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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA
INSTITUTO DE LETRAS E LINGUSTICA
MARLIA DA SILVA FREITAS
O FEMININO E O POTICO NAS NARRATIVAS DE MARINA
COLASANTI
UBERLNDIA
2014
MARLIA DA SILVA FREITAS
O FEMININO E O POTICO NAS NARRATIVAS DE MARINA COLASANTI
Dissertao de mestrado apresentada no Programa
de Ps-graduao em Letras Curso de Mestrado
em Teoria Literria, no Instituto de Letras e
Lingustica, Universidade Federal de Uberlndia,
para a obteno do ttulo de Mestre em Letras (rea
de Concentrao: Teoria da Literatura).
Orientador: Prof. Dr. Ivan Marcos Ribeiro
UBERLNDIA
2014
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
Sistema de Bibliotecas da UFU, MG, Brasil.
F866f
2014
Freitas, Marlia da Silva, 1988-
O feminino e o potico nas narrativas de Marina Colasanti / Marlia da
Silva Freitas. -- 2014.
121 f. : il.
Orientador: Ivan Marcos Ribeiro.
Dissertao (mestrado) - Universidade Federal de Uberlndia,
Programa de Ps-Graduao em Letras.
Inclui bibliografia.
1. Literatura - Teses. 2. Literatura brasileira - Histria e crtica - Teses.
3. Colasanti, Marina, 1937- - Crtica e interpretao - Teses. I. Ribeiro,
Ivan Marcos. II. Universidade Federal de Uberlndia. Programa de Ps-
Graduao em Letras. III. Ttulo.
1. CDU: 82
Dedico esta dissertao memria de minha av Dirce, por todos os seus
ensinamentos. Ao amor de meus pais Luiz e Mrcia e pelo incentivo aos estudos, minha
querida irm Mariane, pela amizade sincera, apoio e motivao. Dedico-a, tambm, ao
meu companheiro Marcelo, por ter me ajudado e acompanhado de perto a construo
deste trabalho, por suas palavras de motivao e carinho.
AGRADECIMENTOS
Agradeo primeiramente a Deus, por me guiar e proteger em todas as
circunstncias de minha vida e pela realizao e concluso deste trabalho.
Ao meu orientador Prof. Dr. Ivan Marcos Ribeiro, por sua dedicao em me
orientar, por contribuir, com seus ensinamentos, para a construo desta dissertao, como
tambm para a minha formao como mestre.
querida professora Dr. Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha, por me mostrar o
caminho das letras e me apresentar a literatura de Marina Colasanti.
Prof. Dr. Cludia Maria Ceneviva Nigro por sua participao na banca e pela
disponibilidade na leitura desta dissertao.
todos os meus professores do curso de Mestrado em Teoria Literria, em especial
Prof. Dr. Marisa Martins Gama-Khalil, por contribuir com seus ensinamentos para a
construo deste texto.
Ao meu companheiro Marcelo, por me ajudar a realizar este trabalho, que esteve
sempre presente em cada uma de suas etapas, por me apoiar, incentivar e tambm,
contribuir com seus ensinamentos.
Agradeo tambm, minha amiga e principalmente incentivadora Carol, que desde
a graduao me aconselha e me apoia em tudo que eu preciso. Por estar sempre pronta a
me ajudar e principalmente por sua amizade.
minha querida irm Mariane, pois esteve sempre disposta a me ouvir e
aconselhar, nos momentos de elaborao da dissertao, como em todo o processo do
mestrado.
Agradeo em especial ao meu pai, por ser a base de minha sustentao, e estar por
perto em tudo que eu precisar e minha me, por me incentivar nos estudos, e
principalmente ter me mostrado a literatura.
Que o texto no acabe quando lhe ponho um ponto, mas continue se abrindo em
crculos concntricos no imaginrio do leitor, criando interrogaes. Em relao a mim
mesma, espero avanar. Que o texto consiga me contar coisas que no sei, que me pegue
desprevenida. E que a palavra se torne cada vez mais precisa, at vibrar ao olhar para,
como um cristal, emitir sua nota.
(COLASANTI, 2011)
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo estudar as narrativas de Marina Colasanti, com
enfoque nos contos Quem me deu foi a manh e So os cabelos das mulheres,
publicados no livro Com certeza tenho amor (2009). A partir das anlises dos textos, feitas
atravs de pesquisa bibliogrfica e comparativa, foi possvel elencar aspectos que os
caracterizam como pertencentes a uma literatura que se faz feminina e feminista sem
excluir a beleza potica da sua forma de escrita. Assim, fez-se necessrio estudar a
formao literria da autora e a sua constituio como escritora feminina e feminista, como
tambm, analisar os contos escolhidos, e compar-los a outros, da mesma autora, a fim de
justificar a formao do gnero, a relevncia das fadas e do maravilhoso para a composio
das personagens, e da presena do mtico e do simblico na construo da narrativa. Com
isso, foi possvel verificar que os contos, mesmo sendo narrativas curtas, possuem grande
significao, com uma narrativa que se faz potica e feminina, tornando a sua literatura
capaz de refletir sobre aspectos da realidade, como a representao da mulher na
sociedade.
Palavras-chave: Literatura feminina. Contos de fadas. Mitos. Teoria literria. Marina
Colasanti.
RSUM
Le prsent travail a le but dtudier les rcits de Marina Colasanti, avec emphase dans les
contes Quem me deu foi a manh et So os cabelos das mulheres, publi dans
louvrage Com certeza tenho amor (2009). partir danalyses de textes, fait par des
recherches bibliographiques et comparatives, a t possible spcifier daspectes qui les
caractrisent comme appartenantes une littrature qui se fait fminine et fministe sans
exclure la beaut potique de sa forme dcrite. Cependant, si fait ncessaire tudier la
formation littraire d'auteur et sa constitution comme crivaine fminine et fministe,
comme aussi analyser les contes choisis et les comparer a dautres, de cette mme auteur,
afin de justifier la formation du genre, la pertinence des fes et le merveilleux, pour la
composition des personnages, et la prsence du mythique et symbolique dans la
construction du rcit. Ainsi, cest possible vrifier que les contes, mme tant de courtes
rcits, avoir une grande signification smantique, avec un rcit qui fait potique et
fminine, faisant sa littrature capable de rflchir sur les aspects de la ralit comme la
reprsentation de femme dans la socit.
Mots cls: Littrature fminine. Contes de fes. Mythes. Thorie littraire. Marina
Colasanti.
LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1- Ilustrao do conto So os cabelos das mulheres ............................................. 21 Figura 2- Ilustrao do conto Quem me deu foi a manh ................................................ 21
Figura 4- Fada. ..................................................................................................................... 54 Figura 5- Serpente Ilustrao do conto So os cabelos das mulheres ........................... 71 Figura 6- Ouroboros. ........................................................................................................... 76 Figura 3- Moa Ilustrao do conto Quem me deu foi a manh ................................... 94
SUMRIO
CONSIDERAES INICIAIS ........................................................................................... 12 INTRODUO: .................................................................................................................. 14 DA MULTIPLICIDADE ESTILSTICA UNIFICAO SEMNTICA ....................... 14
Uma perspectiva sgnica em Quem me deu foi a manh e So os cabelos das
mulheres ......................................................................................................................... 21
1. EXPLICITANDO O POTICO: A LITERATURA QUE EMANA DOS CONTOS ...... 31 1.1. Aspectos tericos e literrios .................................................................................. 31
1.1.1. A instabilidade do gnero dentro de uma mesma categoria narrativa ............... 34
1.1.2. A oralidade em Quem me deu foi a manh .................................................... 36 1.1.3. Formalismo, recepo e significao................................................................. 37 1.1.4. O conceito de ps-modernismo nos contos ....................................................... 41
1.2. O gnero em questo: o conto e suas teses ............................................................ 42
2. OS CONTOS DE FADAS: A IMPORTNCIA DAS FADAS PARA A
CONSTITUIO DAS NARRATIVAS ............................................................................. 48 2.1. As fadas e o maravilhoso nos contos ..................................................................... 54
3. MARINA COLASANTI, NARRADORA-POETA: UMA VIAGEM POR MITOS E
SMBOLOS ......................................................................................................................... 63 3.1. Os smbolos no conto So os cabelos das mulheres ......................................... 67
3.2. A simbologia presente em Quem me deu foi a manh. .................................... 73 4. FEMININO: A REPRESENTAO DA MULHER NOS TEXTOS DE MARINA
COLASANTI E A BUSCA POR UMA AFIRMAO IDENTITRIA. .......................... 78
CONSIDERAES FINAIS: A TESSITURA DOS SENTIDOS EM MARINA
COLASANTI ...................................................................................................................... 95 REFERNCIAS .................................................................................................................. 99
ANEXO A - So os cabelos das mulheres .................................................................. 102
ANEXO B - Quem me deu foi a manh ..................................................................... 105 ANEXO C - Menina de vermelho a caminho da lua ................................................ 108 ANEXO D - a alma, no ? ..................................................................................... 115
ANEXO E - Uma histria de amor ............................................................................ 118 ANEXO F - O Tigre ..................................................................................................... 119
ANEXO G - Sete anos e mais sete .............................................................................. 120
12
CONSIDERAES INICIAIS
Parece e talvez seja pretensioso, mas a minha meta, para
leitores de qualquer idade, fazer literatura. Acredito, firmemente, que a
literatura seja, em si, formadora. (COLASANTI, 2011)
Os textos literrios so capazes de proporcionar aos seus leitores, conhecimento e
reflexo a respeito da realidade em que vivem. Atravs deles, possvel identificar, de
forma artstica, os conflitos existentes na humanidade, sejam eles sociais ou individuais,
representados nas mais variadas formas de escritas literrias que fazem parte da histria do
homem desde o incio dos tempos.
Assim, esta dissertao tem, de um modo geral, o objetivo de analisar determinados
textos literrios, com o intuito de identificar em suas caractersticas a influncia exercida
na realidade social do ser, atravs da representao narrativa, como tambm destacar os
elementos que o constitui como um texto literrio.
Os contos Quem me deu foi a manh e So os cabelos das mulheres, da
escritora Marina Colasanti, foram os escolhidos para a anlise, pois retratam de forma
potica os conflitos sociais das mulheres, representados atravs da composio literria de
seus textos, sendo que, para tal estudo ser destacado a importncia da literatura feminina,
da teoria literria que abrange a sua forma de escrita, envolvendo os contos de fadas, assim
como a representao simblica presente nas narrativas.
