

    A partir de ento, segue-se a intensa e muitas vezes passional controvrsia

    diplomtica boliviano-paraguaia, com a assinatura de inmeros acordos e

    protocolos, sistematicamente rejeitados ou no ratificados pelos poderes

    legislativos de um ou de outro dos contendores, at 1927, quando a questo

    escaparia definitivamente para a esfera militar (ROUT, 1970). O Paraguai, ao

    longo do perodo, trata de consolidar a posse da chamada Zona Hayes no

    Chaco, sobretudo por meio de concesses a empresas e a particulares

  • Helder Gordim da Silveira A viso militar brasileira da Guerra do Chaco: projeo geopoltica e rivalidade internacional...

    Antteses, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, pp. 649-667 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

    652

    estrangeiros, destacando-se capitais argentinos e ingleses, para a extrao do

    tanino e a criao de gado nas plancies da regio, sempre sob o protesto

    boliviano (CHIAVENATO, 1979).

    A questo do Chaco Boreal torna-se assim um ponto-chave de definio do

    interesse nacional para as elites da Bolvia e do Paraguai, com decisiva

    influncia na poltica bipartidria domstica. Os acordos em torno do territrio,

    firmados pelo partido eventualmente no poder, so sistematicamente atacados

    como antipatriticos pela frao da oligarquia na oposio.

    Desse modo, a intangibilidade do litoral no rio Paraguai e a posse da dita

    Zona Hayes tornam-se cones do pensamento nacionalista paraguaio na

    primeira metade do sculo XX. Por seu turno, o nacionalismo boliviano, na

    chamada doutrina reivindicacionista, que se afirma ao longo dos anos 1920,

    com a fundao dos primeiros fortines no territrio do Chaco Boreal em

    oposio ao pragmatismo (GAMUCIO, 1996), passa a considerar um porto no

    rio Paraguai, que proveria ao pas uma sada para o Atlntico, vital para os

    interesses da Bolvia, considerando a perda de todo o litoral do Pacfico para o

    Chile, em 1883.

    Na dcada de 1920, um novo ingrediente viria a acender o estopim do

    conflito. Em 1921, a poderosa Standard Oil, truste petrolfero estadunidense,

    confirma a presena de petrleo na regio oriental da Bolvia, passando a

    explor-lo como concessionria. O escoamento do produto, pelo Prata ao

    Atlntico, porm, tornou-se problemtico. O caminho lgico economicamente

    seria pela provncia argentina de Salta. A Argentina, entretanto, com a ascenso

    poltica do nacionalismo da Unin Cvica Radical (UCR), criara em 1922 a

    estatal Yacimientos Petrolferos Fiscales (YPF), entrando em conflito com os

    interesses da Standard no pas (SCENNA, 1970). Alm disso, a projeo

    estratgica argentina planificara o controle da conduo do petrleo do oriente

    boliviano como parte da articulao econmica mais ampla do norte argentino

    com aquela regio, para onde corriam os trilhos de um articulado sistema

    ferrovirio. Essa projeo argentina, concebida pelo menos desde o princpio do

    sculo, era acompanhada com grande preocupao no Brasil desde o perodo de

    Rio Branco frente da chancelaria (FROTA, 1991; BUENO e CERVO, 1992).

    Em 1925, a Standard Oil busca a concesso, por parte do governo

    argentino, para a construo de um oleoduto at o rio Paran. Dois anos aps, a

  • Helder Gordim da Silveira A viso militar brasileira da Guerra do Chaco: projeo geopoltica e rivalidade internacional...

    Antteses, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, pp. 649-667 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

    653

    Argentina recusa a concesso e eleva a taxa de exportao para o petrleo

    boliviano, tornando-a proibitiva pelo territrio do pas. A sada pelo rio

    Paraguai, no controvertido Chaco Boreal, tornava-se a alternativa vivel para a

    Standard Oil, na coincidncia que se revelaria trgica, com o pensamento

    nacionalista boliviano. Denunciar e impedir a concretizao desse intento era

    questo igualmente vital para a Argentina e para o Paraguai.

    Exatamente a partir de 1927, a Bolvia passaria a obter vultosos

    emprstimos internacionais para a compra dos mais modernos materiais blicos

    disponveis. No Senado estadunidense, os democratas denunciavam a

    participao da Standard na obteno dos emprstimos. O Paraguai, por seu

    turno, contaria com o apoio permanente da Argentina, sobretudo aps 1930,

    com o golpe que coloca os militares no centro da arena poltica, por meio de

    emprstimos e fornecimento secreto de material blico, na sombra da

    declarao formal de neutralidade de Buenos Aires. Completava-se o cenrio

    para o mais grave confronto militar sul-americano no sculo XX.

