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Cadernos Pagu (3) 1994: pp. 117-141. EXPERIÊNCIAS SOCIAIS, INTERPRETAÇÕES INDIVIDUAIS: histórias de vida, suas possibilidades e limites. * Suely Kofes ** "Car le sujet ne récit pas sa vie, il réfléchit sur elle tout en la racontant" (Bertaux, D.) 1 "The life history is a product of its author's desire for a recongnition by essentially complex Other. It is evocative as well" (Crapanzano, V.) 2 I. A utilização de histórias de vidas - latu sensu -, na antropologia, tende responder à distintas indagações: documento cultural (a autobiografia de Baba de Karo); reconstrução de um processo sociocultural através de uma experiência particular (a * Texto apresentado no Seminário Internacional del Uso de Histórias de Vida en Ciências Sociales , Universidad Externado de Colombia - Villa de Leyva - março de 1992. Também foi apresentado no XVI Encontro Anual da ANPOCS, 20 A 23 de Outubro, Caxambú, Minas Gerais, 1992. GT: Relações Sociais de Gênero. ** Professora do Departamento de Antropologia - IFCH/UNICAMP. Membro do Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu. 1 BERTAUX, D.: L'approache biografique. Sa validité methodologique, ses potentialités", IN Cahiers Internautionaux e Sociologie, LXIX, nº 2, Juil.- Déc. 1980, pp. 198-225. 2 CRAPANZANO, V.: Tuhami: Portrait of a Marocain. Chicago and London, the University of Chicago Press, 1980. p. 10 em especial.

Suelly Koffes - Experiências Sociais, Interpretações Individuais

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  • Cadernos Pagu (3) 1994: pp. 117-141.

    EXPERINCIAS SOCIAIS, INTERPRETAES INDIVIDUAIS:

    histrias de vida, suas possibilidades e limites.*

    Suely Kofes**

    "Car le sujet ne rcit pas sa vie, il rflchit sur elle tout en la racontant" (Bertaux, D.)1 "The life history is a product of its author's desire for a recongnition by essentially complex Other. It is evocative as well" (Crapanzano, V.)2

    I. A utilizao de histrias de vidas - latu sensu -, na antropologia, tende responder distintas indagaes: documento cultural (a autobiografia de Baba de Karo); reconstruo de um processo sociocultural atravs de uma experincia particular (a

    * Texto apresentado no Seminrio Internacional del Uso de Histrias de Vida en Cincias Sociales , Universidad Externado de Colombia - Villa de Leyva - maro de 1992. Tambm foi apresentado no XVI Encontro Anual da ANPOCS, 20 A 23 de Outubro, Caxamb, Minas Gerais, 1992. GT: Relaes Sociais de Gnero. ** Professora do Departamento de Antropologia - IFCH/UNICAMP. Membro do Ncleo de Estudos de Gnero - Pagu. 1 BERTAUX, D.: L'approache biografique. Sa validit methodologique, ses potentialits", IN Cahiers Internautionaux e Sociologie, LXIX, n 2, Juil.- Dc. 1980, pp. 198-225. 2 CRAPANZANO, V.: Tuhami: Portrait of a Marocain. Chicago and London, the University of Chicago Press, 1980. p. 10 em especial.

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    histria de vida de Taso); demonstrao da tese da ineficcia de civilizar sociedades indgenas separando, e depois reintegrando, algum ou alguns indivduos (O Professor Tiago Marques Aipoboru); um texto formulado no, e formulando o, encontro etnogrfico (Tuhami), entre outras.3 Pretendo analisar duas histrias de vida considerando-as como interpretaes individuais de experincias sociais. Estarei atenta distino entre "estrias de vida e "histrias de vida", "biografia" e "autobiografia". Evidentemente em todos estes casos trata-se do levantamento de toda, ou de uma parcela, da vida de um indivduo, mas em minha analise estarei me referindo a "estrias de vida" e ainda assim no sentido preciso de que se trata: 1) de relatos motivados pelo pesquisador e implicando sua presena como ouvinte e interlocutor 2) de um material restrito situao de entrevista. Isto , estarei considerando apenas o que foi narrado ao pesquisador pelo entrevistado sem a complementao de outras fontes; 3) daquela parcela da vida do sujeito que diz respeito ao tema da pesquisa, sem esgotar as vrias facetas de uma biografia. As duas estrias de vida que sero analisadas situam-se no quadro de uma pesquisa sobre a relao entre mulheres, patroas e empregadas domsticas. Nesta pesquisa utilizei vrios instrumentos: entrevistas, observao do cotidiano domstico (como situao social) em um perodo de tempo (uma semana em cada uma de trs unidades domsticas); aplicao de questionrios (amostra de 600 questionrios, na cidade de Campinas, SP., Br.), anlise quantitativa de fichrios de creche; levantamento de material- em agncias de emprego, instituies

    3 Refiro-me s obras, respectivamente, de: SMITH, M.: Baba de Karo. Paris, Terre Humain, Plon. 1969; MINTZ, S.: Worker in the Kane. A Puerto Rican life History. New York, W.W. Norton & Company Inc. 1974; BALDUS, H.: Ensaios de etnologia brasileira. 2 ed. So Paulo, Companhia Editora Nacional; Braslia, INL/MEC, 1979 (Coleo Brasiliana; v. 101); CRAPANZANO, V.: Op. cit. 1980.

