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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAISFACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS LITERRIOS
Pedro Henrique Trindade Kalil Auad
Teoria da Literatura e Teoria do Cinema: A Crise e o Fantasma
Belo Horizonte
2014
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Pedro Henrique Trindade Kalil Auad
Teoria da Literatura e Teoria do Cinema: A Crise e o Fantasma
Tese de Doutorado apresentada ao Programa
de Ps-Graduao em Estudos Literrios daFaculdade de Letras da Universidade Federalde Minas Gerais, como requisito para aobteno do ttulo de Doutor em Teoria daLiteratura e Literatura Comparada.
rea de concentrao: Teoria da Literatura eLiteratura Comparada
Linha de Pesquisa: Literatura, outras Artes eMdias (LAM)
Orientadora: Prof. Dra. Leda Maria Martins
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG2014
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Ficha catalogrfica elaborada pelos Bibliotecrios da Biblioteca FALE/UFMG
Auad, Pedro Henrique Trindade Kalil.A888t Teoria da literatura e teoria do cinema [manuscrito] : a
crise e o fantasma / Pedro Henrique Trindade Kalil Auad. 2014.
252 f., enc.: il.
Orientadora: Leda Maria Martins.
rea de concentrao: Teoria da Literatura e Literatura Comparada.
Linha de pesquisa: Literatura, Outras Artes e Mdias.
Tese (doutorado) Universidade Federal de Minas
Gerais, Faculdade de Letras.
Bibliografia: f. 234-248.
1. Literatura Histria e critica Teses. 2. Cinema eliteratura Teses. 3. Teoria feminista Teses. I. Martins,Leda Maria. II. Universidade Federal de Minas Gerais.Faculdade de Letras. III. Ttulo.
CDD: 809.93
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Para Leda Martins,Carolina Macedo
& Cristina Tolentino
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AGRADECIMENTOS
Agradeo professora Leda Maria Martins que, alm de ter me orientado de formaexcepcional neste trabalho, me acompanha h mais de dez anos em minha trajetriaacadmica. Sem o apoio e o suporte dela, desde os meus tempos de graduao, tenho
certeza que no seria capaz de ter produzido este trabalho. Obrigado pelas cobranas,pelo rigor, pelo estmulo, pelas conversas, pelas ideias, pelo suporte, pelas inquietaes,por acreditar em mim. Que fique registrada minha profunda admirao, respeito ecarinho.
Agradeo aos professores, coordenadores e funcionrios do Ps-Lit por proporcionaremtodas as condies para a boa realizao deste trabalho.
Agradeo a New York University por ter me recebido durante o estgio sanduche,especialmente Professora Avital Ronell por me supervisionar e pelas importantescontribuies a esta tese, e Lindsay OConnor que esteve sempre disposta a ajudar em
todo o processo do estgio.
Agradeo CAPES - Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superiorpela bolsa concedida para a realizao deste trabalho e pela bolsa sanduche (PDSE) queme proporcionou o estgio nos Estados Unidos.
Agradeo ao professor Marcelino Rodrigues da Silva por todo o apoio e confianadurante o meu doutorado.
Agradeo aos professores Eneida Maria de Souza, Sandra Regina Goulart Almeida eCsar Geraldo Guimares por todos os apontamentos realizados durante o exame dequalificao que enriqueceram muito este trabalho.
Agradeo minha esposa Carolina Macedo pelo incentivo e pacincia, pelos cafs econversas e, principalmente, por dividir to intimamente a vida comigo. Este trabalhoseria imensamente mais pobre sem sua companhia.
Agradeo minha me Cristina, que sempre a primeira a acreditar em mim. Oscaminhos (e descaminhos) do estudo da literatura e do estudo do cinema foram abertospor ela, eu apenas os segui.
Agradeo ao meu pai Cludio, por todo o suporte ao longo desses ltimos anos. Ao meuirmo Thiago (in memoriam) e minha av Azely (in memoriam).
minha famlia mais recente: Dorinha, Mrcio, Guilherme e Erika.
Agradeo Viviane Maroca e ao Lucas Morais pela correo desta tese.
Agradeo aos amigos que decidiram compartilhar comigo a vida: Viviane Maroca,Rogrio Brittes, Ruth Beirigo, Bruno Paes, Fernando Pacheco, Davis Diniz, PedroCoutinho, Bruna Gisi, Rafael Laia, Tatiana Pequeno, Luisa Marques, Paulo Scarpa,Orlando Scarpa, Marina Gazire, Juliana Pereira, Flavia Mayer, Patrick Arley, Eduardo
Jorge, Leonel Afonso, Jlia Moyses, Elias Gibran, Pedro Ribeiro, Luiz Flvio, JosAntnio, Andrea Regina, Carlos Frankiw, Marina Frana, Ana Carolina Antunes, Eliza
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Albuquerque, Simone Carvalho, Nelson Freire, Mara Nassif, Lucas Morais, LeonardoBeltro, Claudia Wermelinger, Marina Lacerda, Maria Fernanda Moreira, Cntia Vieira,Julia Mesquita, Leandro Moura, Mirian Silveira, Miguel vila. Acredito que tem umpedacinho de cada um de vocs nessas mais de duzentas pginas.
Agradeo, ainda, Chica, Pulp e ao Belinha por todo o ronronar, trilha-sonora destetrabalho.
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The memory came faint and cold of the story Imight have told, a story in the likeness of my life,I mean without the courage to end or the strengthto go on.
Samuel Beckett,The End.
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RESUMO
Esta tese tem como objeto de estudo a Teoria da Literatura e a Teoria do Cinema. Oobjetivo principal investigar o senso comum construdo a respeito dessas teorias edesmistificar certos preceitos que so reafirmados na contemporaneidade,principalmente em torno do discurso sobre a crise das teorias. So analisados trsgrandes blocos tericos: o Formalismo Russo e as Teorias da Montagem Soviticas;Roland Barthes e a revista francesa Cahiers du Cinema; as teorias feministas, tanto docinema, quanto da literatura. No primeiro bloco jogada luz sobre a peleja entre osdiscursos tericos que se querem como cientficos e aqueles outros discursos que sepretendem mais culturalistas. No segundo, discute-se a figura do autor e o seu oposto
complementar, o leitor, e o embate entre esses dois lugares que se torna mais tensionadona Frana durante o ps-guerra. No terceiro bloco, a problemtica a respeito do cnone,da histria literria e da histria cinematogrfica, questionada sob o vis de uma teoriafeminista que coloca em jogo a representao e as ideologias. Por fim, analisadatambm a questo das ideologias dentro das teorias e a sua tradio inventada, para, da,se questionar os discursos sobre a suposta crise contempornea. Postulamos que a teoriano terminoumesmo com todo o discurso sobre o fim da teoria ou o momento ps -terico, mas se transformou e, tal como um fantasma, volta ao revir.
Palavras-chave: Teoria da Literatura; Teoria do Cinema; Formalismo Russo; Teoriasda Montagem Soviticas; Roland Barthes; Cahiers du Cinema; Teoria Feminista;Cincia e Cultura; Autor e Leitor; Cnone e Histria; Fim da Teoria; TeoriaContempornea.
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ABSTRACT
This Ph.D. dissertation has as its object of study the Theory of Literature and the FilmTheory. The main objective is to investigate common sense built on these theories anddemystify certain precepts that are reaffirmed in contemporary times, especially aroundthe discourse about the theories crisis. Three major theoretical blocks are analyzed:Russian Formalism and Soviet Montage Theories; Roland Barthes and the Frenchmagazine Cahiers du Cinema; feminist theories, both of film and of literature. The firstblock is about the struggle between the theoretical discourses that wants itself asscientific and those other discourses that are intended more culturalist. Then, we discussthe figure of the author and its complementary opposite, the reader, and the clash
between these two places becomes more strained in France during the postwar period.In the third block, the problem regarding the canon of literary history and film history isquestioned under the bias of a feminist theory that puts at stake the representation andthe ideologies. Finally, we also analyzed ideological problems of theories and theirinvented tradition, to thereafter questioning the contemporary discourses on the allegedcrisis. In a sense, the theory did not end - even with all the discourse about the "end" ofthe theory or about the post-theoretical moment - but turned into something differentand, as a ghost, back to revise.
Keywords: Theory of Literature, Film Theory, Russian Formalism; Soviet MontageTheory; Roland Barthes; Cahiers du Cinema; Feminist Theory; Science and Culture,Author and Reader, Canon and History; End of the Theory, Contemporary Theory.
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RESUMEN
Esta tesis circunscribe su objeto de estudio en la Teora de la Literatura y la Teora delCine. El objetivo principal es investigar el sentido comum que ha sido construdo alrespecto de dichas teoras y desmitificar determinados preceptos reafirmados en lacontemporaneidad, principalmente en torno al discurso sobre la crisis de las teorias.Analisamos tres grandes blocos tericos: el Formalismo Ruso e las Teoras del MontajeSovitico; Roland Barthes y la revista francesa Cahiers du Cinema; las teorasfeministas, del cine y de la literatura. El primer bloco aclara la disputa entre losdiscursos tericos cuya orientacin es ms cientfica y aquellos discursos que sepretenden culturalistas. El segn bloco discute la figura del autor y su opuesto
complementar, el lector, y el embate entre esos dos lugares que ha sido ms conflictivoen Francia durante la postguerra. El tercer bloco cuestiona la problemtica al respectodel canon de la historia literaria y de la historia de la cinematografa desde la perpectivade la teora feministas que viene a razonar la representacin y las ideologas. Por ltimo,se analiza tambin la cuestin de las ideologas dentro de la teora y su tradicininventada a fin de inquirir los discursos de la supuesta crisis contempornea.Postulamos que la teora no ha terminado apesar de todo el discurso sobre el fin dela teora o el momento post-terico -, sino ms bien que la teora ha sido transformaday, igual que un fantasma, retorna una vez ms.
Palabras-clave:Teora de la Literatura; Teora del Cine; Formalismo Ruso; Teoras delMontaje Sovitico; Roland Barthes; Cahiers du Cinema; Teora Feminista; Ciencia yCultura; Autor y Lector; Canon y Historia; Fin de la Teora; Teora Contempornea.
