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Unidade biológica humana

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Director: Henri Dieuzeide

Chefe da redacção: Zaghloul Morsy

Adjunto: Alexandra Draxler

Perspectivas publica-se também:

e m Árabe: Mustaqbal al-Tarbiya (Unesco Publications Centre, I Talaat Harb Street, Tahrir Square, Le Caire, Egypte)

e m Espanhol: Perspectivas, revista trimestral de educación (Santillana S . A . de Ediciones, calle Elfo 32, Madrid-27, Espagne)

e m Francês : Perspectives, revue trimestrielle de l'éducation (Unesco)

c m Inglês: Prospects, quarterly review of education (Unesco)

© Unesco, 1976

© para a tradução portuguesa, Livros Horizonte, Lda., 1976

Tradução realizada sob a responsabilidade de Livros Horizonte

Livros Horizonte R u a das Chagas, 17, l.°-Dto. — Lisboa — Portugal

Impresso em Portugal

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1 4 NOV. 1979

revista trimestral d e e d u c a ç ã o Vol. VII

Unesco N . ° 2 1977

Sumário A unidade biológica da humanidade : etologia humana, conceitos e implicações Irenäus Eibl-Eibesfeldt 163

Problemas de teoria e de política da edução na Jugoslávia Niksa Nikola Soljan 182

Posições/Controvérsias A crise da planificação e os limites do auxílio externo Manzoor Ahmed 191

O livro para crianças e os direitos do h o m e m Marc Soriano 199

Elementos para u m dossier: Fins e meios de u m a educação contínua A Unesco e o desenvolvimento da educação dos adultos 220

A educação dos adultos, as mulheres e o desenvolvimento

Lucille Mair 230

Escolar, extra-escolar e justiça social Yusuf O. Kassam 236

Educação dos trabalhadores e organizações populares rurais

V. S. Mathur 243

Aprender a viver melhor Hilary Perraton 247

A educação dos adultos na República Democrática Alemã

Gottfried Schneider 255

A educação dos adultos e m Ontário Ignacy Waniewicz 264

U m a conquista dos trabalhadores italianos: as «150 horas» Filippo M . De Sanctis 273 Desenvolver auditórios de massa para a rádio educativa: duas

abordagens Jonathan Gunter e James Theroux 281 Tendências e Casos A influência da edição transnacional sobre o saber nos países

e m desenvolvimento Keith B. Smith 293

Notas e Comunicações Revista de publicações. 304

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O s artigos assinados exprimem a opinião dos seus autores e não necessa­riamente a da Unesco ou da Redacção.

P o d e m ser reproduzidos, sob reserva da autorização do redactor-chefe.

A redacção gostaria de receber para publicação contribuições ou cartas contendo opiniões fundamentadas, favoráveis ou não, sobre qualquer artigo publicado e m Perspectivas ou sobre os temas abordados.

Toda a correspondência deve ser dirigida ao redactor-chefe, Perspectivas, Unesco, 7, Place de Fontenoy, 75700, Paris, France.

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Irenäus Eibl-Eibesfeldt

A unidade biológica da humanidade: etologia humana, conceitos e implicações

C o m o todo o organismo vivo, o ser humano comporta-se de m o d o previsível: é u m das premissas incontestadas de toda a ciência do com­portamento. Todas as ciências humanas reconhecem que os seres humanos estão programados tendo e m vista acções específicas. M a s não existe concordância quanto ao modo de intervenção da progra­mação. N o Ocidente pensa-se que os homens e as mulheres devem adquirir todo o seu reportório de comportamentos, pois são, quando nascem, folhas e m branco que a educação preencherá. Esta teoria mesológica está na base da nossa prática educativa, segundo a qual a criança é maleável quase até ao infinito, podendo u m a «boa» educação transformá-la n u m adulto adaptado a normas e conceitos precisos. D e acordo com esta teoria, nada é inato e o comportamento é modelado pelo meio. Os seres humanos são inteiramente condicionados e as nor­mas éticas que guiam a sua conduta são derivadas de funções. « B o m é o que contribui para a sobrevivência de u m a cultura», declarou Skin­ner, u m dos defensores da doutrina mesológica. N ã o somos bons n e m maus, somos o simples produto da nossa educação. O relativismo cul­tural é apenas u m a consequência desta teoria. N ã o existem normas imperativas para a humanidade.

As adaptações filogenéticas nos animais

Os etólogos emitiram dúvidas sobre esta teoria. A s investigações empreendidas por Lorenz e Tinbergen, há mais de trinta anos, prova­ram que os animais actuam de acordo com programas inatos. A apren­dizagem completa estas estruturas de comportamento herdadas, mas eles estão dotados de programas de comportamento de base, sob a forma de adaptações filogenéticas. Alguns modelos de comportamento funcionam desde a eclosão ou do nascimento, como demonstra a atitude do pato recém-nascido. Logo que nasce realiza u m certo número de acções adaptativas. Anda e nada, peneira a lama, unta as penas, para mencionar apenas alguns exemplos. Mal sai da concha o tentilhão abre o bico, reacção característica do desejo de alimento. Outros esquemas de comportamento desenvolvem-se durante a ontogenèse sem neces-

Irenãus Eibl-Eibesfeldt (Áustria). Biólogo, especialista de biologia do comportamento e, em particular, de etologia humana; estudou com Konrad Lorenz e Wilhelm von Marinelli. Chefe de um grupo de investigações no Instituto Max Planck sobre filosofia do comportamento, professor de zoologia na Universidade de Munique. Participou em numerosas expedições de investigação. Autor de um grande número de artigos e de obras científicas.

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Irenâus Eibl-Eibesfeldt

sidade de aprendizagem. O estudo do canto dos pássaros fornece-nos alguns exemplos (Koniski. 1964, 1965a, b)1. Estes esquemas motores constituem coordenações herdadas ou «inatas». Para ser mais preciso: a rede de neurónios e as suas conexões c o m os órgãos receptores e efectores desenvolvem-se ou amadurecem durante u m processo de auto-diferenciação de acordo c o m as instruções codificadas pelos genes.

Muitas discussões se têm desenvolvido e m torno do conceito de «inato». Alguns defendem que n e m a experiência mais rigorosa per­mite excluir todas as eventuais fontes de aprendizagem. N o entanto, o que devemos reter é que os esquemas de comportamento estão adapta­dos a certas condições do meio. Sendo assim, devemos supor que a adaptação se deve à aquisição de informações estruturadas e específicas respeitantes às condições do meio durante a filogénese, por mutação e selecção, ou durante a ontogenèse, por aprendizagem individual. N o primeiro caso, se a informação é transmitida de geração e m geração, podemos falar de adaptação filogenética e não cultural, e, se o indi­víduo se adapta unicamente por meio de aprendizagem, falaremos de adaptação individual.

Procedendo a experiências de privação, é possível, de resto, saber se u m esquema de comportamento resulta, ou não, da adaptação filo­genética. Para saber, por exemplo, se u m pássaro é ou não obrigado a aprender o canto da espécie, podemos criá-lo e m estado de isolamento n u m local insonorizado. Se emitir melodias conhecidas muito parti­culares, fica provado que as informações relativas aos esquemas especí­ficos devem ter sido codificadas nos genes (Lorenz, 1961, Eibl-Eibes­feldt, 1975¿).

Numerosos estudos mostraram que as adaptações filogenéticas deter­m i n a m os comportamentos de diferentes m o d o s O s animais estão equipados de mecanismos inatos, dão provas de aptidões inatas. Apre­sentámos já alguns exemplos. A lém disso, são capazes de responder de imediato a certos estímulos, dando provas de adaptação, testemunhando u m saber adquirido a priori.

U m a vez metamorfoseada, a rã não necessita, ao sair da água, de aprender c o m o apanhar moscas c o m a língua. Ainda há pouco era u m girino, rapando as algas do fundo c o m a ajuda de maxilas especiais! E , de repente, ei-la capaz de apanhar as suas presas c o m movimentos repetidos da língua. Experiências efectuadas c o m objectos artificiais mostraram que ela se lança sobre tudo o que se m o v e , incluindo folhas e pedras de dimensões reduzidas, m a s que aprende rapidamente a evi­tar os objectos perigosos. A reacção não selectiva inicial desempenha u m papel preciso, pois habitualmente os únicos objectos móveis no meio e m que se encontra a rã são presas. A atitude inata para reagir a simples estímulos — neste caso corpos que se deslocam — pressupõe a existência de u m aparelho que «filtra» estímulos específicos, desen­cadeando as correspondentes consequências de comportamento apenas e m contacto c o m estes. Designou-se este dispositivo por mecanismo

1. Ver as referências bibliográficas no fim do artigo.

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automático de desencadeamento ( M A D ) . Nos animais, muitas reac­ções sociais são desencadeadas por estes mecanismos — aproximação da fêmea, luta, reflexo de fuga, submissão, etc. N o caso da parada nupcial, o parceiro apresenta normalmente sinais particulares, igualmente here­ditários (manchas coloridas, modificações da plumagem, movimentos expressivos, odor, vocalização, etc,), «em harmonia» c o m os M A D do destinatário.

N u m certo número de animais a existência destes mecanismos foi demonstrada experimentalmente. Durante o período de reprodução, o carapau macho delimita u m determinado território, o ventre torna-se vermelho e afugenta os rivais. Neste espaço de tempo, procura as fêmeas cujo abdome se apresenta prateado e inchado. Perante u m objecto que reproduza com exactidão u m carapau cujo ventre não esteja vermelho nem intumescido, ele não mostrará qualquer interesse. M a s , se lhe apre­sentarmos u m objecto de cera, e m forma de salsicha, vermelho por baixo, atacá-lo-á imediatamente, e se a parte inferior estiver tumefacta e prateada, será cortejado. Este comportamento observa-se m e s m o e m carapaus machos e m isolamento (Cullen, 1960; Tinbergen, 1951).

Reencontramos estes mecanismos automáticos de desencadeamento nos macacos. Sackett (1966) criou macacos presos desde o nascimento e m condições tais que se encontravam privados de companhia: não eram capazes de olhar para fora da sua jaula n e m de se mirarem n u m espelho. A sua experiência visual resultava de diapositivos projectados na parede da jaula e representando jovens macacos, paisagens, figuras geométricas, etc. Os macacos eram capazes de projectar os diapositivos montados, por meio de u m a alavanca. Cada diapositivo era projec­tado durante quinze segundos e a operação podia ser repetida durante cinco minutos. A frequência da autoprojecção marcava a preferência por determinada imagem.

Verificou-se que os animais gostavam de observar a imagem dos seus congéneres. A frequência de projecção destes diapositivos aumentou rapidamente; ao vê-los os animais emitiam gritos de contacto, aproxi-mavam-se e chegavam a tentar brincar com as personagens represen­tadas. Os outros diapositivos suscitavam apenas u m interesse passageiro e a taxa de projecção mantinha-se fraca. Entre os diapositivos que m o s ­travam macacos, u m deles, representando u m adulto ameaçador, m a n ­teve u m a certa popularidade durante algum tempo.

M a s , quando a idade dos macacos atingiu os dois meses e meio, o comportamento dos indivíduos modificou-se. Subitamente, perante a imagem da «ameaça», começaram a retrair-se, a fechar-se e a emitir gritos de medo , e a taxa de autoprojecção baixou rapidamente. C o m o até então os animais tinham sido privados de toda a experiência social, esta modificação reflectia necessariamente o desencadeamento de u m mecanismo automático de reconhecimento das estruturas expressivas É perfeitamente aceitável que tal aconteça aos dois meses e meio, pois é nessa idade que os jovens entram normalmente e m contacto c o m os outros membros do grupo — e torna-se, então, extremamente impor­tante poder identificar u m a expressão ameaçadora.

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Os sinais — referimo-nos aos «desencadeadores» u m a vez que geram comportamentos específicos no parceiro — não são apenas visuais. A s diversas formas assumidas pelo coaxar das rãs, o som dos grilos e o canto dos pássaros constituem outras tantas características que ser­vem para reconhecer os congéneres. U m a mãe galinha sabe perfeita­mente que os filhos correm perigo quando ouve os seus gritos de aflição. Se colocarmos u m a campânula de vidro sobre u m pintainho de tal m o d o que a mãe o possa ver mas não ouvir, os seus movimentos não impedem que a mãe se vá embora com o resto da ninhada. Por outro lado, a mãe galinha reagirá rapidamente se ouvir u m dos pintainhos piar do outro lado de u m a paliçada. Acorre ao local e m que ele se encontra e chama por ele sem, no entanto, o ver.

U m a perua prodigaliza cuidados maternais a todo o objecto cujo chamamento se assemelhe aos dos seus peruzinhos. Se munirmos de u m alto-falante emitindo os chamamentos apropriados u m toirão empalhado cujo aspecto se assemelha muito pouco ao do peru, a perua prontifica-se a chocá-lo. U m a perua surda mata os filhos porque apenas o seu pipilar é capaz de lhe despertar o comportamento maternal (Schleidt, W . M . e outros, 1960).

Os animais também são motivados por mecanismos fisiológicos ina­tos que poderemos classificar de pulsões: não esperam passivamente os estímulos. Diversos mecanismos fisiológicos incitam u m animal a procurar, por meio de u m comportamento dito apetitivo, situações estimulantes (Lehrman, 1955; Hinde, 1966; von Holst, 1935), Quando os animais se acasalam, caçam, se alimentam, bebem e, pelo menos os de certas espécies, revelam u m comportamento agressivo, estão, e m parte a obedecer a estas pulsões.

Finalmente, a aprendizagem é determinada por adaptações filoge­néticas, de tal m o d o que os animais aprendem o que contribui para a sua sobrevivência e modificam o comportamento e m função da experiên­cia. E m particular, observou-se que certos animais aprendem, e m perío­dos sensitivos, a produzir certas reacções que, u m a vez fixadas, parecem resistir à extinção, a ponto de, por vezes, se tornarem irreversíveis, Este fenómeno foi designado por impressão (Lorenz, 1935; Hess, 1973; Immelmann, 1966).

A aptidão para a aprendizagem, semelhante à «pulsão», é u m termo descritivo e não implica, de m o d o nenhum, u m mecanismo unitário. D e resto, o estudo do canto dos pássaros mostrou bem que o m e s m o resultado — neste caso o facto de u m pássaro aprender o canto de u m congénere — pode ser obtido de várias maneiras (Koniski, 1964, 1965a, b; Marler, 1959; Thorpe, 1961).

Os tentilhões, por exemplo, sabem o que devem imitar. Quando ouvem várias gravações, preferem o canto da espécie. Por meio de u m esquema inato — que Koniski designou por «padrão» — sabem reconhecer este canto. N o tentilhão raiado a aprendizagem do canto apropriado faz-se normalmente durante u m período e m que o animal é particularmente sensível aos cantos. O que é memorizado nesse momento tem priori­dade sobre as experiências ulteriores.

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C o m o a origem filogenética pode actualmente ser considerada u m a realidade, é pertinente perguntar se, pelo menos o comportamento humano, não estará eventualmente pré-programado, como sucede c o m os animais.

N o entanto, a simples sugestão de que o comportamento do h o m e m , especialmente e m sociedade, poderia, e m parte, estar pré-programado por adaptações filogenéticas suscitou réplicas polémicas por parte dos defensores da doutrina mesológica, que acusaram os biólogos de refor­çar, com o seu «determinismo biológico», os princípios autoritários e conservadores que justificam o statu quo e incitam ao fatalismo, u m a vez que não é possível fazer nada para modificar as características inatas. M a s os especialistas de etologia repetem que o h o m e m é capaz de con­trolar, no plano cultural, todos os seus comportamentos, incluindo os comportamentos inatos, e que deve ser educado. Antes de analisar as incidências de u m a óptica mesológica rigorosa e m relação ao método do biólogo, gostaríamos de examinar a prova, na qual se baseia a nossa hipótese, de que o comportamento humano está e m parte pré-progra­mado .

Estudos do comportamento nos bebés

O recém-nascido possui u m reportório de esquemas motores funcio­nais. Assim, consegue m a m a r e procurar o seio por meio de movimentos da cabeça. Além disso, certas experiências mostraram que os bebés são capazes de responder a estímulos adaptando-se-lhes, sem qualquer experiência prévia.

Se apresentarmos a lactentes de 2 a 11 semanas, presos a u m a cadeira, silhuetas que aumentam de maneira simétrica, eles reagem c o m a apro­ximação de u m a colisão. Desviam a cabeça, protegem-se levantando as mãos e o pulso acelera-se. Reagem do m e s m o m o d o quando objectos volumosos se deslocam, efectivamente, na sua direcção. Por outro lado, se as silhuetas aumentarem de maneira assimétrica, como se passassem ao lado, nenhuma reacção deste género se verifica nos lactentes (Ball e Tronick, 1971).

T . G . Bower (1971) comenta estas experiências do seguinte m o d o : « A precocidade desta reacção é extraordinariamente surpreendente do ponto de vista tradicional. Penso até que estas conclusões constituem u m golpe fatal para as teorias tradicionais do desenvolvimento humano. N a nossa cultura, é pouco provável que u m a criança de menos de 2 semanas tenha sentido no rosto u m a pancada provocada por u m objecto e m movimento; por conseguinte, nenhum dos lactentes obser­vados durante este estudo tinha aprendido a recear u m objecto que se desloca e a pensar que ele possui qualidades tácteis. Podemos ape­nas concluir que, no h o m e m , existe u m a unidade primitiva dos sen­tidos, com variáveis visuais correspondendo a consequências tácteis e esta unidade primitiva é inerente à estrutura do sistema nervoso humano.»

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É evidente que nos encontramos na presença de provas bastante impressionantes da existência de mecanismos inatos de tratamento de dados, cujo significado teórico é considerável. Outros investigadores observaram alguns lactentes «petrificados» à beira de u m a falésia, o que mostra que o medo de cair é inato. Aos 2 meses a criança é capaz de reconhecer formas invariáveis, perante diversas transformações. Por exemplo, foi possível ensinar lactentes a manipular com a cabeça comutadores eléctricos fixados n u m suporte onde encostam a cabeça, obtendo como recompensa a presença de u m a pessoa que sorri. O sinal de aprendizagem era u m cubo de 30 c m de aresta, apresentado a u m metro de distância. Ora, os lactentes reagem raramente a u m cubo de 90 c m de aresta apresentado a três metros de distância, apesar da imagem retiniana ter a mesma dimensão do que a projectada pelo cubo de 30 c m situado a u m metro (Bower, 1966). A s crianças também possuem u m a aptidão inata para integrar impressões visuais e tácteis. Sabemos que u m objecto que escondemos atrás de u m biombo aí permanece. D e acordo com a teoria clássica, a criança toma consciência deste fenó­meno passando a m ã o por trás do biombo. Bower (1971) realizou u m a experiência durante a qual mediu as reacções de surpresa dos lacten­tes (aceleração do pulso) quando eram submetidos a diferentes ilusões de óptica. Projectou n u m écran objectos que eles tentavam alcançar. N ã o conseguindo agarrar o «objecto», manifestavam-se surpreendidos o que era testemunhado pelo ritmo do pulso. Por outro lado, quando tinham efectivamente possibilidade de se apoderarem de qualquer coisa, o pulso não registava nenhuma modificação. O lactente espera, por­tanto, poder tocar no objecto que vê. U m a vez que já reage assim aos 2 meses podemos concluir pela existência de u m a disposição inata tal que a impressão óptica prevê a impressão táctil.

«Estes resultados eram surpreendentes e interessantes. Mostravam que pelo menos u m aspecto da interacção olho/mão é inerente ao sis­tema nervoso» (Bower, p. 35), E m seguida, Bower considerou a pos­sibilidade de processos mais complexos programados no sistema ner­voso humano. N a presença de crianças muito pequenas, dissimulou objectos atrás de u m biombo que, e m seguida, retirou após intervalos mais ou menos longos. A s crianças não se mostravam perturbadas se verificavam que o objecto lá continuava. Por outro lado, alarmavam-se (como testemunhava a aceleração do pulso) quando o objecto tinha desaparecido, desde que o intervalo entre o momento e m que se colo­cava o biombo e aquele e m que se retirava não fosse muito longo. «Até m e s m o as crianças muito novas parecem saber que o objecto conti­nuava lá depois de ser dissimulado, mas , se a experiência se prolongar, esquecem-no completamente. Atendendo à reduzida idade dos indiví­duos e à novidade das condições do teste, é improvável que esta reac­ção necessite de ser aprendida» (p. 35), E m outros testes, Bower des­cobriu crianças de 8 semanas que prevêem o reaparecimento de objecto desaparecidos acidentalmente atrás de u m biombo. Revelam emoção se o objecto reaparece rapidamente ou se não reaparece nunca. N o entanto, parece não haver diferença na reacção da criança se e m vez de u m a bola aparecer u m cubo do outro lado do biombo. M a s são neces-

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sários movimentos b e m encadeados para que o olhar da criança possa acompanhar. C o m o é evidente, a identidade do objecto tem de ser aprendida.

A s experiências demonstram a existência no ser humano de meca­nismos inatos de tratamento de dados, apresentando, portanto, u m a grande importância teórica. Confirmam o ponto de vista de K . Lorenz, segundo o qual mecanismos inatos de desencadeamento estão na base de u m grande número das nossas estruturas de pensamento e atitudes.

O estudo das crianças deficientes

Grande parte dos nossos esquemas motores não estão presentes ao nascer. Assim, a maior parte das nossas expressões faciais desenvol-vem-se durante a ontogenèse. Estes esquemas motores serão o resul­tado de u m a aprendizagem ou dá-se u m a maturação? O s estudos sobre surdos e cegos de nascença fornecem u m a resposta a esta interrogação.

A s crianças surdas e cegas de nascença crescem na obscuridade e no silêncio. N ã o ouvem n e m vêem o que as outras pessoas fazem; se o conceito mesológico fosse verdadeiro, comportar-se-iam de m o d o dife­rente das que recebem estes dados. Examinámos estas crianças, filmá­mos o seu comportamento e observámos que têm, e m geral, as mesmas expressões faciais — sorriso, riso, choro, raiva, dentes cerrados, etc. — e nas mesmas condições que as crianças normais. A s crianças surdas e cegas sorriem quando a mãe brinca com elas, choram quando se m a g o a m e agitam o punho quando se zangam, para nos limitarmos a alguns exemplos. Poderíamos citar ainda o caso das crianças vítimas da talidomida, nascidas surdas e cegas, que n e m sequer tiveram possibili­dades de explorar o ambiente c o m o sentido do tacto, e que apresentam reacções análogas.

Pode, contudo, verificarle u m a influência externa, quando, por exemplo, a mãe recompensa os sorrisos com carícias afectuosas ou reconforta a criança que chora. Devemos contar c o m este reforço, mas são necessários, à partida, esquemas identificáveis de expressão facial. E m esquemas mais complicados de mímica, tais c o m o o compor­tamento associado à raiva, é difícil ver o efeito de u m a acção fortuita.

Os surdos e os cegos de nascença também revelam certas reacções sociais fundamentais entre as quais o medo de estranhos apresenta u m interesse particular. Apesar destas crianças nunca terem sido mal­tratadas por desconhecidos, distinguem pelo olfacto as pessoas fami­liares e as outras. Estas últimas desencadeiam o reflexo de medo. A criança esquiva-se e procura o contacto de u m a pessoa conhecida. Mais tarde, o medo dos estranhos transforma-se e m rejeição activa. Pode acontecer que a criança actue de maneira agressiva e repila a pessoa e m questão antes de se esquivar. T a m b é m podemos observar esta reacção e m crianças pertencentes a diferentes culturas. A tendência do h o m e m para viver e m grupos exclusivos e para dar provas de suspei­ção, ou até de hostilidade perante estranhos parece basear-se nesta disposição inata.

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A informação tirada do estudo dos surdos e cegos de nascença apre­senta u m grande interesse teórico, se b e m que limitado, tendo e m conta que muitos dos nossos esquemas de comportamento e m sociedade são desencadeados por estímulos auditivos e visuais. C o m o estas vias se encontram bloqueadas no surdo e cego de nascença, necessitamos de explorar outras vias para saber se esquemas de interacção social mais complexos pertencem ao nosso programa de comportamento adqui­rido pela filogénese. Para tal, estudámos o caso de cegos de nascença e procedemos a comparações entre culturas.

A o dirigirmo-nos a u m cego de nascença, podemos suscitar modos de comportamento complexos, como a timidez. Basta fazer u m elo­gio a u m a jovem para que ela enrubesça, baixe a cabeça, se desvie discretamente e, e m seguida, volte novamente a cabeça para o inter­locutor, sorrindo. U m rapaz cego de nascença, ao sentir-se emba­raçado, escondeu a cabeça entre as mãos.

A comparação entre culturas

ESQUEMAS MOTORES HOMÓLOGOS

A comparação transcultural baseia-se e m documentos filmados. Ainda recentemente, a documentação etnológica referia-se essen­cialmente a certos aspectos da cultura material e a manifestações como danças e cerimónias rituais Mostrou-se e m pormenor como os autóctones tecem tapetes, fabricam cerâmica ou constroem u m a cabana. M a s , para saber como as pessoas de diferentes culturas se cumprimentam, transportam os filhos, namoram ou discutem, pro-curava-se e m vão u m a colecção sistemática de documentos realizados ao vivo.

Estabelecemos, portanto, u m programa de documentação transcul­tural filmando pessoas, sem o seu conhecimento, por meio de teleobjec-tivas munidas de espelhos (para mais pormenores ver Eibl-Eibesfeldt 1973c, 1975o). N o decurso dos últimos dez anos concentrámos a nossa atenção nas culturas ameaçadas de extinção rápida, que nada tinham modificado no seu m o d o de vida original, escolhendo as que represen­tavam modelos por diferentes etapas da evolução cultural. C o m inter­valos regulares observámos os Bochimanes do Kalahari (!ko, G / W i , !Kung) que vivem da caça e da colheita, os Ianomani (Alto Orenoco) que começam a praticar a horticultura, os Eipos, os Biami e outros horticultores neolíticos da Nova Guiné, os Himbas (Kaokoveld/Sudoeste Africano) representando os pastores, os Balineses representando os orizi-cultores e muitos outros grupos. Filmámos essencialmente cenas mos­trando manifestações espontâneas de interacção social. Todas são acompanhadas por descrições que precisam o contexto (o que provo­cou a cena, o que se lhe seguiu e o que, entretanto, aconteceu) para permitir u m a análise comparativa ulterior. Evitámos, tanto quanto possível, ser selectivos, filmando sempre que u m a interacção se produ­zisse; por exemplo, quando as pessoas se deslocavam ou se dirigiam

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umas para as outras, sem saber antecipadamente se se tratava de u m a interacção de tipo amigável ou agressivo

Os estudos transculturais mostraram que u m grande número de esquemas motores se situam no m e s m o contexto e m toda a parte. É evidente que n e m todos podem ser considerados inatos. Experiências semelhantes efectuadas no início da vida da criança podem gerar u m comportamento análogo e m culturas diferentes. Se, por exemplo, o movimento de cabeça que significa «não» vem do acto de voltar a cabeça quando a criança recusa o seio depois de satisfeita, assim se explica que, e m muitas culturas diferentes, este sinal de cabeça se tra­duza por «não» T a m b é m devemos ter e m conta que as aptidões inatas para a aprendizagem oferecem, talvez, u m meio de aprender e m con­dições semelhantes no seio de culturas diferentes. U m certo número de factos, que examinaremos, comprovam a existência destas aptidões.

O facto de se encontrarem numerosas semelhanças nas diversas cul­turas pode explicar-se por u m a identidade de funções. N ã o existem muitas maneiras de se repelir u m adversário ou de lhe dar pontapés e, por conseguinte, se encontramos semelhanças e m várias culturas, não devemos aceitar automaticamente que existe u m património biológico c o m u m , m e s m o que seja esse o caso. E u pensava, por exemplo, que esconder o rosto quando nos sentimos embaraçados era u m gesto aprendido. A criança esconde-se atrás das mãos e julga — como não pode ver — que também não é vista. Parecia plausível que as crianças de outras culturas sentissem a m e s m a impressão, o que explicaria a universalidade das reacções. Desde que filmei o rapaz cego que tapava o rosto, já não estou tão certo de que este gesto seja adquirido. Para além destes casos duvidosos, existem muitos esquemas de comporta­mento cuja forma particular não é ditada pela função. Por exemplo, o sorriso exprime u m a intenção amigável, os gritos e o choro traduzem desgosto, a troça u m a forma particular de agressão. Trata-se aparente­mente de convenções filogenéticas, pois são transmitidas com poucas modificações evidentes, contrariamente às convenções manifestamente culturais que sofrem transformações rápidas, como a linguagem. N a Nova Guiné existem várias centenas de línguas faladas: com efeito, bastam algumas gerações para criar u m a nova língua. É a conformi­dade de pormenores que surpreende o observador.

A elevação das sobrancelhas constitui u m exemplo particular de comportamento transcultural que merece ser examinado. Observei que, e m culturas muito diversas, as pessoas que se encontram se cumpri­mentam do seguinte m o d o : levantam a cabeça por breves instantes, elevam rapidamente as sobrancelhas, que se mantêm nesta posição durante a sexta parte de u m segundo. Segue-se u m movimento de cabeça acompanhado por u m sorriso que pode preceder a elevação das sobran­celhas. Esta mímica reflecte surpresa —agradável, como indica o sorriso que a acompanha — e, portanto, u m a disposição favorável ao contacto. E o que podemos observar quando as pessoas se cumpri­mentam, tecem galanteios, afirmam a sua concordância, assim como e m outras situações que exprimem u m a disposição favorável ao contacto. Outros fenómenos de «ritualização» surgem quando a elevação das

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sobrancelhas, associada a u m olhar ameaçador, traduz desprezo. Neste caso, o interessado conserva as sobrancelhas elevadas durante o tempo de duração do confronto.

A s diferenças de ordem cultural têm influência sobre a frequência da elevação das sobrancelhas. Os Polinésios usam-na abundantemente. T a m b é m cumprimentam deste m o d o os estranhos e acompanham com este sinal u m puro e simples «sim». Os Japoneses, no entanto, abstêm-se entre adultos, pois esta mímica passa por ser incorrecta. Pode, contudo, ser utilizada com as crianças. Pela nossa parte, parece que nos encontramos n u m a situação intermédia. Servimo-nos deste sinal como galanteio, quando cumprimentamos os amigos mais ínti­mos e ainda quando testemunhamos a nossa concordância.

O esquema motor «elevação das sobrancelhas» é considerado pelos biólogos como «inato». A elevação das sobrancelhas é regularmente associada aos outros esquemas motores inatos tais como o sorriso, a elevação da cabeça e provavelmente também o abanar da cabeça, e apresenta-se-nos como u m elemento do programa dado.

Outro m o d o de comportamento que é u m sinal universal de afeição : o beijo. E m todas as culturas que estudei até hoje, observei que as mães apertam contra si e beijam as crianças, tanto entre os Papuas como entre os aborígenes da Austrália, os Japoneses, os Balineses, os Bochimanes, os Himbas, os Ianomani e muitos outros ainda. Segundo as culturas, este gesto é mais ou menos utilizado na comunicação entre adultos. E m algumas delas parece ser proibido, pelo menos e m público. T e m origem na alimentação de boca a boca e está ligado a comportamentos homólogos nos primatas não humanos.

Passemos agora a esquemas mais complexos. Já se afirmou que os mamíferos têm modos de comportamento tão diversos que não é pos­sível falar de esquemas imutáveis (Schenkel, 1947). Lorenz (1953) res­pondeu a esta argumentação mostrando que, se combinarmos vários elementos produtores de estímulos, e m graus diversos, desencadeamos no cão movimentos instintivos de raiva e de medo que se traduzem por diferentes mímicas. D o m e s m o m o d o , muitos jogos de fisionomia do h o m e m , que parecem variados à primeira vista, podem ser reduzidos a algumas «constantes» que se justapõem ou se sucedem alternada­mente. Consideremos, por exemplo, o comportamento de u m a adoles­cente tímida. Olha, baixa os olhos, desvia a cabeça, e m seguida eleva-a, espreita pelo canto do olho ou olha de frente. T a m b é m pode, nesta mesma situação, sorrir, mas de maneira crispada, serrando os maxilares, colo­car a m ã o e m frente da boca para dissimular o sorriso, tentar escon-der-se atrás de alguém ou de alguma coisa, ou agarrar-se e m busca de protecção. Pode piscar os olhos amigavelmente mas baixando imediata­mente o olhar para se furtar ao olhar do outro. Pode também olhá-lo, esquivando-se por meio de u m leve movimento do busto. Pode ainda manifestar u m a certa agressividade batendo com o pé, dando u m encontrão numa amiga que se encontre ao lado, gritando ou metendo os dedos na boca, roendo as unhas ou mordendo os lábios. E m suma, é evidente que dois tipos de reacção são suscitados simultaneamente: u m é u m sentimento de confiança, u m desejo de sociabilidade, e o outro

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u m sentimento de hostilidade que gera u m a atitude agressiva e vontade de fugir. Estas reacções coexistem ou sucedem-se; podem combinar-se de muitas maneiras e traduzir-se por todo u m conjunto de mímicas.

É , porém, muito fácil interpretar e classificar estes modos de c o m ­portamento m e s m o e m contextos culturais completamente diferentes. O que está de acordo c o m as conclusões de E k m a n , Eriesen e Ellswerth (1972) que apresentaram a indivíduos instruídos e a analfabetos foto­grafias de mímicas tiradas ao vivo e gravações de sons vocais. O s indi­víduos interrogados reconheceram quase sempre c o m grande exactidão as expressões de outras culturas.

CONVENÇÕES CULTURAIS E ESQUEMAS MOTORES INATOS

O s movimentos que acompanham o «sim» e o «não» são, por vezes, desconcertantes. Todos sabemos que existem variantes culturais, m a s abanar a cabeça para dizer «não» é certamente o gesto mais universal. Fihnei-o, entre outras, e m várias tribos papuas, entre os índios Iano-mani, os Bochimanes do deserto de Kalahari e os Himbas. Encontra­mo-lo u m pouco por toda a parte, m a s não é, de m o d o nenhum, a única maneira de exprimir u m a recusa. O s Gregos e muitos outros povos do Mediterrâneo e do Próximo Oriente dizem «não» atirando a cabeça para trás, fechando os olhos, muitas vezes inclinando a cabeça para o lado e, por vezes, levantando u m a m ã o , ou as duas, e m sinal de negação. Observa-se a m e s m a mímica e m muitas outras culturas quando se trata de exprimir contrariedade; assim, reagimos de maneira idêntica quando nos sentimos chocados por qualquer afirmação e a rejeitamos com u m a energia violentamente eivada de emoção. Este jogo de fisio­nomia é, no entanto, muito raro para significar u m «não» puro e simples.

Os índios Aioreos do Paraguai têm u m m o d o muito próprio de dizer «não». Franzem o nariz como se sentissem algum odor nauseabundo, fecham os olhos e, muitas vezes, fazem beiço. T a m b é m eles recorrem raramente a esta mímica para dizer muito simplesmente «não», m a s é verdade que, e m todo o m u n d o , u m odor desagradável incita as pes­soas a franzir o nariz e a fechar os olhos. Trata-se, na verdade, de impedir a passagem aos estímulos desagradáveis.

O s Eipos da N o v a Guiné têm duas mímicas para dizer «não». A b a ­nar a cabeça indica u m a recusa pura e simples, mas , nas relações sociais, a recusa traduz-se por u m a expressão de desaprovação. Fazer beiço também é u m a mímica universal para responder a u m insulto e inter­romper o contacto.

E m suma, é possível dizer «não» de muitas maneiras e podemos fazê-lo a partir de jogos de fisionomia que exprimem já u m a recusa por se ins­creverem no contexto de relações sociais, ou por traduzirem a vontade de eliminar u m estímulo ou de rejeitar qualquer coisa1. Neste último caso,

1. A experiência fornecida por Darwin já não é confirmada pelos dados actuais. O mecanismo motor de rejeição é muito comum entre os mamíferos e as aves.

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a quase total ausência de emoção permite exprimir u m «não» puro e simples melhor do que o poderiam fazer outras mímicas susceptíveis de ser consideradas ofensivas. Algumas culturas transformam-nas e m modos de expressão convencionais. Trata-se, então, de modelos uni­versais que adquirem u m sentido preciso depois de terem sido inte­grados n u m a cultura.

ANALOGIAS NOS PRINCÍPIOS

U m a comparação transcultural permite verificar que muitos esque­mas de comportamento se assemelham, mas esta semelhança não é tanto u m a questão de forma como de princípio. Muitos deles fazem parte do património hereditário do indivíduo, da sua bagagem filoge­nética. C o m o já dissemos, os animais e os seres humanos são dotados não só de u m sistema de coordenações motoras instintivas, como tam­b é m de u m sistema de resposta a certos estímulos ou a certas situações, que desempenha o papel de u m mecanismo de alarme e provoca com­portamentos determinados. N ã o é necessário nenhum condicionamento prévio, pois o animal possui, de certo m o d o , u m conhecimento inato destes fenómenos. Encontramo-nos e m presença de u m «mecanismo automático de desencandeamento».

Alguns dos nossos mecanismos de tratamento dos dados respondem a sinais provenientes de outros indivíduos. Os lactentes, por exemplo, apresentam u m certo número de particularidades que classificamos de «adoráveis». Refiro-me essencialmente às particularidades físicas como o tamanho desmedido da cabeça e m relação ao resto do corpo, as extremidades pequenas, a testa saliente n u m rosto minúsculo e olhos enormes. A s faces parecem agir como sinais. É muito fácil criar personagens «adoráveis», basta exagerar alguns traços. É o que fazem os caricaturistas (Walt Disney, por exemplo) que desenham animais «adoráveis» fazendo u m a cabeça enorme e m relação ao corpo. Todos os lactentes se assemelham e inspiram invariavelmente u m sentimento de ternura que exclui a agressividade. N ã o nos devemos surpreender com o facto de, e m muitos ritos de boas vindas, se apresentar u m a criança para indicar que se possuem intenções pacíficas. Quando os índios Ianomani são convidados para u m banquete levam consigo as mulhe­res e as crianças. A o entrar na aldeia, os visitantes executam u m a dança guerreira, organizam u m a parada brandindo arcos e flechas. Esta demonstração de agressividade é neutralizada pela dança de u m a criança que agita folhas de palmeira. Nas nossas civilizações, os visitantes de categoria são saudados por tiros de canhão (ostentação de agressividade) mas , simultaneamente, u m a criança oferece-lhes flores.

T ê m sido descritas curiosas exibições fálicas e m numerosos primatas não humanos para exprimir u m a ameaça. Quando u m grupo de macacos vervets está ocupado a esgravatar o solo, vários machos mantêm-se de guarda voltando-lhes as costas e exibindo os órgãos genitais.

C o m o é evidente o h o m e m não utiliza este processo de vigilância mas fabrica imagens de que se serve como espantalhos para proteger

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os campos e as casas. Estes espantalhos têm u m a expressão ameaça­dora e exibem o sexo. Encontramo-los e m todo o mundo , tal como as exibições fálicas são correntes e m encontros agressivos. Verificam-se, porém, diferenças de pormenor. Existem imagens deste tipo na Europa, na Ásia Tropical, na Nova Guiné, na América do Sul, e m África, etc., e são frequentemente utilizadas como amuletos; especialmente no Japão, onde se destinam a proteger o indivíduo.

E m situações de agressividade proferem-se ameaças fálicas directas. Pode tratar-se de u m a ameaça de agressão sexual expressa verbalmente ou com o auxílio de gestos. Os Eipos (tribo da Nova Guiné indonésica) quando são surpreendidos, batem repetidas vezes com o polegar na região púbica para atrair a atenção para a exibição fálica. Qualquer pessoa que, numa situação inesperada, sinta receio, adopta u m a atitude de rejeição. O s Eipos também pronunciam palavras sagradas que são, e m geral, tabus. Fazemos o m e s m o quando invocamos os nomes dos santos para exprimir espanto ou quando proferimos injúrias.

A ostentação dos ombros constitui outra interessante manifestação de virilidade. Os índios Ianomani ornamentam-nos c o m plumas, os Europeus e os Japoneses enchumaçam-nos, pois os ombros largos cor­respondem aos cânones da beleza masculina. Verifica-se que a linha pilosa que atravessa as costas do h o m e m desde o fundo até ao cimo, contrariamente ao que se passa com os macacos, termina e m tufos nos ombros dos indivíduos cujo sistema piloso é muito desenvolvido. É fácil supor que estes tufos eram ainda maiores nos nossos antepassa­dos, muito peludos, e que alargavam a silhueta. Trata-se certamente de u m fenómeno de adaptação à posição de pé, pois não o encontramos nos macacos superiores (Leyhausen e m Eibl-Eibesfeidt, 1975). Procurou-se substituir u m a particularidade congénita depois dela ter desaparecido quase completamente. T a m b é m a esteatopigia1 sublinha as ancas da mulher, o que é considerado, e m certas raças u m ornamento sexual e u m elemento de beleza. O facto da m o d a continuar a salientar esta parte do corpo por meio de laços, fitas, cintos, etc,, faz-nos pensar que esta particularidade se encontrava outrora muito mais espalhada.

ESTRIBILHOS VERBAIS

O vocabulário e a gramática utilizados pelas pessoas quando falam são certamente u m produto da evolução cultural. Parece, contudo, que as pessoas dizem, e m princípio, a mesma coisa n u m a situação dada. C o m o este domínio tem sido pouco explorado, pretendo chamar a atenção para ele. Quando as pessoas se cumprimentam trocam também algumas palavras. C o m e ç a m por exprimir solicitude: « C o m o tem pas­sado?» é u m a fórmula corrente. Existem outras fórmulas que traduzem u m a dádiva simbólica, u m voto de felicidade (bom dia!). Segue-se, e m geral, u m diálogo que não contém verdadeiramente informação factual. U m indivíduo dirá: «Que belo tempo que está hoje!» e o inter-

1. Acumulação de tecido adiposo ao nível das nádegas (sobretudo nas mulheres).

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locutor responderá u m a banalidade como: «Mas u m pouco de chuva não faria mal à agricultura!», e o outio retorquirá: «Lá isso é verdade!» N ã o é a informação trocada que tem importância. A m b o s sabem per­feitamente que está b o m tempo. M a s deram o sinal de que a via da comunicação está aberta e de que estão os dois de acordo. Deixar-se-ão c o m outro voto, outra dádiva verbal.

O h o m e m traduz e m palavras a maior parte dos seus comporta­mentos instintivos. A troca de presentes é u m costume universal, que corresponde a mecanismos semelhantes nos animais e devemos con­siderá-la u m a disposição inata. O h o m e m pode, contudo, dar u m pre­sente sob forma de desejo ou de promessa verbal. Para manifestar u m a preocupação, pode exprimi-la pela expressão do rosto, mas também pode utilizar palavras. Prefere recorrer a ameaças verbais do que com­bater o adversário. Atendendo à importância do papel desempenhado pelas «ritualizações» através da história, como, por exemplo, a substi­tuição de combates mortais por u m a cerimónias ritual, permitimo-nos pensar que se tem exercido u m a pressão selectiva sobre a linguagem à medida que esta tem evoluído.

Todos os indivíduos parecem pronunciar mais ou menos as mesmas palavras quando se irritam, quando se dirigem a u m a ente querido ou quando manifestam surpresa. Os termos afectuosos utilizados pelos pais («meu pequenino», «meu passarinho») têm o efeito de estreitar os laços que os unem aos filhos, enquanto a injúria aviltante («patife! canalha!») exerce u m a função de afastamento, de distanciação, para citar apenas alguns exemplos.

«Ritualização» cultural e biológica

A s «ritualizações» culturais e biológicas seguem a m e s m a via, u m a vez que as pressões selectivas sobre a acção e a pré-adaptação que fornece o ponto de partida são e m princípio as mesmas. Os sinais — e a ritualização diz respeito à evolução dos sinais — devem ser bem visíveis e transmitir o sentido sem ambiguidade ao indivíduo a quem se dirigem. A s conexões motoras, no decorrer da sua transformação pro­gressiva e m sinais, simplificam-se ao amplificarem-se (exageração das mímicas). A demonstração é sublinhada pela repetição ritmada. O ritual da aproximação amorosa que filmámos e já descrevemos (Eibl-Eibes­feldt, 1974) fornece-nos u m b o m exemplo Por vezes, os movimentos transformam-se e m gestos (ameaçadores, por exemplo). Os rituais biológicos e culturais partem muitas vezes de pré-adaptações semelhantes. Esquemas análogos desenvolvem-se, pois, independentemente uns dos outros.

A maneira como as armas ou os meios naturais de defesa são apre­sentados para significar que estamos animados de intenções pacíficas é a m e s m a entre os homens e entre os animais. Algumas aves voltam as costas ao adversário e olham para o céu para indicar que não têm intenções belicosas. A s cerimónias de apresentação de armas para desejar as boas vindas a u m visitante inspiram-se no m e s m o princípio.

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Oferecer alimentação a u m amigo traduz u m desejo de aproximação tanto entre os homens como entre os animais e constitui u m ritual que se desenvolveu paralelamente ao da troca de presentes. Poderíamos citar muitos outros exemplos (ver, a este respeito, Eibl-Eibesfeldt 1973a, 1975a). Existem leis derivadas de funções que regem estes desenvol­vimentos.

Perspectivas abertas: a biologia e os homens

Nos parágrafos precedentes estudámos as adaptações filogenéticas no comportamento humano, assunto que tem sido muito desprezado até hoje. Ainda não sabemos ao certo e m que medida o nosso comporta­mento social é programado, n e m como o é. M a s as adaptações filoge­néticas parecem ter aberto a via à competição social e explicam a dis­posição dócil de certos indivíduos, a intolerância perante os estranhos e a agressividade, assim como as tendências altruístas e o desejo de estabelecer contactos amigáveis, isto é, a nossa afectividade, no sentido mais geral do termo.

Se estas hipóteses se verificarem, deveremos concluir que somos for­çados a obedecer a todas as nossas pulsões instintivas? Q u e somos víti­mas impotentes? H á quem pretenda que a etologia, pela importância que atribui aos caracteres inatos, reforça doutrinas conservadoras como as que preconizam o imobilismo da sociedade. É verdade que a etologia corre o risco de ser mal interpretada. M a s os etólogos, para se defen­derem destes abusos, sublinharam por várias vezes que as adaptações filogenéticas estão longe de ter razão de ser. Assim como o nosso apên­dice perdeu a sua utilidade e subsiste como órgão supérfluo, também muitas das nossas tendências instintivas são talvez «apêndices». Somos, portanto, forçados a aceitar este lastro, este resíduo da evolução e, como «criaturas naturalmente culturais» (Gehlen, 1940), somos certa­mente capazes de o fazer. Enquanto os animais obedecem a pulsões instintivas e apresentam comportamentos minuciosamente programa­dos — o iguano, por exemplo, quando trava u m combate, evolui segundo regras imutáveis —, o que não acontece com o h o m e m . Este está ani­m a d o por pulsões e adapta-se a alguns esquemas de acção pré-deter-minados, mas dispõe também de u m sistema de respostas não condi­cionadas a certos estímulos. Além disso, certas regras morais parecem basear-se e m adaptações filogenéticas, mas o conjunto do comporta­mento humano não se encontra estritamente condicionado. É maleável, mas não infinitamente. Os condicionamentos culturais impõem limites a esta maleabilidade. N o entanto, como estes esquemas culturais variam de local para local, os homens souberam adaptar-se rapidamente a diver­sas situações mesológicas. A s pulsões agressivas ou sexuais de u m Esquimó não necessitam de ser dominadas como as de u m Masai ou u m citadino da nossa época. Além disso, podemos modificar os meca­nismos culturais de contrôle do comportamento quando considerarmos necessário, e é precisamente o que estamos a fazer. Actualmente, a opi­nião segundo a qual a criança não deve receber nenhuma directiva ganha

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terreno. Os programadores desta ideia consideram que se deve deixar o ser humano desenvolver sozinho. M a s , e m que base? A partir das suas tendências naturais? Estas são essencialmente determinadas por meca­nismos de pulsão. A pré-programação da evolução do h o m e m não é suficiente para abrir a via a u m a vida social harmoniosa. Temos neces­sidade de que nos transmitam mecanismos de controle culturais para nos podermos adaptar à sociedade. Se nos colocarmos nesta óptica, os defensores intransigentes dos métodos de educação não autoritários não poderão escapar completamente à acusação de se dedicarem a experiências muito levianamente. Parece paradoxal que os que atribuem tamanha importância ao papel do ambiente na formação da personali­dade humana não tenham e m conta as influências socioculturais no estabelecimento de u m a linha de conduta.

C o m o é evidente, não devemos permitir a estagnação das «fórmulas» culturais. É possível u m a modificação, mas o desenvolvimento cultural deveria, como a evolução biológica, processar-se por fases. Os ideólo­gos que pretendem romper a todo o custo a tradição arriscam-se a favorecer a sua destruição e não a sua evolução (ver também Lorenz, 1970).

É importante descobrir a natureza do h o m e m , a fim de evitar que a evolução cultural procure a sua via tacteando, pelo método das tenta­tivas e erros. O conhecimento íntimo das relações de causa a efeito, muito particularmente no que diz respeito aos factores de programação do h o m e m , poderá revelar-se u m dos mais úteis na procura dos remédios para a nossa existência visivelmente muito perturbada.

O s etólogos foram obrigados a enfrentar ataques por terem subli­nhado os factores biológicos determinantes do comportamento. Insisto, pois, no aspecto positivo de u m património c o m u m que nos fornece a base de u m a compreensão mútua. Se assim não fosse, as culturas comportar-se-iam como espécies diferentes e seria muito difícil superar os obstáculos à comunicação delas resultantes. O etnocentrismo não conheceria limites, moralmente falando. A humanidade continua a considerar-se incluída n u m a única e m e s m a família apesar da diver­sidade cultural, devido ao seu património biológico. N ã o é por os bió­logos não verem, ou não apreciarem, a beleza da diversidade cultural e racial, mas é para o poderem fazer plenamente, que devemos estimular o sentimento de unidade na diversidade e servir-nos do nosso património hereditário para desmontar o etnocentrismo.

Assim, parece-me difícil compreender porque é que os biólogos que sublinham a importância do nosso património filogenético são tão ata­cados e com tanta virulência.

C h a m a m o s a atenção para o perigo que apresenta para a huma­nidade u m dogmatismo mesológico demasiado rigoroso. Skinner, como já disse, considera que o comportamento do h o m e m é inteira­mente condicionado pelo ambiente e que tudo, incluindo a moral, é resultado de u m condicionamento. Segundo Skinner, as regras da moral são deduzidas das funções e o bem é o que contribui para a sobre­vivência de u m a cultura. M a s , quem pretender que o b e m corresponde à definição dada por u m a ideologia ou u m a cultura, dificilmente poderá

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esperar que os outros considerem normais as motivações que o ani­m a m . Sabemos que certas culturas elaboraram regras de conduta que exercem u m a pressão impiedosa sobre outras culturas e que, por vezes, originaram a sua extinção, o que parece provar a relatividade das regras de conduta promulgadas pelos homens. M a s , observando bem, aperce-bemo-nos de que estas normas culturais foram muitas vezes aplicadas a normas biológicas filogeneticamente desenvolvidas, que são pertença de todo o h o m e m e constituem o seu património c o m u m . O h o m e m «biológico», e m toda a superfície do globo, parece experimentar u m a viva repugnância e m matar ou maltratar u m dos seus semelhantes. Está programado para reagir a certos sinais que desencadeiam piedade, como a expressão ou os gritos de aflição de u m a criança. N o entanto, acontece que mata. O h o m e m «cultural» passou as normas biológicas pelo filtro da cultura e foi, assim, levado a desejar a morte dos inimigos do seu grupo. E m sua opinião, só os homens do seu grupo são homens verdadeiros, e situa-os e m destaque e m relação aos outros, que trata como sub-homens.

Pode, portanto, matar, mas , ao fazê-lo, encontra-se perante u m conflito; na verdade, se certas normas foram efectivamente aplicadas às normas biológicas, estas n e m por isso deixaram de existir, e conti­nuam a desempenhar o seu papel. O h o m e m não se emociona c o m a morte à distância de u m dos seus semelhantes, durante o bombardea­mento de u m a cidade, por exemplo. M a s experimenta u m sentimento de culpabilidade quando a morte ocorre n u m confronto de h o m e m para h o m e m . O próprio Freud tinha perfeitamente consciência deste interessante facto. Tinha verificado que e m muitas culturas os guerreiros que tivessem morto u m inimigo eram considerados impuros; deviam, portanto, submeter-se a ritos de purificação nos quais viam a manifes­tação de u m a m á consciência.

Nos últimos anos, os etólogos têm insistido e m sublinhar a unidade biológica do h o m e m que se opõe à sua diversidade cultural e na qual baseamos a nossa experiência n u m futuro melhor.

Tendo e m conta os trabalhos violentamente polémicos recente­mente publicados (Montagu, 1968; Hollitscher, 1973; Tobach e outros, 1974; Allen e outros, 1976), insisto e m sublinhar que os educadores, para quem o h o m e m é infinitamente maleável, correm o risco de ela­borar programas de educação desumanos. A esperança do h o m e m reside na educação e, por vezes, na repressão dos seus instintos. M a s , tendo e m conta os caracteres inatos do h o m e m , é possível evitar submetê-lo a frustrações inúteis.

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racism, sexism, militarism and social darwinism. Behavioural Publications, N e w York

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Niksa Nikola Soljan

Problemas de teoria e de política da educação na Jugoslávia1

A reforma da educação e m curso pretende, no essencial, trasnformar fundamentalmente as relações socioeconómicas e políticas na Jugos­lávia. A aplicação de u m sistema integrado de trabalho associado2

é u m dos elementos que exercem u m a influência directa sobre as modi­ficações introduzidas na educação. N o entanto, existe u m a interacção, educação e trabalho associado, e a educação pode contribuir para a edificação do sistema de trabalho associado, da qual constitui apenas u m a das partes.

Seria interessante estudar de m o d o aprofundado os aspectos sociais e ideológicos dos fundamentos teóricos da educação. Este estudo, essencialmente crítico, talvez contribuísse c o m novos elementos para as ideias e m vigor neste domínio abrindo novas vias à reflexão sobre o papel da educação na instauração de u m socialismo autogestionário na Jugoslávia3.

O s problemas da educação não podem continuar a pertencer uni­camente ao domínio da pedagogia: a educação prende-se cada vez mais c o m fenómenos sociais muito mais vastos. É por isso que é neces-

1. O presente artigo reproduz, completando-o, u m texto de introdução redigido para a conferência que se realizou e m Zagreb, e m Junho de 1976, sob o título «Problemas particulares da teoria da educação e do trabalho associado.»

2. A expressão «trabalho associado» é empregada e m servo-croata há alguns anos. Designa a fase mais recente do desenvolvimento das relações socioeconómicas e políticas ligadas à autogestão na Jugoslávia. «Trabalho associado: categoria fundamental do regime socioeconómico da Jugoslávia, incluindo: a propriedade colectiva dos meios de produção, o direito de trabalhar utilizando meios perten­centes a todos, o direito dos trabalhadores gerirem integralmente a produção, incluindo o direito de tomar decisões e m matéria de distribuição, o direito dos trabalhadores se associarem para defender os seus interesses económicos comuns, a integração directa dos meios de reprodução social, o direito inalienável à auto­gestão.» (Prática e pensamento sociais: glossário, p. 7. Belgrado, 1974).

3. N a Jugoslávia, a política da educação está largamente descentralizada, sobretudo desde 1973. N ã o existe actualmente nenhum organismo federal encarregado dos problemas da educação. O poder de decisão pertence, nesta matéria, às diversas repúblicas e regiões autónomas. N o entanto, ao nível destas últimas, a política da educação resulta cada vez mais do trabalho associado e da própria população, e cada vez menos do secretariado da instrução e dos serviços administrativos. Apesar da política da educação estar muito descentralizada, alguns problemas continuam a ser comuns ao conjunto do país.

Niksa Nikola Soljan (Jugoslávia). Departamento da educação, Faculdade de Filosofia, Universidade de Zagreb. Autor de: A s bases do ensino programado; O ensino apoiado por ordenador; O ensino programado e o ensino apoiado por ordenador: abordagem cibernética; Tecnologia da educação e educação permanente. (ed.) em servo-croata.

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sário abordar a teoria da educação sob vários aspectos: filosófico, socio­lógico, antropológico, psicológico, sociopsicológico, económico, etc. Procedendo deste m o d o , poderíamos, pensamos, superar u m estado de crise que se explica, e m parte, pelo facto de considerarmos as questões unicamente sob o aspecto pedagógico. Além disso, as transformações sociais, económicas e políticas actuais afastam a educação do meio fechado da pedagogia para a integrar no domínio do trabalho associado e da sociedade e m geral.

Durante o período do após-guerra, a teoria da educação na Jugos­lávia foi essencialmente marcada por abordagens normativas, prescri­tivas e descritivas, baseadas e m valores morais. A teoria pedagógica, apesar da herança incómoda da pedagogia burguesa, concentrava-se e m problemas como o conteúdo ideológico, a base de classe da educação, o comunalismo, o formalismo na educação, etc.

Mais tarde, a partir de 1950, a teoria da educação conservou o seu carácter normativo, paralelamente à introdução da autogestão na eco­nomia e nos serviços colectivos. Contudo, atendendo a que as relações de autogestão se desenvolveram a u m a cadência relativamente mais lenta nas actividades sociais do que nas actividades económicas, a educação e a instrução, nos anos cinquenta e sessenta, continuaram a ser acti­vidades de carácter social financiadas pelo orçamento ou por fundos de proveniências diversas. A educação continuava a ser considerada no contexto das despesas sociais.

N o início dos anos sessenta aumentou o interesse pelo estudo experi­mental e pelas aplicações práticas dos métodos novos, a fim de circuns­crever c o m precisão os fenómenos e os processos próprios da educação. A orientação para a investigação empírica, admissível no seu princípio, teve, então, tendência para assumir u m carácter de exclusividade cientí­fica: admitia-se apenas aquilo que podia ser apresentado sob a forma experimental e estatisticamente estabelecido como possuidor de valor científico. Simultaneamente, a forma substituiu o fundo: a perfeição técnica e metodológica ocupou o lugar do objectivo e do valor peda­gógico e social da investigação e do trabalho educativo.

C o m o a investigação experimental se aplica melhor aos processos de formação e de ensino, a atenção dedicada a este processo deslocou o seu centro de interesse, que deixou de ser a educação1. A educação,

1. Impõe-se u m a explicação para os leitores estranhos à Jugoslávia. E m servo--croata existem dois termos que designam o que o francês exprime pela palavra educação: odgoj (em croata) ou vaspitanje (em servo) e obrazovanje. Estes dois termos empregam-se, na maior parte das vezes, juntos. Para simplificar, digamos que odgoj (ou vaspitanje) diz respeito essencialmente ao domínio dos valores, e obrazovanje ao dos factos, do saber, dos conhecimentos práticos e técnicos. N o entanto, o termo odgoj emprega-se simultaneamente n u m sentido mais res­trito e n u m sentido mais lato, incluindo este último obrazovanje. Odgoj e obra­zovanje não possuem equivalente e m francês. Contudo, a fim de estabelecer u m a distinção entre estas duas palavras, na presente versão do nosso texto, traduzimos odgoj por educação (em inglês: education) e obrazovanje por formação (em inglês: training). Assinalamos ao leitor que esta tradução não é, certamente, inteiramente satisfatória, m a s é a melhor aproximação possível atendendo às diferenças de natureza e de emprego que existem nas duas línguas.

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entendida no sentido mais amplo do que a formação, e estreitamente ligada à socialização do h o m e m , viu-se, pois, progressivamente elimi­nada da investigação durante os anos sessenta e, circunstância agra­vante, a opinião segundo a qual a medida da educação — que conduz à dedução e à especulação — é u m a operação difícil que não apresenta as características de u m método científico.