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    filantrpicas e municipais, textos jurdicos e de jornais- relativo ao emprego domstico e relao entre patroas e empregadas domsticas. Desta pesquisa resultou uma tese de doutorado onde apresentei uma etnografia da relao entre patroas e empregadas e discuti o tema da diferena e identidade entre mulheres.4 Situada a pesquisa que me permitiu acesso s estrias de vida que vou analisar, situo a leitura que delas farei. Vou considerar as duas estrias de vida em trs dimenses: 1) na situao de entrevista; 2) como narrativas (sobre o que fala o sujeito entrevistado e como constroi sua narrativa); 3) as possibilidades analticas, para o pesquisador. Alguns pressupostos norteiam minha anlise. O primeiro que a estria de vida adquire maior relevncia quando se considera as trs dimenses a que me referi, sem que se privilegie uma ou outra. O segundo, e como decorrncia que, situados nestas trs dimenses os relatos de histrias de vida no seriam vistos como desconexos e incoerentes e, portanto, fadados a s adquirirem sentido quando reordenados pelo pesquisador. Considerados como narrativas, com sentido interno, situados na interao da pesquisa, e nas suas possibilidades analticas, os relatos podem ser lidos na ordem que lhe deu o entrevistado. O arranjo interno feito pelo pesquisador, e para que possa ser lido por este, coloca a narrativa naqueles casos em que a ordem dos fatores altera o produto. Preservada esta leitura da narrativa, como um texto com seqncia interna, e intercruzando suas partes com partes de outras narrativas integrais, o pesquisador poder produzir sua prpria anlise, suas explicaes, suas interpretaes, enfim seu prprio texto. E, finalmente, o ltimo pressuposto que as estrias de vida contm informaes, evocaes e reflexes. 4 A tese intitulada Mulher: Mulheres:Diferena e Identidade nas armadilhas da igualdade e desigualdade:interao e relao entre patroas e empregadas domesticas, foi defendida no Departamento de Antropologia, FFLCH-USP, SP, em 1991.

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    Assim consideradas as estrias de vida sintetizariam a singularidade do sujeito - suas interpretaes e interesses -, a interao entre o pesquisador e o entrevistado, e tambm uma referncia objetiva, que transcende o sujeito e informa sobre o social. Sintetizando, as estrias de vida estaro sendo consideradas como: fontes de informao (falam de uma experincia que ultrapassa o sujeito que relata); como evocao (transmitem a dimenso subjetiva e interpretativa do sujeito); como reflexo (contm uma anlise sobre a experincia vivida. Neste sentido, o prprio entrevistado articula reflexo e evocao). Caberia ao pesquisador, ao ler a narrativa da estria de vida, levar em conta estes elementos, consider-la na situao de entrevista e tambm intercruz-la com outras narrativas. A no-ateno a esta complexidade poder levar a duas interpretaes opostas: o da objetividade plena do relato (tom-lo apenas como informao) ou o da subjetividade plena do relato (tom-lo apenas como evocao). Estou propondo que as estrias de vida sejam consideradas como contendo ambas, e estarei, neste texto, ensaiando uma tentativa nesta direo. Estarei intercruzando (porque meu recorte temtico uma relao) duas estrias de vida, e minha inteno, em outro momento, ampliar o leque dos intercruzamentos. II. Duas estrias de vida: uma relao A estria de vida de Isabel pergunta inicial, sobre quando comeara a trabalhar, Isabel respondeu:

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    "Trabalhar eu comecei desde pequena. Minha me ia pra roa e eu ficava em casa. Quando eu tinha 12 anos foi que minha professora de grupo me chamou para trabalhar na casa dela"

    Ao motivar o incio da estria de vida com esta pergunta ("quando comeara a trabalhar") tive como objetivo delimitar o fluxo de lembranas da entrevistada em relao ao tema da pesquisa e, portanto, ao interesse do pesquisador. Ao responder, j neste incio, e tambm no decorrer da narrativa, a estria de vida de Isabel me passou informaes que, comparadas outras entrevistas e outras fontes, poderiam ser generalizadas: sobre a idade com que as meninas, na classe social onde so recrutadas as empregadas domsticas, comeam a realizar as tarefas domsticas e quando saem para o trabalho fora de casa; sobre os mecanismos pelos quais as classes superiores contratam empregadas; sobre o processo de aprendizagem das tarefas domsticas e sua rotina; sobre uma das formas de migrao (da rea rural para uma pequena cidade e desta para uma cidade grande); sobre o processo de aprendizagem cultural no meio urbano e a comparao, do ponto de vista dos hbitos culturais, entre este novo meio e o meio social anterior; sobre a relao com outras empregadas em uma mesma casa; sobre a rede de amizades entre empregadas de uma vizinhana; sobre a evoluo dos salrios; sobre o tempo de trabalho; sobre a negociao que se faz entre as leis trabalhistas e alguns dos mecanismos de carter personalista, etc. Ao intercruzar esta estria de vida com outras foi possvel encontrar recorrncias, esclarecimentos de pontos ainda obscuros, mas tambm aspectos que singularizam esta experincia e sua interpretao.5 Esta singularidade fica mais

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    evidente, me parece, quando a estria de vida lida como um texto, respeitando-se o desencadeamento da narrativa dado pela entrevistada. Desta forma a narrativa de Isabel mostra uma estruturao prpria e que se apresenta em dois eixos fundamentais: a oposio tempo das obrigaes x tempo livre e a oposio patroa ruim x boa patroa. O primeiro eixo ordena todo o seu relato: a comparao entre sua vida antes de vir para a cidade grande e depois; entre o trabalho domstico e outras profisses; entre os empregos anteriores e o atual. Ao descrever cada um dos empregos que teve ela o faz sob a oposio entre o tempo que tinha para si - o tempo livre - e o tempo das obrigaes, sendo que o primeiro seria maior ou menor conforme as caractersticas da patroa (a segunda oposio). Mas esta estruturao interna da narrativa s se tornou clara atravs de um fato que lhe "externo": a situao da entrevista. Antes de levar em conta esta situao eu j me dava conta que a narrativa de Isabel enfatizava a liberdade, a importncia do tempo livre e a classificao das patroas. Mas foi recentemente, quando reencontrei umas anotaes que eu fizera sobre as condies de cada entrevista durante a pesquisa e que