    No Brasil, que igualmente declara-se neutro, constitui-se uma decidida

    posio anti-argentina e, portanto, pr-boliviana, na questo do Chaco. A

    poltica externa da Repblica, consolidada no perodo Rio Branco e, em grande

    medida, herdada, no obstante com redefinies importantes, pelo ps-30, via a

    rival platina como a principal competidora do pas no estabelecimento de uma

    supremacia poltica e militar na Amrica do Sul (MOURA, 1980a; BANDEIRA,

    1993). Os Estados Unidos seriam aliados relativos nessa projeo hegemnica,

    em vista das resistncias que sofreriam no mundo hispnico para a efetivao de

    um sistema interamericano sob sua liderana (MOURA, 1980b). A Argentina, de

    fato, destacava-se nessa franca oposio desde o princpio do sculo, fortemente

    articulada ao sistema de poder britnico, competindo com os Estados Unidos no

    mercado internacional de carnes e cereais (SCENNA, 1970), em contraste com o

    Brasil que tinha no mercado do norte a principal esfera de consumo de sua

    produo primria tropical.

    Essa consolidao do pensamento geopoltico, sobretudo nos meios

    militares brasileiros e argentinos, notadamente a partir dos anos 1920, atualizou

    e reforou esse eixo de rivalidade, conferindo grande relevncia para o conflito

    do Chaco, como foco atual desse eixo (CHILD, 1978; MIYAMOTO, 1981;

    TOSTA, 1960).

  • Helder Gordim da Silveira A viso militar brasileira da Guerra do Chaco: projeo geopoltica e rivalidade internacional...

    Antteses, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, pp. 649-667 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

    654

    A obra do capito brasileiro Mrio Travassos (1938), Projeo Continental

    do Brasil, publicada primeiramente em 1931, como Aspectos Geogrficos Sul-

    Americanos, e acatada quase imediatamente nos meios militares brasileiros e

    argentinos (SCENNA, 1976, BARROS, 1938), um excelente indcio dessa

    atualizao. Transpondo para o cenrio sul-americano a clebre teoria do

    heartland mundial, a poro da Europa central cujo domnio decidiria a corrida

    hegemnica global (MAGNOLI, 1986), Travassos prope que o corao sul-

    americano encontrava-se no territrio boliviano: o tringulo econmico

    Cochabamba Santa Cruz de la Sierra Sucre. Ali, Brasil e Argentina

    decidiriam a disputa pela supremacia no subcontinente, dividido pelos sistemas

    amaznico e platino como eixos de articulao com o Atlntico. O autor sintetiza

    a preocupao brasileira ao demonstrar a dianteira da Argentina na corrida,

    atravs da projeo ferroviria que atraa para o Prata a economia do heartland

    sul-americano. Caberia ao Brasil neutralizar tal projeo, criando meios de

    atrao da economia boliviana. O objetivo imediato seria a construo de uma

    estrada de ferro ligando Santa Cruz a Corumb, que seria a base de articulao

    da economia boliviana ao eixo porturio Santos Rio Grande. Refere nesse

    sentido o autor:

    (...) a situao da Bolvia hoje das mais delicadas(...). Trabalhada pelas bacias amaznica e platina oscila, instvel, entre a Argentina e o Brasil. Como a verdadeira amputada da Guerra do Pacfico e ante a indiferena brasileira, teve de sujeitar-se, sem direito de escolha, influncia argentina. (TRAVASSOS, 1938: 82-83)

    Desse modo, Brasil e Argentina travariam, ao longo da Guerra do Chaco,

    uma intensa disputa pela preponderncia poltico-diplomtica na obteno da

    paz, utilizando o processo de negociao para obter possveis vantagens em

    acordos de projeo ferroviria e de comrcio com os contendores. A Argentina,

    mesmo com a desvantagem de apoiar quase abertamente o Paraguai,

    equilibrava-se de forma notvel na neutralidade para obter uma posio

    favorvel de negociao e presso sobre La Paz, chegando mesmo a incentivar o

    separatismo histrico do Departamento de Santa Cruz, no oriente boliviano. O

    Brasil, mais diretamente associado posio boliviana, igualmente lutaria para

    no anular suas possibilidades de ganho junto a Assuncin. Nesse processo,

    acionam suas respectivas articulaes com Washington e Londres nos foros

    internacionais de negociao que se constituem sucessivamente, no Comit de

    Neutros, na capital estadunidense, na Liga das Naes e, finalmente, no grupo

  • Helder Gordim da Silveira A viso militar brasileira da Guerra do Chaco: projeo geopoltica e rivalidade internacional...

    Antteses, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, pp. 649-667 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

    655

    ABCP, formado por ambos os pases, o Chile e o Peru (ROUT, 1970).

    Mapa do Chaco

    Referncia: Disponvel em , acessado em 05/10/2009.

  • Helder Gordim da Silveira A viso militar brasileira da Guerra do Chaco: projeo geopoltica e rivalidade internacional...

    Antteses, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, pp. 649-667 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

    656

    A disputa seguiria na longa Conferncia de Paz (1935-1939), em Buenos

    Aires, durante a qual negociam-se e barganham-se tratados com dois pases

    esgotados em uma guerra praticamente sem vencedor.

