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1 Educação e Transição para a Vida Adulta de Crianças e Jovens com Deficiência Intelectual Acentuada (Conferência realizada pelo Professor Lou Brown, na Fundação Calouste Gulbenkian, no dia 12 de Junho de 2002) Muito obrigado por me receberem. Sinto-me honrado em estar convosco. Vou tentar falar devagar e não me portar como um americano insuportável. Por isso, se eu disser alguma coisa ofensiva a Portugal, por favor desculpem-me, não é essa a minha intenção. Os assuntos sobre os quais vou falar aconteceram no local onde vivo e no contexto do meu trabalho. Dado o seu interesse para nós, coloca-se-me agora o problema de ser capaz de os tornar interessantes para vós. Na primeira parte desta conferência iremos falar sobre escolaridade que, na nossa opinião, não é um fim em si mas é apenas um meio para atingir um fim. Iremos falar sobre as metas e os resultados que queremos tão desesperadamente alcançar. Se o tempo me permitir, vou tentar falar sobre escolas de ensino regular e sobre as razões pelas quais alunos com deficiências severas as deveriam frequentar. Primeiro, gostaria de vos falar sobre a escola. A seguir, gostava de vos dar a conhecer as mais de sessenta pessoas com quem temos trabalhado, ao longo de trinta anos. Alguns dos alunos que conheci com cinco anos têm agora trinta e cinco. Os que conheci com dez têm agora quarenta. Temos acompanhado as suas vidas. Penso que é a primeira vez que isto foi feito, já que pessoas como estas nunca viveram até tão tarde. Nos Estados Unidos, em 1929, a esperança de vida de pessoas com Síndroma de Down era de nove anos de idade. Subiu para os trinta e oito, trinta e nove anos, e são essas pessoas que eu gostaria de vos dar a conhecer. Dizer-vos o que estão a fazer neste momento e como conseguiram lá chegar. Mas isso será na segunda parte.

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Educação e Transição para a Vida Adulta de Crianças e Jovens com

Deficiência Intelectual Acentuada

(Conferência realizada pelo Professor Lou Brown, na

Fundação Calouste Gulbenkian, no dia 12 de Junho de 2002)

Muito obrigado por me receberem. Sinto-me honrado em estar convosco. Vou tentar

falar devagar e não me portar como um americano insuportável. Por isso, se eu disser

alguma coisa ofensiva a Portugal, por favor desculpem-me, não é essa a minha intenção.

Os assuntos sobre os quais vou falar aconteceram no local onde vivo e no contexto do

meu trabalho. Dado o seu interesse para nós, coloca-se-me agora o problema de ser

capaz de os tornar interessantes para vós. Na primeira parte desta conferência iremos

falar sobre escolaridade que, na nossa opinião, não é um fim em si mas é apenas um

meio para atingir um fim. Iremos falar sobre as metas e os resultados que queremos tão

desesperadamente alcançar. Se o tempo me permitir, vou tentar falar sobre escolas de

ensino regular e sobre as razões pelas quais alunos com deficiências severas as

deveriam frequentar. Primeiro, gostaria de vos falar sobre a escola. A seguir, gostava de

vos dar a conhecer as mais de sessenta pessoas com quem temos trabalhado, ao longo

de trinta anos. Alguns dos alunos que conheci com cinco anos têm agora trinta e cinco.

Os que conheci com dez têm agora quarenta. Temos acompanhado as suas vidas. Penso

que é a primeira vez que isto foi feito, já que pessoas como estas nunca viveram até tão

tarde. Nos Estados Unidos, em 1929, a esperança de vida de pessoas com Síndroma de

Down era de nove anos de idade. Subiu para os trinta e oito, trinta e nove anos, e são

essas pessoas que eu gostaria de vos dar a conhecer. Dizer-vos o que estão a fazer neste

momento e como conseguiram lá chegar. Mas isso será na segunda parte.

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Outra coisa que queria partilhar convosco, quando estivermos a falar de empregos, é

como colocar pessoas com deficiências severas no mercado do trabalho. Há cinco ou

seis anos atrás foi-nos pedido pelo Estado de Illinois, em Chicago, que formássemos

pessoas vítimas de violência e de negligências, enquanto jovens, retiradas às respectivas

famílias e postas em casas de acolhimento. Estes jovens têm problemas na escola e

estão a passar exactamente pelas mesmas dificuldades que passam as pessoas com

deficiências severas. Não vivem em boas condições, não têm trabalho e, a maioria deles,

já tiveram problemas com a justiça. Pediram-nos que utilizássemos algumas das

técnicas desenvolvidas no trabalho com pessoas com deficiências físicas e intelectuais e

as aplicássemos a estas pessoas que, apesar de terem maior capacidade física e

intelectual, se deparam com dificuldades semelhantes. Contarei algumas histórias sobre

este assunto na segunda parte.

Ontem conheci pessoas maravilhosas que trabalham no Instituto de Inovação e falámos

sobre empregos para pessoas com deficiências severas. Sabemos que um dos maiores

problemas que se levantam é saber como conseguir que as empresas abram as suas

portas e os deixem lá trabalhar. Gostaria de falar meia hora, quarenta e cinco minutos,

sobre algumas das estratégias que utilizamos e espero que tenham relevância no vosso

país. Muitos dos assuntos sobre os quais iremos falar já estão disponíveis num site de

Internet, temporariamente em inglês. É gratuito e podem obter o endereço junto do

Instituto.

1ª Parte

Educação de Crianças e Jovens com Deficiência Intelectual Acentuada

O que acontece é o seguinte: um bebé nasce, vamos supor que num hospital (tem que

nascer nalgum lado), depois vai para casa — dois locais — a seguir vai à Igreja para ser

baptizado — três locais — a seguir vai ao pediatra — quatro locais — depois vai ao

parque, a seguir vai a uma loja. É o que acontece no meu país e no vosso. Um bebé

nasce e vai a diversos locais. (Vamos tentar contabilizar rapidamente, em quantos locais

qualquer um de nós esteve nos últimos sete dias?) Quando os bebés são pequenos, não

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vão a muitos sítios mas à medida que vão crescendo esse número vai aumentando.

Estivemos em Lisboa segunda-feira, dia feriado, e devíamos ser as únicas pessoas que

cá estavam, não estava cá mais ninguém, estavam todos noutro sítio qualquer. Não

havia carros na estrada, ninguém nos autocarros, não estava cá ninguém. Mas já

voltaram.

Há uma altura na nossa vida, à medida que vamos envelhecendo, em que já não

queremos ir a muitos locais e essa vontade vai diminuindo, diminuindo até à altura em

que, num determinado local, morremos. É assim quando não se é deficiente. Quando se

nasce com uma deficiência, a vida começa no Hospital, segue-se a casa, uma ida à

Igreja, uma ida ao pediatra e então aí começa o ciclo: casa – autocarro - escola -

autocarro - casa. Estudámos as vidas de pessoas com deficiências severas e concluímos

que elas não vão a muitos sítios; não vão a um sítio e depois a outro, vão apenas a um.

E, muitas vezes, no meu país e no vosso, depois da escola vão para casa onde ficam sem

fazer nada. Não participam na nossa cultura, não experimentam as coisas positivas que

existem no mundo lá fora.

Nós, como educadores, temos de pensar qual é a nossa função. Uma delas é aumentar o

número de locais onde pessoas com deficiência possam ir, de modo a tentar que se

desloquem ao mesmo número de locais a que nós normalmente vamos. Devemos fazer

tudo o que pudermos para aumentar esse número. E devemos ultrapassar os obstáculos

que se colocam à sua aprendizagem relacionada com a utilização desses diversos locais.

Não quero ofender ninguém, mas afirmo que a segregação gera segregação. Se

segregarmos um deficiente, enquanto jovem, estamos a aumentar a probabilidade de ele

vir a ser segregado mais tarde por não ter aprendido a funcionar numa sociedade

integrada, a qual, por sua vez, não sabe lidar com ele. Por outro lado, integração gera

integração. Mas a teoria é que (e espero que a realidade também o seja) quantas mais

pessoas souberem interagir com pessoas com deficiências severas, melhor preparadas

culturalmente estão para as poderem apoiar na vida pós-escolar. Quando estudamos a

vida de uma pessoa com deficiências severas, vinte e quatro horas por dia, sete dias por

semana, podemos contar o número de locais em que funcionam. A isso chamamos

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“análise da vida no espaço e no tempo”. Dado que, a maior parte não vai a muitos

locais, devemos aumentar esse número.

Depois, podemos ir um pouco mais longe. Com quem é que ficam as pessoas com

deficiências severas que conhecem? Com quem estão vinte e quatro horas por dia, sete

dias por semana? Regra geral, estão com familiares ou com pessoas pagas para isso. Por

isso, dizemos a uma mãe: "A nossa equipa avaliou a sua filha de cinco anos. Ela tem

deficiências significativas e quando acabar a escola, se chegar a acabar, aos dezasseis

ou dezoito anos, as únicas pessoas que vão interagir com ela serão familiares e pessoas

pagas para estar com ela". O que é que pensam disto? É devastador dizer isto a um pai

e a uma mãe; não queremos fazê-lo. Nós, como profissionais, conhecemos a realidade e

sabemos o que acontece. O que é que podemos fazer? Para além de aumentar o número

de locais onde estas pessoas possam funcionar, vamos especialmente tentar aumentar o

número de pessoas não remuneradas com quem possam interagir.

Há anos atrás, fui a uma escola onde encontrei um rapaz sem braços nem pernas. Visito

normalmente várias escolas. Se vejo alguém com autismo, não me pergunto qual seria a

minha vida se tivesse autismo. Vocês poderão fazê-lo, eu não. Entro numa escola, vejo

uma pessoa com Síndroma de Down e não me pergunto qual seria a minha vida se

tivesse Síndroma de Down. Vocês poderão fazê-lo, eu não. Entrei numa escola e vi uma

pessoa sem braços nem pernas. Nesse momento, perguntei-me qual seria a minha vida

se eu não tivesse braços nem pernas. Sei que não o deveria fazer, mas fi-lo. Não

conseguia imaginar-me sem braços, nem pernas. Fiz o que não era suposto fazer, como

profissional.

Eu lecciono uma cadeira na Universidade de Wisconsin e todos os semestres os alunos

têm a opção de, ou fazer um exame, que aliás detestam, ou virem comigo para a cidade

trabalhar com pessoas com deficiência. A escolha é deles. Já uso este sistema há trinta e

três anos e, até agora, não houve um único aluno que tenha escolhido fazer o exame. Por

isso, tenho estes colaboradores maravilhosos e jovens.

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Escolhi várias pessoas para ajudar o Todd, porque eu estava bloqueado em relação ao

facto dele não ter braços nem pernas. Consegui voluntários para o levar ao mercado dos

agricultores todos os sábados de manhã, aos jogos de futebol aos sábados à tarde, às

festas da escola, à catequese nos domingos de manhã. Como dou formação a

professores na Universidade, todos os semestres conseguia arranjar um bom professor

que lhe garantia um ensino individual. Alguém competente estava sempre com ele.

Isto durou anos e anos. Na sua adolescência, aos dezasseis, dezassete anos, o seu

comportamento tornou-se muito difícil e, sem querer dizer nada de negativo acerca dele,

há que reconhecer que passou a constituir um problema. Estava mimado, tinha tudo o

que queria, bastava piscar o olho para ter várias pessoas ajudá-lo. Em Maio, aos

dezanove anos, teve uma pneumonia e morreu. Ficámos todos muito tristes.

No Outubro seguinte fui a uma escola e vi o Brendan. Olhei para ele e pensei: tenho

uma outra oportunidade e é raro conseguir duas oportunidades na vida. O que é que vou

fazer com o Brendan? Pô-lo numa aula com outras crianças com deficiências

ortopédicas, como fiz com o Todd? Arranjar estudantes universitários inteligentes para

estarem com ele a toda a hora, como fiz com o Todd? Dar-lhe uma educação individual,

como fiz com o Todd? Vê-lo tornar-se uma criança isolada e difícil? Não, não vou fazer

isso; já experimentei esse caminho e tenho pena que tenha corrido da forma como

correu. O Brendan nunca vai conhecer o interior de uma sala de aula de educação

especial, não vai aprender com pessoas que são subornadas ou pagas para estarem com

ele. Vai desenvolver relações com pessoas da sua idade cronológica. Não posso cair no

mesmo erro.

Gostaria agora de falar sobre as relações sociais, de pessoas com deficiências severas,

no meu país. O que nós queremos é aumentar a extensão das relações sociais de um

modo individualizado e penso que vocês também o querem. Ninguém quer alguém a

dizer-nos com quem é que podemos ou não interagir. Gostamos de ser nós de fazer essa

escolha. Todos queremos ter a oportunidade de aprender a interagir com quem achamos

mais atraente. O problema, nos Estados Unidos, é que as pessoas com Síndroma de

Down estão juntas com outras, também com Síndroma de Down, e não podem estar

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com outras pessoas. Quando se tem autismo, vai-se de férias para um campo de férias

de autistas. Historicamente, de um modo terrível, confinámos as relações sociais de

pessoas com deficiência a pessoas com a mesma deficiência.

Qual é o nosso trabalho? Aumentar o âmbito das relações sociais de modo a que sejam

tão abrangentes como as nossas. Eles não são como nós; nós funcionamos bem,

sabemos fazer amizades. Se nos sentimos sozinhos sabemos como conhecer alguém.

Pessoas com deficiência não o sabem fazer e, por isso, temos que as ajudar. O que

temos que conseguir é tornar o âmbito de relações sociais mais abrangente e, para isso,

temos de começar enquanto são jovens e construí-lo, ao longo do tempo. Alguma vez

viram dois autistas a jogar ténis? Já viram dois deficientes visuais e auditivos a jogar às

damas? A regra é: quanto mais deficiente se é mais se precisa de ter relações sociais

com pessoas não deficientes. Se aceitamos esta tese, ao olharmos para a história de

pessoas com deficiências severas e verificarmos com quem é que elas interagem, vemos

o caminho que temos de andar.

Onde é que vamos encontrar essas pessoas não deficientes? A resposta é: nas escolas de

ensino regular. O que queremos é construir uma variedade de relações sociais com os

jovens das escolas de ensino regular e conseguir que essas mesmas relações se

mantenham fora da escola. Olhem para a Cristina1: ela é bonita, não é? Olhem para

aquela pele, para aqueles dentes tão bonitos. Adoro o cabelo dela, ela é linda. Estão a

ver? Se ela quisesse conhecer alguém depois da conferência bastava ir ao centro da

cidade, mostrar os dentes e sorrir. Viriam todos atrás dela. É muito fácil para ela e para

pessoas como ela. Muito fácil mesmo. Se ela fosse num cruzeiro, conseguia quinze

encontros numa hora. É fácil, não é? Não funciona assim para pessoas com deficiência.

Como é que vamos conseguir atrair pessoas para junto daqueles que o não conseguem

fazer sozinhos? Como é que lhes vamos conseguir uma maior diversificação de relações

sociais?

Através da nossa experiência, sabemos que são precisas pelo menos duas coisas:

1 Referindo-se a uma pessoa da assistência

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a) Experiências comuns. Eles precisam de qualquer coisa para partilhar. Não podemos

ter um jovem a passar por uma experiência, outro jovem por outra e esperar que

eles comuniquem sobre essas experiências diferentes. Assim não funciona. Mas, se

eles estiverem na mesma aula, se praticarem exercício no mesmo ginásio, se

viajarem no mesmo autocarro, se estiverem envolvidos nas mesmas actividades, já

têm uma experiência comum que podem recordar juntos.

b) Contactos frequentes. É preciso muito tempo para conhecer uma pessoa com

deficiências severas. Temos de conseguir ultrapassar os problemas de comunicação.

