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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAISFACULDADE DE LETRAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS LITERRIOS

    Pedro Henrique Trindade Kalil Auad

    Teoria da Literatura e Teoria do Cinema: A Crise e o Fantasma

    Belo Horizonte

    2014

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    Pedro Henrique Trindade Kalil Auad

    Teoria da Literatura e Teoria do Cinema: A Crise e o Fantasma

    Tese de Doutorado apresentada ao Programa

    de Ps-Graduao em Estudos Literrios daFaculdade de Letras da Universidade Federalde Minas Gerais, como requisito para aobteno do ttulo de Doutor em Teoria daLiteratura e Literatura Comparada.

    rea de concentrao: Teoria da Literatura eLiteratura Comparada

    Linha de Pesquisa: Literatura, outras Artes eMdias (LAM)

    Orientadora: Prof. Dra. Leda Maria Martins

    Belo Horizonte

    Faculdade de Letras da UFMG2014

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    Ficha catalogrfica elaborada pelos Bibliotecrios da Biblioteca FALE/UFMG

    Auad, Pedro Henrique Trindade Kalil.A888t Teoria da literatura e teoria do cinema [manuscrito] : a

    crise e o fantasma / Pedro Henrique Trindade Kalil Auad. 2014.

    252 f., enc.: il.

    Orientadora: Leda Maria Martins.

    rea de concentrao: Teoria da Literatura e Literatura Comparada.

    Linha de pesquisa: Literatura, Outras Artes e Mdias.

    Tese (doutorado) Universidade Federal de Minas

    Gerais, Faculdade de Letras.

    Bibliografia: f. 234-248.

    1. Literatura Histria e critica Teses. 2. Cinema eliteratura Teses. 3. Teoria feminista Teses. I. Martins,Leda Maria. II. Universidade Federal de Minas Gerais.Faculdade de Letras. III. Ttulo.

    CDD: 809.93

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    Para Leda Martins,Carolina Macedo

    & Cristina Tolentino

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo professora Leda Maria Martins que, alm de ter me orientado de formaexcepcional neste trabalho, me acompanha h mais de dez anos em minha trajetriaacadmica. Sem o apoio e o suporte dela, desde os meus tempos de graduao, tenho

    certeza que no seria capaz de ter produzido este trabalho. Obrigado pelas cobranas,pelo rigor, pelo estmulo, pelas conversas, pelas ideias, pelo suporte, pelas inquietaes,por acreditar em mim. Que fique registrada minha profunda admirao, respeito ecarinho.

    Agradeo aos professores, coordenadores e funcionrios do Ps-Lit por proporcionaremtodas as condies para a boa realizao deste trabalho.

    Agradeo a New York University por ter me recebido durante o estgio sanduche,especialmente Professora Avital Ronell por me supervisionar e pelas importantescontribuies a esta tese, e Lindsay OConnor que esteve sempre disposta a ajudar em

    todo o processo do estgio.

    Agradeo CAPES - Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superiorpela bolsa concedida para a realizao deste trabalho e pela bolsa sanduche (PDSE) queme proporcionou o estgio nos Estados Unidos.

    Agradeo ao professor Marcelino Rodrigues da Silva por todo o apoio e confianadurante o meu doutorado.

    Agradeo aos professores Eneida Maria de Souza, Sandra Regina Goulart Almeida eCsar Geraldo Guimares por todos os apontamentos realizados durante o exame dequalificao que enriqueceram muito este trabalho.

    Agradeo minha esposa Carolina Macedo pelo incentivo e pacincia, pelos cafs econversas e, principalmente, por dividir to intimamente a vida comigo. Este trabalhoseria imensamente mais pobre sem sua companhia.

    Agradeo minha me Cristina, que sempre a primeira a acreditar em mim. Oscaminhos (e descaminhos) do estudo da literatura e do estudo do cinema foram abertospor ela, eu apenas os segui.

    Agradeo ao meu pai Cludio, por todo o suporte ao longo desses ltimos anos. Ao meuirmo Thiago (in memoriam) e minha av Azely (in memoriam).

    minha famlia mais recente: Dorinha, Mrcio, Guilherme e Erika.

    Agradeo Viviane Maroca e ao Lucas Morais pela correo desta tese.

    Agradeo aos amigos que decidiram compartilhar comigo a vida: Viviane Maroca,Rogrio Brittes, Ruth Beirigo, Bruno Paes, Fernando Pacheco, Davis Diniz, PedroCoutinho, Bruna Gisi, Rafael Laia, Tatiana Pequeno, Luisa Marques, Paulo Scarpa,Orlando Scarpa, Marina Gazire, Juliana Pereira, Flavia Mayer, Patrick Arley, Eduardo

    Jorge, Leonel Afonso, Jlia Moyses, Elias Gibran, Pedro Ribeiro, Luiz Flvio, JosAntnio, Andrea Regina, Carlos Frankiw, Marina Frana, Ana Carolina Antunes, Eliza

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    Albuquerque, Simone Carvalho, Nelson Freire, Mara Nassif, Lucas Morais, LeonardoBeltro, Claudia Wermelinger, Marina Lacerda, Maria Fernanda Moreira, Cntia Vieira,Julia Mesquita, Leandro Moura, Mirian Silveira, Miguel vila. Acredito que tem umpedacinho de cada um de vocs nessas mais de duzentas pginas.

    Agradeo, ainda, Chica, Pulp e ao Belinha por todo o ronronar, trilha-sonora destetrabalho.

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    The memory came faint and cold of the story Imight have told, a story in the likeness of my life,I mean without the courage to end or the strengthto go on.

    Samuel Beckett,The End.

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    RESUMO

    Esta tese tem como objeto de estudo a Teoria da Literatura e a Teoria do Cinema. Oobjetivo principal investigar o senso comum construdo a respeito dessas teorias edesmistificar certos preceitos que so reafirmados na contemporaneidade,principalmente em torno do discurso sobre a crise das teorias. So analisados trsgrandes blocos tericos: o Formalismo Russo e as Teorias da Montagem Soviticas;Roland Barthes e a revista francesa Cahiers du Cinema; as teorias feministas, tanto docinema, quanto da literatura. No primeiro bloco jogada luz sobre a peleja entre osdiscursos tericos que se querem como cientficos e aqueles outros discursos que sepretendem mais culturalistas. No segundo, discute-se a figura do autor e o seu oposto

    complementar, o leitor, e o embate entre esses dois lugares que se torna mais tensionadona Frana durante o ps-guerra. No terceiro bloco, a problemtica a respeito do cnone,da histria literria e da histria cinematogrfica, questionada sob o vis de uma teoriafeminista que coloca em jogo a representao e as ideologias. Por fim, analisadatambm a questo das ideologias dentro das teorias e a sua tradio inventada, para, da,se questionar os discursos sobre a suposta crise contempornea. Postulamos que a teoriano terminoumesmo com todo o discurso sobre o fim da teoria ou o momento ps -terico, mas se transformou e, tal como um fantasma, volta ao revir.

    Palavras-chave: Teoria da Literatura; Teoria do Cinema; Formalismo Russo; Teoriasda Montagem Soviticas; Roland Barthes; Cahiers du Cinema; Teoria Feminista;Cincia e Cultura; Autor e Leitor; Cnone e Histria; Fim da Teoria; TeoriaContempornea.

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    ABSTRACT

    This Ph.D. dissertation has as its object of study the Theory of Literature and the FilmTheory. The main objective is to investigate common sense built on these theories anddemystify certain precepts that are reaffirmed in contemporary times, especially aroundthe discourse about the theories crisis. Three major theoretical blocks are analyzed:Russian Formalism and Soviet Montage Theories; Roland Barthes and the Frenchmagazine Cahiers du Cinema; feminist theories, both of film and of literature. The firstblock is about the struggle between the theoretical discourses that wants itself asscientific and those other discourses that are intended more culturalist. Then, we discussthe figure of the author and its complementary opposite, the reader, and the clash

    between these two places becomes more strained in France during the postwar period.In the third block, the problem regarding the canon of literary history and film history isquestioned under the bias of a feminist theory that puts at stake the representation andthe ideologies. Finally, we also analyzed ideological problems of theories and theirinvented tradition, to thereafter questioning the contemporary discourses on the allegedcrisis. In a sense, the theory did not end - even with all the discourse about the "end" ofthe theory or about the post-theoretical moment - but turned into something differentand, as a ghost, back to revise.

    Keywords: Theory of Literature, Film Theory, Russian Formalism; Soviet MontageTheory; Roland Barthes; Cahiers du Cinema; Feminist Theory; Science and Culture,Author and Reader, Canon and History; End of the Theory, Contemporary Theory.

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    RESUMEN

    Esta tesis circunscribe su objeto de estudio en la Teora de la Literatura y la Teora delCine. El objetivo principal es investigar el sentido comum que ha sido construdo alrespecto de dichas teoras y desmitificar determinados preceptos reafirmados en lacontemporaneidad, principalmente en torno al discurso sobre la crisis de las teorias.Analisamos tres grandes blocos tericos: el Formalismo Ruso e las Teoras del MontajeSovitico; Roland Barthes y la revista francesa Cahiers du Cinema; las teorasfeministas, del cine y de la literatura. El primer bloco aclara la disputa entre losdiscursos tericos cuya orientacin es ms cientfica y aquellos discursos que sepretenden culturalistas. El segn bloco discute la figura del autor y su opuesto

    complementar, el lector, y el embate entre esos dos lugares que ha sido ms conflictivoen Francia durante la postguerra. El tercer bloco cuestiona la problemtica al respectodel canon de la historia literaria y de la historia de la cinematografa desde la perpectivade la teora feministas que viene a razonar la representacin y las ideologas. Por ltimo,se analiza tambin la cuestin de las ideologas dentro de la teora y su tradicininventada a fin de inquirir los discursos de la supuesta crisis contempornea.Postulamos que la teora no ha terminado apesar de todo el discurso sobre el fin dela teora o el momento post-terico -, sino ms bien que la teora ha sido transformaday, igual que un fantasma, retorna una vez ms.

    Palabras-clave:Teora de la Literatura; Teora del Cine; Formalismo Ruso; Teoras delMontaje Sovitico; Roland Barthes; Cahiers du Cinema; Teora Feminista; Ciencia yCultura; Autor y Lector; Canon y Historia; Fin de la Teora; Teora Contempornea.

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    LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1 -Po zakonu [1926], dirigido por Kuleshov e roteirizado pelo diretor e por

    Chklovsky. Atriz: Aleksandra Khokhlova.