    5 Os intercruzamentos que me parecem particularmente interessantes seriam: as estrias de vida de duas empregadas, Laura e Las. Las, 30 anos, negra, separada, com 4 filhas, foi empregada domstica boas parte de sua vida. Teve experiencia poltica como presidente da Associao das Empregadas Domsticas, em Campinas, militou em grupos de mulheres e foi candidata a vereadora. Tornou-se, mais recentemente, "congeladeira", o que era visto como uma "ascenso" profissional. O que estrutura sua narrativa a recorrncia das reivindicaes polticas sobre a situao das empregadas domsticas e das mulheres. Apesar das distines h, entretanto, algumas semelhanas com a estria de vida de Isabel. Laura, 29 anos, solteira, no filha de empregadas domsticas, como Las e Isabel, e s comeou a trabalhar como empregada domstica aos 19 anos, o que um incio bem tardio considerando a trajetria da maioria das empregadas domsticas. Exerceu, com intermitncias, este trabalho e, tambm migrante, seu ltimo emprego como empregada domstica foi tambm seu primeiro emprego em So Paulo: onde continuou seus estudos e tornou-se secretria. Sua narrativa estrutura-se pela nfase na diferena entre as classes e nos novos hbitos que pode aprender nas casas em que trabalhou e na sua negao em se considerar uma empregada domstica. Outra estria de vida cujo intercruzamento interessante a de uma patroa, me de Beatriz, principalmente porque mostra a diferena na relao com a empregada e com o trabalho domstico, considerando diferentes geraes.

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    ficara perdida um tempo considervel, que eu pude ler a importncia destes elementos como estruturadores da narrativa. Descobri nestas anotaes que Isabel quem pedira para ser entrevistada quando soube da minha pesquisa atravs de uma amiga que j tinha sido entrevistada. Isabel justificou seu pedido dizendo pesquisadora: "eu quero que saibam do meu trabalho". Aps o encontro destas anotaes reli a narrativa e suas observaes finais adquiriram outra relevncia:

    "Assim, acho que a situao da empregada depende da patroa. O meu no acho bom mas tem empregada que tem sorte. Se eu tiver que pedir alguma coisa assim para algum, que fosse melhorar a situao da empregada, a primeira coisa que eu pediria ter regulamento com horrio de trabalho. Tem empregada que tem folga, a patroa viaja, mas a maioria emenda o dia com a noite, no ganha a hora a mais que trabalha".

    Ao pedir para ser entrevistada Isabel estava, estrategicamente, procurando alternativas ao seu presente. Se acrescentarmos ainda as caractersticas de classe e de gnero da entrevistadora, e que a identificava patroa, entenderemos o que levou Isabel a construir uma narrativa com os eixos a que me referi acima. O sentido de sua narrativa e das oposies que a estruturam est na sua situao presente. Neste caso, seria preciso reler a narrativa de trs para a frente, do final ao comeo mas considerando o final e o comeo na seqncia dada pela entrevistada. Em sntese, parece-me que no a narrativa da entrevistada que precisa ser reordenada, mas sua leitura. Na poca da entrevista Isabel tinha 28 anos. Trabalhava em uma casa h mais de 8 anos e morava na casa em que

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    trabalhava. Esta condio - de morar onde trabalhava - a colocava sob a obrigao diria de preparar o caf da manh e servir o jantar, o que resultava em uma jornada de trabalho que comeava 6 horas e terminava s 21 horas.Tinha um quarto, seu, mas era proibida, pela patroa, de receber amigas e parentes ("a minha casa no jardim", teria lhe dito a patroa). Portanto, fora o domingo, de quinze em quinze dias, quando tinha sua folga, convivia basicamente com a famlia que a empregava. Sua descrio do presente, e sua reflexo sobre ele, enfatizavam a ausncia de um tempo e de um espao pessoais e sociais, e uma relao extremamente tensa com sua patroa. A partir deste presente, pela sua negao, ela idealizava o passado e esboava um futuro possvel. Recorrendo ao incio de sua narrativa encontrei nela um momento, bem depois da resposta minha pergunta inicial, que um marco nas suas reminiscncias. Este momento foi narrado por meio de uma metfora e foi quando sua fala adquiriu tons mais ntimos. Foi claramente um momento onde a evocao ganhou relevncia sobre a informao (embora, evidentemente, no estejam separadas creio que h momentos com em que uma ou outra adquire mais relevncia):

    "Sabe que eu viajei a noite inteira de p e tava feliz da vida... parece que eu tava saindo... que nem um pssaro que tava preso na gaiola e abriram as portas e ele saiu, sabe?"

    Isabel tinha ento 20 anos. Oito anos depois, e para acompanh-la em sua metfora, ela se via em outra gaiola. Ser entrevistada adquiria o significado - outra esperana frustrada - de que se abriria esta nova gaiola: o futuro possvel. Mas que futuro? Ao mundo de obrigaes interminveis Isabel ope um horizonte em que ela teria tempo. Tempo pessoal (que ela

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    qualifica como um tempo para cuidar do seu cabelo, de suas unhas, sair com as amigas; para namorar e possivelmente casar); um espao prprio (que, conforme ela, lhe permitiria receber suas amigas e parentes). A ausncia disto - seu presente - atribudo por Isabel ao fato de que ela mora no emprego. O que se resolveria ou se ela morasse em outro lugar ou se tivesse uma outra patroa que no a atual. A narrativa de Isabel plena de caracterizaes de sua atual patroa (atual aqui tendo em vista a poca da entrevista) e da relao entre ambas: com detalhes so recriados dilogos, recompostos gestos, humores, tons de voz. Comparando a descrio desta patroa com a que feita de patroas anteriores nota-se que com referncia atual (e em oposio) que as anteriores so descritas. Com uma leitura desta estria de vida que considerou a situao em que foi contada ( a inteno da entrevistada, quem foi a entrevistadora e o tema da entrevista) e a narrativa com sua seqncia integral ( e onde a entrevistada articula informao, evocao e reflexo) e ainda tendo outras entrevistas como referncia, eu me permitiria sugerir: 1) a estria de vida como expresso de interpretaes e de experincias individualizadas. Comparada a outras, a estria de vida de Isabel nica. tambm singular a estruturao de sua narrativa: os eixos tempo das obrigaes : tempo livre e patroa boa : patroa ruim, suas metforas e a recriao detalhada de seu cotidiano. Tambm singular o interlocutor que ela elege: uma patroa idealizada, sntese entre as que ela efetivamente conheceu e a que aspira. 2) a interconexo desta experincia com outras. Nesse sentido h semelhanas entre a estria de vida de Isabel e a de outros sujeitos que compartilham com ela a experincia de serem empregadas domsticas que moram na casa onde trabalham. E estas semelhanas esto impressas nas narrativas atravs de

