Thomas Mann - O Cisne Negro

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    O Cisne Negro

    Thomas Mann

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    I

    No decorrer da terceira dcada do nosso sculo, vivia em Dusseldorf-sobre-o-Reno,seno com luxo, pelo menos com abastana, acompanhada de sua filha Ana e de seu filho

    Eduardo, a senhora Roslia von Tmmler, viva h mais de dez anos. Seu marido, o tenente-coronel von Tmmler, morrera no comeo da guerra, no em pleno combate, mas muitoestupidamente de um acidente de automvel, o que contudo autorizava a verso de que tinhatombado no campo da honra.

    Golpe duro, aceite com uma patritica resignao por sua mulher , que mal atingira osquarenta anos, ela ficara doravante privada do pai dos seus filhos e, pelo que lhe dizia respeito,dum esposo jovial, cujos frequentes desvios da vereda da virtude conjugal eram apenas oresultado dum excesso de vitalidade.

    De raa e lngua renana, Roslia tinha passado os vinte anos do seu casamento naindustriosa cidade de Duisburgo, a cuja guarnio o senhor de von Tmmler pertencia. Depoisda perda do marido, emigrara para Dusseldorf, com sua filha, que atingira os dezoito anos, e o

    filhito, doze anos mais novo, um pouco por causa dos belos parques que caracterizam esta cidade(a senhora de von Tmmler era fervorosa amiga da Natureza), um pouco porque Ana, pessoasria, mostrava disposies para a pintura e desejava frequentar a clebre Academia das Belas-

    Artes. Havia dez anos que a pequena famlia ocupava, numa ruazinha dum bairro residencial,ladeada de tlias e que tinha o nome de Pter van Cornlius, uma casa rodeada por um jardim, demobilirio um pouco antiquado mas confortvel, e arranjada segundo o estilo em voga na pocado casamento de Roslia. A sua porta hospitaleira abria-se muitas vezes para um crculo restritode parentes e de amigos, entre os quais figuravam professores da Academia e da Faculdade deMedicina, um ou dois casais pertencendo aos meios industriais, que se reuniam em festazinhasnoturnas duma animao de bom tom que, segundo os costumes locais, o vinho excitavaligeiramente.

    A senhora de von Tmmler era de humor socivel. Gostava de sair e, no limite das suaspossibilidades, de ter mesa posta para os seus amigos. O seu carter simples e jovial, oentusiasmo que se exprimia pelo seu amor Natureza, provocavam a simpatia de todos. Sem seralta, de busto bem conservado, tinha uma cabeleira abundante e ondulada, com numerososcabelos grisalhos, e mos finas em que a idade se acusava porque os anos haviam mosqueado ascostas das mos de numerosas manchas semelhantes a sardas, desgraa contra a qual ainda no seencontrou paliativo. Tinha uma aparncia juvenil, graas a um par de vivos e magnficos olhoscastanhos, exatamente da cor das castanhas descortiadas, iluminando um rosto cheio de encantofeminino e dos traos mais agradveis. O nariz mostrava uma tendenciazinha para corar, que semanifestava particularmente na vida de sociedade, no entusiasmo da conversa.

    Procurava dar remdio a isso com um bocadinho de p de arroz. No que fazia mal, alis,

    porque, na opinio de todos, isso ficava-lhe a matar.Nascida na Primavera, e filha do ms de Maio, Roslia festejara o quinquagsimoaniversrio com seus filhos e dez ou doze amigos da casa, damas e cavalheiros, em redor dumamesa juncada de flores, no jardim duma pousada, s portas da cidade, iluminado por lampiesmulticolores, entre o choque dos copos e as sades erguidas ora a srio, ora num tom jocoso. Elaassociara-se alegria geral, no sem algum esforo. Com efeito, havia j bastante tempo, eprecisamente nessa noite, que a sua sade sofria perturbaes orgnicas inerentes sua idade adiminuio e a extino da sua feminilidade fsica que se realizava, apesar dos sobressaltos deresistncia psquica. Da resultavam angstias, agitaes do corao, dores de cabea, dias demelancolia e uma irritabilidade que nessa noite de festa lhe faziam parecer duma insuportvelinpcia os agradveis discursos que alguns senhores proferiam em sua honra. Tinha trocado a

    esse respeito olhares um pouco desesperados com sua filha; porque sabia que Ana no tinhanecessidade de se encontrar em disposies particulares de impacincia para julgar absurdo esse

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    gnero de humor que se alimentava com os vapores do lcool. Vivia numa cordial intimidade com essa filha que, sensivelmente mais velha que seu

    irmo, se tornara para ela uma amiga a quem no ocultava as aflies do seu perodo transitrio.Ana, presentemente com vinte e nove anos e, em breve, com trinta, continuava solteira, o que oegosmo ingnuo de Roslia no via com maus olhos. Preferia guard-la como companheira, na

    sua casa e na sua vida, de preferncia a ced-la a um homem. De estatura mais elevada que suame, a menina von Tmmler tinha os mesmos olhos castanhos, que, contudo, no eram osmesmos, porque lhes faltava a vivacidade ingnua das pupilas maternais e porque o seu olharrevelava uma frieza refletida. Nascera com um p boto que, operado na infncia sem sucessoduradouro, a afastara da dana e do desporto, em suma, de qualquer participao na vida dajuventude. Uma inteligncia natural pouco comum, fortificada por esta deficincia, tinha vindosuprir as alegrias que lhe eram recusadas.

    Acabara com facilidade, no recebendo mais que duas ou trs lies particulares por dia os seus estudos no liceu e fizera o bacharelato. Depois, sem procurar aprofundar mais nenhumramo do saber, consagrara-se arte das formas, primeiro plstica, depois pintura,manifestando, j como aluna, uma tendncia altamente cerebral. Desdenhosa duma simples

    imitao da Natureza, transfigurava as impresses sensoriais num simbolismo rigorosamenteintelectual e abstrato e, muitas vezes, num cubismo matemtico. A senhora de von Tmmlercontemplava com respeito entristecido os quadros de sua filha, onde o desenvolvimento levadoao seu extremo limite se aliava ao primitivo, o decorativo ao profundo, e um gosto refinado dascombinaes da cor, ascese da forma.

    notvel, muito notvel, querida filha dizia ela. O professor Zumsteg vai apreci-los. Ele encorajou a tua maneira e tem os olhos e a compreenso que este gnero requer.Porque so necessrios olhos e compreenso. Como chamas tu a isto?

    rvores ao vento da noite. Ora a est uma coisa que nos esclarece um pouco sobre as tuas intenes. Estes cones

    e estes crculos sobre um fundo cinzento-amarelo querem figurar rvores, e esta linha singular

    que sobe e se desenrola em espiral o vento da noite. Interessante, Ana, interessante. Mas porDeus, minha filha, que fazes tu da amvel Natureza? Se ao menos por uma vez, dotada como s,consentisses em dirigir-te nossa sensibilidade e lhe oferecesses qualquer coisa que enternecesseo corao: uma bela Natureza morta, flores, um ramo fresco de lilases, to semelhantes que sesupusesse respirar o seu delicioso perfume, e ao lado do vaso algumas graciosas figurinhas deporcelana de Meissen, um cavalheiro que envia um beijo a uma dama, e tudo isso refletido nasuperfcie da mesa luzidia e polida...

    Para, para, mam! Tu tens verdadeiramente uma fantasia transbordante! Mas,presentemente, no possvel pintar dessa maneira!

    Ana: no vais tentar persuadir-me que, com o teu talento, no poderias pintar qualquercoisa desse gnero que reconforte o corao...

    No percebeste as minhas palavras, mam. No se trata de saber se eu poderia. No sepode. O estado atual da poca e da arte no o permite j. Tanto pior para a poca e para a arte. No, perdo, minha filha, no era isso que eu

    queria dizer. Se o progresso da vida que se ope a tal, os desgostos no tm razo de ser. Pelocontrrio, seria triste ficar aqum. Compreendo perfeitamente. E compreendo tambm que preciso gnio para imaginar uma linha to sugestiva como essa linha que traaste. A mim, ela nome diz nada, mas percebo nitidamente que muito sugestiva.

    Ana afastou dela, para beijar sua me, a paleta e o pincel mido que tinha na mo. ERoslia beijou-a tambm, feliz na sua alma pelo fato da filha, graas a uma atividade, certo margem do mundo, e que lhe parecia asfixiante, mas que era contudo artesanal e prtica,encontrar no seu gabo de pintora uma consolao e uma compensao para muitas renncias.

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    II

    Quanto um andar claudicante pode prejudicar o interesse sensual que a vista de umarapariga provoca no outro sexo, aprendeu-o a menina von Tmmler muito cedo e sua custa,tendo feito a esse respeito uma couraa de orgulho. E como acontece em semelhantes casos,

    quando, a despeito da sua enfermidade, a inclinao dum jovem se dirigira para ela, esse orgulhotinha desencorajado e esmagado no germe, por uma incredulidade friamente retrtil, osentimento nascente.

    Pouco depois da sua mudana de residncia, tinha ela amado uma vez e sentira umavergonha dolorosa do seu amor, que se dirigia para a beleza fsica de um rapaz. Era um qumicodesejoso de extrair dinheiro da sua cincia o mais prontamente possvel. Apenas se doutorara,obtivera logo, numa fbrica de produtos qumicos de Dusseldorf, uma situao muito bemretribuda.

    O seu esplendor viril e moreno, as maneiras abertas (que lhe tinham feito ganhar mesmoas simpatias masculinas), juntas a tantas capacidades, valiam-lhe o louco entusiasmo de todas asraparigas e mulheres da sociedade, patinhas e peruas que o erguiam at s nuvens. Ana conhecera

    ento o envilecedor sofrimento de suspirar pelo objeto dos suspiros de todas e de se encontrarassim, por via dos seus sentidos, condenada a partilhar um sentimento coletivo. Em voprocurara na profundidade do seu amor uma razo para conservar aos prprios olhos o respeitopor si mesma.

    Alm disso, o doutor Brnner (assim se chamava o prestigioso jovem), precisamenteporque se sabia um interesseiro prtico, sentia uma certa inclinao compensadora para o que eramais elevado e original. Durante um certo tempo, ocupou-se da menina von Tmmler, sem fazermistrio disso. Nas reunies da sociedade falava com ela de arte e literatura e murmurava-lhe,com a sua voz embaidora, reflexes irnicas ou inferiorizantes sobre esta ou aquela das suasadmiradoras, parecendo querer concluir com ela uma aliana contra a mediocridade daquelascujos importunos desejos no tinham o afinamento que confere uma enfermidade. No tinha o ar

    de suspeitar do que ela pudesse sentir, nem da supliciante felicidade que lhe dava, fazendo poucodas outras mulheres, e parecia simplesmente procurar encontrar no inteligente convvio de Anaum refgio contra os aborrecimentos da perseguio amorosa de que era vtima. Pareciainteressado em merecer a sua estima, marcando precisamente que lhe concedia um alto preo.Para Ana, a tentao de lha conceder tinha sido grande e profunda, embora soubesse que, nofundo, pretendia apenas embelezar a fraqueza provocada por esta seduo masculina. Asassiduidades do doutor Brnner, que lhe provocavam um doce pavor, tinham comeado a tomaro ar duma verdadeira corte amorosa, duma escolha e dum desejo de casamento, e Ana teve deconfessar a si mesma que o desposaria irremediavelmente se a questo tivesse sido posta. Mas aquesto nunca se ps. As aspiraes do rapaz a um plano superior no se elevaram ao ponto depassar por cima duma deficincia corporal e dum dote modesto.