    Figura 2 - Camponesas que representariam, tambm, Lenin, em Three Songs AboutLenin[1934], de Dziga Vertov.

    Figura 3 -Mr. West olha com admirao o Teatro Bolshoi enquanto se convence de quea Unio Sovitica melhor que os Estados Unidos, em The Extraordinary Adventures of

    Mr. West in the Land of the Bolsheviks[1924], de Lev Kuleshov.

    Figura 4 - Orson Welles, em Confidential Report [1955], filme que, segundo AndrBazin, apesar de ter mais traos autorais, no melhor do que Cidado Kane.

    Figura 5 - The Wind [1928] filme realizado nos Estados Unidos pelo sueco VictorSjstrm, com Lilian Gish como protagonista.

    Figura 6The Dinner Party, de Judy Chicago.

    Figura 7Do Women have to be naked to get into the Met. Museum?, 1985GuerrillaGirls.

    Figura 8 - Do Women have to be naked to get into the Met. Museum?, 2005 Guerrilla

    Girls.

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    SumrioIntroduo ..................................................... ................................................................. ........................... 14

    Crise ...................................................................................................... ................................................. 25

    Teoria no Terceiro Mundo ..................................................................................................................... 31Captulo 1: O Formalismo Russo e as Teorias da Montagem Soviticas: Cincia e Cultura ............ 38

    1. OPOIAZ e Crculo Lingustico de Moscou ............................................................. ........................... 45

    1.1. A influncia positivista ............................................................................................... ................ 54

    1.2. A influncia da lingustica .......................................................... ................................................ 57

    2. Duas definies de cinema: montagem e movimento ........................................................ ................ 65

    3. Conexes entre o Formalismo Russo e a Teoria da Montagem Sovitica ......................................... 72

    4. O Fim do Formalismo Russo ....................................................................... ...................................... 79

    5. Revisando os Prprios Conceitos ....................................................................................................... 86

    6. A Leitura Estruturalista e o Ressurgimento da Cincia Literria ....................................................... 887. Saindo do Laboratrio ............................................................. ........................................................... 95

    Captulo 2: Cahiers du cinema e Roland Barthes: Autor/Leitor ........................................................ 100

    1. Politique des Auteurs: os debates na Cahiers Du Cinma ............................................................... 105

    2. Roland Barthes: percurso da morte do autor ........................................................... ......................... 119

    3. Barthes em relao Cahiers du Cinema ........................................................................................ 128

    3.1. A fina distino entre Barthes e a Cahiers du Cinema ............................................................. 132

    4. Outras mortes ............................................................... ................................................................. ... 136

    Captulo 3: Teorias Feministas: Cnone e Histria, Ideologia e Representao ........................... ... 142

    1. A Histria (da literatura) sob uma nova perspectiva ........................................................................ 1462. Teoria do cinema feminista ........................................................................................................... ... 158

    3. Duas Vozes: Me and My Shadow, de Jane Tompkins e o conflito entre uma voz pessoal e uma vozacadmica .............................................................. ................................................................. .............. 169

    4. Uma questo, tambm, ideolgica ................................................................................................... 173

    5. Articulando a teoria feminista ............................................................................................ .............. 180

    Captulo 4: O Fantasma da Teoria ........................ ................................................................. .............. 187

    1. Tradio e Teoria ............................................................................................................................. 197

    2. A Crise Atual ................................................................................................................................... 208

    2.1. Quantos Somos........................................................... ......................................................... 2173. Fantasma da Teoria .......................................................................................................................... 221

    Concluso ............................................................................................................ .................................... 227

    Bibliografia ............................................................................................................................................. 235

    Filmografia ............................................................... ................................................................. .............. 250

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    Introduo

    Jurei mentiras e sigo sozinho / Assumo os pecados. /Os ventos do norte no movem moinhos./ E o que meresta s um gemido. / Minha vida, meus mortos,meus caminhos tortos / Meu Sangue Latino.

    Joo Ricardo e Paulinho Mendona(Secos & Molhados)

    Sangue Latino

    aqui te fao os relatos simplesdessas embarcaes perdidas no eco do tempocujos nomes e proveito de mercadorias

    ainda hoje transitam de solido em solido

    Al Berto

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    O que diro do mundo hoje os pesquisadores do futuro? O que, diante dos

    discursos eltricos, dos espaos fluidos, das redes, dos autores-redes, eles elegero

    como representativo? O que, das pilhas de papeis e do mar de bytes, ser resgatado para

    dizer o que se viveu no incio do sculo XXI? Quais sero as escolhas? Sero as grandes

    histrias ou as pequenas histrias? Quais msicas cantaro essa nossa poca? E filmes?

    Quais os documentos que revelaro nossas paixes? Quais imagens falaro dos nossos

    costumes? Como ser a batalha ideolgica da nossa poca, quando olhada pelo

    retrovisor? E as relaes entre naes, quando possvel pensar que, para os

    pesquisadores do futuro, a ideia de nao pode ser somente uma ideia do passado? O

    que o futuro reter de hoje? Como se classificar o nosso presente quando este for

    passado em algum lugar do futuro?

    Ser que algum recontar a histria de 2002, de 2006, de 2013, como Hans

    Ulrich Gumbrecht contou a histria de 1926, vivendo no limite do tempo Esse ttulo

    to sugestivo, como se o tempo tivesse um limite, como se no fosse ele mesmo o

    sentido do limite que escapa, da durao no mensurvel, como se no fosse a contagem

    do tempo, a sua delimitao, no mais do que uma conveno e uma formula para

    cuidar de colheitas e saber os horrio dos trens. O limite como paradoxo? O tempo se

    expande infinitamente como a fsica afirma sobre o espao, e que pode tambm se

    expandir ou retrair em nossos sentidos. possvel viver no limite do tempo, possvel o

    tempo ter um limite? Mesmo que tempo aqui seja entendido no como temporalidade,

    mas somente como momento histrico, como o incio do Memrias de um Sargento de

    Milcias, de Manuel Antnio de Almeida: Era no tempo do rei1? O que dever

    permanecer nesse/desse tempo E quando, como Slavoj iek, afirmam que se vive no

    fim dos tempos? possvel ter um fim do tempo se o prprio limite dele um

    paradoxo?

    Como fazer um biografema do nosso mundo contemporneo? Puxar uma linharevelar muitas possibilidades, e tantas outras possibilidades sero deixadas de lado.

    Tentar desvendar todas as linhas parece uma tarefa luntica, porque impossvel isso

    em um mundo em que, por minuto, so disponibilizados mais de 200 horas de vdeos na

    internet, por exemplo. impossvel acompanhar tudo o que acontece, tudo o que se

    registra, todos os que falam em todos os cantos do mundo. Tudo e todos, hoje,

    discursam, tudo e todos so partes e realizadores da histria do presente. No no sentido

    1ALMEIDA.Memrias de um Sargento de Milcias, p. 31.

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    que Hannah Arendt chamava a ateno, em Sobre a Revoluo, de que todo mundo quer

    fazer histria ou entrar pra histria, como se a salvao do presente fosse a

    imortalidade de papel, mas no sentido quase utpico, como naquele momento de

    esperana beckettiana: toda a humanidade agora se resume a ns, vamos fazer da

    melhor maneira possvel. possvel Como fazemos hoje a melhor maneira

    possvel? E os outros possveis da histria? E os outros possveis do presente?

    Porque o mundo complexo e intransigente. complexo porque, entre outros

    motivos, no possvel ver mais as coisas como se fossem isoladas. Ou ? possvel

    isolar uma parte no laboratrio e dissecar parte do mundo sem perceber a relao do

    laboratrio com resto do mundo, nem que essa relao seja ainda a da soleira, a do

    batente? E o mundo intransigente porque esse o que temos hoje, que, como

    correnteza, expande e carrega a histria e os homens. Mas, no futuro, ele ser s

    memria de esttuas que morrem? Ou ser recapitulado como na exposio

    Experimental Jet Set, que retoma obras de um ano especfico, 1993, para ler, de hoje,

    aquele momento histrico? Nossos objetos sero guardados? Sero os lixos eletrnicos

    ou sero os, cada vez mais crescentes, objetos de design Um objeto est mo rto

    quando o olhar vivo que se colocava sobre ele desapareceu. E quando ns

    desaparecermos, nossos objetos iro para l onde enviamos os objetos dos negros, para

    o museu, diziam Chris Marker e Alain Resnais, no filme Les statues meurent aussi de

    1953, sobre uma exposio de Arte Negra daquela poca na Frana.

    O que contar o nosso museu quando hoje mesmo possvel ter um museu de si

    mesmo, ao menos virtualmente, como no The Museum of Me, programado pela Intel, no

    qual, atravs de seus arquivos digitais, possvel simular salas de exposio que

    contam/recontam a sua vida; voc como curador de si mesmo. Essa palavra com dois

    sentidos, como tambm aquele capaz de curar a dor. Curar a dor de si mesmo: essa a

    esperana de hoje? Com tantos remdios psicotrpicos para aliviar a angstia, a tristeza,a insnia ou para regular a felicidade. Estamos mesmo esperando mais da tecnologia do

    que de uns dos outros, como sugere Sherry Turkle em Alone Together? As palavras que

    abrem o seu livro so: a tecnologia se prope como a arquiteta de nossas intimidades2.

    Curadoria da nossa prpria vida e s da nossa a proposta da tecnologia que cada

    vez se torna mais imperativa e mais imprescindvel em nossas vidas?