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LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1 -Po zakonu [1926], dirigido por Kuleshov e roteirizado pelo diretor e por
Chklovsky. Atriz: Aleksandra Khokhlova.
Figura 2 - Camponesas que representariam, tambm, Lenin, em Three Songs AboutLenin[1934], de Dziga Vertov.
Figura 3 -Mr. West olha com admirao o Teatro Bolshoi enquanto se convence de quea Unio Sovitica melhor que os Estados Unidos, em The Extraordinary Adventures of
Mr. West in the Land of the Bolsheviks[1924], de Lev Kuleshov.
Figura 4 - Orson Welles, em Confidential Report [1955], filme que, segundo AndrBazin, apesar de ter mais traos autorais, no melhor do que Cidado Kane.
Figura 5 - The Wind [1928] filme realizado nos Estados Unidos pelo sueco VictorSjstrm, com Lilian Gish como protagonista.
Figura 6The Dinner Party, de Judy Chicago.
Figura 7Do Women have to be naked to get into the Met. Museum?, 1985GuerrillaGirls.
Figura 8 - Do Women have to be naked to get into the Met. Museum?, 2005 Guerrilla
Girls.
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SumrioIntroduo ..................................................... ................................................................. ........................... 14
Crise ...................................................................................................... ................................................. 25
Teoria no Terceiro Mundo ..................................................................................................................... 31Captulo 1: O Formalismo Russo e as Teorias da Montagem Soviticas: Cincia e Cultura ............ 38
1. OPOIAZ e Crculo Lingustico de Moscou ............................................................. ........................... 45
1.1. A influncia positivista ............................................................................................... ................ 54
1.2. A influncia da lingustica .......................................................... ................................................ 57
2. Duas definies de cinema: montagem e movimento ........................................................ ................ 65
3. Conexes entre o Formalismo Russo e a Teoria da Montagem Sovitica ......................................... 72
4. O Fim do Formalismo Russo ....................................................................... ...................................... 79
5. Revisando os Prprios Conceitos ....................................................................................................... 86
6. A Leitura Estruturalista e o Ressurgimento da Cincia Literria ....................................................... 887. Saindo do Laboratrio ............................................................. ........................................................... 95
Captulo 2: Cahiers du cinema e Roland Barthes: Autor/Leitor ........................................................ 100
1. Politique des Auteurs: os debates na Cahiers Du Cinma ............................................................... 105
2. Roland Barthes: percurso da morte do autor ........................................................... ......................... 119
3. Barthes em relao Cahiers du Cinema ........................................................................................ 128
3.1. A fina distino entre Barthes e a Cahiers du Cinema ............................................................. 132
4. Outras mortes ............................................................... ................................................................. ... 136
Captulo 3: Teorias Feministas: Cnone e Histria, Ideologia e Representao ........................... ... 142
1. A Histria (da literatura) sob uma nova perspectiva ........................................................................ 1462. Teoria do cinema feminista ........................................................................................................... ... 158
3. Duas Vozes: Me and My Shadow, de Jane Tompkins e o conflito entre uma voz pessoal e uma vozacadmica .............................................................. ................................................................. .............. 169
4. Uma questo, tambm, ideolgica ................................................................................................... 173
5. Articulando a teoria feminista ............................................................................................ .............. 180
Captulo 4: O Fantasma da Teoria ........................ ................................................................. .............. 187
1. Tradio e Teoria ............................................................................................................................. 197
2. A Crise Atual ................................................................................................................................... 208
2.1. Quantos Somos........................................................... ......................................................... 2173. Fantasma da Teoria .......................................................................................................................... 221
Concluso ............................................................................................................ .................................... 227
Bibliografia ............................................................................................................................................. 235
Filmografia ............................................................... ................................................................. .............. 250
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Introduo
Jurei mentiras e sigo sozinho / Assumo os pecados. /Os ventos do norte no movem moinhos./ E o que meresta s um gemido. / Minha vida, meus mortos,meus caminhos tortos / Meu Sangue Latino.
Joo Ricardo e Paulinho Mendona(Secos & Molhados)
Sangue Latino
aqui te fao os relatos simplesdessas embarcaes perdidas no eco do tempocujos nomes e proveito de mercadorias
ainda hoje transitam de solido em solido
Al Berto
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O que diro do mundo hoje os pesquisadores do futuro? O que, diante dos
discursos eltricos, dos espaos fluidos, das redes, dos autores-redes, eles elegero
como representativo? O que, das pilhas de papeis e do mar de bytes, ser resgatado para
dizer o que se viveu no incio do sculo XXI? Quais sero as escolhas? Sero as grandes
histrias ou as pequenas histrias? Quais msicas cantaro essa nossa poca? E filmes?
Quais os documentos que revelaro nossas paixes? Quais imagens falaro dos nossos
costumes? Como ser a batalha ideolgica da nossa poca, quando olhada pelo
retrovisor? E as relaes entre naes, quando possvel pensar que, para os
pesquisadores do futuro, a ideia de nao pode ser somente uma ideia do passado? O
que o futuro reter de hoje? Como se classificar o nosso presente quando este for
passado em algum lugar do futuro?
Ser que algum recontar a histria de 2002, de 2006, de 2013, como Hans
Ulrich Gumbrecht contou a histria de 1926, vivendo no limite do tempo Esse ttulo
to sugestivo, como se o tempo tivesse um limite, como se no fosse ele mesmo o
sentido do limite que escapa, da durao no mensurvel, como se no fosse a contagem
do tempo, a sua delimitao, no mais do que uma conveno e uma formula para
cuidar de colheitas e saber os horrio dos trens. O limite como paradoxo? O tempo se
expande infinitamente como a fsica afirma sobre o espao, e que pode tambm se
expandir ou retrair em nossos sentidos. possvel viver no limite do tempo, possvel o
tempo ter um limite? Mesmo que tempo aqui seja entendido no como temporalidade,
mas somente como momento histrico, como o incio do Memrias de um Sargento de
Milcias, de Manuel Antnio de Almeida: Era no tempo do rei1? O que dever
permanecer nesse/desse tempo E quando, como Slavoj iek, afirmam que se vive no
fim dos tempos? possvel ter um fim do tempo se o prprio limite dele um
paradoxo?
Como fazer um biografema do nosso mundo contemporneo? Puxar uma linharevelar muitas possibilidades, e tantas outras possibilidades sero deixadas de lado.
Tentar desvendar todas as linhas parece uma tarefa luntica, porque impossvel isso
em um mundo em que, por minuto, so disponibilizados mais de 200 horas de vdeos na
internet, por exemplo. impossvel acompanhar tudo o que acontece, tudo o que se
registra, todos os que falam em todos os cantos do mundo. Tudo e todos, hoje,
discursam, tudo e todos so partes e realizadores da histria do presente. No no sentido
1ALMEIDA.Memrias de um Sargento de Milcias, p. 31.
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que Hannah Arendt chamava a ateno, em Sobre a Revoluo, de que todo mundo quer
fazer histria ou entrar pra histria, como se a salvao do presente fosse a
imortalidade de papel, mas no sentido quase utpico, como naquele momento de
esperana beckettiana: toda a humanidade agora se resume a ns, vamos fazer da
melhor maneira possvel. possvel Como fazemos hoje a melhor maneira
possvel? E os outros possveis da histria? E os outros possveis do presente?
Porque o mundo complexo e intransigente. complexo porque, entre outros
motivos, no possvel ver mais as coisas como se fossem isoladas. Ou ? possvel
isolar uma parte no laboratrio e dissecar parte do mundo sem perceber a relao do
laboratrio com resto do mundo, nem que essa relao seja ainda a da soleira, a do
batente? E o mundo intransigente porque esse o que temos hoje, que, como
correnteza, expande e carrega a histria e os homens. Mas, no futuro, ele ser s
memria de esttuas que morrem? Ou ser recapitulado como na exposio
Experimental Jet Set, que retoma obras de um ano especfico, 1993, para ler, de hoje,
aquele momento histrico? Nossos objetos sero guardados? Sero os lixos eletrnicos
ou sero os, cada vez mais crescentes, objetos de design Um objeto est mo rto
quando o olhar vivo que se colocava sobre ele desapareceu. E quando ns
desaparecermos, nossos objetos iro para l onde enviamos os objetos dos negros, para
o museu, diziam Chris Marker e Alain Resnais, no filme Les statues meurent aussi de
1953, sobre uma exposio de Arte Negra daquela poca na Frana.
O que contar o nosso museu quando hoje mesmo possvel ter um museu de si
mesmo, ao menos virtualmente, como no The Museum of Me, programado pela Intel, no
qual, atravs de seus arquivos digitais, possvel simular salas de exposio que
contam/recontam a sua vida; voc como curador de si mesmo. Essa palavra com dois
sentidos, como tambm aquele capaz de curar a dor. Curar a dor de si mesmo: essa a
esperana de hoje? Com tantos remdios psicotrpicos para aliviar a angstia, a tristeza,a insnia ou para regular a felicidade. Estamos mesmo esperando mais da tecnologia do
que de uns dos outros, como sugere Sherry Turkle em Alone Together? As palavras que
abrem o seu livro so: a tecnologia se prope como a arquiteta de nossas intimidades2.
Curadoria da nossa prpria vida e s da nossa a proposta da tecnologia que cada
vez se torna mais imperativa e mais imprescindvel em nossas vidas?