Não podemos fazê-lo só uma vez por semana pois demora tempo. Funciona melhor

diariamente, várias vezes ao dia. E demora tempo.

Assim, qual é a nossa função? Como educadores, qual é o nosso trabalho? Se

quisermos aumentar e melhorar o âmbito das relações sociais de pessoas com

deficiências severas temos de gerar experiências comuns, estabelecer contactos

frequentes, através de longos períodos de tempo, com pessoas não deficientes. Como é

que o vamos conseguir? Na nossa opinião é através das aulas de ensino regular. Temos

um manual chamado “Inventário das Relações Sociais de Madison” que podem

descarregar da Internet.

Funciona da seguinte maneira: pegamos num tipo de relação social na qual estamos

interessados, como por exemplo, comer. Sentamo-nos com uma família e perguntamos

à mãe "com quem é que o seu filho costuma comer?". Normalmente não percebem este

tipo de pergunta, estão mais habituados a que lhes perguntem qual é a idade mental, se

conseguem contar até dez e quais as cores que conhecem. Ninguém pergunta a uma mãe

de uma criança de cinco anos com quem é que ela come. Perguntam-nos porque é que

queremos saber isso. Respondemos que achamos que as únicas pessoas que comem com

a criança são familiares e pessoas pagas para isso. Quando acaba a escola, queremos

garantir que a criança fará as suas refeições com as mesmas pessoas com que as faria se

não fosse deficiente. Se ela está a fazê-lo agora, não vamos perder tempo com isto. Mas

se não o estiver, teremos que construir relações de alimentação e hábitos alimentares.

Perguntamos também: "Com quem é que seu filho se desloca?" A resposta é: com

membros da família e no autocarro da escola. Não se desloca em comboios, autocarros

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ou à boleia com alguém conhecido. Precisamos de descobrir quais são os meios de

deslocação para começar a ensinar competências na mobilidade.

Será que numa sala de aula de ensino regular existem alguns alunos que realmente

possam ajudar este tipo de crianças? Ou que o saibam fazer, sem interferir com o seu

próprio desempenho. Temos de construir esse tipo de entre-ajuda nas salas de aula de

ensino regular. Temos também que saber se a criança tem professores que a ajudem e

colegas do ensino regular que a ensinem na aula e em actividades extra curriculares

promovidas pela escola. Na Primavera passada, avaliei dois liceus numa área onde

vivem famílias muito abastadas nos arredores de Chicago. E foi umas das experiências

mais extraordinárias que tive. Têm quatrocentas crianças com elevados problemas

educacionais havendo, por isso, apoio especial nos dois liceus. Setenta e cinco por

cento das crianças estão inseridas em actividades extra curriculares promovidas pela

escola. É extraordinário, mas não conheço nenhuma outra escola nos Estados Unidos

que faça isto. Normalmente, logo que toca a campainha, as crianças com deficiências

são postas no autocarro para serem levadas para outro sítio qualquer. Não participam

no clube de teatro, no clube de agricultura, no futebol, nem noutro tipo de actividades.

Se há actividades extra curriculares promovidas pela escola temos de saber se as

crianças com deficiência têm acesso a elas ou são excluídas. Nós queremos garantir-lhes

este acesso porque essas actividades extra curriculares na escola são recreativas, são o

princípio do futuro, da passagem para a vida adulta.

Temos ainda de perguntar: "com quem é que está a criança depois da escola e aos fins-

de-semana? E, agora, a pergunta mais difícil: "a criança tem algum amigo?" Nós, se

tivermos dez bons amigos na nossa vida, consideramo-nos com muita sorte. Muitos de

nós só sabemos o bom que é ter um amigo quando essa amizade é posta em causa; só aí

é que percebemos o significado que tinha nas nossas vidas. Quando perguntamos aos

pais de uma criança com deficiência se ela tem um amigo, a resposta é invariavelmente

negativa. Temos um manual que nos ajuda a construir uma relação social alimentar, na

escola, com outras crianças não deficientes. Sabemos fazê-lo. Já o fizemos, não temos

problemas nenhuns em relação a isso. Querem construir relações sociais durante as

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deslocações? Já o fizemos, não temos problemas nenhuns em relação a isso. Conseguir

que as crianças do ensino normal as ajudem? Não é um problema, podemos mostrar-

lhes como fazê-lo. Conseguir envolvê-los em actividades extra curriculares? Facílimo.

Eu posso fazê-lo, vocês podem fazê-lo, mas o que não sabemos fazer é arranjar-lhe um

amigo. É uma coisa terrível para se dizer a uma criança deficiente ou aos seus pais.

Consigo fabricar uma relação social mas não consigo arranjar-lhe um amigo. Podemos

esperar que, através dessas relações sociais, se desenvolva uma amizade, mas nos

quarenta anos de trabalho com pessoas com deficiência raramente vi isso acontecer. Se

não conseguirem um amigo pelo menos têm de conseguir relações sociais, que sempre

são melhores do que não terem nada.

Deixem-me falar-vos um pouco sobre Wisconsin, o Estado onde vivo, na parte central

dos Estados Unidos. Somos o Estado dos lacticínios, produzimos mais leite, queijo e

lacticínios do que qualquer Estado da América do Norte, o que é fruto de uma grande

influência alemã, suíça e escandinava. O solo é bom e é extraordinário o que se

consegue extrair de uma vaca hoje em dia. Mas é preciso vender o que se produz. Em

Portugal não se preocupam tanto com isso mas, nos Estados Unidos, toda a gente tem

de vender e comprar alguma coisa. É por essa razão que temos uma lei estatal que diz

que temos de ter seis refeições por dia. Se já viram um jogo de futebol americano na

televisão, já repararam que as pessoas na assistência são extraordinariamente grandes.

Vocês parecem uns anões comparados com os habitantes de Wisconsin. Uma pessoa

ocupa dois lugares. Temos de comer, alguém tem de consumir aquela comida toda.

Começamos com um grande pequeno almoço, a meio da manhã comemos qualquer

coisa, seguimos com um bom almoço, à tarde comemos um lanche e à noite comemos

um bom jantar. Depois, em Wisconsin, somos obrigados, por lei, a comer uma pizza

com queijo duplo, antes de ir para a cama. Fantástico, não? São seis vezes por dia que

precisamos de comer, sete dias por semana, o que dá quarenta e duas vezes por semana,

duas mil e cem por ano. Podem contar. E isto acontece ao longo da vida. Quantas vezes

comeram hoje, com quem é que comeram, com quem é que vão comer amanhã? Assim

tentámos desenvolver relações sociais durante as refeições entre as pessoas deficientes e

as não deficientes. Já reparei que isto não acontece em Portugal.

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Este rapaz2, aqui no meio, tem Síndroma de Prattwills. Tem uma necessidade enorme de

estar sempre a comer, mas qualquer coisa de substancial. Esse é o seu problema: basta

ter comida ao pé dele que a come imediatamente. Antigamente, quando trabalhei com

pessoas com este tipo de problema, o que acontecia era que comiam até desmaiar. Iam

até ao ponto de se fecharem numa mercearia, quando esta encerrava, e comiam sem

parar. Encontravam-nos, no dia seguinte, completamente empanturrados. Um dia uma

mulher telefonou-me da Califórnia e perguntou-me se eu trabalhava na defesa dos

interesses de pessoas com deficiência e se sabia o que era o Síndroma de Prattwills.

Respondi-lhe que sim, que eram aquelas pessoas que comiam muito. Pediu-me então

ajuda para montar uma instituição para pessoas com esse síndroma, na parte central dos

Estados Unidos, no Kansas, Missouri, ou em qualquer lugar. Perguntei-lhe se ela estava

a pensar num sítio que prestasse apoio vinte e quatro horas por dia, sete dias por

semana, a pessoas com esse síndroma, e se elas viriam para esse local de todos os

cantos do país. Respondeu afirmativamente, dizendo também que não se falaria de

comida, para não os excitar, não haveria imagens de comida, não haveria máquinas de

venda de comida e seriam recortadas todas as imagens de comida de todas as revistas. E

toda a comida estaria fechada à chave. Respondi-lhe que não a iria ajudar porque não

concordava que se tratassem crianças assim pois isso não as levava a lado nenhum.

Disse-me que pensava que eu defendia os interesses deles. Respondi-lhe que sim, mas

não dessa maneira. Para além disso, quem é que iríamos arranjar para trabalhar num

sítio desses? Talvez fosse uma excelente oportunidade para anoréxicos e aí tudo

começava a ficar um pouco doentio!

Este é o Aaron. Fizemos um inventário das suas relações sociais e partilhámos essa

informação com a sua mãe. Contámo-lhe que quando toca a campainha para o almoço

um paramédico o leva para a sala de enfermagem, abre o tubo ligado ao seu estômago e

esvazia-o. Depois coloca mais comida através do tubo, fechando-o com o clip. Deixa-o

sozinho na sala e vai almoçar. Quando toca a campainha, o paramédico volta e torna a

levá-lo para a aula de ensino regular. Isto, porque ele é alimentado por um tubo ligado

ao estômago. Sentámo-nos e explicámos à mãe o que acontece com o filho à hora do

almoço. A mãe chama-se Linda e é uma mulher fascinante. Perguntou-nos qual o

2 Os casos a que o Professor Lou Brown faz referência estavam apresentados em diapositivos.

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objectivo dessa rotina e se já pensámos onde esta atitude nos vai levar. Imaginem esta

criança com vinte, com trinta ou com trinta e cinco anos; estamos a prepará-lo para quê?

Perguntámo-lhe então o que é que ela queria. Respondeu que queria que o seu filho

comesse nas mesmas circunstâncias em que comeria se não fosse deficiente, que não

queria alguém pago para o alimentar. Disse-nos que, a funcionar assim, não

cumpríamos a função de uma escola, não o estávamos a preparar para uma vida real

com sentido. Isto era um desafio interessante para nós. Pedimos voluntários ao grupo do

terceiro ano e conseguimos cinco. A Linda mandou pedidos por escrito para casa deles e

os pais responderam que concordavam. (A enfermeira da escola não quis participar). A

Linda começou então a treiná-los. Não é preciso ser médico para o fazer uma vez que

não é um procedimento médico. Agora o Aaron vai à cantina com os colegas. Ninguém

é pago para ajudá-lo a comer, os seus colegas dão esta ajuda. São cinco os colegas que o

ajudam e têm um sistema de rotação para não se sobrecarregar um só.

Mas a pergunta mantêm-se, qual é o objectivo, qual é melhor método? Nos Estados

Unidos temos uma lei federal que requer (gostava que pensassem nisto) o que

chamamos um programa educativo individual, um PEI. Na minha opinião, nenhum PEI

é aceitável se não construirmos sistematicamente uma rede vasta de relações com

pessoas não deficientes. É impossível educar crianças com deficiência sem relações

sociais com crianças não deficientes.

Já falámos sobre o número de ambientes e sobre as relações sociais. Vamos agora falar

sobre as salas de aula. Penso que o que acontece no meu país não seja muito diferente

do que acontece no vosso. Uma equipa de profissionais avalia a criança, juntam-se,

fazem um relatório e chamam a família para lhes mostrar os resultados da avaliação.

Legalmente é assim que o fazemos, que temos de o fazer. Os pais concordam que se

faça a avaliação e nós fazemo-la. Nos Estados Unidos temos um tipo de pessoas a quem

chamamos Yuppies: um casal, ambos empregados, com poucos filhos, sete carros, bons

vinhos, jóias e férias no Clube Med. Apesar de não serem os únicos, alguns deles têm

crianças com deficiências severas. A uma certa altura, começam a suspeitar que há

qualquer coisa de errado com o filho ou a filha e pedem-nos uma avaliação. Depois de

avaliar a criança, dizemos aos pais que pensamos que ela irá ter problemas graves de

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aprendizagem, que irá adquirir menos competências numa semana, num mês, num ano,

na fase escolar completa, do que noventa e oito por cento das outras crianças da

comunidade. Eles compreendem imediatamente, têm razões para isso pois são

profissionais com formação universitária. Quando lhes perguntamos o que acham que se

faça, respondem rapidamente: terapia. Os Yuppies gostam muito de terapia e estão

habituados a comprar a solução para os seus problemas. Quando não gostam do nariz

fazem uma estética, se não gostam do cabelo arranjam alguém para o melhorar, se há

alguma coisa estragada em casa arranjam alguém para consertar. E é por isso que eles

querem terapia. Para nós não há problema, não é o nosso dinheiro, vamos dar-lhe toda a

terapia que quiserem. Perguntamo-lhes se querem mais alguma coisa e respondem-nos

que também querem um paramédico para o seu filho. Damo-lhes o paramédico e temos,

então, uma criança com cinco anos dispondo de uma pessoa só para o ajudar. Querem

também que venha um veículo motorizado - todos os dias a casa deles às sete e um

quarto da manhã - entre em casa e, através de um tapete rolante, a retire da casa de

banho, a transporte para o carro e a traga de volta à casa de banho às quatro e quarenta e

cinco da tarde. Interessante, um serviço porta a porta.

Nos Estados Unidos gastamos biliões de dólares todos os anos em terapia, serviços

porta a porta e paramédicos. E o resultado é que quanto mais terapia tiver na escola,

mais serviço porta a porta, mais assistência paramédica, menos preparada a criança fica

para funcionar numa sociedade integrada quando terminar a escola. Pensem nisso!

Em Wisconsin, o maior problema são os agricultores (sei que não têm esse problema

em Lisboa). Conhecemos uma família de agricultores, avaliámos o seu filho e dissemos-

lhe o mesmo que aos Yuppies. Depois de avaliar a criança, dissemos-lhes que iria ter

graves problemas de aprendizagem, que iria adquirir menos competências numa

semana, num mês, num ano, na fase escolar completa, do que noventa e oito por cento

da outras crianças da comunidade rural. Olharam para nós de um modo estranho e

perguntaram-nos se iria aprender menos coisas que a outras crianças. Respondemos que

sim. Disseram-nos então para não lhe ensinarmos coisas inúteis, porque, se ele vai

aprender menos coisas, é bom que não o façamos perder tempo e que escolhamos as

coisas mais importantes. Como podem ver, os agricultores são um problema,

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comparados com os Yuppie, que são fáceis, pois basta comprá-los. Os agricultores são

duros. Portanto, temos uma tarefa pela frente: se a criança vai aprender menos coisas,

temos de escolher as mais importantes e não a fazer perder tempo com coisas inúteis. É

este o nosso grande desafio.

Vamos analisar o que vamos ensinar a uma criança, por exemplo, entre as oito e quinze,

e as oito e meia. Será esta a coisa mais importante que deveria estar a ser ensinada?

Entre as oito e trinta e as oito e quarenta e cinco; será esta a coisa mais importante que

deveria estar a ser ensinada? Analisemos o dia escolar, tentando perceber se o que

estamos a ensinar neste momento é o mais importante para ela. Trata-se de um

problema interessante. Comunicamos aos pais que o seu filho vai aprender menos

coisas que qualquer outra criança. Eles dizem-nos para lhe ensinar cálculo, latim, etc.

