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Educação e Transição para a Vida Adulta de Crianças e Jovens com
Deficiência Intelectual Acentuada
(Conferência realizada pelo Professor Lou Brown, na
Fundação Calouste Gulbenkian, no dia 12 de Junho de 2002)
Muito obrigado por me receberem. Sinto-me honrado em estar convosco. Vou tentar
falar devagar e não me portar como um americano insuportável. Por isso, se eu disser
alguma coisa ofensiva a Portugal, por favor desculpem-me, não é essa a minha intenção.
Os assuntos sobre os quais vou falar aconteceram no local onde vivo e no contexto do
meu trabalho. Dado o seu interesse para nós, coloca-se-me agora o problema de ser
capaz de os tornar interessantes para vós. Na primeira parte desta conferência iremos
falar sobre escolaridade que, na nossa opinião, não é um fim em si mas é apenas um
meio para atingir um fim. Iremos falar sobre as metas e os resultados que queremos tão
desesperadamente alcançar. Se o tempo me permitir, vou tentar falar sobre escolas de
ensino regular e sobre as razões pelas quais alunos com deficiências severas as
deveriam frequentar. Primeiro, gostaria de vos falar sobre a escola. A seguir, gostava de
vos dar a conhecer as mais de sessenta pessoas com quem temos trabalhado, ao longo
de trinta anos. Alguns dos alunos que conheci com cinco anos têm agora trinta e cinco.
Os que conheci com dez têm agora quarenta. Temos acompanhado as suas vidas. Penso
que é a primeira vez que isto foi feito, já que pessoas como estas nunca viveram até tão
tarde. Nos Estados Unidos, em 1929, a esperança de vida de pessoas com Síndroma de
Down era de nove anos de idade. Subiu para os trinta e oito, trinta e nove anos, e são
essas pessoas que eu gostaria de vos dar a conhecer. Dizer-vos o que estão a fazer neste
momento e como conseguiram lá chegar. Mas isso será na segunda parte.
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Outra coisa que queria partilhar convosco, quando estivermos a falar de empregos, é
como colocar pessoas com deficiências severas no mercado do trabalho. Há cinco ou
seis anos atrás foi-nos pedido pelo Estado de Illinois, em Chicago, que formássemos
pessoas vítimas de violência e de negligências, enquanto jovens, retiradas às respectivas
famílias e postas em casas de acolhimento. Estes jovens têm problemas na escola e
estão a passar exactamente pelas mesmas dificuldades que passam as pessoas com
deficiências severas. Não vivem em boas condições, não têm trabalho e, a maioria deles,
já tiveram problemas com a justiça. Pediram-nos que utilizássemos algumas das
técnicas desenvolvidas no trabalho com pessoas com deficiências físicas e intelectuais e
as aplicássemos a estas pessoas que, apesar de terem maior capacidade física e
intelectual, se deparam com dificuldades semelhantes. Contarei algumas histórias sobre
este assunto na segunda parte.
Ontem conheci pessoas maravilhosas que trabalham no Instituto de Inovação e falámos
sobre empregos para pessoas com deficiências severas. Sabemos que um dos maiores
problemas que se levantam é saber como conseguir que as empresas abram as suas
portas e os deixem lá trabalhar. Gostaria de falar meia hora, quarenta e cinco minutos,
sobre algumas das estratégias que utilizamos e espero que tenham relevância no vosso
país. Muitos dos assuntos sobre os quais iremos falar já estão disponíveis num site de
Internet, temporariamente em inglês. É gratuito e podem obter o endereço junto do
Instituto.
1ª Parte
Educação de Crianças e Jovens com Deficiência Intelectual Acentuada
O que acontece é o seguinte: um bebé nasce, vamos supor que num hospital (tem que
nascer nalgum lado), depois vai para casa — dois locais — a seguir vai à Igreja para ser
baptizado — três locais — a seguir vai ao pediatra — quatro locais — depois vai ao
parque, a seguir vai a uma loja. É o que acontece no meu país e no vosso. Um bebé
nasce e vai a diversos locais. (Vamos tentar contabilizar rapidamente, em quantos locais
qualquer um de nós esteve nos últimos sete dias?) Quando os bebés são pequenos, não
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vão a muitos sítios mas à medida que vão crescendo esse número vai aumentando.
Estivemos em Lisboa segunda-feira, dia feriado, e devíamos ser as únicas pessoas que
cá estavam, não estava cá mais ninguém, estavam todos noutro sítio qualquer. Não
havia carros na estrada, ninguém nos autocarros, não estava cá ninguém. Mas já
voltaram.
Há uma altura na nossa vida, à medida que vamos envelhecendo, em que já não
queremos ir a muitos locais e essa vontade vai diminuindo, diminuindo até à altura em
que, num determinado local, morremos. É assim quando não se é deficiente. Quando se
nasce com uma deficiência, a vida começa no Hospital, segue-se a casa, uma ida à
Igreja, uma ida ao pediatra e então aí começa o ciclo: casa – autocarro - escola -
autocarro - casa. Estudámos as vidas de pessoas com deficiências severas e concluímos
que elas não vão a muitos sítios; não vão a um sítio e depois a outro, vão apenas a um.
E, muitas vezes, no meu país e no vosso, depois da escola vão para casa onde ficam sem
fazer nada. Não participam na nossa cultura, não experimentam as coisas positivas que
existem no mundo lá fora.
Nós, como educadores, temos de pensar qual é a nossa função. Uma delas é aumentar o
número de locais onde pessoas com deficiência possam ir, de modo a tentar que se
desloquem ao mesmo número de locais a que nós normalmente vamos. Devemos fazer
tudo o que pudermos para aumentar esse número. E devemos ultrapassar os obstáculos
que se colocam à sua aprendizagem relacionada com a utilização desses diversos locais.
Não quero ofender ninguém, mas afirmo que a segregação gera segregação. Se
segregarmos um deficiente, enquanto jovem, estamos a aumentar a probabilidade de ele
vir a ser segregado mais tarde por não ter aprendido a funcionar numa sociedade
integrada, a qual, por sua vez, não sabe lidar com ele. Por outro lado, integração gera
integração. Mas a teoria é que (e espero que a realidade também o seja) quantas mais
pessoas souberem interagir com pessoas com deficiências severas, melhor preparadas
culturalmente estão para as poderem apoiar na vida pós-escolar. Quando estudamos a
vida de uma pessoa com deficiências severas, vinte e quatro horas por dia, sete dias por
semana, podemos contar o número de locais em que funcionam. A isso chamamos
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“análise da vida no espaço e no tempo”. Dado que, a maior parte não vai a muitos
locais, devemos aumentar esse número.
Depois, podemos ir um pouco mais longe. Com quem é que ficam as pessoas com
deficiências severas que conhecem? Com quem estão vinte e quatro horas por dia, sete
dias por semana? Regra geral, estão com familiares ou com pessoas pagas para isso. Por
isso, dizemos a uma mãe: "A nossa equipa avaliou a sua filha de cinco anos. Ela tem
deficiências significativas e quando acabar a escola, se chegar a acabar, aos dezasseis
ou dezoito anos, as únicas pessoas que vão interagir com ela serão familiares e pessoas
pagas para estar com ela". O que é que pensam disto? É devastador dizer isto a um pai
e a uma mãe; não queremos fazê-lo. Nós, como profissionais, conhecemos a realidade e
sabemos o que acontece. O que é que podemos fazer? Para além de aumentar o número
de locais onde estas pessoas possam funcionar, vamos especialmente tentar aumentar o
número de pessoas não remuneradas com quem possam interagir.
Há anos atrás, fui a uma escola onde encontrei um rapaz sem braços nem pernas. Visito
normalmente várias escolas. Se vejo alguém com autismo, não me pergunto qual seria a
minha vida se tivesse autismo. Vocês poderão fazê-lo, eu não. Entro numa escola, vejo
uma pessoa com Síndroma de Down e não me pergunto qual seria a minha vida se
tivesse Síndroma de Down. Vocês poderão fazê-lo, eu não. Entrei numa escola e vi uma
pessoa sem braços nem pernas. Nesse momento, perguntei-me qual seria a minha vida
se eu não tivesse braços nem pernas. Sei que não o deveria fazer, mas fi-lo. Não
conseguia imaginar-me sem braços, nem pernas. Fiz o que não era suposto fazer, como
profissional.
Eu lecciono uma cadeira na Universidade de Wisconsin e todos os semestres os alunos
têm a opção de, ou fazer um exame, que aliás detestam, ou virem comigo para a cidade
trabalhar com pessoas com deficiência. A escolha é deles. Já uso este sistema há trinta e
três anos e, até agora, não houve um único aluno que tenha escolhido fazer o exame. Por
isso, tenho estes colaboradores maravilhosos e jovens.
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Escolhi várias pessoas para ajudar o Todd, porque eu estava bloqueado em relação ao
facto dele não ter braços nem pernas. Consegui voluntários para o levar ao mercado dos
agricultores todos os sábados de manhã, aos jogos de futebol aos sábados à tarde, às
festas da escola, à catequese nos domingos de manhã. Como dou formação a
professores na Universidade, todos os semestres conseguia arranjar um bom professor
que lhe garantia um ensino individual. Alguém competente estava sempre com ele.
Isto durou anos e anos. Na sua adolescência, aos dezasseis, dezassete anos, o seu
comportamento tornou-se muito difícil e, sem querer dizer nada de negativo acerca dele,
há que reconhecer que passou a constituir um problema. Estava mimado, tinha tudo o
que queria, bastava piscar o olho para ter várias pessoas ajudá-lo. Em Maio, aos
dezanove anos, teve uma pneumonia e morreu. Ficámos todos muito tristes.
No Outubro seguinte fui a uma escola e vi o Brendan. Olhei para ele e pensei: tenho
uma outra oportunidade e é raro conseguir duas oportunidades na vida. O que é que vou
fazer com o Brendan? Pô-lo numa aula com outras crianças com deficiências
ortopédicas, como fiz com o Todd? Arranjar estudantes universitários inteligentes para
estarem com ele a toda a hora, como fiz com o Todd? Dar-lhe uma educação individual,
como fiz com o Todd? Vê-lo tornar-se uma criança isolada e difícil? Não, não vou fazer
isso; já experimentei esse caminho e tenho pena que tenha corrido da forma como
correu. O Brendan nunca vai conhecer o interior de uma sala de aula de educação
especial, não vai aprender com pessoas que são subornadas ou pagas para estarem com
ele. Vai desenvolver relações com pessoas da sua idade cronológica. Não posso cair no
mesmo erro.
Gostaria agora de falar sobre as relações sociais, de pessoas com deficiências severas,
no meu país. O que nós queremos é aumentar a extensão das relações sociais de um
modo individualizado e penso que vocês também o querem. Ninguém quer alguém a
dizer-nos com quem é que podemos ou não interagir. Gostamos de ser nós de fazer essa
escolha. Todos queremos ter a oportunidade de aprender a interagir com quem achamos
mais atraente. O problema, nos Estados Unidos, é que as pessoas com Síndroma de
Down estão juntas com outras, também com Síndroma de Down, e não podem estar
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com outras pessoas. Quando se tem autismo, vai-se de férias para um campo de férias
de autistas. Historicamente, de um modo terrível, confinámos as relações sociais de
pessoas com deficiência a pessoas com a mesma deficiência.
Qual é o nosso trabalho? Aumentar o âmbito das relações sociais de modo a que sejam
tão abrangentes como as nossas. Eles não são como nós; nós funcionamos bem,
sabemos fazer amizades. Se nos sentimos sozinhos sabemos como conhecer alguém.
Pessoas com deficiência não o sabem fazer e, por isso, temos que as ajudar. O que
temos que conseguir é tornar o âmbito de relações sociais mais abrangente e, para isso,
temos de começar enquanto são jovens e construí-lo, ao longo do tempo. Alguma vez
viram dois autistas a jogar ténis? Já viram dois deficientes visuais e auditivos a jogar às
damas? A regra é: quanto mais deficiente se é mais se precisa de ter relações sociais
com pessoas não deficientes. Se aceitamos esta tese, ao olharmos para a história de
pessoas com deficiências severas e verificarmos com quem é que elas interagem, vemos
o caminho que temos de andar.
Onde é que vamos encontrar essas pessoas não deficientes? A resposta é: nas escolas de
ensino regular. O que queremos é construir uma variedade de relações sociais com os
jovens das escolas de ensino regular e conseguir que essas mesmas relações se
mantenham fora da escola. Olhem para a Cristina1: ela é bonita, não é? Olhem para
aquela pele, para aqueles dentes tão bonitos. Adoro o cabelo dela, ela é linda. Estão a
ver? Se ela quisesse conhecer alguém depois da conferência bastava ir ao centro da
cidade, mostrar os dentes e sorrir. Viriam todos atrás dela. É muito fácil para ela e para
pessoas como ela. Muito fácil mesmo. Se ela fosse num cruzeiro, conseguia quinze
encontros numa hora. É fácil, não é? Não funciona assim para pessoas com deficiência.
Como é que vamos conseguir atrair pessoas para junto daqueles que o não conseguem
fazer sozinhos? Como é que lhes vamos conseguir uma maior diversificação de relações
sociais?
Através da nossa experiência, sabemos que são precisas pelo menos duas coisas:
1 Referindo-se a uma pessoa da assistência
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a) Experiências comuns. Eles precisam de qualquer coisa para partilhar. Não podemos
ter um jovem a passar por uma experiência, outro jovem por outra e esperar que
eles comuniquem sobre essas experiências diferentes. Assim não funciona. Mas, se
eles estiverem na mesma aula, se praticarem exercício no mesmo ginásio, se
viajarem no mesmo autocarro, se estiverem envolvidos nas mesmas actividades, já
têm uma experiência comum que podem recordar juntos.
b) Contactos frequentes. É preciso muito tempo para conhecer uma pessoa com
deficiências severas. Temos de conseguir ultrapassar os problemas de comunicação.
Não podemos fazê-lo só uma vez por semana pois demora tempo. Funciona melhor
diariamente, várias vezes ao dia. E demora tempo.
Assim, qual é a nossa função? Como educadores, qual é o nosso trabalho? Se
quisermos aumentar e melhorar o âmbito das relações sociais de pessoas com
deficiências severas temos de gerar experiências comuns, estabelecer contactos
frequentes, através de longos períodos de tempo, com pessoas não deficientes. Como é
que o vamos conseguir? Na nossa opinião é através das aulas de ensino regular. Temos
um manual chamado “Inventário das Relações Sociais de Madison” que podem
descarregar da Internet.
Funciona da seguinte maneira: pegamos num tipo de relação social na qual estamos
interessados, como por exemplo, comer. Sentamo-nos com uma família e perguntamos
à mãe "com quem é que o seu filho costuma comer?". Normalmente não percebem este
tipo de pergunta, estão mais habituados a que lhes perguntem qual é a idade mental, se
conseguem contar até dez e quais as cores que conhecem. Ninguém pergunta a uma mãe
de uma criança de cinco anos com quem é que ela come. Perguntam-nos porque é que
queremos saber isso. Respondemos que achamos que as únicas pessoas que comem com
a criança são familiares e pessoas pagas para isso. Quando acaba a escola, queremos
garantir que a criança fará as suas refeições com as mesmas pessoas com que as faria se
não fosse deficiente. Se ela está a fazê-lo agora, não vamos perder tempo com isto. Mas
se não o estiver, teremos que construir relações de alimentação e hábitos alimentares.