2TURKLE.Alone Together, p. 1. [technology proposes itself as the architect of our intimacies] (traduominha. Todas as outras traduces que no tiverem indicao, foram realizadas pelo autor)
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Mas e se essa tecnologia tambm ajudar a reunir pessoas, organizando
movimentos como o que aconteceu no mundo rabe a partir de 2010? Adam Curtis,
entretanto, nos lembra, em All Watched Over By Machines of Loving Grace, que o lugar
vazio do poder no pode ser deixado vazio de ideias, sob pena de que velhas frmulas
se repitam de maneira ainda mais desastrosa. Ou se a unio pela tecnologia para
organizar um movimento como o Occupy Wall Street, em que pessoas foram para o
corao financeiro do mundo para ocupar o Zuccotti Park e protestar contra a
desigualdade social cada vez maior nos Estados Unidos? Ou a tecnologia, tambm, por
outro lado, no serviu para criar grupos ativistas como o Anonymous ou contribuiu para
que segredos de Estados possam ter chegado s mos dos cidados comuns, como fez o
WikiLeaks? possvel que a tecnologia faa com que nos isolemos, mas tambm nos
unamos; possvel que ela nos torne curador de ns mesmos, mas possvel tambm
que uma legio de annimos ocupem virtualmente espaos outrora outorgados apenas a
uma distinta classe poltica. Ou o mundo hoje uma reverberao dos anos de 1990 e
seu reclaim the streets, quando vemos as grandes marchas de maio e junho de 2013 no
Brasil?
possvel, pois, pensar que a tecnologia est retroalimentando duas instncias
distintas ou at mesmo paradoxais? Unio e solido? Ou uma inerente outra, como
quando s percebemos que estamos sozinhos porque sabemos quando estamos em
grupo, ou o que chamam de solido da multido? O carter blas da massa, como
classificado por George Simmel, ou o velho e seu cachorro do filme neorrealista italiano
Umberto D., ou os Sounds of Silence de Simon e Garfunkel? Esse duplo sentido das
tecnologias recentes no seria s mais um retrato de nossas vidas desde a modernidade
ou seria uma nostalgia retroalimentada permanentemente? Teramos nostalgia de uma
poca que teramos, ao menos, menos nostalgia? Ou o problema justamente que
estamos numa nova poca, numa nova cultura que pode ser chamada de esttica,
como sugere3, tambm, Adam Curtis?
Mas esta tese no uma espcie de futurologia do presente. As perguntas que
evoco acima so perguntas que relembram, de certa forma, nosso presente. Emaranhado
pelos fluxos temporais futuro do presente, retomando uma memria do presente , o
passado tambm retorna e essas torrentes que emanam do presente recebem os visitantes
3Cf. CURTIS.Adam Curtis: We don't read newspapers because the journalism is so boring.
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do passado. Esse passado que, de certa forma, continua moldando nosso presente e que
moldar tambm o futuro.
No filme Robocop, de Paul Verhoeven, quando o policial Murphy baleado e
transformado em uma espcie de ciborgue o Robocop , uma memria artificial
implantada. Essa memria objetiva que ele no se lembre do passado, de sua famlia e
de como ele se tornou esse meio-humano, meio-rob. Mas a memria de Murphy volta
e, no final, quando perguntam o seu nome, ele no diz o nome j popular Robocop,
mas o seu antigo/verdadeiro nome: Murphy. A fora policial que iria guiar o futuro
iluminada pela memria do antigo policial, tudo isso centrado no presente daquela
Detroit violenta e corrompida. A lio que parece ficar : s se salva o presente se se
salva no s o futuro, mas tambm o passado.
Nosso presente, contudo, de difcil assimilao. Como questionado acima, o
que ficar do hoje se ainda hoje no sabemos o que no devemos abandonar ou, em
outras palavras: o que o inegocivel do nosso presente? Talvez um dos textos mais
importantes de hoje, que reflete sobre a lgica do que contemporneo, seja de Giorgio
Agamben: O que o contemporneo?. Neste, o filsofo italiano ir afirmar:
A contemporaneidade, portanto, uma singular relao com o prprio tempo,
que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distncias; mais precisamente,essa a relao com o tempo que a este adere atravs de uma dissociao eum anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a poca,que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, no socontemporneos porque, exatamente por isso, no conseguem v-la, nopodem manter fixo o olhar sobre ela.4
Nesse sentido, seguindo os rastros de Agamben, poder-se-ia afirmar que esta
uma tese que tratar dos fenmenos contemporneos, mas no no sentido de que ir
tratar somente de assuntos do presente, mas por ter, justamente, esse descolamento ou
falta de aderncia com o presente. O assunto geral desta tese so a Teoria daLiteratura e a Teoria do Cinema. Os assuntos do presente da teoria, pois, sero
analisados por uma tica anacrnica. Em outras palavras, o pacto com o presente aqui
assumido justamente por sua dissociao a ele5.
4AGAMBEN. O que o contemporneo?, p. 59. [grifos do autor]5Ou, ainda, como afirma Carlo Ginzburg: no falarei da atualidade. s vezes preciso se subtrair aorumor, o rumor incessante das noticias que nos chegam de toda parte. Para compreender o presente,
devemos aprender a olh-lo de esguelha. Ou ento, recorrendo a uma metfora diferente: devemosaprender a olhar o presente distncia, como se o vssemos atravs de uma luneta invertida. No final aatualidade surgir de novo, porm num contexto diferente, inesperado (GINZBURG, 2014, p. 13).
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Mas do que esta tese trata? Uma pergunta que se inscreve no presente poderia
ser a resposta mais fcil: o que pode a teoria hoje? Entretanto, essa pergunta estaria
ancorada nesse hoje da pergunta, nesse hoje que se parece muito mais com um presente
do que com algo contemporneo. Sendo assim, torna-se necessria uma mudana de
foco: no o que a teoria pode hoje, mas o que a teoria, em sua histria, principalmente
a partir do sculo XX, pode nos dizer de hoje.
Para isso, inevitvel que se olhe para trs, para essa teoria do passado que nos
chega aqui no presente e que, doravante, ir fazer parte do que ajuda a projetar um
futuro: s se poder colher perguntas do hoje e do amanh se formos contemporneos,
no sentido que Agamben oferece. Nesse sentido, olhar para o passado da teoria, tanto do
cinema quanto da literatura, se oferece como o processo mais substancial para
entendermos a teoria contempornea.
Mas, aqui, enfrentamos um problema. Muito do olhar lanado para o passado da
teoria se constri a partir de uma histria construda da teoria, isto , temos que
enfrentar uma histria da teoria que comeou a se formar nos ltimos cinquenta ou
sessenta anos. Temos ao menos duas grandes narrativas construdas das teorias: uma
escrita por um ou poucos autores uma espcie de traduo e aquelas que do voz
teoria por meio de antologias dos textos mais importantesuma espcie de arquivo. Do
primeiro grupo, pode-se destacar Theory of Literature de Austin Warren e Ren Wellek
(1949); Teoria da Literatura (1967) de Vitor Manuel de Aguiar e Silva; Literary
Theory: An Introduction (1983) de Terry Eagleton; Literary Theory: A Very Short
Introduction (1997) de Jonathan Culler; Literary Theory: A Practical Introduction
(1999) de Michael Ryan; Theory of Literature (2012) de Paul H. Fry; da teoria da
literatura e Film and Theory: An Anthology (2000) de Robert Stam e Film Theory and
Criticism: Introductory Readings (2004) de Leo Braudy e Marshall Cohen, da teoria do
cinema. Do segundo grupo h, por exemplo, da teoria da literatura, The NortonAnthology of Theory & Criticism (2001), organizado por Vincent B. Leitch e Teoria da
Literatura em Suas Fontes (2002), organizado por Luiz Costa Lima e, da teoria do
cinema, A experincia do Cinema (1983), organizado por Ismail Xavier ou o Teoria
Contempornea do Cinema (2005), organizado por Ferno Pessoa Ramos.
Essas obras so, sem dvida, de grande valia para os estudos literrios e para os
estudos cinematogrficos, principalmente se tomados como referncia, e no como
imanncia, afinal, elas so mesmo, principalmente as da segunda categoria, obras dereferncia. Contudo, como em todas as narrativas histricas, h uma tendncia de
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cristalizao de certas interpretaes e certas selees de textos que poderiam entrar
nessa espcie de cnone terico6. O problema disso que, em alguns casos, se tornam
seletos certos pontos de vista, desenvolvendo, assim, uma criao de repetio de
argumentos e a construo de um senso comum da teoria.
Ligar o senso comum teoria foi algo pensado por Antoine Compagnon. No
caso desse terico belga, ele acredita que a teoria teria como dever, de certa forma,
enfrentar a ideia de senso comum que as pessoas tm da literatura. Mas ele alerta que
no sua inteno criar o binarismo teoria e senso comum: Trata-se de arrombar essas
falsas janelas, essas contradies traioeiras, esses paradoxos fatais que dilaceram o
estudo literrio. Trata-se de resistir alternativa autoritria entre a teoria e o senso
comum, entre tudo ou nada, porque a verdade est sempre no entre- lugar7. Ora, o que
entra em jogo aqui praticamente uma dialtica entre um estudo especializadoa teoria
e o discurso da sociedadesenso comum.
Esta tese, entretanto, no pretende revisar ou reinterpretar a obra de Compagnon.
O que nos interessa aqui que, se a teoria teria, de certa forma, uma obrigao de
enfrentar o senso comum, no teria ela tambm, contemporaneamente, a necessidade de
enfrentar o senso comum da prpria teoria? No o caso aqui, tampouco, de prever um
novo binarismo no lugar do que o prprio Compagnon refuta, mas de colocar a teoria
diante da teoria ou, em outras palavras, pensar teoricamente contra a teoria senso
comum ou, ainda, colocar o discurso especializado diante do discurso especializado que
se automatizou. Como ser visto, o senso comum da teoria entranha at mesmo naquele
que afirma que a teoria deveria se afastar desse lugar, isto , o prprio Compagnon faz
uso de argumentos senso comum sobre algumas teorias como o caso de sua
explanao sobre o Formalismo Russo.
O que guiar esta tese, portanto, ser, a partir desse lugar contemporneo,
questionar lugares senso comum da teoria. Em outras palavras, a hiptese geral da tese que as narrativas construdas acabaram por cristalizar certos discursos da teoria
atravs da repetio de certos argumentos. Espera-se demonstrar que essas construes
histricas da teoria muitas vezes no do ateno para as contradies internas que, de
certa forma, interpelam o senso comum. Nesse sentido, esta tese espera evidenciar
certos elementos menos considerados das teorias que tornaram certas leituras parciais.
6Ou, ainda, como afirma Eneida Maria de Souza: Na busca de explicaes plausveis para o presente, a
valorizao de um passado sem brechas ou rasura complica e falseia a lembrana, com vistas a reterapenas o que a memria soube guardar de bom (SOUZA, 200a, p. 133).7COMPAGNON. O Demnio da Teoria, p. 2.