C o m a orientação empírica da teoria da educação surgiram os primeiros efeitos da revolução científica e técnica. O súbito aumento da soma dos conhecimentos provocou o recuo dos limites dos progra­mas escolares e trata-se, agora, de adquirir o maior número possível de informações. Sob muitos aspectos, a formação substituiu a educação e limitou-se à aquisição de u m a certa quantidade de conhecimentos. N a filosofia da educação, actualmente reduzida à filosofia da formação, a quantidade é considerada o valor fundamental.

Simultaneamente, a teoria da formação e do ensino tentava explo­rar os resultados de investigações recentes sobre a capacidade da m e m ó ­ria a curto ou a longo termo, a fim de aperfeiçoar ao máximo os ins­trumentos de medida das informações armazenadas nos «bancos de dados» (ou seja, o cérebro dos alunos). Para tal, passaram-se testes «aferidos» e «não aferidos», utilizando a formação como medida, o que, na verdade, constituía nas nossas escolas, muitas vezes, u m a simples preparação para as provas. O fim da educação e da formação tornou-se, assim, o exame, e a única finalidade dos estudos a preparação para o exame.

Nestas condições, a teoria da educação procurou soluções na apli­cação dos conhecimentos científicos ao processo de educação. C o m e ­çou a considerar-se a educação, a formação, o ensino e a aprendizagem como processos que é possível dirigir, cujo controle e regulação podem ser assegurados. Assim, por u m lado, aplicou-se mais a cibernética aos fenómenos e processos pedagógicos e, por outro lado, a tecnologia da educação permitiu elaborar u m a tecnologia dos processos intelec­tuais da educação baseada na ciência do comportamento.

Sob estas duas formas, tentou-se, de facto, aperfeiçoar as técnicas de trabalho para, graças a u m a racionalização da transmissão, da recepção, do tratamento e da armazenagem da informação, melhorar os resultados da educação e da formação. M a s não nos afastámos nada do campo da tecnologia ou da tecnocracia, cujos únicos objectivos são a produ­tividade, a racionalização e o rendimento, com prejuízo para a educação no sentido lato do termo. Por outro lado, ao aplicar sem discernimento a tecnologia da educação, orientamo-nos para os princípios teóricos do neobehaviourismo contemporâneo. Nestas condições, o processo de educação tem por objectivo condicionar o jovem segundo métodos que têm o seu fundamento teórico na «ciência do comportamento», Esta, inspirada nos princípios da cibernética ou nos do neobehaviourismo, eleva a prática do condicionamento no meio educativo ao nível de u m a manipulação científica.

A orientação da teoria pedagógica para as questões de formação, as investigações sobre os problemas de formação, a elaboração e a aplicação de instrumentos de medida da aprendizagem, e o aumento

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do rendimento da educação graças à tecnologia educativa, deu origem a u m a mudança de atitude fundamental: foram as questões de forma­ção, de ensino e de instrução que monopolizaram a atenção, e m detri­mento dos problemas relativos à educação. C o m o consequência, atri-buiu-se pouca importância aos problemas de educação sob o aspecto teórico.

A democratização da educação teve, entre outras consequências, o aumento súbito do número de alunos e estudantes, primeiramente no ensino primário, depois no ensino secundário e, finalmente, no ensino superior. O subsistema da educação dos adultos baseado na teoria da andragogia constituiu-se independentemente. Cada u m destes subsiste­mas adquiriu a sua própria estrutura, os seus objectivos e a sua filoso­fia do comportamento.

O sistema escolar, estruturado como acabamos de indicar, conti­nuou a desenvolver-se e a funcionar da m e s m a maneira até aos nossos dias. A sociedade evolui, pois, para u m a forma de sociedade educativa de que a escola é o símbolo e cujo último objectivo é a aquisição do diploma que sanciona o nível e a extensão das capacidades, competência ou conhecimentos diversos do indivíduo. Esta orientação para a escola, para u m diploma, é muitas vezes motivada pelas vantagens reais que daí resultam na vida extra-escolar: u m lugar na divisão social do tra­balho, o rendimento que ele proporciona, u m certo nível de vida mate­rial e u m a categoria nas diferentes configurações sociais. A educação torna-se, assim, u m instrumento de produção social, u m valor que justifica u m investimento.

Estas características acentuaram-se com a introdução de valores mer­cantis no domínio da educação, e m particular no da educação de adultos e ao nível dos altos estudos universitários. A educação começou a surgir como u m b e m que se possui e que pode ser comprado; u m domínio cujo sentido decorre da categoria do «ter», e não do «ser» ou do «tor-nar-se», para parafrasear P . Lengrand i. A educação decorre, portanto, dos direitos do cidadão, é u m assunto pessoal, u m b e m que pode com-prar-se e vender-se no circuito da comunicação social.

N o rasto desta filosofia da educação, duas disciplinas adquiriram u m desenvolvimento particular: a teoria da educação dos adultos (andragogia) e a da pedagogia do trabalho industrial.

N ã o podemos afirmar, contudo, que a extensão alcançada por estas disciplinas tenha contribuído para a avaliação do «valor mercantil» da educação. Este resulta, pensamos, da realidade socioeconómica. Mais u m a vez, foi desprezada a dimensão da educação, dimensão que não pode, e m caso algum, estar ligada à oferta e à procura.

À crise da formação veio juntar-se a da educação. Procura-se sair da primeira considerando a educação u m processo que se estende por toda a vida. É , de resto, neste conceito de educação permanente que assenta o novo conteúdo da educação e m todos os domínios. Entre­tanto, salienta-se mais a formação, a informação e o saber do que a

1. P. L E N G R A N D , Introduction à l'éducation permanente, p. 60, Paris, U N E S C O , 1970.

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educação, estando aqueles aspectos ligados ao desenvolvimento rápido das ciências e das técnicas. Ainda não nos conseguimos libertar do modelo tenocrático da educação, cujo papel se limita, e m larga medida, a seguir e a adaptar inovações n u m a sociedade baseada no crescimento da produção e do consumo. Por muito permanente que seja, a educação continua a ser essencialmente utilitária.

Esforçando-se por clarificar a filosofia da educação permanente, a teoria pedagógica tem-se voltado também, nos últimos anos, para os problemas da auto-educação.

Desenvolveram-se sérios esforços no sentido de apresentar u m a aná­lise teórica dos métodos de auto-educação. T a m b é m neste caso pode­m o s afirmar que foi a auto-instrução, muito mais do que a auto-educação, quem continuou a reter a atenção. M a s o futuro oferece ao h o m e m gran­des possibilidades de formação permanente, possibilidades que só poderão realizar-se se existirem igualmente para além dos estabelecimentos de ensino de tipo clássico, para além das escolas.

Nos últimos anos a teoria da educação tem sido obrigada a enfren­tar tarefas imensas: e m primeiro lugar, introduzir u m conteúdo novo na educação, e para além dos programas escolares clássicos. A educação já não pode ser concebida unicamente dentro do quadro da escola. A educação extra-escolar e circum-escolar exerce actualmente u m a influência tão importante como a que se dispensa à escola, e este facto não pode ser ignorado.

Transformar a sociedade n u m a sociedade educativa1 é u m objec­tivo que não podemos deixar de subscrever. O que pressupõe, b e m enten­dido, que a educação deixe de ser considerada u m b e m que se possui e que surja como u m valor ao qual se acede por u m processo de trans­formação. Assim concebida, a educação transcende os limites de u m simples instrumento destinado a aperfeiçoar os meios técnicos de acção e de produção, ou a melhorar o funcionamento dos sistemas sociais. A educação impõe-se como u m valor e m si, não só porque preenche esta função essencial, mas sobretudo porque, ao participar, o h o m e m pode desenvolver o potencial nele existente, dentro de limites determi­nados pelas condições sociais e pelas suas próprias capacidades, fazendo desaparecer, deste m o d o , a alienação do mundo prisioneiro das relações socioeconómicas, do mundo das coisas e do m u n d o da cultura. A ques­tão fundamental da teoria da educação não consiste, pois, e m saber o que os homens podem fazer, mas e m saber de que espécie de homens se trata2. Até agora a teoria da educação preocupou-se mais c o m a pri­meira questão, desprezando os aspectos qualitativos associados à segunda: de que espécie de homens nos ocupamos?

Mantendo-se afastada do conteúdo fundamental da existência do h o m e m —conteúdo que constitui o sentido da vida humana, a sua

1. T . H U S E N , The learning society, Londres, Methuen, 1974. 2. B . D U C H O D O L S K I analisou brilhantemente estes problemas n u m artigo intitulado

«Alguns problemas filosóficos da educação permanente», e m N . N . S O L J A N (dir. publ.), Permanente obrazovanje (Educação permanente), p. 23-57, Split, Marko Marulió, 1976.

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orientação e os valores existenciais fundamentais — e baseando-se no estado e no desenvolvimento da teoria pedagógica nos outros países, a teoria da educação construiu o seu próprio sistema de pensamento e de acção, que, muitas vezes, ficou muito aquém das tendências reais da nossa sociedade. Consideramos que o tempo concedeu à educação u m lugar inteiramente novo na sociedade. É totalmente ilusório pensar que a educação, tal como está, acaba por modificar as condições socio­económicas. E m última análise, o inverso é que seria verdadeiro. N o entanto, m e s m o nas condições presentes, a educação pode ajudar a transformar a existência dos indivíduos e contribuir para o desapareci­mento da alienação no m u n d o do trabalho, das coisas e da cultura.

As hipóteses de que é necessário partir para eliminar esta alienação resultam do desenvolvimento ulterior das relações socioeconómicas e políticas de autogestão, na Jugoslávia; da integração do trabalho do h o m e m n u m sistema unificado de trabalho associado. Paralelamente, o papel da educação não se limita a contribuir para o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade e para o aumento do seu rendi­mento global, mas , contribuindo activamente para libertar o h o m e m da sua alienação, a educação deve também transformar-se n u m valor «independente», capaz de enriquecer o h o m e m durante toda a vida. A nossa situação permite-nos socializar a função educativa integrando os diversos aspectos da educação no conjunto do trabalho associado, a fim de os ligar a todas as fases da sua evolução cultural.

O controle da educação pelo trabalho associado — do qual a educação é parte integrante e não u m elemento estranho ao sistema, u m acrés­cimo vindo do exterior — vem realçar u m certo número de problemas teóricos e práticos que ainda não tinham surgido na teoria n e m na prá­tica da educação. É verdade que os clássicos do marxismo previram a evolução da sociedade e da educação e m condições e m que as relações socioeconómicas atingiram u m certo grau de desenvolvimento. A sua análise e observações sobre o elo que une a educação e o m u n d o do trabalho ainda nos são úteis actualmente, quando atribuímos u m con­teúdo novo à articulação e à reforma dos horários e dos programas de educação, de trabalho e de lazer. N o entanto, apesar de tudo, não se fez o suficiente do ponto de vista da teoria marxista, para clarificar os grandes problemas levantados pela articulação do trabalho e da edu­cação ou, n u m sentido mais amplo, pela integração dos diversos aspec­tos da educação no conjunto do sistema da produção e da reprodução sociais.

Apesar dos esforços realizados, podemos afirmar que os problemas fundamentais respeitantes à integração das diversas formas de activi­dade da educação n u m sistema unificado de trabalho associado ainda não foram resolvidos. A reforma da educação ou, mais exactamente, a sua transformação radical, está ligada a factores de ordem socioeco­nómica e política, porque, na Jugoslávia, não se trata unicamente de reforma pedagógica. A ciência da educação encontrou-se, como conse­quência, perante tarefas consideráveis que ultrapassam objectivamente os meios, muito modestos, de que dispõem os educadores, assim c o m o as capacidades científicas muito insuficientes do país neste domínio.

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Niksa Nikola Soljan

Ass im, se pretendemos transformar a educação n u m a função social, n o quadro conceptual de u m sistema unificado de trabalho associado, os teóricos de u m grande n ú m e r o de especialidades relacionadas c o m as ciências sociais devem participar, tanto mais que os problemas e m causa ultrapassam largamente as fronteiras da teoria da educação para atingir a filosofia, a sociologia, a política, a economia e outras disciplinas. M e s m o que os especialistas de fenómenos sociais mais vastos se tenham interessado anteriormente pela educação na medida e m que procuraram transformá-los n u m sistema integrado de trabalho associado, é talvez a primeira vez que a educação se apresenta c o m o u m assunto de estudo para u m tão importante grupo de teóricos. Facto mais importante ainda : estes fenómenos poderiam passar para a experiência da vida quotidiana do trabalho associado e m todos os domínios e a todos os níveis d o seu funcionamento. A teoria da educação poderia, assim, superar a dualidade que existe entre u m a acção muitas vezes fechada e m si própria e os impe­rativos da realidade social. Se não fizer este esforço, a ciência da edu­cação dará razão à sociedade que a critica cada vez mais por «subir a u m a montanha para parir u m rato» t e por se conservar, assim, afastada das grandes correntes desta sociedade, c o m o u m espectador sentado na eterna barreira do aparelho administrativo.

Nestas condições, é interessante estudar a relação existente entre a teoria e a reforma da educação. É evidente que, n o passado, a teoria da educação não se interessou, pelo m e n o s n u m a medida apreciável, pelos problemas de reforma. D e acordo c o m a ideia segundo a qual a reforma decorre d o domínio administrativo, a teoria da educação con­tinuou s e m influência directa e real sobre a reforma. A l é m disso, as reformas têm-se exercido sobre subsistemas escolares e, e m geral, têm sido aplicadas separadamente. Tratava-se, neste caso, de reformas da escola.

N a Jugoslávia, a última reforma não foi concebida unicamente c o m o reforma do sistema escolar, m a s c o m o reforma global integrada n o desenvolvimento essencial das novas relações socioeconómicas de autogestão. Quanto ao significado fundamental da instauração de rela­ções novas n o quadro do trabalho associado, é n o domínio de u m m u n d o estranho ao h o m e m que a devemos procurar. É por isso que, por meio da educação, p o d e m o s eliminar esta alienação, expulsando-a, e m pri­meiro lugar, do m u n d o da produção. Este processo reside n o controle do trabalho associado sobre a produção imediata d o rendimento social global e sobre a distribuição primária e secundária. Afastada, até agora, do contexto da distribuição primária, a educação manteve-se t a m b é m fora d o c a m p o de interesse do trabalho associado e da sua influência principal. É aí que, e m grande parte, p o d e m o s encontrar a resposta para este problema: até que ponto o trabalho associado assumiu o domínio da educação?

Atendendo a que as relações socioeconómicas alargadas se baseiam nas relações de produção e de distribuição, a teoria da educação expri-

1. L . E L V I N , «The place of educational research», Oxford review of education, 1975, vol. I, n.° 3, p. 193.

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miu necessariamente estas relações durante as diversas fases da nossa evolução socioeconómica e política. É nestas relações, condicionadas pela história e nela baseadas, que devemos procurar as verdadeiras causas das diferentes tendências de acção na teoria e na prática da educação. É possível exercer u m a influência maior sobre todos os processos da reflexão teórica relativa à educação e à prática pedagógica, actuando sobre as relações socioeconómicas fundamentais que se instauraram no quadro do trabalho associado e que estão muito afastadas do processo educativo clássico. A partir destas relações é necessário elaborar u m a teoria nova da educação na qual a educação seja considerada o pleno desenvolvimento do h o m e m n u m universo de cultura humanista no sentido lato, tendente, na sua acção, a superar a alienação no m u n d o da produção, no m u n d o das coisas e no m u n d o da cultura.

Estas relações fornecem simultaneamente a resposta às exigências de modificações dos sistemas de educação existentes, e de u m a educação que se conserva alheia ao sistema, resposta que estamos tentados a desig­nar por reformas. Deste m o d o , a reforma não se limita a u m a simples reforma escolar, adquirindo o sentido de u m a reforma social e da trans­formação do ser social. Se entendermos por reforma u m a modificação constante da qualidade das relações sociais, ela não poderá limitar-se a certos elementos ou partes do sistema, n e m reduzir-se a prazos estritos. Pelo contrário, deve ser essencialmente concebida como u m a reforma permanente da teoria e da prática da educação no seu conjunto, tendo a sua origem nas modificações qualitativas que se produzem no contexto mais amplo das relações socioeconómicas.

Desta maneira de abordar os problemas pode deduzir-se o verdadeiro sentido das investigações sobre educação que, devido à própria natureza do assunto, devem ser interdisciplinares. Admite-se que a investigação sobre a escola prosseguirá. N o entanto, esta tarefa liga-se fundamental­mente a u m a procura das melhores soluções na prática e na teoria da educação, considerando que formam u m a relação social completa. É evidente que, neste caso, o sentido destas investigações é inseparável das medidas de reforma e de u m a visão baseada no futuro. Trata-se de procurar novas vias de desenvolvimento, de estudar e de examinar solu­ções de recurso. Assim, as investigações sobre a teoria e a prática da educação deveriam atribuir às modificações, que designamos por reforma, u m carácter mais científico por meio de u m estudo empírico e experimental. Deveriam ainda libertar a reforma das improvisações voluntárias e de circunstância.

Neste ponto, os interesses do trabalho associado coincidem c o m os dos investigadores, dos teóricos e dos práticos, vindos (ou não) do m u n d o da educação, e c o m os esforços dos homens políticos que se ocupam directamente dos problemas da educação, e que, c o m o se compreende facilmente, estão cada vez mais vivamente interessados.

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Posições/Controvérsias

Crise da planificação e os limites do auxílio externo Manzoor Ahmed

Manzoor A h m e d (Bangladesh). Director adjunto dos estudos de estratégia da educação no Conselho Internacional para o Desenvolvimento da Educação (ICED), Essex, Conn. (Estados Unidos da América). Ensinou no Instituto of Education and Research da Universidade de Dacca. Autor de Economics of non-formal education: resources, costs and benefits e co-autor de Education for rural development: case studies for planners (com Philip Coombs), Attacking rural poverty: h o w non-formal education can help.

Gostaria de comentar os debates a que deu origem nesta revista o estudo sectorial do Banco Mundial sobre a educação; penso que a discussão tem sido dominada até agora por u m a controvérsia fútil sobre a interpretação de dados quantitativos respeitantes ao ensino primário e à alfabetização — controvérsia que corre o risco de desviar a nossa atenção de aspectos mais importantes do desenvolvimento da educação.

E m minha opinião, Williams tem u m a concepção de educação pró­pria de u m membro da profissão docente: identifica-a à escola, o que implica que o seu desenvolvimento depende sobretudo do da escolari­zação. O s autores do estudo do Banco Mundial partem de u m ponto de vista mais geral, onde a instrução extra-escolar entra também no sistema nacional de educação, mas , como seria de esperar, sentem difi­culdades e m definir até ao fim as implicações quanto às políticas e aos programas.

Não há motivo para satisfações

M e s m o que consideremos apenas o aspecto quantitativo e abordemos as estatísticas nacionais globais c o m o cepticismo que se impõe, é difícil ser menos pessimista do que o Banco e mais difícil ainda subs­crever os alegres prognósticos de Williams. Q u e m estiver de certo m o d o familiarizado c o m as estatísticas dos ministérios da educação sabe que as elevadas taxas de desistência e reprovação e a inclusão dos alunos «atrasados» podem falsear a interpretação da taxa de participação na perspectiva das aquisições utilizáveis, que o sistema incita a exagerar os efectivos assinalados no Gabinete Central de Estatística, que muitos são os alunos que, m e s m o após quatro ou seis anos de escola primária, são incapazes de 1er ou escrever (em geral, mais nas zonas rurais do que nas cidades), e que u m a parte dos que terminaram os estudos primários recaem rapidamente n u m analfabetismo total ou parcial. Acontece o

1. Ver e m Perspectives, vol. v, n.° 4, 1975 e vol. vi, n.° 2, 1976, os artigos de Peter Williams, Duncan S. Ballantine e A . S. Abraham.

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Manzoor A h m e d

m e s m o c o m as estatísticas respeitantes à alfabetização. Durante a minha recente estadia nas aldeias do Bangladesh pude observar que, apesar dos números oficiais segundo os quais mais de 60 % das crianças frequen­tam a escola primária e a taxa de alfabetização é de cerca de 20 %, apenas 10 % da população c o m mais de dez anos é capaz de 1er e escre­ver de u m a maneira «útil». N ã o há razões para pensar que o Bangla­desh constitua u m caso único sob este aspecto.

Diga-se de passagem que as objecções que Williams opõe firme­mente ao facto de se excluírem os alunos atrasados para calcular as taxas de inscrição não é sustentável. C o m efeito que sentido teria a taxa de inscrição se comparássemos todos os alunos do primeiro grau, independentemente da sua idade, n u m a base definida como a população de determinado grupo etário? É evidente que o cálculo estatístico desta taxa nada tem a ver c o m u m julgamento de valor sobre as inscrições tardias ou sobre os desvios de limite de idade. O que podemos afirmar é que, se u m sistema verdadeiramente maleável de educação de base fosse aplicado no conjunto de u m país, a taxa de inscrição por grupo etário não teria qualquer sentido, m a s esta situação não existe e m parte nenhuma.

U m falso problema

Atribui-se, erradamente, u m a extrema importância aos efectivos glo­bais— por que razão nos debruçamos tanto sobre as estatísticas? O problema não é esse. A generalização do ensino primário e da alfa­betização de adultos não produz o efeito de u m a varinha mágica sobre a vida da maioria rural pobre dos países e m desenvolvimento que se situam na parte inferior da escala (do P N B ou de u m índice composto hipotético de bem-estar). O facto de quatro grandes países pobres (Bangladesh, índia, Indonésia e Paquistão) registarem u m a taxa nomi­nal de inscrição de 60 a 70 por cento nas escolas primárias e de, no entanto, pertencerem à categoria dos países mais pobres e m que o nível de vida da maioria não difere muito do dos países cujas taxas de inscri­ção no ensino primário e de alfabetização são muito mais baixas, deveria abrir-nos os olhos. Estou intimamente convencido de que, nestes quatro países, o nível de vida dos pequenos agricultores e dos operários agrí­colas que constituem mais de metade da população não é mais elevado do que e m países mais pequenos. A diferença notável de taxas de inscri­ção nas escolas primárias e de alfabetização não modifica muito a questão.

É evidente que já não tentamos descobrir u m a ligação directa entre a taxa de inscrição e o nível de desenvolvimento e de bem-estar, mas os antigos hábitos intelectuais não se perdem facilmente. Deveríamos, no entanto, saber que o analfabetismo e a ausência de possibilidades de educação de base fazem parte da síndrome da pobreza e do desen­volvimento; é possível, c o m grande esforço e despesa, elevar a taxa de inscrição, mas este número n e m por isso terá u m valor prático. N a ver-

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Crise da planificação e os limites do auxílio externo

dade, para que serve saber 1er e escrever, se não há nada para 1er e muito pouco para escrever na vida de todos os dias?

U m desenvolvimento harmonioso

N a medida e m que reflectem a realidade, as estatísticas dos grandes países pobres indicam principalmente que só u m esforço de desenvolvi­mento socioeconómico harmonioso, que provocasse u m a modificação qualitativa importante nas condições de vida da maioria e assegurasse a todos u m mínimo de bem-estar, pode conferir u m sentido aos esforços empreendidos e m matéria de educação. U m esforço de desenvolvimento concertado e harmonioso nas frentes económica e social aumenta o valor e a utilidade da educação. E m vez de nos dar a impressão de que nos aproximamos a passos largos da educação universal, os progressos quantitativos (e a sua utilidade limitada) obrigam-nos a interrogarmo--nos sobre os meios de harmonizar o desenvolvimento da educação c o m outros aspectos do desenvolvimento e de aumentar a contribuição da educação para o conjunto dos esforços tendentes a melhorar o nível de vida.

É verdade que as estatísticas indicam também que u m amplo esforço tendente a alargar as possibilidades de educação primária e de educação de base pode ser justificado e apresenta hipóteses de sucesso, se fizer parte de u m programa determinado que transforme deliberadamente as estruturas da sociedade e se a educação for considerada u m instru­mento essencial deste processo (como nos primeiros anos que se segui­ram à revolução na União Soviética, na China, no Vietnam, e m Cuba e, talvez, na República Unida da Tanzânia).

E m vez de perguntar se os quatro grandes países não socialistas da Ásia consagram demasiada energia e recursos ao desenvolvimento da educação (o que significa «demasiado»?), seria preferível procurar saber porque é que, neste caso, o progresso quantitativo não parece contribuir nada para o melhoramento das condições de vida. É , por­tanto, necessário perguntar o que seria necessário fazer para tornar os esforços realizados e m matéria de educação mais compensadores neste aspecto e quais os ensinamentos que podemos tirar das situações e m que a educação (assim como outros esforços de desenvolvimento) teve u m a maior incidência.

É de esperar que os progressos da educação se reflictam nas estatís­ticas, mas n e m todos os melhoramentos apontados pelas estatísticas indicam que os objectivos e m matéria de educação e de desenvolvimento tenham sido atingidos. Dizer que «o aumento dos efectivos apresenta u m a importância vital, se pretendemos assegurar a igualdade de acesso à educação» (artigo de Williams, p. 492), é o m e s m o que fazer u m a petição de princípio.

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O desafio da planificação da educação

O estudo do Banco e os debates que suscitou não sublinharam a natu­reza do desafio que nos lança actualmente a planificação da educação — como ultrapassar os limites da abordagem sectorial e centralizada da planificação do desenvolvimento (incluindo o domínio da educação) e como introduzir judiciosamente u m elemento de educação vivificante e m processos de desenvolvimento regional integrado baseados nas prioridades e nas necessidades essenciais da maioria da população. Este desafio já vem de longe: a comunidade internacional não ignora, de m o d o nenhum, que é importante melhorar as condições de vida e assegurar a sobrevivência de u m a grande parte da população dos paí­ses mais pobres abordando os problemas tal como se apresentam na vida quotidiana e não e m função dos organigramas de u m a burocracia. N o entanto, embora estejam conscientes deste imperativo, os organis­m o s internacionais e os governos não estão à altura de promover u m desenvolvimento regional integrado, baseado nos desejos do h o m e m . O s mecanismos das instituições, a tradição administrativa, a formação e a experiência do pessoal e a maneira como são efectuadas as opções e as políticas e m matéria de desenvolvimento, tanto no seio dos governos como nos organismos internacionais, militam contra u m esforço tran-sectorial concertado desta natureza.

Examinando o desenvolvimento de aptidões e m meio rural, o estudo do Banco sublinha que «a educação» nas zonas rurais deveria estar inte­grada e m outras actividades de desenvolvimento rural à escala nacional e local» (p, 33). Indica igualmente que o Banco se propõe estimular «a integração da educação de base e m outros programas de desenvolvi­mento urbano ou rural» e favorecer «o melhoramento das capacidades dos gestores, à escala local, por meio de reorganizações administrativas e/ou actividades de formação» (p. 65 e 66). M a s como conseguir esta integração? D e que reorganização administrativa se trata e como se deve proceder? Que medidas pode tomar o Banco? Quais as eventuais consequências para o funcionamento, a organização e as políticas do Banco? N ã o é provável que u m estudo sectorial entre e m pormenores. N o entanto, gostaríamos de encontrar u m a indicação sobre os eventuais princípios de acção, e m especial na parte do estudo que trata dos pro­blemas de gestão e de planificação (p. 52 a 58).

N o exame dos problemas de planificação, depois de ter reconhe­cido os limites das abordagens baseadas no rendimento, por u m lado, nas necessidades de mão-de-obra, por outro, e de ter assinalado que o Banco continuará a recorrer à análise da mão-de-obra e m certos casos, os autores do estudo apresentam a «análise de grupo» como u m novo meio de abordar a planificação da educação. A análise de grupo e os estudos de trajectória, injustamente afastados da avaliação e da plani­ficação da educação, podem certamente ser úteis, mas não contribuem c o m nenhuma solução para os problemas cruciais que actualmente encontramos neste domínio. Parece que, apesar da retórica que envolve, a abordagem integrada do desenvolvimento e os sistemas de educação permanente à escala nacional, o m o d o de definir os problemas de plani-

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ficação da educação e de considerar a metodologia a empregar conserva ainda a marca da abordagem sectorial e da concepção estritamente escolar do ensino.

Alguns pontos deixados na sombra

N ã o existe certamente nenhuma fórmula simples que permita resol­ver o desafio da planificação da educação e do desenvolvimento.

Algumas questões merecem ser examinadas mais profundamente do que no estudo sectorial:

Por que é que vários departamentos do Banco —desenvolvimento rural e agricultura, população e saúde, indústria e educação— não trabalham e m conjunto e m determinadas regiões rurais de certos paí­ses pobres para realizar a promessa de M c N a m a r a no sentido de ajudar prioritariamente os que vivem e m estado de «pobreza absoluta» e para contribuir, nessa m e s m a ocasião, para o melhoramento dos conheci­mentos adquiridos e dos métodos utilizados quanto aos problemas de planificação, de organização e de gestão de u m desenvolvimento regio­nal integrado descentralizado?

U m a colaboração análoga c o m instituições especializadas das Nações Unidas e, eventualmente, c o m certos organismos bilaterais permitiria realizar u m a abordagem integrada, descentralizada e comportando medi­das educativas, concretizá-la por meio de programas respondendo às aspirações e às necessidades essenciais dos habitantes de determinadas regiões?

Que ensinamentos podemos tirar actualmente da participação do Banco e m certos projectos de desenvolvimento regional, por exemplo no Malawi (Lilongwe) e na Etiópia ( W A D U ) e que teria sido possível fazer para aumentar o contributo do elemento educação para estes pro­jectos?

Que modificações se impõem na organização, nas técnicas, no fun­cionamento, no pessoal, na política do pessoal, nos mecanismos de avaliação e estabelecimento de relações, etc., dos serviços de planificação e de administração do desenvolvimento aos níveis nacional e regional, se pretendemos incorporar os esforços de educação e m programas inte­grados de desenvolvimento regional?

Que assistência podem fornecer o Banco e outros organismos exte­riores para promover as transformações necessárias nos países benefi­ciários e que eco poderão encontrar nestes países?

Quais os obstáculos mais prováveis aos esforços externos tendentes a modificar o fundo e a forma da planificação da educação nos países beneficiários? Estarão o Banco e os outros organismos equipados para os ultrapassar e, caso contrário, que devem fazer para o estar — trans­formar as estruturas internas, formar novos peritos, modificar os m é ­todos de concepção e de avaliação dos projectos, elaborar novas formas de colaboração c o m os outros organismos, etc.?

É interessante notar que, pouco depois da publicação do estudo sectorial sobre a educação, o Departamento do desenvolvimento rural

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do Banco publicou, também, u m documento de política sectoriali. Este documento sublinha a importância do papel do ensino rural, que «deve estar ao serviço dos grupos beneficiários determinados e responder a necessidades reconhecidas», preconiza a integração do ensino rural e m outras actividades de desenvolvimento e cita u m estudo que reco­menda a descentralização da planificação e da direcção «de tal m o d o que as actividades pedagógicas possam ser efectivamente adaptadas às condi­ções e às necessidades locais» (p. 60 e 61). Examinando a organização e a planificação do desenvolvimento rural, os autores deste documento apontam a necessidade de u m mecanismo eficaz de coordenação no seio do governo central, da descentralização e da coordenação ao nível local e da participação da colectividade «na selecção, concepção, preparação e execução de programas de desenvolvimento rural» (p. 42). Estudam a aplicação do «método do mínimo indispensável» assim como do método global na execução dos programas de desenvolvimento rural e sublinham alguns dos perigos que comporta este tipo de desenvolvimento local, e m particular a concentração desproporcionada e deficiente repar­tição dos recursos e das competências e m zonas limitadas, assegurando vantagens a u m grupo reduzido (p. 54). O conceito de desenvolvimento rural está resumidamente explicado como se segue:

« E m nenhum caso os objectivos operacionais do desenvolvimento rural se limitam a u m único sector: trata-se, na verdade, de aumentar a produtividade —e , por conseguinte, os rendimentos— dos grupos indicativos e de assegurar a todos os mínimo e m matéria de alimentação, de habitat, de educação e de saúde. A realização destes objectivos exige que se coloquem mais bens e serviços à disposição da população pobre dos campos, que se criem instituições e que se elaborem políticas que permitam tirar plenamente partido de todos os serviços sociais e econó­micos (p. 20)».

N o entanto, o programa de empréstimos a favor do desenvolvimento rural, tal como o documento estipula, baseado quase exclusivamente na produção agrícola, não reflecte esta visão global do desenvolvimento rural. Até m e s m o os projectos ditos de «novo estilo», que o departa­mento lança actualmente, só diferem dos antigos projectos agrícolas na medida e m que tentam conjugar diversos serviços e factores de pro­dução agrícolas e atingir prioritariamente os pequenos exploradores. O Departamento do desenvolvimento rural parece ter melhorado a integração dos diferentes elementos do desenvolvimento agrícola, mas ainda hesita e m incorporar nos projectos outros aspectos do desenvol­vimento rural. Assim, a inclusão de elementos sociais, de serviços fun­damentais destinados aos mais desfavorecidos e a criação de estruturas institucionais e de serviços locais de desenvolvimento rural integrado são ainda u m a excepção m e s m o nos projectos de «novo estilo».

Estes comentários não se referem a todos os méritos do documento de política sectorial respeitante ao desenvolvimento rural, que é inte­ressante sob muitos aspectos, m a s que não satisfaz os leitores sedentos

1. Banco Mundial, «Desenvolvimento rural — politica sectorial», Washington D. C , 1975.

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de nele encontrar sinais de iniciativas ousadas tendentes a integrar as actividades e m curso a favor da educação e do desenvolvimento e m geral n u m a planificação descentralizada adaptada às necessidades.

Constitui certamente u m a prova de que até m e s m o os organismos internacionais exprimentam dificuldades e m promover o desenvolvi­mento integrado, o facto de nenhum dos dois estudos mencionar as incidências das políticas e das actividades de u m departamento sobre o programa do outro, n e m u m a eventual colaboração interdepartamental — como se os dois departamentos e os documentos que têm respecti­vamente publicado se cruzassem nas trevas, ambos indiferentes à pre­sença do outro.

Os limites do auxílio externo

Muitos leitores pertencentes aos países que beneficiam dos emprés­timos do Banco concordarão certamente c o m Williams, segundo o qual o estudo do Banco pressupõe a existência de possibilidades de acção que o Banco poderia explorar, se não se verificasse resistência por parte desses países (Williams, p . 489).

Estaria de acordo c o m Williams (p. 503) ao pensar que os autores do estudo subestimam o problema que consiste e m fazer aceitar a ideia de u m a educação de base nos países de recursos reduzidos enquanto existir u m sistema paralelo de escolas primárias. N o entanto, tenho a impressão de que não se aperceberam da natureza fundamental do conflito existente n u m sistema duplo. N o s países que possuem estrutu­ras socioeconómicas fundamentalmente injustas e que se prestam à exploração (a maior parte dos países de fracos recursos entram nesta categoria), a existência de sistemas paralelos de educação de base e de ensino primário institucionalizado corre o risco de favorecer o estabe­lecimento e o reforço desta exploração. É possível elaborar várias estra­tégias destinadas a aumentar as possibilidades de educação de base para todos graças a u m sistema nacional unificado (mas não necessariamente uniforme e centralizado) e conviria que o Banco Mundial e outros orga­nismos externos estudassem o que poderiam fazer para ajudar os países beneficiários a conceber e aplicar essas estratégias. U m a vez que as opções e as decisões competem aos próprios países, o mínimo que os organis­m o s externos poderiam fazer era absterem-se de ajudar a consolidar e a legitimar, deliberadamente ou não, o dualismo social que os carac­teriza.

Alguns aplaudirão também as reservas que Williams formula quanto ao optimismo c o m o qual o Banco considera o aumento dos emprés­timos a favor da educação de base e do ensino primário O s obstáculos ao desenvolvimento da educação de base, e m particular se ela for inte­grada nas actividades de desenvolvimento local, não se referem tanto à falta de recursos financeiros como ao facto dos objectivos e das priori­dades de desenvolvimento não reflectirem as necessidades da maioria, e das instituições e estruturas entravarem os esforços de desenvolvi­mento integrado descentralizado. Devemos ainda evitar que o auxílio

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extemo concedido à educação de base incite os países a adiar o momento e m que deverão fazer opções determinantes e m matéria de educação, atrase os esforços de mobilização dos recursos internos, favoreça estru­turas de custos inaceitáveis a longo termo e reforce o dualismo exis­tente na sociedade. N ã o se trata de fazer o processo do auxílio externo, mas simplesmente de sublinhar os seus eventuais limites.

M a s os pontos que aqui evocamos não acompanham, de m o d o nenhum, o principal argumento de Williams, isto é, que o problema da educação de base e do ensino primário nos países pobres está quase resolvido. T a m b é m m e é muito difícil compreender porque é que Wil­liams ironiza assim — e creio que os responsáveis políticos e os plani­ficadores dos países pobres estão, como eu, surpreendidos— c o m o facto do Banco defender propostas destinadas, por exemplo, a desen­volver aptidões de maneira selectiva e m função de imperativos especí­ficos e urgentes, a definir de u m ponto de vista funcional os objectivos e o conteúdo da educação de base como as «necessidades de instrução minimal» e a dispensar a educação de base sob formas diferentes nos diversos países, de acordo com as necessidades das pessoas que se dirigem e c o m as imposições resultantes dos recursos disponíveis (Williams, p. 502). Williams não pode ignorar que existe u m fenómeno designado por limitação dos recursos, exigindo u m a planificação que requer opções colectivas quanto ao que pode ser realizado e ao que não o pode. A s teses de Illich a favor de u m a espécie de livre empreendimento no domínio da educação trarão a marca de u m preconceito ocidental?

U m a observação para terminar: para retomar a metáfora de Wil­liams, os peregrinos que sobem ao monte Olimpo para confessar os seus pecados nem por isso trazem aos seus semelhantes a boa palavra e m matéria de educação. Esta analogia pitoresca atribui demasiada importância ao auxílio externo e m prol do desenvolvimento da educação nos países pobres, embora não fosse essa, certamente, a intenção de Williams.

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O livro para crianças e os direitos do h o m e m Marc Soriano

M a r c Soriano (França). Professor de literatura francesa contemporânea na Universidade de Paris VII e de Metodologia das ciências sociais. Especializou-se na investigação interdisciplinar das ciências humanas a partir das literaturas funcionais e da pedagogia dos meios audiovisuais e da leitura. Em particular, autor de: O s contos de Perrault, cultura erudita e tradições populares; Guia da literatura para a juventude.

Grande esperança ou grande ilusão?

O livro representou u m verdadeiro salto qualitativo e m relação à inven­ção da escrita ou até m e s m o e m relação às oficinas de copistas que, no fim da Idade Média, aumentavam de maneira notável o número de manuscritos e m circulação

A relativa fragilidade do suporte, que poderia ter desvalorizado a mensagem, contribui, pelo contrário, para a enriquecer. Reduzindo o preço, ela permite u m a multiplicação e u m a dispersão teoricamente infinitas do texto, o que o torna indestrutível. Simultaneamente, encon-tram-se instauradas melhores condições para u m a aprendizagem insti­tucional das técnicas de «decifração» : alargamento das camadas sociais abrangidas pela escolarização, utilização de manuais, emulação, etc. A partir daí generaliza-se a esperança de que o livro se torne u m ins­trumento privilegiado para inculcar no h o m e m a ideia dos seus direitos e o desejo de os defender

É b e m verdade que o livro desempenhou, mais ou menos claramente, este papel. Primeiramente ao nível dos artistas, dos pensadores e, mais geralmente, daqueles que designamos por «intelectuais». A o «massifi­car» o seu público, o livro obrigou-o não só a procurar verdades admi­tidas aqui e além, como também a expô-las da maneira mais clara pos­sível, a ter e m conta, na própria investigação, os centros de interese da «maioria», isto é, a orientar-se para a universalidade e a objectividade.

A o nível do público, a leitura permitiu novas relações que não exis­tiam nas comunicações de via oral. A informação que contém a mensa­gem escrita, encontrando-se exposta e situada c o m precisão n u m espaço (o do livro), torna-se referenciável e disponível a todo o momento , o que evita o recurso incessante à experiência ou à memória e representa u m a apreciável economia de tempo. Deste m o d o imensos campos, antigos e recentes, se abrem à reflexão e à investigação

O leitor dispõe ainda da possibilidade de reduzir ao seu ritmo, para as compreender, as ideias que lhe são propostas, de interromper a lei­tura para fantasiar ou reflectir, sem ceder à «magia» da palavra que força a adesão no seu fluxo.

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O s leitores que atingiram o nível da leitura «corrente» têm também acesso aos prazeres da «identificação». Apesar da sociedade que limita as suas virtualidades, tornam-se tão inteligentes, tão aventureiros como o criador nos seus momentos de «inspiração».

Esta análise abstracta poderia justificar-se c o m numerosos exemplos históricos. Limitar-nos-emos a duas observações que nos remetem para investigações já clássicas, por exemplo as de Lucien Febvre e H.-J. M a r ­tin, sobre a difusão da imprensa ou as de Emmanuel Le R o y Ladurie sobre a cultura e m meio camponês.

É muito provável que o protestantismo, sem a imprensa, tivesse con­tinuado a ser u m a heresia semelhante a tantas outras. Graças ao livro e à reflexão que ele permite, o pensamento de Luther ou de Calvino sobre a graça e o destino propagou-se c o m o u m incêndio, tornou-se revelador de oposições económicas, políticas e sociais.

Por intermédio do livro, constituiram-se também, entre o século xvii e o século xviii, verdadeiros «viveiros» de pessoas informadas, de espe­cialistas da reflexão. «Tradicionais» ou «anexados», segundo a termi­nologia de Antonio Gramsci, estes «intelectuais», ao serviço de quadros administrativos no poder, transmitem, conscientemente ou não, ideias novas ou, desenvolvendo as letras, as artes e as ciências, contribuem de certo m o d o para a tomada de consciência das massas trabalhadoras. É assim que, na Europa Ocidental, a conquista dos direitos do h o m e m e, de u m m o d o geral, a democratização, surgem, no fim do século xviii e mais nitidamente ainda no início do século xix, ligadas à alfabetização.

Esta grande esperança no livro nunca se exprimiu tão directamente — ou tão ingenuamente — como na literatura destinada à juventude. Para nos limitarmos ao século xix, isto é, à época e m que se constitui, na maior parte dos países da Europa Ocidental, u m a «literatura infantil» específica, impõe-se rapidamente a ideia de que o estado de adulto não é favoráveis à educação e que é preferível dirigir-se às crianças, mais maleáveis.

Esta preocupação ideológica temperada c o m u m desejo de eficácia encontra-se, mais ou menos explicitamente, na maior parte daqueles que se vão interessar pelo livro para crianças, editores c o m o Hetzel ou Hachette, ou ainda escritores como Collodi e D e Amicis, Sophie Rosto-pchine, condessa de Ségur, Hector Malot, Júlio Verne ou Selma Lager-löff. Tanto nuns como nos outros se distingue, e m filigrana, o projecto de u m texto ideal, livro de leitura romanceado sobre o qual se debru­çariam crianças e pais e que serviria tanto de informação c o m o de pra­zer, dando-lhes u m a ideia da sua terra, das suas tradições, dos seus direi­tos e deveres.

Ora, esta esperança — a salvação pelo livro e pela alfabetização — surge rapidamente como u m a ilusão. A alfabetização progride, o livro conquista importantes posições, sem que, entretanto, se reconheçam melhor os direitos do h o m e m . Outro dado singular do problema: novos meios de expressão e de difusão do pensamento se impõem, os

1. Les intellectuels et Vorganisation de culture, Einaudi, 1953; última tradução francesa, Gramsci dans le texte, Paris, Editions sociales, 1975.

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media audiovisuais, que informam c o m menos despesa, mas que, parece, alimentam a passividade do público. Ora, estes media parecem entrar e m conflito c o m o livro e contribuem para u m a espécie de «desalfabe-tização».

Daí a situação paradoxal que caracteriza este «após-guerra» : as leis escolares votadas sob pressão dos trabalhadores abrangem camadas cada vez mais amplas da população, mas esta «exploração escolar» não conduz ao aumento espectacular da leitura n e m a mais progressos decisivos na difusão dos direitos do h o m e m .

Esta desilusão não poupa as instituições internacionais nem, e m par­ticular, a U N E S C O . O s peritos que ela agrupa são, sem dúvida, muito cultos e b e m intencionados. M a s , dedicando tanta atenção aos problemas da educação, da informação e do livro, surgem como generosos fanta­sistas, atingidos pelo idealismo dos revolucionários de 1793 ou de 1848 e convencidos de que boas constituições e mais particularmente boas leis escolares serão capazes de transformar a natureza humana.

Esta ilusão adquire u m aspecto particularmente paradoxal no sector do livro para crianças. N a Europa Ocidental, por exemplo, a edição deste tipo de livros proliferou. Artesanal no século xix, tornou-se u m a indús­tria essencialmente regida pela lei do lucro maximal, intervindo o inte­resse da criança apenas como u m dado entre outros nos «estudos de mer­cado» baseados essencialmente na exploração dos gostos existentes. Resultado : u m mercado invadido por u m a produção de série, estereoti­pada, que se apresenta como literatura de «puro divertimento» e cujo valor educativo é medíocre ou sujeito a caução. Perante estes empreen­dimentos tentaculares, constituiram-se outros, mais pequenos e muitas vezes inspirados n u m a pedagogia de ponta ou e m preocupações ideoló­gicas, políticas e confessionais. Produção interessante, muitas vezes de nível elevado, mas que, exigindo esforço do público, beneficia de u m a audiência limitada. Neste domínio, como e m outros, o m a u sobrepõe-se ao b o m . Os livros repetitivos, inteiramente baseados no «suspense» e a ele reduzidos, aumentam a passividade do público e contribuem para o orientar para meios audiovisuais que lhe proporcionam, não esqueçamos, gratificações imediatas (o que não sucede c o m o livro que exige, para transmitir o «prazer do texto», u m a longa aprendizagem). Simultaneamente, desenvolvem-se formas de expressão intermédias a meio caminho entre a imagem e o texto, bandas desenhadas ou roman­ces ilustrados. N o final de u m a evolução que se processa à nossa frente a própria palavra livro m u d a de sentido. Pode significar, não o que designou durante séculos, m a s o que traduz já para milhares de crianças e de jovens : u m a série de imagens ligadas e organizadas e m sistemas, enquadradas e centradas n u m a óptica cinematográfica, e m que o texto, expressivo, sem dúvida, mas encerrado e m «balões», representa u m a proporção muito reduzida da mensagem total.

M a s , sendo assim, que resta das grandes esperanças que os nossos antepassados, e até os nossos pais, tinham colocado no livro e na alfa­betização? Que pensar também dos esforços obstinados de certos indi­víduos ou de determinadas organizações internacionais ou nacionais, como o I B B Y , a Biblioteca Internacional de Munique, a de Liège ou

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a de Clamart que se esforçam por unir editores, autores, ilustradores, educadores, pais, etc., e procuram melhorar e defender a literatura para a juventude? Ingenuidade ou álibi?

U m certo número de ciências humanas poderia ajudar-nos a sair deste dilema. N a verdade, u m livro começa por ser u m texto e diz res­peito, portanto, às ciências da linguagem: linguística, semiologia, semió­tica. A sua mensagem situa-se também na história, na das ideias e tam­bém na das sociedades. Finalmente, u m livro é u m a obra de arte que fala à razão, e também a esse inconsciente que a psicanálise procura explorar. Texto, contexto, intenção. Necessitamos, pois, de voltar aos dados fun­damentais do problema, mas corremos o perigo de cair e m generali­dades. Para evitar este risco, proponho-me, nestas reflexões, centrar a minha investigação sobre u m único eixo e sobre u m problema restrito que m e obrigará a voltar ao concreto. Será possível, será viável, neste ultimo quarto do século xx, confiar a u m livro (ou a u m a série de livros) a tarefa de inculcar e m crianças «valores humanitários»? Este livro existe ou será necessário escrevê-lo ? A que idade ou a que idades pode ou deve destinar-se? É sempre o m e s m o , adapta-se a culturas diferentes, inde­pendentemente dos desenvolvimentos desiguais dos diversos países ou deverá ser diferente para corresponder a exigências diversas? C o m o conceber a sua difusão? Deve ser confiada a u m a organização privada, nacional ou internacional? Estes problemas, por muito vastos que sejam, não são gratuitos n e m abstractos. O tipo de livros que estamos a tentar descrever talvez já não exista, mas existiu. E m diversas épocas, e m diver­sos países, publicaram-se obras que correspondiam muito exactamente às necessidades das crianças a que se destinavam e que, simultaneamente c o m o prazer, lhes proporcionavam u m a consciência mais clara dos seus direitos e dos dos outros. Cuore de D e Amicis, por exemplo, talvez tenha envelhecido, mas representou, e m 1886, u m a excepcional e gene­rosa abertura sobre o pensamento socialista. O m e s m o podemos dizer de Huckleberry Finn, de M a r k Twain, que, ainda hoje, representa u m esforço válido para escapar à óptica racista. O tipo de livro que procura­m o s descrever existiu pois. Resta descobrir e m que condições estes livros, ou outros do m e s m o tipo, seriam eficazes, u m a vez que o contexto histórico parece ter mudado profundamente.

A clarificação das ciências humanas

M a s , e m primeiro lugar, o que é u m livro para a juventude? A semio­logia permite-nos eliminar u m a série de pré-requisítos que poderiam não ser aceites.

U m livro para a juventude é u m a mensagem, u m a comunicação histó­rica entre u m adulto de u m a determinada sociedade e u m destinatário criança, pertencente à m e s m a sociedade e que, de certo m e d o por defi­nição, não dispõe ainda de conhecimento, da experiência do real e das maturações afectivas que caracterizam a idade adulta.

Para que a comunicação se estabeleça, é necessário e, e m suma, suficiente, que entre o locutor e o destinatário exista u m código c o m u m

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e que este código se refira à realidade histórica. É , portanto, absoluta­mente impossível abstrairmo-nos das situações concretas que regem não só as descrição como também a escuta. Esta análise evita-nos a ilusão de pensar que inventámos o problema. N a realidade, o adulto tentou necessariamente estabelecer u m a comunicação c o m as crianças da sua sociedade ainda muito antes da invenção da imprensa ou da escrita, para lhes transmitir a sua concepção dos deveres e dos direitos. Antes de adquirir as formas que conhecemos, esta mensagem utilizou outros circuitos de comunicação, por exemplo, o da tradição oral ou o das danças e dos jogos. Esta nova mensagem que procuramos formu­lar — u m livro finalmente eficaz — não deverá ser situada para além do espaço e do tempo, u m a vez que as crianças a que se destina existem n u m determinado tempo e espaço. Pelo contrário, será útil situá-la n u m a tradição, o que a fará beneficiar da experiência desta tradição, valori­zando simultaneamente o que contém de novo.

Destruímos, assim, a ilusão de u m livro único, que poderia ser ope­ratório n u m determinado país e n u m a determinada época. A estrutura do nosso corpo ou do nosso espírito é certamente universal, o que signi­fica que, como Sartre afirma magistralmente, «qualquer h o m e m vale o m e s m o que eu»; mas , desde que nasci, nunca mais deixei de ser elabo­rado e transformado pela minha história pessoal e pela do m e u país. Assemelho-me a todos os homens, mas , simultaneamente, transformo-- m e n u m indivíduo que não se assemelha a nenhum outro, e pertenço a u m grupo, mais ou menos extenso, que tem necessidades específicas. A universalidade da nossa razão e a da nossa consciência, se algum dia existirem, terão sido conquistadas.

N ã o nos devemos deixar induzir e m erro pelo caso, muito complexo, dos «clássicos» que, finalmente, criam o seu público. São, e m geral, obras fortemente enraizadas e m terrenos restritos (basta pensar, por exemplo, nas relações entre Pinóquio e o folclore florentino) e, devido a esta especificidade, provocam no jovem leitor o desejo de procurar as suas próprias raízes ou de descobrir outras.

Outra conclusão que nos permite esta breve incursão nas ciências da linguagem: o tipo de livros que procuramos, se existir, só pode nascer e difundir-se no meio educativo a que a criança está habituada. Os melhores artesãos deste tipo de livro devem ser procurados não n u m meio artificial de «generais sem tropas» (teóricos da pedagogia, «peritos» e m todos os géneros que encontram sempre as soluções que convêm a todas as situações possíveis) mas entre os educadores, investigadores e artistas dos vários países, pois são os únicos que conhecem realmente as tradições nacionais e adivinham a força de persuasão que contêm.

A semiologia orienta-nos para a dimensão temporal da obra. A his­tória e a sociologia permitem-nos evitar as esperanças exageradas e os desesperos infundados. A análise atenta de determinados contextos históricos ensina-nos a não minimizar, e também a não exagerar a influência do livro. Está — e pode estar — ao serviço dos «direitos do h o m e m » quando o poder real pertence a camadas especiais que não estão interessadas e m que os homens exerçam os seus direitos?

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Para evitar exemplos contemporâneos susceptíveis de tornar o debate inutilmente apaixonado, é fácil mostrar que, na França da primeira metade do século xix, o irressistível impulso popular para a cultura foi rapidamente recuperado pelo liberalismo económico. A burguesia inte­grou a alfabetização no seu programa político por duas razões essenciais : por u m lado, a indústria utiliza máquinas cada vez mais complexas que custam caro e que exigem, para serem rentáveis, u m pessoal qualificado; por outro lado, tomar a iniciativa da escolarização significa também dominá-la e transformá-la e m estrutura de «reprodução»1. A burguesia apercebeu-se de que u m certo tipo de cultura cuidadosamente «despoli­tizada» e controlada constituía u m meio de evitar as «revoltas» sel­vagens do Antigo Regime, dispensando-a, simultaneamente, de justi­ficar a sua hegemonia económica e política. É este o sentido da lei Falloux que, e m 1849, retoma as ideias «liberais» de Guizot e as reivin­dicações escolares dos democratas e dos socialistas de 1848, mas que coloca o ensino, a todos os níveis, sob o duplo controle do prefeito (poder civil) e do bispo (poder religioso).

Esta análise é ainda válida nos nossos dias, quando a alfabetização e a aculturação da escola estão sujeitas a u m a «aculturação paralela», veiculada pelos mass media. Os poderes antidemocráticos sentem-se fortemente tentados a utilizar os meios audiovisuais, não para infor­mar efectivamente e despertar o sentido crítico e político das populações, m a s , pelo contrário, para «despolitizar» os problemas e para negar a existência das ciências humanas, o que se traduz pelo estímulo da pas­sividade do público, pela sua «desinformação» sistemática para manter o statu quo.

É , portanto, impossível separar a influência do livro dos dados his­tóricos que acompanham a sua produção e a sua difusão: hábitos de leitura, estrutura das edições e das bibliotecas, leis escolares e escolari­zação efectiva, natureza das relações de produção e do Estado, etc.

N ã o podemos, pois, confiar no livro, n e m m e s m o na alfabetização, para dar aos homens a consciência dos seus direitos e, sobretudo, a vontade de os defender. A história mostra de maneira evidente que todo o direito é a expressão de relações de força. Seria ingénuo e inútil espe­rar que a força se incline perante o direito. Os nossos direitos só podem entrar na realidade quando apoiados pela força, a dos interessados, precisamente. N ã o é correcto, portanto, apresentar a influência de u m livro c o m o u m a impregnação lenta. É u m combate e m que as forças «espirituais» aprendem a transformar-se e m forças materiais. A his­tória ensina-nos que este combate n e m sempre é possível sob u m a forma clara.

N ã o serve de nada falar púdicamente de «diversidade de dados socioculturais» Quando se trata de problemas concretos como os da edição ou difusão de obras abordando o problema das «liberdades»,

1. Ver, sobre este ponto, Antonio G R A M S C I , op. cit., desenvolvido por Louis A L T H U S -S E R : « O S aparelhos ideológicos do Estado», e m Positions, Paris, Editions sociales, 1976, e Pierre B O U R D I E U e Lean-Claude P A S S E R O N : Les héritiers, Paris, Éditions de Minuit, 1964, e La reproduction, Paris, Editions de Minuit, 1970.

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somos necessariamente levados a u m a classificação mais precisa e mais operatória. A título de exemplo, segue-se a que utilizo nas minhas próprias investigações e que é, b e m entendido, muito esquemática. Distingo : a. O s países socialistas. Estes países caracterizam-se por u m a alfa­

betização muito desenvolvida e por u m a promoção muito eficaz do livro e das bibliotecas. N o entanto, estes resultados não devem dissimular que certas tensões persistem. E m particular, alguns deles praticam u m a política cultural autoritária que exclui, talvez m o m e n ­taneamente, u m a discussão totalmente aberta.

b. Os países «liberais». Esta noção de liberalismo deve ser entendida, para começar, no sentido económico e conduz à concentração das empresas e à produção e m série já descrita. Outras características da situação : ausência de u m a política cultural de conjunto, o que conduz ao favorecimento dos media audiovisuais e m detrimento do livro; promoção de u m a cultura estereotipada: distância sempre crescente entre os autênticos artistas e o público: crise da leitura. O s não--leitores, os «maus leitores» e ainda, o que é igualmente grave, os leitores de «qualquer coisa serve», atingem números alarmantes.

c. Os países e m infracção institucional e permanente relativamente à Declaração Universal dos Direitos do H o m e m . Seria pueril imaginar que os governos destes países favorecem a publicação ou a difusão de livros que explicam aos homens os seus direitos, mas seria igual­mente absurdo confundir estes governos, que serão afastados mais cedo ou mais tarde c o m os povos que lhes estão submetidos e que constituem u m terreno particularmente propício para u m a melhor tomada de consciência dos direitos do h o m e m .

d. Os países e m desenvolvimento. A terminologia tradicional reserva esta designação aos países que estiveram, durante muito tempo, submetidos a u m a dominação estrangeira de tipo colonial e que aca­b a m de aceder à independência. Reduzidos por muito tempo ao papel de reservas de matérias-primas, estes países encontram-se na obrigação absoluta de recuperar o seu atraso económico, o que pode dar ori­g e m a orçamentos escolares reduzidos e a u m a alfabetização insu­ficiente.

N o entanto, a pesada dominação que estes países sofreram deu origem, e m geral, à conservação quase milagrosa das culturas tradicionais, culturas há muito desaparecidas ou, na melhor das hipóteses, quase moribundas nos países industrializados. Ainda b e m que assim é, não só devido ao conteúdo de alto nível destas culturas, c o m o também, e, sobretudo, por elas terem conseguido estabelecer u m a relação autên­tica e activa entre os artistas e o público. Ora, a penetração dos «direitos do h o m e m » é justamente função desta actividade do espírito que des­perta u m certo tipo de arte, e que paralisa, ao contrário, u m a arte este­reotipada, comercializada e de «puro divertimento». Tendo e m conta as contradições do m u n d o actual, estes países e m que a alfabetização ainda não triunfou apresentam-se-me .— não sei se c o m razão — como ilhas de resistência contra u m certo tipo de «desinformação» demasiado corrente. N ã o saber 1er, não ter vontade de 1er, podem ser, e m certas

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condições, u m a garantia contra u m a literatura inepta. Paradoxo, sem dúvida, mas que já foi defendido por u m dos nossos mais eminentes pedagogos J.-J. Rousseau —referindo-se à monótona profusão de contos de fadas fabricados c o m todas as peças pela cultura erudita do seu tempo — com excepção, é certo, para Robinson Crusoé que consi­dera mais u m jogo do que u m livro, u m a espécie de «mecano» vital que permite que a criança meça as suas forças e se confronte c o m o mundo real.

Posição saudável, portanto, no plano teórico. Admito, porém, que é insustentável a longo prazo. N ã o saber nada é certamente u m a grande vantagem. M a s é preciso não abusar. A criança e o h o m e m , se preten­d e m referenciar-se no m u n d o actual, têm interesse e m recusar u m certo tipo de informação, mas para dar mais lugar a informações que desen­volvem o espírito crítico e a criatividade, qualidades necessárias à compreensão do mundo e m que vivem e sem as quais não o poderão transformar.