Deste modo, o presente texto ir se organizar, primeiramente, a partir de uma
introduo que abordar os aspectos estilsticos da autora, sua biografia e bibliografia, com
nfase na sua forma de escrita dos contos e a relao que possuem com os temas que sero
abordados ao longo da dissertao.
Em seguida, se inicia o primeiro captulo, que se constituir de uma anlise das
narrativas atravs das teorias literrias tradicionais e especificamente do gnero conto.
Busca-se analisar nesta seo a relao de conceitos tericos como os de instabilidade dos
gneros, oralidade, formalismo, recepo e significao, ps-modernismo e caractersticas
de formao dos contos, com as narrativas de Marina Colasanti, exemplificada pelos
contos escolhidos, a fim de mostrar a sua composio literria e a sua importncia para a
interpretao de tal gnero acima mencionado.
O segundo captulo ter como principal tema os contos de fadas, pois foram
destacadas caractersticas nos contos escolhidos para a anlise, como tambm em grande
parte de sua obra. Sendo assim, torna-se necessrio relatar a importncia das fadas e do
13
maravilhoso na constituio das narrativas, pois contribuem para o enfoque potico e
feminino que permeia toda a dissertao.
O terceiro captulo tratar da representao mtica e simblica presente nos contos,
considerando que a anlise dos smbolos ser fundamental para a compreenso e a
formao potica dos textos, enfatizando a relevncia dos mesmos para a composio dos
enredos e a contribuio para a pluralidade de sentidos dos textos.
O quarto captulo retomar o tema do feminino, com a finalidade de destacar a
escrita feminina da autora, bem como, a constituio ao mesmo tempo feminina e
feminista das narrativas. Tais conceitos sero explicitados atravs de teorias acerca da
literatura feminina elaboradas por estudiosas como Lcia Castelo Branco, Elaine
Showalter, entre outras.
Com isso, esta dissertao objetiva mostrar o quanto as narrativas de Marina
Colasanti, atravs de uma escrita peculiar e, ao mesmo tempo, potica, relatam o feminino
e seus conflitos sociais, atravs de personagens carregadas de simbologia, enfatizando o
papel da literatura como capaz de representar a realidade, que, neste caso, pode-se
apreend-la na luta das mulheres para a sua aceitao e visibilidade na sociedade.
14
INTRODUO:
DA MULTIPLICIDADE ESTILSTICA UNIFICAO SEMNTICA
O que, sim, posso te dizer, que no escrevo voltada para um momento,
um modismo, um alvo da moda. Os meus temas no so, em si,
passageiros. (COLASANTI, 2007)
A literatura contempornea marcada pela diversidade de estilos que caracterizam
as criaes atuais. Nela, a retomada de formas clssicas de escrita como o conto, o
romance medieval, as narrativas fabulares entre outras, mescladas com a criatividade dos
autores contemporneos, formam os variados textos, considerados obras de artes que
cativam os leitores da atualidade, pois conseguem ser ao mesmo tempo inovadores e
surpreendentes.
Um exemplo desta literatura contempornea pode ser verificado nas obras da
escritora Marina Colasanti, cujo teor mescla formas ancestrais de escrita com a narrativa
contempornea, como o conto e com o mito em uma escritura sinttica e potica, tendo
como resultado, pequenas narrativas com enredos de elaborao complexa.
Considera-se importante, antes de adentrar no universo narrativo da escritora, tecer
algumas consideraes sobre a biografia da autora, cujo nascimento se deu na cidade de
Asmara na frica em 1937. Ainda na infncia, foi para a Itlia, pas de origem de seus
pais, onde permaneceu at os onze anos de idade, quando embarcou para o Brasil, em
1948, onde vive at hoje. Na dcada de cinquenta, estudou na Escola Nacional de Belas
Artes no Rio de Janeiro e a sua carreira profissional comeou na rea de comunicao,
trabalhando como editora e redatora de jornais, alm de, posteriormente, escrever crnicas.
Foi tambm ilustradora e apresentadora de programas de televiso.
Porm, a sua carreira como escritora se iniciou no ano de 1968 com a publicao do
livro Eu sozinha e desde ento produziu muitas obras, contando hoje com mais de
cinquenta publicaes.
Tais publicaes se destacam por atingir pblicos variados que vo desde o infanto-
juvenil com as obras Zoolgico (1975), Uma idia toda azul (1979), Doze Reis e a Moa
no Labirinto do Vento (1982), Oflia a ovelha (1989) at o pblico adulto, tendo como
destaque as coletneas de artigos: A nova mulher (1980) e Mulher daqui pra frente (1981),
o livro de ensaios E por falar em amor (1984), Aqui entre ns (1988), Intimidade Pblica
(1990), De mulheres sobre tudo (1995), entre outros. Seu primeiro livro de poesias,
intitulado Cada bicho seu capricho, foi lanado em 1992. Ademais, rene em vrias
15
coletneas contos, crnicas e ensaios no livro de memrias Minha guerra allheia,
publicado em 2010. A sua mais recente publicao foi a obra denominada Como alimentar
serpentes de 2013.
No cenrio nacional, a escritora tem tido destaque por suas diversas premiaes.
Ganhou pela primeira vez o Prmio Jabuti em 1993 com o livro de contos Entre a espada e
a rosa (1992), depois o Prmio Jabuti de Poesia em 1994 pelo livro de poesias Rota de
Coliso (1993), e o prmio Jabuti Infantil ou Juvenil pela obra Ana Z aonde vai voc?,
voltando a ser premiada pela mesma instituio em 2010, novamente na categoria poesia
por Passageira em trnsito e em 2011 com Antes de virar gigante e outras histrias como
melhor livro juvenil. Ainda em 2011 ficou em terceiro lugar no Prmio Portugal Telecom
de Literatura pelas memrias retratadas em Minha guerra alheia, alm de outras
contemplaes concedidas pela Fundao Nacional do livro Infantil e Juvenil da Cmara
Brasileira do Livro, do Concurso Latinoamericano de Cuentos para Nios, organizado pela
FUNCEC/UNICEF, da Associao Brasileira de Crticos de Arte e o Prmio Norma-
Fundalectura latino-americano.
Tais reconhecimentos so consequncias de uma escritura que se destaca por
retratar fatos do cotidiano, da fragilidade e fora do feminino, da leveza e impacto de seus
contos, que vo alm das classificaes de faixas etrias, pois so capazes de encantar e
intrigar pessoas de diversas idades. Contudo, esta dissertao tem como objetivo destacar
em alguns de seus textos, as belezas estticas provocadas por uma narrativa potica, em
uma forma mtica de narrar contos de fadas, assim como a simbologia utilizada para
realar o feminino e a feminilidade que expressa uma realidade voltada para a mulher e a
sua representao na sociedade.
Uma das obras que retrata com evidncia as caractersticas acima Com certeza
tenho amor (2009). Neste trabalho, que possui ilustraes da prpria autora, esto reunidos
onze minicontos, com caractersticas peculiares de tempo, espao e narrador, alm de
apresentar caractersticas especficas dos contos de fadas, mticas, simblicas e femininas,
as quais parecem se sobressair nos contos Quem me deu foi a manh e So os cabelos
das mulheres, objetos de anlise mais profunda neste trabalho. Com base nesta obra, e
especialmente nestes dois contos, que se expandiro as discusses dos temas relevantes,
mencionados acima, tendo como fundamentao terica as anlises crtico-literrias, que
baseiam a construo e formao do gnero conto, da insero de seus textos como
pertencentes s caractersticas abordadas pela teoria literria, em seus diversos autores, a
16
incluso e a utilizao de smbolos e imagens mticas, como tambm a relevncia das
personagens femininas e a sua importncia em cada um dos contos selecionados.
Faz-se necessrio ressaltar que, mesmo tendo como foco principal os contos acima
escolhidos, outras narrativas sero utilizadas na anlise com o intuito de fazer comparaes
e explicitar caractersticas tericas ou de estilo, pois ao se destacar um conceito, como o de
narrador, ser de extrema importncia recorrer a outros textos da mesma autora, em que tal
recurso foi utilizado de uma forma peculiar ou at mesmo se manifestou de maneira
semelhante nas narrativas comparadas.
Em Com certeza tenho amor, a autora se utiliza de narrativas curtas, o que
marcante em seu estilo, com narradores sempre em terceira pessoa e oniscientes,
proporcionando ao conto uma neutralidade, com a finalidade de enfatizar os personagens
principais, como tambm um carter atemporal, peculiar das histrias mitolgicas. Porm,
relevante analisar que, em outros trabalhos, a escritora capaz de surpreender, ao criar
narradores diferenciados.
Uma narrativa com construo de narrador peculiar, por exemplo, est no conto
Menina de vermelho a caminho da Lua, presente no livro O leopardo um animal
delicado (1998), em que possvel notar a maestria da autora, capaz de criar dois
narradores para uma mesma histria. Um que sabe dos acontecimentos, mas no quer
narr-los e o outro ser contratado para narrar o que o primeiro se recusa:
Esta uma histria que no quero contar, uma pequena histria sem fatos,
espessa como um mnstruo, que no pretendo assumir. Tentei livrar-me
dela, afund-la e ao fastio que me causa. No consegui. Desnecessria
como , ainda assim insiste em existir. Foi por isso que botei um assunto
no jornal. Dizia: Procura-se narrador. Exigem-se modstia e prazer
descritivo. Pagamento a combinar. Procurar... endereo... etctera.
(COLASANTI, 1998, p.16).
No trecho citado acima, observa-se que o narrador inicial se queixa por no querer
contar algo que persiste em ser contado e por isso ele resolve procurar um narrador que
faa isso por ele. Tambm so perceptveis as condies de criao de um autor, presente
na narrativa que est dentro de si e nas formas de extra-la para o papel. Contudo, este
conto dito como uma pequena histria sem fatos, vai se desenrolar em uma narrativa
extensa, misturando o enredo a ser narrado, com os conflitos dos narradores,
confirmando a capacidade da autora em se diversificar nos seus textos.