Não é possível. Nós, profissionais, sabemos que não é apenas o número de

competências que adquirem que é menor, mas também o seu nível de dificuldade que

tem de ser inferior. Há pessoas que conseguem aprender matérias extremamente

complicadas, evoluindo sempre. Vão, por exemplo, ver a exposição aqui na Fundação e

aprendem imenso sobre arte. (É incrível o que muitas pessoas sabem que nós não

sabemos, pessoas muito mais capazes do que nós.) As pessoas das quais estamos a falar

só conseguem aprender até um certo nível de dificuldade. A esse nível funcionam

perfeitamente mas, se os pusermos num nível mais elevado, confundem tudo. (Pensem

em chefes e administradores que conhecem).

Deparamos agora com um problema: é preciso seleccionar matérias de interesse, tendo

em conta que só têm capacidade para aprender poucas coisas e que estas têm de estar

dentro da sua capacidade de aprendizagem. É isso que enlouquece toda a gente quando

pomos uma criança numa sala de aula regular. Os professores adoptam um ensino numa

perspectiva vertical, aumentando gradualmente a dificuldade e, para estes alunos, isso

não funciona. Vão precisar de fazer muitas experiências e de ter muitas oportunidades

de ensino para definir o seu nível deficiência. A professora de ensino regular, com os

outros alunos, vai demorar cinco dias para dar uma lição mas, para estes alunos, esse

tempo não chega, pois não passam por experiências suficientes. Precisamos de mais

tempo de ensino. Todos sabemos disso.

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Quero ensinar a esta criança, com uma deficiência intelectual severa, o que é uma maçã.

Como é que o fazemos? Dizemos-lhe para ir estudar um livro sobre maçãs? Isso é

impossível porque ela não sabe ler. Não é assim que lhe vamos ensinar o que é uma

maçã. A uma criança normal dizemos que uma maçã é mais ou menos redonda, algumas

parecem umas esferas, algumas são encarnadas, mas também há umas bastantes verdes,

algumas amarelas, algumas têm altos. Será esta a melhor maneira de ensinar o que é

uma maçã a uma criança com problemas de aprendizagem severas? Não é, certamente.

Esta é uma silhueta de uma maçã feita por Picasso, compreenderam agora? Não é

também desta maneira que se ensina o que é uma maçã a uma criança com uma

deficiência severa. Qual será a melhor maneira de ensinar estas crianças. Temos de

concretizar, de tornar o que se ensina atingível, de uma forma sensata e empírica. Se

quisermos ensinar uma criança, com uma deficiência severa, o que é uma maçã,

pegamos nela, apalpamos, esprememos, tocamos e provamos. É este o modo de

compreender o que é uma maçã. Se calhar, é por isso que a educação sexual se torna um

verdadeiro problema, para nós, nas escolas.

Quando mudamos os contextos às crianças sem deficiência elas usam a informação

adquirida numa situação e transferem-na para outra. Quando ensinamos as crianças do

ensino regular a contar na escola, elas mais tarde vão ao mercado e praticam, vão para

casa e jogam um jogo e estão novamente a contar. Conseguem utilizar o que

aprenderam numa situação e transferi-la para outra. Quanto mais severa for a

deficiência intelectual duma criança, mais dificuldade vai ter em transferir e generalizar.

Nós sabemos isso quando avaliamos as crianças. Por essa razão, não as podemos pôr

numa situação em que vão ter de transferir e generalizar; isso não seria justo. Não se

pode dizer que na segunda-feira não generalizam bem e pedir-lhes que o façam na terça-

feira. Se estamos interessados em saber se esta criança consegue atravessar esta rua, a

esta hora, com esta quantidade de tráfego, vamos ter de a levar lá e ensiná-la. Se

queremos saber se esta pessoa consegue executar esta tarefa, no seu local de trabalho,

com estas condições, vamos ter que a levar lá e ensiná-la lá. O que não podemos fazer é

falar sobre o assunto, experimentar num local e esperar que o façam noutro local. Isso

não funciona. Todos nós esquecemos, mas estas crianças esquecem mais, demoram

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mais tempo a aprender e, se não praticarem, esquecem. Quando têm que aprender tudo

pela segunda vez, demoram o mesmo tempo como se fosse a primeira. Este é um

problema real para o qual gostaríamos de ter uma solução.

Para cada um destes problemas há uma solução. Neste caso, a solução é nunca ensinar

nada que eles não tenham oportunidade de praticar. Se o fizermos, estamos a perder

tempo. Estamos a perder um tempo valioso em termos educacionais e a desperdiçar

recursos. E, agora, o ponto mais importante. As pessoas inteligentes, pelo menos na

América, têm uma capacidade enorme de sintetizar, provavelmente porque leram

jornais com muita frequência ou viram muita televisão. Um aluno vai para a escola, no

primeiro período aprende matemática e no quarto período aprende ciências. Nesse dia,

depois da escola, vai para a garagem, faz uma síntese do que aprendeu na matemática e

nas ciências e faz uma bomba. É o que acontece com pessoas espertas, pegam num

pouco daqui, um pouco dali, juntam essa informação e produzem qualquer coisa

interessante. As pessoas das quais estamos a falar não o conseguem fazer. Não lhes

conseguimos ensinar, por um lado matemática, por outro lado leitura e esperar que eles

sintetizem essa informação. Por isso, temos que os ensinar dentro de um contexto e

temos que preparar esse contexto para eles.

O importante é não fazer ressaltar as características negativas das crianças, já que são

factores biológicos que não podemos alterar. Estes mesmos factores eram utilizados no

passado para excluir crianças com deficiência da sociedade integrada. O que temos de

fazer é conhecer esses factores, conhecer as características de aprendizagem dos nossos

alunos, mas não deixar que isso os exclua da sociedade que os rodeia. Vamos ter que os

respeitar e não os ignorar, senão erramos.

Quanto tempo é que uma criança portuguesa com uma deficiência intelectual severa,

que representa cerca de um ou dois por cento da população intelectualmente funcional,

passa numa sala de aula de ensino regular? Nos Estados Unidos ainda há crianças que

não passam nem um minuto numa sala de aula de ensino regular. Algumas pessoas

dizem que deveria ser cem por cento do tempo, ou seja, inclusão total. Mas a maior

parte situa-se algures entre os cem por cento e os zero por cento. Gostaria de saber qual

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é a vossa posição e como e quando é que tomam uma decisão. Vou mostrar-vos uma

das estratégias que utilizamos. Quando as crianças são pequenas não conseguem fazer

nada e eu não me importo. Noventa por cento das alturas em que isso acontece, com

crianças pequenas, não me preocupo muito. À medida que vão ficando mais velhas,

continuam com dificuldades na generalização e continuamos a ter de nos preocupar em

aumentar o número de ambientes nos quais funcionem. Vamos falar mais disto

conforme formos avançando. Na nossa opinião, na da Ana Maria3 e na da sua equipa,

precisamos de ensinar pessoas com um curriculum funcional e queremos ter uma

definição do que se entende por "actividade funcional". Quando pedimos a uma pessoa

com uma deficiência para executar uma tarefa que se ela não fizer alguém terá de a

fazer por ela, segundo a nossa definição esta é uma actividade funcional. Quantas

capacidades funcionais é preciso ensinar na escola; qual a percentagem de capacidades

funcionais do tipo, “se não o fizeres, alguém terá de o fazer” existem no vosso programa

de ensino escolar? E quantas poderão ser ensinadas em casa?

Estão a ver aquele senhor ali no canto?4 Sabem o que significa quando vemos pessoas

como ele e como eu? Já estamos a perder capacidades. Não conseguimos fazer o que

fazíamos há vinte anos atrás. Apesar de não vos conhecer, penso que sejam como eu.

Temem o dia em que vão precisar de alguém para fazer aquilo que agora conseguem

fazer sozinhos. Quanto maior for o número de competências funcionais, maior a

privacidade, maior o número de escolhas, maior a autonomia pessoal, maior a dignidade

em variados contextos. É por essa mesma razão que é importante aumentar o repertório

de competências funcionais das pessoas com deficiência. Por vezes, é muito bom ter um

terapeuta da fala ou um fisioterapeuta que venha à sala de aula e ajude um aluno a

funcionar dentro dela. Mas às vezes, o que existe entre um fisioterapeuta e um aluno

com deficiência é um assunto só deles, privado. E, nesse caso, seria bom que saíssem da

aula.

Às vezes a professora de ensino regular não é boa; não é boa para nenhum aluno e os

alunos têm que a aguentar o ano todo. Quando acontece terem uma boa professora de

ensino regular não a querem largar, querem estar sempre à sua volta. Senti-me melhor

3 Dr.ª Ana Maria Bénard da Costa

4 Referindo-se a uma pessoa da assistência

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hoje do que quando saí do avião. Adoro a Ana, conheço-a muito bem mas mal conheço

as outras pessoas do Instituto. Agora já me sinto confortável ao lado delas. Devem ter

reparado que algumas pessoas, quando começaram a entrar nesta sala, olhavam para

baixo, porque não conheciam ninguém. Outras pessoas ao entrar abraçaram-se e

cumprimentaram logo alguém. Havia uma diferença no grupo de pessoas nesta sala:

umas sentiam-se perfeitamente à vontade, outras reticentes ao encararem um grupo

novo e diferente. Ser-se membro de um grupo, conhecer as pessoas, estar com elas, sair

para depois voltar, é diferente do que chegar pela primeira vez e sentir-se de fora, o que

é o meu caso, mas apesar disso estou a conseguir que sorriam. Quanto mais rirem,

melhor me sentirei. Por isso, para mim, a segunda parte vai ser mais fácil do que a

primeira.

Pensem como se sentiriam se tivessem uma deficiência. Quando é que se sentiriam

membros de um grupo? Quando o professor vos aceitasse como alunos e os alunos vos

considerassem como colegas. Não o deixem ir embora, senão irá tornar-se um visitante

que entra pela primeira vez. Há uma diferença entre um desconhecido que vem pela

primeira vez e um membro do grupo que sai temporariamente. Quando estamos a

estruturar o ambiente, a cultura e as relações sociais dentro de uma sala de aula, temos

que o fazer de maneira a que uma criança com deficiência se sinta parte desse grupo,

acontecendo o mesmo com as restantes pessoas.

Nós temos um Manual que, apesar de não termos tempo de o ver todo, vos vou tentar

mostrar um pouco. O título do manual é “Gerar” (Generate). Escolhemos este tipo de

título propositadamente. Gerar, significa produzir. Não se pode adquirir um pacote,

arranjar um kit, que tenha toda a informação de que precisamos. Temos que gerar

qualquer coisa, gerar uma experiência significativa. É propositado o uso desta palavra,

significativa. Precisamos de uma coisa com significado para ensinar, numa sala de aula

regular, a um aluno com deficiências severas. O que é uma experiência educacional

significativa para um aluno com deficiências severas, numa sala de aula de ensino

regular? Eis a primeira questão. Primeiro ponto: se um aluno aprender, será mais

respeitado (isto é muito importante). Segundo ponto: é essencial conseguirmos

aumentar as suas relações sociais. Anteriormente, era colocado no fundo da sala; agora,

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está inserido num grupo com as outras crianças, mais envolvido socialmente. Isso tem

significado, é importante, é bom. Anteriormente, não brincavam com ele no recreio,

agora está dentro da sala de aula, no recreio e na cantina. Conseguimos aumentar o

número de espaços em que se move. Aumentámos a sua capacidade de relações sociais

e o número de espaços e ambientes onde consegue funcionar.

Terceiro ponto: é significativo aumentar as suas competências funcionais (se não o fizer

por si próprio, alguém vai ter que o fazer por ele). Estamos a ensiná-lo a fazer mais

coisas sozinho. Significativo é pedir menos aos outros: "agora experimenta e tenta fazer

sozinho". É significativo porque lhe dá mais escolhas. Mudamos as nossas expectativas

se ele conseguir fazer mais coisas, como por exemplo: pendurar o casaco, arrumar as

botas e ir buscar o almoço. Mostram-nos as suas capacidades, tornam-se mais

competentes, logo, esperamos mais deles.

Menos Governo na vossa vida. Nós, nos Estados Unidos, não gostamos do Governo.

Tentamos arduamente retirá-lo da nossa vida. Mas o problema é que as pessoas com

deficiência, nos Estados Unidos, estão viciadas nele. Se não existir um programa federal

para eles, não irão a lado nenhum. Isto é um problema real e é por isso que tentamos

retirar o Governo da vida deles. Queremos inseri-los nas suas vizinhanças, comunidades

e grupos religiosos. A vida tem significado quando adquirem mais privacidade, quando

conseguem fazer coisas sozinhos, quando têm um sentimento de pertença, quando

aprendem algo e têm orgulho nisso. E não estamos a falar de actos inúteis, como por

exemplo: "a Susana tocou no vermelho três ou cinco vezes" Isso não nos interessa.

Estamos a falar de coisas com significado. Como a criança que chega da escola, sexta-

feira à tarde, os pais lhe perguntam o que aprendeu durante a semana e ela lhes mostra o

que foi capaz de fazer. Os pais olham um para o outro e as lágrimas correm-lhes pela

cara abaixo; lágrimas de felicidade e orgulho por a sua filha ter aprendido aquilo.

Quando se sentarem para planear o dia, a semana, o ano escolar de uma criança com

deficiências severas, percam algum tempo a pensar o que terá mais significado para ela.

De todas as coisas que podemos escolher para lhe ensinar, porque é que estamos a

escolher esta? Será que tem significado? E como é que vai afectar a sua vida?

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Positivamente? Construtivamente? Se tivéssemos muito tempo, poderíamos falar sobre

temas tais como: "como escolher matérias para crianças com deficiências severas", ou

sobre "as actividades a praticar numa aula de ensino normal", ou ainda sobre "o que

deveriam ser os seus objectivos". Poderíamos também falar sobre este problema

inacreditavelmente complicado a que chamamos o critério de desempenho, que é neste

momento, um assunto muito importante nos Estados Unidos. Tivemos o Presidente

Clinton, o Vice-Presidente Gore, agora temos o Presidente Bush e o Vice-Presidente

Chaney a falar nisto. Todos falaram nisto nas suas campanhas. E a única consequência

que trouxe foi a melhoria dos resultados em testes de realização académica. É isto que

se passa actualmente nos Estados Unidos e na minha opinião é terrível. É terrível, não

se deixem arrastar neste sentido. Pelo nosso país fora, os professores ensinam para

treinar para este teste… Alguém concebeu um teste, os Republicanos compraram-no em

troca de uma contribuição para a sua campanha política. Os professores nos Estados

Unidos estão a ensinar o que os Republicanos querem que eles ensinem. Não se deixem

envolver nisto.

Nós sabemos que estes alunos, com deficiência intelectual severa, têm dificuldades em

generalizar. Já pensaram em treinar a capacidade de transferência? E no modo como os

estamos a agrupar quando os ensinamos? Vamos falar um pouco sobre isto: sobre os

materiais e sistemas de apoio que se utilizam, se estamos a proporcionar um número

razoável de oportunidades de aprendizagem, como os estamos a avaliar, quem os vai

ensinar e como vamos conseguir que os ensinem como queremos. Tomemos como

exemplo um curso na universidade, nas nossas ou nas vossas. Sabemos tudo. A parte

mais fraca em Educação Especial é que, apesar de sabermos o que eles devem aprender,

não sabemos como conseguir que eles aprendam. Se o conseguíssemos eles estariam em

Harvard. Com crianças normais não interessa o modo de ensino porque eles acabam por

lá chegar, seja através da Internet, de computadores, de vídeos, etc. Connosco é o

contrário. Pelo facto do aluno ser tão fraco, tudo o resto tem de ser forte. Não podemos

errar muito. Se o seu filho tiver uma deficiência intelectual severa vamos ensinar-lhe as

mesmas actividades que todas as pessoas precisam de saber fazer, desde que

apropriadas. Se não as conseguirem fazer como os outros, modificamo-las

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especialmente para essa criança. E se isso não for possível, arranjamos uma actividade

alternativa dentro da sala de aula de ensino regular.