Esta situação histórica apresenta outro interesse. Permite u m a defi­nição menos geral, portanto melhor, destes famosos direitos e deveres que se trata de inculcar nas crianças e nos homens. C o m o é evidente, é necessário que eles sejam definidos por constituições de nações ou por instituições internacionais como as Nações Unidas, pois tornar-se-ão, assim, textos de referência, e, portanto, recursos contra despotismos, mas não devemos concluir que se trata de dados metafísicos, de rei­vindicações alheias à história de cada país e que não devem ser atri­buídas a u m a élite ou a funcionários internacionais que podem ter perdido as suas raízes nacionais.

A história ensina-nos, pelo contrário, que existe u m a relação entre a civilização e as civilizações, que os direitos do h o m e m constituem u m a reivindicação que nos surge como u m fermento e m cada cultura nacional, regional ou local. Consequência: apresentar estes direitos como u m contributo externo é não só u m erro histórico, como u m a falta pedagógica e táctica. Estes direitos só entrarão nas consciências e nos factos na medida e m que os países os apresentem como exigên­cias internas da sua ou das suas próprias culturas, o que está de acordo c o m a verdade e nos obriga a passar de u m a pedagogia directiva para u m a pedagogia da participação e da atracção.

A psicologia e a psicanálise, nos seus desenvolvimentos mais recen­tes, permitem u m a nova e capital modificação dos dados do problema. Quando atribuímos ao livro o poder quase exclusivo de inculcar os direitos do h o m e m , estamos implicitamente a avalizar u m certo número de axiomas errados.

O primeiro diz respeito ao próprio processo da leitura. Alguns homens, sem dúvida, sabem 1er, mas isso não significa necessariamente que saibamos ensinar a 1er. C o m o mostraram os trabalhos de Miala-ret, existem vários níveis de leitura e só passamos de u m para outro através de u m a longa prática. Saber 1er não é enunciar letras ou síla­bas, n e m sequer dominar os mecanismos de aprendizagem por meio de u m a abordagem silenciosa, n e m passar de u m sentido a outro refe-renciando-se por certas palavras através de u m a antecipação rápida

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e criadora; e m suma, não se trata unicamente de 1er depressa e de nos «identificarmos», trata-se sobretudo de saber mudar continuamente de ritmo de leitura e de adoptar u m a atitude crítica a respeito do que se lê.

Atribuir u m a importância exagerada à alfabetização e ao livro, no nosso contexto histórico, é esquecer que o nosso ensino (devido às fraquezas da nossa pedagogia e das forças que se opõem ao espírito crítico) conduz à constituição de grupos de «maus leitores» ou de «não--leitores»; é também esquecer o fenómeno essencial da «analfabetiza-ção de recuperação» segundo a expressão de Albert Meister. E este fenómeno não diz respeito unicamente aos países e m desenvolvimento e às nações pouco desenvolvidas no plano económico, onde as «línguas maternas» têm tendência a entrar e m conflito c o m as «línguas de pro­moção». Trata-se de u m a orientação mais geral. Sabemos, mais ou menos, ensinar os mecanismos da leitura, mas não o prazer do texto, o que explica que perto de u m terço da «população escolar», depois de ter passado dez anos de vida a aprender a 1er, passe o resto da sua existência a desaprender.

Ora, se a prática da leitura não estiver integrada na personalidade do leitor, não podemos confiar nela para difundir os direitos do h o m e m , pois esta difusão supõe u m comportamento activo por parte do des­tinatário, quer se trate de crianças ou de adultos ainda mal albafeti-zados. N u m contexto assim definido, remetermo-nos unicamente ao livro é adoptar u m a atitude directiva e pouco eficaz, é renunciar à utilização da criatividade do meio, desse meio que, como recordei, deseja c o m todas as suas forças a conquista dos seus direitos. É , e m suma, ser obrigado a levantar u m peso enorme sem utilizar as alavancas à disposição.

Outro erro: o recurso ao livro pressupõe que se restrinja o trabalho de explicação sobre os direitos junto daqueles que estão e m idade de aprender a 1er ou, no caso dos analfabetos adultos, que estão à altura de dominar u m código e u m sistema de explicação baseado na razão.

Ora, a psicologia e a psicanálise contemporâneas ensinam-nos, pelo contrário, que as nossas opções fundamentais (atitude do h o m e m perante a mulher, da mulher perante o h o m e m , comportamento e m relação «à raça» e, de maneira mais geral, e m relação «à diferença») se constituem antes dos cinco ou seis anos, idade considerada «nor­mal» para a aprendizagem da leitura. A psicopatologia também nos ensina que a maior parte das perturbações do comportamento ou das grandes «neuroses» se elaboram na época do «complexo de Édipo», isto é, entre os dois anos e meio e os cinco anos, ou m e s m o antes, durante a fase «oral».

Tudo se passa portanto como se, por respeito pelo livro que não é mais, historicamente, do que u m circuito de comunicação entre outros, deixássemos constituirle e fortificar-se estas grandes doenças da civi­lização como, por exemplo, o racismo ou o antifeminismo para e m seguida —e só e m seguida— nos remetermos ao livro e à razão1

1. Ver sobre este ponto B . B E T T E L H E I M , Psychanalyse des contes de fées, 1976.

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para os combatermos. Ora, é sempre mais difícil reeducar do que educar.

E m resumo : o livro continua a ser u m a das vias reais para alcançar a tomada de consciência, mas esta é mais facilmente descoberta por aqueles que provêm de meios que beneficiam há muito da cultura escrita e que dispõem, por assim dizer desde o berço, do equipamento linguístico e cultural que facilita a leitura. M a s , entretanto, impuse-ram-se outros media que contribuem com «gratificações» culturais mais fáceis de obter. Nestas condições, a leitura que exige u m esforço não desprezível de aprendizagem e u m a prática intensa pode surgir como demasiado directiva, como exterior à consciência, enquanto os direitos do h o m e m , para serem realmente assumidos pelos indivíduos, devem apresentar-se-lhes como ponto de encontro da sua própria cultura e da sua exigência íntima — o que são realmente. O problema dos direitos do h o m e m deve, portanto, formular-se sempre que possí­vel, n u m plano simultaneamente racional e irracional, com a colabo­ração de todos os meios de expressão e de comunicação de que dispo­m o s , utilizando a imaginação e a emulação de todos, crianças ou adul­tos. Idade da leitura, portanto, mas também da pré-leitura. Livro, sim, mas também jogo, dança, música, pintura, modelagem, etc. O pres­tígio de organizações internacionais como o I B B Y e as suas secções nacionais, a U N E S C O ou as Nações Unidas não pode ser ignorado, mas deve ser utilizado com prudência, como u m a marca susceptível de valorizar o esforço individual no seu meio natural. Trata-se sempre de criar c o m todos os elementos u m a obra funcional — u m a vez que se deverá adaptar a u m a situação específica — e também de a inserir n u m a tradição, o que conduzirá a u m a reavaliação ou a u m a redes­coberta de obras existentes.

O investimento do livro para crianças pelos direitos do h o m e m : algumas orientações

Dir-me-ão que a minha reflexão é demasiado teórica. Necessito, por­tanto, de abordar os problemas da criação real, no sector que escolhi examinar, o da literatura para a juventude. Admitamos, portanto, que o problema seja posto nestes termos por u m a instância interior ou exterior, implícita ou explicitamente: «Basta de 'divertimentos puros'. É altura de escrever u m livro, de criar u m a actividade de tipo artístico que não se reduza ao 'prazer do texto', mas que oriente a criança para u m a tomada de consciência dos seus direitos e deveres, que tenha e m conta a diversidade das condições culturais nos diver­sos países.»

Responder a este problema implica clarificações prévias. Aquilo a que chamamos infância é u m longo período que se estende desde o nascimento até à adolescência. Comporta, de facto, várias «infâncias»

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sucessivas caracterizadas por centros de interesse distintes e referen­ciáveis e m relação a:

Pulsões, maturações, tomadas de consciência ou regressões tempo­rárias ou perduráveis que se equilibram mais ou menos consciente­mente na história de cada indivíduo;

«Desejos» adultos de u m a sociedade dada, geralmente reflectidos nos sistemas educativos praticados pelos grupos sociais dominantes ou e m determinado meio sociocultural;

Dados objectivos (estruturas da família ou dos estabelecimentos educativos, imperativos sociais definindo o comportamento «normal», ideologias, e m suma, tudo o que Freud e m Le petit Hans designa por «destino» da criança).

Esta perspectiva antropológica provocou progressivamente a «eclo­são» da noção de idade. Aprendemos, então, a distinguir:

A idade do estado civil. Durante muito tempo só esta entrava e m linha de conta. Actualmente, é utilizada apenas e m demografia;

A idade mental, certamente muito controversa, mas que conserva u m a certa utilidade na medida e m que as baterias de testes utilizadas limitam as suas ambições à determinação de conhecimentos ou apti­dões médias n u m a determinada idade;

A idade afectiva que corresponde às descobertas da psicanálise e que entra e m linha de conta, n u m a dada civilização, c o m a maneira como u m a criança equilibra as suas pulsões e m relação às censuras do seu grupo e assume o seu sexo ;

A idade lúdica que se mede e m relação ao princípio do prazer e ao poder de jogar, definindo a diferença de tónus nos jogos ou a dife­rença destes jogos u m a capacidade ou u m a recusa de adaptação e, portanto, u m a atitude de conjunto perante a vida.

Estas diversas idades coexistem e m cada indivíduo que pode, assim, pertencer simultaneamente a grupos de idades diferentes, Empirica­mente, distinguimos, apesar de tudo, as seguintes idades que, embora imprecisas, são operatórias no domínio do livro que aqui nos inte­ressa :

Desde o nascimento até aos três anos. A criança adquire a sua ima­gem global do corpo (estádio do espelho) e, dado essencial para o seu futuro cultural, aprende a manipular e a apreciar a sua «língua m a ­terna», duplo condicionamento que lhe permite constituir correcta­mente o que Winnicott designa por self e que, ensinando-lhe a situar­le n u m mundo amigável, torna possíveis os pré-hábitos de leitura e o apetite pela cultura.

Dos três aosr cinco ou seis anos. Idade fundamental também, a do «complexo de Édipo», e m que a criança assume o seu sexo. É o período e m que a criança, e m todo o caso, nas nossas civilizações ocidentais, desiludida pelos adultos, se identifica facilmente c o m os animais. Adora também os contos populares construídos e m torno de jovens heróis que, e m desvantagem à partida, conseguem à força de astúcia ou de bondade conquistar u m lugar ao Sol. Esquema político que reflecte a condição e os sonhos do povo explorado durante séculos ou milénios, e que a criança interpreta no plano pessoal.

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O periodo dos seis aos onze-doze anos. Fortemente sexualizada pelas suas recusas, merece sempre, nas nossas civilizações, ser considerada c o m o a da «latência». A s fábulas e os contos persistem, m a s coexis­tem c o m a procura de modelos.

Dos dez aos treze anos. N o s nossos climas, é o período da pré--puberdade. A diferença entre os sexos afirma-se e exterioriza-se e m comportamentos diferentes. Deixou de se verificar e m relação ao livro depois da segunda guerra mundial. Razão provável desta evolução: a recusa, cada vez mais deliberada, pelas jovens leitoras da i m a g e m da mulher apresentada pelos livros tradicionais.

A partir dos treze anos. A adolescência propriamente dita, d o m i ­nada pelas maturações afectivas e sexuais e pelos problemas da socie­dade adulta (escolha da profissão, opções políticas, etc.).

Consideremos as duas primeiras fases que acabo de descrever, a m b a s caracterizadas por u m certo narcisismo'—inevitável, u m a vez que a criança deve aceder à clara consciência d o seu corpo e da sua identidade. C o m o facilitar-lhe o acesso à «ordem d o simbólico» onde se situarão mais tarde as noções de direito e de dever?

Nesta idade, explica Henri Wallon, «o m e d o mais assustador da criança refere-se à sua segurança. O que o alimenta é a i m a g e m das forças m á s ; o que o pode apaziguar é a existência de forças compas ­sivas e benfeitoras (...) Outra forma desta inquietação: a dos gigantes e dos anões que são a medida respectiva da sua fraqueza e da sua força; a violência que sofre pode ser exercida sobre outros; é u m a c o m p e n ­sação tranquilizadora. M a s , habitualmente, o par grande-pequeno, forte-fraco desdobra-se e dá-nos o par estúpido-esperto»1.

A CRIANÇA E A FERA

T e m a e estruturas narrativas: u m a criança foge para o bosque (ou para a floresta, o u savana, o u para a beira d o m a r ou do rio) apesar dos pais. A í , vê aproximar-se u m a fera (escolhe-se o animal mais c o m u m n o país considerado).

Neste ponto interrompe-se a narração, de acordo c o m a técnica usual da «história s e m fim» e s o m o s nós (narrador e público) que devemos imaginar a continuação. A forma proposta é, portanto, a de u m conto por via oral. P o d e m o s , n o entanto, tentar dar a este pro­jecto a forma de u m espectáculo de fantoches o u de sombras chinesas o u montá-lo sob a forma de commedia delVarte desempenhado por crianças.

A estrutura relativamente nova da «história s e m fim» permite pôr e m causa a «pedagogia d o m e d o » , isto é, a orientação mais discutí­vel d o repertório tradicional, os «contos de advertência» que acabam m a l e se destinam essencialmente às crianças.

Ass im, na versão mais conhecida de O Capuchinho Vermelho, o lobo c o m e a menina e n o conto O lobo, a cabra e os cabritinhos, o lobo

1. H . W A L L O N , prefácio de Guide de littérature pour la jeunesse, Paris, Flammarion, 1975.

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mata alguns cabritinhos antes de morrer ele próprio de morte trágica. A o oferecer à criança u m fim desgraçado, os narradores do passado referiam-se ao princípio —actualmente cada vez mais contestado — do valor exemplar do castigo.

N a verdade, há muito que este princípio foi posto e m causa. Além do final feliz de tipo erudito reunido pelos irmãos G r i m m , existe u m outro — popular e tradicional — que o adaptador dos Contos da Caro­chinha eliminou certamente por ser escatológico, o do «pretexto que desobriga»: a criança surge com u m a necessidade urgente, o lobo acaba por deixá-la ir embora, mas prende-lhe o braço c o m u m fio de que ela se desembaraça sem dificuldade. N a versão musical de Serge Pro-kofief, Pedro e o lobo, o conto encontra-se enriquecido c o m duas inven­ções que são augúrio dos finais felizes susceptíveis de agradar a outros narradores e a outros públicos infantis: animais utilizados para des­crever e distinguir instrumentos de música, e também perspectiva «eco­lógica» : o lobo é u m monstro cruel, mas raro ; Pedro não aceita que o matem, captura-o e leva-o, e m cortejo, ao jardim zoológico.

Este esquema poderia ser utilizado durante a «hora da história», que se pratica tanto e m França como na América Latina, e m Cuba ou nas repúblicas africanas. O «jogo» seria apresentado por u m pro­fessor, ou por u m narrador tradicional que privilegiaria a versão autóc­tone mais popular na sua área cultural. A novidade e m relação à tra­dição situa-se na vontade de instaurar u m debate (outra possibilidade no que respeita aos mais jovens : u m início de reflexão por intermédio da mímica, do desenho, etc.) sobre a violência. Perguntas : O s monstros ainda existem? Só existem entre os animais? Que atitude adoptar e m relação à violência? Papel da artimanha, da organização, etc.? E os pais? C o m o podem, e devem, advertir os filhos de que a violência existe? Papel da autoridade, da repressão, etc. Função do medo? É possível estabelecer u m a pedagogia baseada no medo?

Outro interesse deste esquema: permite utilizar as ilustrações tra­dicionais que põem e m cena os animais ferozes de todos os continentes. A título de exemplo, o centro de documentação da U N I C E F , e m Nova Iorque, põe à disposição de todos aqueles que o desejem u m a documentação muito variada e de alta qualidade, imagens populares e ainda u m ficheiro sobre a produção dos melhores artistas contem­porâneos. Esta solução não exclui o recurso a artistas locais n e m a participação das próprias crianças.

Esta «história sem fim» também pode ser motivo de organização de u m a nova leitura — e de u m a leitura nova — de contos ou descri­ções de artistas do passado que retomaram «à sua maneira» esta his­tória, isto é, que «investiram» a sua sensibilidade neste tema.

«BEM COZIDO»

Trata-se de u m conto por via oral, mas também pode adquirir a forma de u m espectáculo de fantoches, de u m a representação teatral, de u m filme ou de u m álbum. O grupo etário abrangido é o da pré-leitura e

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do conto, mas este projecto também diz respeito às outras «infâncias», pois ocupa-se do problema da «diferença» (das raças, dos sexos, etc.).

Trata-se de u m conto «etiológico» do folclore dos Peles-Vermelhas que explica, com u m certo humor, a origem das raças. Encontra-se também e m colectâneas pertencentes a ecotipos diferentes.

O Espírito Criador propõe-se criar o h o m e m . Escolhe u m a argila de excelente qualidade, amassa-a, atribui-lhe u m a forma, aquece o forno, põe o h o m e m a cozer. M a s o Criador distraiu-se por u m m o ­mento ou o forno estava demasiado quente. Resultado: u m a criatura demasiado cozida, o h o m e m negro. Nova tentativa, mas , escaldado, por assim dizer, o Criador, cauteloso, abre o forno demasiado cedo. Daí u m a criatura mal cozida: o h o m e m branco. Mais u m a tentativa, também com desfecho prematuro: o h o m e m amarelo. O Espírito Criador, irritado, insiste. N ã o se poupa a esforços. Finalmente, a perfeição: o Pele-Vermelha.

Desta vez, o tema é apresentado integralmente pelo autor —nar­rador ou escritor — m a s é seguido por u m debate que salienta o signi­ficado humorístico, muito acessível até m e s m o a u m público de qua­tro ou cinco anos (através da referência ao próprio corpo, à própria pele). Este projecto conduz ainda a u m estudo, simplificado ou não, sobre as diferenças étnicas (pigmentação da pele, relação entre clima e biologia) ou sobre o contributo histórico das raças.

O debate a partir deste «conto acabado» pode orientar-se também para a diferença dos sexos (Adão e Eva, contos etiológicos sobre a origem do h o m e m e da mulher, mito do h o m e m «esférico» e m O ban­quete de Platão) e para u m a análise do preconceito antifeminista (sexo feminino «metido para dentro»; sexo masculino não como «a mais», mas «saído para fora»).

Se utilizarmos este tema na idade da «latência» e da «pré-puber-dade», esta orientação pode desenvolver-se e m dossiers elaborados na aula, e não só, e que podem reunir os esforços já realizados pelas ins­tâncias nacionais ou internacionais contra os preconceitos raciais, a favor dos direitos das «minorias». N ã o nos devemos esquecer de obser­var que entre estas «minorias» se encontram as crianças, como con­junto desprovido de direitos reais e também essa «minoria» que repre­senta metade da humanidade: as mulheres.

A s estampas da América Setentrional, da Sibéria e dos países nór­dicos fornecem abundantes ilustrações, mas é necessário que não nos limitemos a esta actividade, pois os contos etiológicos, pela sua pró­pria natureza, são capazes de servir de suporte à imaginação de crianças muito diferentes.

CRIANÇAS PERDIDAS OU PAIS PRÓDIGOS?

Trata-se mais de u m conjunto de temas do que de u m assunto respei­tante à relação entre a criança e a família, problema que surge na idade do conto mas que se precisa essencialmente durante a latência e a pré--puberdade. Podemos, pois, considerar a forma do «conto acabado»

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ou sem fim, do romance proposto por u m autor determinado ou do «romance colectivo» a elaborar no quadro de u m a classe ou de u m a «peça radiofónica ou televisiva».

Os esquemas narrativos para este tipo de conto poderiam ser os seguintes :

Pais que perdem os filhos involuntariamente (guerra, tremor de terra, catástrofe natural, etc,), ou voluntariamente: são demasiado pobres e esperam que os filhos se desembaracem melhor sozinhos; ou os filhos são turbulentos ou «contestatarios» e os pais pretendem dar-lhes «uma lição»;

Filhos que perdem os pais porque estes morrem, ou após u m a fuga motivada por m a u entendimento;

Pais que ajudam os filhos com dificuldades, m a s , u m dia virá e m que são os pais que sentem dificuldades e, então, os filhos ajudam-nos por sua vez.

Este tema pertence a todos os reportónos tradicionais e foi adop­tado pela literatura escrita, o que é explicável porque se refere ao lugar que ocupamos no círculo familiar ou na sociedade. É muito actual, tanto mais que a estrutura da família está e m plena transformação.

O objectivo pretendido através desta orientação, consiste e m levar a criança a situar melhor os seus direitos e deveres e m relação ao adulto através de u m a história concreta que lhe apresenta situações de facto que evocam a sua dependência objectiva, ou o tempo e m que se tor­nará «pai do pai».

Podemos aproveitar a ocasião para reunir e reavaliar algumas das obras que abordam o m e s m o tema, entre outras O pequeno polegar (reescrito n u m a óptica diferente e m 1973 por F . Ruy Vidal), Viagem ao centro da Terra, A ilha misteriosa, Os filhos do capitão Grant, Dois anos de férias, Os garotos de Timpelbach de Kaestner, etc.

MATEM-SE TODOS OS VELHOS

U m jovem rei, mal aconselhado, ordena que se condenem à morte todos os velhos. Os súbditos, aterrorizados, hesitam. Alguns obede­cem. Outros, mais numerosos, escondem os velhos pais.

Passam alguns meses e o rei, sob a influência do m e s m o conselheiro, confisca todas as terras cultiváveis. Pretende alugá-las, por elevado preço, a quem as queira cultivar. Existe, de facto, u m a lei muito antiga que lhe permite esta confiscação, pois ele descende e m linha directa do espírito das águas, venerado pelo povo. O s súbditos, desconcertados, interrogam-se. Se obedecerem, ficarão arruinados e morrerão de fome. Se recusarem, serão exterminados.

Felizmente, os velhos que não foram mortos encontram a solução. O rei tem certamente o direito de reivindicar todas as terras cultiváveis por descender do espírito das águas; mas , neste caso, deve ser capaz de andar sobre as ondas, como ele.

Este conto —que pode transmitir-se oralmente, através do teatro, do cinema, etc. — é muito popular e m várias civilizações africanas

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(por exemplo, a versão do Niger, recolhida por Andrée Clair: Eau ficelée et ficelle de fumée) e pode ser ilustrada com estampas tradicio­nais se for apresentado como texto. H á , no entanto, interesse e m esti­mular crianças e artistas a conceber novas imagens e também (atra­vés do «conto sem fim» ou do «romance e m colaboração») a imagi­nar novas soluções. Trata-se, na verdade, de vários problemas cruciais, entre outros, a atitude a ter perante ordens contrárias aos direitos do h o m e m e também ao lugar que devem ocupar os velhos e os deficientes n u m a sociedade. A nossa, e m vez de utilizar a competência e a sabe­doria dos indivíduos idosos, considera-os «bocas inúteis», reduz-lhes os rendimentos, encerra-os e m «morredoiros». Ora, acontece que a maior parte das crianças sente u m a grande ternura pelas pessoas idosas. O problema posto obriga a u m a reflexão sobre o equilíbrio de toda a sociedade.

COMO FAZER MELHOR?

Trata-se de u m concurso entre estabelecimentos escolares ou entre classes que reúnem crianças da m e s m a idade, concurso apoiado pela imprensa escrita, a rádio e a televisão e que focaria o seguinte pro­blema: c o m o melhorar o m u n d o , e, e m primeiro lugar, o dos estudos? É u m problema de u m a melhor participação das crianças na gestão, na disciplina e na própria elaboração dos estudos; dos «extractos» de textos ou das leituras seguidas; maneira de apresentar a história relações entre professores e meio familiar, etc.

Esta orientação é a única que se limita ao meio escolar. Compreen-de-se facilmente porquê. Esta maneira de pôr e m causa o «meio» edu­cativo ou social só é possível se não perturbar o processo educativo, o que exige que seja continuamente organizada e dominada por u m profissional da «dinâmica de grupos» e, portanto, pelo menos e m princípio, por u m professor.

Esta orientação interessa mais especialmente à idade da latência, da pré-puberdade e da adolescência. N ã o escondemos que não pode ser aplicada e m nenhum país sem adaptações. N o entanto, é possível apresentá-la sob u m aspecto mais restrito que a torna aceitável e m toda a parte. O u , então, distanciá-la no tempo. Por exemplo, transformando-a e m reconstituição da cruzada das crianças (fim da idade média). Quais eram os objectivos deste grande feito? Seriam justos? Tinham alguma possibilidade de sucesso? M e s m o limitada aos problemas de organi­zação escolar, este empreendimento parece rentável, na medida e m que se esforça por despertar o espírito crítico — e cívico •— dos jovens.

PÉRFIDA COMO AS ONDAS

U m príncipe teme as mulheres e a sua «perfídia». N o entanto, deixa--se convencer por insistência dos seus súbditos e pela doçura de u m a jovem muito bela que, para o desposar, abandona a sua profissão.

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O livro para crianças e os direitos do h o m e m

M a s , depois do casamento, o seu h u m o r inquieto desperta. Experi-menta-a, exige dela u m a obediência absoluta e chega a separá-la dos filhos. Aqui, de acordo c o m a fórmula escolhida, o tema termina c o m u m happy end ou c o m u m a catástrofe. O debate inicia-se sobre o que poderia ou deveria fazer a jovem. Obedecer? E m caso afirmativo, até que limite? Direitos da mulher? Das crianças?

Este tema, adaptado à idade do conto, e também à da pré-puber-dade e da adolescência, pode utilizar técnicas abertas (conto sem fim) ou fechadas (romance, novela, peça de teatro, folhetim, filme, etc.). Transforma-se, sem grande dificuldade, no ponto de partida de «dos­siers» sobre os direitos da mulher (os já adquiridos e os que falta con­quistar), sobre as diferenças anatómicas, fisiológicas, psicológicas, sociológicas (estudo antropológico da distribuição dos «papéis» na sociedade). T a m b é m pode ser utilizado como pretexto para u m a rea­valiação crítica do reportório divertido ou erudito (contos populares e m que a mulher tem todos os defeitos, misoginia mais camuflada de Griselda e da literatura «erudita», etc.).

Impasses, erros de pontaria, acções eficazes

Interrompo aqui esta enumeração de assuntos propostos unicamente a título indicativo. Permitiu-me expor concretamente u m certo número de orientações, positivas e negativas, respeitantes ao papel que pode, ou não pode, desempenhar o livro para crianças, na nossa época, para u m aprofundamento da tomada de consciência dos direitos do h o m e m . Para clarificar a minha exposição, terminarei recordando as orienta­ções essenciais destas análises e insistindo nos impasses e erros que convém evitar para que a acção seja eficaz.

Duas ilusões simétricas e igualmente desastrosas nos espreitam: excesso ou falta de confiança no livro para difusão dos direitos. N o s dois casos se esquece que o direito é a expressão de u m a relação de forças. A influência do livro é mediata. Só existe se o livro obtiver u m a atitude activa por parte do leitor. Só a este preço a «tomada de consciên­cia» se pode tornar u m a força material.

O livro é u m meio de expressão e de difusão do pensamento entre outros. Depois de Gutenberg e durante séculos coexistiu c o m outros media, c o m o , por exemplo, o circuito de via oral, o da transmissão de estampas, etc. O sucesso da rádio, da televisão e dos outros mass media não faz mais, e m suma, do que restabelecer esta coexistência ou, mais exactamente, torná-la evidente. Pode opor-se ao livro: compete-nos a nós provocar a colaboração do livro c o m os outros mass media. N u m m u n d o dominado pela imagem, não temos interesse e m apresentar o livro como u m a realidade distinta dos outros «lazeres», enquanto somos cada vez mais induzidos a compreender que a cultura é u m todo.

Multiplicar os esforços para a «defesa do livro» (jornada, semana ou ano do livro, associação para defesa do livro para a juventude, etc.), é admitir implicitamente que o livro é «culpável» ou que, e m todo o caso, está condenado.

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É muito mais útil estudar cientificamente as causas que afastam do livro os leitores potenciais (preços demasiado elevados, insuficiência da rede de bibliotecas, pedagogia da aprendizagem da leitura, etc.). Seria também extremamente rentável criar sistematicamente u m reportório destinado a toda a primeira infância e à idade da pré-leitura e, para tal, estudar os centros de interesse e as elaborações psíquicas destes grupos etários fundamentais, por exemplo, como se elabora aquilo que Lacan designa por «ordem do simbólico» e como evolui o que Winnicot chama «objecto transicional», pedaço de tecido ou peça de roupa impregnada de odor da m ã e e que acompanha a criança nos «rituais» do adorme­cimento, u m a vez que o livro parece ser, no estado actual dos nossos conhecimentos, o sucessor desse «objecto».

Erro imperdoável seria limitar a inculca dos valores «humanistas» à idade da leitura corrente e do livro propriamente dito. C o m efeito, os principais preconceitos e flagelos ideológicos (racismo, antifemi­nismo, belicismo, passividade, desprezo pelos direitos do outro) estão já solidamente enraizados na consciência e sobretudo no inconsciente da criança dos oito aos doze anos. O verdadeiro combate deve, pois, travar-se ao nível dos grupos etários dos 2-3 anos, e 3-6 anos, isto é, deve estabelecer-se por u m circuito oral, m i m a d o , representado, car­regado de imagens, intervindo o texto unicamente para consolidar aqui­sições anteriores.

Trata-se de pôr e m causa a noção tradicional de autor, evolução que, na nossa época, se inicia na prática. Alguns sectores da literatura para a juventude, singularmente a corrente enciclopédica, m a s tam­b é m as ficções ligadas aos problemas da actualidade, substituem o autor por u m a equipa redactorial que inclui o «criador», o ilustrador, o autor do diálogo, das maquetas, etc., escolhidos, por vezes, pela sua competência, m a s , na maior parte das vezes, de m o d o arbitrário ou na perspectiva de simples rentabilidade. É necessário atribuir ao autor o seu estatuto de criador (ou o contrário) e rodeá-lo de u m a equipa redactorial que inclua sistematicamente os «beneficiários» e os peritos e m matéria de educação, isto é, as crianças e os educadores.

A s seis orientações precedentes esforçam-se todas, mais ou menos, por suscitar a participação dos interessados, m a s não é por desejo de inovar a todo o custo n e m por pretenderem u m a m o d a que se impo­nha, a dos jogos. Esta tendência que os mass media exploram de m a ­neira por vezes demagógica é, na verdade, bastante saudável. D e u m a maneira ainda confusa e, por vezes, desadaptada, os homens, as mulhe­res, as crianças exigem a palavra. Estimular esta criatividade do público é a única atitude rentável, pois permite utilizar a única energia que, neste campo , é realmente eficaz, a dos interessados.

C o m o tivemos ocasião de observar, estas seis orientações põem no m e s m o plano criação individual e adaptação ou nova leitura de obras antigas. O que não significa que se minimiza o papel dos escritores, n e m que se pretende que a elaboração de novas obras não é desejável; não devemos concluir que tudo deve ser recriado inteiramente; seria u m trabalho gigantesco, capaz de desmoralizar os mais corajosos. U m a obra verdadeiramente nova é sempre o fim de u m a tradição e, ao

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O livro para crianças e os direitos do h o m e m

m e s m o tempo, o começo de outra. É também por esta razão que este tipo de obra não pode e não deve ser conduzida «do exterior», mas surgir no momento exacto entre os peritos, os artistas e os educadores que se ocupam habitualmente das crianças, o que não exclui, de m o d o nenhum, as evoluções e as revoluções, u m a vez que as críticas mais pertinentes contra a pedagogia provêm actualmente dos próprios educadores.

A s orientações sugeridas, baseadas na criatividade e na emulação, e também na reavaliação do património existente, são simultanea­mente as menos despropositadas, pois estão ligadas de perto aos dados mais recentes das ciências humanas e as mais fáceis de aplicar. É ver­dade que exigem que sejam revistas muitas estereotipias e precon­ceitos, o que pode demorar algum tempo.

A prova do tempo será, de resto, decisiva. Se esta reflexão estiver correcta, as tendências analisadas não deixarão de se precisar, de se reforçar e de impor soluções do m e s m o género.

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Elementos para u m "dossier"

Fins e meios de u m a educação contínua

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Durante os últimos dez ou quinze anos, a edu­cação dos adultos sofreu, num certo número de países, industrializados ou em desenvolvi­mento, um impulso considerável e notáveis transformações que respondem a uma exigên­cia social e individual directamente ligada aos fenómenos económicos, tecnológicos, políticos e culturais do nosso tempo.

Contudo, podemos considerar que, a des­peito do reconhecimento formal da necessidade, ou até da urgência, de uma expansão substan­cial da educação dos adultos, que constitui uma das condições da aplicação efectiva do conceito da educação permanente, a multipli­cação das ocasiões oferecidas aos adultos para se educarem, assim como a adaptação dos con­teúdos e dos métodos utilizados às necessidades e às aspirações dos adultos, e às particularida­des da sua aprendizagem, continuam, em nume­rosos casos, a encontrar dificuldades tanto a nível dos que tomam as decisões como ao dos potenciais «aprendizes».

Embora as três conferências internacionais sobre a educação dos adultos convocadas pela UNESCO (Elseneur, I960; Montreal, 1949 e Tóquio, 1972) tenham, todas elas, marcado uma etapa na evolução do pensamento no domínio em questão, a última destas assem­bleias, largamente representativa, tanto do ponto de vista geográfico como cultural, depois de ter recordado «que os países, seja qual for o estádio de evolução em que se encontrem, não poderão atingir os objectivos de desenvol­vimento pretendidos nem assumir as mutações de toda a natureza que intervêm em todas as

sociedades a um ritmo que se acelera constan­temente, sem dedicar à educação dos adultos uma atenção profunda e contínua e sem a dotar dos recursos humanos e materiais necessários» recomendou à UNESCO que pensasse na opor­tunidade de empreender uma acção normativa respeitante ao desenvolvimento da educação dos adultos. Como as opiniões expressas pela Conferência de Tóquio foram partilhadas pelos órgãos de decisão da UNESCO, procedeu-se à elaboração de um projecto de recomenda­ção aos Estados membros, cujo texto deu ori­gem a uma ampla consulta e cuja versão final foi adoptada por unanimidade pela Conferência Geral durante a décima nona sessão realizada em Nairobi, em Outubro-Novembro de 1976.

Esta recomendação constitui o primeiro ins­trumento normativo internacional na matéria e a sua importância não deve, portanto, ser subestimada. Não se trata, na ocorrência, de uma declaração solene, mas de um conjunto de disposições cuja aplicação é proposta pelos Estados membros da Organização aos governos respectivos.

De resto, no próprio corpo do instrumento a Conferência Geral recomenda aos Estados membros que actuem:

«... adoptando sob a forma de lei nacional ou outra, e de acordo com a prática constitu­cional de cada Estado, medidas destinadas a aplicar os princípios formulados na ... reco­mendação;

... levando a recomendação ao conhecimento tanto das autoridades, serviços ou organismos responsáveis da educação dos adultos, como de

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A Unesco e o desenvolvimento da educação dos adultos

diversas organizações exercendo uma actividade educativa em prol dos adultos, e de organiza­ções sindicais, associações, empresas e outras partes interessadas;

... apresentando, em data e sob forma a determinar, relatórios respeitantes à conti­nuação dada por eles à ... recomendação.»

Apresentamos, em seguida, o texto integral das definições da educação dos adultos e da educação permanente tais como figuram no capítulo I da recomendação:

«A expressão 'educação dos adultos' designa o conjunto dos processos organizados da edu­cação, independentemente do conteúdo, do nivel e do método, quer sejam formais ou não formais, quer prolonguem ou substituam a edu­cação inicial dispensada nos estabelecimentos escolares e universitários e sob forma de apren­dizagem profissional, graças aos quais pessoas consideradas adultas pela sociedade de que fazem parte, desenvolvem as suas aptidões, enriquecem os seus conhecimentos, melhoram as suas qualificações técnicas ou profissionais ou dão-lhes uma nova orientação e evoluem as suas atitudes ou o seu comportamento na dupla perspectiva de um desenvolvimento integral do homem e de participação num desenvolvimento socioeconómico e cultural equilibrado e inde­pendente.

A educação dos adultos não pode, porém, ser considerada unicamente em si própria; trata-se de um subconjunto integrado num projecto global de educação permanente.

A expressão 'educação permanente' designa, por seu lado, um projecto global tendente a reestruturar o sistema educativo existente e a desenvolver todas as possibilidades formativas para além do sistema educativo.

Nesse projecto, o homem é agente da sua própria educação pela interacção permanente entre as suas acções e a sua reflexão.

A educação, em vez de se limitar ao período de escolaridade, deve alargar-se às dimensões da existência vivida, estender-se a todas as competências e a todos os domínios do saber, poder adquirirse por diversos meios e favore­

cer todas as formas de desenvolvimento da personalidade.

Os processos educativos em que estão empe­nhados, durante a vida, sob qualquer forma, as crianças, os jovens e os adultos de qualquer idade, devem ser considerados como um todo.»

A recomendação compreende ainda nove capítulos sobre os objectivos e a estratégia; o conteúdo da educação dos adultos; a forma­ção e o estatuto das pessoas que intervêm em matéria de educação dos adultos; as relações entre a educação dos adultos e a educação dos jovens; as relações entre a educação dos adultos e o trabalho; a gestão, a administração, a coordenação e o financiamento da educação dos adultos; a cooperação internacional.

Afim de facilitar a aplicação desta recomen­dação, o programa da UNESCO para 1977--1978 prevê que «. . . seja concedido auxílio às autoridades e instituições nacionais, em espe­cial às dos países em desenvolvimento, que quei­ram documentarse e proceder a consultas, estudos e investigações destinados a aplicar, nas condições particulares que lhes são pró­prias, as disposições da recomendação citada». O Secretariado da UNESCO prestará igual­mente auxílio ... «às organizações não gover­namentais nacionais ou internacionais que, nos seus domínios de competência respectivos, se proponham estudar os meios de traduzir, de facto, certas disposições desta mesma recomendação ou de precisar a maneira como se poderia aplicar a um grupo determinado da população adulta».

Para sublinhar o alcance do instrumento nor­mativo internacional que acaba de ser adoptado, pareceu útil à redacção apresentar aos leitores as grandes linhas da análise efectuada pelo Secretariado da UNESCO da acção realizada desde 1949, dos desenvolvimentos, e até per­turbações surgidas desde então e do que falta empreender com o fim de assegurar à educação dos adultos o estatuto e os recursos que tantas vezes lhe são ainda regateados, bem como o justo lugar que deve ocupar a partir de agora num sistema educativo moderno em que o ensino formal e a educação dos adultos — espe­cíficos mas complementares— deverão inte-

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grar-se na noção mais ampla e indefinidamente aberta que é a educação permanente1.

História

O s Estados fundadores da U N E S C O decla­raram no Acto constitutivo que «uma vez que a dignidade do h o m e m exige a difusão da cultura e a educação de todos tendo e m vista a justiça, a liberdade e a paz, existem, para todas as nações, deveres sagrados a cumprir n u m espírito de assistência mútua». A edu­cação dos adultos entra, pois, desde a sua ori­g e m , nas responsabilidades da U N E S C O . Três conferências internacionais sobre a edu­cação dos adultos marcaram etapas decisivas na evolução das concepções relativas aos seus fins e aplicações.

A segunda guerra mundial e as suas seque­las dominavam ainda todas as preocupações e mais de metade dos vinte e cinco países par­ticipantes na Conferência de Elseneur (1949) eram da Europa Ocidental. Esta conferência exprimiu a ideia de que a educação dos adul­tos deveria deixar de ser « u m empreendimento marginal ao serviço dos interesses pessoais de u m a minoria relativa»; com u m objectivo de reconstrução, a população de muitos países tinha necessidade de u m a educação compen­sadora; manifestou-se, durante os debates, u m a enorme necessidade de justiça social e de compreensão internacional; os debates dedicaram pouca importância às ideias rela­tivas à formação técnica ou profissional e aos programas de alfabetização; mas a educação dos adultos passou a ter como tarefa «satis­fazer as necessidades e as aspirações do adulto na sua diversidade».

Graças ao impulso desta conferência, a cooperação internacional adquiriu u m a exten­são sem precedentes; organizaram-se muitas reuniões regionais, assim como programas experimentais, e m particular programas de educação de base. A s organizações voluntá­rias tomaram consciência do seu papel e desen­volveram a sua acção sobre o plano interna­cional.

A Conferência de Montreal (1960) foi u m a

reunião muito mais representativa no plano mundial. Fizeram-se representar cinquenta e u m países e quarenta e seis organizações inter­nacionais enviaram observadores. O tema foi: « A educação dos adultos n u m m u n d o e m transformação». Tinha-se tornado evidente que a vida iria passar a ser u m a longa e constante adaptação a u m contexto material e social e m rápida evolução; o domínio desta evolução afirmava-se, então, como u m ele­mento essencial da política de toda a nação desejosa de se adaptar às transformações e de melhorar a qualidade de vida. Retomando os termos do relatório final, «a educação (dos adultos) deverá, pois, ser reconhecida por todos os povos como u m elemento nor­mal, por todos os governos como u m ele­mento necessário do sistema de ensino de qualquer país».

Entre as propostas de estratégia constru­tiva, distinguimos a ajuda dos países ricos aos mais pobres, a prioridade dada à alfabetização, o acesso das mulheres a todos os tipos de educação, a preparação para a participação cívica, a valoiização da acção das organiza­ções voluntárias, a formação sistemática dos professores de todos os níveis para a prática da educação dos adultos, a definição progres­siva da profissão de educador de adultos e a extensão das atribuições das escolas e das universidades à educação dos adultos. Assis­timos essencialmente à afirmação da tese segundo a qual a educação dos adultos deve ser considerada como parte integrante do conjunto do sistema de educação.

A evolução, desde Montreal, tende a reco­nhecer como principal vocação da educação dos adultos ajudar a compreender, dominar e, se possível, orientar a transformação.

1. A s contribuições de Lucille Mair, Yusuf O . Kas-sam, V . S. Mathur e Hilary Perraton, que leremos mais adiante, foram primeiramente apresentadas na Conferência sobre a educação dos adultos e o desenvolvimento organizado pelo Conselho Inter­nacional para a educação dos adultos e m cola­boração c o m as autoridades tanzanianas (Dar es Salaam, 21-26 de Junho de 1976). Publicamo-las com a amável autorização dos organizadores.

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Centenas de milhões de homens libertaram--se do sistema colonial e obtiveram a inde­pendência; para eles, pôs-se, c o m u m a acui­dade e u m a urgência sempre crescentes, o pro­blema da alfabetização, do desenvolvimento rural, da formação dos quadros de todas as ordens. Era inevitável que a sua tendência principal consistisse e m reproduzir os m o ­delos escolares herdados da época colonial; no entanto, vimos surgir progressivamente acções reconhecendo a importância do aspecto funcional da educação dos adultos. Esta orien­tação beneficiou, e m 1965, e m Teerão, no Congresso Mundial dos Ministros da Educa­ção sobre a eliminação do analfabetismo, de u m impulso vigoroso.

Embora a alfabetização funcional tenha sofrido críticas na medida e m que se lhe atri­buía a intenção de se subordinar o adulto aos mecanismos económicos e à produção, desprezando o elemento de participação e de empenhamento social e cultural, a tendência para orientar a alfabetização e m particular, e a educação dos adultos e m geral, de m o d o a responderem às necessidades do desenvolvi­mento económico, favorecendo o progresso social, a participação na vida colectiva, b e m como a transformação da sociedade e o desenvolvimento da cultura, afirma-se cada vez mais.

Ninguém duvida, n e m nos países indus-tralizados, n e m nos países e m desenvolvi­mento, da existência de u m a relação íntima entre o progresso social e económico e o nível de instrução; torna-se evidente que u m a par­ticipação mais intensa no movimento dos conhecimentos, u m esforço mais sistemático para unir a teoria à prática facilitam a solução dos problemas provocados pela mutação rápida dos modos de produção, o desemprego e a migração da mão-de-obra; assim, assisti­mos à organização de formações durante o emprego, ao desenvolvimento dos cursos noc­turnos, do ensino por correspondência, das legislações sobre o número de horas de que os trabalhadores poderão dispor durante o tempo de trabalho com o fim de obter u m a formação. A educação dos adultos começa, pois, a tornar-se u m a realidade.

Paralelamente, o aparecimento e o desen­volvimento do conceito de educação perma­nente conduzem, incluindo a educação dos adultos nos objectivos de planos nacionais de desenvolvimento, à procura de u m a coerência c o m a educação escolar. Sob este aspecto, a educação dos adultos não surge unicamente como u m substituto do ensino escolar, m a s como u m elemento intrínseco de todo o sis­tema educativo e que, sob diversas formas, se destina a todos, obrigando, na fase inicial da educação, a u m a preparação para aquisi­ções ulteriores de conhecimentos, habilidades e comportamentos, e a ser concebida nesta perspectiva. A s universidades criam departa­mentos especializados tanto na prática da educação dos adultos e formação do pessoal de que necessita, como nas investigações que c o m elas se relacionam. A s organizações de educação popular, os sindicatos, os movi­mentos de juventude, os movimentos femi­ninos, na sua diversidade e autonomia, mul­tiplicam as acções não só no plano nacional como internacional. Os meios audiovisuais, a imprensa, a televisão e sobretudo a rádio tornam-se meios de cultura e de formação. Organizam-se intercâmbios internacionais de ideias e experiências.

Porém, nas vésperas da Conferência de Tóquio, somos ainda obrigados a verificar que, apesar da generalização das intervenções governamentais, a participação continua a ser modesta, submetida às flutuações orça­mentais, por assim dizer, marginal. C o m raras excepções, das quais algumas são notáveis, nos países e m desenvolvimento, os esforços realizados continuaram a destinar-se essen­cialmente a u m a élite já privilegiada pelo sis­tema escolar: finalmente, raros são os países e m que foi possível estabelecer u m a política estruturada, coerente e interdepartamental de promoção da educação dos adultos.

A Conferência de Tóquio1 (1972) benefi­ciou da participação de noventa e dois Estados membros, de três Estados não membros, de cinco organizações intergovernamentais e de

1. Ver o dossier de Perspectives, vol. II, n.° 3, 1972, p. 350-393 ( N D L R ) .

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trinta e sete organizações internacionais não governamentais

Os debates que tiveram lugar na Conferên­cia de Tóquio salientaram que a educação dos adultos podia ser considerada como :

U m instrumento de tomada de consciência, de socialização e de transformação social; ela tende a criar u m a sociedade consciente dos valores de solidariedade; é mobilizadora, todos os homens podem e devem auto-edu-car-se e educar os outros;

U m instrumento de desenvolvimento do h o m e m total, considerado na globalidade das suas funções de trabalho, de lazer, de vida cívica, de vida familiar; ele tende para o aper­feiçoamento das qualidades físicas, morais e intelectuais;

U m instrumento de preparação para a actividade produtiva e para a preparação na gestão da empresa;

U m instrumento de luta contra as aliena­ções económicas e culturais e elaboração de u m a cultura nacional libertadora e autêntica.

A Conferência de Tóquio, dispondo das conclusões das conferências intergoverna­mentais sobre as políticas culturais (Veneza, 1970; Helsínquia, 1972), considerou também que a educação dos adultos abrangia simul­taneamente a educação permanente e o desenvolvimento cultural e que contribuía para as transformar nos dois aspectos indivisí­veis de u m m e s m o processo.

Objectivos e estratégia

O s objectivos que parece desejável e possível atribuir à educação dos adultos não diferem profundamente daqueles c o m que todo o empreendimento educativo digno deste n o m e se deveria ocupar.

Assim, os objectivos consignados por C o n -dorcet à instrução poderiam também tê-lo sido à educação dos adultos: «Proporcionar a todos os indivíduos da espécie humana os meios de poder satisfazer as suas necessidades de assegurar a todos eles a facilidade de aper-feiçar a sua indústria, de se tornar apto para

as funções sociais e m que tem o direito de intervir, de desenvolver todos os talentos que recebeu da natureza, e de, assim, estabelecer entre os cidadãos u m a igualdade de facto e tornar real a igualdade política reconhecida pela lei: deve ser este o principal objectivo de u m a instrução nacional; e, sob este ponto de vista, ela é, para o poder público, u m dever de justiça»1.

M a s , precisamente porque se destina a adul­tos que se encontram perante os grandes pro­blemas do m u n d o e m que vivem, a edução dos adultos, mais do que qualquer outro empreen­dimento educativo, deve ser concebida c o m o u m a contribuição para a compreensão e solu­ção destes problemas.

E m primeiro lugar, o da mundialização do nosso destino. É errado pensar que as distân­cias serão abolidas devido unicamente ao desenvolvimento dos meios de transporte e de comunicação. Além disso, o internacio­nalismo das aspirações e dos valores a que acedem certos grupos e colectividades, não impede que se aprofunde, segundo a lógica do sistema actual das relações internacionais, o fosso económico e cultural que separa os paí­ses pobres dos países ricos. E necessário que a compreensão e a aceitação da diversidade dos costumes e das culturas se tornem acessíveis ao maior número de pessoas e conduzam, tanto quanto possível, a u m a solidariedade activa a favor dos mais desprovidos.

A educação dos adultos é muitas vezes evo­cada e m relação c o m a utilização dos tempos livres. Ora, o problema dos tempos livres apresenta-se hoje e m dia tanto aos países industrializados c o m o aos países e m desen­volvimento. Para estes, trata-se muitas vezes de tempos livres forçados, devido ao subem­prego. N o s países industrializados, os tempos livres desenvolveram-se c o m o u m a realidade e como u m a necessidade. A necessidade de

1. A . C . C O N D O R C E T , Rapport et projet de décret sur Vorganisation générale de l'instruction publique, apresentados à Assembleia Nacional, e m nome do Comité de Instrução Pública, a 20 e 21 de Abril de 1972.

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tempos livres é expressa por algumas pessoas como u m a necessidade de evasão da vida «activa» e por outras como u m a necessidade de encontrar, para além do trabalho e das diversas obrigações, a possibilidade de se exprimir mais livremente. Porém, a concen­tração do tempo de lazer (fins de semana, férias pagas...) cria u m a superpopulação nas zonas próprias para os tempos livres. Muitas formas de lazer alimentam ou favorecem a passividade dos indivíduos e a exploração comercial sistemática dos tempos livres con­traria muitas vezes os objectivos da edu­cação.

Trata-se de atribuir a sua verdadeira dimen­são aos tempos livres: período privilegiado para fazer a experiência da autonomia, para dar livre curso às intuições criadoras, para exprimir outras solidariedades, além das que se enraízam no meio do trabalho.

M a s existem duas características do m u n d o contemporâneo que atribuem à educação dos adultos funções de u m a importância singular: e m primeiro lugar, a explosão dos conheci­mentos, a evolução rápida das ciências e a transformação acelerada das técnicas, e tam­b é m dos valores, obrigam permanentemente os indivíduos não só a renovar os seus conhe­cimentos, como a considerá-los provisórios e transformável o m u n d o que os rodeia; por outro lado, ao m e s m o tempo que vive n u m universo cada vez mais mundializado e glo­bal, o indivíduo sente-se cada vez mais frag­mentado pela dispersão das suas responsabi-idades e das suas diversas tarefas, pelas con­

tradições que comportam, pelo isolamento e m que o encerram a divisão estanque entre os grupos, a falta de tempo, a incapacidade de ter u m a visão de conjunto dos acontecimentos. À educação dos adultos cabe a tarefa de os ajudar a compensar e a superar estas limita­ções, e a realizar a unidade da sua própria personalidade.

À luz destes raros exemplos, é evidente que, se pretendemos transformar a educação dos adultos n u m instrumento de solução para os problemas colectivos, é necessário que toda a sociedade aceite empenhar-se no processo educativo. Trata-se, juntamente c o m a asso­

ciação dos adultos e m formação à determi­nação dos objectivos e dos conteúdos das acções e m que são chamados a participar, de u m elemento essencial de toda a estratégia da educação dos adultos.

M a s , existe u m a estratégia única, ou há lugar para variantes? N ã o podemos certa­mente abstrair-nos do nível e do tipo de desen­volvimento, das particularidades próprias dos diversos grupos que constituem as sociedades, n e m da importância e dos resultados dos sis­temas educativos.

A natureza e a intensidade dos problemas cuja compreensão e solução a educação dos adultos deve procurar facilitar variam, de facto, profundamente quando se trata de u m país de desenvolvimento industrial avançado, de u m a sociedade e m vias de industrialização, ou de u m a sociedade rural tradicional. Além disso, as sociedades industriais não apresen­tam fisionomias homogéneas: na maior parte dos casos coabitam técnicas de produção que vão desde a produção rural tradicional à elec­trónica, passando pelo artesanato e a produ­ção e m cadeia. A cada situação correspondem necessidades e hierarquias de urgências dife­rentes, que a educação do adultos deve esfor-çar-se por acompanhar tão intimamente quanto possível.

Se tivermos e m conta os elementos que aca­b e m de ser expostos, é evidente que não existe u m a , mas várias estratégias de educação de adultos.

Sob este ponto de vista, seria inútil opor u m a estratégia dando prioridade às preocupa­ções económicas a u m a estratégia baseada e m preocupações culturais. É evidente que, seja qual for o contexto e m que seja obrigada a desenvolver-se, a educação dos adultos, deveria fixar como objectivo principal suscitar nos adultos, aspirações, atitudes e comporta­mentos independentes, que lhe permitam com­preender e dominar a transformação e parti­cipar no desenvolvimento e na mutação da sociedade. T a m b é m é evidente que este objec­tivo não pode adaptar-se a estruturas educa­tivas desligadas da vida, n e m a conteúdos estreitamente especializados.

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Estruturas

É necessário que a educação dos adultos seja dotada de estruturas maleáveis e descentra­lizadas, m a s coordenadas e b e m integradas no sistema educativo no seu conjunto.

Para tal, é conveniente recorrer, tanto quanto possível, a todos os organismos e ins­tituições capazes de contribuir para o esforço de educação dos adultos: e m particular, as escolas e as universidades, os movimentos de educação popular, os organismos sindicais, cooperativos, femininos, religiosos, culturais e desportivos, as organizações de juventude e de divulgação científica, os meios de infor­mação de massa, as bibliotecas e museus, as empresas e todas as pessoas competentes ou capazes de o vir a ser.

O contributo destes diversos intervenientes pode traduzir-se pela organização e a apli­cação de programas; pode consistir, de m a ­neira mais limitada, e m fornecer educadores ou animadores, material, conselhos de método ou ainda locais e equipamentos.

Quanto mais numerosos e variados forem os intervenientes, mais se fará sentir a neces­sidade de criar, a diversos níveis, estruturas de concentração reunindo os representantes das autoridades públicas e dos organismos e instituições abrangidas pela educação dos adultos. Essas estruturas poderiam ser cha­madas a assegurar a concertação e a indis­pensável harmonização nos planos conceptual e operacional, assim c o m o a suscitar novas actividades, e m particular as que se apresen­tem c o m o necessárias a u m desenvolvimento a longo termo dos programas de educação.

A política de educação dos adultos não pode, c o m efeito, limitar-se à mobilização dos recursos educativos existentes, ou à criação, e m função das necessidades sentidas c o m o mais urgentes, de novas instituições encarre­gadas de responder directamente a estas neces­sidades.

O desenvolvimento a longo termo da edu­cação dos adultos pressupõe a realização de u m certo número de investimentos. Trata-se, e m particular, de aprofundar os problemas pedagógicos, sociológicos, económicos, finan­

ceiros enfrentados pelos diferentes interve­nientes. Trata-se de formar gestores, forma­dores e formadores de formadores, e de desen­volver a produção de material pedagógico. T a m b é m é necessário proceder à planificação e à avaliação das acções empreendidas, reu­nir documentação, coleccionar dados esta­tísticos, criar serviços de informação e de orientação educativas destinados aos adultos, redes de contacto destinadas aos formadores e organismos interessados.

A acção educativa desenvolvida e m prol dos adultos pelos organismos não governa­mentais, e e m particular pelas associações e agrupamentos voluntários, deveria ser favo­recida e beneficiar de u m apoio sistemático do Estado. C o m o fim de clarificar as obriga­ções respectivas dos diferentes parceiros, este apoio poderia assumir a forma de u m a ajuda técnica e/ou financeira, e ser concedida por meio de acordo ou convenção. M a s é essen­cial que os organismos que beneficiam de u m apoio do Estado possam conservar a autono­mia de que necessitam para levar a b o m termo a sua tarefa educativa. E m nenhum caso deverá ser posta e m causa a sua liberdade de opinião.

N a maior parte dos países a escola pode desempenhar, na expansão e na educação dos adultos, u m papel considerável. M a s este papel passa pela abertura dos estabelecimentos esco­lares para os problemas concretos da c o m u ­nidade e seu empenhamento na solução des­tes, pelo estabelecimento de contactos direc­tos e regulares c o m as populações adultas e pela preparação dos professores para as parti­cularidades das suas invenções nestes meios.

O esforço a realizar pelos organismos de informação de massa, para que a sua vocação para contribuir para a educação dos adultos seja u m a realidade, não é fundamentalmente diferente. N ã o se trata, para eles, de entrar e m contacto c o m o público, de procurar a sua participação, de renunciar a u m m o d o de acção unilateral para que se instaure u m a dupla corrente de contacto entre emissor e receptor.

A fim de atingir este resultado, conviria certamente estabelecer entre os responsáveis pelos mass media e m particular a rádio e a

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A Unesco e o desenvolvimento da educação dos adultos

televisão, e a educação dos adultos, mecanis­m o s de concertação apropriados.

Conteúdos

O s conteúdos da educação dos adultos deve­riam resultar directamente dos objectivos pros­seguidos. Deveriam partilhar da sua diversi­dade. N e n h u m domínio parece, a priori, dever manter-se estranho à educação dos adultos. M a s o esforço deveria incontestavelmente exercer-se onde as necessidades provocadas pela mudança se revelam cada vez mais pre­mentes, e deveria haver a preocupação essen­cial de evitar toda a abordagem demasiado limitada; a transformação exige respostas rápidas, mas as interrogações que suscita são destinadas a renovar-se, e é necessário ultra­passar as aparências.

A formação deveria ter e m vista o apro­fundamento dos conhecimentos-utensílios, e não a acumulação de conhecimentos c o m pre­tensões enciclopédicas, deveria ainda assegu­rar a manipulação mais facilitada e mais rigo­rosa dos diversos métodos, instrumentos e linguagens que permitem o desenvolvimento do sentido crítico e do espírito de análise e de síntese.

A formação profissional deveria impedir as abordagens conjunturais restritas, procurar a polivalência e abrir-se aos problemas res­peitantes ao ambiente económico e social do trabalho.

A formação socioeconómica-política deve­ria preparar os cidadãos para u m a participa­ção democrática na gestão, a todos os níveis, dos assuntos sociais, e torná-los capazes de desmascarar todas as práticas de doutrinação e de propaganda. N a medida e m que os meios de comunicação de massa se apoderam cada vez mais da informação, os animadores deve­riam essencialmente procurar favorecer a selecção, a abordagem crítica e, se necessário, a correcção da informação.

A formação destinada ao desenvolvimento cultural não deveria limitar-se à difusão de u m modelo constituído por certas categorias sociais, m a s deveria favorecer as formas de

expressão características de cada pessoa e de cada grupo, a partir das suas experiências de vida e dos seus valores específicos.

D e u m m o d o geral, a recuperação e a rees­truturação dos recursos e dos meios de que dispõem, para se realizar e exprimir, os gru­pos sociais desfavorecidos ou marginalizados deveriam ser considerados prioritários.