Perguntamos também: "Com quem é que seu filho se desloca?" A resposta é: com
membros da família e no autocarro da escola. Não se desloca em comboios, autocarros
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ou à boleia com alguém conhecido. Precisamos de descobrir quais são os meios de
deslocação para começar a ensinar competências na mobilidade.
Será que numa sala de aula de ensino regular existem alguns alunos que realmente
possam ajudar este tipo de crianças? Ou que o saibam fazer, sem interferir com o seu
próprio desempenho. Temos de construir esse tipo de entre-ajuda nas salas de aula de
ensino regular. Temos também que saber se a criança tem professores que a ajudem e
colegas do ensino regular que a ensinem na aula e em actividades extra curriculares
promovidas pela escola. Na Primavera passada, avaliei dois liceus numa área onde
vivem famílias muito abastadas nos arredores de Chicago. E foi umas das experiências
mais extraordinárias que tive. Têm quatrocentas crianças com elevados problemas
educacionais havendo, por isso, apoio especial nos dois liceus. Setenta e cinco por
cento das crianças estão inseridas em actividades extra curriculares promovidas pela
escola. É extraordinário, mas não conheço nenhuma outra escola nos Estados Unidos
que faça isto. Normalmente, logo que toca a campainha, as crianças com deficiências
são postas no autocarro para serem levadas para outro sítio qualquer. Não participam
no clube de teatro, no clube de agricultura, no futebol, nem noutro tipo de actividades.
Se há actividades extra curriculares promovidas pela escola temos de saber se as
crianças com deficiência têm acesso a elas ou são excluídas. Nós queremos garantir-lhes
este acesso porque essas actividades extra curriculares na escola são recreativas, são o
princípio do futuro, da passagem para a vida adulta.
Temos ainda de perguntar: "com quem é que está a criança depois da escola e aos fins-
de-semana? E, agora, a pergunta mais difícil: "a criança tem algum amigo?" Nós, se
tivermos dez bons amigos na nossa vida, consideramo-nos com muita sorte. Muitos de
nós só sabemos o bom que é ter um amigo quando essa amizade é posta em causa; só aí
é que percebemos o significado que tinha nas nossas vidas. Quando perguntamos aos
pais de uma criança com deficiência se ela tem um amigo, a resposta é invariavelmente
negativa. Temos um manual que nos ajuda a construir uma relação social alimentar, na
escola, com outras crianças não deficientes. Sabemos fazê-lo. Já o fizemos, não temos
problemas nenhuns em relação a isso. Querem construir relações sociais durante as
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deslocações? Já o fizemos, não temos problemas nenhuns em relação a isso. Conseguir
que as crianças do ensino normal as ajudem? Não é um problema, podemos mostrar-
lhes como fazê-lo. Conseguir envolvê-los em actividades extra curriculares? Facílimo.
Eu posso fazê-lo, vocês podem fazê-lo, mas o que não sabemos fazer é arranjar-lhe um
amigo. É uma coisa terrível para se dizer a uma criança deficiente ou aos seus pais.
Consigo fabricar uma relação social mas não consigo arranjar-lhe um amigo. Podemos
esperar que, através dessas relações sociais, se desenvolva uma amizade, mas nos
quarenta anos de trabalho com pessoas com deficiência raramente vi isso acontecer. Se
não conseguirem um amigo pelo menos têm de conseguir relações sociais, que sempre
são melhores do que não terem nada.
Deixem-me falar-vos um pouco sobre Wisconsin, o Estado onde vivo, na parte central
dos Estados Unidos. Somos o Estado dos lacticínios, produzimos mais leite, queijo e
lacticínios do que qualquer Estado da América do Norte, o que é fruto de uma grande
influência alemã, suíça e escandinava. O solo é bom e é extraordinário o que se
consegue extrair de uma vaca hoje em dia. Mas é preciso vender o que se produz. Em
Portugal não se preocupam tanto com isso mas, nos Estados Unidos, toda a gente tem
de vender e comprar alguma coisa. É por essa razão que temos uma lei estatal que diz
que temos de ter seis refeições por dia. Se já viram um jogo de futebol americano na
televisão, já repararam que as pessoas na assistência são extraordinariamente grandes.
Vocês parecem uns anões comparados com os habitantes de Wisconsin. Uma pessoa
ocupa dois lugares. Temos de comer, alguém tem de consumir aquela comida toda.
Começamos com um grande pequeno almoço, a meio da manhã comemos qualquer
coisa, seguimos com um bom almoço, à tarde comemos um lanche e à noite comemos
um bom jantar. Depois, em Wisconsin, somos obrigados, por lei, a comer uma pizza
com queijo duplo, antes de ir para a cama. Fantástico, não? São seis vezes por dia que
precisamos de comer, sete dias por semana, o que dá quarenta e duas vezes por semana,
duas mil e cem por ano. Podem contar. E isto acontece ao longo da vida. Quantas vezes
comeram hoje, com quem é que comeram, com quem é que vão comer amanhã? Assim
tentámos desenvolver relações sociais durante as refeições entre as pessoas deficientes e
as não deficientes. Já reparei que isto não acontece em Portugal.
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Este rapaz2, aqui no meio, tem Síndroma de Prattwills. Tem uma necessidade enorme de
estar sempre a comer, mas qualquer coisa de substancial. Esse é o seu problema: basta
ter comida ao pé dele que a come imediatamente. Antigamente, quando trabalhei com
pessoas com este tipo de problema, o que acontecia era que comiam até desmaiar. Iam
até ao ponto de se fecharem numa mercearia, quando esta encerrava, e comiam sem
parar. Encontravam-nos, no dia seguinte, completamente empanturrados. Um dia uma
mulher telefonou-me da Califórnia e perguntou-me se eu trabalhava na defesa dos
interesses de pessoas com deficiência e se sabia o que era o Síndroma de Prattwills.
Respondi-lhe que sim, que eram aquelas pessoas que comiam muito. Pediu-me então
ajuda para montar uma instituição para pessoas com esse síndroma, na parte central dos
Estados Unidos, no Kansas, Missouri, ou em qualquer lugar. Perguntei-lhe se ela estava
a pensar num sítio que prestasse apoio vinte e quatro horas por dia, sete dias por
semana, a pessoas com esse síndroma, e se elas viriam para esse local de todos os
cantos do país. Respondeu afirmativamente, dizendo também que não se falaria de
comida, para não os excitar, não haveria imagens de comida, não haveria máquinas de
venda de comida e seriam recortadas todas as imagens de comida de todas as revistas. E
toda a comida estaria fechada à chave. Respondi-lhe que não a iria ajudar porque não
concordava que se tratassem crianças assim pois isso não as levava a lado nenhum.
Disse-me que pensava que eu defendia os interesses deles. Respondi-lhe que sim, mas
não dessa maneira. Para além disso, quem é que iríamos arranjar para trabalhar num
sítio desses? Talvez fosse uma excelente oportunidade para anoréxicos e aí tudo
começava a ficar um pouco doentio!
Este é o Aaron. Fizemos um inventário das suas relações sociais e partilhámos essa
informação com a sua mãe. Contámo-lhe que quando toca a campainha para o almoço
um paramédico o leva para a sala de enfermagem, abre o tubo ligado ao seu estômago e
esvazia-o. Depois coloca mais comida através do tubo, fechando-o com o clip. Deixa-o
sozinho na sala e vai almoçar. Quando toca a campainha, o paramédico volta e torna a
levá-lo para a aula de ensino regular. Isto, porque ele é alimentado por um tubo ligado
ao estômago. Sentámo-nos e explicámos à mãe o que acontece com o filho à hora do
almoço. A mãe chama-se Linda e é uma mulher fascinante. Perguntou-nos qual o
2 Os casos a que o Professor Lou Brown faz referência estavam apresentados em diapositivos.
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objectivo dessa rotina e se já pensámos onde esta atitude nos vai levar. Imaginem esta
criança com vinte, com trinta ou com trinta e cinco anos; estamos a prepará-lo para quê?
Perguntámo-lhe então o que é que ela queria. Respondeu que queria que o seu filho
comesse nas mesmas circunstâncias em que comeria se não fosse deficiente, que não
queria alguém pago para o alimentar. Disse-nos que, a funcionar assim, não
cumpríamos a função de uma escola, não o estávamos a preparar para uma vida real
com sentido. Isto era um desafio interessante para nós. Pedimos voluntários ao grupo do
terceiro ano e conseguimos cinco. A Linda mandou pedidos por escrito para casa deles e
os pais responderam que concordavam. (A enfermeira da escola não quis participar). A
Linda começou então a treiná-los. Não é preciso ser médico para o fazer uma vez que
não é um procedimento médico. Agora o Aaron vai à cantina com os colegas. Ninguém
é pago para ajudá-lo a comer, os seus colegas dão esta ajuda. São cinco os colegas que o
ajudam e têm um sistema de rotação para não se sobrecarregar um só.
Mas a pergunta mantêm-se, qual é o objectivo, qual é melhor método? Nos Estados
Unidos temos uma lei federal que requer (gostava que pensassem nisto) o que
chamamos um programa educativo individual, um PEI. Na minha opinião, nenhum PEI
é aceitável se não construirmos sistematicamente uma rede vasta de relações com
pessoas não deficientes. É impossível educar crianças com deficiência sem relações
sociais com crianças não deficientes.
Já falámos sobre o número de ambientes e sobre as relações sociais. Vamos agora falar
sobre as salas de aula. Penso que o que acontece no meu país não seja muito diferente
do que acontece no vosso. Uma equipa de profissionais avalia a criança, juntam-se,
fazem um relatório e chamam a família para lhes mostrar os resultados da avaliação.
Legalmente é assim que o fazemos, que temos de o fazer. Os pais concordam que se
faça a avaliação e nós fazemo-la. Nos Estados Unidos temos um tipo de pessoas a quem
chamamos Yuppies: um casal, ambos empregados, com poucos filhos, sete carros, bons
vinhos, jóias e férias no Clube Med. Apesar de não serem os únicos, alguns deles têm
crianças com deficiências severas. A uma certa altura, começam a suspeitar que há
qualquer coisa de errado com o filho ou a filha e pedem-nos uma avaliação. Depois de
avaliar a criança, dizemos aos pais que pensamos que ela irá ter problemas graves de
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aprendizagem, que irá adquirir menos competências numa semana, num mês, num ano,
na fase escolar completa, do que noventa e oito por cento das outras crianças da
comunidade. Eles compreendem imediatamente, têm razões para isso pois são
profissionais com formação universitária. Quando lhes perguntamos o que acham que se
faça, respondem rapidamente: terapia. Os Yuppies gostam muito de terapia e estão
habituados a comprar a solução para os seus problemas. Quando não gostam do nariz
fazem uma estética, se não gostam do cabelo arranjam alguém para o melhorar, se há
alguma coisa estragada em casa arranjam alguém para consertar. E é por isso que eles
querem terapia. Para nós não há problema, não é o nosso dinheiro, vamos dar-lhe toda a
terapia que quiserem. Perguntamo-lhes se querem mais alguma coisa e respondem-nos
que também querem um paramédico para o seu filho. Damo-lhes o paramédico e temos,
então, uma criança com cinco anos dispondo de uma pessoa só para o ajudar. Querem
também que venha um veículo motorizado - todos os dias a casa deles às sete e um
quarto da manhã - entre em casa e, através de um tapete rolante, a retire da casa de
banho, a transporte para o carro e a traga de volta à casa de banho às quatro e quarenta e
cinco da tarde. Interessante, um serviço porta a porta.
Nos Estados Unidos gastamos biliões de dólares todos os anos em terapia, serviços
porta a porta e paramédicos. E o resultado é que quanto mais terapia tiver na escola,
mais serviço porta a porta, mais assistência paramédica, menos preparada a criança fica
para funcionar numa sociedade integrada quando terminar a escola. Pensem nisso!
Em Wisconsin, o maior problema são os agricultores (sei que não têm esse problema
em Lisboa). Conhecemos uma família de agricultores, avaliámos o seu filho e dissemos-
lhe o mesmo que aos Yuppies. Depois de avaliar a criança, dissemos-lhes que iria ter
graves problemas de aprendizagem, que iria adquirir menos competências numa
semana, num mês, num ano, na fase escolar completa, do que noventa e oito por cento
da outras crianças da comunidade rural. Olharam para nós de um modo estranho e
perguntaram-nos se iria aprender menos coisas que a outras crianças. Respondemos que
sim. Disseram-nos então para não lhe ensinarmos coisas inúteis, porque, se ele vai
aprender menos coisas, é bom que não o façamos perder tempo e que escolhamos as
coisas mais importantes. Como podem ver, os agricultores são um problema,
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comparados com os Yuppie, que são fáceis, pois basta comprá-los. Os agricultores são
duros. Portanto, temos uma tarefa pela frente: se a criança vai aprender menos coisas,
temos de escolher as mais importantes e não a fazer perder tempo com coisas inúteis. É
este o nosso grande desafio.
Vamos analisar o que vamos ensinar a uma criança, por exemplo, entre as oito e quinze,
e as oito e meia. Será esta a coisa mais importante que deveria estar a ser ensinada?
Entre as oito e trinta e as oito e quarenta e cinco; será esta a coisa mais importante que
deveria estar a ser ensinada? Analisemos o dia escolar, tentando perceber se o que
estamos a ensinar neste momento é o mais importante para ela. Trata-se de um
problema interessante. Comunicamos aos pais que o seu filho vai aprender menos
coisas que qualquer outra criança. Eles dizem-nos para lhe ensinar cálculo, latim, etc.
Não é possível. Nós, profissionais, sabemos que não é apenas o número de
competências que adquirem que é menor, mas também o seu nível de dificuldade que
tem de ser inferior. Há pessoas que conseguem aprender matérias extremamente
complicadas, evoluindo sempre. Vão, por exemplo, ver a exposição aqui na Fundação e
aprendem imenso sobre arte. (É incrível o que muitas pessoas sabem que nós não
sabemos, pessoas muito mais capazes do que nós.) As pessoas das quais estamos a falar
só conseguem aprender até um certo nível de dificuldade. A esse nível funcionam
perfeitamente mas, se os pusermos num nível mais elevado, confundem tudo. (Pensem
em chefes e administradores que conhecem).
Deparamos agora com um problema: é preciso seleccionar matérias de interesse, tendo
em conta que só têm capacidade para aprender poucas coisas e que estas têm de estar
dentro da sua capacidade de aprendizagem. É isso que enlouquece toda a gente quando
pomos uma criança numa sala de aula regular. Os professores adoptam um ensino numa
perspectiva vertical, aumentando gradualmente a dificuldade e, para estes alunos, isso
não funciona. Vão precisar de fazer muitas experiências e de ter muitas oportunidades
de ensino para definir o seu nível deficiência. A professora de ensino regular, com os
outros alunos, vai demorar cinco dias para dar uma lição mas, para estes alunos, esse
tempo não chega, pois não passam por experiências suficientes. Precisamos de mais
tempo de ensino. Todos sabemos disso.
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Quero ensinar a esta criança, com uma deficiência intelectual severa, o que é uma maçã.