    2TURKLE.Alone Together, p. 1. [technology proposes itself as the architect of our intimacies] (traduominha. Todas as outras traduces que no tiverem indicao, foram realizadas pelo autor)

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    Mas e se essa tecnologia tambm ajudar a reunir pessoas, organizando

    movimentos como o que aconteceu no mundo rabe a partir de 2010? Adam Curtis,

    entretanto, nos lembra, em All Watched Over By Machines of Loving Grace, que o lugar

    vazio do poder no pode ser deixado vazio de ideias, sob pena de que velhas frmulas

    se repitam de maneira ainda mais desastrosa. Ou se a unio pela tecnologia para

    organizar um movimento como o Occupy Wall Street, em que pessoas foram para o

    corao financeiro do mundo para ocupar o Zuccotti Park e protestar contra a

    desigualdade social cada vez maior nos Estados Unidos? Ou a tecnologia, tambm, por

    outro lado, no serviu para criar grupos ativistas como o Anonymous ou contribuiu para

    que segredos de Estados possam ter chegado s mos dos cidados comuns, como fez o

    WikiLeaks? possvel que a tecnologia faa com que nos isolemos, mas tambm nos

    unamos; possvel que ela nos torne curador de ns mesmos, mas possvel tambm

    que uma legio de annimos ocupem virtualmente espaos outrora outorgados apenas a

    uma distinta classe poltica. Ou o mundo hoje uma reverberao dos anos de 1990 e

    seu reclaim the streets, quando vemos as grandes marchas de maio e junho de 2013 no

    Brasil?

    possvel, pois, pensar que a tecnologia est retroalimentando duas instncias

    distintas ou at mesmo paradoxais? Unio e solido? Ou uma inerente outra, como

    quando s percebemos que estamos sozinhos porque sabemos quando estamos em

    grupo, ou o que chamam de solido da multido? O carter blas da massa, como

    classificado por George Simmel, ou o velho e seu cachorro do filme neorrealista italiano

    Umberto D., ou os Sounds of Silence de Simon e Garfunkel? Esse duplo sentido das

    tecnologias recentes no seria s mais um retrato de nossas vidas desde a modernidade

    ou seria uma nostalgia retroalimentada permanentemente? Teramos nostalgia de uma

    poca que teramos, ao menos, menos nostalgia? Ou o problema justamente que

    estamos numa nova poca, numa nova cultura que pode ser chamada de esttica,

    como sugere3, tambm, Adam Curtis?

    Mas esta tese no uma espcie de futurologia do presente. As perguntas que

    evoco acima so perguntas que relembram, de certa forma, nosso presente. Emaranhado

    pelos fluxos temporais futuro do presente, retomando uma memria do presente , o

    passado tambm retorna e essas torrentes que emanam do presente recebem os visitantes

    3Cf. CURTIS.Adam Curtis: We don't read newspapers because the journalism is so boring.

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    do passado. Esse passado que, de certa forma, continua moldando nosso presente e que

    moldar tambm o futuro.

    No filme Robocop, de Paul Verhoeven, quando o policial Murphy baleado e

    transformado em uma espcie de ciborgue o Robocop , uma memria artificial

    implantada. Essa memria objetiva que ele no se lembre do passado, de sua famlia e

    de como ele se tornou esse meio-humano, meio-rob. Mas a memria de Murphy volta

    e, no final, quando perguntam o seu nome, ele no diz o nome j popular Robocop,

    mas o seu antigo/verdadeiro nome: Murphy. A fora policial que iria guiar o futuro

    iluminada pela memria do antigo policial, tudo isso centrado no presente daquela

    Detroit violenta e corrompida. A lio que parece ficar : s se salva o presente se se

    salva no s o futuro, mas tambm o passado.

    Nosso presente, contudo, de difcil assimilao. Como questionado acima, o

    que ficar do hoje se ainda hoje no sabemos o que no devemos abandonar ou, em

    outras palavras: o que o inegocivel do nosso presente? Talvez um dos textos mais

    importantes de hoje, que reflete sobre a lgica do que contemporneo, seja de Giorgio

    Agamben: O que o contemporneo?. Neste, o filsofo italiano ir afirmar:

    A contemporaneidade, portanto, uma singular relao com o prprio tempo,

    que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distncias; mais precisamente,essa a relao com o tempo que a este adere atravs de uma dissociao eum anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a poca,que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, no socontemporneos porque, exatamente por isso, no conseguem v-la, nopodem manter fixo o olhar sobre ela.4

    Nesse sentido, seguindo os rastros de Agamben, poder-se-ia afirmar que esta

    uma tese que tratar dos fenmenos contemporneos, mas no no sentido de que ir

    tratar somente de assuntos do presente, mas por ter, justamente, esse descolamento ou

    falta de aderncia com o presente. O assunto geral desta tese so a Teoria daLiteratura e a Teoria do Cinema. Os assuntos do presente da teoria, pois, sero

    analisados por uma tica anacrnica. Em outras palavras, o pacto com o presente aqui

    assumido justamente por sua dissociao a ele5.

    4AGAMBEN. O que o contemporneo?, p. 59. [grifos do autor]5Ou, ainda, como afirma Carlo Ginzburg: no falarei da atualidade. s vezes preciso se subtrair aorumor, o rumor incessante das noticias que nos chegam de toda parte. Para compreender o presente,

    devemos aprender a olh-lo de esguelha. Ou ento, recorrendo a uma metfora diferente: devemosaprender a olhar o presente distncia, como se o vssemos atravs de uma luneta invertida. No final aatualidade surgir de novo, porm num contexto diferente, inesperado (GINZBURG, 2014, p. 13).

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    Mas do que esta tese trata? Uma pergunta que se inscreve no presente poderia

    ser a resposta mais fcil: o que pode a teoria hoje? Entretanto, essa pergunta estaria

    ancorada nesse hoje da pergunta, nesse hoje que se parece muito mais com um presente

    do que com algo contemporneo. Sendo assim, torna-se necessria uma mudana de

    foco: no o que a teoria pode hoje, mas o que a teoria, em sua histria, principalmente

    a partir do sculo XX, pode nos dizer de hoje.

    Para isso, inevitvel que se olhe para trs, para essa teoria do passado que nos

    chega aqui no presente e que, doravante, ir fazer parte do que ajuda a projetar um

    futuro: s se poder colher perguntas do hoje e do amanh se formos contemporneos,

    no sentido que Agamben oferece. Nesse sentido, olhar para o passado da teoria, tanto do

    cinema quanto da literatura, se oferece como o processo mais substancial para

    entendermos a teoria contempornea.

    Mas, aqui, enfrentamos um problema. Muito do olhar lanado para o passado da

    teoria se constri a partir de uma histria construda da teoria, isto , temos que

    enfrentar uma histria da teoria que comeou a se formar nos ltimos cinquenta ou

    sessenta anos. Temos ao menos duas grandes narrativas construdas das teorias: uma

    escrita por um ou poucos autores uma espcie de traduo e aquelas que do voz

    teoria por meio de antologias dos textos mais importantesuma espcie de arquivo. Do

    primeiro grupo, pode-se destacar Theory of Literature de Austin Warren e Ren Wellek

    (1949); Teoria da Literatura (1967) de Vitor Manuel de Aguiar e Silva; Literary

    Theory: An Introduction (1983) de Terry Eagleton; Literary Theory: A Very Short

    Introduction (1997) de Jonathan Culler; Literary Theory: A Practical Introduction

    (1999) de Michael Ryan; Theory of Literature (2012) de Paul H. Fry; da teoria da

    literatura e Film and Theory: An Anthology (2000) de Robert Stam e Film Theory and

    Criticism: Introductory Readings (2004) de Leo Braudy e Marshall Cohen, da teoria do

    cinema. Do segundo grupo h, por exemplo, da teoria da literatura, The NortonAnthology of Theory & Criticism (2001), organizado por Vincent B. Leitch e Teoria da

    Literatura em Suas Fontes (2002), organizado por Luiz Costa Lima e, da teoria do

    cinema, A experincia do Cinema (1983), organizado por Ismail Xavier ou o Teoria

    Contempornea do Cinema (2005), organizado por Ferno Pessoa Ramos.

    Essas obras so, sem dvida, de grande valia para os estudos literrios e para os

    estudos cinematogrficos, principalmente se tomados como referncia, e no como

    imanncia, afinal, elas so mesmo, principalmente as da segunda categoria, obras dereferncia. Contudo, como em todas as narrativas histricas, h uma tendncia de

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    cristalizao de certas interpretaes e certas selees de textos que poderiam entrar

    nessa espcie de cnone terico6. O problema disso que, em alguns casos, se tornam

    seletos certos pontos de vista, desenvolvendo, assim, uma criao de repetio de

    argumentos e a construo de um senso comum da teoria.

    Ligar o senso comum teoria foi algo pensado por Antoine Compagnon. No

    caso desse terico belga, ele acredita que a teoria teria como dever, de certa forma,

    enfrentar a ideia de senso comum que as pessoas tm da literatura. Mas ele alerta que

    no sua inteno criar o binarismo teoria e senso comum: Trata-se de arrombar essas

    falsas janelas, essas contradies traioeiras, esses paradoxos fatais que dilaceram o

    estudo literrio. Trata-se de resistir alternativa autoritria entre a teoria e o senso

    comum, entre tudo ou nada, porque a verdade est sempre no entre- lugar7. Ora, o que

    entra em jogo aqui praticamente uma dialtica entre um estudo especializadoa teoria

    e o discurso da sociedadesenso comum.

    Esta tese, entretanto, no pretende revisar ou reinterpretar a obra de Compagnon.

    O que nos interessa aqui que, se a teoria teria, de certa forma, uma obrigao de

    enfrentar o senso comum, no teria ela tambm, contemporaneamente, a necessidade de

    enfrentar o senso comum da prpria teoria? No o caso aqui, tampouco, de prever um

    novo binarismo no lugar do que o prprio Compagnon refuta, mas de colocar a teoria

    diante da teoria ou, em outras palavras, pensar teoricamente contra a teoria senso

    comum ou, ainda, colocar o discurso especializado diante do discurso especializado que

    se automatizou. Como ser visto, o senso comum da teoria entranha at mesmo naquele

    que afirma que a teoria deveria se afastar desse lugar, isto , o prprio Compagnon faz

    uso de argumentos senso comum sobre algumas teorias como o caso de sua

    explanao sobre o Formalismo Russo.

    O que guiar esta tese, portanto, ser, a partir desse lugar contemporneo,

    questionar lugares senso comum da teoria. Em outras palavras, a hiptese geral da tese que as narrativas construdas acabaram por cristalizar certos discursos da teoria

    atravs da repetio de certos argumentos. Espera-se demonstrar que essas construes

    histricas da teoria muitas vezes no do ateno para as contradies internas que, de

    certa forma, interpelam o senso comum. Nesse sentido, esta tese espera evidenciar

    certos elementos menos considerados das teorias que tornaram certas leituras parciais.

    6Ou, ainda, como afirma Eneida Maria de Souza: Na busca de explicaes plausveis para o presente, a

    valorizao de um passado sem brechas ou rasura complica e falseia a lembrana, com vistas a reterapenas o que a memria soube guardar de bom (SOUZA, 200a, p. 133).7COMPAGNON. O Demnio da Teoria, p. 2.