Assim, apesar de u m a enorme multidão engrossar todos os anos a população urbana, a grande maioria dos habitantes dos países e m desenvolvimento continua a viver e m pequenas aldeias ou e m quintas isoladas; alguns continuam a ser nómadas; assistimos a u m empobrecimento constante da maior parte das zonas rurais, assim c o m o à sua des-truturação social e cultural. Trata-se de ajudar estas zonas a reencontrar u m equilíbrio, evi­tando que tenham de enfrentar de m o d o d e m a ­siado brutal o choque c o m o m u n d o moderno, aproveitando o progresso técnico e social, de maneira que possam encontrar o domínio da sua transformação.

Novas categorias de pessoas desfavorecidas — pessoas inadaptadas socialmente, imigra­dos, desempregados... — vieram progressi­vamente juntar-se às categorias já existentes: analfabetos, deficientes físicos e mentais. Importa estabelecer acções adaptadas às necessidades de todos estes grupos.

Métodos

Sejam quais forem os conteúdos, o objectivo final da educação dos adultos — o reconhe­cimento, pelo adulto, c o m o apoio do meio, dos problemas que se lhe apresentam — deve­ria inspirar directamente os métodos aplicados. O objectivo prosseguido exclui toda a forma­ção cujos princípios, conteúdos ou métodos sejam impostos. O objectivo prosseguido exclui igualmente todo o método estereoti­pado, todo o método que organize a depen­dência dos adultos e m formação, todo o m é ­todo que introduza u m corte entre estes adul­tos e o seu meio, ou a sua vida quotidiana.

É necessário admitir que todo o adulto e m formação possui u m a soma de experiên-

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cias pessoais singulares, e se situa no cerne de u m a rede de inter-relações que conferem à sua situação u m carácter único.

O problema da educação dos adultos con­siste essencialmente e m tornar educativas estas experiências e esta situação. O que só é possível proporcionando ao adulto os meios de as aproveitar a título individual e colec­tivo.

Assim, é conveniente não desprezar, e m proveito de u m a única fase — a fase da apli­cação — as outras fases igualmente funda­mentais que todo o programa de educação de adultos deveria incluir, e, e m particular, as fases de definição dos objectivos e de ava­liação da formação dispensada.

Entre as características de cada adulto e m formação figuram a natureza e a importância das sujeições que pesam sobre ele. Assim, importa procurar e adoptar os meios mais apropriados para inserir a educação na vida dos indivíduos, tendo e m conta o m o d o como partilham o tempo entre tempo livre e tempo de trabalho. E m vez de adaptar o indivíduo aos horários de educação, são estes que devem adaptar-se às necessidades do indivíduo.

Finalmente, deveria dedicar-se u m a espe­cial atenção ao apoio pedagógico, assim como aos equipamentos utilizados como suporte das acções de educação dos adultos. O s adul­tos deveriam, tanto quanto possível, estar associados à escolha e, e m certos casos, à elaboração do material pedagógico a utili­zar durante as acções e m que participam.

N o que diz respeito aos equipamentos, con­vém utilizar, sempre que possível, as infra--estruturas existentes no domínio educativo, científico, cultural, desportivo, social e dos tempos livres. O emprego múltiplo dos equi­pamentos é u m factor de variação das activi­dades realizadas, de libertação dos diversos aspectos da vida, de luta contra a segregação entre grupos etários ou entre grupos sociais. M a s a educação dos adultos adapta-se aos locais mais quotidianos; a oficina, o campo, a via pública proporcionam, e m muitos casos, u m quadro tão satisfatório como u m a sala de aula ou u m centro cultural.

Outros problemas

Para além dos objectivos, das estruturas, dos conteúdos e dos métodos que contribuem para a definir, outros problemas respeitantes à edu­cação dos adultos mereceriam ser objecto de u m a regulamentação. Trata-se, e m particular, das relações entre educação dos adultos e educação dos jovens; das relações entre edu­cação dos adultos e trabalho; da formação e do estatuto das pessoas que intervêm e m m a ­téria de educação de adultos; da cooperação internacional.

N o que respeita às relações entre educação dos adultos e educação dos jovens, convém salientar dois fenómenos complementares: por u m lado a influência que exerce a posse de u m a educação prévia sobre as possibilidades de acesso e de participação frutuosa na edu­cação dos adultos, por outro lado, as lições que as formações iniciais poderiam retirar da educação dos adultos e que militam a favor de u m a reformulação e de u m a reordenação da educação dos jovens, tanto nas estruturas c o m o nos métodos.

N o que diz respeito às relações entre edu­cação dos adultos e trabalho, é incontestável que constituem apenas u m aspecto particular dos problemas suscitados pelo desenvolvi­mento da educação dos adultos. M a s trata-se de u m aspecto que se presta a u m a regula­mentação, e sobre o qual se efectuaram já reflexões profundas n u m certo número de paí­ses, e também nas organizações internacionais. Foi assim que a O I T adoptou, e m 1974, u m a convenção e u m a recomendação internacionais sobre as férias de educação pagas. Convém, portanto, enunciar os grandes princípios sus­ceptíveis de guiar a política a aplicar neste domínio.

N o que respeita ao pessoal, convém salien­tar que existe u m a qualificação de educador de adultos, e que esta deve ser adquirida. O problema do pessoal deve, portanto, ser posto e m termos de mobilização de recursos, de preparação dos educadores de adultos para as responsabilidades que deverão assu­mir e de alternância entre estas responsabili-

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dades e outras actividades, profissionais ou não.

O s problemas de educação dos adultos são, porém, suficientemente complexos para que seja progressivamente criado u m corpo de especialistas capazes de contribuir para a for­mação dos formadores e para reflexões mais fundamentais. Finalmente, a educação dos adultos não necessita apenas de educadores e de animadores, mas também de planificadores, de administradores, de psicólogos, etc.

N o que respeita à cooperação internacional, a sua utilidade no domínio da educação dos adultos não carece de confirmação. Assim, conviria reforçar esta cooperação, e m espe­cial através de u m a consulta sobre problemas específicos de interesse c o m u m , fazendo bene­ficiar os países que assim o desejarem do con­tributo de competências externas, tendo e m vista a mobilização dos recursos humanos e materiais destinados à educação dos adultos, criando ou desenvolvendo as actividades dos centros e serviços próprios à sua inserção n u m sistema internacional de documentação, de recolha e de tratamento de dados compa­ráveis, e apoiando a acção desenvolvida pelas associações regionais e internacionais que se ocupam da educação dos adultos.

M a s existe u m domínio e m que se exige

u m a acção particular: o preço dos equipa­mentos e do material educativo e, e m espe­cial, das técnicas e programas audiovisuais, constitui u m sério obstáculo à sua difusão: conviria, portanto, que a comunidade inter­nacional unisse os seus esforços para encon­trar soluções racionais para este problema, e eliminar as regulamentações restritivas que estão na origem desta situação.

Finalmente, interessa recordar que consti­tui tanto u m acto de justiça c o m o de b o m senso continuar a apoiar, de maneira eficaz, atra­vés de acções desenvolvidas tanto no plano bilateral c o m o por intermédio de organismos internacionais, os esforços educativos a favor dos adultos, empreendidos pelos países e m desenvolvimento e e m particular, por aqueles cuja proporção de adultos iletrados é mais ele­vada. Importa, porém, que a assistência externa não assuma a forma de u m a simples transferência das estruturas, programas, m é ­todos e técnicas próprias dos provedores de assistência; a assistência externa consiste e m suscitar e estimular o desenvolvimento endó­geno nos países interessados pela criação de instituições apropriadas e de estruturas coe­rentes adaptadas às condições particulares destes países, assim c o m o pela formação de pessoal especializado.

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Lucille M a i r

A educação dos adultos, as mulheres e o desenvolvimento

A concepção do desenvolvimento internacio­nal que estava e m curso desde o fim da segunda guerra mundial revelou-se impraticável no m u n d o e m plena mutação dos anos setenta.

C o m efeito, esta concepção salientava explicitamente a noção de crescimento eco­nómico baseada na experiência das nações industrializadas na economia de mercado. O tipo de desenvolvimento e a estratégia adoptados por estes países pareciam ter sido salutares e, na opinião dos promotores do ï e do n Decénios do desenvolvimento, o m e s m o caminho deveria poder conduzir os países não industrializados ao sucesso.

D e resto, durante os dois últimos decénios, certas regiões «subdesenvolvidas» da Ásia, de África, da América Latina e das Caraíbas registaram efectivamente, no domínio econó­mico, progressos cuja medida nos é dada por certos índices tais c o m o o rendimento por habitante, o rendimento nacional, a produção industrial e outros ainda; estes critérios estão de acordo c o m os princípios estabelecidos no quadro das estratégias internacionais do desenvolvimento.

Raros são, no entanto, os que clarificam de u m m o d o válido, a situação das camadas mais numerosas da população do globo: a sua extrema miséria é, no entanto, b e m conhecida e está b e m patente. O s grandes meios de informação permitem, na verdade,

Lucille Mair (Jamaica). Representante permanente da Jamaica junto das Nações Unidas, Nova Iorque.

actualmente, que os privilegiados do planeta conheçam melhor as condições de existência dos deserdados do que as conheciam no pas­sado, ainda há vinte anos. A recíproca tam­b é m é verdadeira.

É , portanto, c o m o conhecimento de todos que a diferença entre os níveis de vida dos povos se acentua perigosamente de região para região. Possuindo provas concretas da incrí­vel existência vivida pela grande maioria dos homens e das mulheres nos três continentes do hemisfério Sul, apesar dos dois decénios de «desenvolvimento», os responsáveis pela pla­nificação nacional e internacional esforçam-se actualmente por modificar a orientação a fim de que o ser h u m a n o se torne o verdadeiro objectivo do desenvolvimento e se mantenha no cerne de todas as novas formulações e do conjunto das estratégias reexaminadas.

M a s , não é fácil realizar esta tarefa : de facto, não podemos estar certos de que, nos domínios essenciais e m que se estabelecem decisões, o desejo de desenvolvimento esteja à altura da miséria humana . A este respeito, os proces­sos que se desenvolvem no seio da Organi­zação das Nações Unidas são significativos.

A necessidade de dispor rapidamente dos modelos de desenvolvimento que permitam responder efectivamente às aspirações funda­mentais dos homens e das mulheres mostra--nos que se torna cada vez mais urgente a instauração de u m a nova ordem económica mundial definida e m diversas assembleias e órgãos das Nações Unidas. A comunidade internacional mobiliza, actualmente, muitas

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A educação dos adultos, as mulheres e o desenvolvimento

energias e competencias para negociar o seu estabelecimento através de u m a rede de orga­nismos regionais e internacionais fazendo ou não parte do sistema das Nações Unidas. M a s a crise mundial actual está tão inextri-cavelmente ligada à crise da energia e a outros fenómenos monetários e económicos particulares —recessão, inflação, desequilí­brios comerciais •— que estes problemas pas­saram para primeiro plano e que as negocia­ções internacionais que se realizam e m Paris, Nairobi, Nova Iorque e outros locais se debru­çam essencialmente sobre os produtos de base, as barreiras comerciais, a dívida internacio­nal, a indexação, as flutuações dos preços e a transferência das técnicas, problemas cujas incidências sobre u m a organização do m u n d o são fundamentais, devendo esta reorganização permitir a descoberta de novos recursos de desenvolvimento. N o entanto, é perfeitamente admissível que estas instâncias, cujos centros de interesse são inevitavelmente de ordem comercial e financeira, percam de vista as pessoas abrangidas pelas questões económicas e m discussão. A s decisões económicas e téc­nicas tomadas transformá-las-ão e m vítimas ou beneficiários, conforme sejam, ou não, ditadas por preocupações de ordem humana. O verdadeiro significado destas negociações é, na verdade, a existência presente e futura de milhões de homens, mulheres e crianças do m u n d o e m desenvolvimento.

E tudo leva a crer actualmente que nos encontramos e m presença de u m a verdadeira crise de sensibilidade. Ninguém ignora, por exemplo, que a crise da energia abalou pro­fundamente a segurança política e económica habitual das democracias industriais ociden­tais. Salientando de m o d o espectacular a interdependência que caracteriza o m u n d o contemporâneo, esta crise teve igualmente o efeito de incitar certos países a libertarem-se das suas obrigações e m matéria de desenvolvi­mento internacional. O seu empenhamento, que sempre se tinha revelado imbuído de certas reservas, parece actualmente recuar e, no seio de algumas instâncias regionais e internacionais, a sua preocupação máxima parece consistir e m evitar u m novo abalo

da sua sociedade e da sua economia. Perante o resultado duvidoso da quarta e recente C N U C E D 1 , deveríamos marcar u m a pausa e interrogarmo-nos sobre o facto da tomada de consciência da dimensão humana do desen­volvimento ser ou não suficiente para se tra­duzir por decisões políticas.

À medida que a dimensão h u m a n a da pla­nificação do desenvolvimento assume mais importância, sucede o m e s m o c o m a dimensão política. N a verdade, a qualidade da vida deter­mina os objectivos, mas é o processo político que define os meios e regula o ritmo do desen­volvimento. Haverá sempre ocasião para efec­tuar, de maneira explícita, opções políticas, quer se trate de descobrir ou de adquirir os recursos necessários.

E , nesta fase, a crise confunde-se c o m u m problema de soberania.

Este problema põe-se simultaneamente no plano nacional e internacional. Diz respeito a todos os membros da comunidade interna­cional, incluindo aqueles cuja soberania se exerceu no passado muito para além das suas fronteiras e aqueles que acabam de a adquirir.

A maior parte dos recursos necessários ao desenvolvimento está ainda nas mãos daque­les que n e m sempre sabem apreender a exten­são das necessidades do m u n d o relativamente pouco desenvolvido. Estes recursos estão igualmente na posse, de m o d o inquietante, daqueles que ainda têm interesse na conser­vação do subdesenvolvimento. A libertação destes recursos é, porém, a condição sine qua non do desenvolvimento.

Além disso, compete ainda às nações mais atingidas pelo problema do desenvolvimento — as que acabam de aceder à independência — assumir plenamente a sua soberania. A «sín­drome de dependência», legado do colonia­lismo, é o corolário do subdesenvolvimento e o inimigo da soberania.

É evidente que esta síndrome restringe a aptidão das nações e m desenvolvimento, c o m o maior grupo de Estados independentes, para porem e m causa nos seus próprios funda-

1. Conferência das Nações Unidas sobre o comércio e o desenvolvimento.

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Lucille Mair

mentos, o princípio da economia mundial aberta que se esforçam actualmente por refor­mar, para exercerem a sua vontade soberana quando se trata de abordar, no plano nacio­nal e internacional, o problema crucial da repartição dos recursos, e para conceber estruturas inteiramente novas tendo e m vista o desenvolvimento. A maior parte dos paí­ses e m desenvolvimento têm ainda progres­sos decisivos a realizar no domínio da abs­tracção.

A história de muitos dos territórios da região das Caraíbas tornou-os estranhamente vulneráveis sob este aspecto. Foram criados, na origem, pelos países capitalistas da Europa Ocidental e m busca de plantações no N o v o M u n d o e que organizaram a exploração na base da monocultura orientada para a expor­tação, c o m u m a mão-de-obra utilizada à força. A independência política adquirida pelas antigas colónias britânicas nos últimos dez anos não serviu sequer para modificar, de imediato, e de maneira sensível, a dependência e a orientação para o exterior que lhes eram inerentes. Foi assim que, durante os anos sessenta, fizeram objecto de u m a aplicação sistemática dos modelos ocidentais de desen­volvimento, e m matéria de industrialização e de importação de capitais, por exemplo. Assistiram também ao aparecimento dos sinais clássicos da incapacidade destes modelos para melhorar a existência dos povos da região, atingindo o desemprego, e m particular, e m 1972, cerca de 25 por cento da população e m certos territórios.

Para eliminar estas tendências é manifesta­mente indispensável romper c o m o passado. Seria capital, por exemplo, começar por pro­ceder a u m a nova avaliação da agricultura, que foi o sector mais desprezado dos anos sessenta e cuja produção decresceu e m valor relativo e m toda a região das Caraíbas, e, e m certos locais, e m valor absoluto.

A procura de novos meios e objectivos deve apoiar-se na capacidade dos Estados sobera­nos se libertarem de acordos económicos inter­nacionais e m vigor, construindo a sua economia na base de u m a autonomia colectiva. A sobre­vivência do complexo de dependência impede

ainda que certos países e m desenvolvimento enveredem resolutamente por esta via. R e ­ceiam também que, ao fazê-lo, os países desen­volvidos se sintam libertos das suas obriga­ções perante o m u n d o . Criar integralmente, ou quase, instituições regionais e internacio­nais capazes de mostrar que o Terceiro M u n d o começa a encontrar os seus próprios recursos constitui u m a tarefa árdua.

À escala nacional a dificuldade não é menor. M a s , a este nível, é talvez mais fácil recen­sear os meios de acção : u m a população sensi­bilizada por u m a imagem positiva de si pró­pria, e que a faz considerar-se simultanea­mente como instrumento e beneficiária do desenvolvimento, transmite o seu dinamismo a mecanismos eficazes de modificação.

O processo de sensibilização é u m a fun­ção essencial do processo político que se tra­duz pelo exercício do poder e das responsa­bilidades, pela repartição dos recursos e pela tomada de decisões. O poder político que fornece o impulso necessário a esta sensibi­lização deve ser considerado por todos não como u m a força independente, mas como u m impulso colectivo tendente à concretização das aspirações do h o m e m . É necessário ter e m conta que a vontade política tem apenas u m a justificação, e que esta é de ordem moral.

O problema que se põe é o seguinte: que faz u m a sociedade para comunicar ao povo as competências, a confiança e o dinamismo de que necessita para exercer os seus direitos políticos, apoderar-se dos seus recursos e transformá-los no interesse nacional?

A função da educação torna-se essencial, considerando o termo educação na sua acep­ção mais ampla de processo educativo neces­sariamente comprometido.

É evidente que, antes do acesso do Terceiro M u n d o à independência, o ensino nunca era neutro. Visava indubitavelmente, embora, por vezes, de m o d o subtil, o apoio ao regime colonial. Os novos Estados independentes herdaram, e m geral, estes objectivos, que acei­taram como complemento dos modelos de desenvolvimento económico e m utilização.

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A educação dos adultos, as mulheres e o desenvolvimento

A s incidências são múltiplas. A combina­ção de u m a rede de estruturas educativas de tipo clássico e de instituições de comunicação e de informação de carácter formal e não formal constitui aquilo que poderemos desig­nar por «indústria do cérebro», u m dos mais subtis empreendimentos supranacionais de infiltração que, por n e m sempre ser com­preendido como tal, é talvez ainda mais influente. N ã o ignoramos a aptidão dessa «sociedade de submissão» (de que os sistemas escolares do Terceiro M u n d o são muitas vezes as filiais locais) para erigir e m verdade a contra-verdade. Contribuiu para reforçar o neo-colonialismo, o elitismo, o individua­lismo económico e os desequilíbrios socio­económicos que daí resultam, para não falar do efeito desgastante sobre as culturas autóc­tones.

Esta infra-estrutura educativa, tal como os modelos de desenvolvimento que nela se apoiam, deve ser alterada, u m a vez que o seu carácter e a sua vocação essencialmente políticos tenham sido revelados e plenamente compreendidos.

E o problema mais difícil de resolver nesta tarefa de reoganização da educação é, sem dúvida, o dos adultos já condicionados, total­mente ou e m parte, para a aceitação de certos valores e certas ideias sobre a competência e a não-competência que são muitas vezes ina­daptadas, ou até disfuncionais. Desaprender para reaprender é sempre u m processo com­plexo.

O que importa é a substituição pela pro­cura do interesse c o m u m do direito incon­dicional do indivíduo agir no quadro de u m a economia de mercado onde reine a lei do maior lucro. O individualismo económico é o núcleo irredutível da doutrina liberal oci­dental que se formou n u m a outra época, n u m outro local, e cuja validade para u m terço do m u n d o e m efervescência deve ser seriamente posta e m causa.

Esta contestação deve ter origem essencial­mente nessa massa de homens e mulheres que têm à sua disposição, segundo as normas ocidentais, poucas ou nenhumas realizações técnicas ou intelectuais, mas que, no entanto,

fornecerão o impulso e o material necessá­rios à reconstrução nacional, remodelarão as estruturas educativas a fim de edificar u m sistema adaptado assente n u m a filosofia per­tinente do desenvolvimento, através do qual serão, por sua vez, remodelados.

A s formas institucionais devem, pois, faci­litar a função múltipla de cidadão, de cons­trutor, de produtor e de estudante que estes homens e mulheres terão de desempenhar.

É essencial que esta reconstrução das ins­tituições seja conduzida c o m a participação de todos. Todas as camadas da sociedade, incluindo as menos evoluídas, sabem como desejam organizar a sua existência. A sua percepção pode ser limitada pelo meio e pelas possibilidades que lhes são oferecidas. Ignorar esta realidade poderia comprome­ter seriamente a obra de reconstrução, enquanto, por outro lado, tê-la e m conta e utilizá-la permitiria aumentar o volume dos recursos utilizáveis no processo de aprendi­zagem.

Sob este aspecto, devemos tirar alguns ensi­namentos do exame crítico que a U N E S C O acaba de fazer do seu programa experimental mundial de alfabetização. Salienta-se da ava­liação mais recente efectuada pela Organização sobre os progressos realizados no domínio do ensino dispensado a adultos jovens n u m certo número de países e m desenvolvimento, que as formas autoritárias de ensino apresentam resultados menos satisfatórios de que as que reconhecem explicitamente a experiência e a intuição dos adultos como ponto de partida válida para a aquisição dos conhecimentos.

O mito do conservantismo obstinado do «povo», e m particular no campo, é profundo. Afirma-se, por vezes, que essas pessoas são reticentes a toda a inovação. M a s essa afir­mação não tem e m conta que as massas mise­ráveis, tanto no meio rural como no meio urbano, são cada vez mais sensíveis ao que é verdadeiramente a qualidade da vida, e que, por conseguinte, estão cada vez mais dispos­tas a participar n u m a experiência que lhes porporcione os meios de escapar à sua triste condição.

Mais difícil de transpor do que o conser-

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vantismo popular é, talvez, o obstáculo repre­sentado pelo imobilismo de urna burocracia que deveria, pelo contrario, pensar nas suas relações c o m a população e as instituições n u m a perspectiva evolutiva, admitir a priori­dade de u m a sobre as outras, adquirir a m a ­leabilidade que permite o aparecimento de estruturas criadas pelas necessidades expli­citas da comunidade e reconhecer o valor de muitas estruturas endógenas que constituem precisamente a finalidade de u m projecto desse tipo.

O Terceiro M u n d o está cheio de formas culturais autênticas que são testemunho da imaginação de que os povos são capazes para superar as dificuldades quotidianas nos domí­nios da organização religiosa, agrícola, finan­ceira ou doméstica. Preservar e favorecer o pleno desenvolvimento dos valores e sistemas tradicionais não significa retrocesso, mas , pelo contrário, proceder de m o d o que as novas orientações do desenvolvimento sejam humanistas, racionais e verdadeiramente dinâ­micas, apoiando-se no fundamento sólido de u m a aquisição antiga e familiar para se lan­çar no inédito e no desconhecido.

Alguns factos fazem-nos já pensar que as mulheres reagem favoravelmente quando se encontram no seio de u m grupo no qual, para além de qualquer imposição e quadro rígido, vivem a experiência de relações de interacção e confrontação da sua experiên­cia c o m as necessidades futuras, o que lhes permite ir ao encontro de soluções criadoras. Esta verificação é importante na perspectiva de toda a concepção alargada do desenvolvi­mento. N a verdade, é impossível orientarmo--nos para as políticas inovadoras indispensá­veis neste fim de século sem ter e m conta o que este processo exigirá das mulheres, que constituem a maior parte da população adulta do m u n d o e m desenvolvimento e que foram sempre mantidas à margem desse desenvolvi­mento.

A sua condição constitui simultaneamente u m a justificação e u m catalizador da trans­formação, pois algumas das provas mais fla­grantes da incapacidade dos modelos oci­dentais para resolver os problemas humanos

dos anos sessenta e setenta dizem respeito às mulheres: este facto basta, só por si, para justificar u m a reavaliação e u m a reorientação destes modelos.

Todos sabemos que muitas hipóteses de base emitidas pelos peritos do desenvolvimento marcaram a sua posição no que respeita às mulheres, pois as estereotipias de ocupações femininas e m que se baseavam não tinham, muitas vezes, qualquer relação c o m a reali­dade. A tendência para subestimar a contri­buição real das mulheres para a economia nacional e m tão elevado número de países conduziu ao menosprezo das suas possibi­lidades de participação n u m a economia m o ­derna e, por conseguinte, poucos instrumen­tos do desenvolvimento foram orientados para elas. Este estado de coisas teve c o m o con­sequência, e m particular, o enfraquecimento da tese optimista do «carácter inevitável do progresso» que tinha sido amplamente espa­lhada entre os planificadores dos anos cin­quenta. Foi o contrário que sucedeu c o m as mulheres, das quais a maior parte desempe­nha u m papel menos importante na economia actual do que nos sistemas económicos ante­riores ao desenvolvimento. N a realidade, os projectos c o m u m forte coeficiente de capital, que vieram reforçar os programas de auto--assistência da América Latina e outras regiões e m desenvolvimento fizeram cair e m desuso as actividades femininas tradicionais sem oferecer às mulheres outras alternativas. O produto nacional bruto global de muitos destes países aumentou por vezes, é certo, m a s c o m prejuízo para importantes secto­res da população, muito particularmente as mulheres.

Actualmente, alguns dos indicadores mais graves de subdesenvolvimento e m matéria de educação, saúde e possibilidades económi­cas, aplicam-se principalmente às mulheres do m u n d o e m desenvolvimento. A incrível extensão dos fenómenos de mortalidade e de subnutrição infantil e m todo o Terceiro M u n d o diz-nos tanto sobre a condição das mulheres como sobre a das crianças muito novas. A s mulheres representam a maior percentagem de analfabetos. A sua taxa de

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A educação dos adultos, as mulheres e o desenvolvimento

desemprego de 23 ou 25 por cento encobre u m número ainda mais alarmante, ou seja, u m nível de desemprego feminino superior a 30 por cento, isto é, duas vezes mais elevado do que o do desemprego masculino. É ainda mais inquietante verificar que poucas estra­tégias do desenvolvimento, à escala nacional ou internacional, se aperceberam verdadei­ramente do que representa este problema especificamente feminino no fenómeno do subdesenvolvimento. Talvez seja exacto afir­mar que este problema é compreendido no plano teórico, mas esta tomada de consciên­cia demora a traduzir-se e m factos. E falta ainda integrar a condição feminina e m toda a análise e avaliação das políticas do desen­volvimento.

Até m e s m o a Organização das Nações Unidas, que contribuiu, mais do que qual­quer outra, para revelar ao m u n d o a exten­são inquietante do subdesenvolvimento das mulheres, só agora começa a tê-lo e m conta de maneira explícita no exame das estratégias internacionais do desenvolvimento.

N o entanto, toda a concepção alargada do desenvolvimento e m que critérios qualita­tivos venham substituir os critérios quantita­tivos pressupõe, como é evidente, que as mulheres lhe estejam associadas.

É manifesto que as mulheres podem par­ticipar de m o d o activo no desenvolvimento, e m particular no domínio da educação dos adultos, e m que as mulheres representam u m a forte proporção tanto dos professores como dos alunos — na região das Caraíbas

a maior parte dos educadores de adultos são mulheres.

É , contudo, necessário demonstrá-lo mais u m a vez. E , neste contexto, merecem ser assinaladas manifestações recentes e signifi­cativas do papel que as mulheres desempe­n h a m na dinâmica do progresso nacional. N o s últimos vinte anos o m u n d o tem sido testemunha da notável mobilização de impor­tantes contingentes de mulheres para os movi­mentos de libertação da África, da Ásia e da América Latina, e m particular do Vietnam, de Cuba, de Angola, de Moçambique e da Guiné-Bissau. Nestas guerras populares, e m que ninguém pode ser civil, as mulheres, com­preendendo perfeitamente quais as forças políticas que estavam e m jogo, assumiram funções estratégicas nos domínios da edu­cação, da comunicação e da informação e participaram na luta activa; familiarizaram-se rapidamente c o m algumas das novas técnicas indispensáveis a u m a vitória do povo e trans-mitiram-nas à medida que as iam adqui­rindo. Além disso, tiveram ocasião de alargar os seus horizontes de mulheres. Vieram, assim, reforçar os recursos disponíveis para esta tarefa difícil mas excitante que representam não só a libertação como a reconstrução nacionais.

A mobilização deste dinamismo que pos­suem as mulheres no estado latente poderia abrir vastas possibilidades de acção, na pers­pectiva de u m alargamento dos conceitos e objectivos do desenvolvimento e certamente também da educação dos adultos.

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Yusuf O . Kassam

Escolar, extra-escolar e justiça social

A natureza

do ensino escolar

A maior parte das noções e das práticas dominantes do ensino, e m geral, e as formas institucionais deste ensino, e m particular, são objecto de críticas cada vez mais vivas tanto nos países industrializados c o m o nos países e m desenvolvimento. O s ataques con­tra o ensino de tipo clássico assumem várias dimensões: na opinião dos seus adversários, a escola dispensa aos jovens conhecimentos e m grande parte inúteis e inadaptados às necessidades; favorece o espírito de rivali­dade e prejudica a cooperação: conduz mui­tas pessoas a pôr no m e s m o plano educação e escolaridade; destrói o desejo de aprender das crianças e aliena-as da sociedade; está isolada da comunidade; sufoca a criatividade e o desenvolvimento do espírito de curiosi­dade: impõe muitos exames, etc. Estas crí­ticas, cuja lista não está, de m o d o nenhum, completa, dizem essencialmente respeito aos aspectos pedagógicos do ensino escolar. M a s , entre as críticas formuladas, as que são, de longe, mais graves e mais importantes, refe-rem-se aos papéis interdependentes que a escola desempenha ao perpetuar u m a hierar­quia de poder e de privilégio na sociedade, mantendo a supremacia da élite dominante, estimulando a estratificação das classes e impondo u m a discriminação que contraria

Yusuf O. Kassam (República Unida de Tanzânia). Professor; Departamento da educação dos adultos da Universidade de Dar es Salaam.

as classes operárias e desfavorecidas, etc. N ã o há dúvidas de que o ensino de tipo clás­sico funciona c o m o u m instrumento muito elaborado que permite rejeitar a justiça social e perpetuar as desigualdades no seio da sociedade.

Talvez seja conveniente fazer u m a breve análise da natureza e da extensão das desi­gualdades sociais que resultam do ensino escolar, a fim de ver c o m o e e m que medida u m sistema de ensino de tipo não clássico, aplicado paralelamente a transformações igua­litárias globais da sociedade, pode contribuir para assegurar a justiça social ou, por outras palavras, para remediar a diferenciação social criada pelo ensino escolar.

Carnoy rejeita a interpretação «colonizada» e falaciosa do papel da escola, segundo a qual «nas sociedades e m que reina a injustiça, a iniquidade e o marasmo económico, a escola forneceu e continua a fornecer ao indivíduo e à colectividade o meio de se libertar». D e acordo c o m esta interpretação, o ensino de tipo clássico compensa as desigualdades e as insuficiências sociais, colocando, por meio de u m a selecção objectiva, os indivíduos inteligentes nos postos elevados da hierarquia social, política e económica1.

Para analisar o papel da escola c o m o dis­tribuidor dos papéis sociais, é necessário compreender os factores que determinam o acesso ao sistema hierárquico do ensino clás­sico e que influem sobre os resultados e o sucesso obtido e m seguida no seio deste

1. Martin C A R N O Y , Education as cultural imperialism, p. 2 e 3, N e w York, David M c K a y C°, Inc.; 1974.

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Escolar, extra-escolar e justiça social

m e s m o sistema. N o s países e m que o ensino elementar é gratuito e aberto a todos toda a gente tem as mesmas possibilidades de lhe ter acesso. N o s outros países, assistimos ao aparecimento de u m a estrutura de dispari­dades b e m definida. E , quando passamos aos ensinos secundário e superior — quer o ensino elementar seja, ou não, aberto a todos e gra­tuito — torna-se evidente que as possibili­dades não são as mesmas para todos. É evi­dente, além disso, que o acesso ao sistema de ensino pós-primário e os resultados que nele são obtidos pela criança, são, e m grande parte, função da classe social a que ela per­tence. É assim que as crianças das classes operárias e desfavorecidas —devido a fac­tores tais como o meio geralmente pobre e m que vivem, o estatuto profissional e o nível de instrução pouco elevado dos pais, a m á alimentação e a insuficiência de cuidados sanitários, a ausência de livros de leitura e m casa— se encontram já e m desvantagem à partida e não obtêm, por conseguinte, bons resultados na escola. Assim, as crianças que conseguem aceder ao ensino superior per­tencem às classes privilegiadas, e como o ensino superior é a chave de u m rendimento elevado, do poder e dos privilégios, o sistema no seu conjunto reforça o statu quo das desi­gualdades sociais, económicas e políticas. Acontece, porém, que u m a ínfima proporção dos desfavorecidos consegue passar através da «peneira». Citando de novo Carnoy: «... nas sociedades capitalistas, a escola per­mite efectivamente que u m a pequena per­centagem do proletariado urbano e u m a frac­ção ainda mais reduzida do proletariado rural melhore a sua condição; pode também sus­citar a discordância e o aparecimento de u m pensamento original, capaz de constituir u m a força intelectual importante a favor de u m a reforma da sociedade. N o entanto, não se trata do objecto principal n e m das caracte­rísticas funcionais dos sistemas escolares; trata-se de subprodutos da escola...»1.

Diversos eufemismos — c o m o o mérito, as capacidades intelectuais e as aptidões — foram utilizados para dissimular o papel de selecção social profundamente injusta da

escola. A medida das aptidões e da inteligên­cia foi institucionalizada sob a forma de exames que se apresentam ostensivamente como fazendo parte do processo de democra­tização e de justiça social. Ora, o conteúdo dos exames (e dos testes de determinação do quociente intelectual) está adaptado às nor­mas e aos valores das classes já privilegiadas.

N a maior parte dos países e m desenvolvi­mento de África, da Ásia e da América Latina, o papel do ensino escolar e m relação à justiça social assume u m a importância ainda mais determinante. N u m a situação caracterizada pela pobreza, por u m a taxa de analfabetismo elevada, pela ausência de u m ensino primário universal e por possibilida­des muito limitadas e m matéria de ensino secundário e superior, a minoria que con­segue «vencer» graças ao ensino de tipo clás­sico constitui u m a élite muito reduzida e muito privilegiada cujos rendimentos pro­fissionais são várias vezes superiores ao ren­dimento por habitante do país. Por outras palavras, cava-se u m imenso fosso educa­tivo e económico entre u m a pequena élite afortunada e a grande massa da população que praticamente não beneficiou das possibi­lidades do sistema escolar. Entretanto, outra disparidade surge entre as regiões urbanas relativamente privilegiadas e as regiões rurais e m que vive a maior parte da população. Embora muitos dos países que acabam de aceder à independência tenham tentado ins­taurar u m a melhor justiça social e económica, « u m enorme fosso separa frequentemente a ideologia igualitária da dura realidade» 2.J

Ninguém duvida de que, depois do acesso à independência, os países do Terceiro M u n d o desenvolveram o ensino de tipo escolar de u m a maneira impressionante, no que diz res­peito tanto aos efectivos c o m o às possibili­dades de acesso. N o entanto, muitos sinais mostram que a elevação da taxa média de escolarização não é sinónimo de melhor igual-

1. Martin C A R N O Y , op. cit., p. 13. 2. Philip F O S T E R , «Access to schooling», em D o n

Adams (dir. publ.), Education in national develop­ment, p. 13, London, Routledge and Regan Paul, 1971.

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Yusuf O . Kassam

dade de oportunidades. Foi assim que Fos­ter, baseando-se no estudo de u m certo número de países asiáticos e ao Sul do Sara concluiu que u m alargamento quantitativo espectacular das possibilidades de acesso à educação não conduz «a nenhuma modificação sensível da distribuição relativa das oportunidades entre os grupos regionais ou étnicos ou entre as categorias socioeconómicas das populações nacionais1. N u m outro estudo recente sobre u m grande número de países da Europa Oci­dental, os Estados Unidos e alguns países africanos, A . Le Gall rejeita «a ideia dema­siado simples de que a democratização dos ensinos secundário e superior está assegu­rada desde que se abram as portas ao maior número possível de alunos2.»

Muitas críticas preconizaram a reforma radical do sistema escolar, enquanto outras propuseram a abolição completa deste sis­tema e o recurso a «soluções de substituição». Porém, torna-se cada vez mais evidente que o ensino não pode conduzir a nenhuma trans­formação a favor da justiça social se a socie­dade no seu conjunto se caracterizar essen­cialmente por u m a organização desigual e injusta das relações sociais na produção e no poder político. C o m o afirmaram Chañan e Gilchrist, «a escola não é a origem dos males sociais, n e m o reflexo fiel dos males que decor­rem da sociedade no seu conjunto3.»

Por conseguinte, é imperioso modificar a estrutura socioeconómica da sociedade antes de empreender a reforma do seu sistema edu­cativo. Carnoy defende que «a solução de subs­tituição não é a 'escola aberta' como propôs Silbermann, n e m métodos de ensino ou pro­gramas que apresentem, de m o d o mais eficaz, conhecimentos colonizadores. Estas reformas são concebidas para acentuar a legitimação de u m a estrutura social piramidal e das rela­ções hierárquicas na produção. O novo tipo de ensino deveria, pelo contrário, procurar criar ou reforçar u m a sociedade não hierárquica, na qual a propriedade não conferiria direitos sobre as pessoas e na qual — teoricamente — ninguém teria o direito de dominar o vizinho. N ã o seria u m a sociedade 'igualitária', no sen­tido de semelhança entre todos os membros;

as pessoas exerceriam actividades diferentes, mas estas actividades não lhes confeririam poder sobre a vida do outro. Cada u m agiria por conta do outro, e m virtude de u m acordo c o m u m 4 . »

Que pode fazer

o ensino extra-escolar?

E m substituição do ensino escolar, propôs-se muitas vezes o ensino de tipo não clássico como u m meio de atingir u m a maior justiça social. N o momento e m que muitos países e m desenvolvimento estão seriamente empe­nhados nessa luta longa e difícil que pretende transformar o tipo de sociedade forjada pelos colonizadores e destruir os mitos sociais e eco­nómicos herdados da dominação imperialista ocidental, parece-nos útil examinar como, e e m que medida, o ensino extra-escolar pode remediar a injustiça social que é perpetuada pelo ensino de tipo clássico.

A E D U C A Ç Ã O D E MASSA

N o s países e m desenvolvimento, e m que o ensino escolar serve u m a ínfima fracção da população, o reforço massivo do ensino extra--escolar pode oferecer toda u m a série de pos­sibilidades a u m número muito maior de pes­soas e contribuir, assim, para tapar o fosso que separa a massa da élite. O primeiro objec­tivo do ensino estra-escolar consiste e m «ofe­recer à massa dos agricultores, dos operários e dos pequenos empresários, assim como àqueles que nunca entraram n u m a sala de aula — e que talvez nunca cheguem a entrar — u m a quantidade de técnicas e de conheci­mentos úteis que poderão aplicar sem demora

1. Ibid., p. 22. 2. A . L E G A L L , «Differentiation et démocratisation

au second degré et dans l'enseignement supérieur», e m : A . L E G A L L e outros, Problèmes actuels de la démocratisation des enseignements secondaire et supérieur, p. 21, Paris, Unesco, 1973.

3. G . C H A Ñ A N e L . G I L C H R I S T What school is for, p. 13, London Methuen and C°, Ltd., 1974.

4. Martin C A R N O Y , op. cit., p. 366.

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Escolar, extra-escolar e justiça social

ao seu próprio desenvolvimento e ao da sua nação1.» E m seguida, o ensino extra-escolar pode assegurar a educação permanente e substituir a escola ao fornecer a todos aqueles que terminam o ensino primário ou secundá­rio, assim como aos que abandonaram a escola a meio dos estudos, u m a formação que lhes permita encontrar u m emprego produtivo ou que os ajude a encontrar u m a actividade profissional independente. Finalmente, o en­sino extra-escolar pode contribuir para aumen­tar as aptidões e a competência daqueles que já possuem u m emprego2.

C o m o já foi dito, o ensino extra-escolar deveria destinar-se e m primeiro lugar à grande maioria daqueles que praticamente não bene­ficiaram do ensino escolar. Além disso, como vimos no caso do ensino de tipo escolar, não é o desenvolvimento quantitativo global do ensino extra-escolar que pode necessaria­mente repartir mais equitativamente as opor­tunidades de acesso à educação. C o m o se afir­m o u na III Conferência Internacional sobre a Educação dos Adultos (Tóquio, 1972), o aumento do número de participantes nos pro­gramas de educação de adultos «não conduz necessariamente à democratização, apesar de se ter reconhecido plenamente que a demo­cratização se encontra favorecida pela difusão das técnicas de base, incluindo a alfabetização. O s que beneficiam da extensão da educação dos adultos são, muitas vezes, já privilegia­dos: aos que já têm alguma coisa, dá-se mais. E m muitos países, recusa-se o acesso à educa­ção a grande número de adultos, ou, então, estes não utilizam as possibilidades que lhes são oferecidas. Assim, u m a extensão pura­mente quantitativa pode acentuar ainda, e não reduzir, as desigualdades sociais3.»

E m vez de oferecer u m tipo de ensino «extra-muros» que, e m geral, só é dispen­sado nas zonas urbanas e se destina aos que já frequentaram a escola, deveria dar-se prio­ridade a u m a «educação de massa» conce­bida para melhorar as condições de vida da maioria da população. O s programas de educação de massa prevêem geralmente a alfa­betização ou a alfabetização funcional, que permite que o indivíduo se liberte da explo­

ração, da manipulação e das outras injustiças sociais. Quando as pessoas não parecem nada interessadas nas possibilidades educativas que lhes são oferecidas, deveria competir ao ensino extra-escolar e à educação dos adultos e m ­penhá-las naquilo que Paulo Freire designa por «tomada de consciência crítica da sua realidade», e, para retomar a expressão de Nyerere, «sacudi-las para que não aceitem resignadamente o género de vida que conhe­ceram durante séculos4». E m outros casos, quando todo u m conjunto de factores impe­d e m o operário, por exemplo, de utilizar as possibilidades que lhe são oferecidas e m matéria de educação, deveriam tomar-se medidas regulamentares, como foi feito na República Unida da Tanzânia, para lhe per­mitir dedicar, no quadro do seu horário de trabalho, u m certo número de horas à sua edu­cação.

AS DISPARIDADES C I D A D E - C A M P O

A s profundas disparidades de toda a espécie que existem entre a cidade e o campo devem--se, e m grande parte, à natureza do ensino escolar e à estrutura do emprego. A o fazer incidir o essencial dos programas sobre a massa da população rural, o ensino extra--escolar contribui para atenuar estas profun­das disparidades. A o ter e m vista o desenvol­vimento rural, o ensino extra-escolar não deve­ria limitar-se à alfabetização e ao ensino pro­fissional, agrícola ou outro. N o interesse da justiça social, a educação, o melhoramento da habitação, de saúde, da nutrição, da assis­tência infantil, da economia doméstica, assim

1. Philips H . C O O M B S , The World educational crisis, p. 138, (A crise mundial da educação), N e w York Oxford, University Press 1968.

2. Ver também James R . SHEFFIELD e Victor P. D I E -J O M A O H Non-formal education in African deve­lopment, N e w York African-American Institute, 1972.

3. U N E S C O Rapport final de III' Conférence inter­national sur l'éducation des adultes, p. 13, Paris, UNESCO, 1972.

4. Julius K . N Y E R E R E , «Adult education year», Freedom and development, Dar es Salaam, Oxford University Press, 1973.

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Yusuf O . Kassam

como de outros domínios conexos que podem contribuir imediatamente, e praticamente, para a elevação do nível de vida das popu­lações rurais, devem fazer parte de todo o programa do ensino extra-escolar.

O EMPREGO E O DIPLOMA

Todas estas tentativas que pretendem asse­gurar u m a maior justiça social através do reforço e da diversificação do ensino extra--escolar podem ser frustrantes para o benefi­ciário quando se trata de obter u m emprego remunerado, pois os critérios e m matéria assentam principalmente nos títulos que san­cionam os estudos de tipo clássico. Enquanto se atribuir esta importância ao diploma, o ensino extra-escolar não poderá igualar sen­sivelmente as oportunidades de acesso ao emprego. Além do mais, como mostraram certos estudos, embora seja certo que aqueles que efectuarem estudos superiores podem obter empregos melhor remunerados, os resultados profissionais e a produtividade não são necessariamente função do tipo mais ou menos clássico dos estudos seguidos1. Para certas qualificações exigidas pela indús­tria, a formação durante o tempo de emprego, por exemplo, é, no conjunto, muito mais efi­caz e conduz a melhores resultados e a u m a maior produtividade.

A SUPRESSÃO

D O CARÁCTER HIERÁRQUICO D O ENSINO ESCOLAR

A o m e s m o tempo que se torna necessário reforçar o prestígio do ensino extra-escolar e reorientar, como consequência, os critérios do emprego, urge modificar o carácter hierár­quico e piramidal do ensino escolar. U m dos meios de impedir que o sistema escolar per­petue as desigualdades sociais consiste e m eliminar a sua estrutura hierárquica supri­mindo a passagem «automática» de u m nível dado ao nível imediatamente superior. N a República Unida da Tanzânia, por exemplo, os diplomados do ensino secundário já não acedem directamente à Universidade2: devem,

primeiramente, trabalhar durante u m certo número de anos, dar provas da sua competên­cia no trabalho e de outras aptidões e obter recomendações dos empresários e das sec­ções do T A N U para que o seu pedido de admissão na Universidade seja tomado e m consideração. Trata-se de u m a reforma revo­lucionária que constitui u m a medida salutar tendente a reduzir a importância atribuída aos diplomas do ensino de tipo clássico. Por outras palavras, o facto de ser bem sucedido e m exames que sancionam estudos de tipo clássico já não é considerado o único critério de selecção para ingresso no ensino superior.

A PARTICIPAÇÃO D A POPULAÇÃO N O PROCESSO EDUCATIVO

O ensino de tipo não clássico pode promover a justiça social ainda e m outros aspectos. O ensino escolar caracteriza-se geralmente pela sua rigidez no que respeita aos progra­mas , aos métodos, à duração dos estudos e à sua distribuição no tempo, assim como por u m m o d o de aprendizagem essencialmente académico. Facto igualmente característico, os alunos não podem ter qualquer actuação sobre o tipo de ensino que lhes é dispensado ou sobre a sua organização. O ensino extra--escolar, que é, e m princípio, mais diversifi­cado e que deve adaptar-se com maleabili­dade às necessidades, tal como são determi­nadas pelos próprios interessados, pode, por­tanto, contribuir para assegurar u m a maior justiça social. O s alunos dos programas de ensino extra-escolar participam relativamente mais nas tomadas de decisão respeitantes ao processo educativo. Este processo está ligado ao princípio mais geral que consiste e m asse­gurar a justiça social atribuindo à população o poder de decidir dos problemas que lhe

1. Ver de Ivar B O R G , Education and jobs: The great training robbery, New York, Praeger, 1970.

2. Esta medida foi tomada numa das resoluções, mais conhecidas pelo nome de «Resoluções de Musoma», que o Comité executivo nacional do T A N U adoptou em Musoma (República Unida da Tanzânia), em Novembro de 1974.

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Escolar, extra-escolar e justiça social

dizem respeito; sob este aspecto, na óptica da análise histórica do colonialismo e do capitalismo, os principios directores enun­ciados pelo T A N U estipulam que «para aque­les que sofreram a sujeição e a opressão, a exploração e a humilhação do colonialismo e do capitalismo, 'desenvolvimento' é sinó­nimo de 'libertação'. Tudo o que lhes pro­porcione meios de desempenhar u m maior papel na tomada de decisões que os atinjam directamente e no m o d o de orientar a sua existencia, é u m acto de desenvolvimento, m e s m o quando não lhes assegura melhor saúde ou melhor alimentação1.»

AS ESCOLAS PRIMARIAS, CENTROS D E E D U C A Ç Ã O D O S A D U L T O S

Para assegurar o melhor possível a justiça social, podemos também integrar, de u m a certa maneira e n u m a certa medida, o ensino extra-escolar no ensino escolar. Assim, os imensos recursos — professores, material edu­cativo, equipamentos e locais — que são nor­malmente atribuídos ao ensino escolar e m benefício da minoria, podem também ser utilizados para permitir que as massas tirem proveito das possibilidades de ensino extra-escolar. Para tal, é possível — foi o que suce­deu na República Unida da Tanzânia — fazer que todas as escolas primárias sejam simul­taneamente centros de educação de adultos. « O princípio geral consiste e m fazer da escola primária o principal centro responsá­vel pela organização da educação dos adultos. A escola tornar-se-á, então, u m centro edu­cativo comunitário, e m que o ensino primário representa apenas u m a das funções. Assim concebida, a escola será cada vez mais u m centro de convergência para o conjunto das necessidades educativas da comunidade, e deixará de ser essa instituição, de certo m o d o isolada, destinada à educação das crianças2.»

O director da escola primária está encar­regado do conjunto das actividades do cen­tro e m matéria de educação dos adultos: deve determinar as necessidades da colecti­vidade, recrutar monitores competentes diri-gindo-se aos diversos organismos que se

ocupam da educação dos adultos, assim como pessoas competentes e b e m informadas que habitem na região e organizar os cursos neces­sários. Além disso, o ensino dos adultos e das outras pessoas que não frequentam a escola faz actualmente parte integrante das atribui­ções do professor. Para permitir que a escola primária leve a b o m termo os programas de educação dos adultos, concede-se-lhe u m pequeno subsídio suplementar para equipa­mento e material, mas espera-se primeira­mente que utilize ao máximo os recursos de que já dispõe.

Para preparar os professores para esta nova tarefa, todos os estabelecimentos de ensino pedagógico do país inscreveram nos seus pro­gramas cursos sobre a metodologia da edu­cação dos adultos. O u antes, todos os futuros professores são actualmente preparados para ensinar crianças e adultos, e os estágios prá­ticos dão-lhes a possibilidade de se familia­rizar tanto c o m o ensino primário c o m o c o m a educação de adultos.

os CENTROS D E E D U C A Ç Ã O COMUNITÁRIA

N a República Unida da Tanzânia, a utili­zação das escolas primárias c o m o centros de educação dos adultos venceu u m a nova etapa c o m a criação daquilo que designa­remos por «centros de educação comunitária». Segundo o plano estabelecido pelo governo, trata-se de integrar o ensino escolar e o ensino extra-escolar, por u m lado, e de integrar mais estreitamente a escola primária na comuni­dade, por outro lado. Este novo plano ins-pira-se na experiência de aldeia de Ujamaa de Kwamsisi, na região de Tanga, onde u m projecto piloto consistindo na integração das actividades da escola primária nas da

1. T A N U , TANU guidelines 1971, Dar es Salaam, Government Printer, 1971.

2. United Republic of Tanzania, Tanzania second five year plan for economic and social development (1969-1974;, vol. ï, pp. 157 e 158, Dar es Salaam, Government Printer, 1969.

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Yusuf O . Kassam

aldeia forneceu resultados animadores. E m Kwamsisi, o ensino de tipo tradicional e aca­démico é substituído por u m a preparação prática e pertinente para a vida da aldeia. O s próprios alunos são associados à prepara­ção e à execução das actividades de auto--assistência da aldeia, e os camponeses, que seguem na escola primária diversos cursos que lhe são especialmente destinados, podem igualmente formular a sua opinião sobre o conteúdo do ensino dispensado aos filhos.

N u m a primeira fase, prevê-se a constru­ção de 32 centros de educação comunitária das aldeias Ujamaa e e m quatro regiões diferentes. Dois destes centros estão a ser terminados no distrito de D o d o m a .

Além das sete classes do primário, o centro de educação comunitária contém igualmente oficinas de marcenaria, de pedreiro, de cana­lizador, latoaria e artesanato. T a m b é m se dispensa formação e m agricultura, indústria familiar, pequena indústria e economia domés­tica. U m dispensário, u m centro de assistência infantil, u m a biblioteca e u m recinto para pro­jecção de filmes e outras actividades culturais farão parte integrante do centro de educação comunitária.

O s diversos serviços educativos e outros serviços sociais serão postos à disposição dos alunos inscritos na escola primária, dos ado­lescentes e dos adultos de toda a comunidade. O abastecimento dos serviços educativos será feito c o m u m a grande maleabilidade, de m o d o a enfrentar as necessidades e os problemas particulares de cada aldeia.

ORGANISMOS DE COORDENAÇÃO

E m muitos países, o ensino extra-escolar comporta toda u m a série de programas dife­rentes a cargo de u m a gama muito diversifi­cada de organismos e instituições —gover­namentais e não governamentais— e de organismos voluntários. Para aumentar ao máximo o seu impacto e a sua eficácia e m matéria de educação de massa, é necessário criar u m a espécie de estrutura para mobilizar e coordenar os seus esforços e os seus recur­

sos. N a República Unida da Tanzânia foi criado, para este efeito, u m conjunto com­plexo de comités a todos os níveis adminis­trativos dependente do Ministério da Edu­cação Nacional. A nível nacional, o Comité nacional para a educação dos adultos, que é u m subcomité do Conselho nacional con­sultivo sobre a educação, inclui membros dos seguintes organismos : T A N U , N U T A (União nacional dos operários do Tanganica); U W T (Organização das mulheres da Tanzânia); T A P A (Associação dos pais do Tanganica); T Y L (Liga dos jovens do T A N U ) ; C U T (União cooperativa do Tanganica); Instituto da educação dos adultos assim como outros ministérios e organizações que se ocupam da educação dos adultos, e organismos volun­tários. Os comités que se ocupam da educação dos adultos à escala da região, do distrito e da circunscrição, são subcomités dos comi­tés de desenvolvimento às escalas correspon­dentes. O comité regional para a educação dos adultos tem por presidente o secretário regional do T A N U , e por secretário o coor­denador regional para a educação dos adultos. O comité é composto por altos funcionários dos principais ministérios que se ocupam da educação dos adultos — agricultura, saúde, cooperativas, etc. — de representantes da U W T , da N U T A , da T A P A , assim como das associações de missionários e de outras associações voluntárias. T a m b é m o Comité de distrito para a educação dos adultos tem como presidente o secretário de distrito do T A N U , e como secretário o responsável pela educação dos adultos no distrito. O comité para a educação dos adultos à escala da circunscrição, que é presidido pelo presidente da secção do T A N U , reúne os directores dos estabelecimentos de ensino escolar das escolas primárias, das escolas secundárias, dos cen­tros de ensino pedagógico, etc., assim como os directores das outras instituições que por­ventura existam na circunscrição, como os campos de serviço nacional, as prisões, as fábricas, etc. Finalmente, todas as escolas, colégios e outros estabelecimentos devem ter os seus próprios comités de educação dos adultos até ao nível dos comités de classe.

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V. S. Mathur

Educação dos trabalhadores e organizações populares rurais

Para avaliar correctamente o lugar que a educação dos trabalhadores, e m particular, e o ensino e m geral ocupam no desenvolvi­mento rural dos países e m desenvolvimento, é necessário ter e m conta o contexto socioeco­nómico rural, assim como os objectivos a atin­gir, e admitir a necessidade de estimular a criação de estabelecimentos e de organismos que este desenvolvimento exige. É , portanto, essencial examinar a acção já empreendida no domínio do desenvolvimento económico e avaliar os resultados obtidos, a fim de dis­tinguir os problemas que constituem u m obstáculo ao progresso, ou até m e s m o de sugerir possíveis orientações. Os educado­res poderiam, assim, esclarecer-se sobre o papel que o ensino é capaz de desempenhar no desenvolvimento.

E m todos os países e m desenvolvimento, a imensa maioria dos trabalhadores vive e trabalha no campo e é o campo que fornece a maior parte dos recursos nacionais, de tal m o d o que toda a reforma económica ope­rada neste sector terá necessariamente u m a considerável incidência sobre a evolução eco­nómica e social do conjunto do país.

V. S. Mathur (índia). Secretário regional asiático da Confederação internacional dos sindicatos livres.

Miséria e desenvolvimento

dos meios rurais

Qual é a situação económica e social nos países e m desenvolvimento? A miséria e as extremas carências e m que a maior parte do proletariado rural e do proletariado urbano vive e trabalha são demasiado conhecidas para que se torne necessário evocá-las. N ã o há certamente nada de mais surpreendente do que os gráficos dos organismos das Nações Unidas respeitantes à miséria, ao desemprego, ao subemprego, à subalimentação, às eleva­das taxas de doença e mortalidade, ao anal-bafetismo, à mediocridade do habitat e do ambiente, para só citar alguns. A despeito dos sérios esforços que os governos têm feito nos dois últimos decénios para incentivar o desenvolvimento económico e social e ape­sar da prioridade que concedem actualmente à difusão do ensino, os resultados obtidos estão longe de ser satisfatórios.

Os dirigentes do m u n d o inteiro têm subli­nhado que a paz e a estabilidade internacio­nais dependem da justiça social e que, se ignorarmos os imperativos da nossa época e continuarmos a tolerar e a favorecer a injus­tiça, pagaremos muito caro esta ignorância sob a forma de estagnação económica e social e de instabilidade política. D e qual­quer m o d o , ainda não conseguimos, até agora, resolver estes problemas. Mais u m a vez se verifica que urge proceder a u m reexame pro­fundo das políticas económicas, sociais e educativas.

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O s países e m desenvolvimento, embora difi­ram uns dos outros sob muitos aspectos, apresentam vários traços comuns. E m geral, a miséria e o desemprego são mais agudos no campo. D e m o d o quase permanente, os desem­pregados desamparados afluem do campo às cidades, onde acentuam a miséria e o desem­prego e agravam ainda mais as condições sociais já lamentáveis. Parece haver u m a ligação não só entre a miséria e o desemprego, como também entre as suas manifestações nas cidades e nos campos, pois o êxodo rural complica ainda mais os problemas urbanos. É , portanto, evidente que, para obter resul­tados tangíveis deveremos começar por con­centrar os nossos esforços sobre os proble­mas da miséria e do desemprego nos meios rurais.

A imensa maioria dos habitantes do campo trabalha na agricultura, nas agro-indústrias de transformação ou outras, ou no comércio ligado à agricultura. A lentidão dos progres­sos realizados no sector agrícola pode atri-buir-se a u m regime rural retrógrado e a técnicas ultrapassadas, embora, ultimamente, os governos se tenham mostrado muito acti­vos sob este aspecto. C o m efeito, assistimos a u m a vaga de reformas agrárias nos dife­rentes países do m u n d o e m desenvolvimento. Quanto à tecnologia, melhoramentos sensí­veis deram origem à revolução verde —justa­mente assim qualificada — que abre imensas perspectivas. N o entanto, apesar do caminho percorrido nestes dois domínios que são a reforma agrária e a tecnologia, a situação do proletariado rural não melhorou de m o d o nenhum.

Quanto ao progresso das técnicas agrí­colas, podemos afirmar que esta revolução verde tornou possíveis três fenómenos apre­ciáveis: o aumento, muito necessário, da pro­dução agrícola e das ofertas de emprego nas zonas rurais e u m a repartição mais equita­tiva dos rendimentos. Porém, ainda nada de substancial foi realizado na matéria.

A revolução verde (melhoramento das varie­dades de sementes, melhor utilização de adu­bos e outros factores de produção, desen­volvimento da irrigação e culturas mais inten­

sivas) contribuiu certamente para aumentar a produção agrícola, mas os recursos da téc­nica ainda não foram todos explorados. O s peritos pretendem que a tecnologia é neutra, mas estes métodos, tal como os créditos, são acessíveis sobretudo aos agricultores ricos.