    No tardara em afastar-se dela para se casar com a filha dum rico industrial de Bochum,tendo-se instalado na cidade de sua esposa e ingressado na fbrica de produtos qumicos dosogro, para consternao do mundo feminino de Dusseldorf e consolao de Ana.

    Roslia conhecia esta dolorosa experincia de sua filha, e dela teria sido informada mesmose, nessa altura, Ana no tivesse vindo um dia, num acesso de irresistvel efuso, verter no seuseio lgrimas amargas sobre o que chamava a sua vergonha. A senhora von Tmmler, emborano fosse muito inteligente, tinha um faro especial, sem malquerena, puramente simptico, paratudo o que se ligava com a vida feminina, quer a vida psquica, quer a vida fsica, isto , para tudoo que a Natureza imps mulher. De forma que um acontecimento ou um estado que dissesserespeito a esta esfera e tivesse ocorrido entre os que a rodeavam, no lhe escapava facilmente.Por um vago sorriso aparentemente despercebido dos outros, um afogueamento ou uma simples

    crepitao dos olhos, descobria que tal rapariga estava apaixonada por tal rapaz, dando parte dassuas observaes filha e confidente, que no dera conta de nada e que, alis, no se preocupava

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    com isso. Por instinto, e para alimentar o seu prazer ou a sua compaixo, descobria se umamulher encontrava ou no satisfaes no casamento. Diagnosticava infalivelmente uma gravidezno seu primeiro estdio e, porque neste caso se tratava, sem dvida, duma situao rejubilante enatural, punha-se a algaraviar, e dizia: Passa-se qualquer coisa....

    Alegrava-se pelo fato de Ana ajudar o jovem irmo, aluno do liceu, nos seus estudos,

    porque, graas a uma astcia psicolgica, to ingnua como pertinente, ela adivinhava a satisfaoque esse servio duma ordem superior, prestado ao sexo masculino, concedia consciente ouinconscientemente rapariga desdenhada.

    No se poderia dizer que sentia um interesse particular pelo filho, um rapago alto para asua idade. Parecido com o defunto pai e, alm disso, pouco inclinado para as humanidades,sonhava de preferncia construir pontes e caladas e tornar-se engenheiro. Uma benevolnciamorna e de pura forma que a fazia interessar-se por ele superficialmente, era tudo quanto ela lhetestemunhava. Em compensao, estava muito ligada a sua filha, a sua nica amiga verdadeira.Dado o carter fechado de Ana, podia dizer-se que a confiana entre elas era unilateral, se a meno conhecesse a vida psquica da filha enferma, a altiva e amarga resignao da sua alma, e notivesse ido buscar a esse conhecimento o direito e o dever de se abrir igualmente com ela sem

    reservas.Aceitava, alm disso, sem susceptibilidade e com bom humor, um certo sorriso cheio deternos cuidados, embora melancolicamente trocista e um pouco penalizado, da amiga filial.Benevolente, deixava-se de boa vontade tratar com benevolncia, pronta a rir-se da sua prpriaingenuidade de corao, que considerava, alis, como uma norma feliz e equitativa; de forma quese ria ao mesmo tempo de si mesma e do rosto entediado de Ana. Acontecia muitas vezes assim,sobretudo quando soltava as rdeas sua paixo pela Natureza com a qual tentava solidarizar ajovem cerebral. impossvel dizer at que ponto amava a Primavera, a sua estao, aquela emque tinha nascido e que, afirmava amide, lhe tinha trazido sempre, a ela pessoalmente, umsecreto afluxo de sade e da alegria de viver. O seu rosto transfigurava-se perante os apelosamorosos dos pssaros, no ar morno. Os primeiros aafres e narcisos do jardim, o brotar e a

    magnificncia dos jacintos e tulipas nos canteiros em volta da casa, alegravam a excelente mulherat s lgrimas. As amveis violetas nas veredas do campo, as moitas de giestas estreladas deamarelo, os espinheiros vermelhos e brancos, o lils, os castanheiros da ndia, com as suascandeias rosadas e brancas tudo isso queria que a filha admirasse com ela, e com ela partilhasseo seu encantamento. Roslia ia busc-la sala virada ao norte, que lhe servia de ateli, arrancava-as suas abstraes profissionais e Ana, com um sorriso amvel, tirava a blusa e acompanhava ame durante horas. Ana era muito boa andarilha e se, quando estavam outras pessoas,dissimulava o seu defeito na perna, evitando tanto quanto lhe era possvel mexer-se, emcompensao, quando se sentia livre para pisar o solo sua vontade, caminhava com granderesistncia.

    Que estao encantadora essa a da florao das rvores, a da poca em que se poetizavam

    as estradas e em que a paisagem familiar que servia de adorno aos seus passeios, se enchia dumencanto branco e rosado, prometedor de frutos! Os gomos floridos dos altos choupos prateadosque orlavam o curso de gua em cujas margens passeavam muitas vezes, espalhavam sobre elasuma poeira nevada que volteava com o vento e juncava o solo. E Roslia, a quem isso tambmencantava, sabia bastante botnica para poder ensinar a sua filha que o choupo uma espciediica de flores unissexuadas, masculinas ou femininas. Falava-lhe igualmente da polinizao pelo

    vento, isto , do servio de amor que o zfiro presta aos filhos dos prados, transportandocomplacentemente o plen at ao casto estigma feminino que o esperava gnero de fecundaoque, entre todos, Roslia julgava encantador.

    A poca das rosas enchia-a de alegria. No seu jardim, enleava a rainha das flores contraSuportes, preservava-a cuidadosamente, com meios apropriados, da voracidade das lagartas, e

    durante todo o tempo que durava a sua glria viam-se sobre as cmodas e veladores do toucador,ramos de rosas frescas, em boto, meio abertas ou em plena florao, sobretudo vermelhas (ela

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    no gostava de rosas brancas), cultivadas por ela ou que lhe eram trazidas por visitantes queconheciam a sua paixo. Podia ficar muito tempo com os olhos fechados, o rosto mergulhadonum desses ramos, e quando o levantava afirmava que era o perfume dos deuses. O narizinho dePsych inclinada, com a lmpada na mo, sob o Amor adormecido, tinha, certamente, na suarespirao, nos seus caracis e nas suas faces, aspirado o mesmo cheiro suave. Era um aroma

    celeste, e ela no duvidava que l em cima, os espritos felizes, respirassem durante toda aeternidade o perfume das rosas. Ao que Ana, cptica, ripostava que, por fim, eles deviam fatigar-se ao ponto de j o no sentirem. Mas Madame von Tmmler censurava-lhe a sua sensatezantiquada porque se se estivesse em mar de brincadeira o que ela dizia a esse respeito podiadizer-se de todas as beatitudes, e a verdade que uma felicidade inconsciente no deixa de serfelicidade. Nessas conjunturas, Ana dava a sua me um beijo de reconciliao, cheio de ternoscuidados, e punham-se as duas a rir.

    Roslia no usava essncias artificiais ou perfumes, exceto um bocadinho da refrescantegua de Colnia de J. M. Farina, que se vendia em frente da Jlichplatz. Mas tudo o que aNatureza oferece ao nosso sentido olfativo de suavidade, de doura, de aspereza picante etambm de pesado e de embriagador, amava-o para alm de todos os limites e acolhia-o

    profundamente com gratido e com o fervor mais sensual. Num dos caminhos por ondecostumavam passear, cavava-se um vale, uma dobra de terreno, uma ravina pouco profunda,onde abundavam os jasmins e os amieiros pretos. Nos dias quentes de Junho, midos etempestuosos, desprendiam-se deles eflvios e nuvens de perfume suave que quase davam

    vertigens. Ana, embora esse perfume lhe provocasse algumas vezes dor de cabea, era sempreforada a acompanhar sua me at l abaixo. Roslia impregnava-se da densa e quente exalaocom uma voluptuosidade admirada. Parava, retomava o caminho e tornava a parar, e, curvando-se sobre o declive, suspirava: Minha filha, minha filha, maravilhoso! o hlito da Natureza, oseu doce sopro de vida, todo quente do sol e saturado de umidade. Exala-se com embriaguez edirige-se para ns, vindo do seu prprio seio. Gozemo-lo com adorao, ns que somos tambmos seus filhos queridos!

    Pelo menos tu, mam dizia Ana, que tomava pelo brao a exaltada e a arrastava,coxeando. A mim, ela no me ama tanto, e a sua mistura olorosa provoca-me este aperto nastmporas.

    Sim, porque tu lhe fazes frente replicava Roslia. No lhe rendes homenagem como teu talento e pretendes, graas a ele, fazer dela um simples tema cerebral do que, alis, tu tegabas. Tu transpes as tuas impresses sensoriais em frigidez, s Deus sabe para onde. Respeitoisso, ora, mas, no lugar da boa Natureza, tambm te quereria mal.

    E, gravemente, dava-lhe este conselho: visto que ela estava enfeitiada pelo abstrato etinha que inverter as suas impresses, fosse por que preo fosse, porque no tentava traduzir, umdia, os perfumes em cores?

    Este pensamento vinha-lhe na poca da florao das tlias, em Julho poca para ela

    encantadora entre todas, quando, durante algumas semanas, pelas janelas abertas, as rvores daavenida impregnavam toda a casa com a magia dos seus aromas puros e tpidos e com a suaflorao tardia. Um sorriso encantado no deixava os lbios de Roslia. E ela dizia ento:

    Isto que vocs deviam pintar. Com isto que se deviam medir artsticamente. Porquevs no pretendeis banir completamente a Natureza da vossa Arte, mas tom-la como ponto departida para as vossas abstraes. E para a espiritualizar utilizais uma expresso sensorial. Poisbem: um perfume , se me permitido diz-lo, ao mesmo tempo perceptvel pelos sentidos eabstrato. No se v e fala-nos sob uma forma etrea; deveis tentar tornar perceptvel ao sentido

    visual o invisvel elemento distribuidor de alegria, porque, no final de contas, sobre o sentido visual que repousa a arte da pintura. Vamos! Onde est a vossa paleta? Triturai por cima oinefvel e transportai-o numa festa de cores sobre a tela, que podereis intitular depois: Perfume

    de tlias, para que o espectador perceba as vossas intenes. Querida mam: tu s espantosa respondia a menina von Tmmler. Imaginas

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    problemas que no viriam ao esprito de nenhum professor de pintura! Mas sabes que s dumromantismo completo, com a tua confuso sinttica dos sentidos e a tua mstica transposio dosperfumes em cores?

    Mereo, sem dvida, a tua sbia ironia. Mas no, tu no mereces nenhuma ironia dizia Ana, com ternura.

    III

    Ora numa tarde de Agosto, no decorrer dum passeio, por um calor extremo, qualquercoisa de estranho lhes aconteceu, que se assemelhava a uma ironia da sorte. Como elascaminhassem entre prados e na orla dum bosque, sentiram subitamente um cheiro a almscar,primeiro quase indefinvel, depois mais forte: Roslia foi a primeira a aspir-lo e, com um ah!Donde que vem isto?, f-lo notar. Sua filha foi obrigada logo a dar-lhe razo. Sim, era bem, einegavelmente, um aroma da ordem dos perfumes almiscarados.

    Dois passos foram suficientes para descobrirem a provenincia, que era repugnante. beira da estrada, um montozinho de imundcies apodrecia ao sol, fervente de escaravelhos, que

    pululavam por cima e voavam em redor.As senhoras preferiram no olhar de muito perto. Num pequeno espao, excrementos deanimal ou de homem, tinham-se amalgamado com detritos vegetais, a que se misturava, semdvida, o cadver, em decomposio avanada, dum animalejo da floresta. Em suma, eraimpossvel imaginar nada de mais ftido do que esse montozinho em decomposio. Mas essam exalao, que atraa os escaravelhos aos centos, no podia j, na sua ambivalncia e na suatransio equvoca, ser apelidada de fedor e devia, sem dvida, qualificar-se como um cheiroalmiscarado.