    Os militares, a Guerra e as projees brasileiras no Subcontinente

    O princpio do ano de 1935 mostra-se excepcionalmente propcio para um

    exame da viso que apresentava a inteligncia militar acerca do interesse

    brasileiro na questo do Chaco. A vitria do Paraguai parecia consolidada, com

    as tropas deste pas ocupando praticamente todo o territrio em litgio, o que

    representava concretamente um avano militar potencial argentino junto

    Bolvia e fronteira brasileira. No campo poltico-diplomtico, o poderoso

    chanceler Carlos Saavedra Lamas, futuro ganhador do prmio Nobel da Paz,

    lograra transferir a sede das negociaes para Buenos Aires, aps mais um

    fracasso da Liga das Naes (ROUT, 1970). A situao mostrava-se ento

    extremamente grave para o Brasil, o que a torna favorvel para a anlise dos

    conceitos geopoltico-estratgicos pelos quais os meios militares a interpretam.

    A 26 de janeiro de 1935, a inspetoria militar da fronteira Madeira-

    Guapor, por intermdio do capito inspetor Aluzio Pinheiro Ferreira, presta

    informaes ao comando da 8 Regio militar sobre a situao do conflito no

    Chaco.1

    O avano territorial paraguaio por praticamente todo o territrio em

    disputa colocava, para os interesses brasileiros, um perigo imediato: a

    possibilidade do avano das tropas do comandante paraguaio Jose Felix

    Estigarribia at o corao continental, no territrio boliviano. Esta , de fato, a

    primeira preocupao revelada pelo capito-inspetor:

    (...) as tropas paraguaias em operao no Chaco, j atingiram a linha Murillo-Caragua e Vanguardia Salinas So Jos (...). evidente que o avano paraguayo visa Santa Cruz, com o objetivo de cortar as ligaes entre o Altiplano e o Oriente, (...) deixando o chamado Oriente boliviano, totalmente desvinculado dos centros populosos e econmicos do ocidente.2

    O objetivo estritamente ttico deste provvel movimento das tropas

    paraguaias (que, de fato, no chegou a ser empreendido), seria, como observou

    1 Cf. Arquivo Ges Monteiro. Arquivo Nacional. Rio de Janeiro Cx. 51(7) Pac. 1 2 Ibidem.

  • Helder Gordim da Silveira A viso militar brasileira da Guerra do Chaco: projeo geopoltica e rivalidade internacional...

    Antteses, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, pp. 649-667 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

    657

    o capito-inspetor, bloquear o fluxo bsico das tropas bolivianas do Altiplano

    at o Oriente. Do ponto de vista geopoltico-estratgico, porm, a realizao

    deste objetivo traria conseqncias bem mais graves para a posio brasileira no

    subcontinente.

    Viu-se nesse sentido a enorme preocupao de Mrio Travassos com a

    projeo ferroviria argentina em direo ao Oriente boliviano. A articulao

    econmica do norte argentino com esta regio, advertia o ento capito do

    exrcito brasileiro, poderia representar o controle do corao continental pelo

    Estado platino, deslocando-o em definitivo da rbita brasileiro-amaznica.

    evidente, pois, que o controle militar e, possivelmente, jurdico- do

    Paraguai sobre a regio petrolfera oriental aceleraria de forma vertiginosa o

    processo relativamente lento de influncia econmica, presente na planificao

    estratgica argentina. O capito Aluzio Ferreira, com claro domnio das

    questes geopolticas em jogo, coloca para seu comando a questo efetivamente

    central para o interesse brasileiro no conflito:

    Como o Brasil, olhar o problema poltico, de futuro, isto a infiltrao paraguaya, na bacia amaznica, e atravs dessa infiltrao, a influncia argentina, mal disfarada na Guerra do Chaco?3

    A possibilidade do controle praticamente direto da Argentina sobre o

    oriente boliviano e, portanto, sobre o corao continental era agravada ainda

    pelo tradicional separatismo do Departamento de Santa Cruz em relao ao

    Altiplano.

    De fato, o separatismo cruzenho era tradicionalmente sustentado desde

    Buenos Aires, sob argumentos de natureza cultural, geogrfica e histrico-

    jurdica, que buscavam demonstrar a vinculao do departamento territorial

    boliviano com o antigo Vice-Reinado do Prata e, portanto, rbita de influncia

    argentina (GANDIA, 1935). O prprio chanceler Saavedra Lamas trabalha com

    estes argumentos na sustentao do projeto geopoltico argentino na regio

    (LAMAS, s/d).

    A questo no passa despercebida observao militar brasileira da 8

    regio:

    (...) a prpria populao de Santa Cruz no se mostra nada alarmada com as possibilidades do avano paraguayo at alli, mesmo porque, facto, secularmente observado, a desvinculao moral entre os

    3 Ibidem.

  • Helder Gordim da Silveira A viso militar brasileira da Guerra do Chaco: projeo geopoltica e rivalidade internacional...