Sendo assim, a disparidade dos rendimentos acentuou-se, o que agravou a condição do proletariado rural. C o m o os agricultores abastados têm sempre tendência para aumen­tar as suas explorações, utilizando, para as cultivar, máquinas e utensílios aperfeiçoados, as possibilidades de emprego no campo diminuíram mais ainda.

O s esforços feitos para transformar a estru­tura económica e social, nas zonas rurais, unicamente através da legislação, não obti­veram u m sucesso total. Além disso, existe menos interesse pelo simples desenvolvimento económico e mais pela transformação social que, e m especial, tem por corolário u m a maior participação do povo no desenvolvimento económico e social. Trata-se de u m motivo de regozijo mas não nos devemos deter nesta via sem ter e m conta as incidências lógicas que esta transformação pode ter: para que a participação seja efectiva, realista e cons­trutiva, deve passar pelo canal das organiza­ções populares. E , mais u m a vez, se preten­demos assegurar ao povo u m a parte justa das vantagens do crescimento, necessitamos de u m mecanismo que permita fazê-lo. A era tecnológica moderna pretende que os sindi­catos e as organizações populares sejam os únicos instrumentos eficazes de u m a justiça distributiva.

Foi precisamente nesta óptica que a Orga­nização regional asiática da Confederação internacional dos sindicatos livres decidiu favorecer a criação de organismos para o pro­letariado rural. N o quadro do projecto apli­cado e m Khazipur, e m Uttar Pradesh, na índia, foi criada u m a organização popular rural que tem essencialmente dois objectivos: fazer pressão e desenvolver. C o m efeito, por u m lado, esta organização procura exercer as pressões necessárias para fazer adoptar reformas agrárias e outras medidas socioeco­nómicas progressistas, procurando, e m se-

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guida, que elas sejam efectivamente aplica­das e, por outro lado, desempenha u m papel muito activo e m matéria de desenvolvimento cooperativo e fornece, assim, instrumentos de produção agrícola, meios de irrigação ou outros serviços secundários a pequenos agri­cultores marginais para melhorar a eficácia e a produtividade da agricultura.

A organização ocupa-se igualmente da criação de empregos para as pessoas despro­vidas de terras, de fornecer u m a formação aos artífices, de lhes proporcionar matérias--primas e de lhes oferecer outras formas de auxílio que os colocarão e m condições de exercer, de m o d o rentável, os respectivos ofí­cios. Além disso, encarrega-se de u m certo número de actividades económicas tendentes a melhorar os magros recursos das famílias rurais desfavorecidas por meio de projectos de criação de gado ou de aves de capoeira ou ainda da produção de leite. M a s , e m qualquer dos casos, trata-se sobretudo de ajudar as populações pobres das regiões rurais a ava­liar melhor os seus problemas e as medidas a tomar para os resolver e também de lhes ensinar a defender e fazer valer os seus inte­resses unindo os seus esforços. É necessário que possam reencontrar a confiança e m si próprias e acreditar na virtude de u m a acção c o m u m para introduzir as modificações dese­jáveis para a vida rural. O factor essencial, n u m empreendimento deste tipo, é, por­tanto, a educação sob as suas diferentes for­mas , consistindo o objectivo pretendido e m preparar o proletariado rural para rea­lizar as transformações sociais desejadas — tarefa que está muito longe de ser fácil.

Educação dos trabalhadores

A educação dos trabalhadores adquire u m sentido diferente segundo os países. N a A m é ­rica do Norte é quase sinónimo de formação sindical: na Europa, parece ter u m sentido mais amplo e incluir ainda a educação geral dos trabalhadores adultos, assim como a for­mação profissional. Contudo, salientam-se

sempre os problemas dos trabalhadores e as instituições mais importantes sob este aspecto são muitas vezes as organizações de traba­lhadores ou as que foram criadas por sua iniciativa ou c o m a sua colaboração. É evi­dente que participar no funcionamento de u m a organização é já u m a forma de educação. Além disso, a organização de trabalhadores que, mais do que qualquer outra, compreende as necessidades dos seus membros e goza da sua confiança, está muitas vezes mais ins­trumentada para lhes organizar programas de estudos. N o entanto, as suas actividades são muitas vezes refreadas pela falta de recursos, sobretudo financeiros. Pode ser extremamente útil coordenar as acções desen­volvidas e m matéria de educação pelas orga­nizações populares rurais e pela colectividade.

São três os principais aspectos da educação que interessam à organização. C o m o é evi­dente, esta ocupa-se da educação geral dos seus membros que é assegurada, no essencial, pelos estabelecimentos encarregados da edu­cação dos adultos. Compete-lhe ainda, mui­tas vezes, ajudar os seus aderentes a enrique­cer os conhecimentos de que necessitam para exercer as responsabilidades e a profissão correspondente aos seus objectivos e à sua função económica. Finalmente, a organização deve, por u m lado, ajudar os seus membros a compreender melhor os seus objectivos e o seu papel e, por outro lado, guindá-los à altura de participar eficazmente no seu fun­cionamento aos diferentes níveis hierárquicos. São as organizações interessadas que podem preparar melhor os seus membros para diri­gir os sindicatos e as organizações de traba­lhadores rurais e participar de maneira cons­ciente e reflectida no seu funcionamento, mas há lugar, no entanto, para u m a ampla cola­boração c o m outros organismos e m matéria de educação geral dos adultos e de formação profissional. Por exemplo, as escolas rurais podem ser utilmente requisitadas. Torna-se imediatamente rentável investir na educação geral dos adultos, pois esta determina u m a abordagem mais construtiva da produção e da produtividade e u m a participação pro­funda nos esforços de desenvolvimento; mas

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é conveniente não esquecer a educação das crianças.

E m todos os países se tem realizado urna obra apreciável e m matéria de cultura, de educação e de formação por ministérios dife­rentes do da educação, por exemplo o minis­tério da saúde ou da agricultura, sem esque­cer a rádio, a televisão e os outros meios de informação. Se todos os recursos consagra­dos à educação, à informação e à cultura fos­sem reunidos e as actividades abrangidas por estes domínios fossem eficazmente coor­denadas e integradas, poder-se-ia, talvez, fazer muito mais e obter resultados nitidamente melhores.

C o m o as organizações populares têm u m papel capital a desempenhar na evolução económica e social, é necessário tê-lo plena­mente e m conta e m tudo o que se relaciona c o m a educação. D e facto, a educação deve conduzir o h o m e m a dotar-se de bons ins­trumentos de progresso e de transformação, É necessário associar mais estreitamente o indivíduo ao processo de formação para facilitar a aprendizagem dos adultos e para favorecer o desenvolvimento da personali­dade. É possível que todos os tipos de ensino — escolar, extra-escolar e não tradicional — devam ser utilizados de acordo c o m as neces­sidades; para os adultos, como é evidente, insistir-se-á na formação extra-escolar e não tradicional. A estrutura da educação não pode ser tributária do tempo, n e m da idade, n e m

do espaço, n e m de qualquer outra condição de admissão e, por conseguinte, o ensino deveria ser dispensado e m momentos propí­cios aos beneficiários que seriam livres de começar, de interromper e de retomar os cursos quando julgassem conveniente.

A idade não deveria constituir u m obstá­culo à formação; os adultos têm u m a experiên­cia da vida que, e m certa medida, lhes per­mite compreender os problemas que lhes interessam a si próprios e à sociedade no seu conjunto. Importa oferecer-lhes a possibili­dade de completar os seus conhecimentos sem exigir previamente a apresentação de u m diploma.

É necessário avaliar melhor o papel que o ensino e, e m particular, a educação dos adul­tos podem desempenhar nas transformações socioeconómicas dos países e m desenvolvi­mento. O que supõe que a educação deixe de ser u m a acumulação de conhecimentos pas­sivos e prepare para a acção ajudando os seus beneficiários a dotar-se de meios sufi­cientemente poderosos para proteger e defen­der os seus interesses e a participar de m o d o construtivo no desenvolvimento das respec­tivas sociedades. A s organizações populares rurais são indispensáveis se pretendemos que o desenvolvimento económico e a educação divulguem a esperança e o gosto do pro­gresso nos campos contribuindo assim, efi­cazmente, para a construção de u m futuro melhor.

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Aprender a viver melhor

Mas, o que é a educação dos adultos? É muito simplesmente aprender tudo o que nos possa ajudar a compreender o meio em que vivemos e o modo como podemos modificar e utilizar este meio para o nosso bem-estar. A edu­cação não se limita ao que se passa na sala de aula.

Julius Nyerere, 1969

A razão de ser do ensino à distância — uti­lização conjunta de textos impressos, da rádio e do ensino magistral— é evidente: os que desejam beneficiar da educação são mais numerosos do que todos aqueles que os nossos professores esperam ensinar nas salas de aula tradicionais. Se a educação é necessária ao desenvolvimento — c o m o su­cede — se os que desejam tanto a educação como o desenvolvimento são cada vez mais numerosos — c o m o sucede— é necessário que encontremos outros meios de ajudar as pessoas a aprender. O ensino à distância é u m destes meios: pode melhorar a instrução que as crianças recebem na aula. M a s desem­penha u m papel provavelmente mais impor­tante na educação dos adultos, e m particular como Nyerere aponta na citação apresen­tada.

Proponho-me examinar aqui os esforços desenvolvidos para promover o desenvolvi­mento ligando o ensino magistral à rádio e aos textos impressos. Tentarei resumir o que já foi realizado para orientar a acção futura e para salientar os problemas ainda não resolvidos.

É fácil expor o problema. Ainda recente­

mente, o ensino magistral era a regra e res­pondia às necessidades da maior parte das sociedades. É evidente que ainda hoje apren­demos certamente mais, e m geral, e m famí­lia e no nosso ambiente imediato do que na escola. M a s n e m esta educação tradicional, extra-escolar, n e m a nova educação escolar nos proporcionam o que exigimos à educação : os meios de nos adaptarmos a u m m u n d o e m mutação, aproveitando as suas vanta­gens e melhorando-o. Esta crise da educação está na origem de muitos esforços tendentes a encontrar outros meios para além do ensino magistral onde esbarramos c o m a penúria mundial de professores. A s tentativas efec­tuadas para resolver os problemas da edu­cação através da radiodifusão, desde Salva­dor a Samoa, desde a índia ao Peru, encon-tram-se entre as mais importantes. M a s , como sublinhava u m estudo recente, «os seus efeitos foram muito limitados e m rela­ção à extensão dos problemas enfrentados»1.

A radiodifusão apresenta a vantagem evi­dente de poder penetrar verdadeiramente e m toda a parte. Se dispusermos de receptores (e se pudermos consertá-los quando se ava­riam), as emissões podem ser ouvidas e m qualquer aldeia de África. M a s é muito difí­cil aprender unicamente através da escuta de emissões ou da leitura de textos impressos. Estamos, portanto, n u m impasse: não pode­m o s ter professores e m todas as aldeias;

1. R . N W A N K W O I , «Educational uses of broadcas­ting», e m : S. W . H E A D (dir. publ.), Broadcasting in Africa, p. 303, Philadelphia, Temple Univer­sity Press, 1974.

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podemos ter rádio e textos impressos, mas não é essa a melhor maneira de aprender sozinho. A solução consistirá e m combinar a radiodifusão e o estudo colectivo? Projec­tos executados e m África nos últimos dez anos provaram que se trata de u m a técnica importante, até m e s m o determinante, para a educação e o desenvolvimento dos adultos — falo sobretudo de África, pois a minha expe­riência e a do International Extension College provêm essencialmente desse continente, mas penso que se encontrariam exemplos compa­ráveis na Ásia ou na América Latina. O estudo colectivo proporciona aos indivíduos a pos­sibilidade de participar no processo de ensino e na acção que daí decorre.

Nyerere escreveu e m 1968: «Devemos fazer parte da sociedade que transformamos; deve­m o s trabalhar a partir do interior e m vez de descer do nosso pedestal, como os antigos deuses, que faziam qualquer coisa e desapa­reciam. U m país, u m a aldeia, u m a comuni­dade não podem ser desenvolvidos, podem apenas desenvolver-se eles próprios... Se pre­tendemos promover u m desenvolvimento real, devemos procurar a participação da popula­ção. A s pessoas instruídas podem assumir o comando deste desenvolvimento — e devem fazê-lo. M a s só poderão transformar a socie­dade se trabalharem a partir do interior1.» Muitos projectos radiofónicos fazem-nos pen­sar nesses deuses: vindos do éter, pretendem modificar a vida das aldeias sob o impulso da metrópole. M a s , se u m projecto de edu­cação combinar o ensino à distância —uti­lizando a rádio e textos impressos— e a acção colectiva no seio da comunidade, per­mitirá integrar u m a informação útil da ori­gem externa nas forças latentes da comuni­dade. Experimentaram-se várias fórmulas, que diferem pelo estilo das emissões e pelo tipo dos textos impressos. Pela minha parte, considero que o contacto directo c o m o professor é o elemento mais importante e mais difícil de introduzir com sucesso. C o m o é evidente, a elaboração dos cursos radiodifundidos e impressos não é fácil, mas nada é mais delicado de manejar do que o elemento humano. U m b o m grupo

aprende ou realiza qualquer acção m e s m o quando falha u m a emissão, enquanto o melhor programa radiodifundido do mundo só é útil na medida e m que é ouvido e tra­balhado.

Estes projectos mistos repartem-se por quatro categorias: os grupos de estudo como as tribunas radiofónicas rurais do Gana ou os grupos criados por organismos como o I N A D E S (Instituto Nacional Africano de Desenvolvimento Económico e Social) na África Ocidental, ou o Agriservice da Etió­pia; os programas destinados a apoiar orga­nismos sociais ou políticos existentes; as campanhas intensivas de curta duração, como as que foram lançadas na República Unida da Tanzânia a partir de 1970; e os programas destinados a alargar a audiência da escola. Examinemos cada u m a destas categorias para, e m seguida, podermos tirar certas conclusões gerais.

Grupos rurais 2

A ideia partiu do Canadá. Grupos de agri­cultores vítimas da depressão dos anos trinta formaram-se para seguir programas radiofó­nicos rurais e agir concertadamente após estes programas. Destas reuniões nasceu u m a acção cooperativa, especialmente e m matéria de comercialização. Esta ideia foi introduzida na índia, no Gana e e m outros países, e as tribunas radiofónicas continuam a ser u m aspecto importante da educação rural nos diversos países de África. Consagram-se emis­sões radiofónicas ao melhoramento da agri­cultura ou da comercialização; são escuta­das por grupos de agricultores que estudam e m conjunto a maneira de tirar partido do que aprenderam, aplicando o que decidirem.

O I N A D E S , cuja sede é e m Abidjan, adop­tou u m a abordagem u m pouco diferente. Apresenta u m número limitado de emissões,

1. J. K . N Y E R E R E , Freedom and development, p. 25, Dar es Salaam, Oxford University Press, 1973.

2. T . D O D D S , Multi-media approcaches to rural edu­cation, Cambridge, International Extension Col­lege, 1972.

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Aprender a viver melhor

preferindo fornecer cursos de agricultura im­pressos, concebidos para o estudo colectivo. «Estes cursos apresentam-se sob a forma de u m a série de brochuras, contendo cada u m a delas matéria de três ou quatro lições. São explicados de maneira simples e directa» c o m a ajuda de u m vocabulário que não ultrapassa 600 palavras1, sendo os termos técnicos defi­nidos por palavras deste vocabulário de base. Para o estudo destes cursos, o I N A D E S esti­mula a formação de grupos, se possível na base de unidades sociais existentes — aldeias, famí­lias ou grupos etários. Desde o início que os grupos são acompanhados por u m agente de divulgação, que trabalha c o m eles servindo-se do material disponível para explorar colecti­vamente u m terreno. Está prevista a infor­mação retroactiva: os grupos de agricultores completam e m conjunto u m questionário à medida que avançam no estudo de u m a brochu­ra e enviam-no para a sede do I N A D E S onde as respostas são examinadas e comentadas.

Assim, as tribunas radiofónicas rurais e os grupos do I N A D E S salientam a discussão e a acção colectivas, estimuladas pelo material recebido do exterior. Os grupos devem ser estáveis e, embora se possam apoiar e m insti­tuições sociais existentes, são criados, e m geral, tendo e m vista o ensino rural.

Auxílio às instituições existentes

T a m b é m podemos utilizar os métodos de ensino à distância para ajudar as instituições existentes. Assim, no Botswana, o ministério e m causa pediu que o Botswana Extension College elaborasse u m programa destinado aos comités de desenvolvimento das aldeias; n u m país tão grande como o Botswana não teria sido possível reunir todos os membros destes comités para que seguissem u m a for­mação e, assim, os métodos de ensino à dis­tância pareceram particularmente apropria­dos. O programa destinava-se a fornecer infor­mações mais completas sobre o papel dos comités, as suas relações com a colectividade e c o m os poderes públicos e o seu campo de acção (um capítulo do manual preparado pelo College para os comités intitula-se « C o m o

obter fundos»). Os meios utilizados compu-nham-se de u m manual, de u m a série de emis­sões radiodifundidas e de «notas» destinadas aos membros dos comités reunidos para ouvir as emissões. Estas deveriam seguir-se de u m a discussão susceptível de permitir u m a actua­ção mais eficaz dos comités.

Neste caso, utilizaram-se a rádio e os textos impressos para apoiar o trabalho de organi­zações políticas já existentes. A estrutura dos comités forneceu u m modelo para o estudo e a acção colectivas. Se este modelo fosse permanente, o programa estender-se-ia por u m período limitado : a experiência aproximar--se-ia, então, mais das campanhas tanzanianas do que dos grupos rurais acima descritos.

Campanhas de estudo

E m 1970, a República Unida da Tanzânia lançou u m a campanha nacional de educação dos adultos sobre os objectivos e o desen­volvimento das eleições, utilizando para este efeito u m a série de emissões radiofónicas, textos impressos e grupos de escuta organi­zados. Três anos depois, «foi lançada u m a campanha muito mais importante de escuta colectiva sob o n o m e de Mtu ni Afya (literal­mente «o h o m e m é a saúde»). Abrangeu cerca de dois milhões de cidadãos. Pela pri­meira vez, não se tratava de u m a campanha de informação cívica ou económica: tinha por tema a educação sanitária. Está confir­m a d o que ela incidiu espectacularmente sobre certos hábitos sanitários de u m grande número de pessoas2.» O programa previsto para u m período limitado visava a formação de 75 000 animadores e deveria permitir não só aumen­tar os conhecimentos sobre a saúde, como ainda melhorar as práticas sanitárias: nas duas primeiras semanas, realizaram-se 1200 acções colectivas contra o paludismo e, depois da campanha, foi assinalada a construção de centenas de milhares de latrinas.

1. Ibid., p . 22. 2. B . L . H A L L e T . D O D D S , Voices for developmen :

the Tanzania national radio study campaigns, p . 9, Cambridge International Extension College, 1974.

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O método da campanha de escuta radiofó­nica — de grande envergadura, intensiva, na qual participam muitos organismos públicos diferentes e que mobiliza a atenção da popu­lação para u m único problema durante u m tempo limitado— também foi adoptada no Botswana. Organizada pela universidade e m 1973, a campanha relativa ao plano de desen­volvimento nacional para 1973-1978 é actual­mente seguida por u m a campanha sobre as pastagens tribais orientada por diversos organismos públicos. Trata-se de informar o público sobre as modificações introduzidas no regime rural tradicional e de dar a conhe­cer aos poderes públicos a maneira como a nova política é acolhida e deve ser executada aos níveis local e nacional. A campanha tem u m duplo objectivo: conduzir a u m a acção ao nível local e permitir decisões políticas ao nível do distrito e do país, tendo e m conta as reacções dos grupos de estudo. T a m b é m é considerada como o ponto de partida para u m programa, de longo alcance desta vez, de educação rural sobre os temas da utilização e da beneficiação das terras.

A escola alargada

E m toda a África, são muitos os que desejam prosseguir os estudos para além do nível pri­mário, mas que não o podem fazer: tentou-se, sob diversas formas e por diversas ocasiões, responder a esta aspiração. N a ilha Maurícia, o sector privado interveio e criaram-se «colé­gios cogumelos» e m toda a ilha, oferecendo possibilidades de educação — e m geral, m e ­díocres — paralelamente ao sistema nacional. A s «brigadas» do Botswana e as «escolas politécnicas camponesas» do Quénia repre­sentam tentativas para dispensar u m ensino secundário de tipo diferente, correspondente às necessidades da sociedade. E m toda a África são muitos os que tentam efectuar estudos secundários por correspondência; mas são muitas vezes enganados por direc­tores de estabelecimentos comerciais sem escrúpulos. O s estabelecimentos públicos de ensino por correspondência multiplicam-se :

fornecem, de maneira mais ou menos cor­recta e honesta, meios de realizar estudos secundários. Foi assim que a organização de cursos por correspondência destinados àque­les que não podem frequentar a escola cons­titui a principal actividade do serviço dos cursos por correspondência do Ministério da Educação da Zâmbia.

Trata-se de u m a via difícil e solitária, e ten­tou-se, por vezes, a criação de centros de estudos ligados às escolas, a fim de ajudar os que se instruem por correspondência. O ensino por correspondência e pela rádio continua a ser o elemento principal, mas os alunos podem receber conselhos, estímulos e ajuda e m caso de dificuldade de u m professor mais encar­regado de os aconselhar do que de os ensinar. Criaram-se centros de estudo deste tipo no Botswana e na Suazilândia; os projectos ten­dentes a organizá-los no quadro de u m a ope­ração mais ambiciosa, na ilha Maurícia, está unicamente à espera de financiamento.

Esta fórmula parece muito modesta, sobre­tudo e m comparação c o m a extensão dos programas de educação pela rádio da Repú­blica Unida da Tanzânia, por exemplo. M a s pode desempenhar u m papel mais importante do que parece, se considerarmos que permite que u m a escola se ocupe tanto das crianças não escolarizadas como dos privilegiados que a frequentam; por outro lado, pode ser útil mostrar que grupos de alunos que recebem do exterior u m a grande parte da sua educa­ção possam, no entanto, beneficiar dos recur­sos disponíveis no seio da colectividade.

Que aprendemos?

Acabamos de passar rapidamente e m revista u m sector vasto e complexo da educação; trata-se de inserir n u m contexto apropriado o que aprendemos sobre o ensino directo nos projectos multi-media ou de ensino à distân­cia, pois, como mencionei, todas as espécies de projectos de educação, é possível formu­lar certas conclusões gerais como ponto de partida para outras experiências deste tipo. Referem-se, e m particular, aos quatro aspee.

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tos que se seguem: o diálogo, a informação retroactiva, o desenvolvimento e as modali­dades práticas.

Desde Sócrates a Freire todos os educado­res têm pensado que o diálogo está no cerne da educação. E u m a das necessidades que enfrentamos é a necessidade de conciliar as economias de escala, que podemos obter por meio da produção centralizada do material pedagógico, com o diálogo, que é indispen­sável se pretendemos que a educação seja libertadora e não «bancária», como diz Freire: «Na concepção bancária da educa­ção, o saber é u m d o m que aqueles que se consideram instruídos concedem àqueles que julgam ignorantes1.» Para que o desenvolvi­mento seja útil e eficaz, são necessários dois tipos de conhecimentos: os conhecimentos técnicos (melhores métodos de cultura, saúde, planeamento familiar, etc.) fornecidos pelos nossos tecnólogos e pelos nossos cientistas, e também o conhecimento das condições locais, dos homens de determinada região, que o c o m u m dos mortais possui. Os nossos problemas afectivos atingem u m a tal extensão que os nossos raros tecnólogos não podem encarregar-se da educação no plano nacional. Quanto à tarefa que consiste e m adaptar as suas soluções a u m a situação dada, c o m todas as suas particularidades, deve ser da competência de todos os que vivem essa situa­ção. É aqui que a abordagem do estudo colec­tivo adquire todo o seu sentido.

Determinado serviço de u m ministério pode­ria muito simplesmente produzir programas radiofónicos ou brochuras, por exemplo, sobre os melhores métodos de cultura, e asse-gurar-lhes u m a ampla difusão. M a s este m o d o de agir impõe às aldeias u m a solução sem ter e m conta as diferenças locais e reduz os cam­poneses ao estado de objectos. Pelo contrá­rio, se utilizarmos o m e s m o material como ponto de partida para u m estudo colectivo, os que esperam tirar partido da informação podem estudá-la, ver como ela se aplica à sua situação e desempenhar u m papel activo no desenvolvimento que procuram. Além disso, o estudo colectivo parece constituir u m meio melhor de modificar as atitudes

— e não de aprender factos novos — do que o ensino didáctico2. E m todo o caso, abs­traindo destas considerações morais e teóricas, é u m a fórmula mais eficaz. C o m o talvez pro­v e m as latrinas construídas na República Unida da Tanzânia, e m 1973, após o Mtu ni Afya; de assinalar ainda que a eficácia dos comités de desenvolvimento de aldeia que, no Botswana, se seguiram ao nosso programa, tem aumentado e que a sua acção de desen­volvimento se intensifica.

A combinação do ensino directo c o m mate­rial impresso e radiodifundido b e m concebido e cuja produção está centralizada permite difundir a informação mais rapidamente e mais amplamente (e provavelmente com m e ­nos despesa) do que unicamente através dos métodos tradicionais do ensino directo. O diá­logo permite ainda ter e m conta conheci­mentos locais e tornar o ensino mais eficaz.

A informação retroactiva decorre natural­mente do diálogo. U m grupo de estudo e m que u m único membro seja alfabetizado pode fornecer esta informação retroactiva aos elaboradores do programa. A informação retroactiva exerce, pelo menos, três funções. E m primeiro lugar, permite que os grupos de estudo participem no programa — por exemplo, os problemas apresentados por estes grupos podem ser utilizados e m emissões radiodifundidas. E m segundo lugar, permite que os que planificam o programa o modifi­quem durante a sua utilização ou prevejam a fase seguinte e m função das necessidades locais. Assim, no Botswana, quisemos conhe­cer os tipos de projectos de desenvolvimento desejados pelas aldeias, a fim de conceber ulteriormente programas mais específicos cor­respondendo a estas necessidades.

N a ilha Maurícia, a informação retroac­tiva respeitante a u m programa de planea­mento familiar intitulado A minha vida amanhã forneceu dados susceptíveis de formar a base

1. P. FREIRE, Pedagogy of the oppressed, p. 58, N e w York, Herder, 1972.

2. E . M . R O G E R S , F. L . S H O E M A K E R ; Communica­tion of innovations, pp. 288 e segs., N e w York, Free Press, 1971.

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Hilary Perraton

de u m a acção e m sectores inteiramente novos da educação relativa ao planeamento familiar. A informação retroactiva pode desempenhar u m papel mais modesto mas igualmente essen­cial: permitir que os organizadores melhorem o que fazem.

E m terceiro lugar, podemos utilizar a infor­mação retroactiva para alterar as decisões e as acções políticas. Foi o que se passou nò Botswana depois do programa sobre as pas­tagens tribais. Por razões de ecologia, de eco­nomia e de justiça social, revelou-se neces­sário modificar o regime rural das terras tribais do Botswana—que representam m e ­tade da superfície total. A s terras, que sempre foram tratadas e exploradas colectivamente, dividir-se-ão, no futuro, e m três categorias: os terrenos comunais a explorar pela colec­tividade e onde não existirão domínios sepa­rados por vedações; as explorações comerciais que são objecto de u m contrato de arrenda­mento; e os terrenos reservados para u m a exploração ulterior. N o quadro do programa de informação do público que precede estas alterações, o governo do Botswana criou u m projecto de estudo colectivo cujos objectivos, definidos n u m documento oficial, são os seguintes:

« . . . O programa de informação do público tem por objectivo principal dar a conhecer a política seguida. M a s tem ainda mais três objectivos : estimular a troca de opiniões entre o público, informar os conselhos rurais, os conselhos de distrito e o governo central sobre a maneira como a população considera a aplicação da política local, e iniciar o longo processo que consiste e m ajudar os indivíduos a aprender como podem beneficiar da polí­tica seguida, por exemplo, formando grupos ou sindicatos de pequenos criadores de gado...»

Depois de ter recolhido a opinião do público, o governo tomará medidas para dar seguimento às opiniões expressas. Se neces­sário, reverá a política definida no presente documento e submeterá ao parlamento as modificações resultantes da consulta à popu­lação1.

A informação retroactiva não serve, pois,

unicamente para guiar os educadores, orienta a política relativa a u m problema chave. A sua incidência será sentida a dois níveis: ao nível nacional, sobre o conjunto da polí­tica e, ao nível do distrito, sobre a repartição das terras entre as três categorias, e sobre as regras relativas ao regime rural. C o m o a exe­cução do programa teve início e m Junho de 1976, é ainda demasiado cedo para avaliar a eficácia desta informação retroactiva política. M a s , u m programa piloto executado e m Dezembro de 1975 indicou que os grupos de estudo salientavam exactamente os sectores nevrálgicos nos quais se determinava o futuro da política adoptada e nos quais os poderes públicos não tinham ainda reconhecido a sua linha de conduta — as deslocações entre distritos, a repartição das forragens e a sua incidência quando os movimentos de gado foram mais limitados, as modalidades da criação de sindicatos de criadores de gado, etc.

Assim, u m a das funções dos grupos de estudo no ensino directo consiste e m forne­cer u m a informação retroactiva; a experiên­cia prova que este papel cria u m sentimento de utilidade nos participantes, permitindo que os educadores e os responsáveis políticos tenham conhecimento de dados muito impor­tantes.

Alterar a vida individual ou familiar é o objectivo da maior parte dos programas de educação e m causa. D e acordo c o m os resul­tados do I N A D E S , das tribunas radiofónicas rurais e das campanhas tanzanianas, as dis­cussões de grupo conduzem a alterações prá­ticas. M a s é ainda u m domínio delicado: devemos agora aprofundar os meios de trans­formar u m grupo de estudo colectivo n u m grupo que procura efectivamente melhorar o seu próprio ambiente: é o que passarei a examinar, determinando o que devemos ainda aprender.

Descobrimos progressivamente, através da experiência, as modalidades práticas destes projectos. B e m entendido, é impossível enun-

1. Government paper n.° 2 of 1975, National policy on tribal grazing land, p. 18, Gaborone, G o ­vernment Printer, 1957.

252

Page 93: Unidade biológica humana

Aprender a viver melhor

ciar regras gerais para a hora de difusão das emissões, o estilo do material pedagógico a empregar, a criação de grupos mistos ou não e muitos outros problemas que devem ser resolvidos e m cada caso particular. M a s a experiência mostra geralmente que a forma­ção de animadores é u m elemento determi­nante que, e m muitos países, suscita talvez mais problemas do que na República Unida da Tanzânia, onde o professor da escola pri­mária já é aceite como encarregado também da educação dos adultos. E m outros países, os animadores de grupos — e e m especial os professores— adaptaram-se dificilmente a u m papel onde não se trata de fornecer informações mas de estimular a discussão. Mais u m a vez se podem aplicar as primeiras conclusões retiradas da experiência do Bots­wana: no programa piloto relativo às pasta­gens, que foi executado e m Dezembro de 1975, as animadoras obtiveram melhores resultados do que os animadores, as mães de família foram melhor sucedidas do que os profes­sores, e os animadores recrutados após u m a reunião de aldeia (kgotla) realizaram melhor trabalho do que os que tinham sido nomea­dos por u m divulgador depois de u m a visita ao domicílio do candidato, ao seu local de trabalho, ao clube ou à organização a que pertencia1. Conclusão provisória, mas que se impõe: é necessário recrutar e formar os animadores tendo rigorosamente e m conta os valores da sociedade e m que trabalham. N ã o basta que estes animadores saibam como dirigir u m grupo de adultos — embora se trate já de u m a tarefa considerável; devem também, idealmente, ser aceites como ani­madores e inovadores pela sua própria sociedade.

Podemos, portanto, elaborar agora, para os projectos de educação tridireccional, u m a primeira série de princípios decorrentes prin­cipalmente da prática e justificados pelo sucesso. Resumamo-los:

O s projectos de ensino à distância que exigem o estudo colectivo são eficazes.

O s projectos devem ser concebidos de tal m o d o que se instaure u m diálogo no seio dos grupos.

A informação retroactiva é u m elemento importante, que tem pelo menos três funções: obrigar o aluno a participar no projecto, instruir o educador a fim de aumentar a sua eficácia e fornecer u m a informação para as decisões políticas.

O estudo colectivo deve ser concebido — pelo menos para a educação extra-esco­lar— de tal m o d o que o grupo passe do ensino à acção.

É essencial escolher o animador adequado. O s animadores de grupo devem receber u m a formação; o seu papel é diferente do de u m professor do ensino primário tradicional.

Problemas

A experiência adquirida permite-nos deter­minar as principais dificuldades encontradas na execução de numerosos projectos e para os quais possuímos ainda poucas soluções eficazes. Enumero-as resumidamente, consi­derando que estão identificadas, embora não superadas.

Programas longos ou curtos: pretendemos campanhas de curta duração, modeladas pelo grupo de escuta tanzaniano, ou programas de longo alcance, c o m as tribunas radiofó­nicas rurais? A resposta depende muitas vezes da natureza do programa de estudos. M a s , frequentemente, a análise dos objecti­vos do programa não indica qual é a melhor solução, n e m qual é a melhor combinação das duas fórmulas.

É sempre difícil assegurar a informação retroactiva, particularmente quando se trata de u m a operação de grande envergadura. Se provém de u m grande número de grupos, o organismo responsável corre o risco de ficar submerso. U m a amostra seria sufi­ciente? Para os educadores talvez, mas não fornece a resposta individual que pode dese­jar u m grupo de estudo ou u m a aldeia.

A acção deve acompanhar o ensino na

1. Evaluation Unit Botswana Extension College, ínterim evaluation report to grazing committee, Gaborone, BEC, 1976.

253

Page 94: Unidade biológica humana

Hilary Perraton

maior parte dos casos. M a s , levar u m grupo de pessoas a ouvir rádio e m conjunto ou a estudar é muito diferente de empreender u m a acção perdurável. Para resolver problemas deste tipo, é necessário que nos preocupe­m o s mais com a natureza das organizações sociais — dos grupos de alunos e da sua situa­ção — do que com a produção do material. É do lado dos alunos e não dos professores que se situam os problemas difíceis e impor­tantes.

O s centros de estudos por correspondência podem parecer muito longe dos grupos de estudo colectivo sobre os quais nos debruçá­m o s ; na realidade, são os mesmos indivíduos que são abrangidos. O especialista do desen­volvimento comunitário que trabalhou no Botswana Extension College sobre o pro­grama de desenvolvimento das aldeias verifi­cou que, nas reuniões de aldeia, não cessava de responder a perguntas sobre os programas de exames. Existem dois problemas: e m pri­meiro lugar, poderão estes grupos ser igual­mente ligados, de u m a ou outra maneira à educação extra-escolar? E m segundo lugar, poderemos fazer alguma coisa com o fim de assegurar que estes centros sejam mais do que escolas de terceira categoria para aqueles que não têm a sorte de aceder aos estabeleci­mentos de primeira (ou de segunda) cate­goria?

O s agentes de divulgação desempenham e m muitos projectos de educação extra-esco­lar u m papel importante mas que entra, por vezes, e m conflito com as suas atribuições tradicionais. O agente de divulgação agrícola surge muitas vezes como detentor da chave dos problemas agrícolas. M a s , quando novas informações chegam por outros meios — tex­tos impressos e rádio — o seu papel de infor­mador ou de guia apaga-se e m proveito de u m a função de animador. Esta evolução, que pode ser desejável, é ainda difícil para o agente de divulgação.

A s estruturas sociais existentes, institu­cionais ou não, são, e m geral, mais impor­tantes para a população do que os grupos de estudo ou as tribunas radiofónicas rurais. Que eu saiba, ainda ninguém encontrou m a ­

neira de incorporar u m sistema de ensino nestas estruturas, a fim de se adaptarem melhor ao ritmo e às necessidades da exis­tência quotidiana.

Finalmente, estas diversas fórmulas con­tribuem apenas c o m alguns elementos de res­posta parcial aos grandes problemas de educação. Muitos educadores expõem demora­damente as insuficiências do ensino secundário tradicional, mas é muito mais difícil saber o que o deve substituir ou completar, para res­ponder simultaneamente às necessidades dos alunos que terminam nesta fase os seus estu­dos a tempo integral, às dos que os prosse­guem ... e às das sociedade. Talvez se chegue a u m a solução parcial combinando judiciosa­mente o material pedagógico cuja produção está centralizada e o estudo colectivo. Talvez mais importante ainda é o facto de não nos encontrarmos — muito longe disso — no ponto e m que a maior parte dos indivíduos pode definir e exprimir as suas próprias necessidades de educação (nem m e s m o na­quele e m que contribuir para este processo é considerado o papel central dos responsáveis pela educação dos adultos), actividade cuja necessidade Paulo Freire apontou e m Dar es Salaam1. T a m b é m neste caso, a solução par­cial poderia consistir e m incorporar o ensino directo n u m sistema de ensino à distância e de informação retroactiva, para conhecer m e ­lhor as necessidades humanas fundamentais e m matéria de educação.

São estes os dados do problema. É por tudo isto que a combinação dos diferentes media ao serviço do ensino pode constituir u m pro­cesso humano de contribuir para a educação e para o desenvolvimento. N u m mundo que carece de recursos educativos, ela pode ser de u m a importância capital se aliar a com­preensão e o conhecimento que o h o m e m da rua tem da sua própria vida à informação que a tecnologia nos proporciona actualmente sobre as potencialidades humanas.

1. P. F R E I R E , «Research methods», Studies in adult education, n.° 7, pp. 9 e segs., Dar es Salaam, Institute of Adult Education, 1973.

254

Page 95: Unidade biológica humana

Gottfried Schneider

A educação dos adultos na República Democrática Alemã

Formação contínua, estudos ininterruptos, educação permanente. Estas reivindicações, e outras do m e s m o género, são actualmente formuladas e m muitos países e e m muitas línguas. N ã o se trata de estribilhos defor­mados, correspondem a u m a necessidade urgente da nossa época. Necessitamos de u m a qualificação mais desenvolvida, de conhe­cimentos, de capacidades e de técnicas novas para resolver os problemas que actualmente surgem e m todas as esferas da vida social. O problema é o m e s m o , ou quase, e m mui­tos países, mas a solução apresenta diferen­ças muito nítidas e depende do tipo de socie­dade considerada.

N a República Democrática Alemã, a edu­cação dos adultos baseia-se na posição cen­tral que o h o m e m ocupa na sociedade socia­lista, e no desenvolvimento contínuo das suas características, dos seus talentos, das suas aptidões e das suas qualidades morais.

Sendo assim, importa atribuir cada vez mais responsabilidades aos indivíduos, fa­zendo c o m que participem mais activamente na administração e na organização do Estado, assim como e m todos os processos sociais. O progresso técnico e científico está intima­mente ligado à formação, à educação e ao desenvolvimento do h o m e m . N a República

Gottfried Schneider (Republica Democrática Alemã). Director adjunto do Instituto Central de Formação Profissional da República Democrática Alemã. Pro­fessor de pedagogia na Universidade técnica de Dresde.

Democrática Alemã, o seu papel transfor­m a r e cada vez mais no problema central da revolução técnica e científica. Assim, a edu­cação dos adultos procura formar espíritos socialistas possuidores de u m a educação universal.

C o m o consequência, o objectivo e o con­teúdo da educação dos adultos caracterizam--se pelos seguintes aspectos principais:

Educação socialista muito completa e de nível elevado, baseada n u m sólido conheci­mento do marxismo-leninismo, ensino da matemática moderna, das ciências naturais e das línguas;

Formação profissional e técnica apoiada na ciência moderna;

Desenvolvimento e consolidação constan­tes da consciência socialista1.

A educação dos adultos na República D e ­mocrática Alemã está, portanto, de acordo c o m os objectivos fixados pela U N E S C O na III Conferência Internacional sobre a edu­cação dos adultos, que se realizou e m Tóquio e m 1972 e onde se afirmou que a educação dos adultos «é u m instrumento de conscien­cialização, de transformação e de socializa­ção... É o instrumento do desenvolvimento do h o m e m integral, total, considerado na globalidade das suas funções de trabalho e de lazer, na sua participação na vida cívica, na vida familiar, na vida cultural; é o reconhe-

1. Ver «Grundsätze für die Aus-und Weiterbildung der Werktätigen», Aus der Tätigkeit der Volks­kammer und ihrer Auschüsse, n.° 19, 1970, p. 58.

255

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Gottfried Shcneider

cimento e a descoberta das suas qualidades físicas, morais, intelectuais e espirituais».

É por isso que, no quadro da educação dos adultos, toda a medida da qualificação se centra no conjunto da personalidade humana. Assim, a unidade do ensino geral e do ensino especializado, do ensino profissional técnico e da educação ideológica, e a interacção da teoria e da prática são princípios fundamen­tais de toda a medida da qualificação.

A educação dos adultos

no sistema de ensino

N a República Democrática Alemã, a educação dos adultos faz parte integrante do sis­tema de ensino. Sob este aspecto, está per­feitamente de acordo c o m o princípio apre­sentado na II Conferência Internacional sobre a Educação dos Adultos, que se realizou e m Montreal e m 1970, e segundo o qual «a edu­cação dos adultos faz parte integrante de todo o sistema nacional de educação, estando--lhe organicamente ligada».

N o sistema de educação dos adultos, todos aqueles que já exercem u m a profissão, todos os trabalhadores, têm a possibilidade de melhorar os seus conhecimentos e as suas qua­lificações, no emprego ou durante o tempo livre.

N a República Democrática Alemã, a edu­cação dos adultos apresenta-se sob as seguin­tes formas1:

Formação e aperfeiçoamento dos operá­rios especializados, dos operários qualifica­dos, dos chefes de equipa e dos contrames­tres2 nos locais ordenados para esse efeito pelas fábricas, cooperativas de produção agrí­cola ou explorações agrícolas reunidas;

Consolidação e aprofundamento do ensino geral por meio de cursos nocturnos, e m clu­bes e e m centros culturais;

Possibilidade de adquirir os títulos que con­duzem a estudos universitários ou técnicos oferecida aos melhores operários qualifica­dos, agricultores que trabalhem e m coope­rativas, chefes de equipa e contramestres;

os responsáveis pedagógicos das fábricas cooperam estreitamente neste domínio c o m os dos cursos nocturnos, das escolas profis­sionais, das universidades e dos estabeleci­mentos de ensino técnico;

Difusão e divulgação das últimas desco­bertas no domínio das ciências sociais, natu­rais e tecnológicas, sobretudo por intermédio de organizações sociais (por exemplo, U R A ­N I A , Câmara de tecnologia, associações cien­tíficas);

Formação complementar dos diplomados das escolas técnicas e das universidades, assim como dos quadros subalternos nos locais espe­ciais das fábricas, das academias do sector industrial, das escolas técnicas, das uni­versidades e das escolas das organizações sociais;

Formação complementar dos gestores e m institutos de gestão socialista da economia, das escolas de partido e de sindicatos;

Possibilidade, para os professores e outras pessoas que trabalhem no domínio da educa­ção dos adultos, de adquirir qualificações e m locais especiais das empresas e indústrias, nas escolas técnicas, escolares superiores e uni­versidades.

O s cidadãos da República Democrática Alemã tiram plenamente partido destas pos­sibilidades. Cerca de 90 por cento dos diplo­mados pela universidade e escolas superiores, de 88 por cento dos diplomados pelas escolas técnicas, de quase 75 por cento dos contra­mestres e de 68 por cento dos operários qua­lificados que exercem u m ofício, adquiriram a sua formação no país depois de 1946.

O sucesso do sistema integrado de educação socialista deve-se, e m grande parte, à educa­ção dos adultos. Para nos convencermos, basta que tomemos conhecimento dos seguin­tes números:

E m 1974, cerca de 800000 pessoas traba­lhando na indústria, incluindo a construção civil, frequentaram cursos de preparação para u m diploma.

1. Ver o diagrama da pág. 258. 2. Vigilantes que receberam u m a formação especial.

256

Page 97: Unidade biológica humana

L'éducation des adultes en République démocratique allemande

Educação dos adultos nos

estabelecimentos de ensino

públicos e sociais

Academias de operários de

fábrica.

Academias de aldeia.

Associações científicas (por

exemplo U R A N I A e a Câmara

de Tecnologia).

Academia do sector industrial.

Institutos de gestão socialista

da economia.

Cursos nocturnos.

Academia da formação

permanente.

Tele-ensino.

Academia dos pais.

Academia das mulheres.

Partidos e organizações sociais.

Universidade,

escola superior,

escola técnica

superior

(Assistência

às aulas ou

curso por

correspondência).

Escola de

técnicos ou de

engenheiros

(Assistência às

aulas ou curso

por

correspondência)

Formação

profissional

(3 anos)

Formação profissional

(em geral 2 anos)

Formação profissional depois do Abitur1

(3 anos)

Estabelecimento de ensino

secundário complementar

(Abitur)

Estabelecimento secundário de

ensino politécnico geral

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1 Titulo que proporciona o acesso à Universidade.

Fio. 1. Estrutura do sistema socialista integrado úe educação na República Democrática Alemã.

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Page 98: Unidade biológica humana

Gottfried

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Page 99: Unidade biológica humana

A educação dos adultos na República Democrática Alemã

D e 1970 a 1974, cerca de 60 000 adultos trabalhando no comércio obtiveram u m cer­tificado de aptidão profissional.

Durante o mesmo período, mais de 100 000 cidadãos frequentaram cursos nocturnos para ingressar na Universidade ou numa escola técnica; 450 000 adultos atingiram o nível do penúltimo ou do último ano frequentando cursos nocturnos e cerca de 110 000 frequen­taram cursos de línguas estrangeiras; no

total, mais de 1,5 milhões de pessoas segui­ram cursos nocturnos.

E m 1974, mais de 8 milhões de pessoas assistiram a mais de 200000 conferências organizadas pela sociedade U R A N I A .

A proporção dos operários agrícolas qua­lificados passou de 9,2 por cento, e m 1960, para 54,3 por cento e m 1971 ; atingiu 75 por cento e m 1975.

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aprendizagem

educação dos adultos

mulheres

FÍG. 3. Parte da educação socialista dos adultos no crescimento do número de operários qualificados.

259

Page 100: Unidade biológica humana

Gottfried Schneider

O sistema não impõe limite de idade : todos podem beneficiar segundo os seus próprios interesses e a maneira mais proveitosa para si e para a sociedade. Assim, muitos indivíduos de mais de quarenta anos frequentam cursos nocturnos para melhorar os seus conheci­mentos gerais. Por exemplo, na empresa pública V E B IFA-Getriebewerk Brandenburg, 200 dos 300 trabalhadores que seguiam cur­sos nocturnos na academia da fábrica, e m 1972, tinham entre vinte e cinco e quarenta anos e 31 tinham mais de quarenta anos.

Actualmente, u m trabalhador e m quatro participa n u m programa de qualificação orga­nizada e metódica correspondente às neces­sidades actuais e futuras da sua profissão e da sociedade no seu conjunto «...para desen­volver inteiramente... (as suas) capacidades e, após livre decisão, colocar (as suas) forças ao serviço do b e m c o m u m e do (seu) b e m --estar pessoal...», como diz a Constituição1.

O carácter estatal

e cientifico

da educação dos adultos

O proletariado e todas as forças de progresso exigiram sempre que a educação tenha u m carácter estatal e u m carácter científico. Constituem actualmente os pilares do con­junto do sistema educativo da República Democrática Alemã, incluindo a educação dos adultos.

Documentos jurídicos como a Constitui­ção, a lei sobre o sistema integrado de educa­ção socialista e a resolução da Câmara do Povo sobre os princípios que regem a forma­ção e o aperfeiçoamento dos trabalhadores precisam que a educação dos adultos é de carácter estatal e de carácter científico, tanto para as questões fundamentais como para as questões secundárias.

O carácter estatal da educação manifesta-se especialmente pelo facto de tudo o que con­duz a u m exame intermédio ou final, seja qual for o nível de qualificação, decorrer de pro­gramas de estudos e de formação obrigató­

rios que são os mesmos para o conjunto do país. Por conseguinte, todas as qualificações, adquiridas nos diferentes elementos do sis­tema, correspondem a u m a norma uniforme e são reconhecidas por todas as instituições de aperfeiçoamento. O que implica que os trabalhadores possam passar ao nível supe­rior e, se necessário, mudar de instituição durante u m ciclo de estudos. Os estabele­cimentos de ensino e os centros de educação das fábricas e das cooperativas, das comunas, dos estabelecimentos sanitários, etc., aplicam princípios uniformes e programas de estudos obrigatórios e m todo o país. Recebem ins­truções dos órgãos de Estado competentes, que os controlam. Devido ao seu carácter estatal, a educação dos adultos é também orientada para o desenvolvimento da persona­lidade. Opomo-nos firmemente a u m a valoriza­ção unilateral das capacidades, principalmente manuais, tendo e m vista u m a actividade estritamente limitada, que não é acompa­nhada pelo desenvolvimento das aptidões intelectuais e pela aquisição de conhecimentos fundamentais sólidos e de cultura geral.

O montante das despesas públicas consa­gradas à educação quase duplicou entre 1962 e 1973, mas não nos fornece u m a ideia exacta do total das despesas efectuadas neste domí­nio, e m especial c o m a educação dos adultos. C o m efeito, a formação profissional prática dos aprendizes e a maior parte das despesas consagradas aos programas de qualificação organizados pelas academias dos operários de fábrica são financiadas pela própria e m ­presa. E m geral, esta encarrega-se também das despesas originadas pela participação e m seminários e cursos, a preparação das pro­vas de exame e a inscrição nos exames. M u i ­tas empresas adquiriram o hábito de subsidiar a compra dos livros técnicos necessários. Todas as empresas industriais pagam sempre todas as despesas de participação e m cursos especiais, reuniões e conferências.

1. Constituição da República Democrática Alemã, de 6 de Abril de 1968, publicada pela Staatswerlag der Deutschen Demokratischen Republik, p. 19.

260

Page 101: Unidade biológica humana

A educação dos adultos na República Democrática Alemã

O carácter científico da educação dos adultos é assegurado principalmente pelo con­teúdo e pelos objectivos precisos da educação permanente. A fim de resolver os problemas, especialistas das disciplinas consideradas, tra­balhadores experimentados, educadores e representantes das organizações sociais, e m especial dos sindicatos, fornecem a sua con­tribuição.

O corpo docente encarregado da educação dos adultos é extremamente competente. Todas as vias — academias de empresa, cur­sos nocturnos ou academias de aldeia—• dispõem de professores a tempo integral per­feitamente qualificados e m ciências sociais, no seu próprio domínio de competência e e m matéria de pedagogia. A maior parte possui u m grau universitário. Cientistas, engenhei­ros e gestores são convidados, de vez e m quando, a fazer cursos sobre diversos assun­tos: os elevados títulos que possuem e e sua grande experiência constituem u m a garantia do carácter científico da educação dos adultos.

Educação dos adultos e qualificação profissional

A qualificação profissional, que está sempre ligada a u m desenvolvimento da cultura geral, é u m elemento essencial da educação dos adul­tos. N ã o pode n e m deve ser de outro m o d o , se pretendemos atingir os objectivos fixados pela III Conferência Internacional sobre a educação dos adultos (Tóquio), segundo as quais esta deve ser « u m instrumento de pre­paração para a actividade produtora, ... para a participação e para a gestão da empresa».

É u m a das razões pelas quais os directores de fábrica e de empresas industriais são res­ponsáveis pela qualificação dos trabalhadores do estabelecimento. A s normas educativas que são actualmente requeridas e que o serão no futuro figuram entre as actividades de planificação da empresa tal c o m o os índices económicos, técnicos ou tecnológicos. Todas as maneiras de racionalizar o trabalho tem incidências sobre o plano da educação.

A qualificação profissional é, portanto, u m elemento essencial de todo o plano, e a base do desenvolvimento contínuo e da segurança social dos trabalhadores até à reforma. O s comités executivos dos sindicatos zelam pela realização dos objectivos do plano.

O s programas de qualificação pretendem, antes de mais, transformar os operários espe­cializados e m operários qualificados e per­mitir que os indivíduos passem de u m trabalho de horizontes limitados para u m a pro­fissão moderna. Além disso, dedica-se u m a grande atenção ao aperfeiçoamento dos ope­rários, operários qualificados, chefes de equipa e contramestres. O s objectivos e o conteúdo deste aperfeiçoamento decorrem do desen­volvimento social, do desenvolvimento cien­tífico-técnico e do da própria empresa.

U m domínio particular do aperfeiçoamento profissional é o da formação dos contrames­tres. Depois de u m período experimental bas-bante longo, esta formação é assegurada, desde 1973, da seguinte maneira1:

Formação de base (a m e s m a para todas as especializações).

Preparação para o papel de animadores das colectividades socialistas: ensino do mar­xismo-leninismo, dos rudimentos da pedago­gia e da psicologia, da ciência do trabalho e da economia industrial.

Formação técnica (diferente segundo os tipos de especialização, que se interpenetram e m parte).

Especialização (trabalhos práticos para os futuros contramestres correspondendo às exi­gências do sector de produção considerado).

Todos os programas de formação são exe­cutados pelas academias de operários de fábrica, de aldeia ou de cooperativa. Incluem lições teóricas ministradas e m salas modernas a classes ou grupos e u m a formação prática nos locais de trabalho, e m laboratório peda­gógico ou c o m a ajuda de material de simu­lação e experimental. Esta formação é c o m -

1. Ver «Verordnung über die Aus-und Weiterbildung der Meister», Journal juridique, I, n.° 33-173, pp. 342-344.

2ÓI

Page 102: Unidade biológica humana

Gottfried Schneider

Formação dos contramestres (até 2 anos)

Especialização (2-3 meses)

Formação técnica (5-6 meses, pelo menos 480 horas)

Formação de base (10 meses; 851 horas)

Especialização dos contramestres (em geral no sector do futuro emprego), preparação para a direcção de u m a secção. Tecnologia. Funcionamento das máquinas, aparelhos e instrumentos Economia de materiais Técnicas de ensaio, de medida e de contrôle Outras matérias de acordo c o m os domínios de espe­cialização Incluindo: saúde, trabalho, protecção contra o incêndio e defesa civil Gestão socialista da economia (237 horas) Ciência socialista do trabalho (120 horas) Fundamentos pedagógicos e psicológicos das actividades de gestão socialista (142 horas) Noções fundamentais de filosofia marxista-leninista (74 horas) Noções fundamentais de economia política (126 horas) Comunismo científico e noções sobre a luta do movimento operário alemão e internacional (52 horas)

Segundo os indivíduos e os empregos.

Formação diferente para 115 especializações

Formação idêntica para todas as especializações

pletada por conferências realizadas durante o trabalho e em. outros locais. Outras formas de educação de adultos: os estudos individuais empreendidos por meio de material pedagó­gico, escrito e audiovisual, as consultas e as entrevistas c o m os professores, os directores de empresa e os colegas.

Acesso das mulheres à educação dos adultos e m pé de igualdade

Mais de 80 por cento das mulheres e m idade de trabalhar exercem u m a profissão, propor­ção muito mais elevada do que e m muitos outros países.

N a base das directivas respeitantes à pro­moção das mulheres, estabeleceram-se regu­lamentos específicos nos diferentes domínios

da vida social, e, e m especial, no da educação dos adultos. Quanto à promoção e à quali­ficação das mulheres que trabalham a tempo integral está determinado o seguinte:

Antes da formação, as empresas devem estabelecer c o m as mulheres interessadas acor­dos sobre a qualificação que determinem os objectivos e a duração da formação, a cola­boração de u m conselheiro, o número de horas de ausência autorizada do trabalho, a garantia da conclusão da formação (por exemplo, e m caso de doença, de doença de u m filho, de gravidez), as entrevistas com a direcção.

A formação deve ser assegurada de m o d o racional, tendo e m conta as qualificações já adquiridas, o trabalho realizado no plano pro­fissional e privado e a profissão exercida.

1. Journal officiel, H , n.° 74, 1972, pp. 860-861.

262

Page 103: Unidade biológica humana

A educação dos adultos na República Democrática Alemã

FIG. 4. As mulheres na indústria.

Os directores de empresa devem atribuir às mulheres postos que correspondam às suas qualificações.

A s mães de u m a ou mais crianças devem ser dispensadas do trabalho durante u m dia por semana para seguirem cursos teóricos; as mulheres c o m três filhos ou mais podem ser dispensadas do trabalho dois dias por semana.

A s mulheres devem receber o equivalente ao seu salário médio.

Todas estas estipulações são, e m primeiro lugar, de ordem social e socioeconómica. M a s trata-se de condições importantes da qualificação das mulheres que trabalham a tempo integral.

N o que diz respeito aos objectivos e ao conteúdo da qualificação, não existe diferença entre homens e mulheres.

A organização da educação dos adultos tem e m conta as responsabilidades particulares das mulheres —família, trabalho por equi­pas, etc. Por este motivo, criaram-se classes reservadas às mulheres, a fim de adaptar a formação permanente e m função das fases difíceis da vida feminina. Para estes cursos, muitas empresas convidam os melhores pro­fessores e dispõem de material pedagógico moderno. Assim, a educação dos adultos contribui para vencer o atraso histórico — e ainda visível e m certos sectores — das mulheres no domínio da qualificação.

263

Page 104: Unidade biológica humana

Ignacy Waniewicz

A educação dos adultos em Ontário

Ontário, província situada no Canadá Central, conta com mais de oito milhões de habitantes. A superfície total da província é de mais de quatrocentas mil milhas quadradas (ou seja, mais de um milhão de quilómetros quadrados), mas a grande maioria da população vive na parte sul da província, cuja superfície não chega a perfazer um terço da superfície total.

O sistema escolar de Ontário ministra o ensino primário e secundário a todas as crian­ças e jovens susceptíveis de beneficiarem desse ensino. O ciclo escolar inclui a escola infantil, oito anos de ensino primário e cinco anos de ensino secundário. A escolaridade é obrigató­ria desde 1870. Actualmente, vai dos seis aos dezasseis anos; a escola infantil recebe as crianças de cinco anos que os pais pretendam enviar para a escola, mas, na prática, quase todas as crianças dessa idade estão inscritas. Depois da segunda metade dos anos sessenta muitas escolas abriram jardins infantis e, em 1974, a percentagem das crianças de quatro anos que frequentava estas classes era de 33 por cento. No que respeita ao secundário, em 1974--1975, a taxa de inscriçõesl elevava-se a 87

Ignacy Waniewicz (Canadá). Jornalista, produtor--realizador de emissões televisivas e sociólogo. Director de Office of Planning and Development do Ontario Educational Communications Authority, em Toronto. Autor de muitos filmes educativos, de programas televisivos e de publicações neste domínio, como A radiotelevisão ao serviço da educação dos adultos — A s lições da experiência mundial (Presses de V Unesco).

por cento para os jovens de dezasseis anos, a 69 por cento para os jovens de dezassete anos e a 34 por cento para os jovens de dezoito anos.

O sistema escolar pós-secundário apresenta duas vias principais: os colégios comunitários, com mais de 90 campus que servem as prin­cipais regiões económicas de Ontário, e as universidades.

Os colégios comunitários foram criados nos anos sessenta essencialmente com o objectivo de proporcionar programas de nível pós-secun­dário orientados para o emprego aos diploma­dos do secundário que necessitam de formação e de instrução pós-secundárias diferentes das fornecidas pelas universidades. Estes estabe­lecimentos propõem, além disso, programas destinados a responder às necessidades em maté­ria de educação dos adultos e dos jovens não escolarizados, quer sejam, ou não, diplomados do secundário.

Em 1975-1976, o número de estudantes a tempo integral dos colégios comunitários atin­gia cerca de 60 000, contra cerca de 160 000 estudantes a tempo integral nas universidades. No entanto, o número de estudantes que frequen­tam cursos a tempo parcial nos colégios ultra­passa consideravelmente o dos estudantes a tempo integral, enquanto o número de estu­dantes a tempo parcial nas universidades é de 75 000. Além disso, várias centenas de milha-

1. Isto é, a relação entre o número total dos alunos inscritos nas classes do secundário, com deter­minada idade, e o número total das pessoas com esta idade.