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    Este trabalho, obviamente, no espera lanar luzes sobre todas as teorias ou sobre todas

    as possibilidades de uma determinada teoria, mas pretende mostrar outras leituras

    possveis, no totalizantes, das teorias. Em suma, almejo encerrar certas repeties e

    essencialismos que so, no mximo, leituras muitas vezes parciais e interessadas. Por

    outro lado, irei destacar certos pontos que so, sem duvida, uma escolha interessada de

    minha parte, isto , alguns autores, alguns conceitos e algumas obras que auxiliaro

    minha argumentao. O que se espera, pois, no totalizar, encerrar as discusses sobre

    as teorias aqui estudadas, mas sair do senso comum.

    Por outro lado estamos atentos para o fato de que hoje h uma grande

    dificuldade em se construir a narrativa do presente da teoria. Este trabalho, como um

    trabalho contemporneo no sentido de Agamben , s assim o ser se conseguir

    estabelecer determinada ligao com o presente. Mas hoje a teoria est em crise, o que

    afirmam alguns autores. Alguns outros no utilizaro a palavra crise, mas indicaro algo

    como depois da teoria ou ps-teoria. Acredita-se, pois, que esse resgate do contraditrio

    das teorias ajuda a iluminar o prprio momento da, ao menos suposta, crise

    contempornea. Em outras palavras, possvel escavar elementos da crise

    contempornea no prprio fundamento das antigas teorias que j no despertam os

    nossos amores, para retomar as palavras da introduo do livro de Compagnon.

    Avital Ronell faz uma observao curiosa ao problematizar nossos modelos

    tericos mais influentes do sculo XX: os axiomas cientficos mais autorizados so,

    nos dois casos [cincia de Freud e cincia de Popper], coassinados por um insight

    potico8. Tanto Freud quanto Popper foram estimulados a desenvolver suas teorias a

    partir de alguma propenso literria. Aqui, tomo as palavras do escritor portugus

    Gonalo M. Tavares:

    Observar pelo canto do olho , em cincia, comear a elaborar a hiptese.O que observado pelo centro do olho o evidente, o bvio, aquilo que partilhado pela multido.Na cincia, como no mundo as invenes, observar pelo canto do olho ver opormenor diferente, aquele que o comeo de qualquer coisa designificativo.Observar a realidade pelo canto do olho, isto : pensar ligeiramente ao lado.A isto chama-se criatividade. Daqui saram todas as teorias cientficasimportantes9.

    8RONEL. The Test Drive, p. 33. [the most authoritative scientific axioms are, in both cases, cosigned bypoetic insight]9TAVARES.Breve Notas sobre cincia, p. 5.

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    Para este trabalho foram escolhidos trs momentos fundantes tanto da teoria da

    literatura quanto da teoria do cinema, que se tornaram paradigmas tericos para boa

    parte do ocidente, para esse olhar pelo canto do olho: Formalismo Russo e Teoria da

    Montagem Sovitica; Estruturalismo e Teoria do autor no cinema esta visa as

    elaboraes da revista Cahiers du Cinema ; e as teorias Feministas do cinema e da

    literatura, especialmente aquelas dos anos de 1970. Esses trs momentos, como ser

    visto, so momentos de insurgncia terica e que, de certa forma, ajudam a responder

    problemas contemporneos das teorias ou mesmo de certa crise da teoria. Espera-se

    conseguir lanar novas luzes sobre essas tendncias crticas ou, ao menos, complexificar

    ainda mais as propostas tericas desenvolvidas pelos tericos desses movimentos,

    afastando uma leitura que se tornou senso comum dessas teorias.

    Cada um desses blocos tericos ser responsvel por ajudar a pensar sobre

    problemas que se colocam para a nossa contemporaneidade. No primeiro deles

    Formalismo Russo e Teoria da Montagem Sovitica refletirei sobre o binarismo

    incandescente atual, que insiste em distinguir cincias positivas (empricas, exatas, etc.)

    e estudos da cultura (cincias humanas, filosofia, etc.). Nesta tese nomearei os polos

    desse binarismo simplesmente de cincia e cultura. Dessa forma, espera-se enfrentar

    tanto o senso comum atribudo funo dos estudos da cultura quanto a uma parte do

    senso comum que os ope a estudos mais ou menos centrados no texto literrio.

    O segundo bloco se centrar nas questes de autor e autoria. Nos anos de 1950 e

    de 1960, na Frana, essa reflexo ganha fora em polos antagnicos: por um lado, vai se

    desenhando a morte do autor pela teoria da literatura, por outro, vai surgindo a eminente

    figura do autor no cinema, principalmente atravs da politique des auteurs. O senso

    comum a ser enfrentado aqui a ideia do autor no cinema, que foi se cristalizando sem

    se levar em conta as prprias contradies internas nessa formulao. Ainda, espera-se

    notar que a morte do autor, propagada por Roland Barthes, no uma morte da autoriaou do escritor, mas a tentativa do fim derradeiro da aura artstica.

    O terceiro e ltimo bloco a ser analisado ser o da Teoria Feminista. Esse tpico

    importante porque, sendo um dos principais influxos nos Estudos Culturais, essa

    teoria a primeira grande teoria que ir se afastar do ideal lingustico da teoria da

    literatura preponderante at ento. A tradio terica feminista vista, contudo, como

    aquela primeira responsvel por dissolver o objeto literrio ou cinematogrfico ,

    quando, na verdade, o objeto ainda se encontra ali, e atravs dele que sero discutidasteoricamente as escolhas das histrias literrias e das histrias cinematogrficas. As

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    teorias feministas, sem dvida, so uma das principais vtimas do senso comum da

    teoria, que reduzem o alcance dessas teorias e so julgadas ferozmente, como veremos,

    por um vis ideologizado e no terico.

    No ltimo captulo da tese irei refletir sobre essas questes no mais isolando

    esses blocos. Refletirei sobre as formulaes ideolgicas dessas teorias, sobre as

    tradies inventadas da teoriaque faro muito mais sentido caso sejam chamadas de

    contratradies inventadas , sobre o prprio modelo da crise atual terica e sobre a

    possibilidade de se teorizar contempornea.

    Raymond Williams, em entrevista a respeito do seu livro Cultura e Sociedade,

    ir falar sobre o dilema enfrentado na escolha de como abordar o problema que se

    props a estudar:

    Eu me perguntava se deveria escrever uma crtica daquela ideologia demaneira completamente negativa, algo que considerei fazer em determinadomomento, ou se o caminho correto seria tentar recuperar a complexidade realda tradio que havia sido confiscada, de modo que a apropriao pudesse serapreciada pelo que ela era de fato10.

    De certa forma, esse dilema tambm cercou esta tese. Por um lado, indicar os

    interesses de certas leituras senso comum11 e dos motivos ideolgicos por trs delas

    parecia, tambm, uma possibilidade de trabalho. Mas isso resultaria em um trabalhomenos propositivo em relao ao que pretendo realizar, pois indicar a complexidade e as

    contradies internas da prpria teoria ajuda a formular no s uma crtica a certas

    leituras estreitas como tambm a deslocar a lupa h muito tempo estacionada em alguns

    aspectos da teoria. Mas, ao longo da tese, esses motivos ideolgicos no sero deixados

    de lado, sendo discutidos em um sentido propositivo e no condenatrio.

    A citao de Raymond Williams, e tambm a questo da ideologia, pode fazer

    parecer que este trabalho um trabalho marxista ou com um vis acentuadamentemarxista esse no caso. Avital Ronell ir confessar, em Losers Sons, que,

    frequentemente, ela perpassa por muitas identificaes que vo variando ao longo do

    tempo: Eu fui Derrida, eu fui Lacoue-Labarthe, Kofman, eu fui Pynchon e Rousseau,

    eu nunca no sou Nietzsche, eu fui Acker e Kleist, eu era Beckett quando me

    10WILLIAMS.A Poltica e as Letras, p. .11Essas leituras senso comum sero indicadas em cada um dos captulos.

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    transformei em Bettina von Arnim e uma vez eu fui Aretha Franklin, mas isso uma

    outra faixa12.

    De certa forma, pode-se dizer que meu processo de assimilao terica ao longo

    dos anos se formaliza nesta tese. Apesar de ter o seu quinho oriundo de Marx, ela

    tambm ir apresentar reflexes que advm de teorias como as ps-estruturalistas, as

    estruturalistas, as formalistas, as feministas, a teoria queer, alm de outras reas do

    conhecimento como a filosofia, a sociologia e a antropologia. Um marxista mais

    clssico como Carlos Guilherme Mota, autor do fundamental Ideologia da Cultura

    Brasileira (1933-1974), por exemplo, poderia me recriminar por misturar to diferentes

    abordagens em um mesmo trabalho13. Mas, aqui, pretendo aproveitar essas diferentes

    abordagens acreditando que a teoria deveria ser menos um campo de batalha 14 e que

    toda abordagem oferece aspectos positivos. Enfim, trata-se de querer extrair o que h de

    melhor nas teorias, e no focar nos problemas que elas podem, eventualmente, possuir.

    Por outro lado, este trabalho poderia ser inserido em um espectro da crtica

    cultural, no sentido que Judith Butler d a esse conceito: expor os atos contingentes

    que criam a aparncia de uma necessidade natural, tentativa que tem feito parte da

    crtica cultural pelo menos desde Marx15. Porm, aqui, no digo apenas de uma

    necessidade natural, mas daquilo que tido como naturalizado pela histria da teoria da

    literatura e pela histria da teoria do cinema.

    Nesta tese a teoria da literatura e a teoria do cinema so utilizadas em

    comparao, uma espcie de teoria comparada que poderia se assemelhar com a

    literatura comparada. Se esta disciplina enriqueceu muito os estudos da literatura,

    espera-se que minha proposta tambm possa ajudar a ampliar o alcance de ambas as

    teorias. Dito isso, importante notar que a comparao entre essas duas teorias se d

    muito mais em uma perspectiva metodolgica do que terica. De certa forma, o

    anacronismo dos estudos das teorias aqui proposto subsidiado pela diacronia em quecompararei as teorias. Em outras palavras, mesmo que, a partir do presente, se volte ao

    passado, quando me debruar sobre os blocos de estudos aqui propostos estes

    apresentaro uma anlise de teorias pertencentes a uma mesma poca histrica.