Vou agora falar sobre o Dan. Os pais dele são Yuppies, muito interessados no lado

académico. Eles querem a inclusão total do filho nas áreas de leitura, matemática e

ciência. Cem por cento do tempo numa sala de aula regular. É natural que assim seja

pois querem-lhe dar todas as hipóteses de sucesso. O Dan, agora com quinze anos, vai

para o Liceu de Madison West. Nos Estados Unidos, quando se tem uma deficiência

pode-se frequentar a escola até aos vinte e um anos. Vamos então fazer a programação

de um dia no liceu. Os pais, naturalmente, querem que ele tenha as mesmas aulas de

matemática que teria se não fosse deficiente, o que chamamos inclusão total. Não sei

como fazem neste país, mas nós, nas escolas secundárias, temos níveis diferentes.

Temos matemática para alunos brilhantes, excepcionais, com facilidade de compreensão

de matérias complicadas. Temos matemática para alunos que querem seguir para a

Universidade e Matemática para alunos que não se estão a sair bem nessa matéria.

Temos também matemática para jogadores de futebol americano. E, finalmente, temos

matemática para alunos que, apesar de não terem apoio especial, são alunos difíceis.

Avaliamos a capacidade do aluno em matemática e se o resultado for o nível quatro a

tendência será pô-lo na aula de nível mais baixo. E que alunos encontramos nessa aula?

Os alunos difíceis. E não queremos ter um aluno vulnerável nessa aula, pode ser

perigoso, por isso foi tomada uma decisão interessante. O que decidimos foi dar ensino

directo de matemática dentro da escola mas fora da sala de aula. Houve uma discussão

sobre a quantidade de tempo que o aluno estaria na sala de aula regular e o tempo que

estaria noutro local, também integrado no liceu, que poderia ser no Centro de Recursos

ou na Biblioteca.

Quando vêm para a escola secundária, no primeiro ano, têm meio-dia por semana de

formação profissional na cidade, um trabalho real fora do espaço escolar. Em Março,

Abril, o Dan está a trabalhar bastante bem no seu emprego e começa a ganhar dinheiro

(a empresa quer pagar-lhe pelo seu bom desempenho). Apesar de não ser muito, está a

ganhar. Por isso, queremos que ele se desloque ao trabalho de autocarro, que aprenda a

profissão, que ganhe dinheiro e que o use de forma correcta. Queremos que ele compre

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o lanche que vai comer no intervalo do trabalho. Estamos a ver se ele aprende estas

actividades numa sequência natural porque o nosso objectivo é que continue a fazer isto

pelo resto da sua vida. Ir trabalhar, ganhar dinheiro e comprar o lanche. Vai à mercearia

e acontece-lhe aquilo que costuma ser um grande problema para a maioria dos homens:

abrir o saco das compras. Tenta abri-lo, finalmente consegue, dirige-se à prateleira e

pega num pacote de batatas fritas. Dissemos-lhe que as pessoas com deficiências têm

problemas de obesidade e que não podem comer esse tipo de comida. (Legalmente, nos

Estados Unidos, quando se tem uma deficiência só se pode comer iogurtes ou fruta).

Dirige-se então para a secção das frutas, pega num saco e começa a enchê-lo de uvas.

Os professores dele estão lá, eu também estou com a minha máquina fotográfica e

estamos todos muito orgulhosos dele. Ele olha para nós e aí vemos que ele percebe que

enfrenta um problema matemático. Tem setenta e nove cêntimos na algibeira e meio

quilo de uvas custa um dólar e dezanove cêntimos, ele quer saber quantas uvas é que

pode pôr no saco. Se em Portugal vocês tivessem setenta e nove cêntimos na algibeira e

meio quilo de uvas custasse um dólar e dezanove cêntimos o que fariam? Quantas

pessoas nesta sala conseguem fazer este cálculo? Antigamente diríamos ao Dan que ele

tinha a idade matemática de dois anos, que ainda não estava preparado para ir às

compras; que não tinha capacidade académica e matemática para ir às compras no

mundo real; que o levaríamos de volta para a escola para lhe ensinar matemática.

Pensando desta maneira, deparamo-nos com três problemas. O primeiro é que já

conhecemos o seu ritmo de desenvolvimento em matemática, porque trabalhamos com

ele há quinze anos. A este ritmo, só quando tivesse setecentos e noventa e sete anos de

idade conseguiria resolver este problema matemático. O segundo, é que este problema

talvez esteja fora das suas capacidades: se calhar nunca iria conseguir resolvê-lo. O

terceiro problema é que mesmo que lhe conseguíssemos ensinar essa competência

matemática na escola, nada nos garante que ele conseguiria transferir esse

conhecimento para o mundo real e aplicá-lo. Temos o problema da generalização, temos

também um problema com a aprendizagem da leitura e com a aprendizagem da

matemática. O problema surge quando tentamos que pessoas com deficiência sigam as

sequências de desenvolvimento das pessoas não deficientes. Não o conseguem fazer.

Não sei como é que fazem cá em Portugal, mas em Madison é muito simples. Dizemos

ao Dan para pôr as uvas que quiser no saco, levar o saco à rapariga da caixa, pôr o

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dinheiro no balcão e ela que faça as contas. O problema é dela, ela é que vai para a

universidade.

Isto é o que estamos a ensinar a uma criança na aula de matemática, das nove às nove e

meia da manhã. Perguntámos à mãe se lhe costumava pedir para ir buscar duas facas e

três garfos, ao que ela respondeu que não. Se nalguma situação utilizava as

competências matemáticas que aprendeu na escola. Respondeu que não. Sentámo-nos à

volta da mesa, onde tínhamos uma bola de plástico azul que fizemos rolar pela mesa e

ensinámo-la a manter contacto visual com a bola. Pegámos num bocado de cartolina e

fizemos com que a bola desaparecesse atrás dela. Sabem o que ela fez? Retirou a

cartolina e pegou na bola. É o que chamamos noção de permanência de um objecto, o

que consideramos muito importante. Perguntámos à mãe se alguma vez a sua filha

utilizou esta noção que lhe ensinámos na escola. A mãe começou a pensar e disse-nos

que no sábado, quando a filha estava a ver desenhos animados na televisão, lhe deu uma

maçã mas que, ao tentar comê-la, a maçã escorregou-lhe da mão desaparecendo por trás

da cortina. Quando entusiasmados lhe perguntámos qual tinha sido a sua reacção,

respondeu-nos que tinha começado a chorar.

E se eu lhes dissesse que tenho quinze anos de experiência como professor de Educação

Especial e um mestrado em Educação Especial e que absolutamente nada do que eu

ensino aos meus alunos na escola vai ser utilizado por eles noutra situação durante a sua

vida? Este é um problema interessante, se sabemos que as crianças não conseguem

generalizar e transferir, em que altura é que assumimos a responsabilidade do mau

ensino que lhes estamos a dar? Se não vão transferir, temos de ir para o ambiente

natural.

Vou falar-lhes de um maravilhoso discurso sobre terapia da fala e colaboração.

Colaboração entre professores do ensino normal, professores do ensino especial,

terapeutas, famílias, pais, crianças sem deficiências, toda a gente. Somos bons em

conseguir que todos trabalhem juntos, partilhem responsabilidades e tenham objectivos

comuns. Observei uma terapeuta da fala que levou uma criança com Síndroma de

Down, do segundo ano, a uma sala de terapia da fala e linguagem. Ela utiliza a

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comunicação total e diz: Moa, moa! A terapeuta faz um som e um gesto o que, em

teoria, vai facilitar a aquisição de linguagem verbal. A terapeuta diz: casa de banho,

indicando os gestos. A criança, apesar de não emitir um som bonito, responde: Moa,

moa. Fiquei impressionado. A terapeuta da fala manda a criança de volta para a sala de

aula e vai buscar outra criança para trabalhar na sala de terapia da fala. Segui a primeira

criança até à sala de aula regular. Ela sentou-se a uma mesa, onde as outras crianças do

seu grupo estão a pintar. Quando precisou de mais cores, disse: Moa, moa, moa. As

crianças sem deficiência do grupo dela dizem: Pára com isso. Ela é estranha. Ó

professora, diga-lhe para parar. Ela só diz: moa, moa, moa. Temos então este

fenómeno terrível em que uma pobre criança é ensinada a comunicar desta maneira e,

três minutos depois, quando o faz novamente, é ostracizada por isso. Isto não é justo,

mas o que é que podíamos fazer? Explicámos às crianças da sala a situação, que ela

estava a aprender a comunicar desta maneira e que estava a melhorar mas que quando

ela tentava utilizar este tipo de comunicação, como não a conheciam, pensavam que ela

era estranha. Precisávamos de cinco voluntários para aprender os gestos que ela estava a

aprender na sala de terapia, de modo a que, quando ela utilizasse estes gestos, eles

pudessem explicar o que é que ela estava a comunicar. Não sei o que é que aconteceria

em Portugal, mas, nos Estados Unidos, quando pedimos voluntários numa turma do

segundo ano perguntam-nos logo o que é que ganham com isso. Dissemos-lhes que a

quem se oferecesse para aprender estes gestos, que não são muitos e são fáceis,

ensinaríamos a soletrar pelos dedos. Como não sabiam o que isto era, explicámos que

conseguiriam fazer todas a letras do alfabeto com os dedos e poderiam comunicar com

pessoas que também o soubessem. E quem não soubesse soletrar pelos dedos não faria a

mínima ideia do que é estariam a comunicar. Vários puseram a mão no ar e

conseguimos cinco crianças do segundo ano que aprenderam a soletrar com os dedos. O

aspecto positivo é que, ao ensinar gestos na sala de terapia a cinco crianças,

possibilitámos que aquele aluno se fizesse entender na sua sala de aula. O aspecto

negativo é que temos cinco crianças no segundo ano que passam o dia a mexer os

dedos, criando alguns distúrbios com as restantes crianças...

Isto é uma transferência. Tudo isto está relacionado com transferências. Pegámos numa

coisa importante para ensinar na escola e fizemos com que a criança a transferisse

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imediatamente para a sua vida. Se ela não o fizer não pratica e não praticando esquece.

E se isso acontecer, tudo isto é um grande desperdício. Antigamente, quando tínhamos

crianças em escolas ou em salas de educação especial, não tínhamos que nos preocupar

com este tipo de coisas. Mas quando atravessamos a fronteira para a educação regular,

começamos a encontrar problemas. Se trabalham nesta área, podem ajudar-nos.

Analisámos a forma como os professores do ensino regular agrupam as crianças a quem

vão ensinar. As crianças funcionam de forma individual: vão à Internet procurar

informação para o trabalho de ciências, preenchem as suas fichas de trabalho, fazem o

exame, lêem um livro. Isto acontece pelo mundo fora, ensinamos as crianças a

funcionar como seres individuais. O que acontece com crianças com deficiências

severas é que elas não conseguem aprender nada sozinhas. Não conseguem

descodificar, não conseguem ir à Internet, não conseguem ler um livro. Esta forma de

agrupar não funciona com elas. Podem interagir com uma pessoa mais competente, ou

num pequeno grupo, mas é preciso que isto seja feito correctamente. Se for um grupo

grande, não funciona. Quando entramos numa sala de aula encontramos crianças com

tarefas individuais ou sentadas em filas a ser ensinados pelo professor e, no meio, temos

uma criança com uma deficiência severa. Trata-se de um problema que é,

simultaneamente, profissional, político e social. Como é que vamos conseguir que os

professores do ensino regular organizem os grupos de forma eficaz? Temos de

conseguir combinar os agrupamentos utilizados no ensino com as características de

aprendizagem do aluno. Se não o fizermos, não vai fazer sentido nenhum. Um outro

ponto importante é que devemos querer que o ensino individual, feito por pessoas às

quais se paga, seja o mínimo possível e que haja a maior interacção possível com outras

crianças. O que queremos é ensinar uma pessoa com uma deficiência severa a funcionar

numa situação integrada, a fazer qualquer coisa apropriada, com significado, sem

interferir com a produtividade, aprendizagem e bem-estar de pessoas não deficientes

que estejam com elas.

Vamos agora falar sobre o Mohamed, que tem cinco anos e é autista. Esta é uma sala

num jardim de infância em Madison em que estão a professora do ensino regular, que já

tem muita experiência de ensino, e uma professora assistente que trabalha connosco e

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que foi destacada para esta aula. Esta é a primeira criança com autismo que a professora

do ensino regular teve na sua sala de aula. A professora pede aos alunos para fazerem

uma árvore com um íman, para a levarem para casa e a colocarem no frigorifico. As

crianças sabem fazer isto, todas já tiveram treino nesta actividade. A professora mostra-

lhes como quer a árvore e dá-lhes os materiais. As crianças dirigem-se aos seus locais

de trabalho e começam a fazer a árvore para levar para casa e pôr no frigorífico. Quando

a professora dá os materiais ao Mohamed, ele começa a rasgá-los. Temos então um

problema: uma criança com cinco anos que não sabe ir para o seu local de trabalho fazer

uma árvore. Não me preocupa se ele com cinco anos sabe ou não fazer uma árvore. O

que acontece é que depois de fazerem uma árvore, as crianças vão fazer as folhas,

depois abóboras, depois perus e a seguir bonecos na neve. É o que acontece ao longo do

ano no jardim de infância. E é por isso que não me preocupa se ele faz ou não uma

árvore. O que me preocupa é que ele aprenda a funcionar como um ser individual,

fazendo alguma coisa apropriada sem interferir com os outros. O que não queremos é

um ensino separado, de um para um, porque isso não é bom para ele. Temos o

Mahomed, agora com cinco anos, mas já estamos a pensar o que acontecerá quando

tiver vinte e um anos.

Fizemos um inquérito a todos os professores de educação regular nas escolas do ensino

básico dos Estados Unidos. Entrevistámos todos - doze milhões – e perguntamo-lhes

qual era a coisa mais importante na sala de aula de que não podiam prescindir. E sabem

qual foi a resposta? Leitura em silêncio. Perguntámos então porque é que a leitura em

silêncio era tão importante para os professores das escolas do ensino básico dos Estados

Unidos. Responderam-nos que sem a leitura silenciosa nunca conseguiriam escrever os

cartões de Natal, fazer uma lista das compras, pagar as contas e que isso era muito

importante para eles. Por isso, deparámos com um problema: muitos dos professores

das escolas básicas dos Estados Unidos dedicam uma hora e meia, às vezes duas horas

por dia, à leitura em silêncio. E agora temos o Jamon que não lê. O que é que fazemos

com ele durante esse período? Havia duas coisas que costumávamos fazer. Uma delas

era tirá-lo da aula e pô-lo numa sala de apoio. Mas agora já não o fazemos. A outra era

dar-lhe uma ajuda individual, no fundo da sala, mostrando-lhe cartões com imagens.

Também já não fazemos isso. O que é que podemos fazer com ele durante a leitura em

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silêncio? Pegámos num livro acessível, gravámos uma cassete e ensinámo-lo a usar um

gravador. Assim, enquanto as outras crianças liam em silêncio, ele ouvia a cassete do

livro. Não estava mal, mas queríamos expandir um pouco mais a sua aprendizagem,

incluir mais coisas. Estávamos a utilizar um objecto apropriadamente, não o estávamos

a retirar da aula, ele estava a funcionar num ambiente integrado, a trabalhar

individualmente, sem interferir com os outros. Mas queríamos mais do que isso.