Como é que o fazemos? Dizemos-lhe para ir estudar um livro sobre maçãs? Isso é
impossível porque ela não sabe ler. Não é assim que lhe vamos ensinar o que é uma
maçã. A uma criança normal dizemos que uma maçã é mais ou menos redonda, algumas
parecem umas esferas, algumas são encarnadas, mas também há umas bastantes verdes,
algumas amarelas, algumas têm altos. Será esta a melhor maneira de ensinar o que é
uma maçã a uma criança com problemas de aprendizagem severas? Não é, certamente.
Esta é uma silhueta de uma maçã feita por Picasso, compreenderam agora? Não é
também desta maneira que se ensina o que é uma maçã a uma criança com uma
deficiência severa. Qual será a melhor maneira de ensinar estas crianças. Temos de
concretizar, de tornar o que se ensina atingível, de uma forma sensata e empírica. Se
quisermos ensinar uma criança, com uma deficiência severa, o que é uma maçã,
pegamos nela, apalpamos, esprememos, tocamos e provamos. É este o modo de
compreender o que é uma maçã. Se calhar, é por isso que a educação sexual se torna um
verdadeiro problema, para nós, nas escolas.
Quando mudamos os contextos às crianças sem deficiência elas usam a informação
adquirida numa situação e transferem-na para outra. Quando ensinamos as crianças do
ensino regular a contar na escola, elas mais tarde vão ao mercado e praticam, vão para
casa e jogam um jogo e estão novamente a contar. Conseguem utilizar o que
aprenderam numa situação e transferi-la para outra. Quanto mais severa for a
deficiência intelectual duma criança, mais dificuldade vai ter em transferir e generalizar.
Nós sabemos isso quando avaliamos as crianças. Por essa razão, não as podemos pôr
numa situação em que vão ter de transferir e generalizar; isso não seria justo. Não se
pode dizer que na segunda-feira não generalizam bem e pedir-lhes que o façam na terça-
feira. Se estamos interessados em saber se esta criança consegue atravessar esta rua, a
esta hora, com esta quantidade de tráfego, vamos ter de a levar lá e ensiná-la. Se
queremos saber se esta pessoa consegue executar esta tarefa, no seu local de trabalho,
com estas condições, vamos ter que a levar lá e ensiná-la lá. O que não podemos fazer é
falar sobre o assunto, experimentar num local e esperar que o façam noutro local. Isso
não funciona. Todos nós esquecemos, mas estas crianças esquecem mais, demoram
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mais tempo a aprender e, se não praticarem, esquecem. Quando têm que aprender tudo
pela segunda vez, demoram o mesmo tempo como se fosse a primeira. Este é um
problema real para o qual gostaríamos de ter uma solução.
Para cada um destes problemas há uma solução. Neste caso, a solução é nunca ensinar
nada que eles não tenham oportunidade de praticar. Se o fizermos, estamos a perder
tempo. Estamos a perder um tempo valioso em termos educacionais e a desperdiçar
recursos. E, agora, o ponto mais importante. As pessoas inteligentes, pelo menos na
América, têm uma capacidade enorme de sintetizar, provavelmente porque leram
jornais com muita frequência ou viram muita televisão. Um aluno vai para a escola, no
primeiro período aprende matemática e no quarto período aprende ciências. Nesse dia,
depois da escola, vai para a garagem, faz uma síntese do que aprendeu na matemática e
nas ciências e faz uma bomba. É o que acontece com pessoas espertas, pegam num
pouco daqui, um pouco dali, juntam essa informação e produzem qualquer coisa
interessante. As pessoas das quais estamos a falar não o conseguem fazer. Não lhes
conseguimos ensinar, por um lado matemática, por outro lado leitura e esperar que eles
sintetizem essa informação. Por isso, temos que os ensinar dentro de um contexto e
temos que preparar esse contexto para eles.
O importante é não fazer ressaltar as características negativas das crianças, já que são
factores biológicos que não podemos alterar. Estes mesmos factores eram utilizados no
passado para excluir crianças com deficiência da sociedade integrada. O que temos de
fazer é conhecer esses factores, conhecer as características de aprendizagem dos nossos
alunos, mas não deixar que isso os exclua da sociedade que os rodeia. Vamos ter que os
respeitar e não os ignorar, senão erramos.
Quanto tempo é que uma criança portuguesa com uma deficiência intelectual severa,
que representa cerca de um ou dois por cento da população intelectualmente funcional,
passa numa sala de aula de ensino regular? Nos Estados Unidos ainda há crianças que
não passam nem um minuto numa sala de aula de ensino regular. Algumas pessoas
dizem que deveria ser cem por cento do tempo, ou seja, inclusão total. Mas a maior
parte situa-se algures entre os cem por cento e os zero por cento. Gostaria de saber qual
16
é a vossa posição e como e quando é que tomam uma decisão. Vou mostrar-vos uma
das estratégias que utilizamos. Quando as crianças são pequenas não conseguem fazer
nada e eu não me importo. Noventa por cento das alturas em que isso acontece, com
crianças pequenas, não me preocupo muito. À medida que vão ficando mais velhas,
continuam com dificuldades na generalização e continuamos a ter de nos preocupar em
aumentar o número de ambientes nos quais funcionem. Vamos falar mais disto
conforme formos avançando. Na nossa opinião, na da Ana Maria3 e na da sua equipa,
precisamos de ensinar pessoas com um curriculum funcional e queremos ter uma
definição do que se entende por "actividade funcional". Quando pedimos a uma pessoa
com uma deficiência para executar uma tarefa que se ela não fizer alguém terá de a
fazer por ela, segundo a nossa definição esta é uma actividade funcional. Quantas
capacidades funcionais é preciso ensinar na escola; qual a percentagem de capacidades
funcionais do tipo, “se não o fizeres, alguém terá de o fazer” existem no vosso programa
de ensino escolar? E quantas poderão ser ensinadas em casa?
Estão a ver aquele senhor ali no canto?4 Sabem o que significa quando vemos pessoas
como ele e como eu? Já estamos a perder capacidades. Não conseguimos fazer o que
fazíamos há vinte anos atrás. Apesar de não vos conhecer, penso que sejam como eu.
Temem o dia em que vão precisar de alguém para fazer aquilo que agora conseguem
fazer sozinhos. Quanto maior for o número de competências funcionais, maior a
privacidade, maior o número de escolhas, maior a autonomia pessoal, maior a dignidade
em variados contextos. É por essa mesma razão que é importante aumentar o repertório
de competências funcionais das pessoas com deficiência. Por vezes, é muito bom ter um
terapeuta da fala ou um fisioterapeuta que venha à sala de aula e ajude um aluno a
funcionar dentro dela. Mas às vezes, o que existe entre um fisioterapeuta e um aluno
com deficiência é um assunto só deles, privado. E, nesse caso, seria bom que saíssem da
aula.
Às vezes a professora de ensino regular não é boa; não é boa para nenhum aluno e os
alunos têm que a aguentar o ano todo. Quando acontece terem uma boa professora de
ensino regular não a querem largar, querem estar sempre à sua volta. Senti-me melhor
3 Dr.ª Ana Maria Bénard da Costa
4 Referindo-se a uma pessoa da assistência
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hoje do que quando saí do avião. Adoro a Ana, conheço-a muito bem mas mal conheço
as outras pessoas do Instituto. Agora já me sinto confortável ao lado delas. Devem ter
reparado que algumas pessoas, quando começaram a entrar nesta sala, olhavam para
baixo, porque não conheciam ninguém. Outras pessoas ao entrar abraçaram-se e
cumprimentaram logo alguém. Havia uma diferença no grupo de pessoas nesta sala:
umas sentiam-se perfeitamente à vontade, outras reticentes ao encararem um grupo
novo e diferente. Ser-se membro de um grupo, conhecer as pessoas, estar com elas, sair
para depois voltar, é diferente do que chegar pela primeira vez e sentir-se de fora, o que
é o meu caso, mas apesar disso estou a conseguir que sorriam. Quanto mais rirem,
melhor me sentirei. Por isso, para mim, a segunda parte vai ser mais fácil do que a
primeira.
Pensem como se sentiriam se tivessem uma deficiência. Quando é que se sentiriam
membros de um grupo? Quando o professor vos aceitasse como alunos e os alunos vos
considerassem como colegas. Não o deixem ir embora, senão irá tornar-se um visitante
que entra pela primeira vez. Há uma diferença entre um desconhecido que vem pela
primeira vez e um membro do grupo que sai temporariamente. Quando estamos a
estruturar o ambiente, a cultura e as relações sociais dentro de uma sala de aula, temos
que o fazer de maneira a que uma criança com deficiência se sinta parte desse grupo,
acontecendo o mesmo com as restantes pessoas.
Nós temos um Manual que, apesar de não termos tempo de o ver todo, vos vou tentar
mostrar um pouco. O título do manual é “Gerar” (Generate). Escolhemos este tipo de
título propositadamente. Gerar, significa produzir. Não se pode adquirir um pacote,
arranjar um kit, que tenha toda a informação de que precisamos. Temos que gerar
qualquer coisa, gerar uma experiência significativa. É propositado o uso desta palavra,
significativa. Precisamos de uma coisa com significado para ensinar, numa sala de aula
regular, a um aluno com deficiências severas. O que é uma experiência educacional
significativa para um aluno com deficiências severas, numa sala de aula de ensino
regular? Eis a primeira questão. Primeiro ponto: se um aluno aprender, será mais
respeitado (isto é muito importante). Segundo ponto: é essencial conseguirmos
aumentar as suas relações sociais. Anteriormente, era colocado no fundo da sala; agora,
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está inserido num grupo com as outras crianças, mais envolvido socialmente. Isso tem
significado, é importante, é bom. Anteriormente, não brincavam com ele no recreio,
agora está dentro da sala de aula, no recreio e na cantina. Conseguimos aumentar o
número de espaços em que se move. Aumentámos a sua capacidade de relações sociais
e o número de espaços e ambientes onde consegue funcionar.
Terceiro ponto: é significativo aumentar as suas competências funcionais (se não o fizer
por si próprio, alguém vai ter que o fazer por ele). Estamos a ensiná-lo a fazer mais
coisas sozinho. Significativo é pedir menos aos outros: "agora experimenta e tenta fazer
sozinho". É significativo porque lhe dá mais escolhas. Mudamos as nossas expectativas
se ele conseguir fazer mais coisas, como por exemplo: pendurar o casaco, arrumar as
botas e ir buscar o almoço. Mostram-nos as suas capacidades, tornam-se mais
competentes, logo, esperamos mais deles.
Menos Governo na vossa vida. Nós, nos Estados Unidos, não gostamos do Governo.
Tentamos arduamente retirá-lo da nossa vida. Mas o problema é que as pessoas com
deficiência, nos Estados Unidos, estão viciadas nele. Se não existir um programa federal
para eles, não irão a lado nenhum. Isto é um problema real e é por isso que tentamos
retirar o Governo da vida deles. Queremos inseri-los nas suas vizinhanças, comunidades
e grupos religiosos. A vida tem significado quando adquirem mais privacidade, quando
conseguem fazer coisas sozinhos, quando têm um sentimento de pertença, quando
aprendem algo e têm orgulho nisso. E não estamos a falar de actos inúteis, como por
exemplo: "a Susana tocou no vermelho três ou cinco vezes" Isso não nos interessa.
Estamos a falar de coisas com significado. Como a criança que chega da escola, sexta-
feira à tarde, os pais lhe perguntam o que aprendeu durante a semana e ela lhes mostra o
que foi capaz de fazer. Os pais olham um para o outro e as lágrimas correm-lhes pela
cara abaixo; lágrimas de felicidade e orgulho por a sua filha ter aprendido aquilo.
Quando se sentarem para planear o dia, a semana, o ano escolar de uma criança com
deficiências severas, percam algum tempo a pensar o que terá mais significado para ela.
De todas as coisas que podemos escolher para lhe ensinar, porque é que estamos a
escolher esta? Será que tem significado? E como é que vai afectar a sua vida?
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Positivamente? Construtivamente? Se tivéssemos muito tempo, poderíamos falar sobre
temas tais como: "como escolher matérias para crianças com deficiências severas", ou
sobre "as actividades a praticar numa aula de ensino normal", ou ainda sobre "o que
deveriam ser os seus objectivos". Poderíamos também falar sobre este problema
inacreditavelmente complicado a que chamamos o critério de desempenho, que é neste
momento, um assunto muito importante nos Estados Unidos. Tivemos o Presidente
Clinton, o Vice-Presidente Gore, agora temos o Presidente Bush e o Vice-Presidente
Chaney a falar nisto. Todos falaram nisto nas suas campanhas. E a única consequência
que trouxe foi a melhoria dos resultados em testes de realização académica. É isto que
se passa actualmente nos Estados Unidos e na minha opinião é terrível. É terrível, não
se deixem arrastar neste sentido. Pelo nosso país fora, os professores ensinam para
treinar para este teste… Alguém concebeu um teste, os Republicanos compraram-no em
troca de uma contribuição para a sua campanha política. Os professores nos Estados
Unidos estão a ensinar o que os Republicanos querem que eles ensinem. Não se deixem
envolver nisto.
Nós sabemos que estes alunos, com deficiência intelectual severa, têm dificuldades em
generalizar. Já pensaram em treinar a capacidade de transferência? E no modo como os
estamos a agrupar quando os ensinamos? Vamos falar um pouco sobre isto: sobre os
materiais e sistemas de apoio que se utilizam, se estamos a proporcionar um número
razoável de oportunidades de aprendizagem, como os estamos a avaliar, quem os vai
ensinar e como vamos conseguir que os ensinem como queremos. Tomemos como
exemplo um curso na universidade, nas nossas ou nas vossas. Sabemos tudo. A parte
mais fraca em Educação Especial é que, apesar de sabermos o que eles devem aprender,
não sabemos como conseguir que eles aprendam. Se o conseguíssemos eles estariam em
Harvard. Com crianças normais não interessa o modo de ensino porque eles acabam por
lá chegar, seja através da Internet, de computadores, de vídeos, etc. Connosco é o
contrário. Pelo facto do aluno ser tão fraco, tudo o resto tem de ser forte. Não podemos
errar muito. Se o seu filho tiver uma deficiência intelectual severa vamos ensinar-lhe as
mesmas actividades que todas as pessoas precisam de saber fazer, desde que
apropriadas. Se não as conseguirem fazer como os outros, modificamo-las
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especialmente para essa criança. E se isso não for possível, arranjamos uma actividade
alternativa dentro da sala de aula de ensino regular.
Vou agora falar sobre o Dan. Os pais dele são Yuppies, muito interessados no lado
académico. Eles querem a inclusão total do filho nas áreas de leitura, matemática e
ciência. Cem por cento do tempo numa sala de aula regular. É natural que assim seja
pois querem-lhe dar todas as hipóteses de sucesso. O Dan, agora com quinze anos, vai
para o Liceu de Madison West. Nos Estados Unidos, quando se tem uma deficiência
pode-se frequentar a escola até aos vinte e um anos. Vamos então fazer a programação
de um dia no liceu. Os pais, naturalmente, querem que ele tenha as mesmas aulas de
matemática que teria se não fosse deficiente, o que chamamos inclusão total. Não sei
como fazem neste país, mas nós, nas escolas secundárias, temos níveis diferentes.