    Bem, vamos para diante disseram as damas ao mesmo tempo, e Ana, arrastando maisfortemente a perna, por via deste novo incitamento para marchar, agarrou-se a sua me. Calaram-se um momento, como se cada uma meditasse de si para si nessa estranha impresso.

    Roslia disse, por fim: Pois bem, nunca gostei do almscar nem da ambarilha, que , sem dvida, a mesmacoisa, e no compreendo como h quem possa perfumar-se com ela. H l dentro tambmqualquer coisa de cheiro a gato bravo. Alis, nenhuma flor nem nenhuma planta tm este cheiro,mas a histria natural ensina-nos que as glndulas de certos animais o segregam os ratos, osgatos, o gato bravo e a cabra almiscarada. Lembras-te que na Intriga e Amor de Schiller h umcorteso vulgar, muito parvo, que faz uma entrada ruidosa e espalha sobre toda a plateia umcheiro de almscar? Como essa passagem me fez sempre rir!

    Ficaram divertidas. Roslia tinha guardado o seu riso quente que brotava do corao,mesmo quando as perturbaes da adaptao orgnica inerentes sua feminilidade, lheproduziam aborrecimentos de ordem fsica e psquica. Nessa poca ela tinha encontrado na

    Natureza um amigo muito perto da sua casa, num canto do Hofgarten. (A Rua Malkassen1

    conduzia l). Era um velho carvalho solitrio, nodoso, torto, e com razes em parte desnudadas; otronco grosso, dividia-se, a partir de baixa altura, em fortes ramos cheios de ns, que se cindiamem ramificaes mais delgadas. Os buracos do tronco tinham sido obturados com cimento. Aadministrao do parque fizera qualquer coisa pelo valente centenrio, mas mais dum ramomorto e, doravante, incapaz de florescer, tentava, seco e torcido como era, sustentar-se no vcuo.Em compensao, outros, isolados at ao cimo, verdejavam ainda na Primavera, ornados comessas folhas inchadas e arrendadas que so tidas por sagradas e com as quais se tecem as coroasda vitria. Roslia no se cansava desse espetculo. Na poca em que festejava o seu aniversrio,ela seguia com interesse, de dia para dia, o abotoar, o despertar da folhagem que se desenvolvianos ramos e nas ramificaes da rvore onde a vida aflua ainda: perto do carvalho, num banco

    1 Malkassenn, caixa de cores, associao de pintores, fundada no fim do sculo passado, na casa de Jacobi,

    literato amigo de Goethe.

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    junto da pradaria onde ele se erguia, sentava-se com Ana, dizendo: Que corajoso ancio! Podes ver, sem te enterneceres, como ele se conserva de p e

    continua a proliferar? Olha-me para essas razes, grossas como braos e lenhosas, e v como elasse prendem largamente ao reino da terra, fixando-se solidamente no hmus que as alimenta.Sobreviveu a mais de uma tempestade, e sobreviver ainda a muitas outras. No cair. Oco,

    cimentado, j no capaz duma florao total. Mas logo que chega a estao prpria, a seivacontinua a subir nele e encontrar maneira de reverdecer um pouco. Tem de se admirar a suaproeza e trat-lo com cuidado pela sua valentia. Vs l em cima, agitado pelo vento, esse delgadoraminho com os seus gomos de folhas? Ele incapaz de reverdecer a toda a volta, mas o raminhosalva a sua honra.

    Certamente, mam, isso digno de estima, como tu dizes respondia Ana. Mas, seno te importas, preferia agora regressar a casa. Estou cheia de dores.

    Dores? Sero as tuas...? Mas sim, querida filha. Como pude eu esquecer? Censuro-mepor te ter trazido. A olhar para o velho carvalho, no dei conta que te curvavas em duas enquantoestavas sentada. Perdo. D-me o brao e vamos.

    A menina von Tmmler sofrera sempre de violentas dores abdominais, na proximidade

    das regras. Isso em si no tinha importncia, e ela h muito tempo que estava habituada. Era umdesarranjo, constitucional e, alis, considerado como tal pela Faculdade, que era preciso aceitar.Era, portanto, permitido me falar nisso jovem sofredora, no breve caminho de

    regresso, com uma serenidade cheia duma benevolncia jovial e, alis, singularmente invejosa. Lembras-te disse ela que j foi assim quando eras uma rapariguinha e isso te

    aconteceu pela primeira vez? Que ficaste cheia de medo e que eu te expliquei que era a ordemnatural das coisas e que isso era necessrio e alegre, representando um grande dia porque tinhasassim a prova de teres atingido a maturidade da mulher? Comeas por clicas, o que penoso eno absolutamente necessrio. Quanto a mim, nunca as tive, mas isso acontece e eu conheo sem contar contigo dois ou trs casos acompanhados com dores. Digo ento: dores, ora aindabem!2 Em ns, nas mulheres, tm uma significao diferente do que quando se manifestam na

    Natureza, especialmente nos homens, que s sentem dores quando esto doentes, e ento fazemcenas terrveis. Era o que acontecia com teu pai Tmmler, quando tinha qualquer dor, emborafosse oficial e tivesse morrido da morte dos heris. O nosso sexo comporta-se doutra maneiraem casos semelhantes e suporta a dor com mais pacincia. Somos pacientes e, de qualquermaneira, nascidas para sofrer. Porque, alm do mais, conhecemos a dor natural e s do parto,querida por Deus e sagrada, que qualquer coisa de exclusivamente feminino, a que os homensso poupados e de que esto privados. Esses idiotas assustam-se, verdade, com os nossos gritossemi-inconscientes e censuram-se a si prprios agarrando na cabea. Mas ns, a despeito detodos os nossos gritos, no fundo fazemos troa deles. Quando te dei luz, foi muito duro. Asprimeiras dores duraram trinta e seis horas, e Tmmler passou esse tempo todo a correr para casae a agarrar na cabea. Era, contudo, uma grande festa da vida e no era eu quem gritava, era isso

    que gritava, um xtase sagrado de sofrimento. Com o Eduardo, mais tarde, no me custou nemmetade, mas isso seria ainda demasiado para um homem. Esses senhores recusar-se-iam muitosimplesmente. As dores, em geral, so o sinal de alarme da Natureza, sempre bem intencionada,para nos prevenir que uma doena se desenvolve no nosso organismo. Ela quer dizer-nos comisso: h qualquer coisa que no vai bem. Procura dar remdio, no tanto s dores como ao queelas anunciam. Isso pode certamente acontecer-nos a ns tambm e revestir essa significao.Mas, como tu sabes, as tuas clicas que precedem as regras, no so dessa ordem e no te pemem guarda contra nada. Uma espcie de jogo que simula as dores da mulher e tu deves consider-lo respeitvel como um ato vital feminino. Sempre, enquanto permanecemos mulheres, no jcrianas, mas ainda no velhas e impotentes, sempre esse novo rgo da nossa maternidadeconhece um recrudescimento abundante da nossa via sangunea com a qual a boa Natureza o

    2 la bonne heure (em francs no texto).

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    prepara a acolher o ovo fecundado.E quando h um (o que, alis, no decorrer da minha longa carreira, no se produziu seno

    duas vezes e com longos intervalos), a expanso mensal para e atingimos um estado abenoado.Meu Deus, que sensao feliz a minha quando ele deixou de se manifestar h trinta anos! Eras tu,minha querida filha, a bno que me tinha sido concedida e eu vejo-me ainda fazendo essa

    confidncia a Tmmler. Apoiei, corando, a minha cabea contra a sua, e disse-lhe, baixinho:Roberto: todos os sintomas o anunciam e, em mim, h caqu coisa... Querida mam, faz-me o favor: no empregues esse dialeto renano. Neste momento

    irrita-me. Oh, perdo, filha do meu corao. Nada estava mais longe das minhas intenes do

    que, ainda por cima, irritar-te. Mas a verdade que na minha confuso feliz falei realmente assima Tmmler. Como estamos a falar de coisas naturais, e em meu parecer entre a Natureza e odialeto h um lao comum, da mesma forma que entre a Natureza e o povo, se eu disser umacoisa absurda, retifica-a, tu, que s muito mais inteligente do que eu. Sim, tu s inteligente, mas,na tua qualidade de artista, no ests nas melhores relaes com a Natureza, visto que precisasintelectualiz-la em cubos e em espirais. E j que falamos de relaes mtuas, gostava de saber se

    no h uma relao entre a tua atitude orgulhosa e intelectual a respeito da Natureza e o fato deela te infligir, a ti, precisamente, essas dores no ventre no momento das regras... Mas, mam disse Ana, e foi forada a rir censuras-me por eu ser uma intelectual e s

    tu que imaginas teorias incrivelmente intelectuais. Por pouco que eu conseguisse distrair-te, minha filha, no me importaria de imaginar a

    mais tola das teorias. Mas o que eu dizia das honestas dores femininas, penso-o muito seriamentee numa inteno consoladora. Deves-te sentir feliz e altiva por estares com os teus trinta anos nopleno desabrochar do teu sangue. Acredita-me: sujeitar-me-ia com prazer s dores do ventre, seme sucedesse o mesmo que a ti. Mas, infelizmente, no h nada de semelhante. Isso estava-se atornar cada vez mais raro e irregular, e h dois meses que no se manifesta. Ai de mim! J nada sepassa em mim maneira das mulheres, como se diz na Bblia, suponho que a respeito de Sara,

    sim de Sara, que, depois, foi objeto dum milagre de fecundidade. Mas isso , sem dvida, umadessas piedosas histrias como j no acontecem nos nossos dias. Ora, quando em ns as coisasno se passam maneira das mulheres, que j no somos mais que o seu invlucro ressequido,usado, inutilizvel e excludo pela Natureza. Minha querida filha: muito duro. Nos homens, oseu vigor pode, suponho, persistir durante toda a vida. Conheo alguns que, aos oitenta anos, nodeixam tranquila nenhuma mulher, e Tmmler, teu pai, era tambm desses. Como eu tinha aindaque o aturar quando ele j era tenente-coronel! Alis, o que so cinquenta anos para um homem?Por pouco temperamento que tenham, isso no os impede de procederem como apaixonados. Emesmo homens com cabelos grisalhos obtm xito junto das raparigas. Quanto a ns, mulheres,trinta e cinco anos o mximo que nos concedido pela vida do nosso sangue e da nossafeminilidade para nos tornarmos um ser completo. Aos cinquenta anos estamos gastas e a nossa

    capacidade de procriar extinta; perante a Natureza, no somos mais do que runas.Ouvindo estas duras palavras de submisso Natureza, Ana respondeu de maneiradiferente do que o teriam, sem dvida, feito, com todo o direito, muitas mulheres.