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A educação dos adultos e m Ontário

res de adultos beneficiam das fórmulas de edu­cação de tipo não clássico propostas pelos colégios comunitários e as universidades, assim como por muitas outras organizações, tais como os conselhos escolares locais, as organizações sociais, comunitárias ou culturais, as autori­dades municipais, as escolas privadas, os clubes desportivos ou outros, etc.

A procura de educação a tempo parcial

Quais são a natureza e o alcance da partici­pação deliberada dos adultos e m actividades de educação a tempo parcial, de tipo tradi­cional ou não, n u m a região que conta c o m muitos estabelecimentos de ensino de tipo tradicional?

Para responder a esta questão, efectuou-se u m inquérito por sondagem orientado pelo Ontario Educational Communications Autho­rity ( O E C A ) 1 . Os resultados deste inquérito, que foram recentemente publicados2, indi­cam que o número de adultos da provincia que seguem activamente u m a formação ou qualquer tipo de ensino é, de facto, muito elevado. O impacto desta forma de educação, assim como o interesse que lhe dedicam aque­les que ainda não participam n u m processo de aprendizagem sistemática, são visíveis no conjunto dos grupos etários constituídos pelos adultos e pelas pessoas que estão no início da terceira idade. Pelo menos 1 400 000 adul­tos — cerca de 30 por cento da população e m idade adulta — participam efectivamente nu­m a actividade de aprendizagem sistemática; 80 por cento pretendem prosseguir esta acti­vidade n u m futuro próximo e mais de 800 000 adultos — ou seja, cerca de 18 por cento da população e m idade adulta— que, actual­mente, não exercem qualquer actividade deste tipo, exprimem a intenção de empreender estudos n u m futuro próximo (um ou dois anos).

U m a das principais conclusões que pode­m o s tirar destes dados é que, e m Ontário, as possibilidades de instrução são numerosas e dativamente acessíveis a u m a grande parte

da população. O s serviços educativos de Ontá­rio estão, e m larga medida, «abertos» . N o entanto, tendo e m conta o número de «estu­dantes potenciais» e as suas características demográficas e socioeconómicas, assim c o m o as razões pelas quais os «não-estudantes» não participam e m actividades de educação, somos forçados a concluir que os serviços educa­tivos não estão, actualmente, suficientemente adaptados às necessidades de muitos grupos específicos.

Entre aqueles que teriam necessidade de u m sistema educativo mais acessível, encon-tram-se as mulheres e as pessoas que exer­cem certos tipos de empregos, tais c o m o os empregados de escritório, os operários não qualificados e as pessoas que habitam zonas rurais. A s mulheres que permanecem e m casa, c o m o , de resto, todas as pessoas imobilizadas, procuram também possibilidades de educação que lhes estejam adaptadas.

O s resultados do estudo indicam claramente que os adultos que trabalham têm necessidade de fórmulas e de serviços novos e mais diver­sificados e m matéria de educação. Estes ser­viços, cuja necessidade começa a fazer-se sentir, deveriam atender — mais do que os servi­ços existentes — às limitações que se devem ao tempo, à situação geográfica, à possibili­dade de deixar o domicílio e à de se deslocar. Seria também aconselhável conceber serviços mais adaptados às necessidades particulares dos adultos mais jovens e das pessoas de meia idade.

N o s grandes centros urbanos, m e s m o quando as possibilidades de educação são largamente abertas, urge pensar nos inúmeros grupos de adultos que não podem utilizar as possibilidades existentes.

São necessários esforços suplementares se

1. O O E C A assegura o funcionamento de u m a rede de cadeias de televisão educativa e m Ontário, difunde programas por meio de sistemas de tele­visão à distância e distribui bandas video pelos estabelecimentos de ensino.

2. Ignacy W A N I E W I C Z , Demand for part-time lear­ning in Ontario, publicado pelo Ontario Institute for Studies in Education, Toronto, Canada, 1976.

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Ignacy Waniewicz

pretendemos abrir a educação a diversos grupos étnicos, e m especial à população fran­cófona de Ontário.

O nível de rendimento e o nível de instru­ção estão estreitamente ligados à participação nas actividades de educação para adultos. Quanto mais instruídas e mais dinheiro ganha­rem as pessoas, mais activamente se interes­sarão pelas actividades de educação que se lhes proporcionem. A variável mais determi­nante da utilização das possibilidades de edu­cação parece ser o nível de instrução. São as pessoas cujo rendimento individual familiar é mais elevado que utilizam mais estas possi­bilidades, o que parece dever-se ao facto do seu nível de instrução ser geralmente mais ele­vado.

O fosso que separa os «providos» dos «des­providos» e m matéria de educação parece aumentar, a despeito do nível de instrução do conjunto da população parecer elevar-se. São necessárias novas iniciativas e esforços profundos se queremos modificar esta situa­ção crónica que determina que as classes socioeconómicas menos favorecidas estejam sistematicamente «sub-representadas» entre os adultos que desenvolvem actividades de edu­cação, enquanto as classes média e superior estão constantemente «super-representadas»

S e m minimizar estes obstáculos e estas limi­tações manifestas c o m que depara a abertura das possibilidades de educação (e que não desaparecerão nunca completamente na m e ­dida e m que u m a educação mais eficaz sus­cita u m desejo suplementar de educação), Ontário dá provas de u m a atitude nova e dinâmica quanto à compreensão das necessi­dades e m matéria de educação de adultos. O resultado é u m a extrema diversidade das fórmulas de educação.

Onde se instruem os adultos?

A maior parte dos adultos que participam e m actividades de educação frequenta habitual­mente mais do que u m estabelecimento ou

outro local de ensino. Estima-se e m 2,6 o número médio de programas de educação e m que está «inscrito» o «estudante» adulto m é ­dio. Por outras palavras, os que estão cons­cientes dos seus esforços para se instruírem podem, na maior parte das vezes, indicar mais do que u m domínio de estudo pelo qual se interessam particularmente. O s estabeleci­mentos de ensino de tipo tradicional, como as universidades, os colégios, os cursos noctur­nos ou os cursos por correspondência, as esco­las profissionais, etc., são responsáveis uni­camente por 30 por cento do conjunto dos programas de educação de adultos; 70 por cento de todas as actividades de educação organizadas têm lugar para além do sistema cujo principal objectivo é a educação.

Nestas circunstâncias, onde se instruem, então, os adultos de Ontário? Perto de u m estudante adulto e m dois participa, pelo m e ­nos, e m u m programa de educação elaborado por organizações comunitárias, culturais, de serviços ou similares (tal c o m o os grupos comunitários, as bibliotecas, os museus, o Y M C A , a Cruz Vermelha, as Igrejas, etc.); 16 por cento de todos os programas de edu­cação estão, de u m a maneira ou de outra, ligados ao local de trabalho dos interessados, por se inserirem na execução das tarefas pro­fissionais, por terem lugar no local de traba­lho m e s m o sem ter relação c o m as tarefas profissionais, ou, finalmente, por serem exe­cutados por outras organizações ou estabe­lecimentos, mas patrocinados pelo empresário ou pelo sindicato profissional. U m número comparável de actividades deve-se a autodi­dactas, isto é, a pessoas que procedem, por sua própria iniciativa e organizando o seu trabalho, à aquisição sistemática de certos conhecimentos e competências. (Convém su­blinhar que, segundo todas as probabilidades, o número de pessoas que se dedicam a este tipo de actividades é muito mais importante do que estimámos).

O facto da nossa estimação estar manifes­tamente aquém da realidade explica-se por o inquérito ter sido efectuado por meio de entrevistas individuais, na base de u m ques­tionário que salientava as práticas «educati-

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A educação dos adultos e m Ontario

vas». Muitas das pessoas que se instruem e m determinados domínios ignoram que exercem u m a actividade educativa e têm ten­dência, portanto, para negar a existência des­tas práticas no que lhes diz respeito. Estudos efectuados por Allen Tough 1 indicam que quase todos os indivíduos se lançam e m pelo menos u m a ou duas acções de auto-instrução, por ano, e que este número pode atingir 15 ou 20 e m certos casos. Talvez seja interes­sante notar que todos os autodidactas que se definiram como tal durante o nosso inquérito participavam e m pelo menos u m programa educativo de tipo mais formal. O que parece indicar que os que participam e m actividades de educação no quadro de u m estabeleci­mento de ensino ou de outra organização estão mais conscientes dos esforços de auto--instrução que podem empreender.

U m número considerável de adultos bene­ficia das possibilidades de educação propor­cionadas por clubes ou grupos reunindo pes­soas c o m interesses particulares, como os clubes de leitores, os cine-clubes, os grupos de teatro amador, os clubes desportivos, etc. N o total, 9 por cento dos programas de edu­cação têm por quadro este género de grupo. Cerca de 5 por cento dos «estudantes» indi­caram as emissões de rádio e de televisão como u m a das fontes dos seus esforços de educação: 2 por cento de todas as activi­dades de auto-educação empreendidas por adultos baseiam-se e m programas de rádio e de televisão.

Talvez seja interessante descrever resumi­damente alguns dos locais onde se realiza a educação dos adultos.

UNIVERSIDADES

A s dezassete universidades de Ontário facul­tam aos alunos-estudantes a tempo parcial diversos cursos, conduzindo, ou não, a diplo­mas. Muitas disciplinas proporcionam u m ensino de tipo tradicional a tempo parcial concedendo diplomas ao nível do segundo e do terceiro ciclo do ensino superior. Cerca de u m terço dos estudantes inscritos nestes cursos são estudantes a tempo parcial.

O ensino de tipo não tradicional abrange u m amplo leque de matérias, desde as dis­ciplinas de carácter profissional e técnico até ao artesanato e às actividades recreativas. Contudo, a maioria dos programas que não conduzem a diplomas consiste e m cursos de aperfeiçoamento profissional dos quais a maior parte dá lugar à atribuição de u m certificado ou de u m atestado.

Algumas universidades criaram colégios exclusivamente reservados aos estudantes a tempo parcial. Assim, o Woodsworth College da Universidade de Toronto põe os recursos da Universidade à disposição dos adultos dis­postos a empreender estudos sistemáticos a tempo parcial. A Universidade conta c o m u m total de 20 000 estudantes a tempo parcial, dos quais muitos estão inscritos e m progra­mas de estudos conduzindo a diplomas ou certificados. Muitos estudantes seguem cursos por correspondência. Entre os programas que podem ser seguidos a tempo parcial, incluem--se, além da preparação dos diplomas de bachelor of arts, de bachelor of science e de bachelor of education, os seguintes programas: primeiro e segundo ano da maior parte dos programas de formação de engenheiros; pri­meiro e segundo ano do programa de formação de enfermeiras e u m programa de aperfeiçoa­mento conduzindo a u m diploma de bachelor of science e m reeducação física e profissional.

U m colégio análogo, o Atkinson College da Universidade York de Toronto, é u m a faculdade de letras e de ciências que funciona exclusivamente à noite e propõe cursos que dão lugar a quatro diplomas: bachelor of arts, bachelor of science, bachelor of arts (adminis­tration) e bachelor of social work. Este colégio funciona segundo o princípio das unidades de valor e não por anos universitários. N o Verão, as aulas efectuam-se também durante o dia.

A Universidade de Waterloo propõe u m programa por correspondência incluindo aulas

1. Allen T O U G H , The adult's learning projects, The Ontario Institute for Studies in Education, Toronto (Canadá), 1971.

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Ignacy Waniewicz

magistrais gravadas e m cassettes, acompa­nhadas por séries de fichas e de manuais. Apesar da grande maioria dos estudantes residir nos grandes centros urbanos, alguns deles vivem e m zonas isoladas do norte, assim c o m o e m outras províncias do Canadá. E m 1975-1976, cerca de 2500 estudantes seguiram cursos por correspondência da Universidade de Waterloo. Muitos dos programas que conduzem a diplomas podem ser seguidos na totalidade ou e m parte por correspondência: trata-se dos diplomas de B . A . de psicologia geral e de história geral, do B. Math, general degree, do B . Sc. de ciências gerais, etc. O programa de curso por correspondência inclui, além do ensino que dá direito ao diploma, cursos de divulgação ou de iniciação e m domínios como a contabilidade, a infor­mática, a literatura geral, a história, etc.

COLÉGIOS COMUNITÁRIOS

O s vinte e dois colégios de artes aplicadas e de ensino técnico (colleges of applied arts and technology), geralmente designados por colé­gios comunitários, existentes e m Ontário, dividiram-se e m mais de noventa campus por várias municipalidades da província. Propõem aos estudantes-adultos, além dos programas a tempo integral muito diversificados, n u m e ­rosas possibilidades de educação :

Cursos pós-secundários, conduzindo aos diplomas e certificados habitualmente conce­didos pelos colégios;

Cursos de iniciação ou de formação pro­fissional não fornecendo diplomas;

Cursos de reciclagem patrocinados pelo Departamento da mão-de-obra e da imigra­ção do governo federal e por organismos da província;

Cursos de formação no domínio do tra­balho e da indústria, b e m como cursos de formação e m gestão, organizados e m cola­boração c o m empresários de diversos sec­tores;

Programas de formação de aprendizes. Cerca de 300 000 adultos participam nestas

actividades. A s inscrições nos programas pós-

-secundários dando direito a diplomas repre­sentam perto de u m quinto das inscrições totais, e aquelas que não fornecem qualquer diploma cerca de u m terço.

CONSELHOS ESCOLARES

Quase todos os conselhos escolares propõem programas de educação permanente, sob qual­quer forma. Os programas de tipo não formal representam mais de 80 por cento das acti­vidades. É no domínio dos «tempos livres e actividades recreativas», que reúne mais de u m quarto das pessoas que frequentam os cursos dos conselhos escolares, que se regista a maior concentração de inscrições.

BIBLIOTECAS

A s bibliotecas de Ontário organizam activi­dades culturais muito diversas, como confe­rências, projecções de filmes, reuniões impro­visadas, debates, visitas, exposições, etc. Algumas delas propõem ainda programas de instrução de tipo não formal mais estrutura­das e sistemáticas. A participação nestes pro­gramas não se adapta ao m e s m o tipo de medida que a participação nas actividades orga­nizadas pelas universidades, os colégios comu­nitários e os conselhos escolares. N e m sempre é fácil ou possível obter o número de inscrições nas 300 bibliotecas principais e nas bibliote­cas locais (mais de 700).

A s bibliotecas municipais, de aldeia e rurais, que representam 30 por cento das bibliotecas da província, não possuem, e m geral, pro­gramas de educação permanente. A s biblio­tecas propõem essencialmente actividades de educação tendo por tema as actividades recrea­tivas, os tempos livres e o desenvolvimento pessoal. A natureza dos programas propos­tos, assim como as horas de abertura (manhã e tarde) parecem indicar que as bibliotecas atraem mais as mulheres do que os homens.

YMCA-YWCA

O s 60 Y M C A (Young M e n ' s Christian Asso­ciation) e Y W C A (Young W o m e n ' s Christian

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A educação dos adultos e m Ontário

Association) de Ontário proporcionam n u m e ­rosas fórmulas de educação de tipo não for­mal.

Os programas propostos sob as rubricas «desenvolvimento pessoal» e «actividades recreativas e tempos livres» atraíram cerca de 90 por cento de todos os participantes. Nestas duas categorias, os programas de ensino estruturado nos domínios dos des­portos e da educação física constituíam mais de 40 por cento das actividades propostas. Além disso, propõe-se u m número conside­rável de programas no domínio das línguas, das artes plásticas e do artesanato.

Geograficamente, as actividades educativas destes organismos concentram-se nas zonas urbanas, onde a população é muito densa e, para além da educação e m matéria de despor­tos e de tempos livres, acompanham muitas vezes as actividades das outras organizações educativas ou culturais.

SECTOR DO TRABALHO E DA INDÚSTRIA

A formação técnica e profissional ligada ao emprego é provavelmente u m a das formas mais divulgadas de educação dos adultos, mas é extremamente difícil recolher dados estatísticos a este respeito.

Muitas organizações do sector do trabalho e da indústria patrocinam programas que têm por quadro as universidades e os colégios comunitários. O Institute of Canadian Ban­kers, por exemplo, é u m a das principais fontes de financiamento dos programas que dão direito a diplomas; organiza cursos e m catorze universidades e dois colégios comunitários de Ontário. Associações como as câmaras de comércio, as associações patronais da indús­tria, o instituto dos bancos, etc., propõem seminários e cursos sobre assuntos susceptí­veis de interessar os seus membros.

Entre os programas propostos pelos sindi­catos de trabalhadores, muitos são os que adquirem a forma de seminários ou de ofici­nas com a duração de dois dias (um fim-de--semana) a cinco dias. A maior parte destes programas efectua-se sobre u m dos seis temas

seguintes: desenvolvimento pessoal, forma­ção técnica, formação dos delegados sindi­cais, organização sindical, negociação de con­venções colectivas e conflitos do trabalho e arbitragem.

ORGANIZAÇÕES DO SECTOR DA SAÚDE

O s hospitais dispensam serviços educativos, como a formação no emprego e o aperfei­çoamento das enfermeiras. Outros organis­m o s de serviços sanitários propõem programas de socorrismo, de tratamento a domicílio e de preparação para o parto. Assim, o St. John's Ambulance propõe diversos cursos de socorrismo para crianças e adultos e m toda a província. O s cursos sobre o tratamento a domicílio são organizados pela Cruz-Verme­lha Canadiana. O s cursos de preparação para o parto são propostos por organismos c o m o o Prenatal Education Committee of Metropo­litan Toronto, Canadian Mothercraft e Chil­dren Education Association of Canada. Al­guns organismos de serviços sanitários como a Canadian Hemophilia Society, a Ontario Epilepsy Association e a Canadian Hearing Society têm programas concebidos para res­ponder às necessidades dos deficientes e suas famílias. N o entanto, a educação sanitária parece fazer-se a grande escala não no quadro de programas estruturados, mas pela via dos meios de informação, dos anúncios, das bro­churas, etc.

TELEVISÃO EDUCATIVA

Graças à Ontario Educational Communica­tion Authority ( O E C A ) e às relações de estreita colaboração que este organismo m a n ­tém c o m as universidades, colégios e outros estabelecimentos de ensino de toda a provín­cia, proporciona-se ao público u m número crescente de fórmulas de educação, por inter­médio da televisão. Emissões extraordinárias vêm completar dispositivos de aprendizagem estruturados de maneira mais tradicional, e a combinação destes métodos começa a cons­tituir u m verdadeiro recurso para a educação

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Ignacy Waniewicz

permanente. Seis universidades de Ontário ministram u m curso de divulgação de quí­mica, sem concessão de diploma, baseado n u m a série de emissões televisivas intitulada «Dimensions in science» (Dimensões da ciência). A universidade de Waterloo faculta u m curso de história por correspondência intitulado « O sentido da civilização», conce­bido a partir da célebre série de emissões televisivas «Civilização». O Seneca College Without Walls de Toronto propõe u m curso sobre as ciências políticas no Canadá, inti­tulado «The Government w e deserve» (O go­verno que merecemos), que se inspira na série de emissões televisivas homónima produzida pela O E C A . A Laurentian University de Sudbury utiliza a série de emissões televisivas «Planet of M a n » (O Planeta do H o m e m ) , produzida pela O E C A , b e m como diversos programas produzidos pela própria univer­sidade, para u m curso do primeiro ano e m geologia, concedendo u m diploma. A série «The Prisioner» (O prisioneiro), série policial futurista e psicológica difundida pela cadeia de televisão da O E C A , serve de base a u m curso sem concessão de diploma proposto pelo Seneca College Without Walls c o m o título de «Explorações», e cujo objectivo consiste e m examinar certos problemas liga­dos aos valores humanos. A S u m m e r Aca­demy (curso de Verão) da O E C A , concebida para u m público não especializado, constitui u m a experiência relativamente nova e b e m sucedida. N o Verão passado foram apresen­tados dois cursos combinando a difusão de programas televisivos, as conversações tele­fónicas, a escuta de bandas magnéticas, a consulta de material impresso e a organização de reuniões, sob os títulos «Brush up your french» (Recapitule o seu Francês) e «Brush up your math» (Recapitule a Matemática).

U m exemplo: a zona metropolitana de Toronto

O s organismos que propõem programas, assim como as possibilidades de educação permanente, são tão diversos e numerosos que

a dispersão da informação sobre os cursos existentes suscita actualmente u m grave pro­blema. Nestes últimos anos têm sido tomadas iniciativas interessantes, tendentes a centra­lizar a informação e a difusão para além das fronteiras administrativas. Assim, o Metro­politan Toronto Library Board1 publica pelo menos duas edições por ano do seu Continuing education directory (Repertório da educação permanente). Este repertório enu­mera a maior parte dos cursos a tempo par­cial, dos cursos de divulgação, dos cursos nocturnos, dos cursos por correspondência de carácter cultural, clássico, técnico, recrea­tivo, profissional, de desenvolvimento pes­soal, etc., a todos os níveis de conhecimento e competência, que são propostos na zona metropolitana de Toronto durante u m deter­minado semestre.

A edição do Outono de 1976 do repertório enumera cerca de 5500 cursos e programas, excluindo os tipos de ensino que conduzem a u m diploma, os cursos organizados pelas associações de tipo profissional e destinados exclusivamente aos seus membros e dos pro­gramas organizados pelas Igrejas, sindicatos, clubes, associações de voluntários e organis­m o s públicos, também destinados aos seus membros .

N o total, propõem-se mais de 200 matérias diferentes e m domínios como as letras, o trabalho, a tecnologia e as técnicas da comu­nicação, o ordenador e o tratamento de dados, o artesanato, a saúde e as ciências médicas, as letras clássicas, as línguas, a matemática, o teatro, a dança, a música, os tempos livres, a ciência, as ciências sociais, os desportos e os jogos, as técnicas de engenharia e os ofícios manuais. Muitos cursos sobre maté­rias ensinadas no primário e no secundário destinam-se aos que desejam completar a ins­trução escolar a estes níveis. Além disso,

1. U m a das malhas do sistema regional de bibliotecas de Ontário, que coordena os serviços de biblioteca dos seis boroughs (bairros) de Toronto e cuja tarefa consiste essencialmente e m fornecer ser­viços de referência centralizados.

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A educação dos adultos e m Ontário

outros programas versam sobre assuntos diversos como os animais e m geral e os ani­mais domésticos, a cozinha, a costura, a jar­dinagem, o ordenamento da paisagem, o estudo da natureza, o desenvolvimento pes­soal, as viagens, os vinhos e licores, o jogo e muitos outros temas ligados às actividades recreativas e interessando o lar e a família.

O repertório fornece u m a lista de cerca de 80 estabelecimentos e organizações da zona metropolitana de Toronto que patrocinam estes cursos. Quais são estas organizações? Os conselhos escolares, os departamentos dos parques e tempos livres, as bibliotecas públi­cas dos seis boroughs da zona metropolitana de Toronto. Trata-se também das duas uni­versidades de Toronto e dos seus colégios, b e m como dos quatro colégios comunitários que propõem — além dos cursos que condu­zem a diplomas ou certificados — toda u m a gama de programas de carácter geral ou espe­cializados destinados ao «estudante perma­nente» que procura enriquecer-se intelectual, cultural ou profissionalmente sem as limita­ções do ensino de tipo tradicional. Final­mente, observamos nesta lista a presença das galerias de artes e dos museus do Toronto, de grupos de teatro, ballet e música, de associa­ções que se ocupam da saúde, de grupos e de associações étnicas, de associações profis­sionais, de sociedades e de institutos religio­sos, de clubes de desportos e tempos livres, de sociedades científicas e de organismos públicos.

A duração dos cursos enumerados no reper­tório varia consideravelmente, mas a maior parte deles dura dez ou vinte e cinco semanas. A propina de inscrição varia também e m função da duração dos cursos, do tipo de ensino e do tipo de organização que os gerem. Assim, o Toronto Board of Education (Con­selho Escolar de Toronto) propõe u m curso de quatro semanas sobre o tema «Defensive driver training» (a condução automóvel defen­siva) por 5 dólares, enquanto u m curso por correspondência de economia internacional de trinta e quatro semanas apresentado pela School of Continuing Studies da Universidade de Toronto custa 100 dólares. Existem, porém,

muitos cursos gratuitos: e m especial, é o que acontece c o m o ensino do inglês como segunda língua, c o m todos os cursos por correspon­dência de nível secundário organizados pelo Ministério da Educação de Ontário, c o m mui­tos cursos de artes plásticas e de artesanato organizados pelos departamentos dos parques e tempos livres dos boroughs, c o m programas para pessoas da terceira idade, etc.

Disparidades geográficas

e obstáculos à educação

Seria injustificado afirmar que os adultos só têm possibilidades de educação nos grandes centros metropolitanos; observam-se, porém, disparidades consideráveis entre as diversas zonas da província.

Independentemente da dimensão da popu­lação, parece que a presença de u m estabe­lecimento de ensino pós-secundário n u m determinado condado predetermina o nível de participação dos adultos nas actividades de educação na zona considerada. Assim, nos condados e m que não existe universidade n e m colégio comunitário, a participação dos adultos nas actividades de educação é muito mais fraca. A presença de u m a universidade ou de u m colégio parece incitar os outros organismos locais a oferecer possibilidades de educação.

É inegável que, no sul de Ontário, se encon­tram possibilidades de educação mais amplas. A s universidades situadas a menos de 80 qui­lómetros da fronteira sul do Canadá registam 90 por cento das inscrições e m programas a tempo parcial concedendo u m diploma, enquanto esta zona conta apenas c o m cerca de 80 por cento da população da província. Encontramos também nesta região u m grande número de programas universitários que não concedem nenhum diploma; só a cidade de Toronto — que conta c o m u m quarto da popu­lação da província — regista mais de metade das inscrições e m programas universitários que não dão direito a diploma. D o m e s m o m o d o , Toronto e os arredores acolhem m e ­tade dos adultos que se inscrevem e m pro-

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Ignacy Waniewicz

gramas educativos dos colégios comunitários, enquanto o resto se reparte pelos outros centros industriais e mineiros.

A melhor maneira de resumir as conclusões relativas aos obstáculos, à aprendizagem e às razões da não-participação nas actividades de educação seria talvez a que consiste e m exa­minar os dados do ponto de vista do conjunto da população. E m primeiro lugar, convém notar que apenas 23 por cento dos «não-estu-dantes» adultos invocam a falta de interesse c o m o motivo da sua não-participação e m actividades de educação.

Perto de dois milhões de adultos da pro­víncia consideram que o facto de «não ter tempo» é u m obstáculo à educação, apesar de serem muitos os que podem empreender os estudos, a despeito deste impedimento. Cerca de 700 000 pessoas, ou seja 15 por cento da população total, consideram não ter podido ou não poderem permitir-se finan­ciar a participação e m actividades de educação. Mais de meio milhão consideram que lhes era, ou lhes é, demasiado difícil deixar o lar. Para cerca de meio milhão de pessoas, os cursos eram ou são demasiado longe do domi­cílio. Contudo, muitas pessoas invocam a sua repugnância pelos horários fixos e pelos exa­mes ou ainda a sua incerteza quanto à quali­dade dos cursos apresentados como razão para não ingressarem nos cursos.

O número dos que declaram abertamente que é a falta de confiança e m si ou a falta de instrução que os impede de participar nos estudos é relativamente baixo.

Se pusermos de lado motivos como a falta de tempo, o cansaço, ou a falta de interesse por completar a educação, admitindo — c o m ou sem razão — que se trata de motivações sobre as quais o planificador ou o adminis­trador da educação não pode actuar, os principais obstáculos a superar estão, por­tanto, ligados aos problemas financeiros, à mobilidade e aos problemas de adaptação às possibilidades existentes. Talvez seja interes­sante examinar como estes obstáculos pertur­b a m os principais grupos de «estudantes potenciais» e de «não estudantes».

Verificou-se que as mulheres de 18 a 34 anos

e de 45 a 49 anos constituem u m importante grupo de pessoas e m busca de possibilidades de educação. Quando examinamos os impe­dimentos mais frequentemente apontados pelas pessoas interrogadas, vemos que se trata de problemas financeiros e de problemas de m o ­bilidade para as mulheres de 18 a 24 anos; estes mesmos obstáculos aparecem e m se­gunda, terceira ou quarta posição para as mulheres de 25 a 44 anos, depois da «falta de tempo». Para o importante grupo de «estudantes potenciais» formado pelos homens de 25 a 29 anos, os problemas financeiros surgem e m segundo lugar e os problemas de mobilidade e m quarto.

Quanto às outras variáveis, os «estudantes potenciais» cujos filhos não são escolarizados invocam prioritariamente os problemas finan­ceiros e os problemas de mobilidade. São estes mesmos três obstáculos ligados aos pro­blemas financeiros e à mobilidade que se encontram nos três ou quatro primeiros lugares das listas de obstáculos invocados pelos «estudantes potenciais» que se seguem: mulheres que permanecem no lar, pessoas que iniciaram ou terminaram estudos pós--secundários, empregados e operários não qualificados.

A estrutura das respostas é sensivelmente a m e s m a para os «não-estudantes», embora os problemas de adaptação às possibilidades existentes e os problemas ligados à falta de confiança e m si pareçam assumir maior impor­tância.

A análise das disparidades geográficas res­peitantes às estruturas de acolhimento, dos obstáculos à educação e das razões invocadas para não prosseguir os estudos deve conduzir, segundo parece, à emergência, mais u m a vez, do papel capital que poderiam desempenhar os sistemas educativos baseados nos media, no que se refere à satisfação das necessidades de educação da população de Ontário, sobre­tudo se estivessem associados a todo u m conjunto de situações de interacção ensino/ aprendizagem, adaptadas às necessidades dos interessados no que respeita aos horários, aos locais e à concepção das actividades de educação.

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Filippo M . de Sanctis

U m a conquista dos trabalhadores italianos: as "150 horas"1

Entende-se, e m Itália, por «150 horas» as horas-crédito conquistadas pelos metalúr­gicos a quando das lutas pela renovação do contrato de Março de 1973. M a s , para além deste significado principal e imediato, as «150 horas» adquiriram u m significado polí­tico e cultural considerável.

Tentaremos, no presente artigo, explicar resumidamente do que se trata, fazer o balanço da experiência, descrevê-la nos seus pri­meiros anos, fornecer alguns elementos de avaliação e, finalmente, traçar perspectivas no quadro da sociedade italiana.

A conquista das «150 horas»

pela classe operária

O direito ao estudo está plenamente confir­m a d o pela Constituição Italiana (art. 34) e pela Declaração dos Direitos do H o m e m , aprovada pelas Nações Unidas e m 1948, e ratificada pelo Parlamento italiano e m 1955. M a s , para poder exercer verdadeiramente este direito fundamental, os trabalhadores neces­sitaram de trinta anos de luta nas frentes polí­tica e sindical.

O primeiro resultado positivo foi o Esta-

Filippo M. De Sanctis (Itália). Professor de educação dos adultos (Universidade de Florença) e de metodologia da educação dos adultos (Universidade de Roma). Par­ticipou, a diversos títulos, em actividades de educação permanente, às quais consagrou muitas publicações.

tuto dos trabalhadores (lei aprovada a 20 de Maio de 1970) cujo artigo 10.° prevê dis­pensas de serviço pagas para fazer exames, o direito ao trabalho por turnos para facilitar a assiduidade às aulas e a preparação para os exames; o direito de recusar horas suple­mentares ou o trabalho e m dias feriados. Estas vantagens não são concedidas para estudos universitários, c o m excepção das dispensas para exames.

M a s foi a renovação dos acordos contra­tuais de 1972-1973 que marcou u m progresso decisivo : os metalúrgicos obtiveram u m «cré­dito» de 150 horas para estudos. A s m o d a ­lidades v ê m formuladas no Contrato Colec­tivo dos metalúrgicos, de Abril de 1973:

«Os trabalhadores que, para melhorar a sua própria cultura, m e s m o no âmbito da empresa, desejem frequentar estabelecimentos públicos assimilados ou reconhecidos, ou frequentar aulas, podem beneficiar de férias pagas de acordo c o m u m número de horas trienal à disposição de todos os assalariados». Para ter direito a u m a dispensa remunerada, o tra­balhador deve seguir u m curso cuja duração seja o dobro do número de horas requeridas (isto é, u m curso de, pelo menos, 300 horas).

1. N a redacção deste artigo, apoiámo-nos princi­palmente nas obras a seguir indicadas das quais retirámos informações e dados: L . D O R E : Fabbrica e scuola, le 150 ore, R o m a , Editori Riuniti 1975; Quindicinale di note e commenti CENSIS, n . o s 228 e 229, 15 de Junho de 1975. Foi publicada u m a bibliografia abundante e exaustiva pela revista Scuola e Città, n . 0 3 7 e 8, 1975.

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O número de assalariados ausentes do tra­balho não pode ser superior a 2 por cento.

Outras categorias de trabalhadores obtive­ram vantagens semelhantes durante os anos que se seguiram. Os ceramistas (contrato de 17 de Junho de 1973): 120 horas anuais, das quais 40 remuneradas, não podendo este direito ser exercido simultaneamente por mais de 2,5 por cento dos empregados; trabalha­dores da madeira e da cortiça (23 de Junho de 1973): 120 horas, das quais 40 remuneradas, ausência simultânea máxima: 2,5 por cento; operários texteis (20 de Junho de 1973): 120 horas, das quais 40 remuneradas, ausência simultânea máxima: 2,5 por cento; operários do vidro (9 de Janeiro de 1974): 50 horas remuneradas; os trabalhadores do sector da borracha, do plástico, do linóleo (18 de Março de 1974): 150 horas, das quais 50 remunera­das; ausência simultânea máxima: 3 por cento. Entre as outras categorias que obtiveram o direito ao estudo, assinalemos os trabalha­dores do livro (15 de Janeiro de 1974), dos curtumes (15 de Fevereiro de 1974), da mari­nha mercante, os empregados dos organismos locais, das empresas municipais, das fábricas de brinquedos, da alimentação, da horticul­tura, dos aquedutos municipais.

O s próprios operários agrícolas (12 de Julho de 1974) beneficiaram de u m a lei esti­pulando «a concessão aos operários, n u m momento indeterminado, de férias remune­radas de 60 horas por ano para frequentar aulas de recuperação escolar»; além disso, «a nível da província, durante a renovação dos acordos, poderá decidir-se a concessão ulterior de u m número de horas suplementares».

Para fazermos u m a ideia da dureza dos confrontos, notemos as diferenças entre os números de horas de dispensa obtidas pelas diversas categorias de trabalhadores e relem­brar u m a simples anedota. Quando os sindi­calistas da metalurgia se dirigiram para a mesa das negociações e m que tomavam parte, não u m patrão qualquer, mas os represen­tantes da maior, da mais séria, da mais avan­çada e da mais esclarecida das indústrias ita­lianas, viram os seus pedidos divididos e m três grupos: absolutamente inaceitáveis, dis­

cutíveis e aceitáveis. Entre os primeiros figu­ravam as 150 horas porque, «além das razões de custo e das consequências práticas para a empresa», surgem como u m a «exigência absurda de aculturação da classe operária».

Ora, cultivar-se era precisamente aquilo a que os operários aspiravam. Conta-se que, durante a reunião c o m os metalúrgicos, os patrões exclamaram a propósito da reivin­dicação do direito ao estudo : « M a s que pen­sam fazer destas 150 horas? Aprender a tocar cravo?» Essa eventualidade não deve ser excluída, responderam os interessados.

O direito ao estudo:

o que significa a sua obtenção

N a realidade, não devemos confundir a vitó­ria obtida pelo movimento operário italiano a partir de 1973 c o m estas formas de dispensa. Ela inscreve-se «numa linha sindical orientada para o controle operário da organização do trabalho (ritmos, pausas, ambiente de tra­balho, efectivos) e para u m a linha igualitária prosseguida através do enquadramento único». Por outras palavras, as 150 horas — c o m o foi afirmado — representam u m instrumento por meio do qual, esforçando-se por supe­rar as diferenças objectivos de competência profissional dos trabalhadores (diferenças exploradas pelo patronato para dividir os tra­balhadores), se pretende fazer do enquadra­mento único não u m simples facto salarial, mas u m meio de instaurar u m a igualdade real entre os trabalhadores. Além disso, as 150 horas constituem u m instrumento de cul­tura útil ao indivíduo mas que permite igual­mente que a classe operária, as organizações, os comités de empresa, exerçam u m controle colectivo mais eficaz sobre as condições de trabalho e que contestem mais vivamente o domínio hegemónico do patronato sobre a organização do trabalho. Esta contestação, baseando-se na «não-delegação dos poderes» e na recusa de u m a pretensa objectividade da ciência e da técnica, requer « u m a capacidade de reflexão cultural autónoma por parte da classe operária».

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U m a conquista dos trabalhadores italianos: as «150 horas»

E m suma, as 150 horas constituem u m a conquista qualitativamente diferente da sim­ples reciclagem «profissional» e da promoção individual; a primeira está encerrada na lógica da empresa e a segunda tem tendência para fechar o trabalhador no seu desejo de promoção social.

O sindicalismo italiano, n u m a concepção unitária que reúne as três confederações (Confederazione generale italiani dei lavora-tori — C G I L ; Confederazione italiani dei sindicati liberi — CISL; Unione italiani dei lavoratori — UIL) , procura atribuir ao direito ao estudo u m significado profundamente ino­vador. O estudo surge como « u m instrumento de mobilidade colectiva no sentido e m que o desenvolvimento cultural geral permite re­constituir a classe operária aos níveis mais baixos, acabar c o m todas as formas de tra­balho não qualificado ou subalterno». É evi­dente que esta concepção do sindicalismo é «incompatível c o m a actual organização do trabalho que se baseia precisamente na estra­tificação e na hierarquização da classe operá­ria a diversos níveis, na subutilização das capacidades, na qualificação cada vez mais fraca de massas de trabalhadores. A reivindi­cação do direito ao estudo está, pois, nesta óptica, intimamente ligada à luta contra a actual organização do trabalho». A ideia das 150 horas nasceu essencialmente da convicção crescente da necessidade da cultura porque «o desenvolvimento cultural dos trabalha­dores provoca a explosão das contradições, põe tudo e m causa, torna objectivamente indefensável o actual sistema de subutilização das competências e dos conhecimentos, e torna impossível a actual organização do trabalho».

C o m o se concretizam

as 150 horas nas instituições no conteúdo dos estudos e nos métodos?

A s opções precisas dos sindicatos no que res­peita à instituição escolar, ao conteúdo dos

estudos efectuados pelos trabalhadores e aos métodos mostram b e m o sentido que eles quiseram atribuir às 150 horas.

D o ponto de vista institucional, o movi­mento sindical afastou claramente a ideia de u m a «escola operária» distinta do sistema escolar. Defendeu, pelo contrário, o princí­pio segundo o qual as 150 horas devem situar-se no quadro da escola pública. A acção sindical teve, portanto, repercussões para além da fábrica, na sociedade, onde sur­giu c o m o u m aspecto do combate operário a favor da reforma e da democratização da escola. C o m o se afirma nas publicações sin­dicais, o actual sistema escolar opera u m a selecção rigorosa nos filhos dos trabalhadores; desempenha mal a sua missão de formação; baseia-se e m métodos e relações autoritá­rios; ignora a realidade das conquistas sociais e democráticas do país. Perante este sistema, os sindicatos têm a intenção de transformar as 150 horas n u m verdadeiro ponto de refe­rência para toda a escola. É por isso que afir­m a m que as leis sobre o direito ao estudo podem fornecer u m a ocasião de pressão sobre a escola pública, tanto no que respeita aos programas e aos conteúdos c o m o aos m é ­todos; u m a oposição dialéctica entre o antigo e o novo e, sobretudo, o regresso à escola de u m número crescente de trabalhadores podem contribuir para a renovação da escola, dando início, concretamente, a u m a verda­deira reforma na base, e m vez de se limitar a reclamar dos poderes públicos a reforma da escola tantas vezes prometida.

Trata-se, pois, para os sindicatos, de tradu­zir objectivamente o princípio, inscrito na Constituição, do direito ao estudo, garantido por u m sistema público profundamente reno­vado. Perante esta orientação, donde trans­parece a estratégia global dos sindicatos ita­lianos, a tentação de encerrar as 150 horas no ghetto de escolas para trabalhadores é menos forte, mas constata-se tanto a intervenção pública do estilo «educação popular» (como meio «pobre» de recuperação, criado e m Itália e m 1947 sob a designação de escolas populares) c o m o a iniciativa privada, consi-

ZV

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Filippo M . de Sanctis

siderada exploração dos adultos desejosos de obter u m diploma de ensino superior.

Quanto ao conteúdo dos estudos, o signi­ficado atribuído pelos sindicatos às 150 horas «não conduz a u m a afirmação geral do direito ao estudo, implicando u m a exigência cultural nova». Reclama-se a necessidade de conteú­dos culturais e m relação c o m «a experiência dos trabalhadores, as lutas sindicais e os ideais do movimento operário», de u m a cul­tura «que seja u m instrumento de conheci­mento e de análise da realidade, que permita u m a tomada de consciência mais elevada e mais ampla, por parte dos trabalhadores, dos processos socieconómicos e m que estão impli­cados, que forneça os instrumentos neces­sários de contestação e de superação da actual organização do trabalho na fábrica e na sociedade».

Afirmou-se n u m a reunião (em Novembro de 1973) que as 150 horas devem ser utiliza­das e m função da real necessidade de conhe­cimentos despertada pela fábrica e pelas lutas sindicais: os comités de empresa devem iden­tificar entre os «numerosos modos de orga­nização do direito ao estudo» os que «cor­respondem melhor aos níveis de consciência e à natureza das lutas no interior de cada fábrica». Assim, «para reforçar u m a linha igualitária que tem dificuldade e m penetrar nas fábricas, devido precisamente aos dife­rentes níveis de formação dos trabalhadores, os comités de empresa poderiam decidir colec­tivamente a concessão do benefício das 150 horas aos operários que não possuem o cer­tificado de estudos secundários». E m certos locais, «quando a situação se deteriorou par­ticularmente e u m conflito está prestes a explodir, o comité de empresa pode orien-tar-se para u m curso sobre o ambiente de tra­balho». D e u m m o d o geral, insiste-se na rela­ção estreita que deve existir entre os temas dos cursos, as realidades sociais e as do sistema de produção.

N a circular do Ministério da educação pública que institui os cursos, está, de facto, previsto «que os planos de estudos e os pro­gramas serão estabelecidos para cada curso pelos professores e trabalhadores. A Federação

C G I L - C I S L - U I L conseguiu impor, de acordo c o m o sentido político atribuído ao direito ao estudo, que não se estabeleçam programas rígidos de ensino (não mais de quatro uni­dades interdisciplinares: a primeira incluindo matemática e ciências; a segunda geografia, instrução cívica e história; a terceira italiano, e a quarta u m a língua estrangeira). Conseguiu, porém, que fossem previstas unicamente a duração dos cursos e a orientação geral do ensino, deixando-se ao cuidado dos profes­sores, dos trabalhadores que frequentam estes cursos e «do movimento sindical — m e s m o que não esteja expressamente previsto, é u m facto e m muitos casos — a definição concreta dos planos de estudo».

N o que diz respeito aos métodos, para além da recusa de u m a aprendizagem mecânica dos conhecimentos, à importância do traba­lho de grupo e a u m a abordagem interdisci­plinar, convém notar que a conquista e a gestão das 150 horas assentam no princípio da sua utilização colectiva, ao qual o sindi­cato atribui tanta importância como à refe­rência à escola pública. A utilização colec­tiva das horas-crédito mostra que foi b e m compreendido o carácter ilusório das solu­ções individuais, mas é também a afirmação de u m a nova maneira de conceber o estudo.

O direito ao estudo deve, e m definitivo, «ser exercido e gerido colectivamente por todos os trabalhadores» tanto no exterior como no interior da escola. O s métodos de estudos são nitidamente influenciados por este princípio.

A nova metodologia é definida durante a organização dos cursos, e no momento do seu processamento. N o que diz respeito à primeira fase, basta recordar a cláusula do contrato dos metalúrgicos que «convida o comité de empresa a determinar, de acordo c o m a direcção, os critérios objectivos de selecção dos trabalhadores que beneficiam desse direito»; mas é necessário ter e m conta o facto dos sindicatos não se limitarem a fazer opções e recolher inscrições; procuram a participação de todos os trabalhadores n u m debate sobre o significado profundamente inovador do direito ao estudo e m relação às

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iniciativas no interior e no exterior da fábrica, a fim de que o confronto político provoque a emergência das exigências prioritárias, o tipo dos cursos, os métodos e os conteúdos, os critérios de selecção dos participantes. N a verdade, o curso começa precisamente nesse momento .

N a segunda fase, a dos cursos propriamente ditos, a gestão colectiva determina os métodos de estudos, estabelecendo relações de u m novo tipo entre os trabalhadores e os professores, entre todos os participantes, entre os próprios professores, entre a escola e o meio de vida.

O processamento dos cursos

Para compreender como os sindicatos conce­bem a utilização das 150 horas, é necessário ter e m conta a situação e m matéria de esco­larização. Basta lembrar que a maior parte dos trabalhadores não possui o certificado de estudos secundários; sobressai de vários estu­dos relativos unicamente à indústria metalúrgi­ca que «apenas 18 por cento dos trabalhado­res tinham terminado, e m 1970, a escolaridade obrigatória e que 65 por cento possuíam o certificado de estudos primários».

Para tentar encontrar u m a saída para u m a situação escolar fortemente desequilibrada, o sindicato escolheu utilizar prioritariamente as horas-crédito para preparação do certifi­cado de estudos secundários. Apesar de se ter concedido u m lugar privilegiado à recupera­ção respeitante à escolaridade obrigatória, organizaram-se igualmente, nas universida­des, seminários abertos aos trabalhadores e aos estudantes.

Alguns dados relativos aos anos lectivos de 1973/1974, 1974/1975 e às tendências do ano 1975/1976 dão-nos u m a ideia da impor­tância dos cursos. N o primeiro ano organi­zaram-se 931 cursos no total; no segundo ano cerca de 2200. Atingiam, e m 1976, perto de 3500. Assim, surgem todos os anos cerca de u m milhar de novos cursos.

O s cursos que preparam para o certificado de estudos secundários são assim concebidos : têm lugar nas escolas públicas secundárias

do primeiro ciclo; os professores são inves­tidos de u m a missão de duração limitada; os cursos são reunidos e m número de quatro, constituindo u m módulo; o número dos par­ticipantes e m cada curso não deve ultrapas­sar 25; os cursos processam-se durante u m ano lectivo, o número de horas de aulas é de pelo menos 350, c o m u m máximo de 450 (o primeiro ciclo do secundário dura três anos).

Limitar-nos-emos —para não ultrapassar o âmbito deste artigo — a relatar o primeiro ano, fornecendo algumas indicações sobre os anos seguintes. O s 931 cursos organizados e m 1973/1974 foram frequentados por 18 500 trabalhadores. D o ponto de vista geográfico, 680 cursos (73 por cento) tiveram lugar no norte da Itália; 135, ou seja, 14 por cento no centro e 116 (12,5 por cento) no sul.

N o que diz respeito ao perfil dos partici­pantes, havia, no primeiro ano, trabalhadores a quem tinha sido concedido o direito ao estudo nos contratos profissionais, trabalhado­res de outras categorias que não tinham obtido este direito ou ainda desempregados e donas de casa. D e acordo c o m u m estudo de Censis efectuado e m 8082 participantes, estes repar-tem-se do seguinte m o d o : operários agrícolas (0,3 por cento); trabalhadores manuais, apren­dizes, operários não qualificados (28,6 por cento); contínuos, moços de recados, escri­turários (2,1 por cento); operários qualifi­cados, operários especializados (60,9 por cento); artífices (2 por cento); comerciantes (0,6 por cento); proprietários exploradores (0,2 por cento); empregados (1,8 por cento); enfermeiras (1,3 por cento); donas de casa (1 por cento); diversos (1,2 por cento). Entre os 8082 participantes, contavam-se 6848 homens (84,7 por cento) e 1234 mulheres (15,3 por cento).

O m e s m o inquérito forneceu outros ele­mentos úteis para traçar o perfil do partici­pante. O s homens têm, na sua maioria, mais de 25 anos, são casados e trabalham geral­mente (77,7 por cento) e m empresas metalúr­gicas de pequena e média dimensão. A s mulheres (15,3 por cento) são mais novas do que os homens, são solteiras e ocupam lugares

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subalternos. Cerca de 70 por cento dos par­ticipantes provêm de familias operárias ou camponesas cujo nível de instrução raramente ultrapassa o do certificado de estudos primá­rios. Quanto à escolarização obrigatória, 73 por cento das pessoas interrogadas deixa­ram a escola antes dos 14 anos. Por outro lado, 1,8 por cento não possui o certificado de estudos primários, 59,7 por cento, pos-suem-no, 21,4 por cento frequentaram esta­belecimentos secundários do primeiro ciclo, 16,9 por cento foram ainda mais além, 0,2 por cento não responderam.

O perfil do participante revela-se através das suas motivações e expectativas. O «desejo de transformação», ditado também por u m a vontade de desenvolvimento pessoal, é mais frequentemente invocado do que a «mobili­dade profissional», a «obtenção de u m di­ploma» ou a «procura de u m emprego». Foi assim que 54,8 por cento das pessoas interrogadas responderam afirmativamente à pergunta: «Considera que u m nível mais ele­vado de instrução o ajudaria a compreender melhor o que realiza no seu trabalho?» Para 53,5 por cento das pessoas «frequentar as aulas é u m b o m meio de encontrar pessoas c o m problemas semelhantes aos meus e de discutir c o m elas». À s perguntas relativas à mobilidade profissional, 23 por cento respon­deram: «Espero obter u m diploma que m e proporcione u m a qualificação superior na minha empresa», 12,9 por cento responde­ram: «Pretendo mudar de emprego e o cer­tificado de estudos secundários ajudar-me-á seguramente a encontrar outro emprego»; apenas 11,3 por cento responderam: «Pre­tendo obter u m diploma para poder pros­seguir estudos superiores». Foram muito raras as respostas afirmativas às perguntas respeitantes à procura de u m emprego; ape­nas 1 por cento das pessoas interrogadas res­pondeu: «Estou desempregado e, sem diploma, é muito difícil, ou até impossível, encontrar trabalho».

O s professores são e m número de 575 e 53,9 por cento têm entre 26 e 30 anos; 32,3 por cento têm menos de 25 anos, 10,4 por cento têm entre 31 e 35 anos. A s mulheres represen­

tam 63 por cento do efectivo total. N o con­junto, o corpo docente é jovem, recentemente licenciado e predominam as mulheres. Quanto ao extracto social, a maior parte (mais de 56 por cento) dos professores provém da pequena e média burguesia (artífices, comer­ciantes, proprietários exploradores, emprega­dos, técnicos, oficiais subalternos). Os filhos de operários agrícolas, de trabalhadores m a ­nuais, de operários não qualificados, repre­sentam 7,5 por cento dos efectivos, os filhos de operários qualificados especializados 8,9 por cento. O s outros (15,8 por cento) são filhos de quadros superiores, de directores de e m ­presas, de membros de profissões liberais, de oficiais superiores, de professores de univer­sidade. O s professores são animados essen­cialmente pelas seguintes motivações : desejam, na sua maior parte, «fazer u m a experiência pessoal e m matéria de formação» (67,5 por cento das respostas). O s outros pretendem «fornecer aos operários instrumentos para compreenderem melhor a realidade» (66,8 por cento), «estabelecer u m contacto humano c o m os operários» (44,3 por cento) e «elevar o nível cultural desta categoria particular de alunos» (36,3 por cento).

O s temas tratados nas aulas apresentam-se pela ordem seguinte : condições e ambiente de trabalho (64,8 por cento); meio social (51,8 por cento); conteúdo cultural das diversas uni­dades interdisciplinares (40,5 por cento); muito depois v ê m os temas relativos à situa­ção sindical (12,4 por cento); à situação polí­tica (10,2 por cento), aos problemas familia­res (4,2 por cento).

D e u m m o d o geral, aplicaram-se métodos de trabalho que se inspiram na gestão colec­tiva dos cursos e na interdisciplinaridade, colocando-se na óptica seguinte: valorizar a experiência pessoal dos participantes, dis­tinguir na discussão colectiva os limites subjectivos das interpretações que cada u m faz da sua experiência pessoal e procurar as componentes objectivas dos fenómenos; ela­borar u m estudo correcto de investigação circunscrevendo b e m o problema, formulando hipóteses, recolhendo dados, examinando as primeiras conclusões; desenvolver a aptidão

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U m a conquista dos trabalhadores italianos: as «150 horas»

para a síntese, a classificação, a dedução e o cálculo; colocar a investigação n u m a pers­pectiva histórica, a fim de descobrir as cau­sas que determinaram ou modificaram o fenó­meno a que se referem. C o m o observa Dore, a experiência baseia-se e m métodos muito diferentes dos da escola tradicional: « O pro­fessor não transmite, ponto por ponto, o seu saber aos alunos, aos trabalhadores; pelo con­trário, escolhe c o m eles u m tema de estudo, estabelece u m a discussão colectiva sobre o problema partindo dos conhecimentos do outro, e elabora, c o m toda a autonomia, u m verdadeiro sistema de investigação». N a ver­dade, não se trata unicamente de aprender a servir-se de certos instrumentos culturais, mas de compreender por que é que tantos trabalhadores deles foram privados e m idade escolar.

Sobressai do inquérito de Censis que as «discussões» foram «muito frequentes» (76,3 por cento), e as «explicações» também foram «muito frequentes» (51,5 por cento). O tra­balho de grupo foi «muito frequente» (49,7 por cento), as «assembleias» foram «muito fre­quentes» (8 por cento) e «ocasionais» (55,8 por cento). Se adicionarmos as utilizações «muito frequentes» e «ocasionais», obtemos os se­guintes resultados: «discussões», 91,3 por cento; «trabalho de grupo», 80,8 por cento; «assembleias», 63,8 por cento. Por outro lado, as «interrogações» são praticamente inexis­tentes («muito frequentes», 3 por cento, «ocasionais», 6,6 por cento, «muito raras», 12,2 por cento, «nulas», 50,6 por cento, «não mencionadas», 27,6 por cento). N o que diz respeito ao material de ensino, os manuais escolares são muito pouco utilizados (cerca de 60 por cento de respostas negativas por parte dos professores). Utilizam-se sobretudo livros não escolares (são apontados e m pri­meiro lugar por 27,7 por cento dos profes­sores e e m segundo lugar por 25,6 por cento); os jornais e revistas v ê m e m primeira posição para 4 por cento dos professores, e m segunda posição para 25,9 por cento e e m terceira posição para 25,4 por cento. O material pre­parado no interior do estabelecimento é muito apreciado (cursos policopiados, questionários,

bibliografias, documentos fotocopiados, etc.): 51,5 por cento dos professores colocam-nos e m primeiro plano, 13 por cento e m segundo, 8,5 por cento e m terceiro. O s meios audio­visuais são muito pouco utilizados: 92,2 por cento dos professores não os mencionam entre o material utilizado.

Durante o ano escolar de 1974/1975, houve 2206 cursos, dos quais 1409 (63 por cento) no norte do país, 369 (17 por cento) no centro, 429 (20 por cento) no sul, c o m u m aumento e m percentagem dos cursos na parte meridio­nal. M a s , do total (2206), é necessário dedu­zir os que foram financiados por contribui­ções das regiões e das comunas; os cursos financiados pelo Estado e instituídos para o ano de 1974/1975, n u m total de 2028, foram frequentados por cerca de 38 000 trabalha­dores.

Algumas conclusões

sobre a experiência

A s conclusões inspiradas pelos dados, suma­riamente apresentadas, referem-se ao inte­resse geral da experiência, aos problemas pre­cisos que o seu processamento suscita, ao alargamento desta iniciativa e às suas pers­pectivas.

Considerando a experiência do ponto de vista sindical e político, ou sob o aspecto da educação dos adultos, ela apresenta-se-nos, no conjunto, profundamente inovadora. D o interior do movimento operário, surge-nos «como u m a grande conquista, sem prece­dente no m u n d o capitalista», como afirmou G . Napolitano ao apresentar os trabalhos do comité central do Partido Comunista Italiano sobre o tema «Luta de ideias e renovação cultural», que tiveram lugar de 13 a 15 de Janeiro de 1975. N ã o é considerada u m a aqui­sição cultural, mas a via para u m «progresso intelectual das massas», que faz parte inte­grante das lutas operárias, u m aspecto impor­tante da «proposta geral de u m novo modelo social» (G. Trentin).

D o ponto de vista da educação dos adul-

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Filippo M . de Sanctis

tos, para quem conhece a história deste pro­blema e m Itália (desde as primeiras socie­dades de auxílio mútuo até hoje), a conquista das 150 horas marcou u m a rotura, u m salto qualitativo. É evidente que, tendo e m vista os últimos trinta anos, foi demorado o esta­belecimento consciente de u m a ligação entre movimento operário e educação dos adultos; mas é necessário dizer que este atraso foi totalmente preenchido pelas 150 horas. Estas parecem ter aberto a possibilidade de u m a mutação — no sentido biológico do termo — da teoria e da prática da educação dos adul­tos. Este ponto deveria ser mais profunda­mente abordado do que neste artigo. Afirma­m o s apenas que as 150 horas abrem a via a u m sistema de educação dos adultos e m que a aquisição de conhecimentos não é neutra (isto é, essencialmente ligada à conservação do statu quó) mas e m íntima relação com o controle social dos processos criadores do trabalho, da informação, dos tempos livres, da vida quotidiana.

N ã o é u m a tarefa fácil. Os problemas pre­cisos suscitados pelos cursos nascem justa­mente da resistência à inovação. Encontra-ram-se dificuldades a diversos níveis e e m diferentes momentos. Convém ter e m conta, para evitar mal-entendidos, que os próprios trabalhadores continuam agarrados aos velhos métodos tradicionais de estudo, na medida e m que alguns deles reclamavam u m a «escola» — c o m tudo o que ela tem de pior — seme­lhante à que tinham sido obrigados a aban­

donar prematuramente. M a s , outros proble­mas surgiram por parte dos professores que vieram desempenhar tarefas para as quais não estavam preparados; esta falta de preparação, tanto nos comportamentos como nos métodos, encerrou os tradicionalistas n u m a atitude de recusa e impeliu-os para interpretações res­tritivas, enquanto os inovadores se deixavam arrastar por abstracções e improvisações. N o entanto, foi o choque entre o m u n d o do trabalho e o m u n d o da escola que provocou as dificuldades mais graves: o facto dos esta­belecimentos escolares, que julgam gozar de autonomia total, não estarem habituados a sofrer intervenções nos seus assuntos, pro­vocou traumatismos e confrontos, tanto ao nível das relações entre o Ministério da Educação Pública e os sindicatos, como no interior das próprias escolas entre os direc­tores e os trabalhadores. Para além das posi­ções dos ministérios, dos inspectores, dos directores, é necessário ver nestes traumatis­m o s e confrontos a manifestação salutar de u m fosso entre a escola e a sociedade, u m fosso histórico que não pode ser preenchido c o m ambiguidades. Queremos dizer que seria u m erro procurar atenuá-los ou encobri-los; é necessário que todas as contradições sur­jam à luz do dia. E m nossa opinião, só u m confronto, claro e explícito de ideias (de ordem institucional e ideológica, administrativa e metodológica) permitirá compreender u m a das principais motivações das «150 horas»: a reforma da escola italiana.