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Este trabalho, obviamente, no espera lanar luzes sobre todas as teorias ou sobre todas
as possibilidades de uma determinada teoria, mas pretende mostrar outras leituras
possveis, no totalizantes, das teorias. Em suma, almejo encerrar certas repeties e
essencialismos que so, no mximo, leituras muitas vezes parciais e interessadas. Por
outro lado, irei destacar certos pontos que so, sem duvida, uma escolha interessada de
minha parte, isto , alguns autores, alguns conceitos e algumas obras que auxiliaro
minha argumentao. O que se espera, pois, no totalizar, encerrar as discusses sobre
as teorias aqui estudadas, mas sair do senso comum.
Por outro lado estamos atentos para o fato de que hoje h uma grande
dificuldade em se construir a narrativa do presente da teoria. Este trabalho, como um
trabalho contemporneo no sentido de Agamben , s assim o ser se conseguir
estabelecer determinada ligao com o presente. Mas hoje a teoria est em crise, o que
afirmam alguns autores. Alguns outros no utilizaro a palavra crise, mas indicaro algo
como depois da teoria ou ps-teoria. Acredita-se, pois, que esse resgate do contraditrio
das teorias ajuda a iluminar o prprio momento da, ao menos suposta, crise
contempornea. Em outras palavras, possvel escavar elementos da crise
contempornea no prprio fundamento das antigas teorias que j no despertam os
nossos amores, para retomar as palavras da introduo do livro de Compagnon.
Avital Ronell faz uma observao curiosa ao problematizar nossos modelos
tericos mais influentes do sculo XX: os axiomas cientficos mais autorizados so,
nos dois casos [cincia de Freud e cincia de Popper], coassinados por um insight
potico8. Tanto Freud quanto Popper foram estimulados a desenvolver suas teorias a
partir de alguma propenso literria. Aqui, tomo as palavras do escritor portugus
Gonalo M. Tavares:
Observar pelo canto do olho , em cincia, comear a elaborar a hiptese.O que observado pelo centro do olho o evidente, o bvio, aquilo que partilhado pela multido.Na cincia, como no mundo as invenes, observar pelo canto do olho ver opormenor diferente, aquele que o comeo de qualquer coisa designificativo.Observar a realidade pelo canto do olho, isto : pensar ligeiramente ao lado.A isto chama-se criatividade. Daqui saram todas as teorias cientficasimportantes9.
8RONEL. The Test Drive, p. 33. [the most authoritative scientific axioms are, in both cases, cosigned bypoetic insight]9TAVARES.Breve Notas sobre cincia, p. 5.
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Para este trabalho foram escolhidos trs momentos fundantes tanto da teoria da
literatura quanto da teoria do cinema, que se tornaram paradigmas tericos para boa
parte do ocidente, para esse olhar pelo canto do olho: Formalismo Russo e Teoria da
Montagem Sovitica; Estruturalismo e Teoria do autor no cinema esta visa as
elaboraes da revista Cahiers du Cinema ; e as teorias Feministas do cinema e da
literatura, especialmente aquelas dos anos de 1970. Esses trs momentos, como ser
visto, so momentos de insurgncia terica e que, de certa forma, ajudam a responder
problemas contemporneos das teorias ou mesmo de certa crise da teoria. Espera-se
conseguir lanar novas luzes sobre essas tendncias crticas ou, ao menos, complexificar
ainda mais as propostas tericas desenvolvidas pelos tericos desses movimentos,
afastando uma leitura que se tornou senso comum dessas teorias.
Cada um desses blocos tericos ser responsvel por ajudar a pensar sobre
problemas que se colocam para a nossa contemporaneidade. No primeiro deles
Formalismo Russo e Teoria da Montagem Sovitica refletirei sobre o binarismo
incandescente atual, que insiste em distinguir cincias positivas (empricas, exatas, etc.)
e estudos da cultura (cincias humanas, filosofia, etc.). Nesta tese nomearei os polos
desse binarismo simplesmente de cincia e cultura. Dessa forma, espera-se enfrentar
tanto o senso comum atribudo funo dos estudos da cultura quanto a uma parte do
senso comum que os ope a estudos mais ou menos centrados no texto literrio.
O segundo bloco se centrar nas questes de autor e autoria. Nos anos de 1950 e
de 1960, na Frana, essa reflexo ganha fora em polos antagnicos: por um lado, vai se
desenhando a morte do autor pela teoria da literatura, por outro, vai surgindo a eminente
figura do autor no cinema, principalmente atravs da politique des auteurs. O senso
comum a ser enfrentado aqui a ideia do autor no cinema, que foi se cristalizando sem
se levar em conta as prprias contradies internas nessa formulao. Ainda, espera-se
notar que a morte do autor, propagada por Roland Barthes, no uma morte da autoriaou do escritor, mas a tentativa do fim derradeiro da aura artstica.
O terceiro e ltimo bloco a ser analisado ser o da Teoria Feminista. Esse tpico
importante porque, sendo um dos principais influxos nos Estudos Culturais, essa
teoria a primeira grande teoria que ir se afastar do ideal lingustico da teoria da
literatura preponderante at ento. A tradio terica feminista vista, contudo, como
aquela primeira responsvel por dissolver o objeto literrio ou cinematogrfico ,
quando, na verdade, o objeto ainda se encontra ali, e atravs dele que sero discutidasteoricamente as escolhas das histrias literrias e das histrias cinematogrficas. As
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teorias feministas, sem dvida, so uma das principais vtimas do senso comum da
teoria, que reduzem o alcance dessas teorias e so julgadas ferozmente, como veremos,
por um vis ideologizado e no terico.
No ltimo captulo da tese irei refletir sobre essas questes no mais isolando
esses blocos. Refletirei sobre as formulaes ideolgicas dessas teorias, sobre as
tradies inventadas da teoriaque faro muito mais sentido caso sejam chamadas de
contratradies inventadas , sobre o prprio modelo da crise atual terica e sobre a
possibilidade de se teorizar contempornea.
Raymond Williams, em entrevista a respeito do seu livro Cultura e Sociedade,
ir falar sobre o dilema enfrentado na escolha de como abordar o problema que se
props a estudar:
Eu me perguntava se deveria escrever uma crtica daquela ideologia demaneira completamente negativa, algo que considerei fazer em determinadomomento, ou se o caminho correto seria tentar recuperar a complexidade realda tradio que havia sido confiscada, de modo que a apropriao pudesse serapreciada pelo que ela era de fato10.
De certa forma, esse dilema tambm cercou esta tese. Por um lado, indicar os
interesses de certas leituras senso comum11 e dos motivos ideolgicos por trs delas
parecia, tambm, uma possibilidade de trabalho. Mas isso resultaria em um trabalhomenos propositivo em relao ao que pretendo realizar, pois indicar a complexidade e as
contradies internas da prpria teoria ajuda a formular no s uma crtica a certas
leituras estreitas como tambm a deslocar a lupa h muito tempo estacionada em alguns
aspectos da teoria. Mas, ao longo da tese, esses motivos ideolgicos no sero deixados
de lado, sendo discutidos em um sentido propositivo e no condenatrio.
A citao de Raymond Williams, e tambm a questo da ideologia, pode fazer
parecer que este trabalho um trabalho marxista ou com um vis acentuadamentemarxista esse no caso. Avital Ronell ir confessar, em Losers Sons, que,
frequentemente, ela perpassa por muitas identificaes que vo variando ao longo do
tempo: Eu fui Derrida, eu fui Lacoue-Labarthe, Kofman, eu fui Pynchon e Rousseau,
eu nunca no sou Nietzsche, eu fui Acker e Kleist, eu era Beckett quando me
10WILLIAMS.A Poltica e as Letras, p. .11Essas leituras senso comum sero indicadas em cada um dos captulos.
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transformei em Bettina von Arnim e uma vez eu fui Aretha Franklin, mas isso uma
outra faixa12.
De certa forma, pode-se dizer que meu processo de assimilao terica ao longo
dos anos se formaliza nesta tese. Apesar de ter o seu quinho oriundo de Marx, ela
tambm ir apresentar reflexes que advm de teorias como as ps-estruturalistas, as
estruturalistas, as formalistas, as feministas, a teoria queer, alm de outras reas do
conhecimento como a filosofia, a sociologia e a antropologia. Um marxista mais
clssico como Carlos Guilherme Mota, autor do fundamental Ideologia da Cultura
Brasileira (1933-1974), por exemplo, poderia me recriminar por misturar to diferentes
abordagens em um mesmo trabalho13. Mas, aqui, pretendo aproveitar essas diferentes
abordagens acreditando que a teoria deveria ser menos um campo de batalha 14 e que
toda abordagem oferece aspectos positivos. Enfim, trata-se de querer extrair o que h de
melhor nas teorias, e no focar nos problemas que elas podem, eventualmente, possuir.
Por outro lado, este trabalho poderia ser inserido em um espectro da crtica
cultural, no sentido que Judith Butler d a esse conceito: expor os atos contingentes
que criam a aparncia de uma necessidade natural, tentativa que tem feito parte da
crtica cultural pelo menos desde Marx15. Porm, aqui, no digo apenas de uma
necessidade natural, mas daquilo que tido como naturalizado pela histria da teoria da
literatura e pela histria da teoria do cinema.
Nesta tese a teoria da literatura e a teoria do cinema so utilizadas em
comparao, uma espcie de teoria comparada que poderia se assemelhar com a
literatura comparada. Se esta disciplina enriqueceu muito os estudos da literatura,
espera-se que minha proposta tambm possa ajudar a ampliar o alcance de ambas as
teorias. Dito isso, importante notar que a comparao entre essas duas teorias se d
muito mais em uma perspectiva metodolgica do que terica. De certa forma, o
anacronismo dos estudos das teorias aqui proposto subsidiado pela diacronia em quecompararei as teorias. Em outras palavras, mesmo que, a partir do presente, se volte ao
passado, quando me debruar sobre os blocos de estudos aqui propostos estes
apresentaro uma anlise de teorias pertencentes a uma mesma poca histrica.