Outra forma utilizada na narrativa, tambm bastante comum em seus contos, o
17
discurso indireto livre, ou seja, narrador em terceira pessoa, mesclado a monlogos
interiores da personagem principal com inseres de dilogos. O conto a alma, no ?,
tambm presente em O leopardo um animal delicado, um claro exemplo deste narrador
no estilo mais atual da literatura, pois ao narrar o conto, a sua fala se mistura com os
pensamentos da personagem, exigindo do leitor mais percepo em sua leitura e
diferenciando a narrativa das demais consideradas tradicionais, ou escritas em linha reta.
No mbar. Preso no mbar como uma liblula no exagera, Marta est
bem, no d mesmo para tanto, preso no mbar como um inseto, uma
mosca. isso, preso no mbar como uma mosca. (...) Uma mosca presa
no mbar, isso o meu casamento. Pois no tinha o marido, de manh
mesa do caf, abertas as folhas entre os dois, relatado com espanto a
notcia do jornal? (COLASANTI, 1998, p. 7).
Observa-se no trecho acima, a reflexo de Marta acerca de seu casamento. A
personagem compara a sua vida conjugal a um inseto preso no mbar, pois o marido se
tornara indiferente ao relacionamento. Esta passagem mostra claramente a insero do
monlogo interior no texto.
O narrador em primeira pessoa tambm est presente em algumas de suas histrias,
como por exemplo, em uma histria de amor e O tigre, ambas presentes na coletnea
Um espinho de Marfim e outras histrias (1999). As personagens desses dois contos so
femininas e abordam fatos acontecidos em seus relacionamentos; a primeira relata como o
marido engordava ao mesmo tempo a ela e s martas que lhe serviriam de estola, e a
segunda retrata a relao que tinha com um tigre, at ser comida por ele.
Mesmo sendo possvel encontrar outras formas de narrador em seus contos, a que
mais se destaca, porm, a utilizao do narrador em terceira pessoa, onisciente e neutro,
como mencionado anteriormente. A maior parte de seus textos no possui um referencial
narrativo determinado, inicia-se com verbos em terceira pessoa e so destacadas, na
maioria das vezes, as personagens femininas.
Assim, aps ressaltadas as caractersticas de narradores presentes nos textos de
Marina Colasanti, possvel analisar a obra Com certeza tenho amor , luz das teorias de
Walter Benjamin sobre o narrador.
Segundo Benjamin, existem dois tipos de narrador, o campons sedentrio e o
marinheiro comerciante, que, ao se interpenetrarem, so responsveis pelos verdadeiros
tipos de narrao, os quais ganharam larga contribuio no perodo medieval, pois os
migrantes compartilhavam suas histrias com os residentes e assim a arte de narrar
18
adquiria aprimoramento:
O sistema corporativo medieval contribuiu especialmente para essa
interpenetrao. O mestre sedentrio e os aprendizes migrantes
trabalhavam juntos na mesma oficina; cada mestre tinha sido um aprendiz
ambulante antes de se fixar em sua ptria ou no estrangeiro. Se os
camponeses e os marujos foram os primeiros mestres na arte de narrar,
foram os artfices que a aperfeioaram. No sistema corporativo associava-
se o saber das terras distantes, trazidos para a casa pelos migrantes, com o
saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentrio. (BENJAMIN,
1994, p. 199).
Na citao de Benjamin acima, possvel observar como a arte de narrar adquiria
tal aprimoramento. Atravs da convivncia entre mestres e aprendizes, as narrativas iam se
interpenetrando, pois o mestre repassava as histrias aos seus aprendizes, aperfeioando,
desta forma, a arte de narrar que migrava com os camponeses e marujos.
Para Benjamin a narrativa consiste nesta troca de experincias, pois quanto mais
experiente o seu narrador, mais a histria ganha densidade e se aproxima da oralidade. A
troca de experincias, o repasse da histria de um narrador para outro, que tambm a passa
adiante, faz com que o texto adquira consistncia e no se perca no tempo. Assim, percebe-
se que na atualidade h uma tentativa de reproduzir o narrador benjaminiano em algumas
histrias fazendo com que a narrativa adquira oralidade.
Dessa forma, possvel inferir um aspecto atemporal nas narrativas de Com certeza
tenho amor, pois o narrador dos contos que ali esto inseridos no se identifica, e por isso
tanto pode ser algum que ouviu a histria em algum lugar de suas passagens ou que
presenciou os fatos ocorridos, por ser habitante do local em que se passam as histrias. Isto
faz com que o enredo se aproxime das narrativas orais, que, conforme Benjamin, so as
mais verdadeiras; como exemplo destaca-se o incio do conto Quem me deu foi a
manh: Foi uma moa lavar suas anguas no rio. Espuma de rendas, espuma de guas
(COLASANTI, 2009, p. 61), em que o uso do verbo na terceira pessoa do singular
associado ao tempo pretrito perfeito contribui para a oralidade da narrativa.
Tal recurso verbal recorrente em todo o enredo deste conto, inclusive no final da
narrativa: ningum viu quando, antes de se afastar, recebeu ao redor do tornozelo uma joia
fria como vidro e brilhante como prata. (COLASANTI, 2009, p. 61), constatando-se
assim a caracterstica benjaminiana de um narrador que est passando uma experincia ao
recontar a histria e, ao mesmo tempo, oralizando-a.
19
Conforme as narrativas vo se aproximando da oralidade, elas vo adquirindo
caractersticas prprias e se tornando quase artesanais, enfatizando assim, os
ensinamentos presentes em seu contedo.
Contudo, somente o fator da experincia pode tornar esta narrativa verdadeira,
segundo as teorias de Benjamin, pois, para ele, s possvel narrar algo atravs das
experincias que se teve. Assim, para Benjamin, a falta dessas trocas de experincias, pode
causar a extino da arte de narrar:
[...] a experincia de que a arte de narrar est em vias de extino. So
cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se
pede num grupo que algum narre alguma coisa, o embarao se
generaliza. como se estivssemos privados de uma faculdade que nos
parecia segura e inalienvel: a faculdade de intercambiar experincias.
(BENJAMIN, 1994, p.197-198).
Assim, percebe-se no excerto citado, que a extino da arte de narrar est na falta
de experincia das pessoas, fazendo com que haja dificuldade em proceder a uma
narrativa, que antes era intrnseca ao homem, devido facilidade em trocar experincias.
Com relao aos contos de Marina Colasanti, o narrador elemento relevante na
composio desse gnero literrio como um todo, pois ser a partir dele que se poder
inferir o carter atemporal que se liga ao mtico, como tambm uma forma de dar nfase
aos personagens principais de cada narrao, alm de confirmar o estilo da autora em suas
pequenas narrativas.
Conforme se observa, h nos contos de Marina Colasanti aspectos de linguagem,
tais como o uso da conciso, o narrador onisciente e neutro, que do carter sofisticado ao
gnero, fazendo-os adquirir uma poeticidade, que juntamente com o resgate do mito e dos
contos de fada, faz com que suas obras se destaquem das demais, o que ser constatado nas
anlises estabelecidas em Quem me deu foi a manh e So os cabelos das mulheres,
tendo como referncia as caractersticas gerais de todos os seus textos.
Desta forma, possvel perceber que nos contos de Com certeza tenho amor existe
uma forma peculiar de escrita em que a autora consegue inserir elementos poticos atravs
de uma linguagem metaforizada, dando narrativa em forma de prosa uma caracterstica
semelhante dos contos de fada, ao fabular, ao ferico e ao mtico, contribuindo para o
carter mgico, ao mesmo tempo simples de todas as histrias presentes nessa obra.
Com a mistura de elementos poticos em um texto em forma de prosa, Marina
20
Colasanti adquire um estilo prprio de narrar, pois na maioria de seus contos os elementos
poticos acentuam a conciso e enfatizam a beleza das personagens principais, como
tambm do espao e do tempo das narrativas.
Ressalte-se tambm que a direo da narrativa, atravs das metforas presentes e
das lacunas que levam o leitor a refletir e tirar as suas prprias concluses, indica que todo
o trabalho literrio pressupe uma leitura representativa tambm das peculiaridades e
patrimnios sensveis daquele que usufrui da obra.
Assim, os aspectos narrativos, como o narrador em terceira pessoa, a construo
peculiar das personagens, como tambm o estilo da autora ao escrever contos poticos,
por mais que parea variado aos seus leitores e analistas, para ela se constitui em algo
unificado, como ela mesma afirma:
[...] O que eu quero dizer que aquilo que eu fiz continua em sintonia
comigo. O incio gmeo, no sentido da mesma gentica, do quase
final. Porque com 71 anos eu posso dizer quase final. Tudo sai da
mesma matriz e visvel isso. Gosto que seja assim porque um atestado
de sinceridade, que nenhuma crtica, que nenhuma anlise poderia me dar
melhor. essa gentica mantida que me diz da sinceridade do meu
trabalho isso para mim muito importante. E, alm do mais, como fao
um trabalho aparentemente fragmentado, porque me divido em muitos
gneros, a coeso muito importante para mim. Eu s estou fazendo um
trabalho fragmentado para os outros, para mim estou fazendo um trabalho
s. (MELLO, 2009).
Marina Colasanti explicita acima, que apesar de sua obra parecer variada aos olhos
dos outros, existe uma coeso que unifica todos os seus textos, ou seja, tudo o que ela
produz se manifesta de variadas formas, que se unificam por partirem de uma mesma
matriz.
Dentro desta unificao, portanto, se destacam a feminilidade, a simbologia
mtica e a narrativa potica que so inerentes ao estilo da autora, que mesmo apresentando
vrias formas de construo de narrativas, possui consonncia e sustentabilidade ao se
analisar e comparar os seus textos, o que pode ser confirmado em seus aspectos tericos,
tratados por diversos estudiosos da teoria literria e filosfica, tais como Mikail Bakhtin,
Mircea Eliade, Gaston Bachelard, Gilbert Durand, Julio Cortzar, Eldia Xavier, Lcia
Castelo Branco, Ruth Silviano Brando, Lcia Osana Zolin, Elaine Showalter, Nelly
Richard, Ren Wellek, Austin Warren, Robert Scholes, Robert Kellogg, Hans Robert Jauss,
David Harvey, Ricardo Piglia, Wilhelm Dilthey, Nelly Novaes Coelho, Bruno Bettelheim,
Junto de Souza Brando, Carl Gustav Jung, Northrop Frye, dentre outros estudiosos
21
importantes que sero mencionados neste trabalho, enfatizados pelos dois contos acima
escolhidos.