    Antteses, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, pp. 649-667 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

    658

    cruzenhos (...) com os chamados collas, ou bolivianos do ocidente.4

    Adverte, portanto, o observador militar brasileiro, novamente

    apresentando exata compreenso geopoltica dos fatos que relata, de que, para o

    Brasil, era necessrio considerar como agravantes do perigo argentino os

    mltiplos laos histricos que prendem o Departamento de Santa Cruz (...) s

    Repblicas enquadradas na bacia Prata-Paraguay.5

    Parece claro, assim, que a interpretao militar do interesse nacional

    brasileiro no conflito do Chaco, oriunda da circunscrio mais diretamente em

    contato com as atividades blicas, configurada segundo os fundamentos

    ideolgicos de disputa com a Argentina pelo predomnio na Amrica do Sul,

    dentro dos quais os conceitos geopolticos formalizados por Travassos ocupam

    papel central. No outro o sentido do desejo expressado pela inspetoria do

    capito Pinheiro Ferreira:

    (...) oxal que, do final dessa luta, no surjam outros maiores embaraos projeo intercontinental de nossa ptria, atravs do territrio da Bolvia, segundo a letra e o esprito dos Tratados vigentes, firmados pelo nosso e pelo governo dessa vizinha Repblica.6

    Vista dessa forma a observao militar mais direta do conflito no Chaco,

    passemos a considerar a ressonncia dos conceitos e concluses ali verificadas

    nas esferas militares mais prximas das instncias de deciso do Estado, nesse

    mesmo contexto.

    Ao iniciar o ano de 1935, achava-se instalado, nos termos constitucionais,

    o Conselho Superior de Guerra, rgo auxiliar do Governo para assuntos

    referentes preparao das operaes de guerra, aparelhamento do Exrcito e

    organizao da defesa nacional, cujos estudos e solicitaes deveriam ser

    diretamente analisados pelo Conselho de Segurana Nacional.

    Na ocasio, o General de Diviso Waldomiro Castilho de Lima, inspetor do

    1 Grupo de Regies Militares e membro do Conselho, apresenta, aos demais

    componentes deste, extenso relatrio, em carter reservado, no qual procura

    atualizar as condies militares do pas na Amrica do Sul e comentar de forma

    destacada o conflito do Chaco em sua relao com o interesse nacional

    4 Ibidem. 5 Ibidem. 6 Ibidem.

  • Helder Gordim da Silveira A viso militar brasileira da Guerra do Chaco: projeo geopoltica e rivalidade internacional...

    Antteses, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, pp. 649-667 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

    659

    brasileiro.7

    O relatrio de 1935, por sua extenso, profundidade, atualidade em relao

    ao contexto a que se refere, indiscutvel autoridade do autor e rigorosa

    significao poltico-institucional da instncia qual se destina, parece

    constituir-se em uma representao, largamente confivel da viso global que

    apresenta a inteligncia militar brasileira nos crculos mais prximos das

    instncias de deciso do Estado acerca dos interesses do pas no conflito

    chaquenho e, de forma geral, sobre a posio geopoltico-estratgica deste no

    subcontinente.

    Referente a esta posio, a esfera militar de deciso no Brasil, a princpios

    de 1935, sustenta a tradicional preocupao quanto questo da supremacia

    militar na Amrica do Sul.

    No plano doutrinrio, Mrio Travassos apresentava como inquietao

    bsica a perda da posio de supremacia neste setor, que o Brasil mantivera ao

    longo do perodo imperial para a Argentina, durante a primeira metade do

    sculo XX. No outro o motivo de temor que o meio militar concretamente

    expressa, em meados da terceira dcada do sculo. O Brasil perdeu a

    supremacia militar sul-americana que possua at a poca da Guerra do

    Paraguai (p. 1), a convico expressa por Castilho de Lima aos demais

    membros do Conselho Superior de Guerra.

    A posio central da Argentina nas projees estratgicas brasileiras,

    atualizada, para a dcada de 1930 por Mrio Travassos, encontra,

    concretamente, notvel instrumentalizao no meio militar.

    , com efeito, significativo o nmero, a atualizao e a qualidade dos

    dados, de natureza econmica e militar, que parece dispor sobre o pas vizinho o

    Estado Maior do Exrcito brasileiro, a revelar claramente a permanncia do foco

    de ateno da inteligncia militar do pas.

    A anlise de alguns destes dados que realiza o Inspetor do 1 Grupo de

    Regies Militares junto ao Conselho Superior de Guerra no animadora.

    Castilho de Lima salienta a superioridade argentina em praticamente todos os

    setores de importncia estratgica e militar. Qualificando o rival do Prata como

    potncia de primeira grandeza no nosso continente (p. 1), o general afirma:

    7 Cf. Arquivo Ges Monteiro. Arquivo Nacional. Rio de Janeiro Cx 51(5) doc. 1. Todas as citaes que seguem referem-se a este documento de 1935.

  • Helder Gordim da Silveira A viso militar brasileira da Guerra do Chaco: projeo geopoltica e rivalidade internacional...

    Antteses, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, pp. 649-667 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

    660

    (...) seus quadros militares profissionais so competentes, seu material de guerra copioso e moderno, seu servio de recrutamento aperfeioado, baseado num sistema de alistamento modelar; suas vias de comunicao, alm de numerosas, cortam o pas em todos os sentidos e sua rede ferroviria pode realizar correntes de transportes militares aptos a atender as concentraes rpidas nas suas principais zonas fronteirias; sua indstria (...) j se salientou brilhantemente, pois possuem uma fbrica de avies, a nica existente na Amrica do Sul. (p. 1)

    Assim, no interior da esfera militar de deciso, em 1935, discute-se sobre

    dados que parecem apontar inequivocamente para uma posio de

    superioridade argentina no subcontinente. Esta superioridade, verificam os

    membros do Conselho Superior de Guerra, verifica-se na estrutura econmica e

    de transportes, na aviao, na artilharia de campanha, na infantaria e na

    marinha. A modernizao do material blico por encomendas Europa,

    segundo se pode saber (p. 3), na expresso de Castilho de Lima, era de vulto

    significativo.