Juntámos um pequeno grupo de crianças e perguntámos-lhes o que iam fazer durante o

fim de semana. Iam nadar na piscina do YMCA. Organizámos tudo para que ele fosse

com o grupo. Pela primeira vez, a mãe de um deles iria buscá-lo. Levou-nos uma

semana a organizar tudo. Quando voltassem tinham que escrever um capítulo de um

livro sobre o Jamon. Tivemos que organizar os voluntários, as boleias, quem levava a

máquina fotográfica, quem iria tirar as fotografias pagas pela escola. No sábado foram à

piscina e tiraram as fotografias. Demoraram cerca de uma semana a escrever o capítulo,

organizar a fotografias, fazer a narração e gravar a cassete. Estavam prontos para gravar

a cassete na sexta-feira, mas o Jamon não quis que fosse a professora a gravá-la, queria

que fossem os seus colegas a fazê-lo. Na semana seguinte quando chegou a altura de

lerem em silêncio, ele pegou na cassete, no álbum de fotografias com a narração e pôs-

se a ouvir. O que é que aconteceria se o tirássemos da sala de aula e o puséssemos numa

sala de apoio? Porque é que isto foi importante? Porque aumentámos o número de

ambientes no qual ele funciona, aumentámos o número de relações sociais, aliviámos os

seus pais num sábado e ensinámos uma coisa na escola que ele consegue utilizar noutro

local.

Esta é a Denise. Trabalha na Clínica Médica de Jackson. Está a escrever o nome e a

morada de um paciente para lhe lembrar a sua próxima marcação. Será que ela

conseguiria fazer um trabalho médico na Clínica? Claro que não. Ela tem uma

capacidade limitada. Mas o que é importante é que se ela não fizesse este trabalho a

Clínica teria de pagar a alguém para o fazer. Ela está a funcionar numa situação

integrada, a fazer algo apropriado e significativo, sem interferir com os resultados e o

bem estar dos seus colegas não deficientes.

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27

Agora imaginem esta situação: um dia uma senhora entrou na nossa escola com o filho

deitado e amarrado a uma maca. Foi a primeira vez que vimos uma criança vir para a

escola pública deitada numa maca. Convocámos uma reunião de emergência com o

advogado da escola, a enfermeira chefe e o assistente de pediatria neurológica para

decidir o que iríamos fazer com esta criança que vem para a escola numa maca. Sendo

nós especialistas experientes, soubemos logo o que haveríamos de fazer. Decidimos

arranjar uma turma de macas, não poderíamos ter alguns alunos deitados em macas e

outros não. Precisávamos de um professor com um mestrado em ensino a alunos em

macas. Contactámos as outras escolas no distrito para sabermos se também tinham

alunos em macas. Não tinham. Telefonámos então ao Departamento Estadual e

descobrimos que, tal como em Portugal, no país inteiro existiam apenas seis crianças

que iam para a escola em macas. Pedimos à Guarda Nacional se nos emprestava seis

helicópteros. E assim, todas as manhãs enviávamos os helicópteros para buscar as

crianças de todo o Estado de Wisconsin e trazê-las para a nossa turma de alunos em

macas.

É o que fazemos com as crianças com autismo, com as crianças com deficiências

auditivas e com as crianças com deficiências visuais. Afastamos as crianças da família,

dos seus irmãos e pais e pômo-las num grupo, numa "casa para macas". Depois

compramos uma daquelas carrinhas utilizadas pelas padarias, aquelas que têm vários

tabuleiros atrás, e no exterior da carrinha escrevemos “Viver independente”. E assim

vamos da casa das macas, na carrinha das macas, para a aula das macas, novamente na

carrinha das macas para a casa das macas. Onde é que isto nos leva? Deixem-me fazer-

vos uma pergunta. Se fosse o vosso filho, quantos minutos por dia deveria ele olhar para

o chão? Quantas vezes devia ser tocado suavemente por alguém? Quantos minutos por

dia, qual a percentagem do tempo em que ele deveria estar ocupado com alguém? Que

cores deveria ver, que diferentes estados de humor deveria sentir? É nesta altura que

começamos a colocar as questões de qualidade de vida e, rapidamente, chegamos à

conclusão que a última coisa que ele precisa é de estar ao lado de alguém, também

numa maca.

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Perdemos muito tempo a assegurar a interacção entre duas pessoas. Muito tempo, muito

esforço e muita programação. Isto é muito importante para que quando eles acabem a

escola saibam interagir com uma pessoa mais competente do que eles e façam coisas

com sentido. Lembram-se do que dissemos antes? Integração gera integração. Se o

fizermos bem, podemos preparar estas pessoas para virem a ter uma melhor qualidade

de vida adulta. Tenho que falar sobre pequenos grupos. Nos Estados Unidos fala-se

muito sobre colaboração, ensino em pequenos grupos, aprendizagem em cooperação,

aprendizagem por projectos e aprendizagem prática. Neste momento, nos Estados

Unidos, este é um assunto importante relativo a todos os tipos de educação. Nós

adoramos grupos pequenos, mas com os nossos alunos o importante é saber

individualizar, dentro de um pequeno grupo.

Esta senhora chama-se Liz Burger. Já não se podem educar crianças com deficiência

sem relações sociais com crianças não deficientes. Por isso, comecei a organizar a

forma de integrar os alunos com deficiência nas aulas de ensino regular. Quando entrei

nessas salas de aula encontrei alguns dos melhores professores, mais geniais, mais

brilhantes e mais eficazes que eu já vi nos Estados Unidos. São geniais e adoro vê-los

trabalhar. Esta é uma delas, Liz Burger. Aqui está ela com o seu grupo: este é o Steven,

um dos nossos alunos. Ela chamou-me para me mostrar uma experiência. Pegou num

líquido transparente e despejou-o para dentro de uma garrafa de refrigerante, pôs um

balão no gargalo e o balão ficou caído de lado. Perguntou aos alunos o que é que tinha

acontecido. Sabem como são as crianças, disseram logo: Nada, nada. Pegou então

noutra garrafa, pôs um pó lá dentro, agarrou o balão ao gargalo que ficou caído por

cima dele. Tornou a perguntar aos alunos o que aconteceu e eles tornam a responder:

Nada, nada. Pegou então numa terceira garrafa e deitou-lhe um pouco de vinagre,

líquido transparente, um pouco de soda, um pouco de pó branco e pôs um balão no

gargalo. A mistura começou a ferver e o balão começou a encher. Não temos problemas

de atenção em nenhum aluno: estão todos a olhar interessadíssimos. Eu estou realmente

impressionado com a experiência porque quando era novo andei em escolas católicas,

onde não tínhamos a disciplina de ciências. Tudo isto é novo para mim. Estão

lembrados do que fizemos ao Galileu? Pela primeira vez estou a aprender Ciências. Ela

perguntou a um aluno o que aconteceu e ele explicou que ao misturar um sólido com

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um líquido, criou gás que, por ser mais quente, por isso mais leve, subiu aplicando

pressão na membrana do balão e obrigando-o a expandir. E eu estou a tirar notas, eu,

Professor Brown estou a escrever tudo. Ela então pergunta ao Timmy o que aconteceu e

ele diz que foi incrível, como ela misturou tudo e conseguiu aquilo.

Gostava de vos fazer uma pergunta. Será que esta é uma experiência educativa

significativa para o Steven? Algumas pessoas diriam que sim, por ele estar num grupo

integrado, está a prestar atenção, não está a incomodar ninguém e está obviamente a

divertir-se. Pergunto à Liz se ela tem um livro com este tipo de coisas, mas ela diz que

não, que faz uma por dia e tem vindo a acumular estas experiências. Pergunto então à

Liz se ela acha que o Steven ganhou alguma coisa com isto. Responde que sim mas

pergunta-me se eu acho que poderíamos ensinar-lhe a realizar a experiência. Respondo

que podemos tentar. Arranjamos um grupo de crianças para ajudar o Steven a fazer a

experiência. Lembrem-se que para o fazer temos que a tornar concreta, atingível.

Primeiro problema: ele não conseguia despejar o líquido. Arranjaram um cartão,

dobraram-no e colaram-no no gargalo em forma de funil. Puseram também uma marca

com fita cola em baixo na garrafa para ele saber quando parar de despejar o líquido.

Fizeram várias tentativas; durante três ou quatro dias, experimentaram e ensinaram-lhe

como se fazia. Nós observámos e ajudámos mas, basicamente, foram eles que o

ensinaram. Na sexta-feira, o Steven foi-nos mostrar o que aprendeu nessa semana na

aula de Ciências e conseguiu repetir a experiência. O facto de o termos ensinado a fazer

aquela experiência, algo apropriado e significativo, fez-nos sentir muito bem e ele

sentiu-se orgulhoso e feliz. Ninguém pensava que ele seria capaz de a realizar! Isto vai

muito ao encontro do nosso critério de aprendizagem significativa!

A Liz Burger teve uma ideia: pegou nos materiais para a experiência, pô-los numa caixa

e disse ao Steven para os levar para casa. Telefonou à mãe dele e pediu-lhe que durante

o fim de semana perguntasse ao seu filho o que tinha aprendido na aula de Ciências.

Segunda-feira de manhã o Steven veio para a escola, tocou o telefone e era a sua mãe

para falar com a professora. Contou-lhe que convidaram uns vizinhos para almoçar no

jardim e, enquanto estavam a comer cachorros quentes e a beber umas cervejas,

lembraram-se do que a professora tinha dito - que deviam pedir ao Steven para lhes

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mostrar o que tinha aprendido na escola. Pediram-lhe que o fizesse e ele foi ao quarto

buscar a caixa e começou a experiência com as garrafas e os balões. Estavam todos a

ver. Quando o balão começou a encher os vizinhos começaram todos a aplaudir e a rir.

Ela e o marido olharam um para o outro e as lágrimas correram nas suas faces…

.

Como é que sabemos se ensinámos algo de significativo na escola a uma criança com

deficiência? Quando elas voltam para casa e mostram aos pais e aos vizinhos o que

aprenderam na escola, fazendo com que eles chorem de comoção.

2ª Parte

Transição para a Vida Adulta de Crianças e Jovens com Deficiência

Intelectual Acentuada

Tínhamos planeado falar mais sobre a escola, mas não vai ser possível e por isso vos

peço desculpa. O que gostaria agora era de falar sobre preparação profissional, que é

extremamente importante para todos e, particularmente, para pessoas com deficiência e

igualmente para jovens que recusam a escola secundária.

Nos últimos cinco anos tenho trabalhado na cidade de Chicago, a tentar conseguir

estágios profissionais para os jovens com que estou a trabalhar, e gostaria de partilhar

convosco o que estamos a fazer. Também vos queria apresentar as sessenta e tal pessoas

com deficiência intelectual severa que temos seguido ao longo das suas vidas.

A nossa estratégia não é complicada e não é teórica, é bastante parecida com o que uma

avó nossa teria feito. Por isso, quando nos perguntamos como é que vamos conseguir

que alunos com deficiências severas, ao saírem da escola, estejam preparados para

trabalhar no mundo real, sabemos que o ponto chave, o nosso objectivo, o resultado que

queremos alcançar é que, ao sair da escola, eles tenham um emprego que lhes garanta o

ordenado mínimo e todas as regalias sociais normais. Isso é o que queremos. Sei que há

bastantes diferenças entre os Estados Unidos e Portugal. Uma delas é que nos Estados

Unidos temos quarenta e quatro milhões de pessoas que não estão abrangidas pelo

Page 31: Thank you so much for having me, I am honored to be here

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sistema nacional de saúde, que não têm seguro de saúde e isso é terrível. Para se

conseguir assistência médica há duas, três soluções. Segurança social para os idosos e

segurança social para pessoas com deficiências severas (não estamos a falar de pessoas

com problemas de aprendizagem, comportamento, fala ou linguagem). Ao longo dos

anos, cada vez menos pessoas com deficiências têm tido direito a assistência médica, a

seguro de saúde. Outra maneira de conseguir assistência médica é através de um

emprego. Se não se tiver um emprego que dê benefícios de saúde, não se tiver uma

deficiência grave e não se tiver uma idade avançada, não se tem direito a ela. Tenho

vergonha de o dizer mas temos pelo menos quarenta e quatro milhões de pessoas no

meu país sem seguro de saúde e não é provável que a situação mude em breve.

As pessoas com quem trabalhamos em Chicago, e de quem vos vou falar agora, têm um

nível de funcionamento mais alto do que as que vos mostrámos na primeira parte desta

conferência. Se não lhes conseguirmos arranjar empregos, onde recebam ordenados e

lhe dêem seguros de saúde, ficam sem nada. Não interessa se estamos a falar de adultos

ou crianças em idade escolar; para todos eles temos de conseguir abrir as portas das

empresas, para que os deixem entrar.

Vou falar-vos sobre os nossos métodos. O primeiro passo é o que chamamos de "análise

do meio laboral". Entramos num local de trabalho e aprendemos de que trata o emprego

que está em aberto. A seguir, tentamos arranjar uma pessoa com deficiência que se

adeqúe a esse emprego. Não sei como é que se passa em Portugal, mas, nos Estados

Unidos, todas as mães dizem às suas filhas que ganharão mais dinheiro fazendo um

bom casamento do que com uma vida inteira de trabalho. O que quer dizer que se

resolvem mais problemas em cinco minutos, com uma boa combinação entre uma

pessoa com deficiências e um emprego, do que com cinco anos de ensino, modificação

de comportamento e incentivos. Se a combinação for mal feita, temos um problema.

Queremos que as empresas abram as portas, por isso temos de aprender as

especificações do trabalho e encontrar uma pessoa com deficiência que se ajuste a ele.

Se a combinação for boa, perfeito; se não for, é terrível. A seguir, teremos de ensinar as

tarefas necessárias no próprio ambiente de trabalho. Não se esqueçam que estes jovens

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não têm capacidade de generalização. O ensino tem a ver, sobretudo, com o seu

comportamento: levantarem-se de manhã, chegarem a horas, serem supervisionados,

comportarem-se apropriadamente durante as pausas, voltarem a seguir ao almoço, tudo

coisas que não aprenderam na escola. A seguir, passamos para uma "supervisão

natural". Não se esqueçam que quanto mais ensino individual tiveram, pior preparados

ficarão para o mundo real. Têm de funcionar individualmente num determinado

ambiente sem terem alguém pago para tomar conta deles. É a isso que chamamos

supervisão natural. Com algumas pessoas, dá-se-lhes uma boa educação, formação no

emprego e podemos afastar-nos que eles estão preparados para seguir em frente

sozinhos. Mas as pessoas das quais estamos a falar vão precisar de ajuda o resto da vida.

A questão é: quanta ajuda lhes devemos dar? E estas pessoas que acompanhei desde

crianças, e que não precisavam de ajuda quando tinham vinte anos, agora com quarenta

anos, com a sua condição física a deteriorar-se, precisam de muita ajuda.

Gostaria agora de vos falar das estratégias que utilizamos para conseguir que as

empresas abram as portas. Estamos sempre a desenvolver novos métodos, mas penso

que estes poderão ser interessantes para vocês. Espero que sim porque adoro e divirto-

me imenso a fazê-lo. Vamos explorar um de cada vez.