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    referncias ausncia de tempo e espaos prprios e a um aguamento das tenses na relao com a patroa. 3) a interconexo desta experincia com a de outros sujeitos que compartilham com ela a experincia de serem empregadas domsticas, mesmo quando no moram na casa onde trabalham. Estas semelhanas imprimem-se nas falas das entrevistadas quando, referido-se sua condio de empregadas e relao com as patroas, se utilizam de categorias que tanto expressam relaes da ordem familiar quanto os deveres e obrigaes da ordem das relaes de trabalho; remetem s diferenas e s desigualdades entre suas condies de vida e a da patroa mas buscando um reconhecimento comum em uma categoria - mulher - e que termina por formular o "patroa como amiga". No plano da narrativa recorrente a informao sobre cotidianos e hbitos culturais diversos pois circulando em meios sociais distintos e desiguais ( rural e urbano, classes subalternas e classes superiores), ao falar de suas vidas informam, e expressam, suas reflexes sobre distintos universos sociais e culturais. 4) a interconexo desta experincia com aquelas relatadas pelas patroas. Nas estrias de vida das patroas tambm h uma reflexo sobre o universo domstico, sobre o cotidiano domstico, sobre as tarefas domsticas e sobre a relao com as empregadas. Embora muitas categorias sejam codificadas diferentemente (a de "ser humano", por exemplo), e outras estarem ausentes (de "amiga", para classificar a empregada, por exemplo) e outras ainda lhe serem prprias ( a de "estranha", por exemplo), recorrente, nas falas de patroas e empregadas, a caracterizao da domesticidade como escravizadora e, em muitos casos, como tambm aprisionadora a relao entre ambas. Como se constitussem uma para outra o mais desejado outro indesejvel, em um mesmo que, ambas, gostariam de descartar.

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    A estria de vida de Beatriz pergunta inicial, desde quando tivera empregadas, Beatriz respondeu:

    "Bom, sempre tive empregada na minha casa, desde que nasci. Agora, depois de casada, e depois que voc tem filho e que voc comea mesmo a sentir o drama"

    A estria de vida de Beatriz tambm contm uma srie de informaes: sobre os mecanismos para a contratao de empregadas, sobre as ritualizaes na casa e na interao com o significado de delimitar quem a patroa e quem a empregada; sobre o medo do roubo e sobre como acontecem alguns dos roubos efetivos e o que passvel de ser roubado; sobre como deveriam ser desempenhadas as tarefas domsticas e o que cabe ou no empregada realizar no cotidiano domstico, e sobre a prpria organizao deste cotidiano. Algumas destas informaes foram recorrentes em outras entrevistas e tambm em outras fontes. A narrativa de Beatriz tambm apresenta uma estruturao prpria, e seus eixos so: um, a oposio limpeza, higiene : sujeira, outro, a oposio sua famlia : a empregada como estranha. Estes eixos se cruzam na narrativa formando um par: estranha famlia (a empregada) e sujeira. A descrio das vrias empregadas que teve ( descrio minuciosa de seus comportamentos e da relao que estabeleceram, com recriao dos dilogos, gestos, eventos) ordenada pela oposio limpeza: sujeira, famlia: estranha. A limpeza da casa e da famlia se sobrecodificam, e fica difcil separar o que so os elementos de higiene e o que seria sujeira moral e social. A cada observao sobre a falta de cuidados de

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    suas empregadas com a limpeza da casa seguem-se observaes sobre a sujeira moral e social que a empregada - uma estranha - representa para a sua famlia. H, inclusive, em vrios momentos de sua fala a metfora animal: "soltar a empregada", "bichos do INPS", compensando a presena fsica da empregada (que lhe necessria) com sua excluso simblica. Um dos momentos evocativos mais fortes da entrevista foi a narrativa de um roubo que uma empregada teria feito. Ao recriar a situao do roubo, Beatriz enumerava um a um os objetos que teriam sido roubados, e os descrevia bem como ao que lhe significavam (uma viagem a Europa, um presente de casamento, momentos especiais com o marido). Para a compreenso deste eixos que estruturam a narrativa de Beatriz haveria duas chaves. Uma, o seu ideal de mulher e de famlia conjugal e que ora mais implicitamente, ora mais explicitamente, podem ser lidos na narrativa. Esta idealizao implica uma recriao do que concebido como feminino, onde a mulher estaria atenta organizao domstica, sua famlia combinados a um projeto profissional. A famlia, neste caso, implicaria privacidade e intimidade. O primeiro projeto, considerando a tradio em que foi educada, coloca, para Beatriz a necessidade de uma empregada, o segundo exclui a presena da empregada. A descrio do roubo, e os comentrios adicionados, dramatizaram esta tenso, e da, talvez, sua fora evocativa. Outra chave advm da pergunta de porque esta idealizao marca to profundamente a narrativa de Beatriz. E para isto preciso situar quem ouviu Beatriz. A entrevistadora, uma estudante de antropologia (mestrado) e feminista, e que era, na poca, minha auxiliar de pesquisa, irm de Beatriz. Neste caso, quem foi a entrevistadora, creio, crucial para se compreender porque a narrativa se estruturou nos eixos a que me referi. A entrevistada marcava sua diferena: nem era uma feminista como sua irm, nem uma dona-de-casa tradicional