    A hiptese de confronto militar, envolvendo o Brasil na Amrica do Sul

    parecia, naquele ano, ser trabalhada nos termos da tradio militar brasileira,

    isto , considerava-se praticamente inevitvel a unio dos estados hispano-

    platinos contra o Brasil. O Estado-lder de tal unio anti-brasileira era,

    evidentemente, a Argentina. Essa, alis, fora a maneira pela qual Travassos

    atualizara essa antiga tese por meio de argumentos geopolticos que apontavam

    para a gravitao natural dos pases platinos em torno de Buenos Aires.

    De fato, a inteligncia militar brasileira julga praticamente inevitvel a

    unio Argentina-Paraguai-Uruguai em caso de confronto armado.

    precisamente a hiptese veiculada no seio do Conselho Superior de Guerra, a

    qual parece muito clara em relao Argentina e ao que se julga um

    ressentimento histrico desta em relao ao desmembramento do antigo Vice-

    Reinado do Prata, obra da diplomacia e do poder militar do imprio do Brasil.

    (p. 5) Diz a respeito Castilho de Lima:

    (...) a Argentina que nunca pode se conformar com essa perda de grandeza territorial e poltica, que, pelo seu progresso, organizao, populao, territrio e ressentimentos da poltica e de seu povo, constitui o nosso maior inimigo provvel. (p. 6)

    No escapam inteligncia militar brasileira os vnculos especiais de

    subordinao do Paraguai Argentina, a que tivemos ocasio de aludir. O

    relatrio apresentado ao Conselho Superior de Guerra adverte de que a

    Argentina parecia considerar o Paraguai um de seus distritos de mobilizao e

  • Helder Gordim da Silveira A viso militar brasileira da Guerra do Chaco: projeo geopoltica e rivalidade internacional...

    Antteses, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, pp. 649-667 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

    661

    um prolongamento territorial. Tal convico, evidente, marcar a

    interpretao do interesse brasileiro no conflito paraguaio-boliviano no Chaco

    Boreal.

    Embora predomine, na referida interpretao, a anlise de questes

    ligadas ao confronto das estratgias geopolticas de projeo continental de

    ambos os pases, a hiptese de confronto militar direto, acima detalhada, no

    era absolutamente remota, nem em relao situao geral de disputa pelo

    predomnio do subcontinente, nem no que se refere ao conflito do Chaco,

    especificamente, de lugar central, alis, no quadro conjuntural daquela disputa.

    De fato, o confronto militar parece ser considerado como possibilidade

    bastante concreta nos meios militares de deciso, especialmente com a

    Argentina que pretende a completa supremacia e predomnio poltico-

    econmico na Sul-Amrica, conforme adverte enfaticamente o membro do

    Conselho Superior de Guerra.

    Especificamente quanto questo do Chaco, da mesma forma

    considerado provvel que esta venha a envolver o nosso pas numa guerra com

    os beligerantes ou contra outros, especialmente a Argentina, cuja neutralidade

    poder ser quebrada subitamente por manobras secretas da poltica

    internacional as quais no se poder facilmente prever.

    Assim, parecia bastante presente a hiptese de que o confronto boliviano-

    paraguaio conduzisse Brasil e Argentina guerra, em que pese os sempre

    renovados protestos oficiais de amizade e cooperao econmica, incluindo

    troca de visitas oficiais dos presidentes Justo e Vargas, o que, para o meio

    militar, no disfarava a apreenso geral de um possvel conflito.

    No caso de que tal conflito se efetivasse, os militares brasileiros pareciam

    contar com a formao do bloco Chile-Bolvia-Peru em conjugao com o Brasil.

    Tal perspectiva era claramente baseada em conceitos estratgicos de fundo

    geopoltico que tendiam a apontar os interesses de tais Estados em

    contraposio aos do bloco platino, liderado pela Argentina.

    Em que pese visvel gravidade com que era encarada, no contexto de

    1935, a possibilidade de que a Guerra do Chaco conduzisse ao confronto armado

    imediato com a Argentina, eram, na verdade, as questes poltico-estratgicas

    de longo prazo, envolvendo o predomnio no subcontinente que j se

    encontravam concretamente postas em evidncia pelo confronto boliviano-

  • Helder Gordim da Silveira A viso militar brasileira da Guerra do Chaco: projeo geopoltica e rivalidade internacional...

    Antteses, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, pp. 649-667 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

    662

    paraguaio.

    Nesse sentido, parece haver indicao de descontentamento na rea

    militar no que se refere participao poltico-diplomtica do Brasil na questo.

    Refere o relatrio ao Conselho Superior de Guerra:

    (...) notvel o alijamento que o Brasil vem sofrendo na soluo desse conflito sul americano. Nunca a sua mediao pacfica foi bem quista nem das inmeras negociaes anteriores guerra, nem quando nos declaramos neutros no momento de sua declarao (...) apesar da aparente manifestao oficial de simpatia, para que o Brasil figure como mediador na pacificao (p. 6).