    12RONELL. Losers Sons, p. xix. [I have been Derrida, I have been Lacoue-Labarthe, Kofman, I havebeen Pynchon and Rousseau, I am never not Nietzsche, I have been Acker and Kleist, I was Beckett whenI turned into Bettina von Arnim and once I was Aretha Franklin, but thats another track] 13 Essa mistura terica algo que ele critica neste livro citado. Cf. MOTA. Ideologia da Cultura

    Brasileira (1933-1974).14Essa espcie de campode batalha terico um problema muito profundo que estabelece uma srie dequestes que ultrapassam a prpria teoria, como Pierre Bourdieu esclareceu emHomo Academicus.15BUTLER.Problemas de gnero, p. 59.

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    Porm, antes de adentrar na prpria discusso terica, torna-se necessrio um

    pequeno desvio para tratar justamente do que chamo aqui de crise e, tambm, para

    refletir um pouco sobre as proposies tericas a partir do Terceiro Mundo.

    Crise

    A palavra crise, tantas vezes utilizada pela histria, remete a diversos percursos

    do pensamento ocidental, mas tambm bastante usual no vocabulrio cotidiano. Nesse

    registro, ouvimos falar de crise dos mais diversos tipos: crise econmica, crise

    energtica, crise ambiental, crise criativa, um time de futebol que passa por uma crise,

    crise de meia-idade, crise em um relacionamento entre duas pessoas, dois grupos, duas

    instituies, crise poltica e assim por diante. H tambm momentos clssicos dafilosofia e das cincias humanas em que se fala em crise. Por exemplo, Marx e Engels

    descreviam que o comunismo iria se tornar inevitvel pelo carter do capitalismo, que,

    em sua prpria formulao, levaria sempre a crises econmicas, como a de 1929 ou a

    que ainda enfrentamos, iniciada em 2008. Uma crise que se aproxima mais do conceito

    utilizado por essa tese , entretanto, uma pouco menos famosa: a crise da filosofia e das

    cincias tal como concebida por Edmund Husserl em 1936, em seu livro The Crises of

    European Sciences and Transcendental Phenomenology. importante lembrar queHusserl j havia apresentado outra crise, quando introduzia a fenomenologia, em seu

    livro, Phenomenology and the Crisis of Philosophy, de 1911, em que defendia uma

    filosofia to rigorosa quanto uma cincia.

    A palavra crise vem do grego Krisis (), e nessa lngua coexistiam ao

    menos dois sentidos. O menos utilizado deles o sentido de julgamento, de uma opinio

    para distinguir o certo ou o errado, o justo do injusto. Nesse sentido, krisis se

    aproximaria de crtica, krinein, do grego e do critica, do latim. nesse sentido que, porexemplo, um perodo crtico poderia se aproximar de um perodo em crise. O outro

    significado o de um momento de separao, de diviso, e pode tambm significar

    uma disputa ou peleja, uma diviso da unidade original16. Esse sentido de crise seria

    um sentido pessimista, para Husserl, j que ele pressuporia diferentes grupos de cincias

    16BUCKLEY. Husserl, Heidegger and the crisis of philosophical responsibility, p. 9. [can also mean adispute or quarrel, a dividing of an original unity].

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    lidando com diferentes reinos da realidade ou, at mesmo, engajados em uma querela

    pelos mtodos e aproximaes ao mundo17.

    Essa crise, analisada por Husserl em 1936, se daria por causa da falncia do

    objetivo inicial da cincia: prover um conhecimento do mundo universal e

    unificado18. No que, para o filsofo alemo, no deveria haver um diviso entre as

    cincias, mas em ordem de ser realmente cientfico, h de se manter algum tipo de

    unidade19. Mas no s negativamente que se poderia pensar em crise. possvel

    tambm perceber uma conotao otimista, caso a crise seja entendida no sentido de que

    uma deciso a interrupo de uma possibilidade e promoo de outra20. Husserl,

    entretanto, ir descrever uma crise como uma fissura, ou mesmo abismo, entre as

    cincias humanas e as cincias naturais. R. Philip Buckley, ao analisar os trabalhos do

    filsofo alemo, ir resumir essa problemtica como crise como separao21.

    Mas essa separao e a vontade de perseguir uma verdade universal implicam

    uma srie de problemas. Logo no incio de The Crises of European Sciences and

    Transcendental Phenomenology, Husserl coloca as questes que julga pertinentes e ir

    comear o seu trabalho consciente do carter controverso de seu estudo:

    Eu espero que neste lugar, dedicado como as cincias, o prprio ttulo

    dessas comunicaes, A Crise das cincias europeias e a psicologia irincitar controvrsia. A crise da nossa cincia como tal: podemos falarseriamente disso? No essa conversa, ouvida to constantemente nessesdias, um exagero? Afinal de contas, a crise de uma cincia indica que nadamais que o seu carter cientfico genuno, toda a maneira pela qual formulaseu objetivo e desenvolveu uma metodologia para isso, se tornouquestionvel. Isso pode ser verdade na filosofia, que no nosso tempo ameaasucumbir ao ceticismo, irracionalismo e ao misticismo. O mesmo pode serdito da psicologia, na medida em que ela ainda realiza reivindicaofilosfica mais do que meramente aguarda um lugar entre as cinciaspositivas. Mas como podemos falar diretamente e de maneira minimamentesria de uma crise nas cincias em geral isto , tanto das cincias positivas,incluindo a matemtica pura e as cincias naturais, que nunca deixaram de

    ser admiradas como modelos de disciplinas cientficas rigorosas e de grandesucesso? Para ter certeza, elas provaram ser mutveis no estilo total de seussistemas de construo terica e metodologia. S recentemente elassuperaram, nesse sentido, uma paralisia arriscada, sob o ttulo de fsica

    17BUCKLEY.Husserl, Heidegger and the crisis of philosophical responsibility, p. 9. [realm of reality orperhaps even engaged in a quarrel over methods and approaches to the world].18 BUCKLEY. Husserl, Heidegger and the crisis of philosophical responsibility, p. 9. [to provideuniversal, unified knowledge of the world].19BUCKLEY.Husserl, Heidegger and the crisis of philosophical responsibility, p. 9. [in order to be trulyscientific, must be maintained in some sort of unity].20BUCKLEY.Husserl, Heidegger and the crisis of philosophical responsibility, p. 9. [in the sense that a

    decision is the cutting off of one possibility and the promoting of another].21 BUCKLEY. Husserl, Heidegger and the crisis of philosophical responsibility, p. 10. [crisis asseparation].

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    clssicarisco, isto , a suposta consumao clssica do estilo confirmado desculos.22

    A prpria crise, para Husserl, significaria que o carter cientfico, o objetivo e a

    metodologia das cincias e da filosofia se tornaram questionveis. A psicologia aqui

    apareceria tambm como possvel integrante do quadro crtico, j que ainda aguardaria

    e at hoje, por certos setores, ainda aguarda um lugar entre as cincias ditas

    positivas.

    A questo colocada por Husserl se seria possvel pensar em uma crise que

    fosse coincidente entre as reas de conhecimento acima, isto , as cincias positivas,

    sejam matemtica pura ou cincias naturais, e a filosofia. O filsofo alemo entende

    que, ao longo do tempo, as cincias positivas se transformaram, construram modelos

    tericos e metodolgicos, e evoluram. Com o prprio desenvolvimento dessas teorias e

    com os avanos que conquistaram, seria possvel falar de uma crise? Ela estaria

    ocorrendo somente nas cincias exatas, somente na filosofia ou em ambas?

    A crtica de Husserl ao carter positivista que a cincia tomou em anos

    anteriores, principalmente a partir de meados do sculo XIX, sendo, portanto, uma

    critica antipositivista. Nesse sentido, ele afirma que o problema dessa abordagem

    cientfica, ao abandonar o lado filosfico da cincia, acabou por criar uma espcie de

    alienao das pessoas que dissociaram a cincia e a existncia: cincias de mentalidade

    meramente factuais produzem pessoas de mentalidade meramente factuais23. Nessa

    perspectiva que se inscreveria o problema que deriva da influencia positivista: a crise

    do esprito europeu.

    O filsofo alemo ir questionar, pois, o que a cincia que emergiu do

    positivismo tem a ensinar para a humanidade sobre os assuntos da liberdade e da

    22HUSSERL. The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology, p. 3-4. [I expect that

    at this place, dedicated as it is to the sciences, the very title of these lectures, The Crisis of EuropeanSciences and Psychology will incite controversy. A crisis of our sciences as such: can we seriously speakof it Is not this talk, heard so often these days an exaggeration After all, the crisis of a science indicatesnothing less than that its genuine scientific character, the whole manner in which it has set its task anddeveloped a methodology for it, has become questionable. This may be true of philosophy, which in ourtime threatens to succumb to skepticism, irrationalism, and mysticism. The same may hold for

    psychology, insofar as it still makes philosophical claims rather than merely wanting a place among thepositive sciences. But how could we speak straightforwardly and quite seriously of a crisis of the sciencesin general that is, also of the positive sciences, including pure mathematics and the exact naturalsciences, which can never cease to admire as models of rigorous and highly successful scientificdiscipline To be sure, they have proved to be changeable in the total style of their systematic theory -

    building, and methodology. Only recently they overcame, in this respect, a threatening paralysis, underthe title of classical physics threatening, that is, as the supposed classical consummation of the

    confirmed style of centuries]23HUSSERL. The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology, p. 6. [merely fact -minded sciences make merely fact-minded people]

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    existncia. Para Husserl, as cincias dos corposas exatas, em sua poca, nada mais

    falariam sobre a condio humana. O mesmo aconteceria com as cincias humanas, j

    que nelas teria desaparecido o horizonte da historicidade, e os acadmicos, em busca da

    exatido, cuidadosamente excluem todas as posies valorativas, todas as questes de

    razo ou desrazo dos assuntos humanos e suas configuraes culturais24. Dessa forma,

    o filsofo alemo alerta, insistentemente, para o desenvolvimento de cincias que nada

    teriam a ver com a vida das pessoas ou com as questes da prpria existncia na terra e,

    ademais, ele acrescenta que as configuraes culturais foram solapadas das prticas

    cientficas25.

    Ao tomar o objetivismo como princpio e os fatos como verdade inelutvel, essa

    ideia de cincia seria um conceito-resduo porque teria sido deixada de lado a razo que

    deveria guiar os avanos do conhecimento e da civilizao. Existiria, pois, um contraste

    entre a ideia de cincia, de filosofia e da razo do Renascimento e do Sculo das Luzes

    e a ideia de cincia e de filosofia do incio do sculo XX. A consequncia dessa

    mudana, segundo Husserl, foi uma mudana peculiar da maneira de pensar no todo. A

    filosofia se tornou um problema para ela mesma, a princpio, compreensivelmente, na

    forma da [o problema da] possibilidade de uma metafsica; e, prosseguindo com o que

    falamos anteriormente, isso coloca em questo implicitamente o significado e a

    possibilidade de todo o problema da razo26.