Uma perspectiva sgnica em Quem me deu foi a manh e So os cabelos das
mulheres
Figura 1- Ilustrao do conto So os cabelos das mulheres
Fonte: COLASANTI (2009).
Figura 2- Ilustrao do conto Quem me deu foi a manh
Fonte: COLASANTI (2009)
Tomando como base a frase de Bakhtin: Um signo no existe apenas como parte
de uma realidade; ele tambm reflete e refrata uma outra (BAKHTIN, 1995, p.32), pode-
se fazer um levantamento dos principais aspectos constituintes em Quem me deu foi a
manh e So os cabelos das mulheres, pois como se sabe, as narrativas em contos so
sucintas, nos remetem a um fato principal com um acontecimento marcante, com a
finalidade de causar algum efeito ao leitor.
Os signos so utilizados nessas narrativas para retratar a realidade, porm refletindo
outra, com a finalidade de passar ao leitor algo diferente de seu cotidiano, mas sem se
22
afastar totalmente dele, ou seja, os signos proporcionam ao leitor a construo e a
reinveno dos significados existentes nas narrativas, levando em conta toda a influncia
da ideologia presente em cada um e, ao mesmo tempo, permitindo-lhe criar,
imaginativamente, novos e inesperados signos que simbolizam e reconstroem um percurso
tambm imaginativo, frutificando em vrias leituras e interpretaes.
Os contos a serem analisados propiciam que o leitor faa suas prprias leituras e
percorra por um universo paralelo a seu modo, tirando suas prprias concluses e
aprendizagens. Porm, a forma como a autora os constri, nos faz pensar nos conceitos de
mito e contos de fada em uma literatura contempornea.
Pode-se comparar tais contos, apresentando o conceito de mito, se pensarmos em
sua funo de contar algo em um tempo passado, associado a poderes, ou
acontecimentos mgicos, com nfase em um personagem ou um fato, levando o leitor a
adquirir algum conhecimento, tanto em seu cotidiano, ou mesmo dentro da histria.
Nesses contos, o conceito de mito fundamental para se compreender o tempo em
que as histrias so contadas, pois quando se l um mito, h a sada do tempo atual em
direo a outro tempo que tem suas prprias caractersticas e que no se pode remet-lo ou
associ-lo a nenhum outro tempo.
O mito conta uma histria sagrada; ele retrata um acontecimento o
corrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princpio. Em outros
termos o mito narra como, graas s faanhas dos Entes Sobrenaturais,
uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou
apenas um fragmento: uma ilha, uma espcie vegetal, um comportamento
humano, uma instituio. (ELIADE, 2010, p.11).
Se considerarmos o mito como uma narrativa que evidencia os modelos de conduta
humana, ele servir, nesses contos, como base para caracterizar a conduta das mulheres,
que so as personagens influentes, conduzindo os leitores a refletirem a respeito de sua
prpria existncia Tambm poder se observar a construo de imagens significantes para
a composio do enredo da narrativa, reforando um carter de certa forma fabular,
fazendo com que a anlise simbolgica seja fundamental nas narrativas.
Elementos como gua, serpentes, fogo, entre outros, adquirem importncia nos
contos, dando profundidade aos textos e retomando conceitos arquetpicos tratados por
Jung em Os arqutipos e o inconsciente coletivo (2008), abordando tambm a simbologia
de tais signos que pode ser observada nos textos de Bachelard e Durand, por exemplo,
23
conforme se ver adiante.
Outro aspecto a se observar nos dois contos, como tambm em toda a obra, a
linguagem potica contida em tais narrativas em forma de prosa, enfatizando os traos
femininos presentes nas personagens. Essa poeticidade se apresenta, principalmente,
atravs do uso de metforas, tanto na voz do narrador, quanto na voz das personagens,
como tambm na maneira concisa de narrar, enfatizando sempre um acontecimento,
atravs do recorte de um fato, o que pode ser observado no incio do conto Quem me deu
foi a manh:
Foi uma moa lavar suas anguas no rio. Espumas de rendas, espumas de
guas. Depois deitou-se sobre a grama para secar. E da grama uma salamandra
levantou a cabea e perguntou:
Que rendas so essas que voc lava com tanto capricho?
So as rendas que farfalham nos meus tornozelos respondeu a moa.
Eu tambm quero ouvir esse farfalhar disse a salamandra. E antes
mesmo que a moa vestisse a primeira angua, enroscou-se no seu
tornozelo.
Era fria como vidro e brilhante como prata. Mas, com medo de ser
mordida, a moa deixou-a estar e voltou para a aldeia. (COLASANTI,
2009, p.61).
Observa-se, acima, que o conto inicia-se com um narrador em terceira pessoa,
introduzindo os dilogos entre a moa e a salamandra, dois personagens femininos, o que
vai caracterizar toda a narrativa em torno desta moa, podendo se referir semelhana
estabelecida por Jlio Cortzar em que o conto secreto e voltado para si mesmo, caracol
da linguagem, irmo misterioso da poesia em outra dimenso do tempo literrio.
(CORTZAR, 1974, p. 149). Assim, a poeticidade pode ser notada nas pequenas frases
como espuma de rendas, espumas de guas, que do um carter mais visual ao texto,
pois, de maneira concisa, nos faz imaginar as anguas da moa dentro dgua enquanto
eram lavadas.
A forma como a moa fala com a salamandra ao explicar que rendas eram aquelas,
atravs do verbo farfalhar, torna ainda mais a sua fala potica, o que pode ser observado
quando o narrador utiliza-se da anttese e personificao: Era fria como vidro e brilhante
como prata (COLASANTI, 2009, p. 61) que resume a salamandra, valorizando o seu
valor simblico de um animal considerado pelos antigos como capaz de viver no fogo, ou
ter o poder de apagar o fogo, por ser fria. O que tambm acontece com os cabelos no conto
So os cabelos das mulheres, pois de acordo com a simbologia (CHEVALIER, 2005),
24
acreditava-se, na China, que cortar os cabelos fazia cessar a chuva.
Presentes em todo o conto, as metforas so utilizadas principalmente para
descrever com leveza, a beleza da moa e dos animais transformados em joias, alm de dar
mais visualidade ao texto, atravs do contraste feito com as cores e a natureza, numa
mistura de sentidos e objetos que conferem significado aos acontecimentos. Em ondular
de ouro na gua, ondular de azul entre os fios (COLASANTI, 2009, p.62) servir como
descrio dos cabelos da moa, que so loiros, e tambm descrio da lavagem desses
cabelos no rio de guas azuis.
Outro aspecto relevante a importncia que a salamandra tem neste conto. Como
um smbolo da ressurreio, ela ser o primeiro animal a seguir a moa e tambm o que
permanecer com ela at o final do conto, sendo a responsvel pelos acontecimentos
inslitos ali presentes como o seu surgimento das cinzas aps ser queimada em uma
fogueira, ou seja, o motivo literrio.
Assim, mito e simbologia se unem para dar beleza e fora literria s escrituras de
Marina Colasanti como um todo. Nesta obra, principalmente, tais caractersticas esto mais
enfatizadas, representadas pela conciso e poeticidade de linguagem, ou seja, poemas em
forma de contos, que podero ser constatados ao longo deste trabalho.
A linguagem potica faz com que o leitor seja mais sensvel, despertando-lhe a
curiosidade, exigindo-lhe uma leitura mais profunda, que vai alm de uma interpretao
superficial do texto, alcanando a sua essncia. Dessa forma a linguagem potica em
Quem me deu foi a manh e So os cabelos das mulheres, enfatiza os mistrios
contidos no enredo associando-se ao carter mtico, como se pode notar neste trecho de
So os cabelos das mulheres em que se descreve o aparecimento das serpentes na aldeia:
Aquecia-se ao sol a antiga umidade guardada entre pedras e grotas.
Vindas daquele calor, talvez, daqueles vapores abafados no escuro
silncio, longas serpentes negras comearam a deslizar para a luz.
Os homens s se deram conta da temvel presena quando os campos
abaixo da aldeia j estavam invadidos. Com asco e horror as encontravam
de repente enroscadas no cabo de uma enxada, no fundo de um cesto, ou
brilhando entre os sulcos. Eram tantas. De nada adiantava ca-las;
cortadas ao meio ou degoladas por faco ou foice multiplicavam-se, cada
parte adquirindo vida prpria e afastando-se como se recm-sada do ovo.
Quase no lhes bastassem os campos, comearam a deslizar em direo
aldeia. (...) E entre as achas de lenha, entre as talhas de azeite, entre os
gravetos e as cinzas do fogo, entre os gros nas despensas, por toda parte
e em todo canto cobras ondulavam suas espirais. (COLASANTI, 2009,
p.26)
25
Neste trecho pode-se observar que o mistrio est presente na dvida sobre o
surgimento de tais serpentes, se direcionado a um local escuro, abafado e silencioso, o que
faz aumentar ainda mais tal enigma. H os acontecimentos sobrenaturais de ordem do
fantstico quando se narra que as serpentes se multiplicavam ao serem cortadas ou
degoladas, alm das metforas, como em cobras ondulavam suas espirais enfatizando a
permanncia destes animais.
Levando em considerao que a histria narrada pelo mito constitui um
conhecimento de ordem esotrica, no apenas por ser secreto e transmitido no curso de
uma iniciao, mas tambm porque esse conhecimento acompanhado de um poder
mgico-religioso (ELIADE, 2010, p. 18), observa-se que este conto se constitui como
mito, justamente por possuir estas caractersticas, que podem ser observadas tambm nas
magias feitas pelos sbios e pelas mulheres, no envolvimento com os animais e com
elementos do corpo humano, como os cabelos.
Contudo, possvel perceber nos contos elementos similares aos apregoados por
Eliade, pois em sua composio perceptvel um discurso que leva ao misterioso atravs
dos acontecimentos que surgem sem explicao prvia, como tambm das solues
secretas, que no caso do conto So os cabelos das mulheres, so decididas pelos aldees.
Com esse componente mtico e essa simbologia apresentada, pode-se aludir s
teorias da narrativa, que estudam a palavra alm de seu significado superficial,
caracterizando-as como signos, atravs da influncia da ideologia. E tambm
intencionalidade do autor ao dirigir os acontecimentos, a fim de que o leitor possa obter
uma interpretao e uma compreenso mais profunda do que est sendo narrado.