12RONELL. Losers Sons, p. xix. [I have been Derrida, I have been Lacoue-Labarthe, Kofman, I havebeen Pynchon and Rousseau, I am never not Nietzsche, I have been Acker and Kleist, I was Beckett whenI turned into Bettina von Arnim and once I was Aretha Franklin, but thats another track] 13 Essa mistura terica algo que ele critica neste livro citado. Cf. MOTA. Ideologia da Cultura
Brasileira (1933-1974).14Essa espcie de campode batalha terico um problema muito profundo que estabelece uma srie dequestes que ultrapassam a prpria teoria, como Pierre Bourdieu esclareceu emHomo Academicus.15BUTLER.Problemas de gnero, p. 59.
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Porm, antes de adentrar na prpria discusso terica, torna-se necessrio um
pequeno desvio para tratar justamente do que chamo aqui de crise e, tambm, para
refletir um pouco sobre as proposies tericas a partir do Terceiro Mundo.
Crise
A palavra crise, tantas vezes utilizada pela histria, remete a diversos percursos
do pensamento ocidental, mas tambm bastante usual no vocabulrio cotidiano. Nesse
registro, ouvimos falar de crise dos mais diversos tipos: crise econmica, crise
energtica, crise ambiental, crise criativa, um time de futebol que passa por uma crise,
crise de meia-idade, crise em um relacionamento entre duas pessoas, dois grupos, duas
instituies, crise poltica e assim por diante. H tambm momentos clssicos dafilosofia e das cincias humanas em que se fala em crise. Por exemplo, Marx e Engels
descreviam que o comunismo iria se tornar inevitvel pelo carter do capitalismo, que,
em sua prpria formulao, levaria sempre a crises econmicas, como a de 1929 ou a
que ainda enfrentamos, iniciada em 2008. Uma crise que se aproxima mais do conceito
utilizado por essa tese , entretanto, uma pouco menos famosa: a crise da filosofia e das
cincias tal como concebida por Edmund Husserl em 1936, em seu livro The Crises of
European Sciences and Transcendental Phenomenology. importante lembrar queHusserl j havia apresentado outra crise, quando introduzia a fenomenologia, em seu
livro, Phenomenology and the Crisis of Philosophy, de 1911, em que defendia uma
filosofia to rigorosa quanto uma cincia.
A palavra crise vem do grego Krisis (), e nessa lngua coexistiam ao
menos dois sentidos. O menos utilizado deles o sentido de julgamento, de uma opinio
para distinguir o certo ou o errado, o justo do injusto. Nesse sentido, krisis se
aproximaria de crtica, krinein, do grego e do critica, do latim. nesse sentido que, porexemplo, um perodo crtico poderia se aproximar de um perodo em crise. O outro
significado o de um momento de separao, de diviso, e pode tambm significar
uma disputa ou peleja, uma diviso da unidade original16. Esse sentido de crise seria
um sentido pessimista, para Husserl, j que ele pressuporia diferentes grupos de cincias
16BUCKLEY. Husserl, Heidegger and the crisis of philosophical responsibility, p. 9. [can also mean adispute or quarrel, a dividing of an original unity].
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lidando com diferentes reinos da realidade ou, at mesmo, engajados em uma querela
pelos mtodos e aproximaes ao mundo17.
Essa crise, analisada por Husserl em 1936, se daria por causa da falncia do
objetivo inicial da cincia: prover um conhecimento do mundo universal e
unificado18. No que, para o filsofo alemo, no deveria haver um diviso entre as
cincias, mas em ordem de ser realmente cientfico, h de se manter algum tipo de
unidade19. Mas no s negativamente que se poderia pensar em crise. possvel
tambm perceber uma conotao otimista, caso a crise seja entendida no sentido de que
uma deciso a interrupo de uma possibilidade e promoo de outra20. Husserl,
entretanto, ir descrever uma crise como uma fissura, ou mesmo abismo, entre as
cincias humanas e as cincias naturais. R. Philip Buckley, ao analisar os trabalhos do
filsofo alemo, ir resumir essa problemtica como crise como separao21.
Mas essa separao e a vontade de perseguir uma verdade universal implicam
uma srie de problemas. Logo no incio de The Crises of European Sciences and
Transcendental Phenomenology, Husserl coloca as questes que julga pertinentes e ir
comear o seu trabalho consciente do carter controverso de seu estudo:
Eu espero que neste lugar, dedicado como as cincias, o prprio ttulo
dessas comunicaes, A Crise das cincias europeias e a psicologia irincitar controvrsia. A crise da nossa cincia como tal: podemos falarseriamente disso? No essa conversa, ouvida to constantemente nessesdias, um exagero? Afinal de contas, a crise de uma cincia indica que nadamais que o seu carter cientfico genuno, toda a maneira pela qual formulaseu objetivo e desenvolveu uma metodologia para isso, se tornouquestionvel. Isso pode ser verdade na filosofia, que no nosso tempo ameaasucumbir ao ceticismo, irracionalismo e ao misticismo. O mesmo pode serdito da psicologia, na medida em que ela ainda realiza reivindicaofilosfica mais do que meramente aguarda um lugar entre as cinciaspositivas. Mas como podemos falar diretamente e de maneira minimamentesria de uma crise nas cincias em geral isto , tanto das cincias positivas,incluindo a matemtica pura e as cincias naturais, que nunca deixaram de
ser admiradas como modelos de disciplinas cientficas rigorosas e de grandesucesso? Para ter certeza, elas provaram ser mutveis no estilo total de seussistemas de construo terica e metodologia. S recentemente elassuperaram, nesse sentido, uma paralisia arriscada, sob o ttulo de fsica
17BUCKLEY.Husserl, Heidegger and the crisis of philosophical responsibility, p. 9. [realm of reality orperhaps even engaged in a quarrel over methods and approaches to the world].18 BUCKLEY. Husserl, Heidegger and the crisis of philosophical responsibility, p. 9. [to provideuniversal, unified knowledge of the world].19BUCKLEY.Husserl, Heidegger and the crisis of philosophical responsibility, p. 9. [in order to be trulyscientific, must be maintained in some sort of unity].20BUCKLEY.Husserl, Heidegger and the crisis of philosophical responsibility, p. 9. [in the sense that a
decision is the cutting off of one possibility and the promoting of another].21 BUCKLEY. Husserl, Heidegger and the crisis of philosophical responsibility, p. 10. [crisis asseparation].
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clssicarisco, isto , a suposta consumao clssica do estilo confirmado desculos.22
A prpria crise, para Husserl, significaria que o carter cientfico, o objetivo e a
metodologia das cincias e da filosofia se tornaram questionveis. A psicologia aqui
apareceria tambm como possvel integrante do quadro crtico, j que ainda aguardaria
e at hoje, por certos setores, ainda aguarda um lugar entre as cincias ditas
positivas.
A questo colocada por Husserl se seria possvel pensar em uma crise que
fosse coincidente entre as reas de conhecimento acima, isto , as cincias positivas,
sejam matemtica pura ou cincias naturais, e a filosofia. O filsofo alemo entende
que, ao longo do tempo, as cincias positivas se transformaram, construram modelos
tericos e metodolgicos, e evoluram. Com o prprio desenvolvimento dessas teorias e
com os avanos que conquistaram, seria possvel falar de uma crise? Ela estaria
ocorrendo somente nas cincias exatas, somente na filosofia ou em ambas?
A crtica de Husserl ao carter positivista que a cincia tomou em anos
anteriores, principalmente a partir de meados do sculo XIX, sendo, portanto, uma
critica antipositivista. Nesse sentido, ele afirma que o problema dessa abordagem
cientfica, ao abandonar o lado filosfico da cincia, acabou por criar uma espcie de
alienao das pessoas que dissociaram a cincia e a existncia: cincias de mentalidade
meramente factuais produzem pessoas de mentalidade meramente factuais23. Nessa
perspectiva que se inscreveria o problema que deriva da influencia positivista: a crise
do esprito europeu.
O filsofo alemo ir questionar, pois, o que a cincia que emergiu do
positivismo tem a ensinar para a humanidade sobre os assuntos da liberdade e da
22HUSSERL. The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology, p. 3-4. [I expect that
at this place, dedicated as it is to the sciences, the very title of these lectures, The Crisis of EuropeanSciences and Psychology will incite controversy. A crisis of our sciences as such: can we seriously speakof it Is not this talk, heard so often these days an exaggeration After all, the crisis of a science indicatesnothing less than that its genuine scientific character, the whole manner in which it has set its task anddeveloped a methodology for it, has become questionable. This may be true of philosophy, which in ourtime threatens to succumb to skepticism, irrationalism, and mysticism. The same may hold for
psychology, insofar as it still makes philosophical claims rather than merely wanting a place among thepositive sciences. But how could we speak straightforwardly and quite seriously of a crisis of the sciencesin general that is, also of the positive sciences, including pure mathematics and the exact naturalsciences, which can never cease to admire as models of rigorous and highly successful scientificdiscipline To be sure, they have proved to be changeable in the total style of their systematic theory -
building, and methodology. Only recently they overcame, in this respect, a threatening paralysis, underthe title of classical physics threatening, that is, as the supposed classical consummation of the
confirmed style of centuries]23HUSSERL. The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology, p. 6. [merely fact -minded sciences make merely fact-minded people]
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existncia. Para Husserl, as cincias dos corposas exatas, em sua poca, nada mais
falariam sobre a condio humana. O mesmo aconteceria com as cincias humanas, j
que nelas teria desaparecido o horizonte da historicidade, e os acadmicos, em busca da
exatido, cuidadosamente excluem todas as posies valorativas, todas as questes de
razo ou desrazo dos assuntos humanos e suas configuraes culturais24. Dessa forma,
o filsofo alemo alerta, insistentemente, para o desenvolvimento de cincias que nada
teriam a ver com a vida das pessoas ou com as questes da prpria existncia na terra e,
ademais, ele acrescenta que as configuraes culturais foram solapadas das prticas
cientficas25.