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Jonathan Gunter e James Theroux

Desenvolver auditorios de massa para a rádio educativa: duas abordagens1

D e acordo com a U N E S C O , estão e m ser­viço no Terceiro M u n d o u m mínimo de 75 milhões de receptores de radiodifusão. A maioria dos habitantes dos países da A m é ­rica Latina e importantes minorias de Afri­canos e Asiáticos pode actualmente ouvir emissões radiofónicas. Estes auditórios, essen­cialmente extra-escolares, e e m grande parte compostos por adultos, têm imensas neces­sidades e m matéria de educação permanente de base. Para muitos deles, só a rádio per­mite entrar e m qualquer momento e m con­tacto c o m o m u n d o exterior à aldeia ou à vizinhança. N o entanto, menos de 5 por cento do número total de horas de emissões radiofónicas do Terceiro M u n d o foram clas­sificadas como educativas pela U N E S C O .

C o m o é evidente, os educadores não conse­guiram conquistar o meio de comunicação de massa mais espalhado no mundo . N ã o desconheciam o poder da rádio, mas , atraídos por ela devido ao seu reduzido custo e à possibilidade de abranger u m vasto público, escolheram, e m nossa opinião, modos de utilização que, e m geral, a impedem de atin­gir, por u m preço realmente reduzido, ver­dadeiros auditórios de massa.

Jonathan Gunter (Estados Unidos da América). Director de Clearinghouse on Development Communication Academy for Educational Development (Washington).

James Theroux (Estados Unidos da América). Director de Radio Software Research Projet University of Massachusetts (Amherst).

Depois de ter explicado este paradoxo, descreveremos duas estratégias utilizadas no Equador para atingir e instruir as massas. A primeira salienta a comunicação dirigida por profissionais «de cima para baixo», a segunda a comunicação dirigida «de baixo para cima» c o m a participação dos seus des­tinatários. A primeira adaptou os métodos da publicidade comercial americana, a segunda ampliou os métodos de desenvolvimento comunitário dos padres das paróquias rurais da América Latina. A s duas experiências são diferentes na sua escala, princípios, objec­tivos e resultados, mas ambas as mensagens educativas transmitidas atingiram massas de auditores adultos 3.

1. A s opiniões expressas neste artigo são as dos autores e não correspondem necessariamente às dos seus superiores.

2. Estes números, extraídos do Annuaire statistique de V Unesco para 1974, baseiam-se e m relatórios fornecidos por 85 países. A categoria das emis­sões educativas englobava a educação extra-escolar para as crianças, os adolescentes e os adultos, assim c o m o o ensino de tipo clássico. A s outras categorias incluíam as emissões de informação (actualidade e assuntos públicos), culturais, cien­tíficas, recreativas, especializadas, publicitárias, etc. Estas utilizações da rádio para fins não educativos e, na maior parte dos casos, estranhas ao desen­volvimento, representavam mais de 95 por cento do conjunto das emissões.

3. A revista trimestral americana Development com­munication report (Washington, D . C . ) examina frequentemente outros tipos de programas radio­fónicos. (Disponível gratuitamente no Organismo Clearinghouse on Development Communication,

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Jonathan Gunter e James Theroux

O paradoxo d o s educadores q u e utilizam a rádio

Os meios de grande informação estão, e m gera], entregues a pessoas capazes de atrair a audiência das massas. Para conquistar e reter estes auditórios, convém que nos coloquemos no seu próprio terreno. Muitas vezes, os edu­cadores de adultos não t o m a m consciência das incidências destes factos essenciais. A o contrário do que sucede c o m os alunos na aula, c o m os participantes das tribunas rurais ou das escolas radiofónicas, os auditórios de massa não são auditórios «cativos».

N ã o basta prometer a u m auditório de massa recompensas sedutoras n u m futuro mais ou menos próximo (conhecimentos, habilidade profissional) e empreender a sua instrução através da rádio segundo os m é ­todos tradicionais. Para ser bem sucedido c o m u m auditório deste tipo, é necessário mais do que sensibilizar as pessoas suficien­temente motivadas para se tornarem e con­servarem membros de u m a tribuna rural ou de u m a escola radiofónica. É necessário con­siderar que, apesar do seu desejo de instrução e de educação pessoal, o auditor de massa, está privado do estímulo mútuo da escuta colectiva e que é susceptível de reacções afec­tivas. Podendo escolher, no seu receptor, outras estações que lhe oferecem música, folhetins e variedades, basta voltar o botão para ouvir outro programa desde que u m a emissão o aborreça, o fatigue ou se torne demasiado difícil de seguir.

Os auditórios de massa diferem, pois, pelo seu desejo de recreação e de evasão, dos gru­pos de auditores organizados. O meio mais seguro de perder u m auditório de massa é pretender pregar ou dirigir. O meio mais seguro para o atrair e conservar é oferecer--lhe u m a satisfação emocional imediata e contínua — instruindo-o.

Os produtores de emissões comerciais e recreativas sabem como dirigir-se ao público dentro desta óptica, tendo e m conta o estado de espírito do público, mas , infelizmente, carecem de u m a visão mais ampla no domínio da educação ou do desenvolvimento. Os exa­

geros insípidos e a procura do sensacional de que são culpados os responsáveis por emis­sões que procuram unicamente aumentar o número dos seus auditores são demasiado conhecidos para que os recordemos aqui. N o entanto, estes excessos não devem dissi­mular o facto dos educadores poderem tirar lições úteis das técnicas de emissões de carác­ter comercial e recreativo.

Muitos educadores que operam na rádio estão menos atentos às necessidades dos audi­tores do que à maneira de atingir objectivos educativos ou de desenvolvimento a longo prazo. Afastando-se das práticas tradicionais do ensino escolar e da educação dos adultos, empenham-se geralmente e m ligar a mensagem radiodifundida a actividades de aprendizagem e m grupo no contexto de programas diversifi­cados a longo termo. N a verdade, muitas autoridades internacionais da educação são da opinião de que, para que a rádio produza efeitos profundos e perduráveis sobre as populações a educar, é essencial completar estas emissões c o m o texto impresso e u m ensino magistral.

B e m executadas, as estratégias de aprendi­zagem e m grupo asseguram provavelmente u m a educação mais profunda do que as emissões abertas destinadas ao grande público. Estas estratégias atingiram, de resto, auditó­rios numericamente importantes e m alguns países do Terceiro M u n d o . Contudo, nós defendemos que a maior parte dos países não está à altura de conseguir constituir verda­deiros auditórios de massa para a aprendiza­gem e m grupo. A preparação de grupos de aprendizagem, a produção de textos impres­sos, os problemas de coordenação, diminuem os recursos a conceder ao elemento sobre o qual u m projecto de educação pela rádio pode exercer mais influência : a qualidade da mensa­gem radiodifundida.

Defendemos também que, e m muitas cir­cunstâncias, os recursos são melhor empre­gues quando são aplicados a estratégias que fornecem menos educação a mais auditores.

1414 22nd Street, N . W . ( Washington D . C . 20037, Estados Unidos da América).

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Desenvolver auditórios de massa para a rádio educativa: duas abordagens

É lamentável que o lugar dominante ocupado pelas estratégias de aprendizagem e m grupo nas publicações especializadas tenha impe­dido de apreciar correctamente a solução das emissões abertas destinadas a auditores de massa.

Recentemente, entre 65 projectos radiofó­nicos baseados no desenvolvimento, apenas 5 diziam respeito a emissões abertas destinadas a u m auditório de massa não organizado, não cativo1. Todas as outras incluíam emissões directamente ligadas à participação e m u m programa a longo termo de discussão, de estudo ou de acção e m grupo.

Os 20 projectos que forneceram indicações sobre a sua escuta destinavam-se todos a auditórios organizados, constituídos e m grupo. Apenas três destes projectos atingiram, na opinião dos responsáveis, aquilo que pode­remos chamar auditórios de massa. Trata-se do Movimento Brasileiro de Educação de Base ( M E B ) , nos primeiros anos sessenta (com 111006 participantes), das Escolas Radiofónicas Sutatenza da A C P O , na Colôm­bia (167 451 alunos e m 1968) e da Campanha a favor da saúde, na República Unida da Tan­zânia, e m 1973 (2 milhões de participantes). Nos três casos, estes elevados números podem explicar-se por circunstâncias excepcional­mente favoráveis.

E m primeiro lugar, convém observar que a República Unida da Tanzânia é o único dos três países e m questão onde o auditório excedeu 1 por cento do conjunto da popu­lação. A estatura do presidente Nyerere como h o m e m de Estado, a posição que tomou a favor do desenvolvimento rural, e a criação de organizações rurais no seio do partido e dos ministérios explicam provavelmente o notá­vel sucesso deste projecto de aprendizagem e m grupo.

N o Brasil, nos primeiros anos sessenta, o governo empenhou-se na mobilização das massas populares para realizar u m a trans­formação social rápida. Depois da mudança de regime, e m 1964, o número de auditores do M E B declinou brutalmente.

N a Colômbia, a larga audiência da A C P O é o resultado de vinte e cinco anos de dedi­

cação e de duro labor consentidos por u m a organização privada dinâmica e b e m finan­ciada.

Estamos, portanto, e m condições de per­guntar se as estratégias de aprendizagem e m grupo são capazes de atrair auditórios de massa na maior parte dos países e m desen­volvimento, onde as condições são diferentes daquelas e m que foram executados os três projectos exemplares. D e resto, os restantes dezassete projectos sobre os quais possuímos dados numéricos de escuta, apresentam m e ­nos de 15 000 auditores. Examinaremos e m seguida dois métodos susceptíveis de ajudar projectos deste tipo a atrair u m maior número de auditores e de assegurar u m a utilização mais rentável do meio de comunicação de que ocupa o primeiro lugar no m u n d o .

Técnicas publicitárias

Servindo-se de u m a sociedade de publicidade de Nova Iorque de renome, para facilitar a realização do seu programa de educação, o Instituto Nacional do Equador para a nutri­ção pôde elaborar u m projecto de carácter inovador. A s técnicas da publicidade radio­difundida não tinham ainda sido sistematica­mente aplicadas às necessidades e m matéria de educação n u m país e m desenvolvimento.

A maneira de ver dos educadores tradicio­nais é fundamentalmente diferente da dos organizadores de publicidade comercial. E m geral, os educadores esforçam-se por provocar grandes transformações (alfabetização, apren­dizagem da aritmética, formação profissional) e m pequenos grupos de pessoas. O s publici­tários, pelo contrário, cultivam u m auditório de massa e procuram provocar transformações mais modestas de comportamento (abandonar a marca X pela marca Y de u m produto de consumo existente).

Embora os educadores reconheçam as dife-

1. Emile M C A N A N Y , Radio's role in development; five strategies of use, documento disponível gra­tuitamente e m Clearinghouse on Development Communication.

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renças individuais e consagrem muito tempo aos seus auditórios relativamente «cativos», as relações dos publicitários e dos seus audi­tórios são completamente diferentes. Os publi­citários t o m a m como base as necessidades das massas e as estereotipias culturais.

O s publicitários empregam o método de «alcance e frequência» que consiste e m intro­duzir repetidamente a m e s m a mensagem curta nos intervalos dos programas recreativos muito populares junto do auditório que pre­tendem atingir. N o Equador, repetiram-se spots sobre a nutrição dez a quinze vezes por dia durante mais de u m ano e m duas esta­ções populares de radiodifusão de duas pro­víncias.

Cada u m destes spots, c o m a duração de u m minuto, referia-se a u m problema parti­cular de nutrição, para o qual propunha u m a solução realista e económica. Concebida sob a forma de diálogo, cada mensagem pretendia atingir objectivos muito específicos:

Mensagem sobre a malnutrição por falta de proteínas e calorias. Para provocar o maior consumo de leguminosas e outros alimentos que constituem u m a fonte económica de proteínas; para que o papel das proteínas no corpo humano se torne mais conhecido.

Mensagem sobre o abandono prematuro do aleitamento materno. Para favorecer o alei­tamento materno e m relação ao aleitamento artificial entre a população de fracos recursos; para que se reconheça a superioridade inegá­vel do leite materno sobre os outros leites; para que as mães saibam como preparar outras espécies de leite.

Mensagem sobre a água insalubre. Para inculcar o hábito de ferver a água destinada ao consumo familiar; para que as pessoas compreendam que beber água não fervida expõe à contracção de doenças; para que mais famílias tomem consciência de que a água para beber está contaminada ou impura; para aumentar o número de famílias que tapam o recipiente que contém água para beber.

Mensagem sobre os parasitas, as diarreias e outras perturbações intestinais. Para que os adultos e as crianças lavem mais vezes as

mãos depois de ir à casa de banho, antes de comer ou antes de preparar os alimentos; para desenvolver a utilização de sabão na lavagem das mãos; para aumentar o número de pessoas que compreendem que lavar as mãos pode matar os parasitas e contribuir para que se evitem doenças.

Mensagem sobre o sal iodado. Para que se compre mais sal iodado; para aumentar o número de pessoas que compreendem a causa do bócio; para aumentar o número de pes­soas que sabem que o sal iodado se vende e m pacotes que permitem distingui-lo do outro sal; para aumentar o número de pessoas que compreendem que o bócio é u m a doença grave.

Cada objectivo e a mensagem correspon­dente constituíam o resultado de u m processo minuciosamente elaborado. Peritos e m maté­ria de higiene e de nutrição foram consultados sobre os problemas a que se devia conceder prioridade. Seleccionaram-se as soluções reco­mendadas para obter a certeza de que basta­ria difundir mensagens de informação e de motivação para que pudessem ser adoptadas pelos auditórios desejados. C o m efeito, n u m dos países, os peritos, utilizando esta técnica, tinham recomendado que as populações con­sumissem mais fígado. N o entanto, verificou--se que esta carne era excessivamente cara e difícil de encontrar. A solução foi, então, considerada inaceitável para ser objecto de publicidade.

U m a vez escolhido u m pequeno número de temas apropriados, as mensagens foram redigidas, repartidas entre os peritos para serem comentadas e, e m seguida, produzidas sob forma provisória. Foram, então, subme­tidas a ensaios preliminares, ouvidas por 100 ou 200 famílias que faziam parte dos grupos apontados, examinando-se a sua eficácia através da credibilidade e atracção do audi­tório.

Depois de modificadas, atendendo às indi­cações fornecidas pelos ensaios preliminares, as mensagens foram gravadas, divulgadas atra­vés de discos e distribuídas pelas estações radiofónicas participantes. Elaborou-se u m horário de emissões correspondendo aos hábi­tos de escuta do auditório e m causa. D e

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acordo com os elaboradores do projecto, era extremamente importante contactar regular­mente com a estação para assegurar u m a fre­quência adequada. Depois do pessoal da esta­ção ter ouvido os spots várias centenas de vezes, consideravam que tinham produzido efeito sobre os auditores e cessavam de os difundir. N o entanto, de acordo com a expe­riência de empresários americanos de publi­cidade comercial, era nesse momento que os spots tinham mais impacto, donde a neces­sidade de continuar a difundi-los.

OS RESULTADOS

Durante as entrevistas de fim de campanha, a maior parte das pessoas que constituíam os grupos visados declararam ter possibili­dade de ouvir rádio. A s proporções eram de 83 por cento dos mestiços da planície cos­teira, 85 por cento dos mestiços e 64 por cento dos índios, mais pobres, das regiões monta­nhosas.

N a maioria das famílias que compunham a amostra, as pessoas interrogadas mostra­ram que estavam ao corrente dos spots recor­dando, sem auxílio, informações específicas contidas e m cada mensagem. As atitudes e m relação ao aleitamento materno melhoraram apesar da concorrência da publicidade a favor de fórmulas de biberão e de leite e m pó. A s mensagens respeitantes à importância do consumo de proteínas, à necessidade de ferver a água para beber e de lavar as mãos antes de comer também tinham obtido sucesso no plano da tomada de consciência, do conhe­cimento dos factos, e da atitude.

A extensão massiva desta aquisição de conhecimentos surpreende muito os educa­dores. Apesar de se tratar de amostras das regiões rurais e das populações de recursos reduzidos, a projecção dos resultados à escala das duas províncias abrangidas pelas emis­sões permite fazer u m a ideia aproximada do impacto das mensagens. D e acordo com esta projecção, as mensagens sobre as proteínas, sobre a necessidade de ferver a água, sobre a de lavar as mãos, e sobre o aleitamento atin­giram mais de 100 000 famílias. M e s m o que

reduzíssemos este número de 50 por cento, cerca de 50 000 famílias —provavelmente 250 000 pessoas — teriam aprendido os prin­cípios nutritivos fundamentais descritos nos spots. E a formação deste auditório deve-se a u m projecto que só foi aplicado e m duas das vinte e u m a províncias do Equador.

Quanto à modificação de comportamento, a mensagem sobre o sal iodado obteve u m enorme sucesso. Antes da campanha apenas 5 por cento dos mestiços das regiões monta­nhosas utilizavam sal iodado, mas a propor­ção daqueles que, interrogados no fim da campanha, declararam consumi-lo atingiu 98 por cento. Por outro lado, as outras m e n ­sagens — que obtiveram grande sucesso no plano da tomada de consciência e de reconhe­cimento dos factos — não conseguiram pro­vocar transformações significativas. C o m o explicar este acontecimento?

O sal iodado era u m produto que os gru­pos e m causa não tinham dificuldade e m obter, mas que não era reconhecido como superior do ponto de vista nutritivo. Além disso, o consumo de sal não iodado era u m hábito b e m arreigado. N ã o havia diferença de preço entre os dois tipos de sal. Assim, a situação era muito semelhante àquela e m que a publi­cidade comercial, apresentando a alternativa «marca X — marca Y » , se revelou tão eficaz.

A s outras mensagens implicavam modifica­ções de comportamento muito mais impor­tantes. Vários dos produtos alimentares reco­mendados pela sua riqueza e m proteínas eram muito caros. Podia ser impossível adquirir legumes. A s pessoas podiam não estar habi­tuadas a comer legumes às refeições. Por outro lado, ferver a água é fastidioso e o com­bustível necessário para esta operação é caro.

A impossibilidade de quantificar as modi­ficações de comportamento devia-se, e m parte, à metodologia. A s pessoas conscientes do interesse que existe e m ferver a água ou e m lavar as mãos antes de comer tinham ten­dência para responder aos inquiridores que era o que elas faziam quer fosse ou não ver­dade. Estas afirmações são muito difíceis de comprovar sem observação directa dos parti­cipantes. Por outro lado, é possível verificar

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o consumo de sal iodado por meio dos n ú m e ­ros de venda e procurando ver quai dos dois produtos é utilizado e m casa das familias interrogadas.

Foi recomendada outra técnica de verifica­ção, mas não pôde ser aplicada. A s investi­gações e m matéria da publicidade comercial mostraram que as pessoas que hesitam e m falar francamente do seu próprio comporta­mento são facilmente tentadas a falar do dos vizinhos. E , ao responderem «de ricochete», descrevem muitas vezes, afinal o seu compor­tamento. A s autoridades do Equador esti­m a r a m que este método não era compatível c o m a cultura do seu país e não autorizou o seu emprego.

Outro factor que limita a modificação do comportamento pode ser considerado ligado a questões de princípio. Quando u m a mensa­gem é patrocinada por u m a instituição nacio­nal e difundida e m duas províncias, deve estar e m perfeita conformidade c o m a polí­tica nacional. Para ter u m impacto profundo, as mensagens devem ser claras, simples e directas, o que supõe a existência de u m consenso sobre questões de princípio com­plexas, o que n e m sempre acontece.

Assim, a mensagem mais eficaz respeitante ao aleitamento materno deveria afirmar que o leite da m ã e constitui, só por si, a alimen­tação ideal do lactente. Alguns peritos tinham esta opinião; outros, e m especial os do Insti­tuto Nacional de Nutrição do Equador, con­sideravam que o aleitamento materno deve­ria ser obrigatoriamente associado a u m a alimentação sólida. A mensagem difundida foi u m compromisso entre estas duas opiniões divergentes.

A mensagem mais eficaz quanto à necessi­dade de ferver a água para beber deveria afir­mar que toda a água para beber teria de ser fervida. É essa, de facto, a opinião de certos peritos. N o entanto, outros peritos consideram que, e m vastas regiões do país, não existe nenhum risco e m beber água não previamente fervida. Assim, mais u m a vez, o impacto da mensagem difundida foi reduzido devido a u m a questão de princípio marcada por u m a

indeterminação que encontramos e m todos os governos.

INCIDÊNCIAS

N ã o obstante estas dificuldades, não gostaría­m o s de deixar o leitor c o m a impressão de que a publicidade só é eficaz nas situações e m que se apresenta a alternativa «marca X -- marca Y » . Muitas foram as lições tiradas da experiência equatoriana inicial que permiti­ram melhorar os métodos e os resultados, agora comunicados, relativos a outros pro­jectos. E m dois países, por exemplo, decidiu-se que, nos domínios e m que as questões de prin­cípio apresentem ambiguidades, se renunciará às mensagens estabelecidas se não se obtiver u m consenso sobre estas questões. Prevêem-se para projectos ulteriores u m a formação mais desenvolvida dos inquiridores e o melhora­mento dos métodos de avaliação dos resul­tados.

Além disso, os primeiros resultados rela­tivos a outros países mostraram já o sucesso obtido e m tentativas mais ambiciosas efec­tuadas para provocar modificações de com­portamento. N a Nicarágua, anúncios difun­didos e m todo o país levaram as mães de lactentes sofrendo de diarreia a preparar e administrar, e m casa, grandes quantidades de líquidos, ideia que não lhes tinha surgido. Aprenderam através da rádio a confeccionar a bebida receitada e retiveram a receita. Neste caso, os especialistas da nutrição da Nicará­gua tinham concordado e m reconhecer que era este o remédio apropriado contra a desidratação. Além disso, tinham sido reco­lhidas informações quanto ao preço dos ingredientes necessários à sua preparação e quanto à possibilidade de os obter. Estas mensagens deveriam ter por efeito u m a dimi­nuição da taxa de mortalidade infantil. Atendendo a que, na Nicarágua, u m óbito e m cinco se deve à diarreia infantil, esta curta mensagem deveria contribuir poderosamente para melhorar a situação sanitária deste país.

Parecia possível, então, atingir, através da publicidade, objectivos mais ambiciosos do que a adopção generalizada do sal iodado

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e m substituição do sal c o m u m . Apesar dos objectivos que este esforço publicitário poderá atingir continuarem indeterminados, é pos­sível mencionar algumas limitações do m é ­todo. Pretendendo abranger auditórios de massa, a publicidade trata dos problemas que dizem respeito ao conjunto dos indivíduos e para os quais ninguém pode contribuir c o m a sua solução pessoal. Até agora, o método foi aplicado para provocar ligeiras modifica­ções de comportamento com u m efeito con­jugado poderoso e para as quais não são neces­sários novos bens ou serviços. Embora possa ser empregue e m programas contendo u m a contribuição e m bens e serviços (no domínio da higiene, da nutrição ou da agricultura), a publicidade não parece, no entanto, ser capaz de provocar profundas transformações psico­lógicas nos indivíduos ou nos grupos. A este género de objectivos adapta-se certamente m e ­lhor o tipo de comunicação radiodifundida que descreveremos e m seguida.

Tabacundo

U m programa que contrasta fortemente c o m os métodos muito especializados dos profis­sionais da publicidade é o que foi produzido por rurais e para rurais e m Tabacundo (Equa­dor). N a zona de escuta do emissor de Radio Mensaje encontra-se u m número de adultos analfabetos estimado e m 42 000, entre os quais menos de 3 por cento participam na escola radiofónica de Tabacundo1. Desde os últimos meses de 1972 que 40 centros da escola radiofónica trabalham com o padre Isaías Barriga na elaboração de programas que atinjam o mais amplo auditório de massa, sob a forma de emissões abertas. A b e m dizer, pensa-se que estas emissões atraem mais audi­tores do que qualquer outro programa recrea­tivo captado na região. Dir-me-ão que parece impossível? Vejamos o que se passa.

C o m u m donativo de 1500 dólares recebido do Projecto de Educação circum-escolar de Massachusetts para compra de equipamento, Radio Mensaje adquiriu 40 gravadores de cassettes de modelo simples e u m a grande

quantidade de bandas magnéticas. Este equi­pamento foi confiado aos auxiliares, grupo de não-profissionais voluntários das comunida­des vizinhas de Tabacundo empregados como assistentes pedagógicos nos centros da escola radiofónica. Todos os auxiliares se responsa­bilizam por u m gravador que utilizam para registar elementos de programa e m bandas magnéticas que, depois da montagem, são utilizadas por Radio Mansaje para difundir duas emissões semanais, cada u m a c o m meia hora.

Sob o título de Mensaje Campesino (A m e n ­sagem do camponês), estas emissões diferem das que são tradicionalmente difundidas pela rádio rural. E m vez de serem realizadas por profissionais da comunicação para atingir u m público rural, são emissões feitas por campo­neses para camponeses. N ã o se destinam aos grupos de auditores organizados da escola radiofónica, mas ao grande público das emis­sões abertas. O postulado pretendia que os camponeses teriam tanto interesse e m ouvir a sua própria rádio que Mensaje Campesino atrairia u m vasto auditório. Este cálculo reve-lou-se acertado.

O gravador de cassettes tornou-se o ins­trumento de trabalho dos auxiliares, que podem utilizá-lo durante as aulas da escola radiofónica ou e m outros locais. U m curto espaço de tempo (duas horas) bastou para ensinar aos interessados o funcionamento muito simples dos aparelhos. A curiosidade de saber que utilização decidiriam fazer os auxiliares dos seus gravadores era geral, e foi por isso que os responsáveis pelo projecto insistiram e m que os empregassem como enten­dessem.

O projecto foi aplicado para criar u m novo tipo de comunicação radiodifundida, diferente do estilo elaborado e artificial das emissões recreativas difundidas na capital. A hipótese

1. Para mais pormenores ver James H O X E N G , Alberto O C H O A , Valerie ICKIS, Tabacundo: batttery-powered dialogue, disponível e m espanhol e inglês no Center for International Education, University of Massachusetts Hills House South. Amherst, Mass.

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mais ansiada era de que a expressão popular poderia ajudar a definir os objectivos da comu­nicação e aprofundá-los. Assim, os conceitos tradicionais de «informador» e de «auditor» característicos dos mass media deveriam nor­malmente desaparecer. Os autores do projecto pensavam que programas que cedessem a pala­vra aos camponeses poderiam produzir neles u m duplo efeito: maior consciência do seu próprio valor; melhor conhecimento do desen­volvimento comunitário.

OS OBJECTIVOS

U m relatório anterior da Agency for Inter­national Development (AID) (Astle, 1969), descrevendo u m programa escolar radiofó­nico nas Honduras, atribuía u m a grande parte do seu sucesso ao sentimento expresso pelos participantes de «fazer parte de u m grupo despertando para u m a nova vida». Este «sen­tido do grupo» é tão importante como o sen­timento experimentado pelo indivíduo que acaba de ser bem sucedido n u m empreendi­mento e cujas aptidões inutilizadas são salien­tadas por ter aprendido a 1er. Observou-se o m e s m o fenómeno e m outras pessoas das Honduras, como foi transmitido pelos moni­tores e auxiliares reunidos e m sessões de for­mação e encontros mensais. O relatório ligava estreitamente estes factores ao desenvolvi­mento «da confiança, do interesse e da cons­ciência de grupo».

A equipa Universidade de Massachusetts--Tabacundo partiu do princípio de que u m «sentido do grupo» mais agudo aumenta no h o m e m a confiança e m si. Favorecendo o desenvolvimento combinado dos conhecimen­tos e o seu reforço através da comunicação entre aldeias, os responsáveis pelo projecto consideravam possível que se desenvolvesse a confiança e m si e u m sentimento de efi­cácia.

Podia prever-se sem grandes riscos de erro u m progresso dos conhecimentos relativos ao desenvolvimento das comunidades. Pare­cia provável que se Mensaje Campesino trans­mitisse u m projecto de desenvolvimento n u m a determinada comunidade, outras comuni­

dades o ouviriam — e talvez c o m mais inte­resse do que o até então testemunhado pelas emissões consagradas ao desenvolvimento comunitário.

U m estudo efectuado e m 1971 (Vega) para os serviços de Assistência Católica do Equa­dor, O X F A M e A I D tinha revelado que, apesar de toda a importância atribuída ao desenvolvimento comunitário pela estação de rádio, os programas tinham u m impacto sobre os auditores pouco significativo. Espe-rava-se que a utilização dos gravadores de cassettes aumentasse este impacto, reunindo a opinião das populações das numerosas pequenas comunidades abrangidas por Radio Mensaje.

PRODUÇÃO

Fornecem-se bandas magnéticas virgens aos auxiliares, que se encarregam de as enviar à estação de Tabacundo quando tiverem rea­lizado u m a gravação que desejam ver utilizada por Mensaje Campesino. Todas as bandas recebidas pela estação são escutadas pelo padre Barriga ou pelo seu assistente. Para montar e compor o programa semanal de meia hora utilizam-se dois gravadores de cassettes. A cassette e m que a emissão foi gravada é conservada e são enviadas novas cassettes para as comunidades.

O programa tem aumentado desde o iní­cio do projecto. Inicialmente, diñmdia-se a m e s m a emissão de meia hora aos Sábados e Domingos. A o fim de dois meses o padre Bar­riga decidiu produzir programas diferentes para os dois dias. Depois, após a reunião acima mencionada, dos auxiliares, a estação começou a radiodifundir a emissão do Domingo à Segunda Feira à tarde, precisa­mente antes do curso de primeiro ciclo da escola radiofónica.

Durante a sua formação, os auxiliares exa­minaram as diferentes maneiras de utilizar os gravadores. O pessoal do projecto não recomendou n e m impôs nenhuma utilização particular. Quanto ao padre Barriga, asse­gurou que a estação se interessaria por tudo o que se produzisse.

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Os resultados não foram imediatos, pois a recolha e a substituição das cassettes revela-ram-se u m pouco mais difíceis do que se tinha imaginado. O padre Barriga esperou pela pri­meira reunião dos auxiliares para recolher as primeiras gravações, e a primeira emissão foi difundida durante o fim de semana de 11 de Novembro de 1972. Durante u m a entrevista com o padre Barriga, os auxiliares conside­raram que emissões de meia hora difundidas ao Sábado às 17 horas e retomadas ao D o ­mingo à mesma hora seriam ouvidas pelo maior número possível de camponeses.

ANÁLISE DO CONTEÚDO DE ALGUNS PROGRAMAS

O primeiro programa era composto de comen­tários sobre as escolas radiofónicas, acompa­nhados de u m pouco de música tocada por u m a formação pertencente a u m a das comu­nidades. A s observações dos auditores pro­vieram de vários centros, assim como de u m grupo de 18 seminaristas trabalhando e m diversas comunidades que participavam na escola radiofónica. C o m o era de prever, o tom geral da emissão foi solene e de certo m o d o constrangido:

Um seminarista. «Desejo trabalhar c o m os camponeses tanto no plano cultural como religioso para os ajudar a progredir. Ten­ciono adquirir mais experiência a fim de m e tornar mais útil como pároco de aldeia quando regressar à minha província».

O auxiliar do centro de Chaveznamba. « N o início deste novo ano escolar, começamos por desejar as maiores felicidades ao padre Isaias Barriga, aos nossos queridos professores da escola radiofónica e aos nossos colegas da província de Pichincha. Todo a gente se interessa pelos gravadores, embora tenhamos u m certo medo de falar. M a s esperamos que, a pouco e pouco, nos habituaremos a esta nova ideia. D e momento, consideramo-la u m tanto estranha».

Todos os alunos interrogados se declara­ram muito felizes por estar na escola radio­fónica e convencidos de que seria certamente u m b o m ano.

25 de Novembro. A terceira sessão conce­dia mais importância ao desenvolvimento comunitário. A comunidade de Ucshaloma, construída no cimo da montanha que domina Tabacundo, realizou u m a reunião durante a qual se decidiu que toda a gente participaria, no Sábado seguinte, n u m a minga, ou projecto de trabalho comunitário. Os habitantes da comunidade estavam a tentar melhorar as suas condições de vida; tinham constituído u m a cooperativa e erigido, e m conjunto, u m a nova casa para cada u m dos seus m e m ­bros. Depois de ter gravado esta reunião, procederam à gravação sonora dos trabalhos durante a minga. Podia ouvir-se o barulho dos martelos para além das vozes dos traba­lhadores que discutiam os seus progressos e necessidades.

30 de Dezembro. Esta emissão foi inteira­mente consagrada à celebração do Natal e realizada pelo auxiliar e pelos alunos do cen­tro de Cananvalle. O auxiliar, u m cultivador, proferiu o sermão; os alunos leram o Evan­gelho e endereçaram votos aos colegas das outras escolas radiofónicas. Apesar do seu carácter especial, esta emissão teve u m largo auditório.

20 de Janeiro. O programa teve início com u m a gravação da assembleia dos auxiliares, realizada e m Janeiro. O problema dos grava­dores não tinha estado no cerne das discus­sões, mas tinha-se reclamado unanimemente mais tempo de difusão, se possível precisa­mente antes do início das aulas. Este pedido foi satisfeito e m Fevereiro, quando o pro­grama habitual de Domingo passou a ser repetido às Segundas Feiras e apresentado às 16 horas e 30, precisamente antes da aula das 17 horas.

O programa de 20 de Janeiro revelou u m outro aspecto da utilização dos gravadores. Grupos musicais, e m que participam mulheres, interpretaram cantos e m quichua; membros da escola Simon Bolivar leram poemas originais, e outra escola, a de Cochas, apresentou música especialmente composta para o Mensaje Cam­pesino.

24 de Fevereiro. O poder índio foi evocado no início da emissão, c o m a entrevista por

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u m auxiliar do presidente do Movimento Nacional Indígena, recentemente criado, José António Quinde. Este descreveu os objectivos da organização e os progressos até então rea­lizados e anunciou u m a série de reuniões convocadas para saber se o movimento era considerado útil pela população indígena. C o m o prelúdio de u m a inovação tocou-se música quichua: leitores principiantes leram e m voz alta páginas da publicação Cultivemos Hortalizas, contribuindo, assim, c o m u m ele­mento de comparação eventualmente recon­fortante para os alunos que ainda consideram a leitura e m voz alta como u m exercício difícil.

D e acordo c o m o conjunto das emissões até agora difundidas, pensamos que a música deve continuar a desempenhar u m papel impor­tante e que o desenvolvimento comunitário será largamente salientado. Os alunos pare­cem ter u m elevado sentido de participação e, depois da primeira emissão, já ninguém receava os gravadores. Algumas comunidades começaram a realizar e a gravar pequenas peças de teatro incluindo mensagens de carác­ter moral ou social. Interpretando diferentes papéis, os membros destas comunidades levam à cena problemas e os debates que se seguem são partilhados pela rádio c o m outras comu­nidades.

O s auxiliares deram provas de grandes capacidades de inovação na utilização dos gravadores. O padre Barriga conta que u m grupo conseguiu convencer u m engenheiro do Ministério dos Recursos Hidráulicos a deixar-se entrevistar para o programa do Mensaje Campesino. A s respostas deste enge­nheiro às perguntas que lhe foram feitas sobre a possibilidade e a dificuldade de obter água corrente forneceram preciosas indicações aos membros dos outros centros.

OS RESULTADOS

Quando u m dos autores deste artigo esteve e m Tabacundo, e m Janeiro de 1977, não encontrou campesinos passivos e intimidados. Antes de qualquer entrevista, os aldeões per-guntaram-lhe: «Donde vem? Por que veio?

Q u e m o mandou vir? Porque é que havemos de falar consigo?» Tendo recebido respostas satisfatórias a estas perguntas, demonstraram a maior cordialidade. M a s estes camponeses eram diferentes de outros que encontrámos no Equador. Possuíam u m sentimento de dignidade, de igualdade e de confiança e m si. Qual a razão? E m que medida este senti­mento poderia ser atribuído às emissões radio­difundidas? Ninguém saberia dizê-lo exac­tamente. E , com toda a franqueza, a distinção entre as causas e os efeitos complexos tal­vez seja impossível de fazer por meio dos métodos conhecidos de avaliação.

N o entanto, fizeram-se tentativas para medir objectivamente o impacto de Mensaje Campesino. Inquéritos muito breves revelam que os campesinos têm alguma coisa a dizer e estão mutuamente dispostos a ouvir-se. O inte­resse suscitado pela informação sobre o desenvolvimento comunitário aumentou entre 1972 e 1973. O questionário não revelou pro­gressão nos sentimentos de valor pessoal e de eficácia, mas , sob este aspecto, verifica-se u m a oposição evidente entre a experiência do autor e a anedota que se segue, característica como muitas outras.

Tendo-se oferecido para produzir u m a série de aulas radiodifundidas, u m agrónomo redi­giu os textos e leu-os ele próprio na rádio. M a s os auditores não tardaram e m reagir, declarando: «Estamos certos de que sabe do que está a falar, mas fá-lo de tal m o d o que não percebemos nada». Actualmente, e m Tabacundo, u m campesino revê o texto c o m o agrónomo até estar certo de o compreen­der bem, e só depois o lê ao microfone.

O padre Barriga apresenta duas razões para a eficácia do seu método. E m primeiro lugar, concede aos camponeses o «poder das palavras». Permite-lhes que comuniquem uns c o m os outros e também c o m ele, responsá­vel pela estação de rádio e pela escola radio­fónica. Antigamente, a única possibilidade que lhes era oferecida consistia e m escrever com dificuldade mensagens que, e m seguida, eram lidas ao microfone. Sentiam-se pouco à vontade e m frente de u m a folha de papel e não conseguiam exprimir tudo o que pensa-

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v a m ; aquilo que conseguiam dizer era-lhes retransmitido pela voz esclarecida do padre.

U m a modificação ainda mais importante citada pelo padre Barriga foi a transformação da rádio — esse meio de comunicação que só transmitia música citadina, vozes citadinas e valores citadinos — n u m órgão de informação rural difundindo aquilo a que ele chamou a «mística do campo». Ele vê neste novo tipo de comunicação radiodifundida u m meio de reforçar os objectivos e as satisfações da vida no campo.

Este último ponto talvez esclareça e m que é que o modelo de Tabacundo pode contribuir para fornecer algum ensino sobre o desenvol­vimento. O facto da rádio atingir as massas rurais do mundo inteiro não basta para a transformar n u m meio de comunicação rural capaz de criar u m a cultura rural e de con­tribuir para u m desenvolvimento de boa qua­lidade nos campos. Se a rádio urbana endere­çar mensagens urbanas aos camponeses, corre o risco de acelerar a migração para as cidades, e m vez de favorecer o desenvolvi­mento das regiões rurais. O modelo fornecido por Tabacundo oferece u m ponto de partida para transformar a rádio n u m verdadeiro meio de comunicação de massa ao serviço dos campos. Caracterizado pela participação, pode adaptar o estilo e o conteúdo da rádio rural às necessidades e aspirações dos audi­tores.

POSSIBILIDADES DE APLICAÇÃO EM OUTROS LOCAIS

Seria completamente impossível para a maio­ria dos alunos das escolas radiofónicas do Terceiro M u n d o comprar gravadores e cas­settes c o m o seu dinheiro. Pensamos que a escola radiofónica típica deveria estar à altura de se encarregar das despesas de manutenção e operação. Pela sua parte, o padre Barriga pagou todas estas despesas durante o ano, esperando, no entanto, que o projecto da Universidade de Massachusetts lhe reem­bolse pelo menos u m a parte.

Para qualquer organismo de financiamento, o preço dos gravadores e das bandas (1500 dó­lares) é ínfimo. A m ã o de obra é gratuita. Depende de vários factores que este projecto pareça justificar u m financiamento por fontes internacionais noutros locais. Os gravadores de cassettes, de baixo preço, que têm atrás de si quatro anos de b o m funcionamento nas regiões montanhosas do Equador, deverão dar provas e m outros climas. Será necessário que o interesse manifestado e m outros países pela rádio popular se revele tão grande como e m Tabacundo. E , finalmente, será necessário que os governos estejam dispostos a permitir que a rádio possa ajudar o público a exprimir--se livremente.

A realização de u m a réplica deste projecto e m outros contextos comporta ainda a dificul­dade de produzir u m programa semelhante exercendo a m e s m a força de atracção sobre u m auditório mais variado de u m país na sua totalidade. O emissor de Radio Mensaje tem u m alcance efectivo de trinta quilómetros. É lícito perguntar se o cunho pessoal que parece explicar a grande popularidade do programa na sua região poderia ser trans­posto à escala regional ou nacional. N a América Latina, onde os emissores locais são muito numerosos, é evidente que a questão pode ser considerada secundária, mas e m Africa, onde muitos países possuem unica­mente u m a rede nacional, pode ter u m a grande importância.

Encontrar pessoas como o padre Barriga levanta talvez, para realizar o m e s m o pro­jecto noutros locais, u m problema mais árduo. A confiança que soube inspirar aos campo­neses parece essencial para o estabelecimento de u m a troca regular e construtiva de infor­mações entre as aldeias e a estação. Esta con­fiança foi edificada a partir do amor autêntico do padre pela população de Tabacundo, que se exprimiu pela sua dedicação às comuni­dades ao longo dos últimos vinte anos. Mais do que o meio de transmissão de u m a série de programas ou de mensagens, a rádio de Taba­cundo é u m instrumento de consolidação e de desenvolvimento das relações assim estabe­lecidas.

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A s duas maneiras de se dirigir ao público através da rádio que acabam de ser examina­das parecem decorrer de culturas e de filoso­fias opostas e incompatíveis. O método que se inspira na publicidade americana decompõe o processo de desenvolvimento n u m a série de pequenos problemas fáceis de abordar, que podem ser submetidos a u m a análise técnica e tratados por especialistas. O m é ­todo aplicado e m Tabacundo não procede por fraccionamento é, pelo contrário, holís-tico. Postula que o processo de desenvolvi­mento se apoie essencialmente n u m a tomada de consciência por parte do indivíduo e da comunidade e n u m diálogo permanente. As soluções para os problemas do desenvolvi­mento devem ser encontradas principalmente na comunidade e devem ser aplicadas pela comunidade e não por especialistas vindos de fora.

N o entanto, entendemos que estas duas abordagens não devem ser consideradas con­traditórias. U m a interpretação u m pouco mais construtiva consiste e m considerá-las sob o aspecto das situações e dos objectivos a que se adaptam. Nesta óptica, revelam-se complementares.

A publicidade é capaz de abranger u m grande número de pessoas e de provocar modificações certamente pouco importantes, mas cujo impacto global é poderoso. Os recursos que lhe são atribuídos podem ser empregues rapidamente e m determinado pro­

blema e produzir resultados imediatos. D e facto, a justificação das despesas dos orga­nismos que financiam estes dispendiosos métodos exige que se obtenham resultados mensuráveis n u m curto lapso de tempo. Além disso, estes métodos necessitam de u m a infra-estrutura b e m desenvolvida de meios de informação e de u m a reserva de pessoal quali­ficado para a produção, a investigação e a gestão. À medida que se vão aperfeiçoando, deveriam ser cada vez mais aplicados.

Tabacundo mostra a via que conduz à rea­lização de comunicações de massa a partir da base. M a s trata-se de u m a obra de longo alcance. O padre Barriga trabalha para Taba­cundo há vinte anos e, provavelmente, per­manecerá nesta cidade por mais vinte anos ainda. O seu método apoia-se na dedicação das pessoas ao desenvolvimento popular e não no seu nível de conhecimentos técnicos. Os resultados serão necessariamente mais lentos a obter e poderão ser, e m grande parte, difi­cilmente mensuráveis, de acordo c o m os cri­térios sociais e as ciências sociais dos países ocidentais.

N o entanto, as vantagens apresentadas por Tabacundo nos domínios da tomada de cons­ciência individual e da solidariedade comuni­tária poderiam ajudar a reduzir a atonia, a alienação e a desintegração social inquietantes que são susceptíveis de acompanhar o assalto da tecnologia ocidental avançada.

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Tendencias e casos

A influência da edição transnacional sobre o saber nos países e m desenvolmento1

Keith B . Smith

O s livros constituem frequentemente o fulcro da actividade e da comunicação intelectuais. Veiculam o saber de país para país e no inte­rior dos próprios países.

Juntamente c o m outros suportes são os captores e os vectores dos conhecimentos, da cultura, da informação e dos divertimentos da sociedade. Apesar dos livros se contarem entre os mais antigos media, a edição é a menos estudada das indústrias da comuni­cação. Nunca suscitou o m e s m o interesse que outros media mais recentes como a radio­difusão e a imprensa. N a maior parte dos paí­ses, a profissão encontra-se submersa sob u m a espantosa mistura de folclore e mística sobre a qual só se levanta o véu através de memórias dos editores e da história das casas editoras. Contudo, a influência exercida pelos livros é u m facto reconhecido. Eles alimentaram reli­giões, inspiraram revoluções; ensinaram, des­truíram, guiaram, animaram e influenciaram a vida dos homens das mais diferentes m a ­neiras.

Escritores, editores, educadores, bibliote­cários e livreiros decidem dos livros que o público pode 1er. O s editores parecem deci-

Keith B . Smith (Reino Unido) é editor e consultor junto da Inter-Action, cooperativa londrina de meios de informação, e director de Third World publications de Birmingham. Foi professor no Quénia, director das exportações das edições William Collins, e efectuou investigações sobre os aspectos internacionais da edição no Institute of Development Studies da Universidade de Sussex.

dir também da sorte dos autores e dos seus manuscritos quando efectuam u m a opção na massa dos manuscritos que lhes são subme­tidos. Que controle podem realmente exercer os editores sobre os manuscritos e e m que fundamentam as suas opções? E m particular, e m que é que diferem os resultados quando se trata de u m a edição transnacional, local ou nacional? E m que é que a actividade intelectual e as estruturas das sociedades são afectadas pelos editores c o m o agentes do saber?

N e n h u m a categoria particular de livro exerce u m a influência exclusiva sobre o desenvolvimento dos conhecimentos. A clas­sificação dos livros por categorias intelectuais e culturais é u m a distinção cultural que depende da maneira c o m o u m a sociedade entende a arte e a cultura. N o entanto, o presente estudo refere-se mais especialmente à edição de obras diferentes dos romances e, nesta categoria, aos sectores, da edição, espe­cializados na publicação de obras conside­radas especializadas, eruditas, universitárias,

1. Este estudo foi primeiramente efectuado, e m Abril de 1976, no Institute of Development Studies da Universidade de Sussex, para a Divisão das ciências sociais aplicadas da U N E S C O . Foi apresentado n u m a reunião de peritos sobre o estudo da influência das sociedades transnacionais sobre o desenvolvimento e as relações interna­cionais nos domínios da competência da U N E S C O , que se realizou e m Paris, e m Junho de 1976. Foi revisto na Inter-Action, e m N o v e m b r o de 1976, para Perspectivas.

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Tendências e casos

educativas, documentais. Alargar o alcance do nosso estudo levar-nos-ia a generalizações excessivas. Estas categorias incluem os livros mais susceptíveis de ser utilizados no ensino superior, nas escolas, na educação escolar e não escolar e nas bibliotecas de estudos, e lidos por aqueles que desejam instruir-se e documentar-se. Aplicarei tão amplamente a minha argumentação aos continentes de África, da Ásia e da América Latina que as excepções poderão, por vezes, revelar-se tão instrutivas como as generalizações. O inte­resse que apresenta o estudo dos aspectos internacionais da edição deve-se, e m parte, ao facto de ser a indústria do livro que difunde as teorias sobre o sistema transnacional. Ora, a indústria do livro constitui, talvez, u m a parte integrante deste sistema.

A edição transnacional

A Organização das Nações Unidas estabele­ceu recentemente u m a definição das socieda­des transnacionais que se aplica a casas de edição cujo grau de «transnacionalidade» é variável. N u m caso extremo, u m editor trans­nacional pode limitar-se a vender livros para exportação. Foi assim que a maior parte das sociedades, actualmente assinaladas como transnacionais, começaram as suas operações c o m o estrangeiro, mas distinguem-se actual­mente das empresas nacionais por possuírem ou controlarem sucursais ou filiais fora do seu país. E m certas regiões do m u n d o e m desenvolvimento, e m especial na América do Sul, os editores transnacionais preferem operar por intermédio de agentes do que abrir os seus próprios escritórios.

A expansão imperial da Inglaterra e da França levou consigo os seus próprios sis­temas de ensino. A s escolas das colónias tinham o m e s m o programa do que as da metrópole. O s manuais franceses e ingleses eram importados para acompanhar u m pro­grama também importado.

N o início do século, certas firmas inglesas começaram a adquirir u m a dimensão trans­nacional quando casas como Longman, M a c -

millan e Oxford University Press abriram escritórios na índia. Pouco depois, a editora francesa Hachette iniciou a sua expansão nos países submetidos à influência da França, começando pela Turquia e o Egipto. Os edi­tores dos Estados Unidos só começaram a exportar para além da América do Norte depois de 1940. São actualmente os maiores exportadores de livros universitários e cien­tíficos para certos países e m desenvolvimento.

N a senda das edições das missões cristãs do ensino colonial, o desenvolvimento das edições transnacionais originou u m impor­tante afluxo de livros do Reino Unido, de França ou dos Estados Unidos para países e m desenvolvimento. N a maior parte dos países e m desenvolvimento, c o m u m a econo­mia de mercado ou u m a economia mista, os editores transnacionais dominam os sectores da edição que têm mais influência sobre o saber, excepto nos países e m que os governos concederam a editores do Estado a exclusi­vidade da edição dos livros destinados ao ensino primário e secundário.

Orientação metropolitana

A s casas de edição transnacionais limitaram--se primeiramente a exportar os seus títulos metropolitanos para os países e m desenvol­vimento, onde eram lidos pelos colonos e utilizados nas escolas fundadas para formar u m a classe média local. E m certos países da Ásia, estes editores, seguindo o rasto dos missionários, começaram a publicar livros e m língua local e houve pelo menos u m editor que, e m 1909, descobriu o lucro que daí poderia retirar. E m 1925, as administrações coloniais de certas regiões sentiram necessi­dade de estimular a redacção e a publicação de manuais escolares mais adaptados às con­dições locais; esta modificação operou-se len­tamente e os primeiros livros destinados à África anglófona foram publicados depois de 1930.

Devido ao papel que se lhes reconhece na defesa da paz e da compreensão internacio­nal, e da importância concedida à educação

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Tendencias e casos

na planificação nacional, os livros estão, e m grande parte, isentos de direitos de alfândega. A s filiais das sociedades transnacionais nos países e m desenvolvimento puderam, assim, basear a sua acção na distribuição dos títulos publicados pela casa m ã e . É o que se verifica, e m particular, c o m o que diz respeito aos editores americanos de publicações eruditas ou destinadas ao ensino superior. Quando as filiais se orientam também para a edição de livros destinados a substituir as importações, é, e m grande parte, porque os programas e m vigor no sistema escolar nacional exigem livros adaptados às condições locais. Fora do país, a venda destes livros continua a ser marginal. Estas listas locais aumentaram durante o presente decénio, de tal m o d o que, e m certos casos, representam até 80 por cento do montante das operações comerciais do editor transnacional na região considerada. A s filiais periféricas das sociedades transna­cionais têm u m a terceira função: transmitem manuscritos aos leitores da direcção central, quando decidem que há razão para os publi­car e distribuir pelo mercado continental ou internacional. São estas três funções que situam os editores transnacionais no contexto internacional.

A situação mundial do livro reflecte certos desequilíbrios e u m a orientação metropoli­tana dominante. E m 1950, os países e m desen­volvimento contavam 37 por cento dos adul­tos alfabetizados do m u n d o e 42 por cento da população escolar e a sua produção de livros representava 24 por cento da pro­dução mundial. E m 1970, a sua parte de pro­dução de livros tinha decrescido para 19 por cento, enquanto a população escolar tinha passado de 42 para 63 por cento e a dos alfabetizados adultos de 37 para 50 por cento.

O s países e m desenvolvimento importam a maior parte dos livros de nível universitário, o que não surpreende, u m a vez que os prin­cipais exportadores, a Europa e os Estados Unidos, são, desde há alguns séculos, os principais produtores de saber científico e de publicações intelectuais. A maior parte dos países e m desenvolvimento são signatários de pelo menos u m a das duas convenções

internacionais sobre os direitos de autor e importam, portanto, do Ocidente, livros que contêm conhecimentos novos. Este comércio é manifestamente rentável para os editores transnacionais e para os autores metropoli­tanos se tivermos e m conta a inquietação que lhes causam as edições piratas e o vigor c o m que reforçam as convenções a despeito dos pedidos de maior flexibilidade formulados pelos países e m desenvolvimento.

A predominância de livros metropolitanos, combinada c o m outras forças transnacionais, conduziu à bipolarização dos intelectuais dos países e m desenvolvimento, formando a maioria u m a classe transnacional orientada para a metrópole, e a minoria u m a classe contestatária ardentemente nacionalista. A indústria do livro constitui apenas u m dos factores da criação desta intelligentsia trans­nacional. Entre os outros factores menciona­remos os estudos nos estabelecimentos metro­politanos, o «êxodo das competências» e o número crescente das universidades de orien­tação metropolitana. A riqueza desempenha também u m papel directo, pois os países metropolitanos podem realmente escolher os programas de investigação que desejam finan­ciar e exercer, assim, influência sobre as publicações a que estes programas darão lugar. Esta riqueza permite igualmente finan­ciar os organismos que exportam a cultura, c o m o os serviços de informação dos Estados Unidos, o British Council e diversos orga­nismos governamentais franceses e soviéticos. O s serviços de informação levam, por vezes, os institutos universitários e os editores a defender certos interesses metropolitanos.

Existe u m a ligação estreita entre a edição transnacional, as línguas de difusão interna­cional e as intelligentsias transnacionais. A expansão imperialista impôs o francês e o inglês e m vastas regiões do m u n d o e arrastou na sua senda a edição transnacional. O s inte­lectuais da Ásia e da África escrevem e lêem ainda comummente na língua da antiga metró­pole. A situação é u m pouco diferente na América do Sul onde os intelectuais univer­sitários não utilizam exclusivamente o espa­nhol e se interessam vivamente por livros

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escritos e m inglês, e m francês, e m alemão e e m russo. Consideram que as publicações e m espanhol não os vinculam suficientemente às línguas internacionais orientadas para u m a metrópole. Entre todas as edições e m línguas de difusão internacional, a edição e m língua espanhola é a que está menos dependente de u m a metrópole. O s editores espanhóis são obrigados a sofrer a concorrência dos edito­res argentinos e mexicanos.

O s editores de outros países europeus sen­tiram todas as vantagens que poderiam reti­rar de edições nas línguas de difusão interna­cional. N o s países escandinavos, na Holanda, na República Federal da Alemanha e e m certos países da Europa de Leste, alguns editores desenvolvem as suas edições e m lín­gua inglesa e podem, assim, começar a con­correr c o m os exportadores tradicionais de livros destinados aos países e m desenvolvi­mento. Os editores transnacionais, como m o s ­trarei mais adiante, procuram minar a posição das línguas internacionais c o m influência da metrópole nos países e m desenvolvimento.

N o s países e m desenvolvimento e m que predominam os livros escritos e m línguas de difusão internacional, este processo acentua o desfasamento intelectual entre os indivíduos instruídos que têm acesso a estes livros e os alfabetizados mais pobres que devem conten-tar-se c o m livros locais impressos na sua língua. Existem, evidentemente, muitos exem­plos de línguas importadas que erigiram u m a barreira entre a élite e o resto da população.

Alguns países e m desenvolvimento aplicam u m a política nacional do livro, que atenua esta divisão operada por u m «transnaciona­lismo» apoiado n u m a metrópole. E m Cuba, graças à campanha massiva de alfabetização, à negação dos direitos de autor internacional e à criação de u m monopólio de Estado con­fiado ao Instituto del Libro, os livros não são instrumentos de dependência transnacional. A República Unida da Tanzânia segue u m a política menos radical e menos centralizada, que assenta no emprego do swahili e na afri-canização dos conteúdos, da orientação geral e da fabricação, mas que, no caso das publi­cações escolares, apela para certos meios ofe­

recidos pelos editores transnacionais. A Indo­nésia, pelo contrário, ao adoptar o bahasia indonesia como língua de ensino, sem desen­volver suficientemente as edições de Estado n e m incentivar a edição privada, provocou graves penúrias e m vez de se libertar da depen­dência.

A influência sobre os leitores

A edição transnacional operou u m a impor­tante transferência de conhecimentos dos centros avançados para as zonas periféricas do m u n d o e contribuiu para constituir o capital intelectual de muitos países e m desen­volvimento. Este comércio, juntamente c o m o desenvolvimento de u m a intelligentsia trans­nacional, ocasionou a transferência das in­fluências metropolitanas sobre a produção e o consumo locais do saber. A s duas secções seguintes explicarão as transferências que se efectuam no quadro da edição transnacional e que, por seu intermédio, atingem os leitores. N u m a secção ulterior, estudaremos os meios através dos quais estas transferências colocam a edição nacional nos países e m desenvolvi­mento.

O s editores transnacionais que dominam o mercado dos livros escolares e m numerosos países e m desenvolvimento transferem para estes países certos aspectos do ensino carac­terísticos da metrópole. É o caso, por exem­plo, dos métodos pedagógicos e m que a transferência se opera muitas vezes através do canal de livros que foram elaborados na metrópole. Este procedimento caracteriza a publicação de manuais escolares desde que os manuais ingleses foram superficialmente adap­tados às escolas africanas, contentando-se e m substituir a palavra «batatas» por «ignames». A importância dos trabalhos de adaptação dos editores transnacionais depende da sua actividade de edição no Reino Unido. O que abre, na maior parte das vezes, a via à adapta­ção, é a importante participação dos pais n u m a reforma do ensino secundário da mate­mática moderna ou do método de Nuffield baseado na descoberta pelo aluno e imaginada

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nos anos sessenta. Estas tendências pedagó­gicas foram transmitidas ao ensino africano pelas vias especializadas graças ao auxílio oficial e às adaptações dos editores. O pro­blema de saber se esta influência moderniza-dora que se exerce sobre o ensino africano favorece o desenvolvimento dos alunos é controversa. D o ponto de vista do editor, depende principalmente do grau de adaptação, A s alterações introduzidas nos manuais de m a ­temática para incorporar o ambiente local dos alunos são insuficientes, se não tiverem e m conta certos factores como as variações culturais da percepção, as atitudes culturais perante a abstracção, as classificações e as medidas e u m relativo hábito destas noções.

O grau de adaptação dos principais ele­mentos de programa depende, e m grande parte, da importância do mercado potencial e da equipa encarregada da adaptação, que é habitualmente u m grupo oficial ou nomeado pelo ministério. Foi assim que o programa de matemática editado na origem pela C a m ­bridge University Press para as escolas do Reino Unido foi parcialmente adaptado para o Botswana, o Lesotho e a Suazilândia, mas mais profundamente remodelado para o mer­cado da África Oriental, que é mais impor­tante. Esta actividade de adaptação apre­senta três novos aspectos. O s dois primeiros mostram que este comércio, apesar de rentá­vel para os editores metropolitanos, não está inteiramente limitado a u m circuito intra--transnacional : e m primeiro lugar, muitos pedidos de adaptação são oficiais; e m segundo lugar, alguns dos editores iniciais, como Blac-kie e Chambers ou John Murray, apesar de britânicos, não são firmas transnacionais e alguns dos editores que publicam as adapta­ções pertencem a sociedades quase indígenas, como a East African Publishing House.

O terceiro novo factor é u m pequeno movi­mento de manuais adaptados de geografia e de ecologia para as metrópoles e entre os mercados do terceiro m u n d o .