Você tem cara de Yuppie,5 imagine que tem uma filha, uma pequena flor linda que

adora. Nós dizemos-lhe: "A sua filha tem catorze anos, sabemos que tem Síndroma de

Down, vem pela primeira vez para a nossa escola. Mas, este ano é política da escola

que pelo menos meio dia por semana seja passado fora da escola, na comunidade, a

aprender um emprego real no mundo real. Por isso, este ano queremos levar a sua

pequena flor para um local de paragem de camiões na auto-estrada, fora da cidade, e

ensiná-la a limpar as casas de banho públicas." Aceitaria? Claro que não; dir-nos-ia

logo que ela não está preparada para isso. Dizemos-lhe então: "Temos que a preparar, o

tempo está a correr e ela demora muito tempo a aprender. Compreendemos a sua

preocupação, não quer a sua pequena flor a limpar casas de banho na paragem dos

camiões. Sugerimos então se ela poderá limpar casas de banho no edifício da IBM".

Responde-nos que aí o caso muda de figura.

5 Dirigindo-se a uma pessoa da assistência

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33

Mas a maioria dos Yuppies não querem que os seus filhos andem a limpar casas de

banho dos outros. Perguntamo-lhe então qual é o sonho deles, já que sabiam que os

filhos eram deficientes desde o momento em nasceram "Quando acordam durante a

noite não se perguntam o que lhes vai acontecer quando vocês morrerem, onde eles vão

estar e com quem, a fazer o quê? O que é que vão fazer depois da escola?”

O que fazemos é pressionar muito os pais para trabalharem connosco, colaborar no que

chamamos “plano de futuro pessoal”. É por isso que pedimos a todos os pais para

fazerem uma lista dos seus sonhos. Se disserem que querem um trabalho num banco,

nós vamos a um banco. Se disserem num hospital, vamos a um hospital. Se disserem

que querem um trabalho na Força Aérea, vamos à Força Aérea. Consoante o que nos

disserem é para onde vamos levar o seu filho, aos catorze anos de idade.

Essa é uma maneira de conseguir pistas para empregos. Vamos perguntar aos pais da

Susana quais são os seus sonhos, onde é que a gostariam de a ver trabalhar, onde é que

se sentiriam orgulhosos que ela trabalhasse. Podem-nos ajudar muito a envolvê-la neste

processo.

Estou a trabalhar com um rapaz de dezasseis anos cujos pais estão a morrer de sida em

Chicago. Ele lê ao nível do primeiro ano. É um rapaz forte e vivo. Está a viver numa

família de acolhimento e, anteriormente, já esteve em quatro ou cinco famílias

diferentes. Tem um problema sério em relação à escola: detesta a escola e não a quer

frequentar. Quando lhe pergunto o que quer fazer, responde-me sempre: “obras". Ele é

de raça africana, o que é um grande problema em Chicago, porque os sindicatos são

muito racistas. Temos ainda mais um problema, ele não tem aptidões na área de

construção. Por outro lado, quer muito aprender a trabalhar nas obras e, se for bom, tem

sempre emprego. Mas se ninguém o contrata aos dezasseis anos, onde é que ele pode

arranjar experiência de obras? Através da Internet contactei uma empresa, chamada

"Habitat for Humanity", que constrói casas para os pobres. Eles aceitaram-no e agora

está a aprender a construir casas, que era o que ele queria.

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Algumas empresas nos Estados Unidos, e imagino que também em Portugal, têm

acordos para inserção de pessoas com deficiências. A Pizza Hut é uma delas, a Marriott

Hotels, a Home Depot; não sei se as têm cá. Muitos dos logotipos de empresas que vejo

por cá são semelhantes aos que temos nos Estados Unidos. Têm de descobrir quais é

que têm acordos de inserção de pessoas com deficiências e ajudá-los a cumprir esse

acordo.

Vou-vos falar da importância das relações pessoais. Há alguns anos atrás recebi uma

chamada de uma família com uma criança com autismo severo que me pediu ajuda.

Para encurtar a história, só vos digo que os ajudei definindo-lhes estratégias para

conseguirem lidar com a criança, Durante cinco anos ele dormia apenas uma hora por

noite - era extraordinária a energia desta criança. Trabalhei com ela durante muito

tempo, num programa escolar, na sua transição para a vida adulta. O pai, Bob, é

advogado nos Serviços de Emigração em Chicago. Telefonei-lhe e pedi-lhe um favor.

Queria trazer dois rapazes de escolas públicas de Chicago para o Departamento dele

para aprenderem técnicas de arquivo e informática. O que é que ele me poderia

responder, agradecido por o ter ajudado com o filho durante vinte anos? Que não? Claro

que ele não o podia dizer. Pelo facto de conhecer este advogado, já tinha um emprego

em carteira.

Nós temos dois filhos, o mais velho chama-se Craig e estava noivo de uma rapariga que

era gerente de banquetes num restaurante muito famoso em Chicago. Harry Carey é um

jornalista desportivo, uma figura nacional e o restaurante tem o seu nome. Vieram

passar um fim de semana a Madison e queriam anunciar o noivado. O nosso filho queria

passar algum tempo com a sua futura mulher, nossa futura nora, e isso era excelente

para nós. Sugeri à Cherry, é esse o seu nome, irmos dar um passeio. Disse-me que sim,

visto eu ser o seu futuro sogro. Começámos a andar e eu disse-lhe que gostaria de lhe

falar sobre o futuro e sobre a herança. Mas disse-lhe que, primeiro, gostaria de lhe falar

sobre a possibilidade de levar dois rapazes da escolas públicas de Chicago para o

restaurante Harry Carey para conseguirem formação profissional. O que é que ela podia

responder a isto? Só podia aceitar.

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Tenho um amigo em Madison que tem uma loja de desporto, uma loja especializada

para pessoas que correm. E vende muitos sapatos da marca Nike. Têm lojas Nike Town

em Lisboa? São lojas fantásticas. Pedi então ao meu amigo para telefonar para a sede da

empresa e descobrir quem é que estava à frente das lojas de Chicago. Mais tarde

apresentou-me essa pessoa e eu e uma professora de Chicago fomos a uma reunião com

os responsáveis da Nike Town. Nos bairros onde trabalhamos os rapazes matam por

sapatos, roupas e casacos da Nike, logo isto era maravilhoso, perfeito para nós.

Adorariam lá trabalhar. Tivemos a reunião, eles ficaram interessados e pediram para

lhes ligarmos daí a dez dias. Passados os dez dias, ligo e apanho o gravador, pedem-me

para deixar uma mensagem. Volto a ligar no dia seguinte e deixo uma mensagem.

Liguei trinta dias úteis seguidos, sem me responderem. Trinta dias é o máximo que

aguento. Tenho uma lista a consultar. A Nike já não faz parte dela.

O meu filho é promotor público no Estado de Illinois. Falei com ele e perguntei-lhe se

gostava de trazer dois rapazes para o seu Departamento. Ao princípio a resposta não foi

muito encorajadora mas acabou por aceitar falar com o seu supervisor. Falou com ele e

explicou-lhe que o pai dele queria trazer uns jovens para aprenderem introdução de

dados. O supervisor do Tribunal Criminal, que é um local muito interessante,

perguntou-lhe se ele estava maluco, se queria publicitar que ia dar acesso aos seus

computadores a jovens problemáticos de escolas públicas de Chicago. O meu próprio

filho não conseguiu nada.

O Michael Jacobs é um vizinho nosso em Madison. É advogado e mudou-se para

Chicago para exercer o cargo de Professor de Direito na Universidade Paulista.

Conhecem a Ordem dos Paulistas? Pedi-lhe para me arranjar uma reunião com os

responsáveis da Universidade. O meu filho andou na Universidade Paulista de Direito, o

Presidente da Câmara de Chicago também tirou o seu curso lá, Sue, a nossa Directora

de Ensino Especial da cidade de Chicago também se formou lá. Um dos meus melhores

amigos, Michael Jacobs, é lá professor. Tive uma reunião com eles onde expliquei que

gostaria de trazer dois jovens de escolas públicas de Chicago para a Universidade

Paulista de Direito, para aprenderem qualquer coisa. Na cantina, nos escritórios, na

manutenção, fosse onde fosse. Nada mais fácil para eles. Ficaram de me telefonar daí a

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duas semanas. Passadas essas duas semanas liguei e deixei uma mensagem. Liguei outra

vez no dia seguinte e no outro. Conferi a minha lista e vi que passados trinta dias nunca

atenderam as minhas chamadas. Desisti.

Uma das nossas professoras, a famosa Diane Baumgartner, responsável pelo princípio

de participação parcial, casou com um homem chamado Myron Shreck. O Myron

pertence a uma família judia ortodoxa de Chicago, extremamente bem sucedida na

comunidade empresarial. Quando os seus pais morreram ele herdou todos estes

negócios. Fiz-lhe a proposta e ele perguntou-me de que é que eu precisava. Expliquei-

lhe que precisávamos de locais de emprego para podermos dar formação a jovens

problemáticos das escolas públicas secundárias de Chicago. Pôs-nos em contacto com a

Shreck Army and Navy Surplus que é a maior empresa de excedentes do exército. Um

excelente negócio. Compram e vendem material no mundo inteiro. Receberam os

rapazes.

Eu tinha este contacto com uma psicóloga de Loyola. Existe essa Ordem cá? Expliquei-

lhe o que estava a tentar fazer em Chicago com estes jovens e se ela me podia ajudar.

Apresentou-me Stan Hewitson, da Universidade Loyola, que é o Director de Pessoal no

North Sheridon Campus, na parte norte de Chicago. Expliquei-lhe tudo e perguntei se

estava interessado. Respondeu-me que eles eram a Companhia de Jesus, que existiam na

Terra para ajudar os mais necessitados, claro que gostariam de nos ajudar. O que é que

se passa com vocês, Católicos? Como é que se pode ir a Layola e ser tão bem tratado e

ir aos Paulistas e ser-se tão mal tratado? Disse-me ainda que tinham um Campus

Universitário na Michigan Avenue e que devíamos falar com Mimi Winter, Directora

do Pessoal do campus universitário, no centro da cidade. Fui ter com ela e ela

respondeu-me que eram uma instituição jesuíta, uma companhia de Jesus e claro que

adorariam ajudar-nos. Mais ainda, tinham um Hospital, o Loyola Hospital. Acontece a

mesma coisa cá em Portugal? Existem os bons católicos e os maus católicos?

Gostava de vos fazer uma pergunta. Conhecem cinco pessoas que trabalhem fora de

casa por dinheiro? Eu sei que todos conhecem cinco pessoas que trabalham fora de casa

por dinheiro. Vamos imaginar que as quase trezentas pessoas que estão nesta sala vão

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escrever cinco nomes de pessoas que trabalham fora de casa. Depois do intervalo,

perguntava a uma pessoa quem era o primeiro da sua lista. Ela diz-me que é a sua

melhor amiga, que é secretária na Wrigley Company, fabricante de pastilhas elásticas.

Pergunto-lhe se da próxima vez que eu for a Chicago, me pode marcar uma reunião com

a sua amiga para falarmos da hipótese de trazer dois jovens de Chicago, só dois. Diz

que sim e passamos ao segundo nome da lista, que é uma prima que trabalha no Cook

County Hospital. Peço-lhe novamente para marcar uma reunião e deste modo

percorremos a sua lista. A seguir passamos à lista de cinco nomes seguinte e assim

sucessivamente. Pensem nisto. Nas pessoas na vossa igreja que têm um círculo de

angariação de empregos para pessoas deficientes, no vosso local de trabalho, no vosso

círculo de amigos, nos clubes a que pertencem. Basta conhecerem cinco pessoas.

Começamos e a informação começa a espalhar-se.

Um dia recebi um telefonema de um homem chamado George Flynn, Director de

Educação Especial da cidade de Toronto no Canadá. O que acontecia em Toronto é que

as dioceses católicas e as escolas, se tivessem uma criança deficiente, mandavam-na

para a escola pública alegando que não tinham terapeutas e que o acesso era difícil. O

que acontecia, não sei se acontece aqui também, era que todas as crianças deficientes de

famílias católicas iam para escolas públicas, mas se uma criança sem deficiências

tentasse ir para uma não podia. Eles queriam manter as crianças nas escolas católicas.

Quando o Papa visitou Toronto estavam várias pessoas com deficiência sentadas na

primeira fila. O Papa disse que eles deveriam estar integrados e foi preparado um

documento sobre inclusão ao qual George Flynn tinha aderido. Ficou decidido trazer de

volta as crianças com deficiência às escolas católicas. Mas continuou a mesma velha

história, era fácil inseri-los na escola primária mas o problema estava em inseri-las na

escola secundária. O problema estava a tornar-se mais complicado e foi nessa altura que

ele nos chamou para o ajudarmos. Fomos lá e começámos com uma reunião com os

directores da escola católica. Compreendemos a situação perfeitamente e pedimos para

ver a lista de fornecedores deles. Perguntaram-nos o que era isso e explicámos que eram

todas as pessoas com quem eles gastavam dinheiro. Como continuavam sem perceber,

perguntámos quando compravam computadores a quem é que os compravam, quando

precisavam de seguros quem é que lhos fazia, quando punham dinheiro no banco em

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que banco era, quando compravam comida a quem é que a compravam. E assim, ao fim

de uma hora, conseguimos fazer uma lista de fornecedores de Escolas Católicas. Disse-

lhes que depois do almoço iríamos visitar os fornecedores de produtos alimentares, que

ficavam mais perto. Quando chegámos lá dissemos que éramos das Escolas Católicas de

Toronto, que lhes comprávamos toda a nossa comida e que gostaríamos de trazer dois

jovens dos Liceus Católicos para o seu local de trabalho para receberem formação

profissional. O que é que eles podiam dizer? Que não e arriscar perder o cliente. Em

poucas semanas, tínhamos mais empregos que jovens!

Sabem quantas festas de formatura se realizam nas escolas públicas de Chicago? E

quantos hotéis ganham dinheiro com isso? A quantos consultores se pagam, quanta

comida se compra? Era uma boa maneira de conseguir formação profissional

Ser vendedor é difícil: bater de porta em porta a tentar vender qualquer coisa. Quando

eu era mais novo vendia jornais nas ruas da cidade de Jersey, em New Jersey, a seguir

vendi panelas e utensílios de cozinha, porta a porta, na esperança que os comprassem

para os enxovais. Também vendi a Enciclopédia Britânica, de porta em porta. Tive

bastantes empregos deste tipo enquanto adolescente. Algumas vezes era divertido, mas

a maior parte das vezes era muito, muito difícil. Pelo que percebo, há muita gente que

não gosta de fazer esse tipo de trabalho. Às vezes, sabemos onde uma pessoa vive e por

causa de problemas de transporte queremos arranjar-lhe um emprego o mais perto

possível. Pomos um pin num mapa a indicar o sítio onde vive e pomos outro onde se

encontra a primeira empresa. Desenhamos um círculo à volta desses dois e começamos

o trabalho de angariação, a bater às portas e a falar com as pessoas.