Ao tomar o objetivismo como princpio e os fatos como verdade inelutvel, essa
ideia de cincia seria um conceito-resduo porque teria sido deixada de lado a razo que
deveria guiar os avanos do conhecimento e da civilizao. Existiria, pois, um contraste
entre a ideia de cincia, de filosofia e da razo do Renascimento e do Sculo das Luzes
e a ideia de cincia e de filosofia do incio do sculo XX. A consequncia dessa
mudana, segundo Husserl, foi uma mudana peculiar da maneira de pensar no todo. A
filosofia se tornou um problema para ela mesma, a princpio, compreensivelmente, na
forma da [o problema da] possibilidade de uma metafsica; e, prosseguindo com o que
falamos anteriormente, isso coloca em questo implicitamente o significado e a
possibilidade de todo o problema da razo26.
A razo, pois, fora deixada de lado, at mesmo pela filosofia que, ao invs de
perseguir a verdade, teria passado a se autoexaminar, a tentar justificar a sua prpria
existncia. De certa forma, o que aparentemente afirma Husserl, a crise no seria
somente uma crise das cincias, mas tambm da filosofia: as cincias por um lado, ao se
desligar da razo, isto , da filosofia, e a filosofia, tambm, ao passar a querer se
autojustificar e deixar de buscar a verdade atravs da razo. Husserl afirma: assim, a
crise da filosofia implica na crise de todas as cincias modernas como membros douniverso filosfico: a princpio latente, e, ento, a cada vez mais proeminente crise da
prpria humanidade europeia a respeito de sua vida cultural totalmente sem significado,
24 HUSSERL. The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology, p. 6. [carefullyexclude all valuative positions, all questions of the reason or unreason of their human subject matter andits cultural configurations]25 Husserl, claro, no viu nascer a obra de Lvi -Strauss e a antropologia do ps-guerra - que ir
justamente colocar a cultura como centro da discusso.26 HUSSERL. The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology, p. 11. [was a
peculiar change in the whole way of thinking. Philosophy became a problem for itself, at first,understandably, in the form of the [the problem of the] possibility of a metaphysics; and, following whatwe said earlier, this concerned implicitly the meaning and possibility of the whole problematic of reason]
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sua total Existenz27. O objetivo da filosofia para Husserl, em sua poca, seria retomar
essa f na possibilidade de um conhecimento universal que foi deixada de lado. Para
tal empreitada, Husserl ir propor, como primeiro passo necessrio, que se deva
refletir para trs, de uma maneira totalmente histrica e crtica, em ordem deprover, antes de todas as decises, um auto-entendimento: devemos perguntarpara trs o que era originalmente e o que sempre se buscou em filosofia, oque era continuamente buscado por todos os filsofos e filosofias que secomunicaram uma com as outras historicamente; mas isso tem que incluiruma considerao crtica do que, em respeito aos objetivos e mtodos [dafilosofia], irrevogvel, original e genuno e o que, uma vez visto,apodicticamente conquista a vontade28.
Refletir para trs, sem perder o impulso do presente, ainda parece ser uma ideia
constante na filosofia de Husserl. Aqui, importante notar que sua afirmao se torna,de certa forma, reativa com as ideias de Agamben, apesar de que este no
necessariamente diz sobre a busca pelas origens.
Husserl ter, ento, construdo a ideia de crise nas cincias e tambm na
filosofia no s como uma crise como separao, mas tambm como uma crise de
perda do sentido original, ou, em outras palavras, uma crise que advm de mudanas
bruscas do conceito de cincia e de filosofia, fazendo com que no restassem mais do
que rastros e reminiscncias da origem. Enfim, crise no somente separao, tambm a nostalgia por uma unidade perdida. atravs dessa unidade perdida que se
inscreveria a crise do esprito europeu.
Mas essa crise da cincia e da filosofia, contudo, no est inscrita em uma
sociedade isenta, isto , ela no isolada da sociedade. Noberto Bobbio faz um
apontamento em relao ao texto de Husserl:
A posio tomada por Husserl diante dos problemas de nosso tempo em
uma das poucas vezes que se deixou induzir a interromper seu interminvelsolilquio, na obra que fundamenta o renascimento atual, Crise das cinciaseuropeias - foi provocada exclusivamente por observaes em torno da crisepresumida ou real das cincias modernas, como se na Alemanha, trs anos
27 HUSSERL. The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology, p. 12. [Thus thecrisis of philosophy implies the crisis of all modern sciences as members of the philosophical universe: atfirst a latent, then a more and more prominent crisis of European humanity itself in respect to the totalmeaningfulness of its cultural life, its total Existenz]28HUSSERL. The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology, p. 1. [reflect back,in a thorough historical and critical fashion, in order to provide, before all decisions, for a radical self-understanding: we must inquire back into what was originally and always sought in philosophy, what was
continually sought by all the philosophers and philosophies that have communicated with one anotherhistorically; but this must include a critical consideration of what, in respect to the goals and methods [of
philosophy], is ultimate, original, and genuine and which, once seen, apodictically conquers the will]
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depois do advento de Hitler, no tivessem havido outros sintomas de crise dahumanidade que pudessem ofuscar a fronte serena de um filsofo alemo, ealm do mais judeu.29
Longe de concordar com Bobbio, de que Husserl deveria ter estendido sua
reflexo para alm do problema colocado em seu livro, apenas gostaria de reter nessa
citao uma questo importante: a crise que enunciava Husserl era apenas mais um dos
sintomas de outras vrias crises que circundavam no s a Alemanha, como boa parte
do mundo.
Ora, se falamos em crise da teoria, no estaramos, tambm, falando de outras
crises que perpassam a nossa contemporaneidade? Crises sociais, crises ideolgicas,
crises formais, crises culturais, crises econmicas, crises tecnolgicas, crises
conceituais, crise da histria, entre outras, so alguns dos exemplos que poderiam serpensados na poca de Husserl e tambm hoje. Mas importante frisar que j h uma
distncia de oitenta anos desde a publicao das teses do filsofo alemo e a crise, hoje,
se apresenta com outros ndices, com outras facetas.
Aqui importante reter algumas informaes. A primeira a noo de crise
como separao, isto , de crise como um momento de julgamento ou de surgimento de
uma nova possibilidade. A segunda , justamente, a ideia de que uma crise no
conhecimento um sintoma de uma sociedade da crise. A terceira e ltima a crisecomo um momento de distino entre as reas do conhecimento, isto , um
conhecimento que no compartilha fronteiras se torna apenas um conhecimento-resduo.
Este trabalho parte de teorias desenvolvidas na mesma poca de Husserl. O
Formalismo Russo, considerado a fundao da Teoria da Literatura, encena a crise da
filosofia e das cincias humanas, sob o vis de Husserl, exemplarmente. Ao passo que o
Formalismo tentava estabelecer um estudo especfico da literaturaesse isolamento que
seria sintoma da criseexistiria algo na teoria que escaparia a essa separaosoluoda crise. O mesmo poderia ser dito do Estruturalismo. Esse problema ser visto no
primeiro captulo desta tese.
O segundo captulo, que trata da questo do autor e da autoria, pode ser visto
como um momento de crise do ps-guerra, em que o sujeito, mais uma vez, colocado
em questo ou, em outras palavras, poder-se-ia dizer de um momento de julgamento do
sujeito em que duas vises praticamente opostas coabitam o mesmo espao.
29BOBBIO.Marxismo e Fenomenologia, p. 251.
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Os Estudos Culturais (aqui encarnados nas Teorias Feministas), por outro lado,
apresentam um caminho contrrio. Ao unir vrios campos do conhecimento sob o
mesmo guarda-chuva, os Estudos Culturais poderiam perder a objetividade cientfica.
Esse o principal ponto dos que acusam os Estudos Culturais de um esvaziamento
terico-metodolgico, como ser visto. Por outro lado, as Teorias Feministas apontam
para outra parte da soluo da crise de Husserl. Ao analisarem a histria da literatura
ou a histria do cinema, as tericas observam que a disciplina histrica no uma
evoluo imanente de certos costumes algo que o filsofo alemo iria criticar. Alm
disso, Husserl iria denunciar fortemente o fato de que a cincia est cada vez mais
afastada da realidade enquanto que as Teorias Feministas so uma daquelas que mais se
fincam em alguma espcie de realidade concreta, sem a tentativa do afastamento usual
entre teorias e existncia.
Se seguirmos os passos de Husserl, poder-se-ia dizer que nem a teoria da
literatura nem a teoria do cinema conseguiram solucionar a crise constatada na dcada
de 1930, por um lado, mas que, por outro, se buscou essa soluo. No nosso presente,
contudo, se afirma uma crise. A que Husserl constatou ainda permanece como rastro
em outras palavras, a crise que o filsofo alemo percebia na Europa de seu tempo ainda
incandescente para os dias atuais.
Teoria no Terceiro Mundo
Luiz Costa Lima, em 1975, publica um texto com o nome sugestivo de Quem
tem medo da teoria?. O perodo de publicao do texto o da incorporao do
estruturalismo dentro dos estudos literrios do lado de c ao sul do oceano. Nesse
contexto, o terico brasileiro afirma que:
Quando uma comunidade no tem a prtica da discusso, o uso da linguagemcrtica sempre lhe parece ameaador. Sendo, ademais, o discurso tericoproduto do desdobramento da reflexo crtica, natural que, dentro daquelacomunidade, o seu praticante encontre, dentro de si mesmo e a seu redor,dificuldades maiores de realizao30.
Costa Lima ainda afirma que, no caso especfico do Brasil, os grandes
pensadores, antes, abrem frentes metodolgicas ao invs de frentes tericas. Ademais,
retoma ele,
30LIMA. Quem tem medo da teoria?,p. 193.
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entre ns, tal passagem [da metodologia teoria], sempre revelou a marca dadependncia cultural. Da que as teorias, desde Slvio Romero, quando semostravam, transpareciam como glosas, resumos ou comentrios,normalmente ortodoxos, de algo j estabelecido internacionalmente. Da o
vcio, que at hoje nos acompanha, de apresentar fulano como orepresentante local de tal pensador ou corrente estrangeira. (...) Nunca nospassa pela cabea que a teoria seja alguma coisa que continue a serfecundado, muito menos, algo que esteja sendo aqui fecundado 31.
O que nos falta, parece dizer o terico, uma mente terica, que consiga
ultrapassar a metodologia, ou, ainda, perceber que aqui tambm se produz teoria.