    A razo, pois, fora deixada de lado, at mesmo pela filosofia que, ao invs de

    perseguir a verdade, teria passado a se autoexaminar, a tentar justificar a sua prpria

    existncia. De certa forma, o que aparentemente afirma Husserl, a crise no seria

    somente uma crise das cincias, mas tambm da filosofia: as cincias por um lado, ao se

    desligar da razo, isto , da filosofia, e a filosofia, tambm, ao passar a querer se

    autojustificar e deixar de buscar a verdade atravs da razo. Husserl afirma: assim, a

    crise da filosofia implica na crise de todas as cincias modernas como membros douniverso filosfico: a princpio latente, e, ento, a cada vez mais proeminente crise da

    prpria humanidade europeia a respeito de sua vida cultural totalmente sem significado,

    24 HUSSERL. The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology, p. 6. [carefullyexclude all valuative positions, all questions of the reason or unreason of their human subject matter andits cultural configurations]25 Husserl, claro, no viu nascer a obra de Lvi -Strauss e a antropologia do ps-guerra - que ir

    justamente colocar a cultura como centro da discusso.26 HUSSERL. The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology, p. 11. [was a

    peculiar change in the whole way of thinking. Philosophy became a problem for itself, at first,understandably, in the form of the [the problem of the] possibility of a metaphysics; and, following whatwe said earlier, this concerned implicitly the meaning and possibility of the whole problematic of reason]

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    sua total Existenz27. O objetivo da filosofia para Husserl, em sua poca, seria retomar

    essa f na possibilidade de um conhecimento universal que foi deixada de lado. Para

    tal empreitada, Husserl ir propor, como primeiro passo necessrio, que se deva

    refletir para trs, de uma maneira totalmente histrica e crtica, em ordem deprover, antes de todas as decises, um auto-entendimento: devemos perguntarpara trs o que era originalmente e o que sempre se buscou em filosofia, oque era continuamente buscado por todos os filsofos e filosofias que secomunicaram uma com as outras historicamente; mas isso tem que incluiruma considerao crtica do que, em respeito aos objetivos e mtodos [dafilosofia], irrevogvel, original e genuno e o que, uma vez visto,apodicticamente conquista a vontade28.

    Refletir para trs, sem perder o impulso do presente, ainda parece ser uma ideia

    constante na filosofia de Husserl. Aqui, importante notar que sua afirmao se torna,de certa forma, reativa com as ideias de Agamben, apesar de que este no

    necessariamente diz sobre a busca pelas origens.

    Husserl ter, ento, construdo a ideia de crise nas cincias e tambm na

    filosofia no s como uma crise como separao, mas tambm como uma crise de

    perda do sentido original, ou, em outras palavras, uma crise que advm de mudanas

    bruscas do conceito de cincia e de filosofia, fazendo com que no restassem mais do

    que rastros e reminiscncias da origem. Enfim, crise no somente separao, tambm a nostalgia por uma unidade perdida. atravs dessa unidade perdida que se

    inscreveria a crise do esprito europeu.

    Mas essa crise da cincia e da filosofia, contudo, no est inscrita em uma

    sociedade isenta, isto , ela no isolada da sociedade. Noberto Bobbio faz um

    apontamento em relao ao texto de Husserl:

    A posio tomada por Husserl diante dos problemas de nosso tempo em

    uma das poucas vezes que se deixou induzir a interromper seu interminvelsolilquio, na obra que fundamenta o renascimento atual, Crise das cinciaseuropeias - foi provocada exclusivamente por observaes em torno da crisepresumida ou real das cincias modernas, como se na Alemanha, trs anos

    27 HUSSERL. The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology, p. 12. [Thus thecrisis of philosophy implies the crisis of all modern sciences as members of the philosophical universe: atfirst a latent, then a more and more prominent crisis of European humanity itself in respect to the totalmeaningfulness of its cultural life, its total Existenz]28HUSSERL. The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology, p. 1. [reflect back,in a thorough historical and critical fashion, in order to provide, before all decisions, for a radical self-understanding: we must inquire back into what was originally and always sought in philosophy, what was

    continually sought by all the philosophers and philosophies that have communicated with one anotherhistorically; but this must include a critical consideration of what, in respect to the goals and methods [of

    philosophy], is ultimate, original, and genuine and which, once seen, apodictically conquers the will]

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    depois do advento de Hitler, no tivessem havido outros sintomas de crise dahumanidade que pudessem ofuscar a fronte serena de um filsofo alemo, ealm do mais judeu.29

    Longe de concordar com Bobbio, de que Husserl deveria ter estendido sua

    reflexo para alm do problema colocado em seu livro, apenas gostaria de reter nessa

    citao uma questo importante: a crise que enunciava Husserl era apenas mais um dos

    sintomas de outras vrias crises que circundavam no s a Alemanha, como boa parte

    do mundo.

    Ora, se falamos em crise da teoria, no estaramos, tambm, falando de outras

    crises que perpassam a nossa contemporaneidade? Crises sociais, crises ideolgicas,

    crises formais, crises culturais, crises econmicas, crises tecnolgicas, crises

    conceituais, crise da histria, entre outras, so alguns dos exemplos que poderiam serpensados na poca de Husserl e tambm hoje. Mas importante frisar que j h uma

    distncia de oitenta anos desde a publicao das teses do filsofo alemo e a crise, hoje,

    se apresenta com outros ndices, com outras facetas.

    Aqui importante reter algumas informaes. A primeira a noo de crise

    como separao, isto , de crise como um momento de julgamento ou de surgimento de

    uma nova possibilidade. A segunda , justamente, a ideia de que uma crise no

    conhecimento um sintoma de uma sociedade da crise. A terceira e ltima a crisecomo um momento de distino entre as reas do conhecimento, isto , um

    conhecimento que no compartilha fronteiras se torna apenas um conhecimento-resduo.

    Este trabalho parte de teorias desenvolvidas na mesma poca de Husserl. O

    Formalismo Russo, considerado a fundao da Teoria da Literatura, encena a crise da

    filosofia e das cincias humanas, sob o vis de Husserl, exemplarmente. Ao passo que o

    Formalismo tentava estabelecer um estudo especfico da literaturaesse isolamento que

    seria sintoma da criseexistiria algo na teoria que escaparia a essa separaosoluoda crise. O mesmo poderia ser dito do Estruturalismo. Esse problema ser visto no

    primeiro captulo desta tese.

    O segundo captulo, que trata da questo do autor e da autoria, pode ser visto

    como um momento de crise do ps-guerra, em que o sujeito, mais uma vez, colocado

    em questo ou, em outras palavras, poder-se-ia dizer de um momento de julgamento do

    sujeito em que duas vises praticamente opostas coabitam o mesmo espao.

    29BOBBIO.Marxismo e Fenomenologia, p. 251.

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    Os Estudos Culturais (aqui encarnados nas Teorias Feministas), por outro lado,

    apresentam um caminho contrrio. Ao unir vrios campos do conhecimento sob o

    mesmo guarda-chuva, os Estudos Culturais poderiam perder a objetividade cientfica.

    Esse o principal ponto dos que acusam os Estudos Culturais de um esvaziamento

    terico-metodolgico, como ser visto. Por outro lado, as Teorias Feministas apontam

    para outra parte da soluo da crise de Husserl. Ao analisarem a histria da literatura

    ou a histria do cinema, as tericas observam que a disciplina histrica no uma

    evoluo imanente de certos costumes algo que o filsofo alemo iria criticar. Alm

    disso, Husserl iria denunciar fortemente o fato de que a cincia est cada vez mais

    afastada da realidade enquanto que as Teorias Feministas so uma daquelas que mais se

    fincam em alguma espcie de realidade concreta, sem a tentativa do afastamento usual

    entre teorias e existncia.

    Se seguirmos os passos de Husserl, poder-se-ia dizer que nem a teoria da

    literatura nem a teoria do cinema conseguiram solucionar a crise constatada na dcada

    de 1930, por um lado, mas que, por outro, se buscou essa soluo. No nosso presente,

    contudo, se afirma uma crise. A que Husserl constatou ainda permanece como rastro

    em outras palavras, a crise que o filsofo alemo percebia na Europa de seu tempo ainda

    incandescente para os dias atuais.

    Teoria no Terceiro Mundo

    Luiz Costa Lima, em 1975, publica um texto com o nome sugestivo de Quem

    tem medo da teoria?. O perodo de publicao do texto o da incorporao do

    estruturalismo dentro dos estudos literrios do lado de c ao sul do oceano. Nesse

    contexto, o terico brasileiro afirma que:

    Quando uma comunidade no tem a prtica da discusso, o uso da linguagemcrtica sempre lhe parece ameaador. Sendo, ademais, o discurso tericoproduto do desdobramento da reflexo crtica, natural que, dentro daquelacomunidade, o seu praticante encontre, dentro de si mesmo e a seu redor,dificuldades maiores de realizao30.

    Costa Lima ainda afirma que, no caso especfico do Brasil, os grandes

    pensadores, antes, abrem frentes metodolgicas ao invs de frentes tericas. Ademais,

    retoma ele,

    30LIMA. Quem tem medo da teoria?,p. 193.

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    entre ns, tal passagem [da metodologia teoria], sempre revelou a marca dadependncia cultural. Da que as teorias, desde Slvio Romero, quando semostravam, transpareciam como glosas, resumos ou comentrios,normalmente ortodoxos, de algo j estabelecido internacionalmente. Da o

    vcio, que at hoje nos acompanha, de apresentar fulano como orepresentante local de tal pensador ou corrente estrangeira. (...) Nunca nospassa pela cabea que a teoria seja alguma coisa que continue a serfecundado, muito menos, algo que esteja sendo aqui fecundado 31.

    O que nos falta, parece dizer o terico, uma mente terica, que consiga

    ultrapassar a metodologia, ou, ainda, perceber que aqui tambm se produz teoria.