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    como a me de ambas. Sintetizou, tensamente, elementos de ambas e expressou esta "sntese" em sua fala. Mas havia outra diferena a ser marcada: tendo em vista os casamentos da entrevistada e da entrevistadora (a situao financeira dos maridos) Beatriz estaria marcando tambm sua distinta e superior condio social. Talvez fosse isto tambm que estivesse dizendo Beatriz ao enumerar to minuciosamente os objetos que lhe foram roubados quando evocou o roubo que havia feito uma de suas empregadas. A leitura desta estria de vida, situada em relao a situao de pesquisa e como narrativa, me permitiria sugerir: 1) esta histria de vida, como experincia e como narrativa, singular. Particularmente a nfase na limpeza e sujeira, e a sobrecodificao moral e social desta oposio, lhe serve para classificar a empregada como estranha. Metforas animais qualificam esta estranha, e uma soluo tcnica chegou a ser aventada: para Beatriz um rob seria a soluo; 2) a interconexes entre esta estria de vida e outras, de patroas que compartilham com Beatriz sua faixa etria, classe e a tentativa de combinar um certo estilo de ser dona-de-casa e a vida profissional. A caracterizao da empregada como uma estranha, um "mal necessrio", e o carter escravizador das atividades domsticas recorrente, embora no no grau e na combinao discursiva de Beatriz; 3) a interconexo entre esta estria de vida e das outras patroas entrevistadas. Por exemplo, a referncia a roubos, reais ou temidos, a ritualizao na unidade domstica para demarcar os limites entre patroa e empregada, entre a mulher patroa e a mulher empregada, entre quem da famlia e quem a estranha. E tambm pela ausncia da categoria amiga para adjetivar a empregada. 4) Como observei, na anlise da estria de vida anterior, poder-se-ia considerar a referncia ao cotidiano domstico, a rotina das

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    tarefas domsticas, na sua descrio e avaliao, como compartilhados por patroas e empregadas em suas entrevistas. Entretanto seria preciso, considerando o nvel de generalidade em que esta interconexo est sendo proposta, referir-me tambm, nesta generalizao, aos distintos significados que estas referncias adquirem quer se trate da patroa ou quer se trata da empregada. Na fala da patroa, considerar o domstico como aprisionador ou escravizador significa ter mais tempo pessoal, para sua profisso, para sua famlia. E tambm livrar-se de tarefas consideradas desgastantes e enfadonhas. Para a empregada, a domesticidade est sobrecarregada pelo seu exerccio tambm como um trabalho assalariado e, muitas vezes, pela ausncia de um espao social prprio. Desta forma, remeter-se domesticidade como escravizadora passa por uma analogia mais direta com a escravido. Resguardadas estas diferenas fica, entretanto, mais nuanada ou mais direta, a comum afirmao das tarefas domsticas como escravizadoras e, tambm comum a ambas, patroas e empregadas, a recorrente aspirao de um "tempo para si". III. O domstico: experincia compartilhada, diferenciada e diferenciadora. As duas estrias de vida que analisei referem-se a uma experincia compartilhada. Vou design-la, com um mnimo grau de abstrao, por uma categoria: domstico. Compreendida como uma categoria e no como o usual adjetivo: grupo domstico, trabalho domstico.6 O campo semntico desta 6 O termo "domstico" tem quase um estatuto conceitual na antropologia, mas quase sempre como um adjetivo: " domestic groups", "domestic fonctions". Sobre este tema so, particularmente, importantes: FORTES, M: "The Developmental Cycle in Domestic groups", IN GOODY, J. (ed.):

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    categoria - e que foi construdo micamente7 - inclui concepes sobre a domesticidade, atividades, posies, relaes e espacialidade domsticos, mas no se confundiria com seus referentes como unidade domstica, relaes familiares, trabalho domstico e espao domstico, embora os contenha. Desta forma, domstico est sendo compreendido como sentido, no como esfera. As relaes familiares e a unidade domstica so constitudas por homens e mulheres mas o domstico, da forma como o defini, gramaticalmente masculino, uma categoria de gnero feminino: define-se por, e definidor de feminino. Concebidos como femininos, ambos - mulher e domstico - pode ser mais compreensvel porque, em sociedades modernas, mulheres, que realizam as mais distintas experincias profissionais, encontram-se ainda associadas ao domstico. Sabemos, desde Durkheim e Mauss, que as categorias classificatrias distinguem, e tambm relacionam, opem e tambm estabelecem junes.8 Alm de concebido como feminino tambm no muito raro, pelo contrrio, encontrarmos o domstico caracterizado como privado, ou da ordem do privado. Naquele sentido de um domnio da intimidade, do interno, do afetivo, do familiar, das

    Kinship. London, Penguin Books. 1971; YANAGISAKO, S. J.: "Family and household: the analysis of Domestic Groups", IN American Rev. Anthropological, 8. 1979, pp. 165-205; BENDER, D. R .: "A refinement of the concept of household: The analysis of Domestic Groups". IN American Anthropologist, 69. 1967, pp. 493-504. 7 Utilizo mico no sentido daquela distino lingustica "fonmica" e "fontica": fonmica, uma classificao dos sons de acordo com a sua funo interna na linguagem, e fontica, de acordo com suas propriedades acsticas. Em antropologia, usualmente, mico, e tico, referem-se a distino entre categorias internas dos grupos ou sociedades estudados (mico) e as categorias e conceitos do antroplogo (tico). E que corresponderiam ao que se designa como "experincia de perto" (atenta s elaboraes dos prprios sujeitos sob observao) e " experincia distanciada" (as elaboraes do pesquisador). 8 DURKHEIM, E. e MAUSS, M.: "De quelques formes primitives de classification", IN MAUSS, M.: Oeuvres. vol.2. Paris, Minuit.