O texto, claro, endereado a uma polmica da poca, em que se opunham
aqueles prs ao estruturalismo e aqueles contra a importao de mais uma teoria, como
demonstra Regina Lcia de Faria32
. Interessante notar, nesse contexto, que Costa Lima,ao mesmo tempo em que critica a importao via algum representante terico de uma
teoria estrangeira, ele mesmo a pratica, ao ser o divulgador do estruturalismo no
Brasil.
Esse paradoxo da dependncia cultural terica pode ser percebido como um
signo da produo terica no s do Brasil, mas da Amrica Latina. Uma pergunta
tantas vezes exposta e tantas vezes discutida : seria possvel a teoria latino-americana?
Seria possvel uma teoria produzida fora dos grandes centros culturais e acadmicos? Sesim, ela poderia ser chamada, por ns mesmos ou por eles, de teoria?
O uruguaio Hugo Achugar um dos que iro refletir sobre a nossa produo
terica, justamente nesse sentido do paradoxo. Em Sobre o Balbucio Terico Latino-
americano, o terico uruguaio chama ateno para certas ideias de Walter Mignolo, que
indicava quatro projetos crticos para a superao da modernidadeps-moderno, ps-
colonial, ps-oriental e ps-ocidental33, ou seja, uma concentrao no ps, em que
se resgatariam as histrias locais do continente, junto notao de que as teorias latino-
americanas se perderiam no mercado global terico, j que no falariam o idioma
agregador de valor, o ingls. Sendo assim, Achugar pergunta:
No ser que o lugar do discurso (...) dos latino-americanos letrados ouiletrados, de esquerda ou de direita, homens ou mulheres, mineiros ouacadmicospara os ouvidos do hemisfrio norte sempre o do balbucio eo da incoerncia ou inconsistncia terica No ser que o balbucio tericolatino-americano no incoerncia nem inconsistncia No ser que esse
31LIMA. Quem tem medo da teoria?,p. 194-195.32Cf. FARIA.A polmica do Estruturalismo ou Quem tem medo de teoria?.33ACHUGAR. Sobre o Balbucio Terico Latino-americano, p. 2.
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balbucio terico outro pensamento ou um pensamento outro? No ser quebalbuciar um discurso raro, um discurso orgulhosamente balbucianteNo ser que eu tenha escolhido balbuciar teoricamente como um modo demarcar e prestigiar meu discurso?34
Se se seguir uma comparao com os paradigmas tericos do Primeiro Mundo35
,o discurso latino-americano, do balbucio, poderia se formar teoricamente apenas em
relao ao discurso do Primeiro Mundo, isto , em um processo de competio entre
uma e outra teoria?
Nesse sentido, poder-se-ia pensar a respeito de dois textos otimistas de Silviano
Santiago diante dessa perspectiva: Apesar de Dependente, Universal e Ea de Queiroz,
Autor de Madame Bovary. Nesses textos, cada um sua maneira, o terico brasileiro
insiste que as teorias produzidas em pases colonizados so, de certa forma, uma
resposta ao colonizador e, mais importante, estariam mais completas, j que no s
teriam o contedo original da teoria (ou do texto), mas tambm uma rplica. Por causa
dessa lgica, por exemplo, O Primo Baslio de Ea de Queiros seria um livro melhor
e mais completo do que o de Flaubert. Falo de otimismo porque, para alm dos seus
pares do Terceiro Mundo, Santiago poderia estar ainda balbuciando para o Ocidente
colonizador. O terico brasileiro no nega as teorias colonizadoras, pelo contrrio, as
absorve e as transforma, de certa forma, cordialmente ou de maneira antropfaga.
Porm, a histria da teoria da literatura que retrata o dialogismo entre
colonizadores e colonizados revela que, quando o Terceiro Mundo absorve e argumenta
contra o primeiro, a ateno dada por este quele no passa de uma breve resposta,
como revela o clssico dilogo entre Fredric Jameson e Aijaz Ahmad, em que o peso
da palavra do colonizador ir sistematicamente desconsiderar os desconfortos
produzidos no colonizado. Na breve resposta que Jameson se dispe a dar a Ahmad,
ele transforma seu texto, tido como colonizador pelo indiano, em uma dramatizao
do cenrio intelectual estadunidense e sobre a alegoria literria e o papel poltico36
dos intelectuais, quase como uma performance da bondade de certos intelectuais em
valorizar os cultos fetichistas daqueles que seriam uniformemente, no importando
em que lugar do globo estejam ou que histria possuam, o outro. Caminhando pela
histria dos paradigmas tericos desenvolvidos no ocidente difcil perceber as urtigas
34ACHUGAR. Sobre o Balbucio Terico Latino-americano, p. 35.35Utilizo a distino entre primeiro mundo e terceiro mundo de forma provocadora, remetendo ao texto
de Jameson, Third-World Literature in the Era of Multinational Capitalism.36Esses so termos que Jameson utiliza no primeiro pargrafo de seu texto. Cf. Jameson. Uma BreveResposta.
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plantadas por tericos do Terceiro Mundo que no escrevem a partir do Primeiro
Mundo.
Aqui, talvez, possa ser pensada uma das questes propostas por Costa Lima: a
nossa incapacidade de ver que, tambm, estamos fazendo teoria. Nstor Canclini ao
discutir a definio de arte, chega a esta concluso: no haveria outra soluo a no ser
nos desligarmos de qualquer teoria universalmente vlida e nos resignarmos, como
relativismo antropolgico, a nomear como arte aquilo que fazem aqueles que se chama
ou so chamados de artistas37. Poder-se-ia parafrasear o antroplogo argentino
nomear como teoria aquilo que fazem ou fizeram aqueles que se chamam ou so
chamados de terico para definir a teoria, principalmente a do Terceiro Mundo em
relao ao do Primeiro? Enfim, ns assumimos que somos, tambm, tericos?
Se assumssemos que tambm fazemos teorias e que participamos da construo
dos paradigmas tericos mundiais (mesmo que com uma repercusso menor, mesmo
que de forma no colonizadora) o fato de produzir ou no teoria teria que ser reavaliado.
Primeiro, porque a relevncia terica deveria ser reorientada: no porque os
colonizadores no tm o mesmo apreo pelo conhecimento produzido pelos
colonizados, como estes teriam por aqueles, que faz com que exista mais teoria no
Primeiro Mundo. Segundo, porque a teoria desenvolvida no balbucio seria ela mesma
uma teoria, uma teoria-balbucio e no mais um balbucio terico. Se assumida a
perspectiva antropolgica defendida por Canclini possvel ser otimista como Santiago
ou Ahmad, diferente da perspectiva do embate terico daqueles que ocupam o lugar
privativo dos fabricantes de epistemologias para exportao, como Jameson parece
encarnar bem o personagem. O reconhecimento terico no passaria s pelo fato de
algum, de fora do contexto, considerar a teoria do Terceiro Mundo como teoria, mas,
tambm, por aqueles do Terceiro Mundo reconhecerem a si mesmos como tericos.
Ns, latino-americanos, nos consideramos tericos? nesse sentido que Achugar vai caminhar em seu texto: possvel propor o
balbucio terico como uma descrio do discurso terico latino-americano? Ou,
inclusive, como um descrio do discurso terico no euro-norte-americano ou, mais
ainda, como o discurso no-terico do Commonwealth38. Ainda, poderia acrescentar:
no seria melhor afirmar que nossa teoria formulada atravs de um balbucio e, por isso
mesmo, o reconhecimento desse balbucio j , em si mesmo, a afirmao de uma teoria?
37CANCLINI.A Sociedade Sem Relato, p. 59-60 [grifo meu].38ACHUGAR. Sobre o Balbucio Terico Latino-americano, p. 43.
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Achugar no chega realmente a concluir essa questo, mas aponta algumas
direes. Destaco algumas delas: na primeira, ele se inspira na crtica feminista,
particularmente em Nancy Hartsock, se perguntando quais so os temas polticos na
agenda dos acadmicos latino-americanos39; como se do as relaes de poder no
mbito latino-americano; quais so os povos sem histria, que seriam o futuro segundo
Cioran; e poder ser que o balbucio terico seja o lugar que o atual discurso ps-
colonial anglo-saxo reserva para o discurso colonial em outras lnguas40.
Mesmo encarando a teoria com a perspectiva de Canclini, e que ressoa em
Achugar, muitas perguntas permanecem. Mas importante ressaltar que essas duas
maneiras de perceber a teoria como um local de disputa de significao ou como
significao dentro de um relativismo antropolgico so posies distintas e no
complementares de entender a teoria. Ora, por um lado, temos uma teoria que ir se
construir, sobretudo, pela negao de outra e, por outro lado, teramos teorias diversas
que se refundariam em sua prpria significao. Porm, importante notar que aqui
pode haver um paradoxo: se no relativismo antropolgico de Canclini, teoria no seria,
tambm, a negao de outra teoria? Isso porque se estamos trabalhando com a
pluralidade, a prpria negao da pluralidade no pode ser excluda dessa definio
terica.
A afirmao de o que uma teoria e a prpria negao de o que uma outra
teoria, mesmo quando ela tenta afirmar o mximo de pluralidade, parece um
encaminhamento para estarrecimentos paradoxais. Nesse sentido, a teoria do Primeiro
Mundo e a do Terceiro Mundo se encontram. Mas a teoria da literatura ou a teoria do
cinema, portanto, poderiam ser pensadas como um paradoxo?
Definir o lugar da teoria do Terceiro Mundo no seria uma forma de definir
tambm o no lugar dessa teoria Canclini ainda ir afirmar: so os modos de pensar
os paradoxos que nos desconcertam quando um mundo acaba e outro mal se inicia41.Esta tese aposta no paradoxo de falar da teoria do Primeiro Mundo do ponto de vista do
Terceiro Mundo, mesmo sem privilegiar, necessariamente, a teoria local. Talvez aqui se
queira pensar no paradoxo das teorias, das crises, dos lugares de enunciao.
Entretanto, gostaria que esse no privilgio no fosse pensado como uma
presena fantasmtica que se oculta e se revela nos meus silncios retricos. Nesse
39ACHUGAR. Sobre o Balbucio Terico Latino-americano, p. 49.40ACHUGAR. Sobre o Balbucio Terico Latino-americano, p. 51.41CANCLINI.A Sociedade Sem Relato, p. 59-60 [grifo do autor].