Temos matemática para alunos brilhantes, excepcionais, com facilidade de compreensão
de matérias complicadas. Temos matemática para alunos que querem seguir para a
Universidade e Matemática para alunos que não se estão a sair bem nessa matéria.
Temos também matemática para jogadores de futebol americano. E, finalmente, temos
matemática para alunos que, apesar de não terem apoio especial, são alunos difíceis.
Avaliamos a capacidade do aluno em matemática e se o resultado for o nível quatro a
tendência será pô-lo na aula de nível mais baixo. E que alunos encontramos nessa aula?
Os alunos difíceis. E não queremos ter um aluno vulnerável nessa aula, pode ser
perigoso, por isso foi tomada uma decisão interessante. O que decidimos foi dar ensino
directo de matemática dentro da escola mas fora da sala de aula. Houve uma discussão
sobre a quantidade de tempo que o aluno estaria na sala de aula regular e o tempo que
estaria noutro local, também integrado no liceu, que poderia ser no Centro de Recursos
ou na Biblioteca.
Quando vêm para a escola secundária, no primeiro ano, têm meio-dia por semana de
formação profissional na cidade, um trabalho real fora do espaço escolar. Em Março,
Abril, o Dan está a trabalhar bastante bem no seu emprego e começa a ganhar dinheiro
(a empresa quer pagar-lhe pelo seu bom desempenho). Apesar de não ser muito, está a
ganhar. Por isso, queremos que ele se desloque ao trabalho de autocarro, que aprenda a
profissão, que ganhe dinheiro e que o use de forma correcta. Queremos que ele compre
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o lanche que vai comer no intervalo do trabalho. Estamos a ver se ele aprende estas
actividades numa sequência natural porque o nosso objectivo é que continue a fazer isto
pelo resto da sua vida. Ir trabalhar, ganhar dinheiro e comprar o lanche. Vai à mercearia
e acontece-lhe aquilo que costuma ser um grande problema para a maioria dos homens:
abrir o saco das compras. Tenta abri-lo, finalmente consegue, dirige-se à prateleira e
pega num pacote de batatas fritas. Dissemos-lhe que as pessoas com deficiências têm
problemas de obesidade e que não podem comer esse tipo de comida. (Legalmente, nos
Estados Unidos, quando se tem uma deficiência só se pode comer iogurtes ou fruta).
Dirige-se então para a secção das frutas, pega num saco e começa a enchê-lo de uvas.
Os professores dele estão lá, eu também estou com a minha máquina fotográfica e
estamos todos muito orgulhosos dele. Ele olha para nós e aí vemos que ele percebe que
enfrenta um problema matemático. Tem setenta e nove cêntimos na algibeira e meio
quilo de uvas custa um dólar e dezanove cêntimos, ele quer saber quantas uvas é que
pode pôr no saco. Se em Portugal vocês tivessem setenta e nove cêntimos na algibeira e
meio quilo de uvas custasse um dólar e dezanove cêntimos o que fariam? Quantas
pessoas nesta sala conseguem fazer este cálculo? Antigamente diríamos ao Dan que ele
tinha a idade matemática de dois anos, que ainda não estava preparado para ir às
compras; que não tinha capacidade académica e matemática para ir às compras no
mundo real; que o levaríamos de volta para a escola para lhe ensinar matemática.
Pensando desta maneira, deparamo-nos com três problemas. O primeiro é que já
conhecemos o seu ritmo de desenvolvimento em matemática, porque trabalhamos com
ele há quinze anos. A este ritmo, só quando tivesse setecentos e noventa e sete anos de
idade conseguiria resolver este problema matemático. O segundo, é que este problema
talvez esteja fora das suas capacidades: se calhar nunca iria conseguir resolvê-lo. O
terceiro problema é que mesmo que lhe conseguíssemos ensinar essa competência
matemática na escola, nada nos garante que ele conseguiria transferir esse
conhecimento para o mundo real e aplicá-lo. Temos o problema da generalização, temos
também um problema com a aprendizagem da leitura e com a aprendizagem da
matemática. O problema surge quando tentamos que pessoas com deficiência sigam as
sequências de desenvolvimento das pessoas não deficientes. Não o conseguem fazer.
Não sei como é que fazem cá em Portugal, mas em Madison é muito simples. Dizemos
ao Dan para pôr as uvas que quiser no saco, levar o saco à rapariga da caixa, pôr o
22
dinheiro no balcão e ela que faça as contas. O problema é dela, ela é que vai para a
universidade.
Isto é o que estamos a ensinar a uma criança na aula de matemática, das nove às nove e
meia da manhã. Perguntámos à mãe se lhe costumava pedir para ir buscar duas facas e
três garfos, ao que ela respondeu que não. Se nalguma situação utilizava as
competências matemáticas que aprendeu na escola. Respondeu que não. Sentámo-nos à
volta da mesa, onde tínhamos uma bola de plástico azul que fizemos rolar pela mesa e
ensinámo-la a manter contacto visual com a bola. Pegámos num bocado de cartolina e
fizemos com que a bola desaparecesse atrás dela. Sabem o que ela fez? Retirou a
cartolina e pegou na bola. É o que chamamos noção de permanência de um objecto, o
que consideramos muito importante. Perguntámos à mãe se alguma vez a sua filha
utilizou esta noção que lhe ensinámos na escola. A mãe começou a pensar e disse-nos
que no sábado, quando a filha estava a ver desenhos animados na televisão, lhe deu uma
maçã mas que, ao tentar comê-la, a maçã escorregou-lhe da mão desaparecendo por trás
da cortina. Quando entusiasmados lhe perguntámos qual tinha sido a sua reacção,
respondeu-nos que tinha começado a chorar.
E se eu lhes dissesse que tenho quinze anos de experiência como professor de Educação
Especial e um mestrado em Educação Especial e que absolutamente nada do que eu
ensino aos meus alunos na escola vai ser utilizado por eles noutra situação durante a sua
vida? Este é um problema interessante, se sabemos que as crianças não conseguem
generalizar e transferir, em que altura é que assumimos a responsabilidade do mau
ensino que lhes estamos a dar? Se não vão transferir, temos de ir para o ambiente
natural.
Vou falar-lhes de um maravilhoso discurso sobre terapia da fala e colaboração.
Colaboração entre professores do ensino normal, professores do ensino especial,
terapeutas, famílias, pais, crianças sem deficiências, toda a gente. Somos bons em
conseguir que todos trabalhem juntos, partilhem responsabilidades e tenham objectivos
comuns. Observei uma terapeuta da fala que levou uma criança com Síndroma de
Down, do segundo ano, a uma sala de terapia da fala e linguagem. Ela utiliza a
23
comunicação total e diz: Moa, moa! A terapeuta faz um som e um gesto o que, em
teoria, vai facilitar a aquisição de linguagem verbal. A terapeuta diz: casa de banho,
indicando os gestos. A criança, apesar de não emitir um som bonito, responde: Moa,
moa. Fiquei impressionado. A terapeuta da fala manda a criança de volta para a sala de
aula e vai buscar outra criança para trabalhar na sala de terapia da fala. Segui a primeira
criança até à sala de aula regular. Ela sentou-se a uma mesa, onde as outras crianças do
seu grupo estão a pintar. Quando precisou de mais cores, disse: Moa, moa, moa. As
crianças sem deficiência do grupo dela dizem: Pára com isso. Ela é estranha. Ó
professora, diga-lhe para parar. Ela só diz: moa, moa, moa. Temos então este
fenómeno terrível em que uma pobre criança é ensinada a comunicar desta maneira e,
três minutos depois, quando o faz novamente, é ostracizada por isso. Isto não é justo,
mas o que é que podíamos fazer? Explicámos às crianças da sala a situação, que ela
estava a aprender a comunicar desta maneira e que estava a melhorar mas que quando
ela tentava utilizar este tipo de comunicação, como não a conheciam, pensavam que ela
era estranha. Precisávamos de cinco voluntários para aprender os gestos que ela estava a
aprender na sala de terapia, de modo a que, quando ela utilizasse estes gestos, eles
pudessem explicar o que é que ela estava a comunicar. Não sei o que é que aconteceria
em Portugal, mas, nos Estados Unidos, quando pedimos voluntários numa turma do
segundo ano perguntam-nos logo o que é que ganham com isso. Dissemos-lhes que a
quem se oferecesse para aprender estes gestos, que não são muitos e são fáceis,
ensinaríamos a soletrar pelos dedos. Como não sabiam o que isto era, explicámos que
conseguiriam fazer todas a letras do alfabeto com os dedos e poderiam comunicar com
pessoas que também o soubessem. E quem não soubesse soletrar pelos dedos não faria a
mínima ideia do que é estariam a comunicar. Vários puseram a mão no ar e
conseguimos cinco crianças do segundo ano que aprenderam a soletrar com os dedos. O
aspecto positivo é que, ao ensinar gestos na sala de terapia a cinco crianças,
possibilitámos que aquele aluno se fizesse entender na sua sala de aula. O aspecto
negativo é que temos cinco crianças no segundo ano que passam o dia a mexer os
dedos, criando alguns distúrbios com as restantes crianças...
Isto é uma transferência. Tudo isto está relacionado com transferências. Pegámos numa
coisa importante para ensinar na escola e fizemos com que a criança a transferisse
24
imediatamente para a sua vida. Se ela não o fizer não pratica e não praticando esquece.
E se isso acontecer, tudo isto é um grande desperdício. Antigamente, quando tínhamos
crianças em escolas ou em salas de educação especial, não tínhamos que nos preocupar
com este tipo de coisas. Mas quando atravessamos a fronteira para a educação regular,
começamos a encontrar problemas. Se trabalham nesta área, podem ajudar-nos.
Analisámos a forma como os professores do ensino regular agrupam as crianças a quem
vão ensinar. As crianças funcionam de forma individual: vão à Internet procurar
informação para o trabalho de ciências, preenchem as suas fichas de trabalho, fazem o
exame, lêem um livro. Isto acontece pelo mundo fora, ensinamos as crianças a
funcionar como seres individuais. O que acontece com crianças com deficiências
severas é que elas não conseguem aprender nada sozinhas. Não conseguem
descodificar, não conseguem ir à Internet, não conseguem ler um livro. Esta forma de
agrupar não funciona com elas. Podem interagir com uma pessoa mais competente, ou
num pequeno grupo, mas é preciso que isto seja feito correctamente. Se for um grupo
grande, não funciona. Quando entramos numa sala de aula encontramos crianças com
tarefas individuais ou sentadas em filas a ser ensinados pelo professor e, no meio, temos
uma criança com uma deficiência severa. Trata-se de um problema que é,
simultaneamente, profissional, político e social. Como é que vamos conseguir que os
professores do ensino regular organizem os grupos de forma eficaz? Temos de
conseguir combinar os agrupamentos utilizados no ensino com as características de
aprendizagem do aluno. Se não o fizermos, não vai fazer sentido nenhum. Um outro
ponto importante é que devemos querer que o ensino individual, feito por pessoas às
quais se paga, seja o mínimo possível e que haja a maior interacção possível com outras
crianças. O que queremos é ensinar uma pessoa com uma deficiência severa a funcionar
numa situação integrada, a fazer qualquer coisa apropriada, com significado, sem
interferir com a produtividade, aprendizagem e bem-estar de pessoas não deficientes
que estejam com elas.
Vamos agora falar sobre o Mohamed, que tem cinco anos e é autista. Esta é uma sala
num jardim de infância em Madison em que estão a professora do ensino regular, que já
tem muita experiência de ensino, e uma professora assistente que trabalha connosco e
25
que foi destacada para esta aula. Esta é a primeira criança com autismo que a professora
do ensino regular teve na sua sala de aula. A professora pede aos alunos para fazerem
uma árvore com um íman, para a levarem para casa e a colocarem no frigorifico. As
crianças sabem fazer isto, todas já tiveram treino nesta actividade. A professora mostra-
lhes como quer a árvore e dá-lhes os materiais. As crianças dirigem-se aos seus locais
de trabalho e começam a fazer a árvore para levar para casa e pôr no frigorífico. Quando
a professora dá os materiais ao Mohamed, ele começa a rasgá-los. Temos então um
problema: uma criança com cinco anos que não sabe ir para o seu local de trabalho fazer
uma árvore. Não me preocupa se ele com cinco anos sabe ou não fazer uma árvore. O
que acontece é que depois de fazerem uma árvore, as crianças vão fazer as folhas,
depois abóboras, depois perus e a seguir bonecos na neve. É o que acontece ao longo do
ano no jardim de infância. E é por isso que não me preocupa se ele faz ou não uma
árvore. O que me preocupa é que ele aprenda a funcionar como um ser individual,
fazendo alguma coisa apropriada sem interferir com os outros. O que não queremos é
um ensino separado, de um para um, porque isso não é bom para ele. Temos o
Mahomed, agora com cinco anos, mas já estamos a pensar o que acontecerá quando
tiver vinte e um anos.
Fizemos um inquérito a todos os professores de educação regular nas escolas do ensino
básico dos Estados Unidos. Entrevistámos todos - doze milhões – e perguntamo-lhes
qual era a coisa mais importante na sala de aula de que não podiam prescindir. E sabem
qual foi a resposta? Leitura em silêncio. Perguntámos então porque é que a leitura em
silêncio era tão importante para os professores das escolas do ensino básico dos Estados
Unidos. Responderam-nos que sem a leitura silenciosa nunca conseguiriam escrever os
cartões de Natal, fazer uma lista das compras, pagar as contas e que isso era muito
importante para eles. Por isso, deparámos com um problema: muitos dos professores
das escolas básicas dos Estados Unidos dedicam uma hora e meia, às vezes duas horas
por dia, à leitura em silêncio. E agora temos o Jamon que não lê. O que é que fazemos
com ele durante esse período? Havia duas coisas que costumávamos fazer. Uma delas
era tirá-lo da aula e pô-lo numa sala de apoio. Mas agora já não o fazemos. A outra era
dar-lhe uma ajuda individual, no fundo da sala, mostrando-lhe cartões com imagens.
Também já não fazemos isso. O que é que podemos fazer com ele durante a leitura em
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silêncio? Pegámos num livro acessível, gravámos uma cassete e ensinámo-lo a usar um
gravador. Assim, enquanto as outras crianças liam em silêncio, ele ouvia a cassete do
livro. Não estava mal, mas queríamos expandir um pouco mais a sua aprendizagem,
incluir mais coisas. Estávamos a utilizar um objecto apropriadamente, não o estávamos
a retirar da aula, ele estava a funcionar num ambiente integrado, a trabalhar
individualmente, sem interferir com os outros. Mas queríamos mais do que isso.