    Que maneira de te exprimires, mam! disse ela. E como tu desdenhas, como tupareces fazer pouco da dignidade prpria de uma mulher de certa idade! Ela preencheu a sua

    vida; e a Natureza, que, contudo, te querida, transferiu-a para um plano novo e apaziguado,para um estado honroso de amabilidade superior em que ainda pode dar tanto aos seresprximos e longnquos. Aos homens, tu inveja-los porque a sua vida sexual tem limites menosprecisos do que os da mulher. Mas eu duvido que isso seja verdadeiramente to digno deadmirao e que haja motivos para invejas. E em qualquer caso, os povos civilizadostestemunharam sempre s matronas o maior respeito, santificando-as positivamente. E, para ns,

    tu tambm sers sagrada na querida e encantadora dignidade da tua idade. Querida e Roslia puxou sua filha contra ela, ao mesmo tempo que continuava a

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    caminhar dizes coisas to belas, to sensatas e to razoveis, apesar das tuas dores! Queriaconsolar-te dessas dores e afinal s tu que consolas a tua absurda me das suas indignaspreocupaes. Mas muito difcil resignarmo-nos dignidade e aposentao, minha queridafilha. Porque, mesmo para o corpo, o ter que se afazer a um novo estado, traz consigo, e por si,muitos tormentos. E se, alm disso, se dotado duma sensibilidade que no quer ouvir falar da

    dignidade nem do respeitvel estado de matrona, e que se rebela contra o estiolamento do corpo ento muito duro. A adaptao da alma nova constituio fisiolgica que o mais difcil. Eu compreendo, mam. Mas repara: o corpo e a alma no so mais do que um. E o

    psquico no depende menos da Natureza do que o fsico. Ela engloba tambm aquele, e tu notens que temer que o teu estado de alma leve muito tempo a acomodar-se com a transformaonatural do teu corpo. Deves dizer a ti mesma que o psquico no passa duma irradiao do carnal.E se a pobre alma supusesse que lhe era imposta a tarefa demasiado pesada de se adaptar a uma

    vida corporal modificada, depressa se aperceberia que no lhe restava outra coisa senopermanecer passiva e deixar que o corpo realizasse sobre ela a sua obra. Porque o corpo quemodela a alma sua imagem.

    A menina von Tmmler sabia muito bem porque dizia isto. Na poca em que a sua

    confiante me lhe falava desta maneira, um novo rosto, que no era dos habituais, fazia em casadela frequentes aparies. E consequncias embaraosas deixavam entrever-se, que noescapavam observao silenciosa e preocupada de Ana.

    IV

    O novo rosto, verdadeiramente pouco notvel, na opinio de Ana, e que a intelignciano marcava precisamente com o seu selo, pertencia a um rapaz chamado Ken Keaton, um

    Americano de cerca de vinte e quatro anos. Trazido pela guerra, habitava na cidade havia algumtempo e dava lies de ingls em casa de uns e outros. As esposas dos industriais ricosconvidavam-no para casa delas, a fim de praticarem a conversao inglesa, mediante honorrios.

    Eduardo que, desde a Pscoa, estava na primeira superior, tinha ouvido falar dele epedido a sua me, como um grande favor, para ser iniciado na lngua inglesa pelo senhor Keaton,um certo nmero de tardes cada semana. O liceu ensinava-lhe generosamente o grego e o latim e,por felicidade, uma quantidade suficiente de matemticas, mas no o ingls, idioma que, contudo,lhe parecia muito importante para o seu futuro. Logo que tivesse acabado, bem ou mal, com asfastidiosas humanidades, contava entrar para a Escola Politcnica e propunha-se ir mais tardeaperfeioar-se na Inglaterra ou mesmo nos Estados Unidos, Eldorado da tcnica. Ficou portantofeliz e reconhecido a sua me por esta, em face da nitidez e firmeza da sua deciso, ter acedidocom entusiasmo ao seu desejo. O trabalho com Keaton, s segundas, quartas e sbados, dava-lhemuito prazer, no s pela sua utilidade, mas tambm porque o divertia iniciar-se numa lnguanova, partindo dos rudimentos mais elementares, tais como o alfabeto. O estudo dum pequeno

    primer, por outras palavras, dum abecedrio para uso das crianas, divertia-o, assim comoaprender os vocbulos e a sua ortografia muitas vezes estranha, cuja pronncia das mais bizarras,Ken explicava ao seu aluno, formando os ll na garganta ainda mais fortemente que os prpriosRenanos, ou fazendo soar os yy contra o cu da boca, sem os rolar, prolongando-os com talexagero que parecia querer ridicularizar a sua lngua materna.

    Scrrr-ew the top on! dizia ele I slept like a top.Alfred is a tenniss play-err. His shoulders are thirty inches brr-oadd. Eduardo ria, s

    gargalhadas, de Alfredo, jogador de tnis, de largos ombros, a respeito do qual eram ditas aindamais coisas lisonjeiras com grande abundncia de trough e thought, de taughte tough, durante a horae meia que durava a lio. Fazia, contudo, sensveis progressos, precisamente porque, no sendoKeaton um professor de carreira, empregava um mtodo completamente fantasista, isto ,

    inspirava-se nas circunstncias e extraa delas, com desenvoltura, lies prticas. Com a suatagarelice, misturada de slange de nonsense, introduzia o seu aluno que no desejava mais na

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    esfera da linguagem corrente, ao mesmo tempo usual e humorstica. Atrada pelo entusiasmo quereinava no quarto de Eduardo, Roslia fazia algumas vezes aparies junto dos rapazes eassociava-se por momentos sua estimulante alegria. Ria de boa vontade com aqueles Alfred thetenniss play-eyye estabelecia uma certa semelhana entre ele e o jovem professor particular de seufilho, sobretudo no que dizia respeito aos ombros que, neste ltimo, eram duma largura

    impressionante. Alm disso, Ken tinha os cabelos loiros e espessos e um rosto jovem, sem belezaespecial, mas no desagradvel de todo, duma amvel insignificncia que, contudo, graas ao seucarter anglo-saxnico, no parecia ali completamente vulgar. Com uma admirvel estatura, queos seus fatos amplos e largos no conseguiam dissimular, oferecia, com as suas pernas longas e ascoxas estreitas, a imagem da fora juvenil. Tinha mos muito agradveis, embora a esquerdaestivesse ornada com um anel demasiado vistoso. A sua pessoa simples, liberta de qualquerconstrangimento, mas no desprovida de boas maneiras, o divertido alemo que os seus lbiosarticulavam com um acento to inegavelmente britnico como os pedaos de francs e de italianoque sabia (porque ele tinha j visitado vrios pases da Europa), tudo isso agradava muito aRoslia. A sua perfeita naturalidade, principalmente, provocavam-lhe simpatia. De tempos atempos, e por fim quase regularmente, tivesse ela ou no assistido lio, convidava-o depois

    para jantar. O interesse que manifestava por ele resultava, em parte, de ter ouvido dizer quealcanava grandes xitos junto das mulheres.Era com este pensamento que ela o examinava. E o boato no lhe parecia injustificado,

    embora tivesse alguma dificuldade em acostumar-se ao seu hbito de levar a mo boca,dizendo: Pardon me, quando, a comer ou a falar, arrotava, o que serve para satisfazer as boasmaneiras, mas que chama inutilmente a ateno sobre o incidente.

    Ken tinha, como o contou mesa, nascido numa cidadezinha de um Estado do oeste,onde seu pai exercera vrios ofcios, quer como broker, quer como empregado dum posto degasolina, quer ganhando algum dinheiro no real estate business. O filho frequentara a high school,onde, a acredit-lo, no se aprendia absolutamente nada, segundo as concepes europeias,acrescentava, respeitosamente. Frequentara depois, sem prestar grande ateno, e simplesmente

    para aprender alguma coisa, um colgio da Universidade de Detroit (Michigan), onde tinha pagoas despesas com o trabalho das suas mos, quer como mergulhador, quer como cozinheiro,criado e jardineiro. A senhora von Tmmler perguntou-lhe como que ele pudera, praticandoesses diversos ofcios, conservar as mos brancas como as de um aristocrata. Ao que elerespondeu que para os trabalhos pesados usara sempre luvas camisas de plo de mangas curtassim, ou at nada sobre o dorso, mas luvas. Assim faziam na Amrica muitos operrios, mesmo amaior parte deles, especialmente os da construo civil, para evitarem ter patas calosas deproletrios e para conservarem mos como as dos secretrios de advogado, ornadas com umanel.

    Roslia louvou este costume, mas Keaton protestou: Costume? A palavra parecia-lhedemasiado bela para exprimir a coisa, no podendo chamar-se a isso um costume no sentido em

    que o entendem os velhos povos europeus (ele tinha o hbito de empregar a palavracontinental para designar o europeu). Como exemplo, evocava um antigo uso popular alemo:o da vara da vida. No Natal e na Pscoa os rapazes fustigavam as raparigas e tambm osanimais e as rvores com varas verdes de btula e de salgueiro, ou davam-lhes sapatadas nasndegas, isto , zurziam-nas, como eles diziam, rito que servia para assegurar a sade e afecundidade. Isso, dizia ele, era de fato um costume muito antigo e que lhe agradava. Estassapatadas primaveris chamam-se Schmackosteyn3.

    Os Tmmler no sabiam nada a respeito do Schmackosteyn e ficaram admirados por verKen to informado sobre os usos populares. Eduardo riu com a vara da vida; a expresso de

    Ana alongou-se e s Roslia se mostrou encantada e completamente de acordo com o seuhspede. Ken disse ainda que isso era uma coisa muito diferente do que pr luvas para trabalhar.

    3 A Pscoa das Sapatadas.

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    E acrescentou que se podia procurar muito tempo na Amrica, antes de encontrar nada desemelhante, quando mais no fosse porque l no havia aldeias; os camponeses no eramcamponeses, mas empreiteiros, como toda a gente, e no havia costumes de espcie nenhuma.

    Alis, embora inegavelmente americano pelos seus hbitos, mostrava pouca afeio sua grandeptria. He didn't care for America. No tinha qualquer solicitude por ela e achava-a, em suma,

    abominvel, com a sua caa aos dlares, as suas palhaadas religiosas, a sua bigoterie4

    e a suacolossal mediocridade, mas sobretudo a sua falta total de atmosfera histrica. certo que elatinha uma histria, mas no era a History, quando muito uma simples e vulgar Sucess-story. A parteos seus imensos desertos, abundava em lugares belos e grandiosos, mas que no tinham nada pordetrs deles, enquanto na Europa encontrava-se por toda a parte uma linha de fundo das coisas,em particular por detrs das cidades, com as suas profundas perspectivas histricas. As cidadesamericanas he didn't care for them. Tinham sido edificadas ontem e podiam com a mesma facilidadeser suprimidas amanh. As pequenas eram formigueiros onde soprava um esprito obtuso,assemelhando-se cada uma delas exatamente sua vizinha. As grandes monstros pretensiosos ecruis, com museus a abarrotar de tesouros culturais continentais, comprados fora dedlares. Evidentemente, que ter sido comprado valia mais do que ter sido roubado mas no

    muito mais porque em certos lugares tudo o que datava de 1200 e 1400 podia ser consideradocomo roubado.Divertiam-se com as opinies sacrlegas de Ken e censuravam-lhas tambm, mas ele

    ripostava que era precisamente a piedade, isto , o respeito pela perspectiva e pela atmosfera queo incitava a falar dessa maneira. As datas histricas muito recuadas: 1100, 700 depois de JesusCristo, eram a sua paixo e a sua mania. Em Histria fora sempre dos primeiros no Colgio emHistria e nos desportos atlticos. Fora isso que, desde h muito tempo, o atrara para a Europa,onde as datas histricas recuadas existiam no seu quadro familiar, e certamente por sua prpriainiciativa teria atravessado o oceano, embora fora de trabalho, como marinheiro ou lavador depratos, s para poder respirar uma atmosfera carregada de Histria. Mas a guerra tinha deflagradona altura prpria e em 1917 alistara-se no exrcito. Durante todo o seu treino, desejara que as

    hostilidades acabassem antes de o levarem para o outro lado do oceano, mas justamente perto dofim chegara Frana com um comboio de tropas. Junto de Compigne, tinha entrado numverdadeiro combate, de que lhe resultara, alis, uma ferida que no era das mais ligeiras e que oforara a guardar o leito durante semanas num hospital uma ferida nos rins, de forma que,atualmente, um s dos seus rins funcionava, o que, alis, lhe chegava amplamente. Fosse comofosse dizia ele, rindo era uma espcie de invlido e recebia por isso uma pequena penso,mais preciosa aos seus olhos do que o rim destrudo pela bala. No tinha nada de invlido declarava a senhora von Tmmler , ao que ele respondia: no, graas a Deus, only a little cash.