    Tal descontentamento parecia indicar que, na tica estratgica, a

    diplomacia no explorava devidamente as variadas possibilidades que a situao

    criava para o interesse nacional brasileiro, sobretudo no que se refere Bolvia,

    isto , ao corao continental.

    Uma questo parece central na discusso proposta por Castilho de Lima no

    Conselho Superior de Guerra: qual deveria ser a posio brasileira no que se

    refere reivindicao formal da Bolvia de uma sada at o rio Paraguai pelo

    territrio do Chaco?

    O General prope a respeito duas ordens de considerao estratgica. A

    primeira, ligada a uma linha tradicional, defendia que seria favorvel ao

    interesse nacional brasileiro que a Bolvia obtivesse acesso ao rio Paraguai e da

    ao Atlntico, uma vez que, dessa forma, o pas teria diminuda sua fronteira com

    o contendor, aliado incontestvel, ou mesmo, praticamente, um

    prolongamento territorial da Argentina. O Rio de Janeiro sustentava, na

    ocasio, junto ao governo de La Paz, o propsito de garantir o acesso boliviano

    ao referido rio, como fizera desde o Imprio.

    Entretanto, uma ordem mais moderna de raciocnio vinha a colocar-se

    frente ao posicionamento tradicional do pas na questo. Tratava-se da projeo

    ferroviria brasileira na direo do corao continental preconizada por

    Travassos e, em larga medida, j esboada no acordo ferrovirio Brasil-Bolvia,

    de 1928. A ligao ferroviria Santa Cruz-Corumb, proposta pelo analista

    geopoltico apresentava a funo estratgica de criar uma via de acesso ao

    Atlntico para a Bolvia pelo territrio brasileiro at Santos, desviando o fluxo

    comercial daquele pas do eixo vertical platino e opondo-se, dessa forma, ao

    avano ferrovirio argentino, o qual visava precisamente forar o escoamento da

    produo do Oriente Boliviano neste segundo sentido.

  • Helder Gordim da Silveira A viso militar brasileira da Guerra do Chaco: projeo geopoltica e rivalidade internacional...

    Antteses, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, pp. 649-667 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

    663

    O inspetor do 1 Grupo de Regies Militares extremamente preciso na

    aplicao concreta dos conceitos de natureza geopoltica na questo chaquenha:

    (...) no nos interessa mais a poltica usada pelo imprio, de assegurar Bolvia uma sada pelo rio Paraguai (...). Pelo contrrio, hoje mais nos convm que a Bolvia no tendo sada pelo PRATA (interesse argentino), procure escoar seus produtos atravs (de) nosso territrio com o concurso da via frrea (...) Estrategicamente essa poltica a colocar contra o Paraguai e Argentina, nosso inimigo principal. (O grifo em versais est no original)

    O general brasileiro igualmente preciso quanto ao reconhecimento da

    funo estratgica do projeto ferrovirio argentino, grande advertncia de Mrio

    Travassos e objeto central das negociaes conduzidas pelo chanceler Saavedra

    Lamas junto ao governo boliviano, j desde o princpio das hostilidades no

    Chaco. Castilho de Lima anuncia claramente o objetivo fundamental e fatal

    para os interesses brasileiros no subcontinente das comunicaes ferrovirias

    argentinas na Bolvia. Refere o militar que estas comunicaes buscavam

    (...) ligar o Chaco argentino (Yacubas) Santa Cruz de La Sierra e o Altiplano ao Chaco Boreal at as margens do rio Paraguai completando assim o ciclo das comunicaes que canalizaro toda a produo boliviana-paraguaia para o rio da Prata, atravs de Buenos Aires.

    A ligao Yacuiba-Santa Cruz, vital para planificao estratgica argentina,

    j se encontrava assegurada por protocolo firmado entre os governos de Buenos

    Aires e La Paz, advertia Castilho de Lima ao Conselho.

    Recomenda, ento, o General que o Brasil prestasse auxlio imediato

    Bolvia para construo de outra ligao estratgica fundamental, Santa Cruz-

    Porto Suarez, sem o que, volta a advertir o estrategista, em breve a Argentina o

    far, com graves prejuzos para o Brasil.

    Era necessrio, portanto, alcanar a rival no que se referia projeo

    ferroviria, segundo o pensamento em trnsito no Conselho Superior de Guerra,

    para que a no obteno por parte da Bolvia de uma sada Atlntica pelo rio

    Paraguai viesse ao encontro dos interesses estratgicos brasileiros. Se tal no

    ocorresse, a situao mediterrnica do estado boliviano voltaria a ser favorvel

    ao interesse argentino, conforme propunha a estratgia brasileira tradicional . A

    situao, era, portanto, extremamente delicada para o pas, que se via colocado

    entre duas possibilidades negativas:

    (...) conseguida para a Bolvia uma sada para o rio Paraguai continuaro os produtos desse pas a se escoar para o Prata. Negada aquela sada, o seu plano ferrovirio [da Argentina] ter mais rpida execuo.