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    relaes pessoais. O mundo da casa, no da rua: do secreto e ntimo, no da publicizao; da pessoa, no do cidado. Evidentemente, so vrias as discusses embutidas nas anlises sobre o privado e o pblico. Discusses que, em maior ou menor grau, explcita ou implicitamente, so limitadas pelo carter jurdico desta terminologia e pelo seu carter dicotmico. A grande dicotomia de que fala Bobbio.9 Mesmo as anlises que reagem a um binarismo radical no escapam da dicotomia intrnseca a esta oposio. Pensemos em Sennet. Diz este autor que para falar "destes dois domnios, necessrio pensa-los como uma molcula: so modos de expresso humana concorrentes, localizados em diferentes situaes sociais, e que so corretivos um do outro".10 Supondo que o que est sendo transmitindo a idia de um agrupamento contendo elementos distintos, ainda se preserva o termo domnios, localizaes, para se referir ao pblico e ao privado. Em Sennet, como em Arendt, de formas diferentes, pressupe-se a distino entre pblico e privado. No primeiro, lamenta-se a imposio da intimidade, que seria caracterstica do privado, sobre o pblico onde deveria valer a impessoalidade. Em Arendt, afirma-se a necessidade de manter a distino, e no a identificao, entre o que ela designa como esfera do pblico e do privado.11 Mas h uma inverso do argumento de Sennet: o temor de Arendt que em se dando esta identificao o coletivo - o pblico, o comum - tenderia a anular a intimidade. Lamentando a tirania da intimidade - privado anulando o pblico - ou temendo-se o totalitarismo - pblico anulando o privado -

    9 BOBBIO, N.: "A Grande Dicotomia: pblico e privado", IN BOBBIO, N.: Estado, Governo e Sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. 10 SENNET, R.: O declnio do Homem pblico. As tiranias da intimidade. 1989. 11 ARENDT, H.: "Public Rights and Private Interests; in reponse to Charles Frankel". IN MOONEY, M. e STUBER, F.(ed.): Small conforts for hard times: humanists on public policy. New York and Columbia, University Press, 1977.

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    ambos os autores apontam para o risco da indistino entre as duas esferas. Em um curto artigo, Ledrut prope que se pense os dois termos, pblico e privado, como um par semntico e sob constante relao recproca. Para este autor no haveria, na sociedade moderna, ao contrrio das interpretaes tipo Habermas e Arendt, uma diminuio ou redefinio invertida da esfera pblica. Pblico e privado - par semntico - seriam, ambos, definidos pela reciprocidade constante e diferenciada.12 Se eu bem compreendo a sugesto de Ledrut, manter-se-ia a diferenciao entre os dois termos, mas suas relaes estariam sujeitas a redefinies, o que desafia a concepo de pblico e privado como esferas (e contedos fixos). Este desafio interessante porque, no sentido jurdico da dicotomia pblico: privado, a pertinncia a um domnio fundamental. Como lembra Lafer:

    "Pblico e privado constituem uma das grandes dicotomias do direito. E por esta razo que Radbruck, reconhecendo a sua importncia, entende que os conceitos de Direito Pblico e Direito Privado so categorias do pensamento jurdico, no sentido de que tem sempre cabimento indagar a propsito de qualquer preceito jurdico a respeito do domnio a que pertence." 13

    Discutir a dicotomia pblico: privado, para resguard-la ou descart-la no plano conceitual (e preciso enfatizar em que

    12 LEDRUT, R.: "La reciprocit du public et du priv", IN Espaces et Socits, Juil.- Dc.. 1981, pp. 147-53. 13 LAFER, C.: A Reconstruo dos direitos Humanos. Um dilogo com o pensamento de Hannah Arendt. So Paulo, Companhia das Letras. 1988, pag. 243.

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    plano estou situando as duas alternativas) requer mais tempo do que disponho neste texto. Ou de mais certezas do que as que disponho neste momento. Mas valeria ressaltar a observao de Dumont - em sua discusso sobre os sistemas de oposies binrias - sobre a importncia de se levar em conta as situaes em que atuam estas oposies, entendendo por situao, inclusive, mentalidades e valores.14 Poderamos acrescentar que, sabemos, seria bem mais fcil operar com estas oposies se no tivssemos que considerar tambm os sujeitos sociais, suas aes e interaes. Isto , sujeitos que no apenas se comportam mas que sentem, refletem sobre, negociam, mantm e modificam o quadro estvel das categorias. Poderamos ainda acrescentar, tambm das "esferas". Uma breve decodificao dos referentes da dicotomia pblico/privado apontaria: a oposio entre uma esfera restrita - um ou poucos - em contraposio a uma esfera ampliada - comum a todos - (pessoa/cidado, individual/coletivo, interno/externo, excluso/acesso a todos); a oposio poltico/no-poltico (intimidade/ visibilidade, publicizao; segredo/informao); a oposio sociedade/estado (economia/administrao). Mas, poder-se-ia acrescentar outras, ora correspondentes ora incorporadas ao eixo pblico/privado: afetivo/racional; casa/rua; natureza/cultura; domstico, familiar/social, civil; feminino/masculino. Evidentemente, e dependendo da anlise, estas oposies podem ser dicotomizadas binariamente em um sistema de oposies, ou relacionadas, invertidas, combinadas. Mas, recorrentemente, domstico atribudo ao privado com quase todas as conotaes subtendidas

    14 DUMONT, L.(1978): "La Communaut anthropologique et l'idologie", IN L'Homme, tome XVIII, numro 3-4 (Juil. - Dec.). Paris, Revue Franaise d'Anthropologie 1978, pp. 83-110, particularmente pp. 102-103.