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sentido, importante destacar que o estmulo para a discusso proposta nesta tese no
partiu do lugar de enunciao do Primeiro Mundo, mas de discusses que se
entrelaaram em um ambiente local, o Programa de Ps-graduao em Estudos
Literrios da FALE/UFMG. O estmulo para o estudo terico foi despertado desde o
meu curso de mestrado, na UFMG, por professores daqui e por textos produzidos no
Brasil. importante destacar que a fomentao e a inquietao terica partiram de
diversas obras, mas uma em especial merece destaque, o livro Critica Cult de Eneida
Maria de Souza. Foi neste livro que pude perceber que, sim, realizamos e discutimos
teoria no Brasil de uma forma to intensa quanto nas obras mais celebradas das teorias
hegemnicas que se tornaram paradigmas no mundo. Alm disso, os dilogos com os
professores e as disciplinas, do Ps-Lit, todas elas, suscitaram, cada uma a sua maneira,
essa espcie de vertigem terica. Aqui, tambm importante destacar o dialogo terico
de mais de dez anos que mantive com Leda Martins, uma mente brilhante sempre
disposta a estimular minhas inquietaes. Se no texto de 1975, de Costa Lima, ele
afirmava sobre uma dificuldade para o dilogo de praticantes de um discurso terico,
posso dizer que tive a sorte de ter encontrado esse espao ao longo de minha trajetria
acadmica.
Luiz Costa Lima volta, em 2013, questo do terico latino-americano com uma
verso semelhante a do seu texto da dcada de 190: um ensasta ou sobretudo um
pensador nacional s deixa de ser cercado de desconfiana quanto sua capacidade se
estiver vinculado a alguma corrente internacionalmente firmada, se possvel na moda,
ou se se apresentar como seu divulgador42. Entretanto, o terico brasileiro exclui a
preposio de nossa prpria percepo como tericos. Esse ocultamento revela que j
nos vemos como tericos ou que, ainda, no somos, de certa forma, independentes?
Esta tese se coloca, sem constrangimento, diante de paradigmas tericos
oriundos do Primeiro Mundo, acreditando que aqui se faz, sim, teoria. nesse sentidoque ser encaminhada a discusso da tese: um orgulho de balbuciar sobre os paradigmas
tericos que, de certa forma, nos afetam. Evidenciarei certas questes, certos lugares
comuns e certos problemas da teoria a partir desse lugar de enunciao latino-
americano. Acredita-se, pois, que essa leitura no melhor nem pior do que as
construdas nos lugares de hegemonia por ser escrita do Terceiro Mundo, por ser escrita
na marginalizada lngua portuguesa, ou por no tocar, diretamente, nas discusses
42LIMA.Frestas, p. 42.
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articuladas no Brasil e na Amrica Latina. Sigamos, pois, por essa vereda, que comea
na Rssia, atravessa a Europa e chega aos Estados Unidos, sempre com trilhas abertas
que chegam a quase todo o mundo.
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Captulo 1: O Formalismo Russo e as Teorias daMontagem Soviticas: Cincia e Cultura
O amor vem por princpio, a ordem por baseO progresso que deve vir por fim
Desprezastes esta lei de Augusto Comte
E fostes ser feliz longe de mimOrestes Barbosa,
Positivismo
Tudo se tornava algo diferente. Primeiro algodiferente de maneira imperceptvel, quando a coisaera vista s para si. Depois marcadamente diferente,quando era necessrio encontrar palavras paraaquilo, pois falvamos a respeito. Quando queremosser precisos na descrio, devemos encontrar algo nafrase que seja totalmente diferente para conseguirmosser exatos
Herta Mller,Sempre a Mesma Neve e Sempre o Mesmo tio.
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O Formalismo Russo a unio de dois grupos de estudo, o Crculo Lingustico
de Moscou e a OPOIAZ (Sociedade para o Estudo da Lngua Potica)43 e as Teorias
da Montagem Soviticas so tidos como os primrdios da moderna teoria literria e da
moderna teoria cinematogrfica. De certa forma, foi legado a essas correntes tericas o
statusde fundadores de uma abordagem do literrio ou do cinematogrfico que viria a
definir o que faria desses estudos um estudo terico. Ambas as teorias surgiram durante
o perodo revolucionrio sovitico, na dcada de 1910, e se tornaram correntes que
iriam influenciar boa parte da teoria desenvolvida ao longo do sculo XX.
Dali surgiram eminentes tericos como Viktor Chklovsky, Boris Eikhenbaum,
Roman Jakobson, Serguei Eisenstein, Lev Kuleshov e Dziga Vertov, entre outros. Dali,
tambm, parte a grande narrativa da teoria da literatura e da teoria do cinema. Essa
narrativa afirma que, ali, formulou-se pela primeira vez uma teoria que ultrapassava os
limites do subjetivo, que abandonava a biografia do autor, o historicismo e o
psicologismo at ento reinantes nos estudos literrios. Ali, tambm, pela primeira vez
se organizava uma teoria do cinema que no mais sucumbia a uma espcie de
bricolagem terica at ento praticada pelos estudos do cinema. E, o mais importante,
foi nessa Rssia revolucionria que se firmavam o estudo particular da literatura e o
estudo particular do cinema, com uma fronteira muito mais rgida do que at ento era
praticada. Entretanto, essa grande narrativa terica sobre o Formalismo Russo ou sobre
as Teorias da Montagem colocou um vu sobre a complexidade e as contradies dos
trabalhos desses russos, reduzindo o seu alcance e seu significado. importante, pois,
retomar algumas dessas afirmaes.
Para Marthe Robert, o que difere o Formalismo de outras abordagens da
literatura sua pretenso cincia e o fato de ser a primeira escola a levar a srio a
noo de teoria44. Terry Eagleton afirma que os formalistas russos, imbudos de um
esprito prtico e cientfico, transferiram a ateno para a realidade material do texto
literrio em si45. Dessa forma, esses tericos estariam preocupados com as estruturas
da linguagem e no com o que ela de fato poderia dizer46, tangenciando o contedo,
que no seria o foco. Para Eagleton, em sua essncia, o formalismo foi a aplicao da
43Alguns autores incluem tambm o Crculo de Mikhail Bakhtin nesse grupo dito Formalista. Aqui, nosfocaremos nos grupos que surgiram em meados dos anos de 1910 at 1920, ou, em outras palavras, ocrculo restrito Formalista, que veio, sim, estabelecer dilogos com Bakhtin, mas de uma forma muitomais indireta.44ROBERT.Romance das Origens, Origens do Romance, p. 22.45EAGLETON. Teoria da Literatura, p. 3.46EAGLETON. Teoria da Literatura, p. 4.
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lingustica ao estudo da literatura47.
Segundo Ren Wellek os formalistas russos argumentam, num contexto de
revolta, contra a crtica ideolgica dominante que os cerca, contra a ideia de 'forma'
como mero recipiente dentro do qual lanado o contedo j feito48. A revolta no se
daria apenas ao colocar a forma como mais importante que o contedo, mas que o
contedo no fosse mais importante que a forma. Wellek tambm afirma, na citao
acima, que o Formalismo reagia contra uma ideologia dominante. Qual seria ela Victor
Manuel de Aguiar e Silva afirma que, durante a poca positivista, no final do sculo
XIX, o conceito de literatura foi simplista e radicalmente suprimido49, criando uma
crtica literria dominante naquele tempo que seria bibliogrfica, historicista ou
psicologista.
Tzvetan Todorov, em A Herana Metodolgica do Formalismo, afirma que
o objetivo da pesquisa [formalista] a descrio do funcionamento dosistema literrio, a anlise de seus elementos constitutivos e a evidenciaode suas leis, ou, num sentido mais estreito, a descrio cientfica de um textoliterrio e, a partir da, o estabelecimento de relaes entre seus elementos. 50
nessa descrio cientfica de diferentes nveis fnico, morfolgico,
simblico e assim por diantee da interdependncia entre eles, que os formalistas iriam
se empenhar. Todorov enxerga nos formalistas uma definio de literatura comosistema de signos, um cdigo anlogo aos outros sistemas significativos51.
Alguns pontos so comuns nessas citaes pertencentes a crticos de vrias
origens e de abordagem tericas diversas. O que chama ateno prontamente o aspecto
cientfico do Formalismo Russo, isto , a tentativa de se criar uma cincia literria. Esse
aspecto corroborado pelo segundo destaque que podemos inferir dessas citaes: a
influncia lingustica. A influncia lingustica encontra-se entre aspas na frase
anterior porque Eagleton chega a postular uma aplicao lingustica. Um outro ponto
a utilizao de termos mais em voga em outras pocas que no so, necessariamente,
conceitos Formalistas, como signo, cdigo ou, mesmo, estrutura. Por ltimo, gostaria de
ressaltar a prpria noo de os Formalistas, que ajuda a disseminar a ideia de que teria
havido um grupo homogneo entre os tericos baseados em Moscou e os tericos
fixados em So Petersburgo.
47EAGLETON. Teoria da Literatura, p. 4.48WELLEK. Conceitos de Crtica,p. 65.49SILVA. Teoria da Literatura,p. 14.50TODOROV.A Herana Metodolgica do Formalismo, p. 31.51TODOROV.A Herana Metodolgica do Formalismo, p. 32.
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41
Seguirei um percurso inverso do proposto por tais autores. Irei dissociar o grupo
Formalista e analisarei separadamente a OPOIAZ e o Crculo Lingustico de Moscou.
Tambm questionarei a ideia de uma simples aplicao da lingustica nos estudos
literrios, delimitando o alcance nesses estudos, principalmente no que concerne
OPOIAZ, assim como refletirei sobre a aproximao dos formalistas com o positivismo
e, a partir disso, a possibilidade cientfica inaugurada por esses tericos.
Nesse sentido, importante ressaltar que, sim, os formalistas eram contra uma
crtica literria que no se apoiasse extensivamente sobre o texto. Refutavam
enxertamentos que explicassem, essencialmente atravs do contexto sociocultural ou da
psicologia do autor, o significado das obras. Por outro lado, ao contrrio do que afirma
Vtor Manuel de Aguiar e Silva, os formalistas no eram antipositivi