    Depois de sair do hospital, tinha deixado o servio, honrosamente aposentado, com amedalha de mrito militar, e ficara por tempo indeterminado na Europa, onde achava a vidamaravilhosa e se podia dar ao prazer das datas histricas recuadas. As catedrais francesas, os

    campanrios italianos, os palcios e as galerias de arte, as aldeias suas, um lugar, por exemplo,como Stein am Rhein, eram verdadeiramente most delightful indeed. E, por toda a parte, o vinho: astavernas em Frana, as trattorieem Itlia, as estalagens da Sua e da Alemanha, onde a gente sesente to vontade: A Estalagem do Boi, A Estalagem do Mouro, A Pousada das Estrelas

    onde que se encontraria o equivalente alm-Atlntico? Na Amrica, nada de vinho, nadaseno drinks, Whisky e rum. Nem pensar nas canecas frescas dos vinhos alsacianos ou tirolesesou de Joannisberg, bebidos sobre a mesa de carvalho duma taberna histrica ou sob uma latadade madressilva. Good heavens!Os habitantes da Amrica ignoravam absolutamente a arte de viver.

    A Alemanha! Era o seu pas predileto, embora no tivesse penetrado nele muitoprofundamente e s conhecesse, em suma, as localidades ribeirinhas do lago de Constana etambm, alis muito exatamente, a regio renana. Essa regio renana, com os seus habitantes

    4 Carolice (em francs no texto).

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    simpticos, alegres, to amigveis, sobretudo quando o lcool os aquecia um pouco e com as suas venerveis cidades carregadas de atmosfera: Trves, Aix-la-Chapelle, Coblena e a SantaColnia... Quem raio se havia de lembrar de qualificar de Santa uma cidade americana? ASanta Kansas City, ah! ah! Imagine-se o tesouro lendrio sob a guarda das ninfas do rioMissouri! Ah! Ah! Ah! pardon me.

    Sobre Dusseldorf e a sua longa histria a partir dos merovngeos, sabia mais que Roslia eos seus filhos reunidos. To douto como um professor, dissertava sobre Pepino, o Intendente dopalcio de Barbarroxa, que edificara o Kaiserpfalz em Rindhusen, sobre a Igreja dos Slios, emKaiserswerth, onde Henrique IV tinha sido sagrado rei, sobre Alberto de Berg, sobre Jan Wellemdo Platinado e acerca de muitos outros ainda.

    Roslia disse que ele poderia ensinar a histria to bem como o ingls. Ken replicou queteria poucos alunos. No respondeu Roslia: ela prpria, por exemplo, a quem eledemonstrava a pequena extenso dos conhecimentos dela se inscreveria imediatamente como tal.Ken confessou que, nesse caso, ficaria um pouco intimidado. Ento ela comunicou-lhe umaobservao que fizera e que a comovera: na vida, era estranho e, at certo ponto, doloroso,

    verificar a timidez que existia entre os jovens e as pessoas mais velhas. A juventude assustava-se

    com as pessoas de idade porque no esperavam da sua dignidade nenhuma compreenso sobre asua vida de jovens; e as pessoas de idade temiam a juventude porque a admiravam no fundo dasua alma, precisamente por ser juventude e porque se sentiam obrigadas a esconder estaadmirao por trs da ironia e duma condescendncia simulada.

    Divertido e aprovador, Ken ps-se a rir. Eduardo declarou que a mam falava como umlivro aberto e Ana poisou sobre a me um olhar perscrutador. Roslia mostrava muita animaona presena de Keaton e mesmo, algumas vezes, uma ligeira e condenvel afetao. Convidava-omuitas vezes e contemplava-o com ar de enternecimento maternal, mesmo quando ele diziapardon, tapando a boca com a mo. Apesar do entusiasmo que o jovem manifestava pelaEuropa, a sua paixo pelo ano de 700 e o seu conhecimento de todas as cervejarias do Altbiey deDusseldorf, Ana no lhe achava nada de extraordinrio. O enternecimento de sua me parecia-lhe

    um pouco equvoco sob o aspecto maternal e inspirava-lhe mal-estar. A senhora von Tmmlerperguntava demasiadas vezes, com inquietao nervosa, quando estavam espera de Keaton, se oseu nariz estava vermelho. Estava de fato, embora Ana dissesse que no para a tranquilizar. E seno estava, corava extraordinariamente na presena do jovem. Mas, nesse momento, a me noparecia pensar nisso.

    V

    Ana via certo. Roslia tinha comeado a sentir uma terna inclinao pelo jovem preceptorde seu filho, sem opor nenhuma resistncia brusca ecloso desse sentimento, talvez sem seaperceber demasiado disso e, em qualquer caso, sem se importar demasiado em fazer mistrio a

    esse respeito. Sintomas que no teriam escapado sua observao feminina se ela os tivessesurpreendido em qualquer outra um riso caricioso, exageradamente encantado quando Kentagarelava, um olhar apaixonado, um ocultar dos olhos subitamente brilhantes ela pareciaacreditar que tudo isso passava despercebido, a menos que por bravata no fosse demasiadoorgulhosa para dissimular a sua inclinao.

    Ana, torturada, tomou uma ntida conscincia da situao, no decorrer dum sero deSetembro, estival e muito quente, em que Ken tinha ficado para jantar. Servida a sopa, Eduardo,por via do calor, tinha pedido licena para tirar o casaco. Roslia disse que os rapazes no tinhamna verdade que se constranger e, por consequncia, Ken seguiu o exemplo do seu amigo. Ele nolevou em linha de conta que diferente de Eduardo, cuja camisa de cor era provida de mangascompridas com punhos tinha vestido simplesmente uma camisa de malha branca, sem mangas,

    que deixava ver os seus braos nus. Esses jovens braos, de muito bela aparncia, redondos,fortes, brancos, tornavam muito plausvel a assero de ele ter sido, no Colgio, to forte em

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    desportos atlticos como em histria. Estava seguramente a mil lguas de suspeitar daperturbao em que essa viso lanava a dona da casa e Eduardo tambm no se apercebeu disso.

    Ana, porm, deu conta dessa perturbao, com pena e compaixo. Roslia falava e riafebrilmente, com as faces ora coradas, ora duma assustadora palidez, e os seus olhares, que sedesviavam, voltavam aps cada fuga, invencivelmente atrados, a fixar-se de novo sobre esses

    bceps, demorando-se alguns instantes em que o tempo se abolia, com uma expresso deprofunda e sensual melancolia.Ana, exasperada pela inocente simplicidade de Ken, na qual no acreditava inteiramente,

    chamou a ateno, desde que isso lhe foi possvel, para a frescura da noite que, atravs da portaenvidraada, aberta, soprava do jardim, e convidou os seus companheiros a vestirem de novo ocasaco, na previso dum resfriamento. A senhora von Tmmler, entretanto, deu por findo osero, quase ao sarem da mesa. Pretextando uma enxaqueca, despediu-se do hspede dumamaneira que se assemelhava a uma fuga e retirou-se para o seu quarto. Estendida na otomana,com o rosto escondido nas mos e enterrado nas travesseiras, cheia de vergonha, de terror extase, confessou a si prpria a sua paixo.

    Meu Deus, mas eu amo-o, amo-o como nunca amei! Isso concebvel? Porque eu,

    afinal, j estou retirada da vida e a Natureza fez-me passar para o estado pacfico e respeitvel dematrona. No ser ridculo que me abandone ainda voluptuosidade, tal como a sinto, nos meuspensamentos, assustados e embriagados, perante a sua viso, a viso dos seus braos de deus, deque eu aspiro loucamente a sentir o abrao, com o espetculo do seu dorso esplndido que vicom desolao e entusiasmo desenhar-se sob a camisa de malha? Serei eu uma velha impudica?Impudica, no, porque tenho vergonha diante dele, perante a sua juventude, e no sei comoarrost-lo e fix-lo nos olhos, esses olhos de rapazinho, ingnuos e amveis, que no esperam demim nenhum sentimento ardente. Mas eu, eu estou fustigada pela vara da vida, e foi ele, uminconsciente, que me flagelou e bateu e quem me infligiu a Schmackosteyn. Porque que mefalou na alegria pueril que lhe inspirava o nosso antigo costume popular? Presentemente, umpensamento desses golpes iniciadores invadiu o meu ser ntimo e inunda-o duma suavidade cheia

    de confuso. Desejo-o desejei eu alguma vez? Tmmler desejava-me quando eu era jovem e eucedia-lhe com complacncia. Aceitei a sua solicitude amorosa, tomei-o por esposo no seuesplendor robusto, mas a nossa voluptuosidade nascia do seu desejo. Desta vez, sou eu quecobio, eu prpria, por minha prpria iniciativa, e que lancei o meu olhar sobre ele, como umhomem sobre a rapariga da sua escolha. Isto deve ser o efeito dos anos: da minha idade e da suajuventude. A juventude feminina. E a atitude da velhice a seu respeito masculina. Mas a

    velhice no se mostra nem alegre nem confiante na sua cobia, e sente-se confusa e hesitanteperante a juventude e perante a Natureza inteira, por via da sua impotncia. Ai de mim! Tenhomuitos sofrimentos em perspectiva, porque no posso esperar que ele acolha o meu desejo. E seisso se der, se ele consentir em ceder minha solicitude, como eu de Tmmler? Ele no umarapariga com os seus braos firmes, apenas um rapaz que quer que a solicitao emane dele, e

    que se diz ter muito sucesso junto das mulheres. Na cidade tem todas as mulheres que quiser. Es com este pensamento, a minha alma se crispa e grita de cime. D lies de ingls a Lusa dePingsten, na Pempelforter Strasser, e a Ltzenkirchen, Amlia Ltzenkirchen, cujo marido,fabricante de panelas, um gordanchudo indolente e sem flego. Lusa, uma mulher muito alta,de cabelos raros, mas s tem trinta e oito anos e sabe fazer olhinhos. Amlia mais velha do queela um ano somente, bonita, infelizmente bonita, e seu marido d-lhe toda a liberdade.