  • Helder Gordim da Silveira A viso militar brasileira da Guerra do Chaco: projeo geopoltica e rivalidade internacional...

    Antteses, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, pp. 649-667 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

    664

    O separatismo latente do Departamento de Santa Cruz, observado de

    forma grave pela inspetoria da 8 Regio Militar, mostrava-se igualmente

    ameaador para a esfera militar de deciso. O perigo argentino era, neste caso,

    igualmente notvel, segundo a viso de Castilho de Lima, na medida em que,

    afirma o general, a nova nao seria fatalmente ligada ao Paraguai, e, portanto,

    ao nosso principal inimigo provvel a Argentina. Acrescenta ainda o membro

    do Conselho Superior de Guerra:

    (...) desmembradas e independentes Santa Cruz e El Beni, melhores proventos adviriam para a Argentina porque mais fcil lhe seria estender sua influncia a um novo pas que s teria sada pelo Amazonas e Mato Grosso at onde no poder to cedo lanar uma via frrea (...) ou pelo Paraguai cujo domnio econmico est de posse de Buenos Aires.

    No obstante esse domnio econmico argentino sobre o Paraguai, o

    conflito do Chaco colocava, para a projeo continental brasileira, algumas

    oportunidades positivas junto a Assuncin, segundo se depreende de certos

    pontos em anlise no Conselho Superior de Guerra. Mrio Travassos j esboara

    a possibilidade de que o Brasil pudesse oferecer ao Paraguai uma sada

    alternativa para o Atlntico por meio de ligao ferroviria de Assuncin at o

    eixo porturio Rio Grande-Santos.

    precisamente isto o que prope o estrategista Castilho de Lima ao exame

    do Conselho. A guerra, pensa o General, debilitando a economia paraguaia,

    transformaria o controle argentino desta economia em uma verdadeira asfixia.

    A situao seria, portanto, favorvel ao oferecimento de um fluxo comercial

    alternativo a Assuncin, nos termos que preconizara Travassos.

    Dever-se-iam desenvolver negociaes para as ligaes ferrovirias

    Assuncin-Santos ou Assuncin-Paranagu, por meio das ligaes Hosqueta-

    Ponta Por-Campo Grande ou Assuncin do Iguau em direo aos trilhos da

    Londrina-Jata. O sentido estratgico dessas comunicaes claramente

    enunciado:

    (...) essas comunicaes, livrando o Paraguai da dependncia e despotismo econmico argentino, afastariam de ns o perigo da unio ntima desse pas com a Argentina, aproximando-o mais do Brasil e oferecendo-nos certa garantia de benevolente neutralidade dessa Repblica em caso de uma guerra Brasil-Argentina.

    J vimos, por outro lado, que os militares brasileiros pareciam contar com

    a aliana do chamado bloco do Pacfico Bolvia, Chile e Peru em caso de

  • Helder Gordim da Silveira A viso militar brasileira da Guerra do Chaco: projeo geopoltica e rivalidade internacional...

    Antteses, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, pp. 649-667 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

    665

    confronto com o principal inimigo provvel, a Argentina. Vejamos o que diz

    Castilho de Lima sobre os interesses dos EUA em destaque o petrleo

    explorado pela Standard Oil na regio compreendida pelos hipotticos aliados

    do Brasil:

    (...) os interesses ali representados por vultosos capitais norte-americanos e que tero rendas fabulosas quando estiverem estabelecidos os transportes convenientes para o petrleo, so interesses antagnicos aos do Prata que certamente oferecero certas restries expanso argentina aps a guerra.

    Depreende-se, pois, que o pensamento estratgico brasileiro v como

    coincidentes os interesses do Brasil e dos EUA no subcontinente, o que,

    evidentemente, introduz a vinculao entre ambos os pases no mbito da

    formulao do interesse nacional brasileiro, precisamente nos termos da

    poltica tradicional inaugurada por Rio Branco. Encontra-se, dessa forma,

    atuando, no caso especfico da questo chaquenha, o mecanismo geral que

    sustenta e reproduz, a nvel poltico-ideolgico, a insero brasileira no sistema

    de poder norte-americano, o qual, igualmente no caso do conflito do Chaco, ter

    na Argentina o principal foco de resistncia para a sua configurao na Amrica

    do Sul.

    No interior desse quadro interpretativo, a atuao do servio diplomtico

    brasileiro na questo do Chaco no parecia estar agradando aos meios militares,

    segundo se depreende das palavras do general Castilho de Lima:

    (...) a nossas diplomacia atualmente parece claudicar lamentavelmente no que diz respeito defesa dos nossos palpitantes interesses polticos no Prata e no Atlntico, onde a Argentina vem orientando as questes ao sabor dos interesses econmicos e estratgicos da Casa Rosada.

    De fato, nas negociaes mais efetivas que se seguiriam em busca de um

    Protocolo que estabelecesse de forma imediata o cessar-fogo, o Itamaraty, sob

    Jos Carlos de Macedo Soares, atuaria na questo contando com a presena

    bem mais efetiva, e s vezes direta, do chefe do Executivo e das esferas militares,

    o que tornaria a viso geopoltica aqui discutida decisiva na informao do rumo

    da ingerncia brasileira.