Juntámos um pequeno grupo de crianças e perguntámos-lhes o que iam fazer durante o
fim de semana. Iam nadar na piscina do YMCA. Organizámos tudo para que ele fosse
com o grupo. Pela primeira vez, a mãe de um deles iria buscá-lo. Levou-nos uma
semana a organizar tudo. Quando voltassem tinham que escrever um capítulo de um
livro sobre o Jamon. Tivemos que organizar os voluntários, as boleias, quem levava a
máquina fotográfica, quem iria tirar as fotografias pagas pela escola. No sábado foram à
piscina e tiraram as fotografias. Demoraram cerca de uma semana a escrever o capítulo,
organizar a fotografias, fazer a narração e gravar a cassete. Estavam prontos para gravar
a cassete na sexta-feira, mas o Jamon não quis que fosse a professora a gravá-la, queria
que fossem os seus colegas a fazê-lo. Na semana seguinte quando chegou a altura de
lerem em silêncio, ele pegou na cassete, no álbum de fotografias com a narração e pôs-
se a ouvir. O que é que aconteceria se o tirássemos da sala de aula e o puséssemos numa
sala de apoio? Porque é que isto foi importante? Porque aumentámos o número de
ambientes no qual ele funciona, aumentámos o número de relações sociais, aliviámos os
seus pais num sábado e ensinámos uma coisa na escola que ele consegue utilizar noutro
local.
Esta é a Denise. Trabalha na Clínica Médica de Jackson. Está a escrever o nome e a
morada de um paciente para lhe lembrar a sua próxima marcação. Será que ela
conseguiria fazer um trabalho médico na Clínica? Claro que não. Ela tem uma
capacidade limitada. Mas o que é importante é que se ela não fizesse este trabalho a
Clínica teria de pagar a alguém para o fazer. Ela está a funcionar numa situação
integrada, a fazer algo apropriado e significativo, sem interferir com os resultados e o
bem estar dos seus colegas não deficientes.
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Agora imaginem esta situação: um dia uma senhora entrou na nossa escola com o filho
deitado e amarrado a uma maca. Foi a primeira vez que vimos uma criança vir para a
escola pública deitada numa maca. Convocámos uma reunião de emergência com o
advogado da escola, a enfermeira chefe e o assistente de pediatria neurológica para
decidir o que iríamos fazer com esta criança que vem para a escola numa maca. Sendo
nós especialistas experientes, soubemos logo o que haveríamos de fazer. Decidimos
arranjar uma turma de macas, não poderíamos ter alguns alunos deitados em macas e
outros não. Precisávamos de um professor com um mestrado em ensino a alunos em
macas. Contactámos as outras escolas no distrito para sabermos se também tinham
alunos em macas. Não tinham. Telefonámos então ao Departamento Estadual e
descobrimos que, tal como em Portugal, no país inteiro existiam apenas seis crianças
que iam para a escola em macas. Pedimos à Guarda Nacional se nos emprestava seis
helicópteros. E assim, todas as manhãs enviávamos os helicópteros para buscar as
crianças de todo o Estado de Wisconsin e trazê-las para a nossa turma de alunos em
macas.
É o que fazemos com as crianças com autismo, com as crianças com deficiências
auditivas e com as crianças com deficiências visuais. Afastamos as crianças da família,
dos seus irmãos e pais e pômo-las num grupo, numa "casa para macas". Depois
compramos uma daquelas carrinhas utilizadas pelas padarias, aquelas que têm vários
tabuleiros atrás, e no exterior da carrinha escrevemos “Viver independente”. E assim
vamos da casa das macas, na carrinha das macas, para a aula das macas, novamente na
carrinha das macas para a casa das macas. Onde é que isto nos leva? Deixem-me fazer-
vos uma pergunta. Se fosse o vosso filho, quantos minutos por dia deveria ele olhar para
o chão? Quantas vezes devia ser tocado suavemente por alguém? Quantos minutos por
dia, qual a percentagem do tempo em que ele deveria estar ocupado com alguém? Que
cores deveria ver, que diferentes estados de humor deveria sentir? É nesta altura que
começamos a colocar as questões de qualidade de vida e, rapidamente, chegamos à
conclusão que a última coisa que ele precisa é de estar ao lado de alguém, também
numa maca.
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Perdemos muito tempo a assegurar a interacção entre duas pessoas. Muito tempo, muito
esforço e muita programação. Isto é muito importante para que quando eles acabem a
escola saibam interagir com uma pessoa mais competente do que eles e façam coisas
com sentido. Lembram-se do que dissemos antes? Integração gera integração. Se o
fizermos bem, podemos preparar estas pessoas para virem a ter uma melhor qualidade
de vida adulta. Tenho que falar sobre pequenos grupos. Nos Estados Unidos fala-se
muito sobre colaboração, ensino em pequenos grupos, aprendizagem em cooperação,
aprendizagem por projectos e aprendizagem prática. Neste momento, nos Estados
Unidos, este é um assunto importante relativo a todos os tipos de educação. Nós
adoramos grupos pequenos, mas com os nossos alunos o importante é saber
individualizar, dentro de um pequeno grupo.
Esta senhora chama-se Liz Burger. Já não se podem educar crianças com deficiência
sem relações sociais com crianças não deficientes. Por isso, comecei a organizar a
forma de integrar os alunos com deficiência nas aulas de ensino regular. Quando entrei
nessas salas de aula encontrei alguns dos melhores professores, mais geniais, mais
brilhantes e mais eficazes que eu já vi nos Estados Unidos. São geniais e adoro vê-los
trabalhar. Esta é uma delas, Liz Burger. Aqui está ela com o seu grupo: este é o Steven,
um dos nossos alunos. Ela chamou-me para me mostrar uma experiência. Pegou num
líquido transparente e despejou-o para dentro de uma garrafa de refrigerante, pôs um
balão no gargalo e o balão ficou caído de lado. Perguntou aos alunos o que é que tinha
acontecido. Sabem como são as crianças, disseram logo: Nada, nada. Pegou então
noutra garrafa, pôs um pó lá dentro, agarrou o balão ao gargalo que ficou caído por
cima dele. Tornou a perguntar aos alunos o que aconteceu e eles tornam a responder:
Nada, nada. Pegou então numa terceira garrafa e deitou-lhe um pouco de vinagre,
líquido transparente, um pouco de soda, um pouco de pó branco e pôs um balão no
gargalo. A mistura começou a ferver e o balão começou a encher. Não temos problemas
de atenção em nenhum aluno: estão todos a olhar interessadíssimos. Eu estou realmente
impressionado com a experiência porque quando era novo andei em escolas católicas,
onde não tínhamos a disciplina de ciências. Tudo isto é novo para mim. Estão
lembrados do que fizemos ao Galileu? Pela primeira vez estou a aprender Ciências. Ela
perguntou a um aluno o que aconteceu e ele explicou que ao misturar um sólido com
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um líquido, criou gás que, por ser mais quente, por isso mais leve, subiu aplicando
pressão na membrana do balão e obrigando-o a expandir. E eu estou a tirar notas, eu,
Professor Brown estou a escrever tudo. Ela então pergunta ao Timmy o que aconteceu e
ele diz que foi incrível, como ela misturou tudo e conseguiu aquilo.
Gostava de vos fazer uma pergunta. Será que esta é uma experiência educativa
significativa para o Steven? Algumas pessoas diriam que sim, por ele estar num grupo
integrado, está a prestar atenção, não está a incomodar ninguém e está obviamente a
divertir-se. Pergunto à Liz se ela tem um livro com este tipo de coisas, mas ela diz que
não, que faz uma por dia e tem vindo a acumular estas experiências. Pergunto então à
Liz se ela acha que o Steven ganhou alguma coisa com isto. Responde que sim mas
pergunta-me se eu acho que poderíamos ensinar-lhe a realizar a experiência. Respondo
que podemos tentar. Arranjamos um grupo de crianças para ajudar o Steven a fazer a
experiência. Lembrem-se que para o fazer temos que a tornar concreta, atingível.
Primeiro problema: ele não conseguia despejar o líquido. Arranjaram um cartão,
dobraram-no e colaram-no no gargalo em forma de funil. Puseram também uma marca
com fita cola em baixo na garrafa para ele saber quando parar de despejar o líquido.
Fizeram várias tentativas; durante três ou quatro dias, experimentaram e ensinaram-lhe
como se fazia. Nós observámos e ajudámos mas, basicamente, foram eles que o
ensinaram. Na sexta-feira, o Steven foi-nos mostrar o que aprendeu nessa semana na
aula de Ciências e conseguiu repetir a experiência. O facto de o termos ensinado a fazer
aquela experiência, algo apropriado e significativo, fez-nos sentir muito bem e ele
sentiu-se orgulhoso e feliz. Ninguém pensava que ele seria capaz de a realizar! Isto vai
muito ao encontro do nosso critério de aprendizagem significativa!
A Liz Burger teve uma ideia: pegou nos materiais para a experiência, pô-los numa caixa
e disse ao Steven para os levar para casa. Telefonou à mãe dele e pediu-lhe que durante
o fim de semana perguntasse ao seu filho o que tinha aprendido na aula de Ciências.
Segunda-feira de manhã o Steven veio para a escola, tocou o telefone e era a sua mãe
para falar com a professora. Contou-lhe que convidaram uns vizinhos para almoçar no
jardim e, enquanto estavam a comer cachorros quentes e a beber umas cervejas,
lembraram-se do que a professora tinha dito - que deviam pedir ao Steven para lhes
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mostrar o que tinha aprendido na escola. Pediram-lhe que o fizesse e ele foi ao quarto
buscar a caixa e começou a experiência com as garrafas e os balões. Estavam todos a
ver. Quando o balão começou a encher os vizinhos começaram todos a aplaudir e a rir.
Ela e o marido olharam um para o outro e as lágrimas correram nas suas faces…
.
Como é que sabemos se ensinámos algo de significativo na escola a uma criança com
deficiência? Quando elas voltam para casa e mostram aos pais e aos vizinhos o que
aprenderam na escola, fazendo com que eles chorem de comoção.
2ª Parte
Transição para a Vida Adulta de Crianças e Jovens com Deficiência
Intelectual Acentuada
Tínhamos planeado falar mais sobre a escola, mas não vai ser possível e por isso vos
peço desculpa. O que gostaria agora era de falar sobre preparação profissional, que é
extremamente importante para todos e, particularmente, para pessoas com deficiência e
igualmente para jovens que recusam a escola secundária.
Nos últimos cinco anos tenho trabalhado na cidade de Chicago, a tentar conseguir
estágios profissionais para os jovens com que estou a trabalhar, e gostaria de partilhar
convosco o que estamos a fazer. Também vos queria apresentar as sessenta e tal pessoas
com deficiência intelectual severa que temos seguido ao longo das suas vidas.
A nossa estratégia não é complicada e não é teórica, é bastante parecida com o que uma
avó nossa teria feito. Por isso, quando nos perguntamos como é que vamos conseguir
que alunos com deficiências severas, ao saírem da escola, estejam preparados para
trabalhar no mundo real, sabemos que o ponto chave, o nosso objectivo, o resultado que
queremos alcançar é que, ao sair da escola, eles tenham um emprego que lhes garanta o
ordenado mínimo e todas as regalias sociais normais. Isso é o que queremos. Sei que há
bastantes diferenças entre os Estados Unidos e Portugal. Uma delas é que nos Estados
Unidos temos quarenta e quatro milhões de pessoas que não estão abrangidas pelo
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sistema nacional de saúde, que não têm seguro de saúde e isso é terrível. Para se
conseguir assistência médica há duas, três soluções. Segurança social para os idosos e
segurança social para pessoas com deficiências severas (não estamos a falar de pessoas
com problemas de aprendizagem, comportamento, fala ou linguagem). Ao longo dos
anos, cada vez menos pessoas com deficiências têm tido direito a assistência médica, a
seguro de saúde. Outra maneira de conseguir assistência médica é através de um
emprego. Se não se tiver um emprego que dê benefícios de saúde, não se tiver uma
deficiência grave e não se tiver uma idade avançada, não se tem direito a ela. Tenho
vergonha de o dizer mas temos pelo menos quarenta e quatro milhões de pessoas no
meu país sem seguro de saúde e não é provável que a situação mude em breve.
As pessoas com quem trabalhamos em Chicago, e de quem vos vou falar agora, têm um
nível de funcionamento mais alto do que as que vos mostrámos na primeira parte desta
conferência. Se não lhes conseguirmos arranjar empregos, onde recebam ordenados e
lhe dêem seguros de saúde, ficam sem nada. Não interessa se estamos a falar de adultos
ou crianças em idade escolar; para todos eles temos de conseguir abrir as portas das
empresas, para que os deixem entrar.
Vou falar-vos sobre os nossos métodos. O primeiro passo é o que chamamos de "análise
do meio laboral". Entramos num local de trabalho e aprendemos de que trata o emprego
que está em aberto. A seguir, tentamos arranjar uma pessoa com deficiência que se
adeqúe a esse emprego. Não sei como é que se passa em Portugal, mas, nos Estados
Unidos, todas as mães dizem às suas filhas que ganharão mais dinheiro fazendo um
bom casamento do que com uma vida inteira de trabalho. O que quer dizer que se
resolvem mais problemas em cinco minutos, com uma boa combinação entre uma
pessoa com deficiências e um emprego, do que com cinco anos de ensino, modificação
de comportamento e incentivos. Se a combinação for mal feita, temos um problema.
Queremos que as empresas abram as portas, por isso temos de aprender as
especificações do trabalho e encontrar uma pessoa com deficiência que se ajuste a ele.
Se a combinação for boa, perfeito; se não for, é terrível. A seguir, teremos de ensinar as
tarefas necessárias no próprio ambiente de trabalho. Não se esqueçam que estes jovens
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não têm capacidade de generalização. O ensino tem a ver, sobretudo, com o seu
comportamento: levantarem-se de manhã, chegarem a horas, serem supervisionados,
comportarem-se apropriadamente durante as pausas, voltarem a seguir ao almoço, tudo
coisas que não aprenderam na escola. A seguir, passamos para uma "supervisão
natural". Não se esqueçam que quanto mais ensino individual tiveram, pior preparados
ficarão para o mundo real. Têm de funcionar individualmente num determinado
ambiente sem terem alguém pago para tomar conta deles. É a isso que chamamos
supervisão natural. Com algumas pessoas, dá-se-lhes uma boa educação, formação no
emprego e podemos afastar-nos que eles estão preparados para seguir em frente
sozinhos. Mas as pessoas das quais estamos a falar vão precisar de ajuda o resto da vida.
A questão é: quanta ajuda lhes devemos dar? E estas pessoas que acompanhei desde
crianças, e que não precisavam de ajuda quando tinham vinte anos, agora com quarenta
anos, com a sua condição física a deteriorar-se, precisam de muita ajuda.
Gostaria agora de vos falar das estratégias que utilizamos para conseguir que as
empresas abram as portas. Estamos sempre a desenvolver novos métodos, mas penso
que estes poderão ser interessantes para vocês. Espero que sim porque adoro e divirto-
me imenso a fazê-lo. Vamos explorar um de cada vez.
Você tem cara de Yuppie,5 imagine que tem uma filha, uma pequena flor linda que
adora. Nós dizemos-lhe: "A sua filha tem catorze anos, sabemos que tem Síndroma de
Down, vem pela primeira vez para a nossa escola. Mas, este ano é política da escola
que pelo menos meio dia por semana seja passado fora da escola, na comunidade, a
aprender um emprego real no mundo real. Por isso, este ano queremos levar a sua
pequena flor para um local de paragem de camiões na auto-estrada, fora da cidade, e
ensiná-la a limpar as casas de banho públicas." Aceitaria? Claro que não; dir-nos-ia
logo que ela não está preparada para isso. Dizemos-lhe então: "Temos que a preparar, o
tempo está a correr e ela demora muito tempo a aprender. Compreendemos a sua
preocupação, não quer a sua pequena flor a limpar casas de banho na paragem dos
camiões. Sugerimos então se ela poderá limpar casas de banho no edifício da IBM".