    Ser possvel que ele as tenha nos braos (ou pelo menos uma delas, sem dvida Amlia,mas tambm poderia ser ao mesmo tempo essa garrana da Lusa) esses braos de que eugostaria de sentir o aperto, com um ardor que essas tolas so incapazes de experimentar? Serpossvel que elas gozem do seu hlito fervente, dos seus lbios, das suas mos e que elasacariciem as suas formas? S com este pensamento os meus dentes, ainda to sos, rangem e eu

    com eles. As minhas formas so tambm mais belas, mais dignas da carcia das suas mos que asdelas. E que ternura eu lhe teria reservado, que indizvel dom de mim mesma! Mas elas so fontes

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    a correr e eu sou uma fonte seca, a quem o cime j no fica bem. Cime torturante, consumidor,e que range! Um dia, no garden-partydos Rollwagen o Rollwagen das mquinas e sua mulher,para que ele tinha sido igualmente convidado no surpreendi eu, com os meus olhos, aos quaisnada escapa, entre ele e Amlia, uma rpida troca de olhares e de sorrisos que implicava, quase decerteza, um segredo! J ento o meu corao se contraiu de dor. Mas no compreendi, nem

    pensei que era cime, nem me supunha capaz de o experimentar. Mas eu estou com cimes.Agora compreendo e deixei de o negar. E, pelo contrrio, exulto com o meu sofrimento, que seencontra em maravilhoso desacordo com a transformao do meu corpo. Ana supe que opsquico no mais do que uma irradiao do fsico e que este modelaria a alma, segundo o seuprprio estado! Ana sabe muito a esse respeito, Ana no sabe nada. No, eu no quero dizer queela no sabe nada. Ela sofreu, amou absurdamente e sofreu com humilhao, por isso sabe certascoisas. Mas que a alma seja transportada ao pacfico e respeitvel estado de matrona, ao mesmotempo que o corpo, nisso ela engana-se, porque no acredita nos milagres, ignora que a Naturezapode provocar uma maravilhosa ecloso da alma, mesmo quando tarde, demasiado tarde, efaz-la desabrochar para o amor, para o desejo e para o cime, como eu acabo de o saber, cominefvel tormento. A velha Sara ouviu atrs das portas das tendas predizer a sorte que lhe estava

    ainda reservada, e ps-se a rir. Com o que Deus se irritou contra ela e disse: Porque que Sarariu? Eu, eu no quero rir-me. Quero acreditar no milagre da minha alma e dos meus sentidos,quero adorar o milagre da Natureza, a dolorosa e vergonhosa Primavera da minha idade e dosmeus sentidos, e a minha confuso no ter outro motivo seno a graa que me dispensada poresta tardia visitao.

    VI

    Eis o que dizia Roslia, para ela s, nessa noite. Depois duma noite de sobressaltos e deagitao, e de algumas horas dum sono profundo pela madrugada, o seu primeiro pensamento, aodespertar, foi para a paixo que a tinha ferido, que ela abenoava e que no teve um instante a

    ideia de recusar, de repelir, conformemente s exigncias da moral. A amvel mulher estavaentusiasmada com a faculdade que tinha a sua alma de permanecer vivaz, com a faculdade deflorir num sofrimento delicioso. No sendo particularmente piedosa, no invocava o Senhor. Asua piedade dirigia-se para a Natureza e fazia-lhe admirar e apreciar o fenmeno que esta,infligindo-se uma espcie de contradio, operava nela. Sim, este desabrochar da sua alma e dosseus sentidos ia contra o decoro natural, era gerador de alegria, certamente, mas tambmdesilusionante e era necessrio dissimul-lo e escond-lo de toda a gente, mesmo da filha, suaconfidente, e sobretudo dele, do amado, que no suspeitava nada e nada devia suspeitar. Na

    verdade, onde que iria buscar o direito para levantar os olhos sobre a sua juventude? Assim, portanto, as suas relaes com Keaton tornaram-se qualquer coisa de

    completamente absurdo no que se refere vida mundana. Entrava nelas uma mistura de

    submisso e de humildade, que Roslia, apesar da sua altivez, no conseguia refrear e queproduzia sobre a testemunha clarividente que era Ana uma impresso mais penosa ainda do que avivacidade e exuberncia do comeo. O prprio Eduardo acabou por se aperceber disso e houvemomentos em que irmo e irm, curvados sobre o seu prato, mordiam os lbios, enquanto Ken,chocado por esse silncio embaraoso, mas sem adivinhar a causa, lanava em volta dele olharesinterrogadores. Eduardo, procurando um conselho e uma explicao, interpelou sua irm:

    Que tem a mam? perguntou ele. Keaton deixou de lhe agradar?E como Ana se calasse, o rapaz continuou, mordendo os lbios:

    Ou ser que ele lhe agrada demasiado?Ana ralhou com ele: Que ideia essa! No so coisas com que os garotos tenham que ver. Porta-te bem e

    deixa-te de reflexes inconvenientes! Acrescentou, depois, que ele devia pensar, com mgoa, que sua me, como todas as

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    mulheres uma vez na vida, atravessava um perodo difcil, cujos efeitos se repercutiamdesagradavelmente sobre a sua sade.

    Ora a est uma coisa que nova e instrutiva para mim! declarou, ironicamente, oaluno da primeira classe superior.

    Contudo, a explicao pareceu-lhe enfermar dum carter demasiado geral. Sua me tinha

    um motivo de tormento mais particular e ela tambm, a sua muito venerada irm, estavamanifestamente atormentada, sem falar dele prprio, o garoto ingnuo. Talvez o garoto ingnuose pudesse tornar til, sugerindo o afastamento do professor demasiado gentil... E se ele dissessea sua me que j tinha aproveitado suficientemente com as lies de Keaton e que este devia serhonorably discharged?

    Faz isso, meu querido Eduardo disse Ana.E ele assim fez.

    Mam disse ele penso que poderamos pr termo s lies de ingls e s despesasque te impus a esse respeito. Graas tua generosidade e ao concurso do senhor Keaton, adquirislidas noes, que procurarei conservar por meio de algumas leituras particulares. Quanto aoresto, no se aprende nunca uma lngua estrangeira na sua ptria, fora do pas onde toda a gente a

    fala e onde se obrigado ao seu uso exclusivo. Uma vez na Inglaterra ou na Amrica, depois dapreparao que tu me facilitaste, aprenderei o resto sem dificuldade. Presentemente, como sabes,o meu exame de abiturest prximo e ningum me interrogar sobre ingls. Muito pelo contrrio,tenho que fazer o possvel para no ser aplainado nas lnguas antigas, e para isso necessriaconcentrao. No achas que chegou o momento de agradecer a Keaton os seus esforos e de odesobrigar amavelmente?

    Mas, Eduardo respondeu a senhora von Tmmler com vivacidade e mesmo, decomeo, com um pouco de precipitao o que me expes surpreende-me, e no posso dizerque te aprovo. certo que te mostras muito delicado, procurando poupar-me s despesassuplementares para atingires o teu fim. O fim em si bom e importante para o teu futuro, talcomo o concebes. E, por outro lado, no estamos reduzidos a no poder assegurar a tua

    instruo em matria de lnguas da mesma maneira como o no fizemos outrora para os estudosde Ana, na Academia. No compreendo porque, tendo a inteno de aprender ingls, queresparar a meio caminho. Poderia dizer-se, meu filho, e no leves isso a mal, que isso seriarecompensar mal a minha dedicao. O teu abitur, certamente, uma coisa sria, e compreendoque, por causa das lnguas antigas, que te do preocupaes, tenhas que trabalhar compersistncia. Mas no vais pretender, por isso, Eduardo, que algumas lies de ingls por semanano sejam para ti um descanso e uma salutar distrao e que elas te impem uma fadigaexcessiva... Alm disso e agora deixa-me passar para o plano pessoal e humano, h j muitotempo que Ken, como lhe chamamos, enfim, o senhor Keaton, no est em condies que nosautorizem a declarar-lhe: o senhor demais presentemente, e a p-lo simplesmente l fora. Erao mesmo que notificar-lhe: o Mouro pode ir-se embora.5 Ele tornou-se o amigo da casa, de

    qualquer forma um membro da famlia, e ficaria, com razo, magoado por ser assim despedido.Alis, far-nos-ia falta a todos. Ana, em particular, ficaria suponho descontente se ele noviesse animar as nossas refeies com o seu conhecimento profundo da histria de Dusseldorf;se no nos falasse mais da luta para a sucesso de Juliers e Clves, assim como do eleitor Joo

    Wellem, que tem uma esttua na Praa do Mercado. A ti, tambm ele faria falta, e mesmo a mim.Em resumo, Eduardo, a tua proposta mostra uma boa natureza, mas no necessrio nemmesmo muito possvel execut-la. O melhor deixarmos as coisas como estavam.

    Como tu quiseres, mam disse Eduardo.E comunicou o seu insucesso a sua irm, que lhe respondeu:

    Eu previa-o, meu rapaz. A mam, no fundo, definiu muito exatamente a situao e eufazia a mim prpria pouco mais ou menos as mesmas reflexes quando me anunciaste o passo

    5 Citao tornada proverbial e extrada do Fiesco de Schiller.

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    que te propunhas dar junto dela. Em qualquer caso, ela tem razo quando diz que Keaton umagradvel companheiro em sociedade e que todos lastimaramos a sua ausncia. Continua,portanto, com ele.

    Eduardo olhou de frente para a sua interlocutora, que no se mexeu, levantou os olhos efoi-se embora. Ken esperava-o precisamente no seu quarto. Leram juntos algumas pginas de

    Emerson ou de Macauley, depois uma mistery story, que lhes forneceu um motivo de conversa paraa ltima meia hora, e o rapaz ficou para jantar. Havia muito tempo j que ele no esperava peloconvite particular. O fato de ficar depois da lio tinha-se tornado uma instituio permanente, eRoslia, nesses dias, com uma felicidade inconveniente e receosa, perturbada pela vergonha,conferenciava com Cahette, a criada, sobre a ementa, encomendando pratos apetitosos e velandopor que um deleitoso vinho do Palatinado ou de Nidersheim, os conservasse reunidos no saloainda uma hora depois das refeies. Ela fazia as honras mais do que era seu costume para seatrever a olhar para aquele que amava despropositadamente. Mas muitas vezes tambm o vinhoproduzia sobre ela um efeito de cansao e de tristeza, e ento sustentava uma luta que a punha naalternativa de ficar a sofrer sob os olhos do amado ou de se retirar e chorar por via dele, nasolido.

    VII

    Outubro marcava o comeo da estao mundana. Ela via ento Keaton fora de sua casatambm, quer na residncia dos Pfingsten da Pempelforter Strasse, quer na dos Ltzenkirchen,ou na do engenheiro-chefe Rollwagen, em crculos menos restritos. Procurava-o ento e evitava-o, fugia do grupo a que ele se tinha agregado, e esperava noutro, sempre conversandomaquinalmente, at que se aproximasse dela e lhe significasse a sua ateno. Sabia sempre ondeele estava; distinguia a sua voz no rudo das conversas e sofria atrozmente quando supunha notarsinais de secreto entendimento entre ele e Lusa Pfingsten ou Amlia Ltzenkirchen. Embora orapaz no oferecesse nada de particular, parte a bela estatura, a sua perfeita naturalidade e a

    amvel simplicidade do seu esprito, era querido e procurado nesse crculo e aproveitava-se combom humor do fraco dos Alemes por tudo o que estrangeiro. Sabia muito bem que a maneiracomo pronunciava a sua lngua, as expresses pueris que empregava, agradavam muito. Almdisso, falavam-lhe de boa vontade em ingls. Ele tinha toda a liberdade de se vestir como lheparecesse. No possua evening dress, mas os hbitos mundanos tinham-se relaxado havia anos j equer nos camarotes de teatro, quer nas festas noturnas, o smoking no era de rigor. Mesmo emocasies em que a maior parte dos homens o vestiam, Ken era sempre bem-vindo com o seu fatode passeio, a sua indumentria larga e cmoda, as calas castanhas com cinto, os sapatos amarelo-tostado e o casaco de l cinzenta.

    Assim passeava, sem constrangimento, pelos sales, tornando-se agradvel s damas, comquem praticava ingls e com aquelas que ele desejava que o convidassem para dar lies. Segundo

    o costume do seu pas, comeava por cortar a carne em bocadinhos, depois pousava a faca devis sobre o prato, deixava pender o brao esquerdo e, manejando o garfo com a mo direita,comia o que tinha preparado. Conservava este hbito porque via que os seus vizinhos e o senhorem frente dele o observavam com vivo interesse.