Marina Colasanti tambm se destaca por escrever histrias curtas, em que o mnimo
vale o mximo, em que tudo se condense em poucas linhas, transformando um gnero
sucinto, que o conto, em minicontos, que so capazes de retratar poeticamente assuntos
sociais, e um exemplo a ser citado, dentre vrios a histria Porm igualmente:
Porm igualmente
uma santa. Diziam os vizinhos. E D. Eullia apanhando.
um anjo. Diziam os parentes. E D. Eullia sangrando.
Porm igualmente se surpreenderam na noite em que, mais bbado que de
costume, o marido, depois de surr-la, jogou-a pela janela, e D. Eullia
rompeu em asas o voo de sua trajetria. (COLASANTI, 1999, p.44).
Nota-se neste texto elementos caractersticos do gnero em questo, alm da
26
narrativa curta, h o clmax e o desfecho, assim como define Poe em filosofia da
composio (1999). O enredo trata de fatos do cotidiano, como a violncia contra a mulher
e a posio da sociedade sexista. Outros contos da autora apresentam a mesma estrutura,
mas retratam assuntos diferentes, conforme se observa em O passarinho:
O passarinho
Comeou dizendo que tinha um passarinho na cabea. Queixava-se.
O passarinho batia asas, a cabea doa. Ningum deu-lhe ateno.
Parou at se queixar. Gemia, conversava com o passarinho que a
habitava. Morreu sufocada, o nariz entupido de alpiste. (COLASANTI, 1999, p.14).
Na histria acima, a autora utiliza um narrador em terceira pessoa, inserindo o
fantstico ou o estranho, como forma de cativar o leitor e de dar profundidade ao
enredo, contudo os contos Quem me deu foi a manh e So os cabelos das mulheres,
assim como a maioria de seus outros textos, possuem acontecimentos de ordem
sobrenatural.
Esses acontecimentos fazem com que a narrativa se enquadre no conceito de
fantstico maravilhoso elaborado por Tzvetan Todorov (1975), pois h uma aceitao desse
sobrenatural, que crucial para um bom desenvolvimento do enredo, destacando o seu
carter inslito e constituindo, assim, uma releitura atual de uma narrativa mtica.
Outro aspecto importante nas fices desta autora o trabalho com o feminino, pois
perceptvel em seus textos que grande parte se direcione a este pblico direta ou
indiretamente. Nos anos oitenta ela foi convidada para ser diretora de comportamento de
uma revista feminina, desta forma, escreveu vrios artigos voltados s questes da mulher,
com a inteno de discutir e refletir sobre a condio da mulher naquela poca, ps-
ditadura o que culminou nos livros Intimidade pblica (1990), A nova mulher (1980) e
Mulher daqui pra frente (1981), que so compilaes dos artigos e cartas publicados nas
revistas em que trabalhou.
Ao analisar os seus textos possvel perceber a maestria da autora em refletir sobre
questes cotidianas a respeito da mulher de uma forma direta, que se constata em suas
publicaes cientficas, e que leva em considerao a condio da mulher contempornea,
rompendo com os padres rgidos existentes, como afirma o professor Anderson Gomes ao
entrevistar a autora e estudar a suas obras baseadas no gnero em questo:
27
A autora, atravs de seus textos, desafiava algumas noes dominantes na
vida das mulheres e tentava romper com certos modelos excessivamente
rgidos de comportamento, buscando abrir um horizonte de novas
possibilidades, informando, esclarecendo, fazendo refletir. Em outras
palavras, estes artigos, quando reunidos e analisados na sua diversidade
temtica, constituem uma narrativa representativa do perodo em que
foram escritos e possuem o condo de representar uma espcie de
pedagogia da nova mulher. (GOMES, 2007, p. 162).
Dessa forma, Marina Colasanti consegue transpor para a sua literatura o que
problematiza em seus artigos, ou seja, possvel encontrar em suas personagens os
conflitos femininos existentes no cotidiano em geral, em que esposas se redescobrem na
sua vida familiar, moas sofrem com a imposio masculina, transgredindo normas ou
sendo agentes transformadoras do espao em que vivem. O comportamento feminino pode
ser analisado de forma potica em seus contos de fada ou mticos, como tambm em
narrativas atuais, mesclando situaes do dia-a-dia com sentimentos conflitantes,
imaginrios, exticos e erticos, misturando a leveza e ingenuidade com pequenas doses de
beleza e sensualidade vindas da natureza e do feminino.
Um exemplo dessa forma peculiar de escrita pode ser verificado no miniconto No
silncio que o sol queima presente no livro Contos de amor rasgado (1986) e Um espinho
de marfim (1999):
No meio do trigal, pernas abertas, abrigava pssaros. Era sempre assim.
Com a chegada do vero sentia-se frtil, ensolarada de desejo, me da
terra. E deitava-se entre as hastes rgidas, as espigas trgidas, espera.
Logo, pardais vinham aninhar-se entre suas coxas, fazendo-a suspirar
com a doce carcia das asas. Esmagava entre os lbios ptalas de
papoulas, e gemia. Fremir de plumas, pequenos bicos, breves pios,
delcias. E as lnguas do sol sobre os seus seios. Mas era s ao entardecer,
quando o gavio em vo desenhava crculos de sombra sobre o outro,
lanando-se como pedra entre suas carnes para colher o mais tonto dos
pardais, que as hastes estremeciam enfim, inclinando as espigas ao
supremo grito. (COLASANTI, 1999, p.29)
Com uma riqueza de metforas este conto pode descrever uma relao amorosa e
at mesmo sexual de uma mulher ou garota, que se dava atravs do contato com a natureza.
Toda a narrativa se faz feminina ao usar-se das cores da paisagem em que a personagem
est, e do contato com os pssaros e o sol, como se a mesma fosse tocada por eles com
carcias ao mesmo tempo fortes e sutis, que podem ser notadas pela combinao de
elementos como doce carcia das asas, esmagava entre os lbios, fremir de plumas,
28
lanando-se como pedra, supremo grito, dentre outros.
A relao entre mulher e natureza se apresenta, nesta narrativa, de forma ertica e
poetizada, tendo como motivo o calor do vero, que se remete fertilidade da personagem,
iniciando-se com pequenos carinhos at atingir o pice, representado pelo gavio (smbolo
do masculino), com o estremecimento das pernas e o grito.
Assim, um aspecto da feminilidade est representado neste conto, justificando a
pertinncia da autora em trabalhar com esta abordagem, podendo ser analisada tambm nos
contos o passarinho e porm igualmente, citados anteriormente, pois possuem a
mulher como personagem central, e at mesmo nica personagem e se destacam por
apresentarem elementos conflitantes e sociais da mulher na sociedade em que vive.
Contudo, a obra de Marina Colasanti merece um recorte especial para tratar de cada
meno ao feminino que aparece em seus textos, porm, neste trabalho, ele ser mostrado
nos contos principais, que so objetos de estudo desta dissertao.
Esse recorte foi realizado, pois em suas personagens e enredos encontra-se a
feminilidade que faz a narrativa, como tambm a transformao do gnero em meios
sociais, em que cada uma das mulheres apresentadas nos dois contos so agentes
transformadoras, transgressoras, sem esquecer a leveza e sensibilidade, relacionada
natureza e aos elementos mticos.
Em So os cabelos das mulheres nota-se a submisso perante as ordens dos
aldees e sbios e ao mesmo tempo um certo ar de superioridade quando elas adquirem a
voz no texto, como, por exemplo, na parte em que so acusadas pelo aparecimento das
serpentes:
E as mulheres riram, escondendo o rosto nos lenos e nos xales com que
cobriam suas cabeas.
Acabem com isso! ordenaram-lhes os sbios. E no se referiam ao
riso, mas s serpentes. E com voz que no admitia rplica, repetiram
Acabem com isso, mulheres!
Mas como acabar com o flagelo se lhes faltava o remdio? responderam
as mulheres. E acrescentaram Cabelos. Para acabar com esses,
precisamos dos nossos. (COLASANTI, 2009, p. 27).
J em Quem me deu foi a manh, esta feminilidade est presente tanto na moa
quanto nos animais que a acompanham, e o que h de comum nestes dois contos que as
mulheres so responsveis por todos os fatos ali presentes, sendo atravs delas, e de suas
atitudes, que eles se desencadeiam.
29
Isto pode ser explicado usando as palavras de Eldia Xavier em seu artigo
intitulado Por uma teoria do discurso feminino em que o discurso feminino faria parte
de um projeto subversivo mais amplo, com o objetivo de anular o discurso do poder e de
modificar as relaes sociais. (XAVIER, 1990, p. 240). Ou seja, as personagens dos
contos modificam a rotina do lugar em que vivem podendo fazer com que o leitor relacione
os conflitos internos e externos das mesmas para as questes sociais, polticas e at mesmo
pessoais a respeito das questes do feminino.
Dessa forma as narrativas de Marina Colasanti parecem se assemelhar s de outras
autoras como Clarice Lispector e Virginia Woolf, que tambm retratam as questes
femininas, tanto em seus papis sociais, quanto psicologicamente, enfatizando a sua
importncia e principalmente suas conquistas, que ainda vem sendo adquiridas ao longo
dos anos perante a sociedade que , sobretudo, patriarcal.
Virgnia Woolf uma das precursoras de um modelo de escrita que enfatiza os
conflitos femininos, pois retrata em suas obras questes que fazem refletir sobre a condio
da mulher na sociedade. Clarissa Dalloway, obra Mrs. Dalloway, uma de suas
personagens mais relevantes. Nesta obra a autora consegue transmitir de forma peculiar os
conflitos de identidade de sua personagem e mostrar como a sociedade interfere nas suas
relaes de mulher casada, me e principalmente na sua personalidade que se molda
atravs de um sistema patriarcal dominante.
Em Clarice Lispector tambm so marcantes as questes do feminino na maioria de
suas personagens, as quais so cheias de conflitos interiores e introspectivos, ou seja,
representam as aflies da mulher brasileira na sociedade destacando a opresso sofrida
perante as desigualdades sociais e os esforos para tentar viver sem as diferenas.