    Bibliografia

    BARROS, Jayme de. Sete Anos de Poltica Exterior do Brasil (1931-1937). Rio de Janeiro: DIP, 1938.

    BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Estado Nacional e Poltica Internacional na

  • Helder Gordim da Silveira A viso militar brasileira da Guerra do Chaco: projeo geopoltica e rivalidade internacional...

    Antteses, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, pp. 649-667 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

    666

    Amrica Latina. O Continente nas Relaes Argentina-Brasil (1930-1992). Braslia: Ed UNB, 1993.

    ______. O Expansionismo Brasileiro e a Formao dos Estados na Bacia do Prata. Argentina, Uruguai e Paraguai Da Colonizao Guerra da Trplice Aliana. So Paulo: Ensaio, Braslia: Ed. da UnB, 1995.

    BUENO, Clodoaldo e CERVO, Amado. Histria da Poltica Exterior do Brasil. So Paulo: tica, 1992.

    CHIAVENATO, Jlio J. A Guerra do Chaco. So Paulo: Brasiliense, 1979.

    CHILD, John. O Pensamento Geopoltico Latino-Americano. A Defesa Nacional. Rio de Janeiro: mai.-jun., 1978.

    COELLO, Vicente Rivarola. Cartas Diplomticas Eusbio Ayala Vicente Rivarola Guerra Del Chaco. Buenos Aires: Ind. Graf. Del Libro SRL, 1982.

    ELIO, Tomas G. La Paz Del Chaco. Una Decisin Poltica. La Paz: Amigos Del Libro, 1988.

    ETCHEPAREBORDA, Roberto. Zeballos y la Poltica Exterior Argentina. Buenos Aires: Pleamar, 1982.

    FROTA, Luciara S. Argentina Brasil Divergncias e Convergncias. Braslia: Centro Grfico do Senado Federal, 1991.

    GAMUCIO, Mariano B. Breve Historia Contempornea de Bolvia. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1996.

    GANDIA, Henrique de. Historia de Santa Cruz de la Sierra. Una Nueva Repblica en Sud America. Buenos Aires, 1935.

    GUERRERO, Jlio C. La Guerra en El Chaco. Lima: Imp. y Lit. T. Scheuch, 1934.

    GUGGIARI, Lorenzo L. El Financiamiento de la Defensa del Chaco 1924-1935. Un Desafo al Liberalismo Econmico. Assuncin: Arte Nuevo, 1983.

    HILTON, Stanley. Las Relaciones Argentino-Brasileas: El Punto de Vista de Brasil. IN: MONETA, Carlos (org.). Geopoltica y Poltica Del Poder en el Atlntico Sur. Buenos Aires: Pleamar, 1983.

    LAMAS, Carlos Saavedra. Por La Paz de las Amricas. Buenos Aires: Ministrio de las Relaciones Exteriores y Culto, s/d.

    MAGNOLI, Demetrio. O que Geopoltica. So Paulo: Brasiliense, 1986.

    MIYAMOTO, Shiguenoli. O Pensamento Geopoltico Brasileiro. Dissertao de Mestrado. So Paulo, USP, 1981.

    MORENO, Isidoro R. La Neutralidad de La Republica Argentina en La Guerra Del Chaco. Crdoba: Imp. de la Universidad, 1934.

    MOURA, Gerson. A Revoluo de 1930 e a Poltica Externa Brasileira: Ruptura ou Continuidade? Seminrio sobre a Revoluo de 1930. Rio de Janeiro, CPDOC/FGV, 22 a 25 de setembro, 1980a.

    ______. Autonomia na Dependncia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980b.

    ROUT, Leslie B. Politics of the Chaco Peace Conference 1935-1939. Austin: Institute for the Latin American Studies, 1970.

  • Helder Gordim da Silveira A viso militar brasileira da Guerra do Chaco: projeo geopoltica e rivalidade internacional...

    Antteses, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, pp. 649-667 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

    667

    SALUM-FLECHA, Antonio. Historia Diplomtica Del Paraguay de 1869 a 1938. Assuncin: Litocolor, 1938.

    SCENNA, Miguel A. Como Fueron las Relaciones Argentino Norteamericanas. Buenos Aires: Plus Ultra, 1970.

    ______. Argentina-Brasil. Cuatro Siglos de Rivalidad. Buenos Aires: Ed. La Bastilla, 1976.

    TOSTA, Octavio. A Geopoltica no Brasil. A Defesa Nacional. Rio de Janeiro: fev.-mar., 1960.

    TRAVASSOS, Mario. Projeo Continental do Brasil. So Paulo: Nacional, 1938.

    TULCHIN, Joseph S. La Relacin Argentino-Brasilea: El Punto de Vista Argentino. IN: MONETA, Carlos (org). Geopoltica y poltica Del Poder en Atlntico Sur. Buenos Aires: Pleamar, 1983.

    ZOOK, David H. Jr. La Conduccin de la Guerra del Chaco. Buenos Aires: Ed. Lito, 1962.

    Colaborao recebida em 31/07/2009 e aprovada em 21/09/2009.