Responde-nos que aí o caso muda de figura.
5 Dirigindo-se a uma pessoa da assistência
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Mas a maioria dos Yuppies não querem que os seus filhos andem a limpar casas de
banho dos outros. Perguntamo-lhe então qual é o sonho deles, já que sabiam que os
filhos eram deficientes desde o momento em nasceram "Quando acordam durante a
noite não se perguntam o que lhes vai acontecer quando vocês morrerem, onde eles vão
estar e com quem, a fazer o quê? O que é que vão fazer depois da escola?”
O que fazemos é pressionar muito os pais para trabalharem connosco, colaborar no que
chamamos “plano de futuro pessoal”. É por isso que pedimos a todos os pais para
fazerem uma lista dos seus sonhos. Se disserem que querem um trabalho num banco,
nós vamos a um banco. Se disserem num hospital, vamos a um hospital. Se disserem
que querem um trabalho na Força Aérea, vamos à Força Aérea. Consoante o que nos
disserem é para onde vamos levar o seu filho, aos catorze anos de idade.
Essa é uma maneira de conseguir pistas para empregos. Vamos perguntar aos pais da
Susana quais são os seus sonhos, onde é que a gostariam de a ver trabalhar, onde é que
se sentiriam orgulhosos que ela trabalhasse. Podem-nos ajudar muito a envolvê-la neste
processo.
Estou a trabalhar com um rapaz de dezasseis anos cujos pais estão a morrer de sida em
Chicago. Ele lê ao nível do primeiro ano. É um rapaz forte e vivo. Está a viver numa
família de acolhimento e, anteriormente, já esteve em quatro ou cinco famílias
diferentes. Tem um problema sério em relação à escola: detesta a escola e não a quer
frequentar. Quando lhe pergunto o que quer fazer, responde-me sempre: “obras". Ele é
de raça africana, o que é um grande problema em Chicago, porque os sindicatos são
muito racistas. Temos ainda mais um problema, ele não tem aptidões na área de
construção. Por outro lado, quer muito aprender a trabalhar nas obras e, se for bom, tem
sempre emprego. Mas se ninguém o contrata aos dezasseis anos, onde é que ele pode
arranjar experiência de obras? Através da Internet contactei uma empresa, chamada
"Habitat for Humanity", que constrói casas para os pobres. Eles aceitaram-no e agora
está a aprender a construir casas, que era o que ele queria.
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Algumas empresas nos Estados Unidos, e imagino que também em Portugal, têm
acordos para inserção de pessoas com deficiências. A Pizza Hut é uma delas, a Marriott
Hotels, a Home Depot; não sei se as têm cá. Muitos dos logotipos de empresas que vejo
por cá são semelhantes aos que temos nos Estados Unidos. Têm de descobrir quais é
que têm acordos de inserção de pessoas com deficiências e ajudá-los a cumprir esse
acordo.
Vou-vos falar da importância das relações pessoais. Há alguns anos atrás recebi uma
chamada de uma família com uma criança com autismo severo que me pediu ajuda.
Para encurtar a história, só vos digo que os ajudei definindo-lhes estratégias para
conseguirem lidar com a criança, Durante cinco anos ele dormia apenas uma hora por
noite - era extraordinária a energia desta criança. Trabalhei com ela durante muito
tempo, num programa escolar, na sua transição para a vida adulta. O pai, Bob, é
advogado nos Serviços de Emigração em Chicago. Telefonei-lhe e pedi-lhe um favor.
Queria trazer dois rapazes de escolas públicas de Chicago para o Departamento dele
para aprenderem técnicas de arquivo e informática. O que é que ele me poderia
responder, agradecido por o ter ajudado com o filho durante vinte anos? Que não? Claro
que ele não o podia dizer. Pelo facto de conhecer este advogado, já tinha um emprego
em carteira.
Nós temos dois filhos, o mais velho chama-se Craig e estava noivo de uma rapariga que
era gerente de banquetes num restaurante muito famoso em Chicago. Harry Carey é um
jornalista desportivo, uma figura nacional e o restaurante tem o seu nome. Vieram
passar um fim de semana a Madison e queriam anunciar o noivado. O nosso filho queria
passar algum tempo com a sua futura mulher, nossa futura nora, e isso era excelente
para nós. Sugeri à Cherry, é esse o seu nome, irmos dar um passeio. Disse-me que sim,
visto eu ser o seu futuro sogro. Começámos a andar e eu disse-lhe que gostaria de lhe
falar sobre o futuro e sobre a herança. Mas disse-lhe que, primeiro, gostaria de lhe falar
sobre a possibilidade de levar dois rapazes da escolas públicas de Chicago para o
restaurante Harry Carey para conseguirem formação profissional. O que é que ela podia
responder a isto? Só podia aceitar.
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Tenho um amigo em Madison que tem uma loja de desporto, uma loja especializada
para pessoas que correm. E vende muitos sapatos da marca Nike. Têm lojas Nike Town
em Lisboa? São lojas fantásticas. Pedi então ao meu amigo para telefonar para a sede da
empresa e descobrir quem é que estava à frente das lojas de Chicago. Mais tarde
apresentou-me essa pessoa e eu e uma professora de Chicago fomos a uma reunião com
os responsáveis da Nike Town. Nos bairros onde trabalhamos os rapazes matam por
sapatos, roupas e casacos da Nike, logo isto era maravilhoso, perfeito para nós.
Adorariam lá trabalhar. Tivemos a reunião, eles ficaram interessados e pediram para
lhes ligarmos daí a dez dias. Passados os dez dias, ligo e apanho o gravador, pedem-me
para deixar uma mensagem. Volto a ligar no dia seguinte e deixo uma mensagem.
Liguei trinta dias úteis seguidos, sem me responderem. Trinta dias é o máximo que
aguento. Tenho uma lista a consultar. A Nike já não faz parte dela.
O meu filho é promotor público no Estado de Illinois. Falei com ele e perguntei-lhe se
gostava de trazer dois rapazes para o seu Departamento. Ao princípio a resposta não foi
muito encorajadora mas acabou por aceitar falar com o seu supervisor. Falou com ele e
explicou-lhe que o pai dele queria trazer uns jovens para aprenderem introdução de
dados. O supervisor do Tribunal Criminal, que é um local muito interessante,
perguntou-lhe se ele estava maluco, se queria publicitar que ia dar acesso aos seus
computadores a jovens problemáticos de escolas públicas de Chicago. O meu próprio
filho não conseguiu nada.
O Michael Jacobs é um vizinho nosso em Madison. É advogado e mudou-se para
Chicago para exercer o cargo de Professor de Direito na Universidade Paulista.
Conhecem a Ordem dos Paulistas? Pedi-lhe para me arranjar uma reunião com os
responsáveis da Universidade. O meu filho andou na Universidade Paulista de Direito, o
Presidente da Câmara de Chicago também tirou o seu curso lá, Sue, a nossa Directora
de Ensino Especial da cidade de Chicago também se formou lá. Um dos meus melhores
amigos, Michael Jacobs, é lá professor. Tive uma reunião com eles onde expliquei que
gostaria de trazer dois jovens de escolas públicas de Chicago para a Universidade
Paulista de Direito, para aprenderem qualquer coisa. Na cantina, nos escritórios, na
manutenção, fosse onde fosse. Nada mais fácil para eles. Ficaram de me telefonar daí a
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duas semanas. Passadas essas duas semanas liguei e deixei uma mensagem. Liguei outra
vez no dia seguinte e no outro. Conferi a minha lista e vi que passados trinta dias nunca
atenderam as minhas chamadas. Desisti.
Uma das nossas professoras, a famosa Diane Baumgartner, responsável pelo princípio
de participação parcial, casou com um homem chamado Myron Shreck. O Myron
pertence a uma família judia ortodoxa de Chicago, extremamente bem sucedida na
comunidade empresarial. Quando os seus pais morreram ele herdou todos estes
negócios. Fiz-lhe a proposta e ele perguntou-me de que é que eu precisava. Expliquei-
lhe que precisávamos de locais de emprego para podermos dar formação a jovens
problemáticos das escolas públicas secundárias de Chicago. Pôs-nos em contacto com a
Shreck Army and Navy Surplus que é a maior empresa de excedentes do exército. Um
excelente negócio. Compram e vendem material no mundo inteiro. Receberam os
rapazes.
Eu tinha este contacto com uma psicóloga de Loyola. Existe essa Ordem cá? Expliquei-
lhe o que estava a tentar fazer em Chicago com estes jovens e se ela me podia ajudar.
Apresentou-me Stan Hewitson, da Universidade Loyola, que é o Director de Pessoal no
North Sheridon Campus, na parte norte de Chicago. Expliquei-lhe tudo e perguntei se
estava interessado. Respondeu-me que eles eram a Companhia de Jesus, que existiam na
Terra para ajudar os mais necessitados, claro que gostariam de nos ajudar. O que é que
se passa com vocês, Católicos? Como é que se pode ir a Layola e ser tão bem tratado e
ir aos Paulistas e ser-se tão mal tratado? Disse-me ainda que tinham um Campus
Universitário na Michigan Avenue e que devíamos falar com Mimi Winter, Directora
do Pessoal do campus universitário, no centro da cidade. Fui ter com ela e ela
respondeu-me que eram uma instituição jesuíta, uma companhia de Jesus e claro que
adorariam ajudar-nos. Mais ainda, tinham um Hospital, o Loyola Hospital. Acontece a
mesma coisa cá em Portugal? Existem os bons católicos e os maus católicos?
Gostava de vos fazer uma pergunta. Conhecem cinco pessoas que trabalhem fora de
casa por dinheiro? Eu sei que todos conhecem cinco pessoas que trabalham fora de casa
por dinheiro. Vamos imaginar que as quase trezentas pessoas que estão nesta sala vão
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escrever cinco nomes de pessoas que trabalham fora de casa. Depois do intervalo,
perguntava a uma pessoa quem era o primeiro da sua lista. Ela diz-me que é a sua
melhor amiga, que é secretária na Wrigley Company, fabricante de pastilhas elásticas.
Pergunto-lhe se da próxima vez que eu for a Chicago, me pode marcar uma reunião com
a sua amiga para falarmos da hipótese de trazer dois jovens de Chicago, só dois. Diz
que sim e passamos ao segundo nome da lista, que é uma prima que trabalha no Cook
County Hospital. Peço-lhe novamente para marcar uma reunião e deste modo
percorremos a sua lista. A seguir passamos à lista de cinco nomes seguinte e assim
sucessivamente. Pensem nisto. Nas pessoas na vossa igreja que têm um círculo de
angariação de empregos para pessoas deficientes, no vosso local de trabalho, no vosso
círculo de amigos, nos clubes a que pertencem. Basta conhecerem cinco pessoas.
Começamos e a informação começa a espalhar-se.
Um dia recebi um telefonema de um homem chamado George Flynn, Director de
Educação Especial da cidade de Toronto no Canadá. O que acontecia em Toronto é que
as dioceses católicas e as escolas, se tivessem uma criança deficiente, mandavam-na
para a escola pública alegando que não tinham terapeutas e que o acesso era difícil. O
que acontecia, não sei se acontece aqui também, era que todas as crianças deficientes de
famílias católicas iam para escolas públicas, mas se uma criança sem deficiências
tentasse ir para uma não podia. Eles queriam manter as crianças nas escolas católicas.
Quando o Papa visitou Toronto estavam várias pessoas com deficiência sentadas na
primeira fila. O Papa disse que eles deveriam estar integrados e foi preparado um
documento sobre inclusão ao qual George Flynn tinha aderido. Ficou decidido trazer de
volta as crianças com deficiência às escolas católicas. Mas continuou a mesma velha
história, era fácil inseri-los na escola primária mas o problema estava em inseri-las na
escola secundária. O problema estava a tornar-se mais complicado e foi nessa altura que
ele nos chamou para o ajudarmos. Fomos lá e começámos com uma reunião com os
directores da escola católica. Compreendemos a situação perfeitamente e pedimos para
ver a lista de fornecedores deles. Perguntaram-nos o que era isso e explicámos que eram
todas as pessoas com quem eles gastavam dinheiro. Como continuavam sem perceber,
perguntámos quando compravam computadores a quem é que os compravam, quando
precisavam de seguros quem é que lhos fazia, quando punham dinheiro no banco em
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que banco era, quando compravam comida a quem é que a compravam. E assim, ao fim
de uma hora, conseguimos fazer uma lista de fornecedores de Escolas Católicas. Disse-
lhes que depois do almoço iríamos visitar os fornecedores de produtos alimentares, que
ficavam mais perto. Quando chegámos lá dissemos que éramos das Escolas Católicas de
Toronto, que lhes comprávamos toda a nossa comida e que gostaríamos de trazer dois
jovens dos Liceus Católicos para o seu local de trabalho para receberem formação
profissional. O que é que eles podiam dizer? Que não e arriscar perder o cliente. Em
poucas semanas, tínhamos mais empregos que jovens!
Sabem quantas festas de formatura se realizam nas escolas públicas de Chicago? E
quantos hotéis ganham dinheiro com isso? A quantos consultores se pagam, quanta
comida se compra? Era uma boa maneira de conseguir formação profissional
Ser vendedor é difícil: bater de porta em porta a tentar vender qualquer coisa. Quando
eu era mais novo vendia jornais nas ruas da cidade de Jersey, em New Jersey, a seguir
vendi panelas e utensílios de cozinha, porta a porta, na esperança que os comprassem
para os enxovais. Também vendi a Enciclopédia Britânica, de porta em porta. Tive
bastantes empregos deste tipo enquanto adolescente. Algumas vezes era divertido, mas
a maior parte das vezes era muito, muito difícil. Pelo que percebo, há muita gente que
não gosta de fazer esse tipo de trabalho. Às vezes, sabemos onde uma pessoa vive e por
causa de problemas de transporte queremos arranjar-lhe um emprego o mais perto
possível. Pomos um pin num mapa a indicar o sítio onde vive e pomos outro onde se
encontra a primeira empresa. Desenhamos um círculo à volta desses dois e começamos
o trabalho de angariação, a bater às portas e a falar com as pessoas.
Alguns professores poderão achar isso divertido, outros não. Foi ai que me pus a pensar,
será que há pessoas que gostam de bater de porta em porta? Lembrei-me dos mormons,
não sei se cá também existem. Põem-nos doidos. Olhem para mim, para as minhas
calças curtas. Um dia estava a fazer uma apresentação num bairro de gente rica fora de
Chicago e, quando cheguei ao fim, um homem veio ter comigo. Um homem lindo, com
o cabelo perfeito, com um fato impecável que lhe caia perfeitamente, a sua pele estava
bronzeada, sem rugas nenhumas, os sapatos perfeitos, realmente um homem muito bem
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parecido. Disse que me queria contratar. Explicou-me que tinha um filho de vinte e um
anos, com Síndroma de Down, que ia sair da escola esse ano e que queria que ele
arranjasse um emprego num banco, numa universidade ou num escritório. Pediu-me
para lhe arranjar um emprego, num destes sítios simpáticos, porque sabia que eu o
conseguia. Disse-lhe que deveríamos falar e perguntei-lhe em que é que trabalhava.