    O texto, claro, endereado a uma polmica da poca, em que se opunham

    aqueles prs ao estruturalismo e aqueles contra a importao de mais uma teoria, como

    demonstra Regina Lcia de Faria32

    . Interessante notar, nesse contexto, que Costa Lima,ao mesmo tempo em que critica a importao via algum representante terico de uma

    teoria estrangeira, ele mesmo a pratica, ao ser o divulgador do estruturalismo no

    Brasil.

    Esse paradoxo da dependncia cultural terica pode ser percebido como um

    signo da produo terica no s do Brasil, mas da Amrica Latina. Uma pergunta

    tantas vezes exposta e tantas vezes discutida : seria possvel a teoria latino-americana?

    Seria possvel uma teoria produzida fora dos grandes centros culturais e acadmicos? Sesim, ela poderia ser chamada, por ns mesmos ou por eles, de teoria?

    O uruguaio Hugo Achugar um dos que iro refletir sobre a nossa produo

    terica, justamente nesse sentido do paradoxo. Em Sobre o Balbucio Terico Latino-

    americano, o terico uruguaio chama ateno para certas ideias de Walter Mignolo, que

    indicava quatro projetos crticos para a superao da modernidadeps-moderno, ps-

    colonial, ps-oriental e ps-ocidental33, ou seja, uma concentrao no ps, em que

    se resgatariam as histrias locais do continente, junto notao de que as teorias latino-

    americanas se perderiam no mercado global terico, j que no falariam o idioma

    agregador de valor, o ingls. Sendo assim, Achugar pergunta:

    No ser que o lugar do discurso (...) dos latino-americanos letrados ouiletrados, de esquerda ou de direita, homens ou mulheres, mineiros ouacadmicospara os ouvidos do hemisfrio norte sempre o do balbucio eo da incoerncia ou inconsistncia terica No ser que o balbucio tericolatino-americano no incoerncia nem inconsistncia No ser que esse

    31LIMA. Quem tem medo da teoria?,p. 194-195.32Cf. FARIA.A polmica do Estruturalismo ou Quem tem medo de teoria?.33ACHUGAR. Sobre o Balbucio Terico Latino-americano, p. 2.

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    balbucio terico outro pensamento ou um pensamento outro? No ser quebalbuciar um discurso raro, um discurso orgulhosamente balbucianteNo ser que eu tenha escolhido balbuciar teoricamente como um modo demarcar e prestigiar meu discurso?34

    Se se seguir uma comparao com os paradigmas tericos do Primeiro Mundo35

    ,o discurso latino-americano, do balbucio, poderia se formar teoricamente apenas em

    relao ao discurso do Primeiro Mundo, isto , em um processo de competio entre

    uma e outra teoria?

    Nesse sentido, poder-se-ia pensar a respeito de dois textos otimistas de Silviano

    Santiago diante dessa perspectiva: Apesar de Dependente, Universal e Ea de Queiroz,

    Autor de Madame Bovary. Nesses textos, cada um sua maneira, o terico brasileiro

    insiste que as teorias produzidas em pases colonizados so, de certa forma, uma

    resposta ao colonizador e, mais importante, estariam mais completas, j que no s

    teriam o contedo original da teoria (ou do texto), mas tambm uma rplica. Por causa

    dessa lgica, por exemplo, O Primo Baslio de Ea de Queiros seria um livro melhor

    e mais completo do que o de Flaubert. Falo de otimismo porque, para alm dos seus

    pares do Terceiro Mundo, Santiago poderia estar ainda balbuciando para o Ocidente

    colonizador. O terico brasileiro no nega as teorias colonizadoras, pelo contrrio, as

    absorve e as transforma, de certa forma, cordialmente ou de maneira antropfaga.

    Porm, a histria da teoria da literatura que retrata o dialogismo entre

    colonizadores e colonizados revela que, quando o Terceiro Mundo absorve e argumenta

    contra o primeiro, a ateno dada por este quele no passa de uma breve resposta,

    como revela o clssico dilogo entre Fredric Jameson e Aijaz Ahmad, em que o peso

    da palavra do colonizador ir sistematicamente desconsiderar os desconfortos

    produzidos no colonizado. Na breve resposta que Jameson se dispe a dar a Ahmad,

    ele transforma seu texto, tido como colonizador pelo indiano, em uma dramatizao

    do cenrio intelectual estadunidense e sobre a alegoria literria e o papel poltico36

    dos intelectuais, quase como uma performance da bondade de certos intelectuais em

    valorizar os cultos fetichistas daqueles que seriam uniformemente, no importando

    em que lugar do globo estejam ou que histria possuam, o outro. Caminhando pela

    histria dos paradigmas tericos desenvolvidos no ocidente difcil perceber as urtigas

    34ACHUGAR. Sobre o Balbucio Terico Latino-americano, p. 35.35Utilizo a distino entre primeiro mundo e terceiro mundo de forma provocadora, remetendo ao texto

    de Jameson, Third-World Literature in the Era of Multinational Capitalism.36Esses so termos que Jameson utiliza no primeiro pargrafo de seu texto. Cf. Jameson. Uma BreveResposta.

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    plantadas por tericos do Terceiro Mundo que no escrevem a partir do Primeiro

    Mundo.

    Aqui, talvez, possa ser pensada uma das questes propostas por Costa Lima: a

    nossa incapacidade de ver que, tambm, estamos fazendo teoria. Nstor Canclini ao

    discutir a definio de arte, chega a esta concluso: no haveria outra soluo a no ser

    nos desligarmos de qualquer teoria universalmente vlida e nos resignarmos, como

    relativismo antropolgico, a nomear como arte aquilo que fazem aqueles que se chama

    ou so chamados de artistas37. Poder-se-ia parafrasear o antroplogo argentino

    nomear como teoria aquilo que fazem ou fizeram aqueles que se chamam ou so

    chamados de terico para definir a teoria, principalmente a do Terceiro Mundo em

    relao ao do Primeiro? Enfim, ns assumimos que somos, tambm, tericos?

    Se assumssemos que tambm fazemos teorias e que participamos da construo

    dos paradigmas tericos mundiais (mesmo que com uma repercusso menor, mesmo

    que de forma no colonizadora) o fato de produzir ou no teoria teria que ser reavaliado.

    Primeiro, porque a relevncia terica deveria ser reorientada: no porque os

    colonizadores no tm o mesmo apreo pelo conhecimento produzido pelos

    colonizados, como estes teriam por aqueles, que faz com que exista mais teoria no

    Primeiro Mundo. Segundo, porque a teoria desenvolvida no balbucio seria ela mesma

    uma teoria, uma teoria-balbucio e no mais um balbucio terico. Se assumida a

    perspectiva antropolgica defendida por Canclini possvel ser otimista como Santiago

    ou Ahmad, diferente da perspectiva do embate terico daqueles que ocupam o lugar

    privativo dos fabricantes de epistemologias para exportao, como Jameson parece

    encarnar bem o personagem. O reconhecimento terico no passaria s pelo fato de

    algum, de fora do contexto, considerar a teoria do Terceiro Mundo como teoria, mas,

    tambm, por aqueles do Terceiro Mundo reconhecerem a si mesmos como tericos.

    Ns, latino-americanos, nos consideramos tericos? nesse sentido que Achugar vai caminhar em seu texto: possvel propor o

    balbucio terico como uma descrio do discurso terico latino-americano? Ou,

    inclusive, como um descrio do discurso terico no euro-norte-americano ou, mais

    ainda, como o discurso no-terico do Commonwealth38. Ainda, poderia acrescentar:

    no seria melhor afirmar que nossa teoria formulada atravs de um balbucio e, por isso

    mesmo, o reconhecimento desse balbucio j , em si mesmo, a afirmao de uma teoria?

    37CANCLINI.A Sociedade Sem Relato, p. 59-60 [grifo meu].38ACHUGAR. Sobre o Balbucio Terico Latino-americano, p. 43.

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    Achugar no chega realmente a concluir essa questo, mas aponta algumas

    direes. Destaco algumas delas: na primeira, ele se inspira na crtica feminista,

    particularmente em Nancy Hartsock, se perguntando quais so os temas polticos na

    agenda dos acadmicos latino-americanos39; como se do as relaes de poder no

    mbito latino-americano; quais so os povos sem histria, que seriam o futuro segundo

    Cioran; e poder ser que o balbucio terico seja o lugar que o atual discurso ps-

    colonial anglo-saxo reserva para o discurso colonial em outras lnguas40.

    Mesmo encarando a teoria com a perspectiva de Canclini, e que ressoa em

    Achugar, muitas perguntas permanecem. Mas importante ressaltar que essas duas

    maneiras de perceber a teoria como um local de disputa de significao ou como

    significao dentro de um relativismo antropolgico so posies distintas e no

    complementares de entender a teoria. Ora, por um lado, temos uma teoria que ir se

    construir, sobretudo, pela negao de outra e, por outro lado, teramos teorias diversas

    que se refundariam em sua prpria significao. Porm, importante notar que aqui

    pode haver um paradoxo: se no relativismo antropolgico de Canclini, teoria no seria,

    tambm, a negao de outra teoria? Isso porque se estamos trabalhando com a

    pluralidade, a prpria negao da pluralidade no pode ser excluda dessa definio

    terica.

    A afirmao de o que uma teoria e a prpria negao de o que uma outra

    teoria, mesmo quando ela tenta afirmar o mximo de pluralidade, parece um

    encaminhamento para estarrecimentos paradoxais. Nesse sentido, a teoria do Primeiro

    Mundo e a do Terceiro Mundo se encontram. Mas a teoria da literatura ou a teoria do

    cinema, portanto, poderiam ser pensadas como um paradoxo?

    Definir o lugar da teoria do Terceiro Mundo no seria uma forma de definir

    tambm o no lugar dessa teoria Canclini ainda ir afirmar: so os modos de pensar

    os paradoxos que nos desconcertam quando um mundo acaba e outro mal se inicia41.Esta tese aposta no paradoxo de falar da teoria do Primeiro Mundo do ponto de vista do

    Terceiro Mundo, mesmo sem privilegiar, necessariamente, a teoria local. Talvez aqui se

    queira pensar no paradoxo das teorias, das crises, dos lugares de enunciao.

    Entretanto, gostaria que esse no privilgio no fosse pensado como uma

    presena fantasmtica que se oculta e se revela nos meus silncios retricos. Nesse

    39ACHUGAR. Sobre o Balbucio Terico Latino-americano, p. 49.40ACHUGAR. Sobre o Balbucio Terico Latino-americano, p. 51.41CANCLINI.A Sociedade Sem Relato, p. 59-60 [grifo do autor].