Assim, Marina Colasanti faz parte de um grupo de escritoras que resgatam o
feminino em sua escrita, fazendo com que suas narrativas sejam feministas ao abordar um
discurso que reflita as condies da mulher na sociedade e tambm femininas por se
constiturem de uma forma delicada, que mesmo cheia de lacunas capaz de se aprofundar
em um universo psicolgico profundo, o que pode ser explicado por Lcia Castelo Branco
ao comparar a escrita feminina ao gozo da mulher:
A escrita feminina, similar ao gozo da mulher, tambm produto da falta
e do deslocamento, do elptico e do prolixo, que fazem com que o
discurso se desenvolva em circunvolues e que parea estacado, sempre
girando em torno de si mesmo, sempre no mesmo lugar e, no entanto
sempre outro. Essa tessitura do texto, excessiva e lacunar, termina por
30
reproduzir mimeticamente a estrutura do feminino. Como Bordado, como
um vu que exibe sempre seus furos, suas brechas, como uma renda.
(BRANCO, 1994, p. 94).
Todos esses aspectos mencionados, dentre outros, podem ser comprovados na
anlise destes dois contos, escolhidos justamente por apresentarem estas caractersticas
mais marcantes, em uma forma simples de narrar.
Com o destaque da presena feminina nestes contos, Marina Colasanti refere-se a
todo um passado de luta das mulheres, que anseiam por melhores condies de vida e
igualdade na sociedade, e, comparando-se aos dias atuais, h toda uma fora, contida na
mulher, que ainda vtima de preconceitos, mas capaz de estabelecer transformaes no
espao em que vivem. Assim, o surgimento da mulher das cinzas e a fora presente em
seus cabelos representam o quanto a classe feminina precisa ser forte para se destacar ao
longo dos anos na vida social.
31
1. EXPLICITANDO O POTICO: A LITERATURA QUE EMANA DOS CONTOS
Tenho como regra, chegar, com o mximo de economia, ao mximo de
resultado. Entrar, como de leve, em um tema, e, com poucos toques, vir-
lo de cabea para baixo. Minha alegria chegar, com conciso, ao
mago das coisas. A palavra certa um tesouro precioso, sempre raro. E
uma palavra repentina e solta, saboreada na boca, melhor que bala.
Quando estou em algum veculo de imprensa, lido mais diretamente com
as coisas. Mas em literatura no sou amante do realismo, trabalho com
smbolos, corto no vis. (COLASANTI, 2013)
1.1. Aspectos tericos e literrios
As teorias sobre literatura so fundamentais para o entendimento denso das
escrituras caracterizadas como obras literrias, como tambm para a compreenso da sua
importncia para a sociedade em que ela se insere e para as interferncias ocasionadas ao
se retratar comportamentos, denncias, fantasias e conflitos que, ao longo das geraes,
vo se modificando de acordo com as mudanas sociais, econmicas, artsticas, etc. Com
isso, vrios tericos desde filsofos, fillogos, psicanalistas, ou seja, cientistas das diversas
reas do conhecimento se dedicam aos estudos literrios como forma de compreender um
pouco mais o meio em que vivem.
E para que haja uma anlise tcnica dos textos de Marina Colasanti faz-se
necessrio estudar as suas obras luz das teorias literrias vigentes, a fim de levantar
aspectos que enquadram suas histrias como pertencentes aos conceitos literrios
elaborados e estudados por diversos tericos ao longo das geraes. Dessa forma ser
destacado o conto Quem me deu foi a manh, objeto central de estudo desta anlise, em
comparao com a alma, no ? Do livro O leopardo um animal delicado, para que
fiquem ntidas as diferenas e semelhanas tericas existentes dentro de um mesmo gnero
literrio.
Como mencionado anteriormente, o foco de anlise desta dissertao so os contos
So os cabelos das mulheres e Quem me deu foi a manh, porm, para que haja uma
melhor compreenso das teorias usadas ser necessria a utilizao de outras narrativas da
mesma autora a fim de ampliar e comparar os conceitos levantados ao longo das pesquisas.
Pode-se dizer que estes contos escolhidos so, em sua forma de compreenso,
iguais e diferentes ao mesmo tempo, pois foram escritos em uma mesma poca literria,
que a contempornea, pela mesma autora e apresentam caractersticas que percorrem
32
toda a histria literria, sendo um mais ancestral em seu modo de escrita, e o outro, mais
atual na sua linguagem. Para que essas teorias sejam melhores explicitadas, faz-se
necessrio conhecer um pouco o enredo de cada um dos contos, como ser mostrado a
seguir.
Como anteriormente citado, o conto Quem me deu foi a manh, est presente no
livro Com certeza tenho amor, publicado pela autora em 2009 e, narrado em terceira
pessoa com a incluso de dilogos ao longo da narrativa. Aborda-se nele a histria de uma
moa, que ao ir lavar as sua anguas no rio se depara com uma salamandra, que encantada
com a beleza da roupa, pergunta que rendas eram aquelas, e recebendo a resposta de que
era algo que farfalhavam em seus tornozelos, o animal decide que quer ouvir este
farfalhar, enroscando-se na moa.
A salamandra descrita como fria como o vidro e brilhante como prata, sendo
comparada ou at mesmo confundida com uma joia, causando espanto e admirao s
outras moas da cidade, que ficam curiosas para saber a origem de tal objeto em uma
pessoa to simples da aldeia.
Com o passar do tempo a personagem volta ao rio para lavar novamente as suas
roupas, e ao lavar o seu xale surge uma serpente, que do mesmo modo que a salamandra se
encanta com a beleza da pea e decide, tambm, ficar no pescoo da moa como um colar,
surpreendendo mais uma vez as pessoas da aldeia, ansiosas para saber onde havia
conseguido joia to bela.
E assim se sucedeu com uma liblula, que se encantou com seus cabelos, ao serem
lavados no rio, pousando neles e ficando igual a uma presilha, delicada e graciosa como
uma filigrana (COLASSANTI, 2009, p.61), o que foi o auge das especulaes da cidade,
pois ao ser indagada mais uma vez sobre a aquisio de tais peas, a moa simplesmente
responde que as ganhou da manh.
Os boatos sobre as joias se espalham por toda a aldeia e a moa presa, acusada
de roubo, porm algo fantstico acontece: dentro da cadeia os animais soltam a moa, pois
a serpente pica o carcereiro e a liblula voa at a chave levando-a sua dona. Mas como
este acontecimento foi inexplicvel aos habitantes da aldeia, a personagem foi acusada de
bruxaria, presa novamente e levada inquisio em praa pblica onde seria queimada em
uma fogueira.
E dessa forma todo o ritual se procede, a moa queimada na frente de todos, ainda
com a salamandra presa em seu tornozelo, e quando a madrugada chega e os habitantes
33
esto todos dormindo, ela surge das cinzas e se afasta com a joia em seu corpo:
Assim, ningum viu aquele sbito mover-se entre cinzas, o menear, a
cabea da salamandra erguendo-se. Ningum viu o brao, o ombro, a
cabeleira da moa emergindo dos restos da fogueira, ela toda de p
sacudindo-se como quem sai da gua. Ningum viu quando, antes de se
afastar, recebeu ao redor do tornozelo uma joia fria como vidro e
brilhante como prata. (COLASANTI, 2009, p. 65).
J o conto a alma, no ? retirado do livro O leopardo um animal delicado,
publicado em 1998, relata os pensamentos e as indagaes de Marta sobre o seu
casamento. Alm de ser escrito em terceira pessoa com a insero de dilogos, h tambm
pequenos monlogos interiores.
Toda a narrativa deste conto parte de um elemento central que uma liblula
encontrada na tumba de um fara, presa no mbar, sendo noticiada em um jornal. Atravs
deste acontecimento, Marta comea a comparar a sua vida conjugal com a liblula presa.
As suas reflexes tm incio de manh, na mesa do caf, quando o marido lhe fala sobre a
notcia e ela toma conscincia de que tambm est presa em um mbar.
Marta, depois do caf, na sala de televiso, continua a refletir sobre o seu
relacionamento, pois no incio de tudo, os dois eram como liblulas, tinham vontade e
dedicao com o outro, enquanto nos dias atuais, tudo se tornou mecnico, as palavras no
mais se faziam necessrias para a comunicao, como se tornassem-se indiferentes, numa
vida montona e entediante.
Com todos esses pensamentos, Marta se sente presa em sua prpria casa, como a
liblula no mbar, e imagina o cientista cortando a liblula para retirar o DNA, que
segundo seu marido era como se fosse a alma do animal. Ao mesmo tempo, ela passa a
unha sobre a pele do colo, imaginando que estava sendo cortada tambm, porm diferente
do inseto, dela no se poderia extrair nada, pois a sua alma no estava ali.
E assim Marta conclui que nem mesmo os arquelogos poderiam encontrar a
resposta para o que virou o seu casamento, sendo tal situao impossvel de ser revertida,
comparada a restos sem utilidade: As tumbas, diz para si mesma, os casamentos esto
cheios de fragmentos sobre os quais nenhum arquelogo vem aliviar o peso da terra, restos
necrosados que jamais sero duplicados para a vida. (COLASANTI, 1998, p. 10). E assim
o dia vai escurecendo at que o seu marido retorna do trabalho e ela lhe pergunta
secamente como foi o seu dia, e sem esperar a resposta, se volta para a televiso.
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1.1.1. A instabilidade do gnero dentro de uma mesma categoria narrativa
Com os contos explicitados acima, possvel notar, primeiramente, a mudana que
ocorre dentro do prprio gnero em si, pois as narrativas expem em seu contedo formas
diferentes de se apresentarem, o que pode se remeter ao conceito de espcie literria citado
por Ren Wellek e Austin Warren no livro Teoria da literatura, em que h a indagao
sobre o princpio ordenador de tais gneros e at que ponto a inteno influencia nessas
mudanas:
Tero todas as obras relaes literrias suficientemente estreitas com
outras obras para que o seu estudo seja auxiliado pelo estudo dessas
outras? E at que ponto est a inteno includa na ideia de gnero? A
inteno de um pioneiro, de um inovador? A inteno dos outros?
(WELLEK; WARREN, 1976, p. 282).