    A Roslia falava com agrado, mesmo parte, no s porque ela figurava entre os seusbosses6 e as pessoas que lhe asseguravam o seu ganha-po, mas tambm porque exercia sobre eleuma atrao real. que enquanto a fria inteligncia e as pretenses intelectuais da filha lhecausavam medo, a viva feminilidade da me era-lhe simptica e, sem definir exatamente anatureza dos sentimentos de Roslia (no lhe viera nunca isso ideia) sentia-se vontade noentusiasmo que emanava dela para ele. Isso comprazia-o e no se inquietava com os sinais detenso, de confuso e perturbao que ela dava. Via nisso expresses da nervosidade europeia, e

    6 Patres.

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    por esse motivo no fazia caso.Alm disso, por mais que ela sofresse, a sua aparncia nessa poca conheceu um novo

    desabrochar, uma ressurreio de juventude que provocava cumprimentos. certo que a suasilhueta se tinha sempre mantido jovem, mas ficava-se sobretudo impressionado com o brilhodos seus belos olhos castanhos que, a despeito do ardor um pouco febril, lhe ficavam a matar,

    com a animao da sua tez, que se recompunha rapidamente, depois duma palidez fugitiva, e coma mobilidade do rosto, menos cavado durante as conversaes habitualmente joviais, que lhedavam a possibilidade de corrigir com um riso a tendncia das suas feies para se enrugarem.

    Nessas reunies mundanas ria-se alto e muito, porque todos, com uma generosaunanimidade, faziam honra ao vinho e ao ponche. E o que podia parecer estranho nocomportamento de Roslia perdia-se no meio da indiferena, da assistncia, pouco disposta aespantar-se. E que felicidade, quando uma das mulheres presentes lhe dizia: Querida: voc espantosa! E como est encantadora esta noite! Mete num chinelo as raparigas de vinte anos!Diga-me: que fonte de Juventude descobriu?. E, sobretudo, quando o amado confirmava: Right

    you are! Madame von Tmmler is perfectly delightful tonight, 7. Ela ria, o que podia justificar o vivo ruborque lhe causava a alegria do cumprimento. Desviava o olhar, mas sonhava com os seus braos, e

    de novo sentia no fundo de si mesma esse rebentamento, essa inundao de imensa doura queexperimentava tantas vezes presentemente e que os olhos dos outros deviam notar quando aachavam jovem e encantadora.

    Foi numa dessas noites, quando toda a gente se tinha dispersado, que ela faltou ao seupropsito de guardar no fundo de si mesma o segredo do seu corao, esse milagre de alma,chocante e doloroso, mas embriagador, que resolvera no confessar mesmo sua filial amiga.Uma irresistvel necessidade de comunicao constrangeu-a a violar a promessa que fizera a siprpria e a confiar-se sensata Ana, no s porque aspirava apaixonadamente a uma simpatiacompreensiva e afetuosa, mas tambm pelo desejo de ver prestar uma homenagem inteligente aofenmeno que a natureza operava nela e singularidade humana que ele constitua.

    As duas mulheres tinham voltado para casa de txi, cerca da meia-noite, por um tempo

    mido de neve. Roslia estava com arrepios. Deixa-me, querida filha disse ela , entrar no teu quarto por meia hora, no teuconfortvel quarto. Estou com frio, mas tenho a cabea em fogo e receio no poder conciliar osono to cedo. No seria nada mau se fizesses ch para acabarmos agradavelmente a noite. Esteponche dos Rollwagen pe-nos rudemente prova. Rollwagen prepara-o ele prprio, mas notem a mo muito feliz, e deita no vinho de Mosella uma duvidosa aguardente de tangerina e,ainda por cima, champanhe alemo. Amanh teremos todos uma famosa dor de cabea, um mauhang-over. Quer dizer: tu no. Tu s prudente e bebes moderadamente. Mas eu, eu esqueo-mequando estou a conversar, no reparo que esto sempre a encher o meu copo e penso que aindao primeiro. Sim, faz-nos um pouco de ch, o que est indicado. O ch estimula e, ao mesmotempo, acalma. E um ch quente, tomado na ocasio prpria, conjura um resfriamento. A casa

    dos Rollwagen estava sobreaquecida pelo menos assim me pareceu e agora c fora estassaraivadas! Ser, afinal, a Primavera que se anuncia assim? Hoje, ao meio-dia, na Hofgarten,pensei j pressenti-la, mas sempre uma impresso da tua extravagante me quando passaram osdias mais curtos e as horas de luz comeam a aumentar. Tiveste uma boa ideia em ligar o radiadoreltrico, porque o aquecimento comea a baixar. Minha querida filha: sabes muito bem pr-nos

    vontade e criar as condies de intimidade propcias para uma pequena conversa antes de nosirmos deitar. V l tu, Ana: h muito tempo que desejava ter contigo uma entrevista, a que, alis,tu tens razo, nunca fugiste mas certas coisas, minha filha, no se podem exprimir e discutirseno num ambiente particularmente confiante e numa hora favorvel que nos solte a lngua...

    Que gnero de coisas, mam? No tenho leite para te oferecer. Queres limo? Coisas do corao, minha filha. Coisas da Natureza, a maravilhosa, a enigmtica, a toda

    7 Voc tem razo. A senhora von Tmmler est absolutamente deliciosa esta noite.

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    poderosa, que algumas vezes age sobre ns de maneira to estranha e contraditria que quaseincompreensvel.

    Tu sabe-lo tambm. Tenho, minha querida Ana, pensado muitas vezes, nestes ltimostempos, nessa tua antiga histria de outrora, com Brnner perdoa-me abordar este assunto noteu sofrimento de que te queixaste a mim numa hora que no era muito diferente desta,

    sofrimento que, na tua amargura contra ti mesma, qualificavas de vergonhoso, por via dohumilhante conflito que opunha a tua razo e o teu julgamento ao teu corao ou, se tu preferes,aos teus sentidos.

    Fazes bem em corrigir, mam. O corao um logro sentimental. No se deve chamarcorao ao que totalmente diferente. O nosso corao, esse, s fala verdadeiramente com aadeso do julgamento e da razo.

    Tu tens boas razes para mo dizer. Porque tu foste sempre pela unidade e sustentavasque a Natureza estabelece, ela prpria, a harmonia entre a alma e o corpo. Mas que tu tenhasento vivido em ruptura de harmonia entre os teus desejos e o teu julgamento, no o podersnegar. Eras muito nova nessa poca e o teu desejo no tinha motivos de vergonha perante aNatureza; s tinha que corar em face do teu julgamento que o achava envilecedor. No podia,

    portanto, defender-te da tua razo, e era isso que causava a tua humilhao e o teu sofrimento.Porque tu s orgulhosa, Ana, muito orgulhosa. E que possa haver uma altivez baseadaexclusivamente sobre o sentimento, uma altivez de sentimento prestes a negar que tenha que sedefender ou que se justificar perante seja o que for conscincia, razo, a prpria Natureza tuno queres admiti-lo. E, nisso, somos diferentes. Para mim, o corao est acima de tudo. E se aNatureza lhe inspira impresses que j no so prprias e convenientes, e parecem criar umconflito entre ela e o corao, h nisso certamente uma dolorosa humilhao. Mas a humilhaono se dirige seno nossa dignidade e constitui um doce espanto, no fundo uma forma derespeito pela Natureza e pela vida que lhe agrada criar no ser j esvaziado de vida.

    Minha querida mam respondeu Ana , deixa-me, antes do mais, declinar a honra queprestas minha altivez e minha razo. Elas teriam outrora cedido miseravelmente ao que tu

    chamas, em termos poticos, o corao, se a sorte misericordiosa no se tivesse posto de travs.E quando penso onde o meu corao me teria levado, agradeo a Deus que se no tenhamsatisfeito os seus desejos. Sou a ltima pessoa a ter o direito de atirar a primeira pedra. Contudo,no se trata de mim, mas de ti, e eu no quero subtrair-me honra que tu me ds querendo abrir-te comigo. Porque bem isso que tu queres, no verdade? As tuas palavras parecem indic-lo;simplesmente elas so obscuras na sua generalizao. Dize-me, peo-te, como devo relacion-lascom a tua pessoa e interpret-las?

    Que dirias tu, Ana, se tua me, nos seus velhos dias, fosse presa dum sentimentoardente, desses que esto reservados para a poderosa juventude, a maturidade, e no para umafeminilidade decadente?

    Por que esse condicional, mam? Evidentemente, isto passa-se contigo. Tu amas?

    Como tu dizes isso, minha doce filha! Com que liberdade, com que ousadia, e com quefranqueza tu pronuncias a palavra que passaria to difcilmente entre os meus lbios e querecalquei em mim durante tanto tempo, com tudo o que comporta de felicidade vergonhosa e desofrimento. Escondi-o de toda a gente e de ti tambm, to rigorosamente que vais cair dasnuvens e do alto da tua f na dignidade de matrona da tua me! Sim, amo; amo com ardor edesejo e xtase, e dolorosamente, como tu amaste na tua juventude. Aos olhos da razo, o meusentimento to pouco defensvel como outrora teu, e se estou igualmente altiva da primaverade alma com que a Natureza me gratifica de to prodigiosa maneira, sofro, contudo, como tuoutrora sofreste, e sou irresistivelmente levada a dizer-te tudo.

    Minha boa e querida mam! Dize-me tranquilamente tudo. Quando a confisso todifcil, as perguntas impem-se. Quem ?

    Ser para ti uma desconcertante surpresa, minha filha. O jovem amigo da casa. Oprofessor de teu irmo.

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    Ken Keaton? Ele prprio. Portanto, ele. Bom. Tu no tens a temer de mim, mam, que eu grite:

    Incompreensvel!, como o faria a maior parte das pessoas. to fcil e tolo declararincompreensvel um sentimento que se no pode partilhar! E, contudo, apesar de todo o meu

    receio de te magoar, perdoa ao meu terno interesse esta pergunta: tu falas duma emoo que jno seria da tua idade e queixas-te de experimentares sentimentos de que j no serias digna;perguntaste a ti mesma, alguma vez, se esse rapaz digno desses sentimentos?

    Ele, digno? Tenho dificuldade em compreender-te. Amo, Ana. Ken o mais esplndidoexemplar de mocidade viril que me passou debaixo dos olhos.

    E a est porque o amas. Se ns tentssemos inverter a causa e o efeito para os situarassim mais exatamente? No acontecer que ele te parea esplndido unicamente porque teapaixonaste... Isto , porque o amas?

    Oh! Minha filha! Dissocias o que inseparvel. No meu corao, o meu amor e o seuesplendor formam um todo.

    Mas tu, a mais querida e a melhor das mams, sofres, e eu gostaria infinitamente de vir

    em tua ajuda. No poderias tentar v-lo um instante, um s instante talvez isso te fosse salutar no j luz transfiguradora do teu amor, mas luz do dia na sua realidade, como o gentil eagradvel rapaz que , mas que, contudo, oferece em si e por si, to pouco pretexto para a paixoe para o sofrimento?