Disse-me que era advogado e tirou uma espécie de caixa de ouro, linda, que poderia
estar no museu desta Fundação. Abriu-a e tirou dela um cartão lindo com escritos a
dourado. Quando dou o meu cartão a alguém tiro a minha carteira, suja e amachucada,
onde tenho os meus cartões que tive de cortar para caberem lá dentro. Somos mesmo
muito diferentes… Leio o cartão e pergunto-lhe onde é o escritório dele. Responde-me
que é em Chicago, na Whacker Drive. Usando um discurso de advogado proponho-lhe
arranjar um emprego para o seu filho num lugar que ele considere apropriado, se ele me
deixasse levar dois jovens das escolas públicas de Chicago para o seu escritório. O que
é que ele vai responder?
Temos então uma lista das pessoas que disseram sim e outra das pessoas que disseram
não. E vou ter de vos contar esta história:
Chama-se McCormick e é um homem muito famoso na história da América. Em mil
oitocentos e sessenta, setenta, desenvolveu a ceifeira McCormick, que é uma máquina
que consegue ceifar grandes quantidades de milho e trigo. Formou uma empresa
fantástica chamada International Harvest Store. Mais tarde o seu filho comprou um
jornal, provavelmente o segundo ou terceiro maior jornal dos Estados Unidos, o
Chicago Tribune. Mais tarde, comprou uma famosa equipa de basebol, a Chicago Cubs.
São incrivelmente ricos. Todos os anos, do mesmo modo que Calouste Gulbenkian vos
deu isto, eles dão vinte e cinco a trinta milhões de dólares para fins de caridade na zona
de Chicago. Por essa razão deram dinheiro a um grupo para organizar uma conferência
numa das mansões da família McCormick, para a qual fui convidado. Uma mansão
fantástica com o seu próprio campo de golfe. Fui à conferência e, como é óbvio, não me
senti bem. Não me sinto confortável neste tipo de sítios. Fiz a minha apresentação e
seguiu-se um cocktail onde foram servidos uns camarões enormes. O Director
Executivo da Fundação McCormick, uma fundação para fins caritativos como a
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Gulbenkian, veio ter comigo e disse-me que a minha apresentação tinha sido muito
interessante e que lhes devíamos pedir um subsídio. Que a Fundação estava interessada
em pôr as pessoas a trabalhar. Expliquei-lhe que o nosso problema não era dinheiro,
mas que gostaria de lhe propor trazer dois jovens das escolas públicas de Chicago para
trabalhar nos escritórios da Fundação e nos escritórios do Chicago Tribune na Michigan
Avenue. Disse-me que ia tratar dos papéis para o pedido de subsídio. Quando lhe
expliquei que não era isso exactamente que precisávamos, mas sim de oportunidades de
emprego, mal me respondeu. Estão preparados para nos dar dinheiro mas não querem as
nossas pessoas. Esse tipo de pessoas existem e sei que as têm também em Portugal.
Onde quer que vamos todos querem saber como conseguimos que as empresas nos
arranjem empregos, por isso estamos a documentar a forma como cada um foi
arranjado. Cada vez que arranjamos um emprego, ditamos ou tomamos nota e pomos
tudo numa caixa. Um dia iremos organizar toda essa informação. É, certamente, o que
teria feito a nossa avó ou um vendedor de seguros.
O próximo passo é a análise do emprego. Queremos saber que trabalho está a ser feito,
quem é que o está a fazer, por quanto é que está a ser pago e que parte dele podemos
fazer. Não estou interessado em avaliações profissionais fantásticas, nem em técnicas de
entrevista, nem em ensinar os jovens a preencher propostas de emprego. Já o fazemos
há muitos anos e com isso não se conseguem empregos. Queremos saber que trabalho é
que está a ser feito, quem é que o está a fazer, por quanto é que está a ser pago e se será
possível que possamos fazer uma parte dele. O que queremos descobrir não é se um
trabalhador com uma deficiência severa consegue fazer o trabalho completo de um
trabalhador sem deficiência. Se o conseguissem não eram certamente deficientes. O que
queremos é, por um lado, encontrar uma pessoa com uma variedade muito grande de
capacidades e, por outro, descobrir algumas tarefas que um trabalhador com deficiência
possa desempenhar. O que queremos é pôr um trabalhador com deficiência a fazer
algumas tarefas de um trabalhador sem deficiência. Já lhes mostro exemplos.
Queremos encontrar um trabalhador com deficiência que possa fazer parte das tarefas
de dois ou mais trabalhadores e queremos uma parceria entre eles. De vez em quando,
41
queremos uma parceria de duas pessoas com diferentes capacidades. Vamos a um
escritório e perguntamos ao supervisor qual é o trabalhador que apresenta maior
rendimento. Indica-nos uma mulher com uma camisola vermelha. Perguntamos porque
é que a considera a trabalhadora mais valiosa do escritório. Explica-nos que tem um
bom desempenho ao telefone. Muitos dos negócios são feitos pelo telefone e ela
mantém uma boa relação com as pessoas, consegue a informação que precisam e
transfere as chamadas para os departamentos certos, o que é muito importante.
Perguntamos-lhe qual é a segunda característica mais importante dessa trabalhadora.
Responde que trabalha bem com o computador que, apesar de estarem sempre a mudar
o software, ela aprende muito rapidamente. E mais ainda, ajuda os outros quando têm
problemas. Todos os escritórios precisam de uma pessoa assim. Além disso, é uma
pessoa que não vem para o emprego queixar-se, o que ajuda o ambiente de trabalho.
Também têm queixosos em Portugal? Ela apesar de ter problemas familiares e de saúde,
como todos nós, não se queixa. É uma pessoa agradável para se ter como colega. Se
alguém tem um problema ela tenta animá-lo, o que é muito importante.
Percorremos um dia inteiro do seu trabalho, vimos tudo o que faz e organizámos as
tarefas, da mais complexa à menos complexa. Também lhe cabe fazer o café, destruir
documentos etc. Propusemos então à supervisora trazer uma pessoa para fazer esta e
aquela tarefas mais simples, o que a libertaria de perder tempo com isso e lhe daria mais
tempo para fazer tarefas realmente mais importantes. O que é que ela poderia responder,
que não, que gostava que a sua melhor trabalhadora perdesse tempo com tarefas
insignificantes? É claro que adorou a nossa proposta, era uma boa oportunidade. Esta é
a primeira "estratégia de ambientes", as páginas amarelas da vossa lista de telefones.
Arranjamos os nomes dos Bancos e vamos bater-lhes à porta, a mesma coisa com
hospitais, com companhias de seguros, etc…. Ambientes estatais são bons por duas
razões: as pessoas que não são tão espertas e que trabalham devagar enquadram-se
perfeitamente nesse ambiente.
Esta é a Brenda e está paralisada do peito para baixo. Trabalha em Madison, nos
escritórios do City Clerk. Recebem cerca de mil envelopes diariamente que têm de ser
abertos. Durante quantos anos um de vós conseguiria fazer isso todos os dias? Uma
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pessoa normal tem uma taxa de erro, mas o que a Brenda faz é verificar duas vezes.
Para isso, coloca-os nos dedos e passa-os numa mesa de luz, se não tiverem vazios
devolve-os para serem esvaziados. Esta é uma das suas tarefas.
Este é o Larry e o trabalho dele é destruir papel. Ele é uma pessoa muito lenta. Se o
sentarmos a fazer uma tarefa ele fá-la e depois adormece, o que não é bom para a
imagem dos trabalhadores estatais. O que fazemos é sentá-lo uma hora e depois, na
outra hora, vai destruir papel. E assim, alternadamente, até completar oito horas de
trabalho.
Este é o Darwin que, por alguma razão, foi posto aos onze anos numa instituição estatal
nos Estados Unidos que é um sítio horrível. Conseguimos tirá-lo de lá aos cinquenta e
oito anos. Por ele tentar morder a parte de trás da sua mão tiraram-lhe os dentes.
Conseguimos-lhe um emprego estatal e não vive num lar mas num apartamento com
apoio. Aqui está ele, pela primeira vez a escolher o que quer comer e o que quer vestir.
E aqui está ele ao fim de um ano no emprego, a aprender. Ao fim de três anos, com
sessenta e um anos, está finalmente capaz de ganhar dinheiro. É precário, como dizem
cá. Na altura tínhamos um governador da direita, Tommy Thompson, que George Bush
levou para Washington quando foi eleito e que é agora Director de Serviços de Saúde e
Direitos Humanos dos Estados Unidos. Ficou famoso porque conseguiu tirar as pessoas
do rendimento mínimo e pô-las a trabalhar. É famoso nos círculos republicanos e
conservadores por essa razão. Quando ele soube que se tinha gasto imenso dinheiro para
manter esta pessoa numa instituição e que esta pessoa agora vive na comunidade, por
um custo mais baixo, que trabalha no governo estadual e ainda ganha dinheiro, elegeu-o
“Empregado Estatal do Mês”. Vieram as televisões, artigos nos jornais, “Parabéns
Governador Thompson”, “Wisconsin funciona”. Toda a gente falou de Darwin que
passou quarenta e sete anos numa instituição e que agora ganha dinheiro. E os
republicanos ficaram felizes!
Não sei como funciona cá em Portugal mas no meu Estado, em Wisconsin, temos umas
personagens a quem chamamos republicanos que estão neste momento no poder e
adoram lá estar. Como querem continuar, este tipo de notícias é bom para eles. Mas
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também temos umas personagens chamados democratas, que não estão no poder, mas
gostariam de estar. Por essa razão, os democratas estão um pouco infelizes. A pessoa
com o mais alto cargo eleita pelo partido democrata, em Wisconsin, é um homem
chamado Jim Doyle. Ele é o procurador geral do Estado. Fomos ter com ele e dissemos-
lhe que queríamos contar-lhe algumas das coisas que os republicanos andavam a fazer.
Mostrou-se muito interessado. Contámos-lhe que os republicanos estavam a conseguir
pôr pessoas com deficiências severas a trabalhar na Função Pública. Concordou com
este programa e pediu-nos logo que indicássemos dez pessoas para ele empregar. Claro
que tivemos de lhe explicar que não era assim que as coisas se processavam.
Este é o Darwin, agora com setenta e quatro anos. Esta é uma questão interessante: ele
está a perder capacidades, já não consegue produzir muito, está a ganhar muito pouco
dinheiro mas não quer ficar em casa. Há pessoas assim. Ele passou toda a sua vida em
instituições horríveis e agora trabalha neste sítio rodeado de pessoas que o tratam bem,
é agradável, limpo e seguro. Quando lhe perguntamos se se quer reformar, é óbvia a sua
resposta.
A Betsy Charago disse ao Governador de Wisconsin que toda esta publicidade seria
óptima para ele. Ele reconheceu, agradeceu-lhe mais uma vez e ela aproveitou para lhe
perguntar se era possível pôr uma pessoa com uma deficiência a trabalhar no seu
escritório. O resultado foi que, actualmente quem trabalha com a máquina de escrita
manual no gabinete do Governador do Estado de Wisconsin, é uma mulher com uma
doença mental crónica. O governador Thompson tem uma reunião com os seus
assessores e convidou a Betsy Charago a estar presente. Apresentou-a a todos e disse-
lhes que gostava que ouvissem o que ela tinha para dizer e que fizessem com que todos
os departamentos do governo estadual de Wisconsin empregassem uma pessoa com
deficiências. Numa só tarde conseguimos mais empregos no governo do que alguma
vez poderíamos sonhar. Não temos pessoas suficientes para os preencher, temos mais
empregos que pessoas.
Esta é a Joanne e esta é a história dela. Acabou a escola em mil novecentos e oitenta e
quatro e durante dois anos trabalhou na piscina da Universidade. De oitenta e seis a
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oitenta e oito trabalhou no Burger King e em dois restaurantes de pizzas e desde mil
novecentos e noventa e um que trabalha no laboratório de investigação criminal, porque
o procurador geral, ou melhor, os democratas o controlam. Tal como dissemos antes,
este factor é muito importante. Lembram-se de termos dito esta manhã que quando uma
criança ia para o ensino regular começava por aprender conjuntos, somas, subtracções,
multiplicações, divisões, fracções e por ai em diante? O que acontece com estas crianças
é que quando chegam a um certo nível de complexidade, não conseguem aprender mais.
Acontece o mesmo nos empregos e, por isso, o que queremos fazer é encontrar algo
com significado dentro do seu nível de competência e, em vez de procurar um progresso
de tipo vertical, procurar um progresso de tipo horizontal, ou seja, aprender mais coisas
significativas, no mesmo nível de dificuldade. Este é o princípio que utilizamos e note-
se que funciona muito melhor em locais de trabalho que na escola. Esta é uma das
razões pela qual muitas pessoas com problemas de aprendizagem na escola funcionam
melhor em ambientes pós-escolares.
Aqui ela está a limpar armas. Vocês podem utilizar armas em Portugal? Se não podem
ter uma pistola como é que se sentem seguros? Já leram as notícias sobre as crianças
nos Estados Unidos que vão às escolas e desatam a disparar? Lá todos têm o direito de
ter uma arma e muitos têm-na. Mas o problema é que matam pessoas ou roubam e têm
que ser presos.
Se as armas enferrujam têm de ser limpas. Esta é uma das coisas que ela faz na
Procuradoria Geral: limpar armas. Quando temos a cena de um crime, de um
assassinato, de uma violação ou de um roubo, tiramos fotografias para o julgamento.
Têm de ser catalogadas e é isso que ela também está a fazer. Será que é mais difícil
catalogar fotografias do que limpar armas? Não sei. Aqui ela está a destruir
documentos. Todas as coisas que ela faz, se as não fizesse teriam de pagar a alguém
muito mais dinheiro para as fazer. Aqui ela está a arrumar o balão para o teste de álcool.
Têm cá estes balões? Aqui ela está a esterilizar alguns objectos no Laboratório.
Lembrem-se: o que fazemos é ir ao local de trabalho e ver o tipo de trabalho que está a
ser feito, por quem, por quanto dinheiro e que parte dele podemos dar a fazer aos nossos
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jovens. Por exemplo, uma mulher está a trabalhar na sua secretária e acaba-se o toner da
sua impressora, os agrafos ou outro material qualquer. Ela levanta-se para ir buscar mais
à sala de economato. Nós observamos e tiramos notas. No caminho, pára para contar
uma anedota que hoje lhe contou a colega que lhe deu boleia. Demora talvez dois a três
minutos. Pára mais à frente, noutra secretária, para falar sobre cuidados a ter com o
cabelo, a seguir vai buscar o toner. No regresso passa por outras secretárias onde fala
sobre a avó de alguém que está doente. Para ir buscar o toner, demorou meia hora. A
seguir observamos outra pessoa no seu dia a dia no local de trabalho.
Quando temos toda a informação vamos falar com a supervisora, aquela que está
sempre a pedir ao Ministro mais pessoal. Mostramos-lhe o que é que se está a passar e
ela fica preocupada ao ver o tempo que se perde nessas coisas. Dizemos-lhe para não se
preocupar porque temos uma solução para o problema. Assim, ensinámos a Joanne,
arranjámos-lhe um carrinho com as coisas que mais frequentemente se esgotam e
fizemos um pequeno álbum com imagens dos restantes materiais que podem vir a ser
precisos, que ficam guardados no armário do economato. Ela dá uma volta com o seu
carro de manhã, outra à tarde, perguntando às pessoas o que lhes faz falta. A
produtividade começou a aumentar e isso foi excelente. Nunca explicámos aos
empregados o que fizemos, porque o resultado seria passarem a detestar a Joanne, mas a
Supervisora ficou muito contente.