O que se observa, tomando como referncia a definio a cima, que as duas
histrias, se divergem na concepo de espao, pois em Quem me deu foi a manh ela se
passa em uma aldeia enquanto em a alma, no ? todo enredo se constitui em uma
casa, principalmente, na sala desta casa. Outra diferena que se encontra quanto ao
tempo, pois na primeira narrativa h uma passagem cronolgica de dias que impossvel
determinar; j na segunda os fatos ocorrem em apenas uma manh e tarde, sem se ter uma
cronologia.
evidente que pode haver vrias formas de se escrever contos, porm essa
capacidade de escrev-los de diferentes formas, que enfatiza a inteno do autor em
relao ao leitor e tenciona as possveis relaes que uma obra pode ter com outra ou no.
Todas essas possibilidades de escrita fazem com que se confirme a teoria de que os gneros
literrios no so fixos e sofrem mudanas dentro das mesmas categorias.
O conto Quem me deu foi a manh exemplifica ainda a mistura de gneros
distintos como a narrativa e a poesia, a sua construo adornada de metforas o torna
potico, assemelhando-se aos poemas picos com traos de oralidade. Todas essas
metforas se encontram no texto como descrio das caractersticas dos personagens, como
por exemplo, para se referir aos cabelos loiros da moa:
Ajoelhou-se na beira e mergulhou a cabea para lavar os cabelos.
Ondular de azul na gua, ondular de azul entre os fios. Depois penteou e
sacudiu os cabelos para sec-los ao sol. E como se trazida pelo sol, uma
liblula voou e veio pousar na cabea, um pouco de lado. Ali, imveis as
asas, deixou-se ficar. (COLASANTI, 1999, p. 62).
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Na segunda histria tem-se uma concepo atual do gnero, que no se mistura com
nenhum outro elemento, no h poeticidade e sim as reflexes da conscincia da
personagem, o que uma caracterstica muito comum nos contos modernos, tais como os
de Clarice Lispector e Virgnia Woolf, por exemplo. Nota-se que os pensamentos da
personagem se misturam com o do narrador, causando um estranhamento por parte do
leitor, exigindo dele uma leitura mais atenta, principalmente nos pargrafos iniciais:
No mbar. Preso no mbar como uma liblula no exagera, Marta est
bem, no d mesmo para tanto, preso no mbar como um inseto, uma
mosca. isso, preso no mbar como uma mosca. (...) Uma mosca presa
no mbar, isso o meu casamento. Pois no tinha o marido, de manh
mesa do caf, abertas as folhas entre os dois, relatado com espanto a
notcia do jornal? (COLASANTI, 1998, p. 07)
Com todas essas diferenas e semelhanas existentes nestas duas narrativas, pode-
se compreender que o gnero apreciado por elas no puro e se enquadra na teoria
moderna sobre os mesmos. Como se sabe, Wellek e Warren explicitam duas teorias sobre
os gneros ou as espcies literrias, a clssica e a moderna, que segundo eles, no podem
se confundir uma com a outra, sendo a primeira descrita como normativa e prescritiva,
sem a possibilidade de haver relao de um gnero com o outro, enquanto a teoria moderna
engloba-se todas as suas definies, aceitando as suas miscigenaes e o valor nico de sua
originalidade:
A moderna teoria dos gneros claramente descritiva. No limita o
nmero das espcies possveis e no prescreve regras aos autores. Admite
que as espcies tradicionais possam misturar-se e produzir uma espcie
nova (como a tragicomdia). Reconhece que os gneros podem ser
construdos tanto numa base de englobamento ou enriquecimento como
de pureza (isto , gnero tanto por acrscimo como por reduo). Em
lugar de sublinhar a distino entre as vrias espcies, interessa-se
maneira da preocupao romntica pelo carter nico de cada gnio
original e de cada obra de arte em descobrir o denominador comum de
uma espcie, os seus processos e objetivos literrios. (WELLEK;
WARREN, 1976, p. 293).
Dessa forma Marina Colasanti trabalha em suas obras no sentido de aprimorar o
conceito do gnero, renovando-o e ao mesmo tempo retomando caractersticas tradicionais
e mesclando-as com as modernas, reafirmando que a literatura adquiriu uma forma
moderna de narrar e que os conceitos relativos aos gneros textuais so flexveis e
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maleveis, tambm nos dias de hoje, no podendo haver uma definio precisa ou
tradicional.
Ao observar a maneira como se apresentam os dois contos acima escolhidos,
relacionando-os com a poca em que foram escritos, tm-se uma viso muito clara destas
modificaes ocorridas no conceito do gnero.
1.1.2. A oralidade em Quem me deu foi a manh
Alm dos aspectos referentes ao gnero, possvel observar, com mais nfase, a
oralidade presente no conto Quem me deu foi a manh, pois a sua forma de narrar se
assemelha forma mtica ou fabulosa dos contos antigos, da poca medieval.
sabido que muito antes da escrita os poemas eram narrados oralmente, cantados,
como fazia Homero na Grcia. Somente com o passar dos anos que as narrativas foram
sendo registradas dando a elas um carter de imortalidade atravs dos tempos. Como cita
Scholes e Kellogg em seu livro A natureza da Narrativa, a escrita tornou as palavras mais
reais aos homens, e os livros em si adquiriram valores que vo alm do meramente fsico.
E para que epopeias to grandes pudessem ser escritas e at mesmo memorizadas,
os poetas utilizavam de frmulas para a concepo dos versos, atravs das mtricas
utilizadas, e os enredos eram constitudos basicamente de fatos heroicos, como na Odisseia
e at mesmo de mitos das origens e explicaes do mundo. E ao longo dos sculos a escrita
foi se modificando e a maneira de se conceber as narrativas tambm. Pois enquanto um
cantor oral tinha que desenvolver tanto o enredo quanto o tema do mito simultaneamente,
na narrativa literria moderna, o enredo vai se transformar na histria do mito:
O aspecto representativo do mito o enredo; seu aspecto ilustrativo,
como o do topos e do canto inteiro, o tema. O cantor oral precisa
desenvolver, simultaneamente, ambos os aspectos dos mitos que
incorpora em seu canto. Quando a narrativa potica oral se desagrega
com o advento da aptido literria no sentido moderno o como resultado
de algum outro tipo de diferenciao cultural radical, o aspecto
ilustrativo do mito desenvolvido em forma de alegoria e de escritor
filosficos discursivos. O aspecto representativo do mito , ento,
desenvolvido em forma de histria e de outros tipos de narrativa
emprica. (SCHOLES; KELLOGG, 1997, p. 18-19).
Assim, o conto Quem me deu foi a manh se assemelha a uma narrativa oral, por
constituir em sua composio formas que lembram a narrativa do mito, pois a histria se
passa de uma maneira ancestral e o tempo da narrao, por estar no passado, remete a um
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acontecimento que pode ter sido secular ou mesmo atemporal, alm dos acontecimentos
fantsticos, pois como se sabe, a personagem central de uma certa forma encanta os
animais que passam a fazer parte do seu corpo, e os animais por sua vez tm aspectos
humanos ao falarem com a moa.
Sobretudo ao se ler o conto, percebe-se que o mesmo foi escrito de maneira a se
assemelhar com a fala, devido s vrias metforas existentes tanto na descrio como na
construo dos personagens.
Esta narrativa em especial, adquire formas mais tradicionais de narrar, enquanto a
outra ( a alma, no ), no se preocupa tanto em fantasiar os acontecimentos, sendo
mais direta e cotidiana ao leitor, tomando como fundamental os fatos ocorridos ali no
momento, que, no caso da segunda histria toda montada a partir de um nico elemento
central, a liblula no mbar.
Com isso, percebe-se que Quem me deu foi a manh uma forma de narrativa
originria da combinao da oralidade com a escrita, tendo como base uma cultura
estritamente oral, que ao ser escrita passou a dar diferentes formatos s maneiras de narrar
algo, se modificando plenamente, como nos contos contemporneos, exemplificado pelo
conto a alma, no ? Ou revitalizando e rememorando a sua tradicionalidade no breve
conto da moa e a salamandra.
1.1.3. Formalismo, recepo e significao
Esses dois contos em especial possuem uma forma peculiar de narrativa que faz
com que se retomem certos conceitos da teoria formalista e da esttica da recepo
segundo Hans Robert Jauss, justificando de certo modo o estilo da autora em questo.
Como se sabe a teoria formalista surgiu para dar literatura mais autonomia, ou seja,
caracteriz-la como arte separando-a da linguagem prtica:
A diferenciao entre linguagem potica e linguagem prtica conduziu ao
conceito de percepo artstica, conceito este que rompe completamente o
vnculo entre literatura e vida. A arte torna-se, pois, o meio para a
destruio, pelo estranhamento, do automatismo da percepo
cotidiana. Decorre da que a recepo da arte no pode mais consistir na
fruio ingnua do belo, mas demanda que se lhe distinga a forma e se
lhe conhea o procedimento. Assim, o processo de percepo da arte
surge como um fim em si mesmo, tendo a perceptibilidade da forma
como seu marco definitivo e o desvelamento do procedimento como o
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princpio para uma teoria que, renunciando conscientemente ao
conhecimento histrico, transformou a crtica de arte num mtodo
racional e, ao faz-lo, produziu feitos de qualidade cientfica duradoura.
(JAUSS, 1994, p. 18-19).
Dessa forma o estranhamento pode ser percebido em Quem me deu foi a
manh pelos acontecimentos fabulosos como na conversa da moa com os animais, no
seu ressurgimento das cinzas e tambm por ser um conto com aspectos antigos, no que
tange a sua semelhana com a forma mtica de narrar, escrito nesta poca contempornea.
J em a alma, no ? nota-se tal quebra com o automatismo da percepo
atravs dos questionamentos de Marta a cerca de seu casamento, ressaltando aspectos
psicolgicos da personagem, como tambm na presena de um nico elemento central para
a formao de todo o enredo, com nfase na falta de grandes acontecimentos que mudam
o desfecho da histria ali contada, diferentemente do que acontece nos contos tradicionais
ao estilo do escritor norteamenricano Edgar Allan Poe, com incio, clmax e fim.
A capacidade que estes contos tm de chamar a ateno do leitor para uma reflexo
relativa aos fatos ali contidos, dando aos enredos significados plurais, faz com que a cada
leitura haja uma renovao de seus significados, atravs dos smbolos presentes na
narrao. Com isso, esses textos reafirmam o que Jauss escreve sobre a literatura na
perspectiva da recepo, em que seu acontecimento s se d pela expectativa dos leitores,
ao diferenciar o acontecimento poltico do literrio:
Ele (acontecimento literrio) s logra seguir produzindo seu efeito na
medida em que sua recepo se estenda pelas geraes futuras, ou seja,
por elas retomada na medida, pois, em que haja leitores que novamente
se apropriem da obra passada, ou autores que desejem imit-la. A
literatura como acontecimento cumpre-se primordialmente no horizonte
de expectativas dos leitores, crticos e autores, seus contemporneos e
psteros, ao experienciar a obra. (JAUSS, 1994, p. 18-19).