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    neste termo (personalismo, relaes familiares, intimidade, afetividade, segredo, etc). Retomemos agora as estrias de vida de Isabel e Beatriz, e concretizemos a experincia de domstico a que esto se referindo. Este domstico est sobrecodificado porque ambas esto dizendo dele atravs de uma relao social, vivida por uma na situao de patroa, e por outra na situao de empregada. Relao que se atualiza na unidade domstica, e em meio s relaes familiares da patroa. Como exerccio de concretizao, vou me utilizar de uma analogia teatral: o cenrio a unidade domstica (entendida como residncia composta de relaes familiares e/ou outras relaes). As personagens centrais (centrais, claro, considerando o meu recorte) nesta encenao so a patroa e a empregada. O texto o domstico. Este texto, e neste texto, encontramos apenas o que est subentendido quando falamos de "esfera privada"? Na sociedade brasileira, ainda hoje, as formas que tomam a relao entre patroas e empregadas domsticas, apresentam um leque bem variado. Estas formas dependem de combinaes como: empregadas que moram na casa em que trabalham (com assalariamento "pleno" ou como "crias da casa"15) at as chamadas "diaristas".16 Estes dois casos so casos extremos: no primeiro h uma interao mais intensa e forte com a patroa e sua famlia (tambm dependendo, claro, do estilo de classe desta unidade domstica, inclusive da dimenso arquitetnica da casa) e a segunda com interao mais rasa; se a unidade domstica contm famlia conjugal ou extensa, ou outras formas de 15 "Crias da casa" designa as crianas ou adolescentes, geralmente parentes pobres mas no necessariamente parentes, e que so "adotadas" por famlias recebendo o encargo das tarefas domsticas. Na maioria das vezes so meninas, mas h tambm casos de meninos e que, enquanto crianas, tambm recebem estes encargos que, com o tempo, vo se modificando para outras atividades como motorista, etc. 16 Tambm chamadas "faxineiras", as diaristas trabalham um dia ou dois na semana, em cada casa. So pagas pelo dia de trabalho.

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    agrupamentos ou de pessoas sozinhas (poderamos, por exemplo, encontrar esta relao entre homens e mulheres, e at eventualmente entre homens e homens); do ciclo de vida do casal, se h filhos pequenos ainda ou se os filhos j so adultos. Outras variaes: grau do reconhecimento dos direitos trabalhistas, peso do salrio ou da troca de benefcio personalistas (quase sempre uma combinao de ambos, a diferena sendo do grau de um e de outro); haver apenas uma, duas ou mais empregadas na casa. Minha pesquisa recortou, na sua dimenso qualitativa, a forma mais recorrente e clssica: unidades domsticas, com famlia conjugal, classes mdias, e onde a relao constituda entre mulheres ( que contratam e so contratadas e que resolvem entre si as regras da organizao do trabalho domstico e de sua interao e relao). Um breve parntese para observar um indcio (alis, no muito surpreendente) dos dados quantitativos: a participao dos homens (maridos e pais) nas atividades domsticas cai para a categoria de eventual (e no de frequente), de seletivo (no todas as atividades domsticas) em todos os casos em que h empregadas domsticas na casa. Poderamos dizer que a presena da empregada domstica refora a atribuio feminina das tarefas domsticas. Em unidades domsticas onde h outras presenas femininas - filhas e avs - tambm cai a participao doshomens (os meninos quase nunca so citados como participando das tarefas domsticas). Mas, se h empregadas na casa, tambm diminui a participao destas outras presenas femininas (filhas, avs, por exemplo). As experincias narradas por Isabel e Beatriz remetem quela situao que qualifiquei de clssica, o que torna compreensvel uma frase de Isabel, repetindo uma frase de sua me: "patro no fede nem cheira".

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    Seria certamente mais fcil desenvolver uma anlise que, pressupondo a classificao do domstico como privado, se aplicasse, ao entendimento desta relao, os componentes implcitos na dicotomia pblico/privado. Desta forma esta relao - as categorias formuladas pelos sujeitos nela envolvidos e para express-la e a ritualizao que a envolve - seria explicada pela atuao dos mecanismos familiares, afetivos, ntimos, pessoais. Mas no foi o que, empiricamente, encontrei, e nem me parece o caminho analtico mais adequado. O que encontrei foi um jogo ambguo, onde esto presentes e atuam vrios, e simultneos, modelos. Esta ambiguidade no estando apenas explicitada pelos sujeitos entrevistados e/ou observados diretamente na interao cotidiana. Est tambm nos textos jurdicos, nas discusses polticas publicadas na imprensa nas pocas de discusses sobre a extenso dos direitos trabalhistas s empregadas domsticas, nos congressos de Associaes de empregadas domsticas (algumas hoje transformadas em sindicatos) e na fala de uma presidente de um sindicato de patroas (patroas, no feminino). Categorias como pessoa e cidad (individuo com direitos); amiga e patroa; trabalhadora, profissional e ser humano; regras como confiana, calcada em relaes interpessoais, e exigncia de obrigaes e direitos; negociao entre troca de bens pessoais e salrio justo; de sentimentos, afetos e atitudes racionais na organizao do trabalho, e na relao; jogo entre segredo e informao. Ambos, e no um ou outro, esto presentes, e a resultante uma combinao complexa e variada. Com esta relao, e nesta relao, o texto do domstico que encenado, retomando a analogia teatral, contm elementos que se poderia chamar do pblico e do privado. Esta ambiguidade, ou este hibridismo, talvez permita compreender porque to recorrentemente (e eu lembraria as narrativas de