Alguns professores poderão achar isso divertido, outros não. Foi ai que me pus a pensar,

será que há pessoas que gostam de bater de porta em porta? Lembrei-me dos mormons,

não sei se cá também existem. Põem-nos doidos. Olhem para mim, para as minhas

calças curtas. Um dia estava a fazer uma apresentação num bairro de gente rica fora de

Chicago e, quando cheguei ao fim, um homem veio ter comigo. Um homem lindo, com

o cabelo perfeito, com um fato impecável que lhe caia perfeitamente, a sua pele estava

bronzeada, sem rugas nenhumas, os sapatos perfeitos, realmente um homem muito bem

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parecido. Disse que me queria contratar. Explicou-me que tinha um filho de vinte e um

anos, com Síndroma de Down, que ia sair da escola esse ano e que queria que ele

arranjasse um emprego num banco, numa universidade ou num escritório. Pediu-me

para lhe arranjar um emprego, num destes sítios simpáticos, porque sabia que eu o

conseguia. Disse-lhe que deveríamos falar e perguntei-lhe em que é que trabalhava.

Disse-me que era advogado e tirou uma espécie de caixa de ouro, linda, que poderia

estar no museu desta Fundação. Abriu-a e tirou dela um cartão lindo com escritos a

dourado. Quando dou o meu cartão a alguém tiro a minha carteira, suja e amachucada,

onde tenho os meus cartões que tive de cortar para caberem lá dentro. Somos mesmo

muito diferentes… Leio o cartão e pergunto-lhe onde é o escritório dele. Responde-me

que é em Chicago, na Whacker Drive. Usando um discurso de advogado proponho-lhe

arranjar um emprego para o seu filho num lugar que ele considere apropriado, se ele me

deixasse levar dois jovens das escolas públicas de Chicago para o seu escritório. O que

é que ele vai responder?

Temos então uma lista das pessoas que disseram sim e outra das pessoas que disseram

não. E vou ter de vos contar esta história:

Chama-se McCormick e é um homem muito famoso na história da América. Em mil

oitocentos e sessenta, setenta, desenvolveu a ceifeira McCormick, que é uma máquina

que consegue ceifar grandes quantidades de milho e trigo. Formou uma empresa

fantástica chamada International Harvest Store. Mais tarde o seu filho comprou um

jornal, provavelmente o segundo ou terceiro maior jornal dos Estados Unidos, o

Chicago Tribune. Mais tarde, comprou uma famosa equipa de basebol, a Chicago Cubs.

São incrivelmente ricos. Todos os anos, do mesmo modo que Calouste Gulbenkian vos

deu isto, eles dão vinte e cinco a trinta milhões de dólares para fins de caridade na zona

de Chicago. Por essa razão deram dinheiro a um grupo para organizar uma conferência

numa das mansões da família McCormick, para a qual fui convidado. Uma mansão

fantástica com o seu próprio campo de golfe. Fui à conferência e, como é óbvio, não me

senti bem. Não me sinto confortável neste tipo de sítios. Fiz a minha apresentação e

seguiu-se um cocktail onde foram servidos uns camarões enormes. O Director

Executivo da Fundação McCormick, uma fundação para fins caritativos como a

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Gulbenkian, veio ter comigo e disse-me que a minha apresentação tinha sido muito

interessante e que lhes devíamos pedir um subsídio. Que a Fundação estava interessada

em pôr as pessoas a trabalhar. Expliquei-lhe que o nosso problema não era dinheiro,

mas que gostaria de lhe propor trazer dois jovens das escolas públicas de Chicago para

trabalhar nos escritórios da Fundação e nos escritórios do Chicago Tribune na Michigan

Avenue. Disse-me que ia tratar dos papéis para o pedido de subsídio. Quando lhe

expliquei que não era isso exactamente que precisávamos, mas sim de oportunidades de

emprego, mal me respondeu. Estão preparados para nos dar dinheiro mas não querem as

nossas pessoas. Esse tipo de pessoas existem e sei que as têm também em Portugal.

Onde quer que vamos todos querem saber como conseguimos que as empresas nos

arranjem empregos, por isso estamos a documentar a forma como cada um foi

arranjado. Cada vez que arranjamos um emprego, ditamos ou tomamos nota e pomos

tudo numa caixa. Um dia iremos organizar toda essa informação. É, certamente, o que

teria feito a nossa avó ou um vendedor de seguros.

O próximo passo é a análise do emprego. Queremos saber que trabalho está a ser feito,

quem é que o está a fazer, por quanto é que está a ser pago e que parte dele podemos

fazer. Não estou interessado em avaliações profissionais fantásticas, nem em técnicas de

entrevista, nem em ensinar os jovens a preencher propostas de emprego. Já o fazemos

há muitos anos e com isso não se conseguem empregos. Queremos saber que trabalho é

que está a ser feito, quem é que o está a fazer, por quanto é que está a ser pago e se será

possível que possamos fazer uma parte dele. O que queremos descobrir não é se um

trabalhador com uma deficiência severa consegue fazer o trabalho completo de um

trabalhador sem deficiência. Se o conseguissem não eram certamente deficientes. O que

queremos é, por um lado, encontrar uma pessoa com uma variedade muito grande de

capacidades e, por outro, descobrir algumas tarefas que um trabalhador com deficiência

possa desempenhar. O que queremos é pôr um trabalhador com deficiência a fazer

algumas tarefas de um trabalhador sem deficiência. Já lhes mostro exemplos.

Queremos encontrar um trabalhador com deficiência que possa fazer parte das tarefas

de dois ou mais trabalhadores e queremos uma parceria entre eles. De vez em quando,

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queremos uma parceria de duas pessoas com diferentes capacidades. Vamos a um

escritório e perguntamos ao supervisor qual é o trabalhador que apresenta maior

rendimento. Indica-nos uma mulher com uma camisola vermelha. Perguntamos porque

é que a considera a trabalhadora mais valiosa do escritório. Explica-nos que tem um

bom desempenho ao telefone. Muitos dos negócios são feitos pelo telefone e ela

mantém uma boa relação com as pessoas, consegue a informação que precisam e

transfere as chamadas para os departamentos certos, o que é muito importante.

Perguntamos-lhe qual é a segunda característica mais importante dessa trabalhadora.

Responde que trabalha bem com o computador que, apesar de estarem sempre a mudar

o software, ela aprende muito rapidamente. E mais ainda, ajuda os outros quando têm

problemas. Todos os escritórios precisam de uma pessoa assim. Além disso, é uma

pessoa que não vem para o emprego queixar-se, o que ajuda o ambiente de trabalho.

Também têm queixosos em Portugal? Ela apesar de ter problemas familiares e de saúde,

como todos nós, não se queixa. É uma pessoa agradável para se ter como colega. Se

alguém tem um problema ela tenta animá-lo, o que é muito importante.

Percorremos um dia inteiro do seu trabalho, vimos tudo o que faz e organizámos as

tarefas, da mais complexa à menos complexa. Também lhe cabe fazer o café, destruir

documentos etc. Propusemos então à supervisora trazer uma pessoa para fazer esta e

aquela tarefas mais simples, o que a libertaria de perder tempo com isso e lhe daria mais

tempo para fazer tarefas realmente mais importantes. O que é que ela poderia responder,

que não, que gostava que a sua melhor trabalhadora perdesse tempo com tarefas

insignificantes? É claro que adorou a nossa proposta, era uma boa oportunidade. Esta é

a primeira "estratégia de ambientes", as páginas amarelas da vossa lista de telefones.

Arranjamos os nomes dos Bancos e vamos bater-lhes à porta, a mesma coisa com

hospitais, com companhias de seguros, etc…. Ambientes estatais são bons por duas

razões: as pessoas que não são tão espertas e que trabalham devagar enquadram-se

perfeitamente nesse ambiente.

Esta é a Brenda e está paralisada do peito para baixo. Trabalha em Madison, nos

escritórios do City Clerk. Recebem cerca de mil envelopes diariamente que têm de ser

abertos. Durante quantos anos um de vós conseguiria fazer isso todos os dias? Uma

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pessoa normal tem uma taxa de erro, mas o que a Brenda faz é verificar duas vezes.

Para isso, coloca-os nos dedos e passa-os numa mesa de luz, se não tiverem vazios

devolve-os para serem esvaziados. Esta é uma das suas tarefas.

Este é o Larry e o trabalho dele é destruir papel. Ele é uma pessoa muito lenta. Se o

sentarmos a fazer uma tarefa ele fá-la e depois adormece, o que não é bom para a

imagem dos trabalhadores estatais. O que fazemos é sentá-lo uma hora e depois, na

outra hora, vai destruir papel. E assim, alternadamente, até completar oito horas de

trabalho.

Este é o Darwin que, por alguma razão, foi posto aos onze anos numa instituição estatal

nos Estados Unidos que é um sítio horrível. Conseguimos tirá-lo de lá aos cinquenta e

oito anos. Por ele tentar morder a parte de trás da sua mão tiraram-lhe os dentes.

Conseguimos-lhe um emprego estatal e não vive num lar mas num apartamento com

apoio. Aqui está ele, pela primeira vez a escolher o que quer comer e o que quer vestir.

E aqui está ele ao fim de um ano no emprego, a aprender. Ao fim de três anos, com

sessenta e um anos, está finalmente capaz de ganhar dinheiro. É precário, como dizem

cá. Na altura tínhamos um governador da direita, Tommy Thompson, que George Bush

levou para Washington quando foi eleito e que é agora Director de Serviços de Saúde e

Direitos Humanos dos Estados Unidos. Ficou famoso porque conseguiu tirar as pessoas

do rendimento mínimo e pô-las a trabalhar. É famoso nos círculos republicanos e

conservadores por essa razão. Quando ele soube que se tinha gasto imenso dinheiro para

manter esta pessoa numa instituição e que esta pessoa agora vive na comunidade, por

um custo mais baixo, que trabalha no governo estadual e ainda ganha dinheiro, elegeu-o

“Empregado Estatal do Mês”. Vieram as televisões, artigos nos jornais, “Parabéns

Governador Thompson”, “Wisconsin funciona”. Toda a gente falou de Darwin que

passou quarenta e sete anos numa instituição e que agora ganha dinheiro. E os

republicanos ficaram felizes!

Não sei como funciona cá em Portugal mas no meu Estado, em Wisconsin, temos umas

personagens a quem chamamos republicanos que estão neste momento no poder e

adoram lá estar. Como querem continuar, este tipo de notícias é bom para eles. Mas

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também temos umas personagens chamados democratas, que não estão no poder, mas

gostariam de estar. Por essa razão, os democratas estão um pouco infelizes. A pessoa

com o mais alto cargo eleita pelo partido democrata, em Wisconsin, é um homem

chamado Jim Doyle. Ele é o procurador geral do Estado. Fomos ter com ele e dissemos-

lhe que queríamos contar-lhe algumas das coisas que os republicanos andavam a fazer.

Mostrou-se muito interessado. Contámos-lhe que os republicanos estavam a conseguir

pôr pessoas com deficiências severas a trabalhar na Função Pública. Concordou com

este programa e pediu-nos logo que indicássemos dez pessoas para ele empregar. Claro

que tivemos de lhe explicar que não era assim que as coisas se processavam.

Este é o Darwin, agora com setenta e quatro anos. Esta é uma questão interessante: ele

está a perder capacidades, já não consegue produzir muito, está a ganhar muito pouco

dinheiro mas não quer ficar em casa. Há pessoas assim. Ele passou toda a sua vida em

instituições horríveis e agora trabalha neste sítio rodeado de pessoas que o tratam bem,

é agradável, limpo e seguro. Quando lhe perguntamos se se quer reformar, é óbvia a sua

resposta.

A Betsy Charago disse ao Governador de Wisconsin que toda esta publicidade seria

óptima para ele. Ele reconheceu, agradeceu-lhe mais uma vez e ela aproveitou para lhe

perguntar se era possível pôr uma pessoa com uma deficiência a trabalhar no seu

escritório. O resultado foi que, actualmente quem trabalha com a máquina de escrita

manual no gabinete do Governador do Estado de Wisconsin, é uma mulher com uma

doença mental crónica. O governador Thompson tem uma reunião com os seus

assessores e convidou a Betsy Charago a estar presente. Apresentou-a a todos e disse-

lhes que gostava que ouvissem o que ela tinha para dizer e que fizessem com que todos

os departamentos do governo estadual de Wisconsin empregassem uma pessoa com

deficiências. Numa só tarde conseguimos mais empregos no governo do que alguma

vez poderíamos sonhar. Não temos pessoas suficientes para os preencher, temos mais

empregos que pessoas.

Esta é a Joanne e esta é a história dela. Acabou a escola em mil novecentos e oitenta e

quatro e durante dois anos trabalhou na piscina da Universidade. De oitenta e seis a

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oitenta e oito trabalhou no Burger King e em dois restaurantes de pizzas e desde mil

novecentos e noventa e um que trabalha no laboratório de investigação criminal, porque

o procurador geral, ou melhor, os democratas o controlam. Tal como dissemos antes,

este factor é muito importante. Lembram-se de termos dito esta manhã que quando uma

criança ia para o ensino regular começava por aprender conjuntos, somas, subtracções,

multiplicações, divisões, fracções e por ai em diante? O que acontece com estas crianças

é que quando chegam a um certo nível de complexidade, não conseguem aprender mais.

Acontece o mesmo nos empregos e, por isso, o que queremos fazer é encontrar algo

com significado dentro do seu nível de competência e, em vez de procurar um progresso

de tipo vertical, procurar um progresso de tipo horizontal, ou seja, aprender mais coisas

significativas, no mesmo nível de dificuldade. Este é o princípio que utilizamos e note-

se que funciona muito melhor em locais de trabalho que na escola. Esta é uma das

razões pela qual muitas pessoas com problemas de aprendizagem na escola funcionam

melhor em ambientes pós-escolares.

Aqui ela está a limpar armas. Vocês podem utilizar armas em Portugal? Se não podem

ter uma pistola como é que se sentem seguros? Já leram as notícias sobre as crianças

nos Estados Unidos que vão às escolas e desatam a disparar? Lá todos têm o direito de

ter uma arma e muitos têm-na. Mas o problema é que matam pessoas ou roubam e têm

que ser presos.

Se as armas enferrujam têm de ser limpas. Esta é uma das coisas que ela faz na

Procuradoria Geral: limpar armas. Quando temos a cena de um crime, de um

assassinato, de uma violação ou de um roubo, tiramos fotografias para o julgamento.

Têm de ser catalogadas e é isso que ela também está a fazer. Será que é mais difícil

catalogar fotografias do que limpar armas? Não sei. Aqui ela está a destruir

documentos. Todas as coisas que ela faz, se as não fizesse teriam de pagar a alguém

muito mais dinheiro para as fazer. Aqui ela está a arrumar o balão para o teste de álcool.

Têm cá estes balões? Aqui ela está a esterilizar alguns objectos no Laboratório.

Lembrem-se: o que fazemos é ir ao local de trabalho e ver o tipo de trabalho que está a

ser feito, por quem, por quanto dinheiro e que parte dele podemos dar a fazer aos nossos

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jovens. Por exemplo, uma mulher está a trabalhar na sua secretária e acaba-se o toner da

sua impressora, os agrafos ou outro material qualquer. Ela levanta-se para ir buscar mais

à sala de economato. Nós observamos e tiramos notas. No caminho, pára para contar

uma anedota que hoje lhe contou a colega que lhe deu boleia. Demora talvez dois a três

minutos. Pára mais à frente, noutra secretária, para falar sobre cuidados a ter com o

cabelo, a seguir vai buscar o toner. No regresso passa por outras secretárias onde fala

sobre a avó de alguém que está doente. Para ir buscar o toner, demorou meia hora. A

seguir observamos outra pessoa no seu dia a dia no local de trabalho.