Tais caractersticas podem ou no ser dependentes da inteno do autor, pois o
enredo pode culminar em significados que inicialmente no faziam parte das perspectivas
do escritor, mas que atravs da leitura de cada um vai se transformando e tomando outras
inferncias. Em Quem me deu foi a manh o leitor pode refletir sobre os significados que
cada animal possui e o porqu de justamente a salamandra ter sido o que salvou a moa da
morte na fogueira, ou ento pensar no que aconteceu depois que a personagem partiu, alm
de muitas outras coisas.
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No conto em que Marta a personagem principal o leitor tambm tem a
possibilidade de inferir diversos significados aos acontecimentos, pois o final da histria
fica em aberto. H a possibilidade de associao da liblula presa no mbar, no s com o
cotidiano de Marta, mas tambm com outros fatores sociais que culminam na instituio do
casamento, fazendo com que a narrativa atinja uma reflexo mais profunda e at
psicolgica dependendo do leitor.
Contudo, a associao dos contos com a teoria da recepo acima citada, faz com
que a obra de Marina Colasanti adquira um carter atemporal, pois poder ser lida
futuramente sempre com a probabilidade de ter os seus significados renovados, resultando
num texto novo a cada olhar do leitor.
Ainda no conceito de significao da obra, tendo como referncia s teorias de
Scholes e Kellogg sobre o significado da narrativa, pode-se tambm analisar tais contos no
que diz respeito ilustrao e representao, que se dar na medida em que os enredos se
aproximam ou se distanciam da realidade.
De acordo com Scholes e Kellogg nem toda narrativa ir se preocupar em ter um
significado, e esta despreocupao poder se manifestar de diversas formas, pois nem
todas as obras procuram revelar os seus sentidos da mesma maneira, adotando
variedades diferentes de manifestaes, mas que esto ligadas entre si: O ilustrativo
simblico; o representativo mimtico. (SCHOLES; KELLOGG, 1977, p. 58). Com isso,
os tericos alegam que a ligao entre o mundo ficcional e o real pode dar-se de maneira
representativa ou ilustrativa.
Quando a literatura, assim como qualquer outra arte, procura mostrar algo que
esteja intimamente ligado com o real, chegando a ser uma espcie de rplica da realidade,
ela est representando, ou seja, h uma impresso convincente do real dentro do que est
sendo narrado. Por outro lado, se em vez de reproduzir a realidade em si, a literatura buscar
apenas ressaltar um aspecto da mesma, ela estar ilustrando a narrao, sugerindo assim, os
seus significados.
Dessa forma, pode-se apreciar as narrativas como uma mais ilustrativa e a outra
mais representativa. No conto Quem me deu foi a manh, existem vrios fatos que se
remetem realidade, porm no chega a ser uma representao fiel pois os fatos
fantsticos que ali ocorrem no podem acontecer efetivamente no mundo real, como por
exemplo, no momento em que a personagem volta para a aldeia com a liblula nos cabelos
e responde s outras moas que quem lhe deu todas aquelas joias foi a manh:
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As moas esperavam para v-la passar. E essa preciosidade
perguntaram em coro movidas pelo cintilar irizado quem foi que te
deu?
Quem me deu foi a manh respondeu a moa. E, sem olhar para trs,
entrou em casa. A porta deixou aberta, soubessem todos que nada tinha a
esconder. (COLASANTI, 2009, p. 63).
H nesse trecho apenas uma sugesto de que todos os presentes da moa seriam
vindos da natureza, ou seja, que a manh lhe agraciava com aquelas joias por ser
justamente neste horrio que os animais apareciam para falar com a moa. A ilustrao
tambm est presente neste trecho na fala das outras moas indicando certa inveja para
com a possuidora dos adereos. A personagem central ilustra um ser frgil que perante as
foras da natureza se torna forte e se sobressai aos desgnios humanos, dando um aspecto
alegrico ao texto.
Por outro lado, o conto a alma, no ? est mais voltado para a representao,
pois h um retrato psicolgico e sociolgico, no que se percebe principalmente em Marta
que representa o cotidiano de uma dona de casa que passa a perceber a rotina que virou seu
casamento. O seu marido, no entanto, pode representar o homem, que est to voltado para
o trabalho que no mais presta ateno na famlia, ou, em sntese, a narrativa apresenta a
monotonia de uma relao sem esforos para se manter com o mesmo entusiasmo do
comeo, o que acontece com muitos casais.
Essas duas personagens criadas por Marina Colasanti chamam a ateno do leitor,
cada uma sua maneira, e faz com que ele vivencie o que leu, tornando-se mais sensvel,
exercitando a sua percepo da realidade, justificando assim a capacidade que o texto
literrio tem de fazer com que o real seja visto mais claramente do que o cotidianamente.
O leitor no apenas se entretm ao ler os seus contos, mas tambm passa a ver com outros
olhos o mundo ao seu redor, seja com mais beleza e poesia, ou com mais dureza e
realidade.
A moa do primeiro conto apresentada de forma simples ao leitor adquirindo
feies poticas e fabulosas maneira dos contos de fadas, os seus pensamentos no so
importantes para o enredo e sim os seus atos. Pode-se perceber que neste conto no h a
presena monlogos, o que a diferencia de Marta, mostrada na narrativa atravs de seus
monlogos interiores - marca da escritura moderna.
Apesar da insero dos monlogos interiores no segundo conto, ainda sim a
personagem de Marta no apresenta grandes complexidades se analisada isoladamente. O
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fato de ela pensar na sua situao conjugal no se remete aos fluxos de conscincia
complexos, pois ao final da histria ela continua sendo a mesma, sem alteraes em seu
psicolgico, que foi apenas explicitado durante a narrativa.
1.1.4. O conceito de ps-modernismo nos contos
Levando em considerao a data em que estes dois contos foram publicados, pode-
se inclu-los como pertencente a uma poca ps-modernista. O conto a alma, no ?
data de 1998, e Quem me deu foi a manh de 2009, como anteriormente citado, ou seja,
so duas publicaes recentes, que possuem caractersticas que vo alm do tempo em que
foram escritas.
De acordo com David Harvey o ps-modernismo representa uma desconstruo
do eu, uma mescla de diferentes realidades e consequentemente suas complexidades,
diferentemente do modernismo. Com isso, h um pluralismo na escrita, permitindo aos
autores uma maior liberdade em criar diferentes mundos em seus textos, fazendo com que
haja questionamentos entre os seus personagens:
O retrato do ps-modernismo que esbocei at agora parece depender, para
ter validade, de um modo particular de experimentar, interpretar o ser no
mundo o que nos leva ao que , talvez, a mais problemtica faceta do
ps modernismo: seus pressupostos psicolgicos quanto personalidade,
motivao e ao comportamento. A preocupao com a fragmentao e
instabilidade da linguagem e dos discursos leva diretamente, por
exemplo, a certa concepo da personalidade. (HARVEY, 1996, p. 56).
Assim as narrativas aqui apresentadas se enquadram como ps-modernistas, no s
pela data em que foram escritas, mas sim por apresentarem caractersticas plurais. Estes
textos proporcionam uma capacidade de interpretao particular dos acontecimentos
capazes de exercer influncias psicolgicas e comportamentais em cada um, o que notado
principalmente em a alma, no ?, em que a sua linguagem fundamental para se
compreender a sua instabilidade de sentidos, como foi esboado acima por David Harvey.
O fato de a autora retomar em seus textos formas literrias de escrita nos moldes
antigos, como se nota em Quem me deu foi a manh, tambm faz com que sua obra se
encaixe nos preceitos ps-modernistas. Neste conto em especial h uma releitura da forma
de narrar dos mitos e dos contos de fada, alm da oralidade, anteriormente mencionada, o
que comum nas narrativas contemporneas.
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Ou seja, h em seus contos os fatos atuais do cotidiano, sendo mostrados em uma
forma ancestral e tambm atual de escrita, com nfase em pequenos detalhes, que no
caso desta autora, est em retratar o feminino e a feminilidade, caracterstica comum nos
dois contos.
Como foi possvel perceber, as duas personagens femininas sofrem com
especulaes em sua forma de viver, a moa do primeiro conto, por exemplo, uma figura
que pode representar a luta por uma colocao melhor da mulher perante a sociedade,
enquanto a personagem de Marta, j est inserida na sociedade e questiona a vida que est
levando. Nos dois contos, como se percebe, o aspecto feminino vem para ser questionador,
o que um dos fatores da literatura ps-modernista.
Esta corrente artstica na qual a autora est inserida, lhe permite uma maior
liberdade de criao e por isso os seus contos assumem significaes plurais, permitindo
que possuam marcas, tambm, de um tradicionalismo dentro do contemporneo.
Outro fator importante para a caracterizao destas narrativas como atuais, o fato
de retratarem o cotidiano, o que se percebe mais claramente no segundo conto, pois, ainda
nos conceitos de Harvey, um dos aspectos fundamentais do ps-modernismo justamente
a sua inerncia com os fatos habituais da vida em si.
Contudo, a versatilidade da autora em geral ir contribuir ainda mais para a
formulao contempornea de seus textos, pois ao mesmo tempo em que capaz de
retomar uma forma antiga de escrita, ela tambm quebra com os automatismos, criando
personagens complexas, incluindo monlogos interiores, ou seja, renovando e
particularizando simultaneamente.
Assim, estes dois contos se assemelham em seu carter de ps-modernidade, de
acordo com os conceitos acima apresentados, porm em seu interior possvel perceber
que eles assumem aspectos diferentes em sua forma de apresentao ao leitor. Em Quem
me deu foi a manh h a retomada da escritura mtica, enquanto a alma, no ? est
totalmente inserido na contemporaneidade.
1.2. O gnero em questo: o conto e suas teses
Destacando agora o gnero em que as narrativas de Quem me deu foi a manh e
So os cabelos das mulheres se constituem possvel analis-las sob o prisma de
Ricardo Piglia, atravs dos co