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    Isabel e Beatriz) se faz uso de noes como ntimo e estranha ou porque a ritualizao na demarcao de limites, tentando distinguir o que se considera "misturados". Mas h outra ambiguidade, e que diz respeito ao masculino e feminino. As relaes familiares, concretizadas na unidade domstica, so, idealmente, constitudas por um complexo de posies e papis marcados pelo gnero: me, esposa, dona-de-casa (tomando uma gerao apenas) seriam femininos. Quando a empregada domstica - mulher - exerce seu trabalho em unidades familiares, se estabelece uma confuso estrutural - e para os sujeitos - entre as funes ou atividades na unidade domstica e posies e relaes familiares. Tendo em vista que mulher, como categoria substantiva, expressa, marcadamente, o que se considera como feminino a confuso no to incompreensvel. Haveria, por um lado, uma expectativa de que a empregada desempenhe funes na unidade domstica, e da famlia na unidade domstica, mas no que ocupe as posies correspondentes a estas funes. Uma vez confundidos a ameaa pode tornar-se uma constante, gerando uma tenso que poderamos chamar de efeito de espelhamento: duplicam-se mulheres onde se prev uma. Dar conta desta complexidade exigiria mais elementos, e mais tempo. Mas, simplificando, e para terminar, as categorias e ritualizaes que encontrei no universo desta interao, entre patroas e empregadas domsticas, caminham no sentido de afirmar uma das mulheres como empregada (no feminino) e a patroa como mulher. E do ponto de vista das discutidas identidades, de gnero ou entre mulheres, no encontrei nenhum indcio, na fala das patroas, de um "ns, mulheres" em que estariam includas patroas e empregadas, mas a terceira pessoa, no singular e no plural, no feminino: ela, elas. Esta terceira pessoa, est tambm presente na fala das empregadas, mas h, neste caso, algumas elaboraes que caminham no sentido de afirmar que a patroa

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    seria compreensiva (ou deveria ser) porque tambm " mulher". O que, como j observei, culmina na categorizao "patroa como amiga". Talvez fosse possvel pensar que do ponto de vista estrutural, do que definido pelo gnero, estejamos diante de uma identidade, mas do ponto de vista dos sujeitos, substantivamente mulheres, esta interao caminha em outro sentido. Esta ltima ambiguidade me parece ter razes antigas. O que me leva a trazer aqui uma crnica, que est no livro "Donnas e Donzelas", do incio do sculo. Nesta crnica narrado o suicdio de uma mulher. Aps alguns pargrafos de suspense sobre o motivo do suicdio (cime? misria inesperada? adultrio? morte de um filho? loucura?), este , finalmente revelado, atravs de um bilhete deixado pela Dna. Augusta Fernandes: "Morro porque no posso suportar empregadas". A narrativa termina, e a autora diz para encerrar: "No seria de mulheres este livro, donnas e donzelas, se no houvesse um cantinho para falar das criadas". Mulheres, donnas, donzelas, criadas, estas categorias flexionadas pelo gnero feminino expressam diferenas e desigualdades. Entre donnas e donzelas, entre donnas, donzelas e criadas. No ltimo caso, as criadas so remetidas a um "cantinho". Mas, diz o dicionrio, um dos sentidos de canto ngulo. E ngulo, diz ainda o dicionrio, uma figura formada por duas retas que tm um ponto em comum.17 Compreender e explicar o que compartilhado, comum, e o que distinto e desigual, os pontos de juno e os de disjuno, continuam sendo, ainda, um de nossos grandes desafios. 17 Novo Dicionrio Aurlio. Ed. Nova Fronteira.

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    IV. Uma relao entre duas histrias. Comecei este texto referindo-me a algumas das utilizaes de histrias de vida, na antropologia. Nos casos citados referi-me s narrativas de um s biografado e que, nem por isto deixaram de falar de sociedades e de processos culturais. Minha anlise, entretanto, acabou por afirmar a importncia de cruzar estrias de vida, inclusive situando neste intercruzamento o peso importante para sua dimenso objetiva. Seria preciso, portanto, enfatizar que esta sugesto situa-se no caso de "estrias de vida" e do que permitem conhecer sobre uma relao social e sem descartar as diferenas entre os sujeitos desta relao. Se eu tomasse cada uma das entrevistadas como uma histria de vida, como biografia, alargando o espectro de suas vidas, cada uma, em si mesma, teria relevncia. Mas, neste caso, creio, os termos seriam diferentes. A histria de vida de Isabel, com alguns complementos, seria exemplar sobre o processo de migrao feminina do campo para a cidade, e sobre processos internos ao trabalho domstico assalariado: em sua prpria histria h quase uma histria das formas que este trabalho pode assumir. A histria de vida de Beatriz seria exemplar sobre as transformaes da experincia feminina nas classes mdias urbanas e sobre os processos de transformao da famlia. E ambas mostrariam a singularidade de sujeitos vivendo estes processos e os interpretando. O que apenas reafirma que as histrias de vida continuam sendo instrumentos fundamentais para a compreenso e anlise de relaes sociais, de processos culturais e do jogo sempre combinado entre atores individuais e experincias sociais, entre objetividade e subjetividade. No caso preciso de minha anlise possibilitaram ainda, como em um jogo de espelhos, mostrar a complexidade de uma relao vivida por mulheres que tm em comum uma atribuio

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    ao domstico mas que nele se situam de forma distinta. O que eu no sei se "Isabel" estaria na narrativa de "Beatriz", e vice-versa, se o tema no lhes tivesse sido posto. Na narrativa no sei, mas na experincia social de "ambas", certamente. ____________________________

    EXPERINCIAS SOCIAIS, INTERPRETAES INDIVIDUAIS:

    histrias de vida, suas possibilidades e limites Resumo: Neste artigo a autora analisa histrias de vida como fontes de informao, como evocativas e como reflexo. Esta tripla dimenso permitiria combinar uma anlise que leve em conta a objetividade e a subjetividade. Ao propor intercruzar estrias de vida sugerido que este instrumento poderia, ao mesmo tempo, permitir o acesso a experincias e interpretaes particulares e a nveis distintos de generalidade. As duas estrias de vida, de duas mulheres, falam de uma relao entre patroas e empregadas domsticas.

    SOCIAL EXPERIENCES, SINGULAR INTERPRETATIONS:

    life stories,their possibilities and limits Abstract: In this article the author explores life stories as expression of information, as evocation and as thought. Through the analysis of the criss - crossing of two life stories the author shows how considering the three mentioned aspects of life stories its is possible to conciliate objectivity and subjectivity, social experiences and singular interpretations. The life stories of two women tell about them and about a specific social relationship: the relationship among a master and a domestic servant.