Quando temos toda a informação vamos falar com a supervisora, aquela que está

sempre a pedir ao Ministro mais pessoal. Mostramos-lhe o que é que se está a passar e

ela fica preocupada ao ver o tempo que se perde nessas coisas. Dizemos-lhe para não se

preocupar porque temos uma solução para o problema. Assim, ensinámos a Joanne,

arranjámos-lhe um carrinho com as coisas que mais frequentemente se esgotam e

fizemos um pequeno álbum com imagens dos restantes materiais que podem vir a ser

precisos, que ficam guardados no armário do economato. Ela dá uma volta com o seu

carro de manhã, outra à tarde, perguntando às pessoas o que lhes faz falta. A

produtividade começou a aumentar e isso foi excelente. Nunca explicámos aos

empregados o que fizemos, porque o resultado seria passarem a detestar a Joanne, mas a

Supervisora ficou muito contente.

Esta foi a coisa mais difícil que lhe ensinámos, que é complicada e ainda é um problema

para ela. Fizemos uma análise da tarefa de destruição de documentos e depois uma

análise da tarefa de utilização da fotocopiadora para conjuntos de fotocópias. É muito

mais complicado, estamos a puxá-lo ao limite. Sabemos que demora mais tempo a

ensiná-la, torna-se mais complicado, vamos ter uma margem de erro maior e essa é

outra definição de dificuldade.

Esta é a Care, dezoito anos atrás. Ela tem autismo e aqui estava a trabalhar no gabinete

do City Clerk quando tinha vinte e um anos, depois de ter saído da escola. Aqui está ela

há um ano atrás.

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É fácil conseguir empregos para aqueles jovens tão simpáticos, com Síndroma de

Down, que são tão bem comportados, filhos de Yuppies. Mas o que é que acontece com

aqueles jovens fortes e duros? Tivemos um aluno com dois metros de altura, cento e

vinte quilos de peso, muito agressivo, deficiente auditivo total, deficiente intelectual e

exibicionista. Também têm destes em Portugal, exibicionistas? A questão que se coloca

é o que vamos fazer com um jovem com dois metros de altura, cento e vinte quilos de

peso, muito agressivo, deficiente auditivo total, deficiente intelectual e exibicionista.

Onde é que lhe vamos arranjar um emprego? Arranjámos-lhe um emprego num talho,

por ser frio lá dentro. Na escola, púnhamos-lhe bibes, atávamos-lhe as roupas à sua

volta. No talho nunca tivemos um único problema.

Tivemos a dar formação a um jovem durante seis meses no Hotel Howard Johnson.

Quando começámos a distanciá-lo do formador ele fez uma fogueira na sala dos cacifos

do hotel. Dado esse comportamento, levámo-lo para uma pizzaria. Passados três meses,

quando estávamos a distanciá-lo do formador, levou umas caixas de pizza para os

vestiários e começou outro fogo. Dois fogos. Onde é que lhe vamos arranjar um

emprego? Nos Bombeiros! Não é um problema, porque apesar de tudo precisam de

praticar, não é?

Os Yuppies adoram ambientes médicos. Esta é a Kristin, com vinte e um anos. Desde

que saiu da escola, em mil novecentos e oitenta e dois, há vinte anos atrás, que trabalha

meio dia no Laboratório Macarthur de Pesquisa do Cancro, no Campus da Universidade

de Wisconsin. Desde mil novecentos e noventa e cinco que trabalha no First Business

Bank de Wisconsin. A sua mãe chama-se Nathalie e o pai chama-se Keith que são

nomes tipicamente Yuppies. Conhecemo-los muito bem e são uma família muito bem

sucedida, muito conhecida em Madison. O Keith era presidente do Conselho Directivo

da escola; são realmente umas pessoas extraordinárias. A Nathalie adora contar uma boa

história. Ela conta que quando vão a um acontecimento social ou político as pessoas

vêm ter com ela e perguntam-lhe pela Kristin porque sabem que ela tem uma filha com

uma deficiência. Perguntam-lhe o que é que ela faz agora que já acabou a escola. E a

Nathalie adora responder que ela trabalha. Quando lhe perguntam onde, a Nathalie

adora dizer que ela trabalha no Laboratório Macarthur de Pesquisa do Cancro no

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Campus da Universidade de Wisconsin. Tem um toque yuppie. A seguir perguntam-lhe

sempre o que é que ela faz lá e é claro que Nathalie adora responder que ela trabalha na

pesquisa contra o cancro.

Aqui está a Kristin. Vou-lhes contar o problema que temos agora. Apoiámos estas

crianças quando estavam na escola, com esta idade. Nos últimos cinco ou seis anos

tirámo-las da escola e ensinámos-lhes o que era o trabalho real, no mundo real. Não

apenas as tarefas a realizar, mas também a parte social, a responsabilidade, a stamina, a

energia, a confiança. Tudo isto é tão importante como as tarefas a desempenhar.

Começámos a distanciá-los dos seus formadores e contámos o número de horas de

supervisão feita por pessoas pagas ao longo do ano. Fazemos isso todos os anos e a

Betsy sabe quanto custa supervisioná-los, uns custam muito, outros custam muito

pouco. Esse é o caminho a seguir: treino eficaz, apoio continuado (para sempre), mas

apoio sem custos muito altos.

Agora estes jovens estão a ficar menos jovens, com trinta e muitos anos, e começam a

aparecer cancros, problemas de coração, problemas nos ossos, nas ancas e nos joelhos.

Estão a ir abaixo. Se pensarmos que em mil novecentos e vinte e cinco, nos Estados

Unidos, a esperança de vida de pessoas com Síndroma de Down era de nove anos,

vemos a diferença: agora é de trinta e muitos. Os corpos destas pessoas estão a

deteriorar-se e não é um espectáculo bonito. Estamos contentes que vivam até tão tarde

mas é um problema que a nossa geração está a enfrentar.

Esta é a Debbie e tem autismo. Como estamos com pouco tempo, vou só mostrar-vos as

pessoas. Há pessoas com autismo que têm mais de três locais de trabalho por ano. E

algumas pessoas com autismo que fazem sempre, sempre a mesma coisa. Se

conseguirmos uma boa combinação entre uma pessoa com autismo e um ambiente,

conseguimos o melhor trabalhador possível. Eles repetem o mesmo trabalho vezes sem

conta, não se queixam, aparecem a horas e enfurecem-se se os não deixarem fazer o seu

trabalho. E isto é bom.

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Esta é a Mattie, é deficiente visual e auditiva total desde que nasceu. Pusemo-la numa

daquelas instituições horríveis com outros deficientes visuais e auditivos. (Lembram-se

da aula de macas?) Depois conseguimos tirá-la e pô-la na escola e mais tarde formámo-

la para trabalhar. Nos últimos sete ou oito anos ela trabalha na Pizza Hut de Milwaukee

que tem uma facturação extraordinária: cinco mil por cento de facturação de todos os

trabalhadores. Ela faz parte do grupo e sabe isso, o que é extraordinário. Se tivéssemos

chegado a ela mais cedo, assumindo que o seu grau de inteligência era normal, sabe-se

lá o que ela podia estar a fazer agora.

Este é o Eric, também com trinta e muitos anos. Tem Síndroma de Down e está a ter

problemas. Os seus pais eram Yuppies e não permitiram que ele tivesse empregos

ligados à alimentação ou à limpeza. Por isso trabalhou num hospital, numa cooperativa

de crédito, numa companhia de seguros, num departamento do estado e aqui está ele

numa quinta com um agricultor aos vinte e um anos. Agora trabalha numa empresa de

construção e uma das coisas que tem de fazer é ordenar cheques cancelados pelos

números.

Lembram-se que uma das coisas que falámos ao princípio da tarde foi o problema

causado pela estratégia de "ir de baixo para cima", de usar como modelo o

desenvolvimento humano normal para decidir o que fazer com pessoas com a idade

mental de 5 anos ou o nível de leitura do primeiro ano. De facto, isto cria sempre

problemas para pessoas com deficiências severas. Uma das mudanças que temos de

introduzir é passar a ir "de cima para baixo". E este é um bom exemplo disso.

A área não é leitura, matemática, socialização ou linguagem. A área é "a profissão". O

local é o Hospital de St. Mary, o ambiente mais específico é a sala de consultas externas

e a actividade é entregar amostras clínicas, radiografias, etc. Ou seja, tudo o que

acontece numa sala de consultas externas. Decidimos que queremos ensinar a esta

pessoa estas competências específicas, para executar estas tarefas específicas. Não

todas, apenas estas, neste sub-ambiente deste local.

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Este é um bom exemplo: é o Philip e tem o Síndroma de X frágil. Para pessoas que não

saibam, ele não fala, não lê e o seu quociente de inteligência é muito abaixo dos

cinquenta. Mas é um ser humano extraordinário. Nunca foi segregado, tem boas

competências sociais, sorri, olha para as pessoas quando falam com ele, é uma pessoa

agradável. O que ele está a fazer aqui, é fornecer batas às pessoas para que possam

entrar na parte esterilizada do Hospital. (Vou apressar porque estamos a ficar sem

tempo). Aqui ele está a entregar amostras de urina da clínica de consultas externas.

Antigamente todos estes trabalhos eram feito por pessoas que ganhavam muito mais

dinheiro do que ele. Ele ganha o ordenado mínimo, a trabalhar a tempo inteiro. Na

realidade, mais cinquenta cêntimos que o ordenado mínimo. Aqui ele está a entregar

radiografias.

Este foi um bom exemplo, assim como o da Joanne. Pegamos numa conjuntura

profissional com seis, sete, oito e dez pessoas, estudamos o que fazem e os jovens

responsabilizam-se por partes do trabalho de três, quatro ou cinco pessoas. No fundo,

estamos a inventar um emprego. Uma ocupação como esta não existia na lista de

pessoal. Tivemos de a inventar e faz com que o negócio funcione melhor. Na América,

quando conseguimos que uma empresa facture mais dinheiro ou consiga reduzir os

custos é sempre muito bem aceite.

Este homem é o Director do Departamento de Anestesia do Hospital, talvez o homem

mais inteligente do Hospital. De certeza que ele não quer que o Philip case com a sua

irmã e tenho a certeza que não tem um jantar combinado com ele na sexta-feira. Sei

tudo isso. Mas deviam vê-los. Eu e a minha mulher fomos a um jogo de basquetebol no

liceu da zona em que vivemos. Primeiro entrou o Philip que se sentou, a seguir entrou o

anestesista, provavelmente para ver o seu filho jogar; dirigiu-se ao Philip e interagiu

com ele. Foi muito bonito de ver.

Esta é a Aaron que está há doze anos num restaurante. Aqui tem trinta e oito, trinta e

nove anos. Está a trabalhar em parceria com uma colega. Lembram-se porque

queríamos estas parcerias na escola? É que queríamos no futuro alcançar este resultado.

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Esta é a Maggie que trabalha num restaurante de um Departamento do Estado. Devemos

isto ao Governador Thompson.

Este é o Theo e esta história é fascinante. Quando acabou a escola arranjámos-lhe um

emprego a lavar pratos num restaurante com muito movimento. E era um problema por

duas razões: a primeira, porque era um trabalho muito cansativo; a segunda, porque

quando ele via alguma comida de que gostasse, num prato, comia-a. Ao fim de uma

semana, começámos a pesá-lo e reparámos que estava a engordar. O que fizemos foi

dividir o seu horário: meio dia a lavar pratos e meio dia na biblioteca. A seguir,

arranjámos-lhe um emprego num Motel e depois numa Companhia de Seguros. Hoje

trabalha meio dia no Motel e meio dia na Companhia de Seguros.

Isto é muito importante, é o tipo de coisa que esperamos que toque no coração de

alguém. (É do vosso coração que estou a falar agora.) Antigamente, o que acontecia era:

arranjávamos uma sala muito grande, descobríamos as pessoas mais deficientes na

nossa comunidade, contratávamos pessoas para irem buscá-las todas as manhãs e trazê-

las para esta sala enorme, sentávamo-las em bancos corridos ou secretárias e falávamos

sobre um plano de reabilitação individual. E não funcionava. Chamem-lhe abrigos,

oficinas, centros de actividades,…. Juntávamos um grande número de pessoas e

púnhamo-las todas num sítio. Agora dizemos para se inverter este processo. O que

estamos a tentar dizer é que pegamos numa pessoa com deficiência e damos-lhe acesso

a todos os lugares na comunidade. Isto significa libertação, criação de oportunidades. É

encontrar uma combinação entre o que eles querem fazer, o que sabem fazer bem e o

que está disponível na comunidade.

Fazemos combinações de várias coisas. Combinamos capacidades, interesses, salários

necessidade sociais e comportamentos. Muitas destas pessoas têm dois empregos a

tempo parcial. A razão é que nos Estados Unidos, quando se tem um emprego a tempo

parcial, o empregador não tem de pagar os benefícios fiscais e sociais. Como todas estas

pessoas foram declarados pelo Estado como sendo total e permanentemente deficientes

têm direito a apoio médico. Quem esteja um pouco acima deles tem que ter um trabalho

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a tempo inteiro. (Esse é o meu problema em Chicago, arranjar empregos a tempo inteiro

com todos os benefícios.)

Esta é a Nancy e trabalha de manhã numa loja de fast-food. Faz saladas, lava janelas,

recolhe o lixo no parque de estacionamento; é mesmo bom. Às onze e meia da manhã,

começam os problemas. A loja enche-se de pessoas e ela já não consegue funcionar.

Durante a hora de ponta, os pedidos são muitos. Eles estavam a pensar prescindir dela.

Disse-lhes que quando fosse necessário um comportamento mais eficaz a tirávamos de

lá. Assim, durante a hora de ponta do restaurante, ela vai trabalhar para uma loja de

vídeo no centro comercial e fica lá até acabar. Depois volta ao restaurante, limpa-o e

prepara a refeição da noite. Tem dois empregos a tempo parcial.

Este é o Tom e é um grande problema. Trabalhava numa pizzaria, mas os seus pais não

gostavam pois achavam que não era suficientemente bom para ele. Através do

Governador Tompson conseguimos-lhe um emprego num departamento público e

durante um mês funcionou bem mas depois começámos a ter graves problemas.

Tentámos técnicas de modificação de comportamento. Enquanto esteve na pizzaria

trabalhava até cair para o lado. Aparecia para trabalhar nos fins de semana em que não

tinha que trabalhar. Quando estava no Governo simplesmente não gostava, estava atrás

de uma divisória a agrafar e a lidar com um número reduzido de pessoas. Algumas

pessoas funcionam bem com um número reduzido de pessoas, como por exemplo

pessoas com autismo. Aprendem a conhecê-los e vice versa. Outras não funcionam bem

com um número reduzido de pessoas, durante largos períodos de tempo, porque

esgotam as suas capacidades de comunicação. Foi isso que calculámos que estivesse a

acontecer. Porque é que ele funcionava tão bem na pizzaria e tão mal no departamento

público? O problema não era o local, era tipo de trabalho. Quando os clientes entravam

na pizzaria cumprimentavam-no, não exigindo dele uma conversa longa e profunda.

Falava com toda a gente e há pessoas que são óptimas nisto. Os pais dele estavam muito

contentes por ele estar cinco dias por semana no departamento, mas ele não. Perante

este conflito decidimos fazer um acordo. O Steven passaria dois dias no departamento e

três dias numa loja de bebidas. Os pais ficaram contentes porque se lhes perguntassem

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onde o filho trabalhava podiam responder que "trabalhava para o Estado", e isso fá-los

felizes.

O tempo chegou ao fim. Gostei muito de estar convosco e bom trabalho

Nota: Conferência proferida em Inglês, transcrita de gravação e traduzida para Português por

Jorge Rivotti.