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    sentido, importante destacar que o estmulo para a discusso proposta nesta tese no

    partiu do lugar de enunciao do Primeiro Mundo, mas de discusses que se

    entrelaaram em um ambiente local, o Programa de Ps-graduao em Estudos

    Literrios da FALE/UFMG. O estmulo para o estudo terico foi despertado desde o

    meu curso de mestrado, na UFMG, por professores daqui e por textos produzidos no

    Brasil. importante destacar que a fomentao e a inquietao terica partiram de

    diversas obras, mas uma em especial merece destaque, o livro Critica Cult de Eneida

    Maria de Souza. Foi neste livro que pude perceber que, sim, realizamos e discutimos

    teoria no Brasil de uma forma to intensa quanto nas obras mais celebradas das teorias

    hegemnicas que se tornaram paradigmas no mundo. Alm disso, os dilogos com os

    professores e as disciplinas, do Ps-Lit, todas elas, suscitaram, cada uma a sua maneira,

    essa espcie de vertigem terica. Aqui, tambm importante destacar o dialogo terico

    de mais de dez anos que mantive com Leda Martins, uma mente brilhante sempre

    disposta a estimular minhas inquietaes. Se no texto de 1975, de Costa Lima, ele

    afirmava sobre uma dificuldade para o dilogo de praticantes de um discurso terico,

    posso dizer que tive a sorte de ter encontrado esse espao ao longo de minha trajetria

    acadmica.

    Luiz Costa Lima volta, em 2013, questo do terico latino-americano com uma

    verso semelhante a do seu texto da dcada de 190: um ensasta ou sobretudo um

    pensador nacional s deixa de ser cercado de desconfiana quanto sua capacidade se

    estiver vinculado a alguma corrente internacionalmente firmada, se possvel na moda,

    ou se se apresentar como seu divulgador42. Entretanto, o terico brasileiro exclui a

    preposio de nossa prpria percepo como tericos. Esse ocultamento revela que j

    nos vemos como tericos ou que, ainda, no somos, de certa forma, independentes?

    Esta tese se coloca, sem constrangimento, diante de paradigmas tericos

    oriundos do Primeiro Mundo, acreditando que aqui se faz, sim, teoria. nesse sentidoque ser encaminhada a discusso da tese: um orgulho de balbuciar sobre os paradigmas

    tericos que, de certa forma, nos afetam. Evidenciarei certas questes, certos lugares

    comuns e certos problemas da teoria a partir desse lugar de enunciao latino-

    americano. Acredita-se, pois, que essa leitura no melhor nem pior do que as

    construdas nos lugares de hegemonia por ser escrita do Terceiro Mundo, por ser escrita

    na marginalizada lngua portuguesa, ou por no tocar, diretamente, nas discusses

    42LIMA.Frestas, p. 42.

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    articuladas no Brasil e na Amrica Latina. Sigamos, pois, por essa vereda, que comea

    na Rssia, atravessa a Europa e chega aos Estados Unidos, sempre com trilhas abertas

    que chegam a quase todo o mundo.

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    Captulo 1: O Formalismo Russo e as Teorias daMontagem Soviticas: Cincia e Cultura

    O amor vem por princpio, a ordem por baseO progresso que deve vir por fim

    Desprezastes esta lei de Augusto Comte

    E fostes ser feliz longe de mimOrestes Barbosa,

    Positivismo

    Tudo se tornava algo diferente. Primeiro algodiferente de maneira imperceptvel, quando a coisaera vista s para si. Depois marcadamente diferente,quando era necessrio encontrar palavras paraaquilo, pois falvamos a respeito. Quando queremosser precisos na descrio, devemos encontrar algo nafrase que seja totalmente diferente para conseguirmosser exatos

    Herta Mller,Sempre a Mesma Neve e Sempre o Mesmo tio.

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    O Formalismo Russo a unio de dois grupos de estudo, o Crculo Lingustico

    de Moscou e a OPOIAZ (Sociedade para o Estudo da Lngua Potica)43 e as Teorias

    da Montagem Soviticas so tidos como os primrdios da moderna teoria literria e da

    moderna teoria cinematogrfica. De certa forma, foi legado a essas correntes tericas o

    statusde fundadores de uma abordagem do literrio ou do cinematogrfico que viria a

    definir o que faria desses estudos um estudo terico. Ambas as teorias surgiram durante

    o perodo revolucionrio sovitico, na dcada de 1910, e se tornaram correntes que

    iriam influenciar boa parte da teoria desenvolvida ao longo do sculo XX.

    Dali surgiram eminentes tericos como Viktor Chklovsky, Boris Eikhenbaum,

    Roman Jakobson, Serguei Eisenstein, Lev Kuleshov e Dziga Vertov, entre outros. Dali,

    tambm, parte a grande narrativa da teoria da literatura e da teoria do cinema. Essa

    narrativa afirma que, ali, formulou-se pela primeira vez uma teoria que ultrapassava os

    limites do subjetivo, que abandonava a biografia do autor, o historicismo e o

    psicologismo at ento reinantes nos estudos literrios. Ali, tambm, pela primeira vez

    se organizava uma teoria do cinema que no mais sucumbia a uma espcie de

    bricolagem terica at ento praticada pelos estudos do cinema. E, o mais importante,

    foi nessa Rssia revolucionria que se firmavam o estudo particular da literatura e o

    estudo particular do cinema, com uma fronteira muito mais rgida do que at ento era

    praticada. Entretanto, essa grande narrativa terica sobre o Formalismo Russo ou sobre

    as Teorias da Montagem colocou um vu sobre a complexidade e as contradies dos

    trabalhos desses russos, reduzindo o seu alcance e seu significado. importante, pois,

    retomar algumas dessas afirmaes.

    Para Marthe Robert, o que difere o Formalismo de outras abordagens da

    literatura sua pretenso cincia e o fato de ser a primeira escola a levar a srio a

    noo de teoria44. Terry Eagleton afirma que os formalistas russos, imbudos de um

    esprito prtico e cientfico, transferiram a ateno para a realidade material do texto

    literrio em si45. Dessa forma, esses tericos estariam preocupados com as estruturas

    da linguagem e no com o que ela de fato poderia dizer46, tangenciando o contedo,

    que no seria o foco. Para Eagleton, em sua essncia, o formalismo foi a aplicao da

    43Alguns autores incluem tambm o Crculo de Mikhail Bakhtin nesse grupo dito Formalista. Aqui, nosfocaremos nos grupos que surgiram em meados dos anos de 1910 at 1920, ou, em outras palavras, ocrculo restrito Formalista, que veio, sim, estabelecer dilogos com Bakhtin, mas de uma forma muitomais indireta.44ROBERT.Romance das Origens, Origens do Romance, p. 22.45EAGLETON. Teoria da Literatura, p. 3.46EAGLETON. Teoria da Literatura, p. 4.

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    lingustica ao estudo da literatura47.

    Segundo Ren Wellek os formalistas russos argumentam, num contexto de

    revolta, contra a crtica ideolgica dominante que os cerca, contra a ideia de 'forma'

    como mero recipiente dentro do qual lanado o contedo j feito48. A revolta no se

    daria apenas ao colocar a forma como mais importante que o contedo, mas que o

    contedo no fosse mais importante que a forma. Wellek tambm afirma, na citao

    acima, que o Formalismo reagia contra uma ideologia dominante. Qual seria ela Victor

    Manuel de Aguiar e Silva afirma que, durante a poca positivista, no final do sculo

    XIX, o conceito de literatura foi simplista e radicalmente suprimido49, criando uma

    crtica literria dominante naquele tempo que seria bibliogrfica, historicista ou

    psicologista.

    Tzvetan Todorov, em A Herana Metodolgica do Formalismo, afirma que

    o objetivo da pesquisa [formalista] a descrio do funcionamento dosistema literrio, a anlise de seus elementos constitutivos e a evidenciaode suas leis, ou, num sentido mais estreito, a descrio cientfica de um textoliterrio e, a partir da, o estabelecimento de relaes entre seus elementos. 50

    nessa descrio cientfica de diferentes nveis fnico, morfolgico,

    simblico e assim por diantee da interdependncia entre eles, que os formalistas iriam

    se empenhar. Todorov enxerga nos formalistas uma definio de literatura comosistema de signos, um cdigo anlogo aos outros sistemas significativos51.

    Alguns pontos so comuns nessas citaes pertencentes a crticos de vrias

    origens e de abordagem tericas diversas. O que chama ateno prontamente o aspecto

    cientfico do Formalismo Russo, isto , a tentativa de se criar uma cincia literria. Esse

    aspecto corroborado pelo segundo destaque que podemos inferir dessas citaes: a

    influncia lingustica. A influncia lingustica encontra-se entre aspas na frase

    anterior porque Eagleton chega a postular uma aplicao lingustica. Um outro ponto

    a utilizao de termos mais em voga em outras pocas que no so, necessariamente,

    conceitos Formalistas, como signo, cdigo ou, mesmo, estrutura. Por ltimo, gostaria de

    ressaltar a prpria noo de os Formalistas, que ajuda a disseminar a ideia de que teria

    havido um grupo homogneo entre os tericos baseados em Moscou e os tericos

    fixados em So Petersburgo.

    47EAGLETON. Teoria da Literatura, p. 4.48WELLEK. Conceitos de Crtica,p. 65.49SILVA. Teoria da Literatura,p. 14.50TODOROV.A Herana Metodolgica do Formalismo, p. 31.51TODOROV.A Herana Metodolgica do Formalismo, p. 32.

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    Seguirei um percurso inverso do proposto por tais autores. Irei dissociar o grupo

    Formalista e analisarei separadamente a OPOIAZ e o Crculo Lingustico de Moscou.

    Tambm questionarei a ideia de uma simples aplicao da lingustica nos estudos

    literrios, delimitando o alcance nesses estudos, principalmente no que concerne

    OPOIAZ, assim como refletirei sobre a aproximao dos formalistas com o positivismo

    e, a partir disso, a possibilidade cientfica inaugurada por esses tericos.

    Nesse sentido, importante ressaltar que, sim, os formalistas eram contra uma

    crtica literria que no se apoiasse extensivamente sobre o texto. Refutavam

    enxertamentos que explicassem, essencialmente atravs do contexto sociocultural ou da

    psicologia do autor, o significado das obras. Por outro lado, ao contrrio do que afirma

    Vtor Manuel de Aguiar e Silva, os formalistas no eram antipositivi