Esta foi a coisa mais difícil que lhe ensinámos, que é complicada e ainda é um problema
para ela. Fizemos uma análise da tarefa de destruição de documentos e depois uma
análise da tarefa de utilização da fotocopiadora para conjuntos de fotocópias. É muito
mais complicado, estamos a puxá-lo ao limite. Sabemos que demora mais tempo a
ensiná-la, torna-se mais complicado, vamos ter uma margem de erro maior e essa é
outra definição de dificuldade.
Esta é a Care, dezoito anos atrás. Ela tem autismo e aqui estava a trabalhar no gabinete
do City Clerk quando tinha vinte e um anos, depois de ter saído da escola. Aqui está ela
há um ano atrás.
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É fácil conseguir empregos para aqueles jovens tão simpáticos, com Síndroma de
Down, que são tão bem comportados, filhos de Yuppies. Mas o que é que acontece com
aqueles jovens fortes e duros? Tivemos um aluno com dois metros de altura, cento e
vinte quilos de peso, muito agressivo, deficiente auditivo total, deficiente intelectual e
exibicionista. Também têm destes em Portugal, exibicionistas? A questão que se coloca
é o que vamos fazer com um jovem com dois metros de altura, cento e vinte quilos de
peso, muito agressivo, deficiente auditivo total, deficiente intelectual e exibicionista.
Onde é que lhe vamos arranjar um emprego? Arranjámos-lhe um emprego num talho,
por ser frio lá dentro. Na escola, púnhamos-lhe bibes, atávamos-lhe as roupas à sua
volta. No talho nunca tivemos um único problema.
Tivemos a dar formação a um jovem durante seis meses no Hotel Howard Johnson.
Quando começámos a distanciá-lo do formador ele fez uma fogueira na sala dos cacifos
do hotel. Dado esse comportamento, levámo-lo para uma pizzaria. Passados três meses,
quando estávamos a distanciá-lo do formador, levou umas caixas de pizza para os
vestiários e começou outro fogo. Dois fogos. Onde é que lhe vamos arranjar um
emprego? Nos Bombeiros! Não é um problema, porque apesar de tudo precisam de
praticar, não é?
Os Yuppies adoram ambientes médicos. Esta é a Kristin, com vinte e um anos. Desde
que saiu da escola, em mil novecentos e oitenta e dois, há vinte anos atrás, que trabalha
meio dia no Laboratório Macarthur de Pesquisa do Cancro, no Campus da Universidade
de Wisconsin. Desde mil novecentos e noventa e cinco que trabalha no First Business
Bank de Wisconsin. A sua mãe chama-se Nathalie e o pai chama-se Keith que são
nomes tipicamente Yuppies. Conhecemo-los muito bem e são uma família muito bem
sucedida, muito conhecida em Madison. O Keith era presidente do Conselho Directivo
da escola; são realmente umas pessoas extraordinárias. A Nathalie adora contar uma boa
história. Ela conta que quando vão a um acontecimento social ou político as pessoas
vêm ter com ela e perguntam-lhe pela Kristin porque sabem que ela tem uma filha com
uma deficiência. Perguntam-lhe o que é que ela faz agora que já acabou a escola. E a
Nathalie adora responder que ela trabalha. Quando lhe perguntam onde, a Nathalie
adora dizer que ela trabalha no Laboratório Macarthur de Pesquisa do Cancro no
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Campus da Universidade de Wisconsin. Tem um toque yuppie. A seguir perguntam-lhe
sempre o que é que ela faz lá e é claro que Nathalie adora responder que ela trabalha na
pesquisa contra o cancro.
Aqui está a Kristin. Vou-lhes contar o problema que temos agora. Apoiámos estas
crianças quando estavam na escola, com esta idade. Nos últimos cinco ou seis anos
tirámo-las da escola e ensinámos-lhes o que era o trabalho real, no mundo real. Não
apenas as tarefas a realizar, mas também a parte social, a responsabilidade, a stamina, a
energia, a confiança. Tudo isto é tão importante como as tarefas a desempenhar.
Começámos a distanciá-los dos seus formadores e contámos o número de horas de
supervisão feita por pessoas pagas ao longo do ano. Fazemos isso todos os anos e a
Betsy sabe quanto custa supervisioná-los, uns custam muito, outros custam muito
pouco. Esse é o caminho a seguir: treino eficaz, apoio continuado (para sempre), mas
apoio sem custos muito altos.
Agora estes jovens estão a ficar menos jovens, com trinta e muitos anos, e começam a
aparecer cancros, problemas de coração, problemas nos ossos, nas ancas e nos joelhos.
Estão a ir abaixo. Se pensarmos que em mil novecentos e vinte e cinco, nos Estados
Unidos, a esperança de vida de pessoas com Síndroma de Down era de nove anos,
vemos a diferença: agora é de trinta e muitos. Os corpos destas pessoas estão a
deteriorar-se e não é um espectáculo bonito. Estamos contentes que vivam até tão tarde
mas é um problema que a nossa geração está a enfrentar.
Esta é a Debbie e tem autismo. Como estamos com pouco tempo, vou só mostrar-vos as
pessoas. Há pessoas com autismo que têm mais de três locais de trabalho por ano. E
algumas pessoas com autismo que fazem sempre, sempre a mesma coisa. Se
conseguirmos uma boa combinação entre uma pessoa com autismo e um ambiente,
conseguimos o melhor trabalhador possível. Eles repetem o mesmo trabalho vezes sem
conta, não se queixam, aparecem a horas e enfurecem-se se os não deixarem fazer o seu
trabalho. E isto é bom.
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Esta é a Mattie, é deficiente visual e auditiva total desde que nasceu. Pusemo-la numa
daquelas instituições horríveis com outros deficientes visuais e auditivos. (Lembram-se
da aula de macas?) Depois conseguimos tirá-la e pô-la na escola e mais tarde formámo-
la para trabalhar. Nos últimos sete ou oito anos ela trabalha na Pizza Hut de Milwaukee
que tem uma facturação extraordinária: cinco mil por cento de facturação de todos os
trabalhadores. Ela faz parte do grupo e sabe isso, o que é extraordinário. Se tivéssemos
chegado a ela mais cedo, assumindo que o seu grau de inteligência era normal, sabe-se
lá o que ela podia estar a fazer agora.
Este é o Eric, também com trinta e muitos anos. Tem Síndroma de Down e está a ter
problemas. Os seus pais eram Yuppies e não permitiram que ele tivesse empregos
ligados à alimentação ou à limpeza. Por isso trabalhou num hospital, numa cooperativa
de crédito, numa companhia de seguros, num departamento do estado e aqui está ele
numa quinta com um agricultor aos vinte e um anos. Agora trabalha numa empresa de
construção e uma das coisas que tem de fazer é ordenar cheques cancelados pelos
números.
Lembram-se que uma das coisas que falámos ao princípio da tarde foi o problema
causado pela estratégia de "ir de baixo para cima", de usar como modelo o
desenvolvimento humano normal para decidir o que fazer com pessoas com a idade
mental de 5 anos ou o nível de leitura do primeiro ano. De facto, isto cria sempre
problemas para pessoas com deficiências severas. Uma das mudanças que temos de
introduzir é passar a ir "de cima para baixo". E este é um bom exemplo disso.
A área não é leitura, matemática, socialização ou linguagem. A área é "a profissão". O
local é o Hospital de St. Mary, o ambiente mais específico é a sala de consultas externas
e a actividade é entregar amostras clínicas, radiografias, etc. Ou seja, tudo o que
acontece numa sala de consultas externas. Decidimos que queremos ensinar a esta
pessoa estas competências específicas, para executar estas tarefas específicas. Não
todas, apenas estas, neste sub-ambiente deste local.
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Este é um bom exemplo: é o Philip e tem o Síndroma de X frágil. Para pessoas que não
saibam, ele não fala, não lê e o seu quociente de inteligência é muito abaixo dos
cinquenta. Mas é um ser humano extraordinário. Nunca foi segregado, tem boas
competências sociais, sorri, olha para as pessoas quando falam com ele, é uma pessoa
agradável. O que ele está a fazer aqui, é fornecer batas às pessoas para que possam
entrar na parte esterilizada do Hospital. (Vou apressar porque estamos a ficar sem
tempo). Aqui ele está a entregar amostras de urina da clínica de consultas externas.
Antigamente todos estes trabalhos eram feito por pessoas que ganhavam muito mais
dinheiro do que ele. Ele ganha o ordenado mínimo, a trabalhar a tempo inteiro. Na
realidade, mais cinquenta cêntimos que o ordenado mínimo. Aqui ele está a entregar
radiografias.
Este foi um bom exemplo, assim como o da Joanne. Pegamos numa conjuntura
profissional com seis, sete, oito e dez pessoas, estudamos o que fazem e os jovens
responsabilizam-se por partes do trabalho de três, quatro ou cinco pessoas. No fundo,
estamos a inventar um emprego. Uma ocupação como esta não existia na lista de
pessoal. Tivemos de a inventar e faz com que o negócio funcione melhor. Na América,
quando conseguimos que uma empresa facture mais dinheiro ou consiga reduzir os
custos é sempre muito bem aceite.
Este homem é o Director do Departamento de Anestesia do Hospital, talvez o homem
mais inteligente do Hospital. De certeza que ele não quer que o Philip case com a sua
irmã e tenho a certeza que não tem um jantar combinado com ele na sexta-feira. Sei
tudo isso. Mas deviam vê-los. Eu e a minha mulher fomos a um jogo de basquetebol no
liceu da zona em que vivemos. Primeiro entrou o Philip que se sentou, a seguir entrou o
anestesista, provavelmente para ver o seu filho jogar; dirigiu-se ao Philip e interagiu
com ele. Foi muito bonito de ver.
Esta é a Aaron que está há doze anos num restaurante. Aqui tem trinta e oito, trinta e
nove anos. Está a trabalhar em parceria com uma colega. Lembram-se porque
queríamos estas parcerias na escola? É que queríamos no futuro alcançar este resultado.
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Esta é a Maggie que trabalha num restaurante de um Departamento do Estado. Devemos
isto ao Governador Thompson.
Este é o Theo e esta história é fascinante. Quando acabou a escola arranjámos-lhe um
emprego a lavar pratos num restaurante com muito movimento. E era um problema por
duas razões: a primeira, porque era um trabalho muito cansativo; a segunda, porque
quando ele via alguma comida de que gostasse, num prato, comia-a. Ao fim de uma
semana, começámos a pesá-lo e reparámos que estava a engordar. O que fizemos foi
dividir o seu horário: meio dia a lavar pratos e meio dia na biblioteca. A seguir,
arranjámos-lhe um emprego num Motel e depois numa Companhia de Seguros. Hoje
trabalha meio dia no Motel e meio dia na Companhia de Seguros.
Isto é muito importante, é o tipo de coisa que esperamos que toque no coração de
alguém. (É do vosso coração que estou a falar agora.) Antigamente, o que acontecia era:
arranjávamos uma sala muito grande, descobríamos as pessoas mais deficientes na
nossa comunidade, contratávamos pessoas para irem buscá-las todas as manhãs e trazê-
las para esta sala enorme, sentávamo-las em bancos corridos ou secretárias e falávamos
sobre um plano de reabilitação individual. E não funcionava. Chamem-lhe abrigos,
oficinas, centros de actividades,…. Juntávamos um grande número de pessoas e
púnhamo-las todas num sítio. Agora dizemos para se inverter este processo. O que
estamos a tentar dizer é que pegamos numa pessoa com deficiência e damos-lhe acesso
a todos os lugares na comunidade. Isto significa libertação, criação de oportunidades. É
encontrar uma combinação entre o que eles querem fazer, o que sabem fazer bem e o
que está disponível na comunidade.
Fazemos combinações de várias coisas. Combinamos capacidades, interesses, salários
necessidade sociais e comportamentos. Muitas destas pessoas têm dois empregos a
tempo parcial. A razão é que nos Estados Unidos, quando se tem um emprego a tempo
parcial, o empregador não tem de pagar os benefícios fiscais e sociais. Como todas estas
pessoas foram declarados pelo Estado como sendo total e permanentemente deficientes
têm direito a apoio médico. Quem esteja um pouco acima deles tem que ter um trabalho
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a tempo inteiro. (Esse é o meu problema em Chicago, arranjar empregos a tempo inteiro
com todos os benefícios.)
Esta é a Nancy e trabalha de manhã numa loja de fast-food. Faz saladas, lava janelas,
recolhe o lixo no parque de estacionamento; é mesmo bom. Às onze e meia da manhã,
começam os problemas. A loja enche-se de pessoas e ela já não consegue funcionar.
Durante a hora de ponta, os pedidos são muitos. Eles estavam a pensar prescindir dela.
Disse-lhes que quando fosse necessário um comportamento mais eficaz a tirávamos de
lá. Assim, durante a hora de ponta do restaurante, ela vai trabalhar para uma loja de
vídeo no centro comercial e fica lá até acabar. Depois volta ao restaurante, limpa-o e
prepara a refeição da noite. Tem dois empregos a tempo parcial.
Este é o Tom e é um grande problema. Trabalhava numa pizzaria, mas os seus pais não
gostavam pois achavam que não era suficientemente bom para ele. Através do
Governador Tompson conseguimos-lhe um emprego num departamento público e
durante um mês funcionou bem mas depois começámos a ter graves problemas.
Tentámos técnicas de modificação de comportamento. Enquanto esteve na pizzaria
trabalhava até cair para o lado. Aparecia para trabalhar nos fins de semana em que não
tinha que trabalhar. Quando estava no Governo simplesmente não gostava, estava atrás
de uma divisória a agrafar e a lidar com um número reduzido de pessoas. Algumas
pessoas funcionam bem com um número reduzido de pessoas, como por exemplo
pessoas com autismo. Aprendem a conhecê-los e vice versa. Outras não funcionam bem
com um número reduzido de pessoas, durante largos períodos de tempo, porque
esgotam as suas capacidades de comunicação. Foi isso que calculámos que estivesse a
acontecer. Porque é que ele funcionava tão bem na pizzaria e tão mal no departamento
público? O problema não era o local, era tipo de trabalho. Quando os clientes entravam
na pizzaria cumprimentavam-no, não exigindo dele uma conversa longa e profunda.
Falava com toda a gente e há pessoas que são óptimas nisto. Os pais dele estavam muito
contentes por ele estar cinco dias por semana no departamento, mas ele não. Perante
este conflito decidimos fazer um acordo. O Steven passaria dois dias no departamento e
três dias numa loja de bebidas. Os pais ficaram contentes porque se lhes perguntassem
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onde o filho trabalhava podiam responder que "trabalhava para o Estado", e isso fá-los
felizes.
O tempo chegou ao fim. Gostei muito de estar convosco e bom trabalho
Nota: Conferência proferida em Inglês, transcrita de gravação e traduzida para Português por
Jorge Rivotti.