    As tuas intenes so boas, Ana, eu sei. Estou persuadida que me queres fazer bem.Mas preciso que no seja sua custa, sendo injusta com ele. E tu s injusta para com ele, com atua luz do dia, que uma luz falsa e induz completamente em erro. Qualifica-lo de gentil,limitas-te precisamente a qualific-lo de agradvel e queres dizer com isso que um rapazmedocre, sem nada de particular, contudo, um ser extraordinrio, cuja existncia nos transtorna.Pensa na simplicidade das suas origens e como, graas a uma energia de ferro, talhou o seucaminho no colgio. Como, em Histria e nos exerccios fsicos, ultrapassou todos os seus

    condiscpulos; como depois se alistou no exrcito onde a sua admirvel conduta de soldado lhevaleu ter sido, por fim, honorable discharged. Perdo, mas o que acontece a qualquer pessoa, a menos que tenha, positivamente,

    cometido um ato desonesto. Uma pessoa qualquer? Insinuas sempre que ele no ultrapassa a mdia e quererias, dessa

    forma, diminu-lo junto de mim, apresentando-o, seno diretamente, pelo menos alusivamente,como um rapaz ingnuo e mesmo simplrio. Mas tu esqueces que a ingenuidade pode serqualquer coisa de augusto e de triunfante e que a sua ingenuidade tem por perspectiva o grandeesprito democrtico da sua vasta ptria.

    A sua ptria? Mas ele no pode com ela... Nem por isso deixa de ser seu filho autntico, e se ama a Europa por via da sua

    perspectiva histrica e dos velhos costumes populares, isso tambm o honra e f-lo distinguir doshomens comuns. Mas ele verteu o sangue pelo seu pas. Dizes que qualquer pessoa pode serhonorable discharged. Do tambm a qualquer pessoa a medalha de mrito militar, a Purple Heart,para significar que o herosmo com que se atirou sobre o inimigo lhe valeu uma ferida, talvezgrave?

    Ah, minha querida mam! Eu creio que, na guerra, um atingido e o outro no, umtomba e o outro salva-se, sem que isso tenha grande coisa a ver com a valentia de um ou deoutro. Se tiveres uma perna arrancada ou um rim destrudo, a medalha ser um premio econsolao, uma pequena indenizao do teu infortnio; mas no , sem dvida, no geral, o sinaldistintivo duma coragem particular.

    Em qualquer caso, sacrificou um dos seus rins sobre o altar da ptria.

    Sim, teve essa m sorte. E, Deus louvado, pode-se rigorosamente viver com um nicorim. Mas, precisamente, com dificuldade, porque isso uma falta, uma deficincia, cujo simples

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    pensamento reduz um pouco o esplendor da sua juventude. E claridade do dia, qual devemosconsider-lo, convm dizer que, a despeito da sua bela estatura ou melhor, normal no ,fsicamente, um ser completo: um invlido e no um homem na sua integridade.

    Mas Deus!... Ken no completo, Ken no um homem na sua integridade? Minhapobre filha: ele magnificamente completo e pode, a brincar, dispensar um rim no s na sua

    prpria opinio, mas na opinio unnime das mulheres em particular, que todas correm atrs delee junto das quais encontra, sem dvida, a satisfao dos seus prazeres. Querida, boa e sensata Ana: tu sabes por que que, antes do mais, me confiei a ti e encetei contigo esta conversa?Porque queria tambm perguntar-te, com toda a franqueza, os teus sentimentos a este respeito.Segundo as tuas observaes e a tua convico, ele tem uma ligao com Lusa Pfingsten ou com

    Amlia Ltzenkirchen, com as duas talvez e, certamente, soube mostrar-se bastante completopara isso: Eis porque sinto a dvida mais cruel e desejaria tirar as coisas a limpo contigo, porquetu podes examinar a situao com mais sangue-frio, por assim dizer, claridade do dia...

    Pobre mam do meu corao! Como te atormentas e como sofres! Isso causa-me pena.No, vejamos. Eu no creio eu no estou muito informada sobre o seu gnero de vida e nome sinto tentada a aprofundar o assunto mas no creio e nunca ouvi dizer que ele entretenha

    com madame Pfingsten ou madame Ltzenkirchen as relaes que tu suspeitas. Tranquiliza-te aesse respeito, peo-te. Deus queira, minha boa filha, que no digas isso com o nico fim de me consolar e de

    trazer, por piedade, um blsamo ao meu sofrimento. Mas v tu, a piedade embora talvez tenhavindo procur-la junto de ti no viria muito a propsito, porque sou feliz at na minha tortura ena minha vergonha, e altiva da primavera dolorosa da minha alma. Pensa nisso, minha filha,mesmo que eu tenha o ar de mendigar piedade!

    No acho que tu mendigas, mas a felicidade e a altivez esto, em semelhantes casos,estreitamente ligadas ao sofrimento. Formam um todo com ele, e mesmo se tu no procurasses apiedade, obt-la-ias dos que te amam e desejam que tenhas pena de ti mesma e que tentes sacudiresse absurdo enfeitiamento... Perdoa-me as minhas palavras! Certamente no so as palavras

    necessrias, mas no posso preocupar-me com as palavras que emprego. contigo, minhaquerida, que me preocupo, e no s desde hoje, no s desde a tua confisso, de que te estoureconhecida. Tu recalcaste o teu segredo com um grande imprio sobre ti; mas que havia umsegredo, que h meses tu estavas num estado especial e particular, isso no podia escapar aos quete amam. E eles verificaram-no com sentimentos contraditrios.

    Que entendes tu por eles? Eu falo de mim. Tu transformaste-te de maneira notvel nestes ltimos tempos,

    mam... Isto , transformar no exprime bem, porque tu ficaste a mesma, e quando digotransformar quero dizer que uma espcie de rejuvenescimento se operou em ti. Isto no ainda apalavra exata, porque no se trata dum rejuvenescimento real e demonstrvel da tua queridaaparncia. Algumas vezes, porm, em certos momentos, suponho ver, duma maneira um pouco

    fantasmagrica, surgir de repente da tua querida silhueta de matrona, a mam de h vinte anos, talcomo a conheci quando era uma rapariguinha, ou melhor ainda, suponho, subitamente, ver-tecomo nunca te vi, quer dizer, como tu devias ser quando eras, tu mesma, uma rapariga muitojovem. E esta iluso dos meus sentidos se que h uma e no um pouco de realidade deviaalegrar-me, devia fazer-me saltar o corao de jbilo, no verdade? Ora no isso que se passa.Fico com o corao pesado e sinto precisamente nos momentos em que tu rejuvenesces sob osmeus olhos uma terrvel piedade por ti. que vejo ao mesmo tempo que tu sofres e que afantasmagoria de que falo tem no s uma relao com o teu sofrimento, mas a sua prpriaemanao, a sua aparncia, uma dolorosa primavera, segundo a tua prpria expresso. Minhaquerida mam: como que aconteceu exprimires-te assim? Isso no a tua maneira. s um sersem complicaes, dos mais dignos de amor. E o teu olhar pousa-se, ntido e claro, sobre a

    Natureza e o mundo, no sobre os livros de que, alis, nunca leste muitos. At agora, no tinhasnecessidade dessas palavras, como as fabricam os poetas, dessas palavras dilacerantes e

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    mrbidas... E se agora as empregas, porque h qualquer coisa de... De qu, Ana? Quando os poetas empregam tais palavras porque tm necessidade

    disso e porque a sua sensibilidade e os acontecimentos que vivem as fazem jorrar deles. Semdvida, o que me acontece a mim, a quem, segundo a tua opinio, essas palavras no assentam.Isso no exato: elas assentam a quem tem necessidade, e esse no se assusta porque lhe so

    arrancadas, a despeito da sua vontade.Quanto iluso dos sentidos ou fantasmagoria, em suma, o que tu supuseste ver em mim,vou-ta explicar: a obra da sua juventude. A luta da minha alma para igualar a sua juventude, paraque no tenha que me consumir perante ela, em vergonha e humilhao.

    Ana chorava. Ambas estavam enlaadas e as suas lgrimas confundiram-se. Isso, tambm disse com esforo , isso, tambm, que acabas de dizer, minha querida,

    est ligado palavra estranha que empregaste e, como ela, denota na tua boca um pouco dealucinao. Essa infeliz transformao destri-te, vejo-o com os meus olhos, percebo-o nas tuasopinies, e acho que devemos pr-lhe um dique e um termo para te salvar dela por qualquerpreo. Mam: o esquecimento vem quando se deixa de ver o objeto amado. Trata-se de tomaruma deciso e uma deciso salutar. preciso que esse rapaz no venha mais a nossa casa, e

    devemos romper com ele. E isso no bastante. Tu encontra-lo l fora, na vida de sociedade.Devemos, portanto, fazer com que ele se decida a deixar a cidade. Eu encarrego-me de oconvencer: Falarei amigavelmente com ele, mostrar-lhe-ei que aqui vegeta e se gasta, que jesgotou h muito os recursos de Dusseldorf, que no deve deixar-se apodrecer nesta terra. Dir-lhe-ei que Dusseldorf no toda a Alemanha e que preciso aprender a conhec-la mais emelhor. Que Munique, Hamburgo e Berlim existem tambm. Que deve fazer a experincia dessascidades, manter-se em movimento, ficar aqui e acol algum tempo, antes de voltar sua ptria,como o exige naturalmente o seu dever, para l exercer um verdadeiro ofcio, em vez de andar naEuropa a brincar ao invlido professor de lnguas. Saberei faz-lo compreender claramente; e seele recusar e se obstinar em ficar em Dusseldorf, ou se de fato tem c qualquer ligao, ento,mam, seremos ns que partiremos. Renunciaremos a esta casa, e emigraremos para Colnia ou

    para Frankfurt, ou para qualquer belo stio do Taunus. Deixars aqui o que te atormenta e podeprovocar a tua destruio e esquec-lo-s s pelo fato de o no veres. O remdio infalvel: suficiente deixar de ver, porque no existe nenhum caso em que no se possa esquecer. Tu dirsque o esquecimento uma vergonha. Mas conta com isso: o que acontece. E ento, no Taunus,gozars da bela Natureza e voltars a ser a nossa antiga querida mam.

    Assim falou Ana, com muita solicitude, mas completamente em vo. Para, para, Ana! Nem mais uma palavra a esse respeito: no poderia escut-la! Tu

    choras comigo e o teu cuidado inspira-se na tua afeio. Mas o que dizes, as tuas propostas soinaceitveis e apavoram-me. Escorra-lo a ele? Irmo-nos ns embora? At onde que desvaira atua solicitude? Falas da querida Natureza, mas ds-lhe uma bofetada em pleno rosto, com as tuasexigncias. Queres que eu a esbofeteie, abafando a dolorosa primavera que ela, milagrosamente,

    acordou na minha alma! Que pecado no seria esse, que ingratido, que deslealdade para com ela,que negao de f no seu benfazejo poder! Tu no te lembras de Sara e como ela pecou? Ela ps-se a rir sozinha atrs da porta e disse: Devo ainda conhecer a volpia, agora que estou velha eque o meu marido tambm est velho? Mas o Senhor Deus, irritado, disse: Porque que Sarariu? Na minha opinio, ela ria menos da sua idade e do seu esgotamento que do fato de Abrao,seu senhor, ser to velho e to carregado de anos que j contava noventa e nove. Que mulher noteria vontade de rir com o pensamento de conhecer a voluptuosidade com um companheiro denoventa e nove anos, mesmo sendo a vida amorosa dos homens menos rigorosamente limitadaque a das mulheres? Mas o meu senhor jovem e em plena juventude. E como esse pensamentome deve ser mais ligeiro de suportar e mais sedutor! Ai de mim! Ana, minha filha fiel, a volpia,uma volpia humilhada e aflita, est no meu sangue, no meu desejo, e no posso separar-me dela.

    No posso fugir para o Taunus, e se tu acabasses por decidir Ken a partir, creio que passava aquerer-te terrvelmente mal!

  • 8/7/2019 Thomas Mann - O Cisne Negro

    25/40

    Grande foi a pena de Ana ao