A transferência de novos métodos pedagó­gicos raramente se deve à iniciativa dos edi­tores escolares transnacionais. N a maior parte das vezes, estes asseguram a base material da

transferência que resulta de u m contrato inter­nacional directo entre os educadores ou do texto escrito pelos autores. A s transferências da metrópole para a periferia, e m matéria de educação, consistiram também, como vimos, n u m a transposição para as colónias dos sis­temas de ensino metropolitanos. O s livros que seguiram esta transposição constituíram importantes instrumentos de transferência cultural. Durante decénios, os alunos afri­canos e asiáticos aprenderam a história, a geografia e as instituições do Ocidente e as ciências naturais da zona temperada. Este saber constituiu u m a grande parte da baga­gem intelectual da intelligentsia transnacio­nal da maior parte dos países e m desenvolvi­mento. C o m a constituição de comissões de exame locais e a importância concedida às culturas nacionais nos programas escolares, os manuais metropolitanos eram acolhidos c o m mais dificuldade e as editoras transna­cionais foram obrigadas a responder às exi­gências locais ou às directivas dos ministérios da educação. N o s países e m que as taxas de escolarização são fracas, estes não têm a m e s m a influência sobre as sociedades de edi­ção transnacionais e podem eventualmente decidir que a reforma dos programas é impos­sível se os novos manuais não forem publi­cados por edições do Estado.

A o nível do ensino superior, os países e m desenvolvimento têm pouca influência sobre a edição transnacional, excepto quando este sector do ensino é importante, c o m o sucede na índia. C o m excepção dos manuais de base, o mercado oferecido pelos países e m desen­volvimento é habitualmente demasiado res­trito para poder exercer u m a grande influência sobre o programa de publicação dos editores transnacionais.

A ideologia de base dos editores transna­cionais, como a de todas as empresas capita­listas, baseia-se no lucro. É evidente que as sociedades comerciais publicam algumas colec­ções e alguns títulos de que não esperam bene­fícios, mas que se destinam a levar a sua imagem de qualidade. Além disso, o que é ainda mais interessante, alguns grupos de editores metropolitanos estão animados de

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u m ideal profissional que atenua a sua procura do lucro; é o que sucede sobretudo c o m os editores universitários ingleses e americanos: c o m excepção parcial dos manuais escolares, a edição caracteriza-se por u m mercado muito incerto e u m a proporção elevada de novidades. Assim, é difícil avaliar o potencial de vendas de u m manuscrito e é mais fácil justificar outros critérios de selecção c o m o o valor intelectual ou literário. A natureza e a apli­cação destes critérios serão determinadas por factores c o m o a estrutura e a tradição da sociedade, a imagem que o editor tem de si próprio e o grupo a que se refere, e pela m e ­dida e m que concebe o seu papel como essen­cialmente normativo ou essencialmente inter­pretativo.

A s editoras transnacionais delegam mais ou menos poder nas suas filiais. A sua ideo­logia, tal como se manifesta por intermédio das suas estruturas diferentes, determina a natureza da sua influência sobre o saber. A s maiores editoras transnacionais designam u m director local que goza de grande auto­nomia no que respeita à publicação de manuais escolares e de obras nas línguas locais, mas que deve endereçar à direcção central os manuscritos, literários ou não, escritos e m línguas de difusão internacional. Nesses casos, o poder aparente do director local é muito superior à sua influência real, pois os manuais estão mais intimamente ligados do que qual­quer outra categoria de livros às condições perceptíveis do mercado. N o s países e m desen­volvimento, os manuais acompanham geral­mente de perto os programas escolares e as grandes sociedades transnacionais que os editam são as menos dispostas a renunciar ao lucro.

Existem, no entanto, manuscritos que dependem menos intimamente das condições do mercado local e que dão ao editor que decide da sorte do manuscrito u m a maior liberdade de julgamento. É o caso dos livros para adultos, documentais, literários ou uni­versitários escritos e m línguas de difusão internacional. M a s o poder de decisão per­tence sobretudo aos editores metropolitanos que conhecem perfeitamente os gostos e os

interesses dos leitores do seu país. Pode atri-buir-se u m certo poder às filiais mas , neste caso, trata-se unicamente do poder de infor­mar a direcção central do potencial de venda oferecido pelos leitores e institutos locais. O que equivale principalmente a interpretar os gostos de u m a intelligentsia local, m a s transnacional e «metropolitanizada». Assim, m e s m o quando os editores transnacionais publicam manuscritos redigidos por autores dos países e m desenvolvimento, o processo de selecção e, por conseguinte, as listas dos editores têm tendência para reforçar a depen­dência do país e m desenvolvimento e m rela­ção aos países metropolitanos.

Esta dependência não seria tão grande se os leitores dos países e m desenvolvimento fos­sem mais numerosos e mais diversos. Os edi­tores metropolitanos não têm o objectivo de alargar os seus mercados através do financia­mento dos programas de alfabetização a longo termo ou das bibliotecas rurais. A sua principal preocupação além da procura do lucro, consiste mais e m procurar manuscritos de qualidade do que e m aumentar o número dos leitores. É geralmente o Estado que se encarrega de abranger u m público mais amplo, por intermédio das bibliotecas e, por vezes, dos gabinetes de publicações que editam m a ­nuscritos sem qualquer interesse comercial. Apesar desta acção do Estado, é provável que a estrutura dominante da distribuição dos livros conduza à separação dos leitores por u m fosso ainda mais profundo do que o que divide os utentes dos meios de informação. Por outras palavras, à medida que a indústria do livro se desenvolve, alguns sectores da população c o m u m estatuto socioeconómico superior tendem a adquirir conhecimentos c o m u m ritmo mais rápido do que os que pos­suem u m estatuto inferior, de tal m o d o que a diferença entre os saberes tende a aumentar e m vez de diminuir.

Assim, apesar dos princípios pluralistas dos editores transnacionais, as principais influências que determinam a repartição do saber, c o m excepção dos manuais escolares, são as decisões tomadas pelos editores metro-

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politanos e o mercado internacional domi­nado pela metrópole.

É interessante notar, de passagem, que manuscritos que criticam e contestam poli­ticamente certos países e m desenvolvimento encontram, por vezes, u m editor metropoli­tano, enquanto nenhum editor local ou ver­dadeiramente transnacional os poderia pu­blicar.

Influência sobre os autores

A actividade dos editores de livros actua não só sobre o consumo intelectual como também sobre a produção. Esta influência faz-se sen­tir nas relações entre escritores e casas edi­toras.

Apesar das recentes fusões entre empresas metropolitanas de edição, a indústria do livro tem u m a ideologia essencialmente pluralista. M e s m o quando fazem parte de u m grupo, as sociedades conservam frequentemente u m a relativa independência. Os editores transna­cionais exportaram esta atitude para os países e m desenvolvimento e m que a extensão do monopólio de Estado sobre a edição causa as maiores apreensões. São por vezes estas apreensões que, entre outros factores, levam as sociedades transnacionais a facilitar o desen­volvimento de u m a indústria local do livro perante as edições do Estado. O pluralismo oferece aos autores u m a gama mais vasta de possibilidades do que nos países e m que a edição está mais centralizada. M a s a escolha dos títulos publicados não é apenas fruto de u m a atitude pluralista, é também determinada pela maneira como os editores interpretam o mercado e pela sua ideologia dominante.

C o m o vimos, quando u m autor submete u m manuscrito a u m a casa editora transna­cional, este manuscrito é julgado e m função de u m mercado internacional, excepto quando se trata de u m manual escolar, de u m manual de base, ou de u m a obra redigida n u m a língua local. Os editores transnacionais c o m acesso a muitos mercados no m u n d o podem, muitas vezes, aceitar u m manuscrito e publicá-lo c o m fins comerciais, enquanto u m editor pura­

mente nacional não teria tido possibilidade de o fazer. O que talvez seja largamente provei­toso, sobretudo quando se trata de disciplinas mais exportáveis, tais como a ciência ou a tecnologia, e m que, por exemplo, u m livro tratando de certos aspectos da silvicultura tropical pode tornar-se rentável atingindo u m mercado tropical e m vez de u m mercado unicamente nacional. Este alcance internacio­nal é mais importante para países muito peque­nos. Assume igualmente u m a importância crescente no mercado universitário, onde o aumento do número de bolsas de estudo deu origem a u m a maior especialização e a u m a certa incidência dos mercados sobre as publi­cações altamente especializadas a que estas bolsas exigem o acesso. Poder-se-ia tirar o m e s m o partido da extensão do saber se os editores dos países e m desenvolvimento tives­sem acesso a u m mercado mundial, o que não acontece. Muitas vezes n e m sequer atin­gem o mercado do seu próprio continente, apesar de algumas novas empresas c o m boas promessas de futuro estarem à altura de aumentar a sua clientela.

É nos domínios mais estritamente culturais, como as ciências sociais, a literatura, os livros destinados ao grande público e às crianças que a edição transnacional deforma a pro­dução intelectual. Muitos autores, principal­mente os universitários, possuem duas moti­vações : o desejo de comunicar e o de adquirir prestigio ou ganhar dinheiro. Quando os edi­tores da metrópole recebem os seus manus­critos, transmitem-nos habitualmente a u m leitor, a fim de colherem u m a opinião sobre o seu valor. Infelizmente, não foi feito nenhum estudo sobre a interacção entre os editores e os conselheiros, mas é provável que a decisão de publicar ou não publicar u m manuscrito seja tomada tendo e m conta a opinião da metrópole, os gostos internacionais e a posi­ção do autor na élite transnacional. É , por­tanto, u m a autoridade da metrópole, ou orientada para a metrópole, que, por inter­médio dos editores transnacionais, filtra o saber à sua entrada nos países e m desenvolvi­mento. É neste sentido que u m trabalho pode adquirir, ou não, legitimidade, pois é muito

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raro que ideias não publicadas adquiram autoridade. E m certos sistemas de ensino, a promoção dos autores universitários depende também dos editores. A necessidade de satisfa­zer os que detêm esta autoridade influencia certamente os autores dos países e m desen­volvimento. Muitos serão aqueles que escre­v e m indo ao encontro do que pensam cons­tituir o desejo da rede transnacional orientada para a metrópole. E m certas regiões e m que, para certas categorias de livros, como as publicações universitárias das Antilhas, o público é particularmente limitado, os auto­res devem quase inevitavelmente apontar para u m público internacional.

E m certos países e m desenvolvimento, os autores devem optar entre duas categorias de editores locais, os editores comerciais e os outros. Excluindo a índia, as edições uni­versitárias comerciais são raras. O número das editoras universitárias subsidiadas tem aumentado na Ásia e na África Ocidental, m a s o número de obras publicadas é ainda limitado. E m geral, é menos prestigioso ser publicado por estes editores locais do que por editores transnacionais. Alguns escritores afri­canos apreciados reagem actualmente contra a predominância das casas editoras trans­nacionais confiando aos editores locais alguns dos seus manuscritos. Esta atitude insere-se n u m pequeno movimento de protesto a que já aludi.

Assim, por u m lado, o acesso ao mercado internacional assegura aos editores transna­cionais a rentabilidade de u m certo número de títulos e, por outro lado, a orientação metropolitana do editor transnacional con­jugate c o m o transnacionalismo do país e m desenvolvimento, para impedir a legitimação da produção intelectual desse país.

Algumas formas de ajuda a favor do livro prejudicam a produção de escritos locais; é o que sucede, e m particular, c o m as medidas graças às quais os editores transnacionais obtêm subsídios para as suas publicações. Estas medidas originam u m a diminuição do preço de venda e proporcionam aos compra­dores a possibilidade de adquirir u m livro que não teriam podido obter sem o subsídio

concedido. Simultaneamente, devido a este subsídio, os livros do editor transnacional vendem-se mais baratos do que os livros locais equivalentes dos quais alguns não podem, portanto, ser publicados. O que desanima os autores locais, não significando, porém, que o auxílio a favor do livro seja afinal, preju­dicial, embora exija u m a avaliação mais reflec­tida.

Editores nacionais e locais nos países em desenvolvimento

O s editores transnacionais exercem igual­mente u m a influência indirecta sobre o saber devido à sua influência sobre a edição nacio­nal nos países e m desenvolvimento. Para estudar este fenómeno, devemos, e m primeiro lugar, estabelecer u m a distinção entre as diferentes categorias de editores nacionais.

A s estruturas da edição local e nacional nos países e m desenvolvimento são a resul­tante de factores muito diversos: grau de alfabetização e de instrução, política dos governos e m matéria de edição de Estado no domínio da educação, desenvolvimento dos serviço de biblioteca e do poder de compra, disponibilidade dos diversos elementos da infra-estrutura dos manuscritos e m relação às livrarias, passando pelas tipografias, acesso ao capital e à arte, atitude do governo perante os editores capitalistas, os editores estrangei­ros e os editores de Estado, poder e influência dos editores nacionais e locais. É neste con­texto que surgem duas grandes categorias de casas editoras nos países e m desenvolvimento : as edições comerciais e as edições não comer­ciais. A s organizações não comerciais são habitualmente organizações de Estado que publicam manuais, ou empresas de edição universitárias subsidiadas por universidades ou institutos. Os editores de Estado benefi­ciam quase sempre de u m monopólio sobre os manuais do ensino primário. Situam-se habitualmente entre u m a instituição que reflecte a ideologia política nacional, c o m o o

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Instituto dei Livro de Cuba, e u m órgão de intervenção criado para conservar reservas estrangeiras, produzir livros a preço mais acessível e fazer que os manuais estejam de acordo c o m o pensamento do governo, como o Educational Publications Bureau de Singapura. O monopolio que daí resulta traduz-se pelo controle exercido pelo serviço governamental encarregado de elaborar os programas escolares e pela casa editora de Estado sobre o conteúdo intelectual dos manuais. N o caso dos editores não comer­ciais não subsidiados, é habitualmente o pessoal docente de u m a universidade ou instituto que toma a decisão de publicar ou não.

A s empresas locais de edição comercial estão geralmente ligadas a três tipos de situa­ção. Algumas são dirigidas por profissionais que começaram, por vezes, por editar as suas próprias obras, como as edições Onitsha na Nigéria. Outras criaram u m serviço de edição a partir de u m a livraria; vários importadores indianos tornaram-se editores por este pro­cesso. Outras ainda nasceram de movimentos políticos ou culturais ou foram criadas por intelectuais desejosos de criar certas cate­gorias de livros. Muito poucos editores, nos países e m desenvolvimento, seguiram a prá­tica habitualmente admitida nos países metro­politanos que consiste e m abandonar grandes casas editoras para fundar pequenas empresas.

Todas estas categorias de editores comer­ciais são obrigadas, mais cedo ou mais tarde, a enfrentar os editores transnacionais que dominam os sectores mais proveitosos do mercado. Algumas vantagens permitem que os editores transnacionais mantenham esta posição, confinando, assim, e m grande parte, os editores locais aos sectores marginais de u m a indústria já por si marginal. Esta domi­nação provocou igualmente u m a certa hosti­lidade no Canadá e na Austrália nos anos setenta. O s editores australianos tiveram de pagar pelo British Traditional Market Agreement contra o qual o Ministério da Justiça dos Estados Unidos intentou u m a acção por desrespeito ao acordo estabelecido. Este acordo impedia os editores britânicos

signatários de negociar os seus direitos c o m os editores dos Estados Unidos, excepto quando o editor britânico tinha a possibili­dade de publicar no conjunto do «mercado tradicional», isto é, e m quase todo o antigo império britânico. Este mecanismo permitiu que os editores britânicos mantivessem o controle dos seus mercados e limitassem a expansão americana. O s editores britânicos defendem que, se o mercado se dividir, as tiragens diminuirão e o preço dos livros aumentará. É possível, m a s tal não aconte­ceria se os editores de todos os países tives­sem acesso ao mercado internacional alcan­çando, assim, a possibilidade de elevar as suas tiragens e alargar a distribuição, pos­sibilidade que está ainda, e m grande parte, reservada aos editores transnacionais.

C o n v é m assinalar duas excepções de impor­tância para as restrições infligidas à acção dos editores dos países e m desenvolvimento: os romances populares locais, os livros de conselhos de ordem social e pessoal e os manuais de preparação intensiva. A s grandes casas editoras transnacionais exerceram o essencial dos seus esforços sobre as especia­lidades da metrópole, desprezando a litera­tura de diversão. Esta continua, pois, aberta aos editores locais e aos importadores que fornecem livros e revistas publicados por outros editores metropolitanos. O s princípios e m que se baseia a política dos editores transnacionais e o interesse que dedicam ao mercado urbano explicam que se tenham limitado aos manuais escolares tradicionais e aos livros educativos, e que tenham evitado publicar livros de preparação intensiva. O s editores dos países e m desenvolvimento sen­tem dificuldades e m sustentar a concorrência no domínio dos manuais escolares. Alguns deles serviram-se de livros de preparação intensiva para adquirirem bases e se tornarem capazes de se lançar na publicação de obras mais sérias.

Este desequilíbrio histórico provocou, na maior parte dos países e m desenvolvimento sem grande mercado universitário, u m cisma imprevisto que tem vindo a acentuar-se. O público espera que as obras comerciais

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mais intelectuais sejam publicadas por casas editoras transnacionais e as raras obras de fundo publicadas pelos editores locais são, geralmente, desacreditadas. E m muitos países e m desenvolvimento onde assim acontece, o desequilíbrio é, pelo menos parcialmente, restabelecido pela actividade de editores locais subsidiados, tais c o m o as imprensas universitárias. Ultimamente, os editores trans­nacionais começaram a publicar livros de preparação e romances de diversão, m a s nada permite ainda dizer se esta atitude reduzirá a cisão existente ou se porá e m perigo o principal mercado dos editores locais.

U m a das vantagens históricas dos editores transnacionais metropolitanos consiste e m terem a sua sede no centro de redes de c o m u ­nicação e de transporte da África e da Ásia. O s editores dos países e m desenvolvimento estão instalados na periferia e esta estrutura radical tem influência sobre o envio de livros e documentação de u m ponto para outro. A s comunicações intelectuais entre países e m desenvolvimento, e m vez de se fazerem direc­tamente, passam geralmente pelos centros metropolitanos. Esta situação é menos nítida na Ásia Oriental onde os livros circulam entre países c o m o H o n g - K o n g , Singapura e Malásia. T a m b é m é menos nítida na América do Sul e na América Central onde os livros publica­dos na Argentina ou no México se vendem e m outros pontos do continente.

Entre os editores mais intelectuais da África e da América Latina, nota-se u m a tendência para querer igualar o estilo e as normas das metrópoles e m matéria de produção e de apresentação dos livros. Assim, ocupam-se tanto da qualidade do papel c o m o da enca­dernação e das ilustrações. Atenua-se a dis­tinção entre os elementos funcionais de apre­sentação (legibilidade, solidez) e a apresentação luxuosa, a qualidade superior do papel e as capas coloridas. Alguns editores locais sentem-se obrigados a caminhar neste sentido, u m a vez que o gosto evoluiu devido à fami­liarização dos compradores c o m os modos de apresentação metropolitana. Estes edito­res citam casos e m que o pessoal dos minis­térios da educação recusou livros porque,

embora menos caros, não possuíam u m a apa­rência tão atraente c o m o os livros publicados pelos editores transnacionais. E m outros casos, os editores dos países e m desenvolvi­mento parecem sofrer de u m a dependência psicológica que os leva a querer atingir as normas dos editores metropolitanos sem ter e m conta as condições locais. Esta atitude origina sempre u m aumento do preço dos livros e restringe, portanto, a difusão do seu conteúdo.

A s três principais influências exercidas pela edição transnacional

O que sobressai mais nitidamente do que acabamos de dizer é o alcance internacional que os editores transnacionais dão ao saber e à difusão do saber, dos conhecimentos, das ideias, do trabalho de criação, etc., entre os que dominam as línguas de difusão interna­cional e ocasionalmente entre os leitores que utilizam línguas locais. A sua acção tem reper­cussões internacionais e reforça a compreen­são e a apreciação intelectuais entre nações. Esta transferência não se faz e m sentido único u m a vez que os editores transnacionais acei­tam os manuscritos de autores de países e m desenvolvimento e lançam-nos no mercado internacional. Deste ponto de vista, o inter­nacionalismo dos editores transnacionais é tão positivo para o público c o m o para os escritores.

Salientei ainda u m a característica menos reconhecida da edição transnacional e que resulta não tanto do seu internacionalismo c o m o da sua base metropolitana. Quase todos os editores transnacionais têm a sua sede nos países metropolitanos ou no país que domina a região. T ê m , assim, u m a orientação metro­politana que, associada a outros factores, vem reforçar a dependência intelectual dos países e m desenvolvimento. Esta síndrome é o resultado da maneira c o m o se constitui o saber e é o produto da história colonial; actualmente, é reforçado por elementos do

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capitalismo mundial e do transnacionalismo intelectual, linguístico e universitario.

Esta influência debilitante é incentivada pela relação de certo m o d o simbiótica que une a élite dos países e m desenvolvimento às sociedades transnacionais, e que procura reservar às élites o benefício da edição trans­nacional. Infelizmente, alguns instrumentos do internacionalismo reforçam a circulação dos livros e m sentido único, atrasando, por­tanto, o desenvolvimento da independência intelectual. Algumas forças lutam contra esta dependência, m e s m o no interior do sistema de edição transnacional, mas são demasiado fracas para contrabalançar as forças mais poderosas do transnacionalismo das metró­poles. Os mais interessantes e os mais excep­cionais destes fracos contrapesos são talvez as convenções intermitentes entre os editores dos países e m desenvolvimento e os editores transnacionais, nos termos das quais o editor transnacional distribui nos países metropo­litanos os livros publicados pelos editores dos países e m desenvolvimento. N o exterior do sistema transnacional, outras forças adversas estão e m jogo, desde a lassidão sentida pelos autores perante a dominação dos editores transnacionais, até às casas editoras que,

c o m o a de Quimantù no Chile, foram cria­das c o m pleno conhecimento da fraqueza que resulta da dependência da metrópole.

O terceiro domínio e m que se exerce a influência das casas editoras transnacionais é o da edição nos países e m desenvolvimento. Já mostrei que nos países e m desenvolvimento a indústria do livro é contrariada pelo poder e a influência mundial dos editores transna­cionais e c o m o estes últimos decidem da extensão do mercado aberto aos editores dos países e m desenvolvimento, excepto nos casos e m que o Estado intervém e estabelece u m monopólio. Seria necessário empreender u m estudo de grande envergadura para medir a influência dos editores transnacionais sobre a edição nos países e m desenvolvimento e, e m particular, para determinar o poder e as possibilidades dos pequenos editores inde­pendentes. Estes publicaram livros e bro­churas e exercem u m a grande influência e m matéria de alfabetização no plano dos conhe­cimentos e até sobre a história nacional.

E m resumo, embora o internacionalismo da edição transnacional seja positivo no plano intelectual, a sua orientação essencialmente metropolitana reforça os laços de depen­dência.

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Notas e comunicações

Revista de publicações

Língua, pedagogia, politica e sociedade: o bilinguismo e m marcha

A y o B A M G B O S E (dir. publ.) Enseignement et langue maternelle en Afrique occidentale, Paris, Presses de l'Unesco, 1976, 137 pp. Frances Willaid von M A L T I T Z . Living and learning in two languages: bilingual-bicultural education in the United States. N e w York, McGraw-Hill Book Company , 1975, 221 pp. C O L E C T I V O D E A L F A B E T I Z A Ç Ã O . L'alphabétisation des travailleurs immigrés. Colecção «Textes à l'appui», Série pedagogia. Paris, François Maspero, 1975, 326 pp. Diana E . B A R T L E Y . Soviet approaches to bilingual education. Language and the teacher: a series in applied linguistics, n.° 10. Filadélfia, Center for Curriculum Development, 1971, 281 pp. Merrill S W A I N (dir. publ.) Bilingualism in Canadian education: issues and research: Le bilinguisme dans l'éducation canadienne: la recherche et les problèmes. Yearbook of the Canadian Society for the Study of Education/Annuaire de la Société canadienne pour l'étude de l'éducation, vol. 3, 1976. Edmonton, S C E E / C S S E , 136 pp.

O principio de base da pedagogia reside na adaptação dos métodos de ensino aos alunos. N u m a escola pri­mária c o m u m não se ensina a alunos de oito anos o cálculo diferencial ou as equações químicas relativas ao cracking dos hidrocarburetos. M e s m o quando u m indivíduo ultrapassa largamente as capacidades da maioria dos alunos, é totalmente inútil tentar ensi-nar-lhas. N o entanto, os sistemas de educação de mui­tos países baseiam-se, pelo menos e m parte, na violação destes princípios elementares: ensina-se n u m a língua que, pelo menos u m a parte dos alunos — e, e m cer­tos regimes coloniais ou neocolonialistas, a quase totalidade dos alunos— compreendem c o m dificul­dade. Por motivos de ordem histórica, ideológica e «prática», a maior parte dos sistemas de educação assentam na utilização de u m a língua oficial, pelo menos no interior de determinadas zonas geográ­ficas; por vezes, coexistem duas línguas oficiais no m e s m o território; raramente serão mais do que duas. A s consequências deste estado de coisas no plano edu­cativo são geralmente desastrosas para maioria das crianças (e dos adultos), obrigados a estudar n u m a língua diferente da língua materna1.

Durante os últimos anos muitas nações tomaram consciência, de m o d o espectacular, da possibilidade

de ultrapassar o modelo monolítico constituído pela utilização de u m a língua oficial única. O número de Perspectivas dedicado, e m 1976, à educação bilingue e multilingue constitui u m testemunho do interesse suscitado e m larga escala pelo problema da escolari­zação e m língua materna — o que poderia ser consi­derado u m ponto de partida para a elaboração de novos programas, e m vez de u m a «inovação metodo­lógica».

Entre a variedade de publicações que descrevem as tentativas de diversas nações no sentido de enfren­tar o problema da educação e m língua materna, foram seleccionadas quatro como representativas dos dife­rentes tipos de estudo sobre o assunto. Estas publica­ções têm e m c o m u m u m a preocupação explícita: como utilizar as línguas maternas no processo de edu­cação? Implicitamente, elas estão ligadas por u m m e s m o fenómeno subjacente de carácter sociopolítico: a l''ngua dominante no ensino está ligada, na maior parte das vezes, a u m sistema de dominação social e económica e m que as diferenças de línguas designam u m ou mais grupos como dependentes. A pedagogia e a política estão intimamente relacionadas.

1. Ver, mais adiante, u m a excepção importante.

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Notas e comunicações

Enseignement et langue maternelle en Afrique occiden­tale é u m a colectânea de ensaios redigidos por educa­dores da África ocidental (Serra Leoa, Benim, G a n a e Nigéria). Fornece-nos u m resumo dos esforços desti­nados a resolver os problemas relativos à língua nos países cujas fronteiras foram determinadas no século passado pelos interesses das potências coloniais da Europa Ocidental, e não pelas afinidades étnicas ou linguísticas dos povos interessados. E m comparação c o m muitas outras partes do m u n d o , a diversidade linguística desta região é absolutamente surpreendente. A Serra Leoa, c o m u m a população de pouco menos de quatro milhões de habitantes, possui pelo menos 18 línguas reconhecidas, das quais algumas apresen­tam, além disso, importantes diferenças dialécticas; no capítulo sobre o Gana , afirma-se que «nunca nin­guém soube quantas línguas se falam no território do país» (p. 76). Graças a u m resumo histórico do ensino das línguas maternas na África Ocidental e a u m a excelente introdução sobre a evolução das polí­ticas desenvolvidas pelos Estados contemporâneos, o leitor está à altura de compreender o aparecimento progressivo de políticas nas quais o inglês e o fran­cês — que são actualmente as principais línguas uti­lizadas no ensino (em particular aos níveis secundários e superior) — começam, nas escolas primárias, a dar lugar às línguas africanas. A evolução para o emprego das línguas maternas dos alunos é ainda embrionária, m a s os autores prevêem que a «língua materna será provavelmente introduzida no ensino primário, den­tro de dez anos, na maior parte dos países que, actual­mente, se limitam rigorosamente ao inglês e ao fran­cês» (p. 21).

Estas tentativas não surpreenderão os especialistas avisados de África, m a s serão úteis aos leitores que desejam ter u m a visão de conjunto dos factores lin­guísticos que afectam a evolução do ensino nas nações africanas. O s dirigentes políticos devem esforçar-se por desenvolver as bases de u m a identidade nacional, lutando contra os problemas suscitados pelo subde­senvolvimento económico e pela diversidade étnica. O poder de divisão resultante da preferência conce­dida a u m a língua autóctone e m detrimento de todas as outras desempenhou o papel de travão sobre a tomada de decisões e suscitou curiosas anomalias. U m autor observa, por exemplo, que, no Gana, «o ano que marcou o ponto culminante do nacionalismo foi também o que viu baixar a importância das línguas nacionais no ensino» (p. 83). A s tentativas são, e m

geral, de alto nível, embora u m a certa desigualdade possa ser atribuída a diferenças das condições locais ou à experiência dos colaboradores: enquanto u m autor se estende exageradamente sobre u m projecto piloto relativo ao emprego de u m a única língua afri­cana, n u m a só escola, outro, n u m estudo dedicado ao projecto «Livros de leitura» do Estado des Rivières na Nigéria, aborda c o m coerência e e m menos páginas u m vasto programa incluindo a elaboração de livros de leitura para as primeiras classes e m quinze línguas, acompanhados de guias para os professores e de u m a documentação sobre os sistemas de ortografia utili­zados.

O aspecto mais estimulante das actividades des­critas é talvez o desenvolvimento rápido do estudo cien­tífico das línguas africanas. O s autores contribuem c o m u m a documentação bastante pormenorizada sobre os trabalhos desenvolvidos pelos linguistas para dotar de u m a ortografia as numerosas línguas que, até agora, nunca foram escritas. Existe algo de cati­vante na obra imensa que constitui a passagem para­lela de dezenas de culturas do m u n d o da tradição oral para a luz crua e analítica do alfabetismo. Este movimento, iniciado e m diversos pontos durante o último século, principalmente pelos missionários cris­tãos, foi rapidamente acelerado c o m o desenvolvi­mento das técnicas linguísticas modernas. O estudo já mencionado sobre o projecto «Livros de leitura» do Estado des Rivières expõe o método de normalização linguística aplicado simultaneamente a mais de u m a dúzia de línguas; a descrição prmenorizada da maneira c o m o a ortografia é modificada, tanto pela tradição c o m o pela prática, a fim de responder às necessidades dos leitores é relativamente rara nas revistas não especializadas e merece ser lida.

A crítica a fazer a este livro consiste e m afirmar que o leitor gostaria de saber mais sobre as abordagens adoptadas no resto da África Ocidental. Dispõe dos fragmentos de u m mosaico que, u m dia, deveria ser completado.

Living and learning in two languages: bilingual--bicultural education in the United States transportá­baos para urn ambiente totalmente diferente: nos Estados Unidos, os educadores encontram, nas salas de aula, u m número surpreendente de grupos linguís­ticos — imigrantes de todas as partes do m u n d o , índios da América, e cidadãos americanos de língua espanhola ou francesa cuja terra-natal foi absorvida pela expansão do país através do continente ou das

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Notas e comunicações

Caraíbas (Porto Rico). N a pátria da teoria do «cadi­nho» (melting pot), a acção conjugada dos grupos de pressão étnicas, das legislações federais e dos Esta­dos, assim c o m o das decisões dos tribunais, suscitou u m vasto movimento tendente a modificar os objectivos tradicionais da assimilação cultural e linguística nas escolas.

O principal defeito do livro de von Maltitz reside no facto de ignorar as incidências profundas de ordem sociológica e política do reconhecimento das línguas minoritárias nas escolas americanas. E m b o r a se afirme na introdução que «os aspectos políticos da educação» são amplamente ignorados, o ponto de vista domi­nante da maioria anglo-saxónica reflectido no con­teúdo dos programas bilingues é aceite de facto: estes devem ajudar os alunos anglo-saxónicos a apren­der u m a língua estrangeira, tal c o m o devem ensinar inglês aos alunos de língua minoritária. O autor revela pouca simpatia pelos grupos minoritários partidários de u m a abordagem «separatista», e m que os estudantes de língua minoritária estão agrupados e isolados de todos os alunos de língua inglesa, a fim de preservar melhor o seu património cultural e linguístico. O reco­nhecimento dos direitos das línguas minoritárias está intimamente ligado ao de igualdade social e política; é evidente que têm sido feitos progressos, m a s o autor não parece ter u m a opinião coerente sobre os laços que u n e m os conflitos inevitáveis aos problemas gerais do ensino bilingue. N ã o encontramos e m parte nenhuma u m resumo preciso da política americana sobre este ponto, m a s existem algumas contradições evidentes: na página 178, podemos 1er que os créditos federais servirão apenas para a «integração dos alunos (de língua inglesa e minoritária)», enquanto no pará­grafo seguinte se precisa que este princípio foi expli­citamente suprimido da exposição de princípios revista que figura e m destaque no Bilingual Education Act (Educations Amendments of 1974). U m capítulo dedi­cado à maneira c o m o outros países tratam as suas minorias linguísticas («How other countries deal with their language minorities») contém erros e utiliza fontes de informação medíocres. Para apontar u m exemplo, afirma-se (p. 101) que «o inglês e o fran­cês são as línguas oficiais do Canadá»; e m seguida, u m a nota precisa: «excepto na província do Quebe­que» (p. 119). Esta afirmação não tem e m conta a diferença que existe entre a política do governo fede­ral e m matéria de língua oficial e as políticas das dez províncias. Enquanto numerosas províncias têm u m a

única língua oficial, o inglês, o texto dá a impressão inexacta de que a recente decisão tomada pelo Q u e ­beque de transformar o francês na única língua oficial da província constitui, de algum m o d o , u m a excepção. A s considerações sobre a União Soviética são parti­cularmente fracas e teriam ganho e m se apoiar e m obras de consulta sérias c o m o as de Lewis1 ou Bar-tley. Finalmente, ter-se-iam evitado digressões inúteis, o que teria melhorado a obra.

O autor, u m a professora que conhece b e m as classes bilingues, dá o melhor de si própria nas breves descri­ções das experiências bilingues a que assistiu enquanto redigia o livro. M a s os seus resumos ocasionais sobre a pedagogia e o clima dessas classes perdem-se, por vezes, na massa dos dados; assim, u m capítulo enu­mera, u m a a u m a , todas as respostas a questionários submetidos a funcionários dos departamentos da edu­cação dos cinquenta Estados; trata-se de u m a fonte de informações preciosas que u m a abordagem temá­tica teria permitido explorar melhor. E m suma, este estudo pretende tratar de todas as formas da educação bilingue e bicultural e m cada Estado dos Estados Uni­dos, assim c o m o e m Porto Rico, tarefa que teria posto à prova as capacidades do autor mais informado e mais experimentado. Infelizmente, m e s m o apesar de resumir inúmeros dados, o estudo não proporciona ao leitor u m a visão clara dos factos. O assunto merece ser tratado mais correctamente.

E m França, muitos voluntários dedicam-se desde há anos a ajudar os trabalhadores imigrados, e m especial os que vêm de África e dos países do Mediterrâneo. O Colectivo de Alfabetização representa u m dos gru­pos que criticam do m o d o mais radical a política actual do governo neste domínio. A sua obra colectiva mais recente, L'alphabétisation des travailleurs immigrés, coloca deliberadamente a política e a pedagogia no m e s m o plano. A primeira secção deste livro traça u m quadro ideológico e m que a alfabetização é conside­rada c o m o fazendo parte da luta pela transformação social. Para os membros do Colectivo, só as aborda­gens mais revolucionárias (ou c o m o tal consideradas) são dignas de elogios: os programas de alfabetização funcional da U N E S C O são declaradamente acusados

1. E . Glyn L E W I S , Multilinguism in the Soviet Union, Aspects of language policy and its implementation, Haia e Paris, Mouton, 1972. Ver a comunicação feita por Z . Z A C H A R I E V , Perspectives, vol. IV, n.° 4, 1974, pp. 625 e segs. ( N D L R ) .

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Notas e comunicações

de «reforçar simultaneamente a exploração das clas­ses dominadas pela sua integração no desenvolvi­mento capitalista, e a dominação ideológica das classes favorecidas sobre aquelas» (p. 28); apesar de se apon­tarem alguns elementos positivos da obra de Freire (um «grande passo e m frente» e m comparação c o m os métodos tradicionais), esta também é criticada na medida e m que se limita à «libertação das consciên­cias», sem ligar a alfabetização ao combate ideoló­gico; u m capítulo inteiro critica o que actualmente se pratica e m França. Apenas dois modelos de pro­grama de alfabetização recebem elogios: os da Repú­blica Popular da China e da Guiné-Bissau. A obra mantém, ao longo da sua análise crítica, u m a certa posição ideológica — o que talvez seja u m a quali­dade — m a s a auto-satisfação e o tom de superioridade dos autores correm o risco de desagradar a muitos leitores. N a verdade, é inútil procurar o mínimo traço de humildade ideológica — m e s m o quando o colec­tivo confessa francamente ter cometido erros peda­gógicos no início das suas actividades (ver pp. 93-95).

N o entanto, m e s m o o leitor que não partilhe da posição ideológica dos autores poderá apreciar a pri­meira parte da obra c o m o documento sobre a activi­dade e m curso. A análise dos diversos grupos e inte­resses representados no movimento de alfabetização e m França é profunda, frequentemente correcta (embora polémica) e por vezes muito perspicaz. Ver, por exemplo, a nota dedicada aos «interesses de classe» divergentes dos diversos subgrupos de trabalhadores imigrados (pp. 53-54).

O tom m u d a na segunda secção do livro, onde são expostos métodos de ensino bastante tradicionais mas actualizados. Destina-se aos monitores de alfabetização e apresenta u m esboço das principais teorias linguís­ticas a partir das quais é possível abordar a alfabe­tização dos adultos que falam línguas minoritárias. O s autores rejeitam, juntamente, as abordagens que, no caso dos trabalhadores que não falam francês, começam por lhes ensinar a escrever e a 1er u m a língua que eles não compreendem. Nas primeiras fases da formação dá-se prioridade à expressão oral, quando os adultos estão à altura de falar e compreender o francês, passa-se ao ensino da escrita e da leitura. O s autores sabem, porém, por experiência, que muitos trabalhadores, devido ao condicionamento que sofre­ram nos países de origem (em particular e m África), esperam e exigem a abordagem inversa. N u m caso semelhante, o colectivo sugere o emprego de u m a peda­

gogia apropriada através da qual o animador adapta o curso a essas exigências, levando progressivamente os alunos a admitir a necessidade de adquirir, e m pri­meiro lugar, o domínio da expressão oral. O livro termina c o m u m dossier que propõe mais de quarenta temas de lições, designadas por «contactos».

Assim, esta obra apresenta u m a abordagem inte­grada do ensino aos trabalhadores imigrados — u m a posição política, u m guia teórico de pedagogia lin­guística e u m a série de exemplos de lições. Parece adaptada ao seu objectivo —isto é, à formação de monitores c o m o fim de alfabetizar os trabalhadores imigrados e m França — apesar da sua audiência correr o risco de ser limitada devido à sua visão política. Infelizmente, não fornece dados sobre a eficácia da metodologia proposta, embora assente manifesta­mente na experiência. E m suma, este livro está redigido c o m coerência, rigor e clareza.

A última obra escolhida, o Anuário da Sociedade Canadiana para o estudo da educação, Le bilinguisme dans l'éducation canadienne: la recherche et les problè­mes, apresenta u m panorama dos problemas do bilin­guismo vistos por especialistas das investigações sobre a educação. O aspecto mais original desta colectânea de artigos reside no interesse que concede aos pro­blemas que se põem fora do Quebeque e que rara­mente são focados nas publicações; estes problemas dizem respeito aos índios e aos Esquimós (Inuit) ori­ginários da América do Norte, pois as minorias fran­cófonas importantes não vivem no Quebeque, e aos grandes grupos não ingleses e não franceses (em espe-dial ucranianos) das províncias da planície. Além disso, u m artigo trata da elaboração de programas para o ensino do francês c o m ajuda das técnicas de «imersão precoce»: as crianças anglófonas são ins­truídas exclusivamente e m francês na escola infantil e na primeira ou nas duas primeiras classes da escola primária, e m seguida, o inglês é progressivamente intro­duzido nas outras classes.

Este ponto interessa aos leitores que desejam c o m ­preender os problemas do Canadá no seu conjunto, m a s decepciona os que estão particularmente desejosos de conhecer melhor os problemas actuais do Quebeque a relação entre a língua e as posições políticas nesta província. Além disso, o leitor não canadiano talvez se sinta desorientado pela complexidade das questões jurídicas e constitucionais subjacentes aos artigos e que os autores supõem conhecidas (excepto no que respeita à educação dos índios e dos Esquimós).

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Notas e comunicações

Apesar dos problemas do Quebeque não serem examinados, o que provoca u m sério desequilíbrio, a obra fornece u m precioso contributo na medida e m que nos revela u m Canadá cuja diversidade lin­guística e cultural parece superior à que apresentam, e m geral, as obras de consulta disponíveis. Vários autores examinam as incidências politicas, sociais e pedagógicas de políticas susceptíveis de ultrapassar a dicotomia clássica inglês-francês e de permitir o uso de outras línguas nas escolas. São, por vezes, franca­mente polémicos e, sem excepção, abordam o contexto político do ensino bilingue. N a verdade, os especia­listas da educação ou da linguística observarão que alguns artigos se estendem mais sobre os problemas políticos do que sobre os problemas de investigação. Apenas u m artigo constitui u m amplo balanço, apoiado n u m a bibliografia completa.

U m dos temas de investigação tratados merece, muito particularmente, ser mencionado como con­clusão desta comunicação: os autores procuram, por repetidas vezes, referir-se a u m a importante contra­dição que sobressai dos diversos trabalhos. E m vários pontos do Canadá efectuaram-se estudos rigorosos para avaliar os efeitos das técnicas de «imersão pre­coce»; a maior parte das investigações conhecidas con­firmam que estes programas são muito eficazes na aprendizagem do francês e que, além disso, não pro­vocam efeitos secundários prejudiciais ao inglês dos alunos interessados. N a verdade, os sucessos repetidos deste programa piloto levaram muitos pais a mudar de atitude a este respeito e incitaram os professores a rever a concepção tradicional que consiste e m adiar o estudo de u m a segunda língua até à escola secun­dária ou, pelo menos, até ao fim da escola primária. As investigações e m que esta tendência se apoia são

C o m a expansão da escolarização e m quase todos os países do mundo, expansão explicada ou justificada por objectivos políticos, era natural observar u m a inflação dos diplomas e u m ajustamento crescente de pedidos do mercado do trabalho para os diferentes empregos. Para postos de trabalho que não requeriam, há alguns decénios, nenhum diploma, os empresários, perante a abundância de diplomas, preferem elevar o nível das qualificações exigidas. Por seu lado, os

fiáveis e, no entanto, contradizem u m conjunto muito mais extenso de investigações sobre os inconvenientes sociais deste método, segundo os quais, como foi dito no início desta comunicação, o ensino de u m a segunda língua é muito prejudicial aos alunos, crian­ças ou adultos. Os diferentes autores apelam para fac­tores não linguísticos para explicar esta aparente contradição: o efeito produzido pelo emprego de u m a segunda língua dependeria de factores e de atitudes contextuais, e não da própria linguagem. As crianças pertencentes a u m grupo social dominante (do ponto de vista económico, político e/ou cultural) parecem tirar proveito desta fórmula, enquanto resultados exactamente opostos se observem entre as que fazem parte de grupos sociais dependentes — daí a aliena­ção cultural característica das minorias socialmente desfavorecidas (por exemplo, a minoria canadiana francesa fora do Quebeque, os índios, os imigran­tes, etc.). Estes dados, retirados da experiência cana­diana, exigem u m a verificação cuidadosa a partir de outras fontes de informação: assim, e m certos novos Estados Africanos, poderá a maioria da população representar u m grupo dependente quando é obrigada a superar o obstáculo criado pelo ensino dispensado na língua da antiga potência colonizadora? M e s m o ao nível da pedagogia, é evidente que a questão do bilinguismo na educação não pode ser tratada sem ter e m conta os problemas gerais das relações sociais e políticas.

S T A C Y C H U R C H I L L

Professor associado e m Ontario Institute for Studies in Education (OISE) e e m

School Graduate Studies da Universidade de Toronto (Canadá).

candidatos ao trabalho verificam que o acesso ao emprego necessita cada vez mais de «títulos» confe­ridos pelos estudos. A conjugação destas evoluções, favorece o aparecimento e a generalização da «doença dos diplomas» nos países desenvolvidos e nos que estão e m vias de o ser. Foi a esta conclusão que chegou a maior parte dos analistas das tendências da escolari­zação no mundo nos últimos dez anos. Nesta pers­pectiva, a que reflexão poderia conduzir-nos a obra

Ronald D O R E . The diploma disease: education, qualification and development. London, Allen and Unwin (Unwin Education Books), 1976.

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Notas e comunicações

de u m especialista eminente c o m o o professor Ronald Dore, que consagrou longos anos ao estudo destes problemas e cuja rica experiência abrange u m a grande variedade de países?

E m primeiro lugar, n u m esforço de rigor, Dore rejeita as explicações de tipo mecanista e a-histórico. Depois de apresentar, resumidamente, o problema da inflação dos diplomas no seu contexto específico (desde o fim do período colonial), o autor mostra, através de quatro estudos de casos referentes a países tão diferentes c o m o o Reino Unido, o Japão, o Sri Lanka e o Quénia, que o papel da educação e o signi­ficado do diploma estiveram intimamente ligados às condições históricas do desenvolvimento económico e escolar destes países, chegando, assim, à sua tese do «efeito do desenvolvimento tardio» (the late develop­ment effect). O sistema de educação japonês desen-volveu-se de maneira muito diferente do do Reino Unido; algumas destas diferenças devem-se às tradi­ções culturais e às estruturas sociais dos dois países; mas , para a tese do autor, as mais pertinentes devem-se ao facto do Japão ter iniciado a sua industrialização mais tarde do que o Reino Unido. O caso do Sri Lanka talvez seja mais complexo, sobretudo por causa dos factores linguísticos que atrasaram a «digestão» do conhecimento ocidental; porém, o atraso no início da industrialização provocou u m efeito ainda mais dramático sobre a inflação dos diplomas e suas uti­lizações na selecção dos empregos. O Quénia possui u m sistema mais jovem e mais complexo do que o Sri Lanka; «o efeito do desenvolvimento tardio» é ainda mais espectacular. Dore conclui assim o seu diagnós­tico: «Quanto mais recente é o processo de desenvolvi­mento.. . , mais ampla será a utilização dos diplomas para seleccionar os empregos, mais rápida será a taxa de inflação das qualificações e a educação será mais fortemente dominada pelos exames, c o m prejuízo dos seus objectivos fundamentais».

A segunda parte da obra intitulada «a sabedoria convencional» é dedicada a u m a análise crítica das soluções e das teorias apresentadas pelos especialistas dos problemas de educação e a u m a enumeração das abordagens convencionais para enfrentar o problema da inflação dos diplomas, particularmente nos países e m que o desejo de reformas da educação é muito intenso, c o m o na República Unida da Tanzânia, Cuba e Sri Lanka. Dore mostra que estas reformas tinham poucas possibilidades de sucesso. Sendo assim, o discurso modifica-se naturalmente, alarga-se para

abranger o que nos parece essencial na problemática da obra: o papel da educação no sistema social e a fragilidade de toda a reflexão sobre a «doença dos diplomas» que não tenha e m conta a ideologia e as opções sociopolíticas dos países e m causa. Sob este aspecto, o autor estabeleceu u m contraste nítido e lúcido entre os objectivos apontados e as medidas concretas tomadas e não se deixou influenciar por conclusões superficiais elogiosas para as opções rei­vindicadas pelos países estudados. A s páginas sobre a República Unida da Tanzânia são particularmente pertinentes sob este ponto de vista.

C o m excepção do capítulo xn—digressão tanto mais supérflua que o autor já se referiu brilhantemente ao dossier da descolarização n u m a nota actualmente clássica «False prophets: The Cuernavaca critique of school» (IDS, Discussion paper n.° 12) — a terceira parte da obra trata das soluções «radicais»: retirar inteiramente à escola a sua função de selecção social — por meio de testes de aptidão e não por meio de testes de resultados pedagógicos; «aprendizagem durante a carreira e não no início da carreira, educação e for­mação». A experiência chinesa é apontada c o m o u m exemplo extremo deste tipo de estratégia. A s implica­ções éticas e políticas de soluções radicais; o seu signi­ficado e m termos de sistemas de valor para a sociedade (e, e m especial, o significado do esforço e da justiça) as perspectivas do ponto de vista da igualdade e da democracia, etc., constituem outros tantos assuntos abordados nos últimos capítulos.

Chegado ao fim desta obra fortemente documentada e poderosamente construída, o leitor poderá verificar: a) a riqueza e a necessidade da introdução das dimen­sões históricas e m toda a análise dos problemas da educação; b) o mérito da multidisciplinaridade da abordagem de Ronald Dore que não hesita e m apelar paralelamente e, por vezes, contraditoriamente, para a psicologia, a sociologia, a economia, a educação--pedagogia e a ciência política para interpretar as expe­riências estudadas; c) que é inútil propor reformas de educação, ou apreciar o realismo de toda a solução — para o problema da inflação dos diplomas, por exemplo — sem referência ao contexto sociopolítico, aos objectivos pretendidos, aos meios disponíveis e às medidas tomadas pelos países para os atingir. Por todas estas razões, não duvidamos de que esta obra contribuirá útil e significativamente para o progresso das ciências da educação e de que existem grandes vantagens na sua leitura.

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N o entanto — e talvez devido à qualidade do livro — não podemos deixar de exprimir u m certo número de críticas, certamente inspiradas e m algumas discor­dâncias de fundo quanto às conclusões do autor. Apesar das precauções tomadas e das referências aos contextos socioistóricos, a problemática da desi­gualdade e da democracia é, na verdade, apresentada n u m a óptica que podemos apelidar de «funcionalista» e de «determinista», e não n u m a óptica «dialéctica». Por outras palavras, Dore parece considerar a desi­gualdade como u m a realidade quase inevitável e m todo o sistema social — o mundo confuciano é utó­pico—, resultante ou sendo determinada pelas dife­renças de aptidões e de perfis entre indivíduos; ela é funcional, pois é compatível com a gestão de toda a sociedade que é ordenada segundo as responsabili­dades e as qualidades dos diferentes grupos sociais; o objectivo (para quem?) consiste e m torná-la aceitá­vel, minimizando-a; trata-se, portanto, de ter espe­rança e de acreditar que o sistema social possa natu­ralmente evoluir para u m mundo menos desigual e mais democrático, desejando u m a modificação pro­gressiva das atitudes e das mentalidades que contri­buem para esta situação. O que leva a admitir, por outro lado, que, através de medidas apropriadas — de estímulo ou de orientação dos comportamen­tos — seja possível eliminar a estratificação da socie­dade e m grupos fundamentalmente e m situações de conflito. A óptica «dialéctica» admite que as relações entre grupos moldam e determinam a existência dos grupos e são, e m última análise, mais essenciais; a transformação das relações entre grupos constitui

Concordando total ou parcialmente ou discordando inteiramente das ousadas propostas formuladas pelo autor para melhorar as escolas públicas americanas, esta obra parecerá sempre estimulante, por vezes provocadora e irritante, e os especialistas da educação — incluindo os que partilham das tendências refor­madoras do professor Bowers— encontrarão nela muitos motivos de suprpresa, para não dizer mais.

O autor menciona os estudos feitos por Paulo Freire no Brasil, mas rejeita e m bloco as ideias expres-

u m objectivo para as categorias dominadas e é rejei­tado pelas categorias dominantes. Só o combate pela transformação pode gerar a alteração das relações sociais e, portanto, modificar as realidades da socie­dade desigual; combate de natureza dialéctica e prá­tica, evidentemente. Nesta perspectiva, as propostas — que Dore considera modestas — contidas no capí­tulo xiii, só são legítimas e realistas se forem criadas pelos grupos dominados e pressupõem acções e m profundidade para modificar as relações sociais. A origem ou a paternidade das propostas são tão importantes, ou mais, do que os conteúdos. U m a outra característica da óptica funcionalista e determinista é, no caso presente, u m a confusão entre a análise sociopolítica da problemática da desigualdade e a sua interpretação redutora e m termos psicológicos e individualistas. Não é por acaso que Dore, nos últimos parágrafos da sua obra, se baseia na diversidade de talentos dos indivíduos e das necessidades sociais para exprimir algumas dúvidas sobre o futuro, ape­sar do seu optimismo. Enquanto nos recusarmos a considerar que a problemática da desigualdade é tam­bém, alguns dizem sobretudo, de natureza dialéctica e essencialmente de poder entre grupos — seremos conduzidos à resignação que Dore tem o mérito de rejeitar, ou à especulação de que a história acabará por transformar o h o m e m — diploducus — da socie­dade desigual, no h o m e m confuciano da sociedade (sem classes?).

J A C Q U E S H A L L A K

instituto Internacional de Planificação da Educação.

sas e m Pedagogia dos Oprimidos com o pretexto dema­siado sumário de que não podem aplicar-se a u m a «tecnocracia como a nossa». Diga-se de passagem que, apesar do termo «tecnocracia» ser empregue muitas vezes para qualificar e criticar a sociedade americana contemporânea, nunca é definido, o m e s m o suce­dendo com o sentido atribuído pelo professor Bowers às noções capitais de «cultura» e de «alfabetismo».

Muitos leitores sentir-se-ão desanimados pela obs­curidade do estilo e pelo carácter famoso e puramente

C . A . B O W E R S , Cultural literacy for freedom: an existential perspective on teaching, curriculum and school policy, 1974, 184 pp., Elan Publishers, P. O . Box 5442, Eugene, Oregon, Estados Unidos da América.

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Notas e comunicações

palavroso de certas passagens, c o m o , por exemplo, a seguinte (escolhida entre muitas outras): «Muitos reforços utilizados na escola estão ligados à cultura baseados no consumo que, segundo alguns críticos da sociedade, está na própria origem das perturbações do comportamento que tanto inquietam os que estão empenhados e m o modificar».

Apesar destas deficiências, a orientação das refor­m a s do ensino propostas pelo autor é sedutora. C o m a ajuda de argumentos iconoclastas, mas sólidos, lança ataque sobre ataque contra certas inovações e m voga que, e m sua opinião — tal c o m o na minha — correm o risco de reduzir estas actividades humanas que são o ensino e a aprendizagem a u m a tecnologia de autómatos. Trata-se, por exemplo, da teoria e da prática do «condicionamento operante» de B . F . Skin­ner (as crianças não são cobaias); do «sistema dos prémios de ensino» (truque que permite iludir a ver­dadeira questão, que consiste e m determinar «como se devem formar os jovens para os preparar para u m a vida que tenha sentido»); e do ensino «competencia-lista» (que é incompatível c o m u m «processo de investigação autêntico que implica que as respostas não sejam conhecidas antecipadamente»).

O autor sublinha que, e m matéria de inovação — m e s m o não tecnocrática— os entusiasmos não podem nunca contribuir para o melhoramento do ensino. «As reformas pontuais perdem muitas vezes a sua eficácia devido aos elementos não modificados do sistema educativo». Aplicando a sua própria teoria, o professor Bowers preconiza portanto — e é o que constitui a parte essencial da sua obra — nada mais do que u m a reforma global c o m múltiplas repercussões das quais seria difícil apresentar u m a enumeração rápida e completa sobre todos os aspectos do sistema educativo.

Começa por indicar que o ensino público americano representa «para além da família ... a tentativa mais sistemática no sentido de socializar a juventude adap-tando-a à concepção dominante da realidade, tal c o m o é compreendida pelos adultos da classe média». Esta concepção é feita de «postulados culturais, de explicações e de normas consagradas» — referindo-se às «características actuais da sociedade e do ambiente».

C o m o poderemos avaliar esta acção «socializante» da educação?

« A escola fornece explicações realistas, m a s não podemos afirmar que não induza as crianças e m erro ao perpetuar mitos disfuncionais. M a s , se existe u m a

diferença sensível entre o que é ensinado e as reali­dades da existência, então, seremos obrigados a renun­ciar às nossas ilusões a respeito da escola... e a pro­curar transformar radicalmente o sistema de ensino».

N o capítulo intitulado «Realidades sociais e mitos educativos» — que é, talvez, o melhor do livro — o professor Bowers critica o sistema escolar actual e aponta-lhe várias lacunas. Baseando-se e m citações extraídas de oito manuais e guias pedagógicos conclui que, e m geral: « U m a impressão de irrealismo emana da maior parte das informações fornecidas nas esco­las primárias a respeito da sociedade. A s explicações relativas ao trabalho, à tecnologia, ao progresso e à comunidade reflectem mitos tradicionais atávicos que tinham sentido no início do processo de industrialia-lização, m a s que estão actualmente inteiramente ultra­passados c o m o fontes de compreensão ou de percep­ção da realidade».

A solução de substituição proposta consiste e m criar u m «meio protegido e m que os alunos possam estudar livremente a natureza e as implicações da sua própria cultura». Mais precisamente: «Podemos considerar que a escola assegura ao aluno u m moratória psicos­social» estimulando-o a avaliar a sua cultura sem recear u m a punição... se não chegar às conclusões ratificadas pela sociedade dominante».

U m a reforma deste tipo teria, b e m entendido, inci­dências múltiplas e complexas do ponto de vista da política e da logística da educação. O professor Bowers propõe-se inscrever nos programas, a título de exem­plo, duas unidades de estudo concebidas segundo o sistema da «moratória psicossocial», u m a sobre a tecnologia e outra sobre o tempo. Sublinha ainda a necessidade de recrutar e de formar novos tipos de professores («caracterizados por u m alto grau de tole­rância e m relação à complexidade, u m a imagem de si positiva, ausência de ideias preconcebidas... e gosto de participar c o m outros e m actividades criativas»), assim c o m o u m maior número de administradores de espírito aberto.

O livro evita as duas armadilhas e m que caem actualmente muitos dos estudos teóricos americanos sobre a reforma do ensino; não se inspira n u m futu­rismo quimérico, n e m e m entusiasmos irresponsáveis. M a s deixa certamente subsistir no espírito dos leito­res u m certo número de dúvidas — e m especial, na minha opinião, as duas seguintes:

E m primeiro lugar, e m que medida a noção de «moratória psicossocial» é realista de u m ponto de

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Notas e comunicações

vista pedagógico? A escola nova seria u m «meio pro­tegido», m a s não u m «claustro», afirma o professor Bowers. D e facto, os programas de estudos que pro­põe a título de exemplo atribuem u m a importância considerável à observação e experiência directas da sociedade local. M a s , será possível mergulhar os alu­nos na realidade e simultaneamente protegê-los con­tra esta m e s m a realidade? conceber u m a instituição que seja torre de marfim e, ao m e s m o tempo, «uni­versidade aberta» ao nível escolar? estar na sociedade e permanecer autónomo?

E m segundo lugar, graças a que operação política oculta conseguiríamos criar e multiplicar escolas capazes de assegurar u m a «moratória psicossocial»? N a sua conclusão, intitulada «Que poderemos fazer?», o professor Bowers propõe alguns elementos de u m a estratégia: m a s as suas sugestões não são convin­centes, pois não aponta nenhuma razão para aqueles que estão à altura de fazer o que «poderia ser feito» sejam efectivamente tentados a fazê-lo. N u m capí­tulo anterior recomenda que se renuncie à concepção

tradicional segundo a qual a responsabilidade do ensino compete à comunidade local, para adoptar u m sistema de autogestão da escola pelos professores e os alunos mais velhos. M a s , q u e m tomará a iniciativa de u m a reforma tão ousada? C o m o parece evidente, não será a comunidade local que, na opinião do autor, desconfia, por natureza, de toda a transformação radical do ensino opondo-se-lhe necessariamente. « A discussão de problemas sociais de fundo, ou sim­plesmente u m a descrição precisa de problemas sociais, será geralmente considerada u m a ameaça por certos indivíduos ou grupos sociais que se lamentarão de que o dinheiro dos contribuintes sirva para incentivar a subversão na escola».

É este o «calcanhar de Aquiles» da atraente pro­posta do professor Bowers: trata-se, de facto, de «subversão».

A R T H U R GILLETTE

Departamento da juventude, Unesco

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