Sonderkommando - Shlomo Venezia

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    dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

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    SHLOMO VENEZIACom a colaborao de

    Batrice Prasquier

    TraduoJorge Bastos

    PrefcioSimone Veil

    Notas histricasMarcello Pezzetti e Umberto Gentiloni

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    Copyright 2007 by ditions Albin Michel

    Todos os direitos desta edio reservados EDITORA OBJETIVA LTDA.Rua Cosme Velho, 103Rio de Janeiro RJ CEP: 22241-090Tel.: (21) 2199-7824 Fax: (21) 2199-7825www.objetiva.com.br

    Ttulo original

    Sonderkommando Dans lenfer des chambres gazCapaMarcelo Pereira / Tecnopop

    RevisoDiogo HenriquesBruno FiuzaLilia Zanetti

    Coordenao de e-bookMarcelo Xavier

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    -V571s-

    Venezia, Shlomo

    Sonderkommando [recurso eletrnico] : no inferno das cmaras de gs / Shlomo Venezia ; traduo Jorge Bastos. - 1. edRio de Janeiro : Objetiva, 2010.recurso digital

    Traduo de: Sonderkommando: dans lenfer des chambres gaz Formato: ePub(Electronic Publication - PublicaEletrnica)Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions - AdobeModo de acesso: World Wide Web (web)159p. ISBN 978.85.390.0641.0 (recurso eletrnico). Venezia, Shlomo, 1923- - Entrevistas. 2. Birkenau (Campo de concentrao). 3. Auschwitz (Campo de concentrao).

    Judeus - Grcia - Biografia. 5. Holocausto judeu (1939-1945) - Narrativas pessoais. 6. Livros eletrnicos. I. Ttulo.

    14-16205 CDD: 920.994053438 CDU: 929:94(100)1939/1945

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    Gostaria de dedicar este livro s minhas duas famlias: aquela anterior guerra e a qconstitu depois. Meus primeiros pensamentos vo para minha queridssima me de 44 an

    de idade e minhas duas irms caulas Marica e Marta, de 14 e 11 anos. Muitas vezes mlembro, com tristeza, da vida difcil que minha me levava, tendo enviuvado muito cedo, cocinco filhos. custa de muito sacrifcio, no limite do suportvel, ela nos educou com base eprincpios sadios, como os da honestidade e do respeito ao prximo. Tais sacrifcios sofrimentos foram apagados, eliminados junto com minhas duas irmzinhas, assim qudesceram dos vages para transporte de animais na Judenrampede Auschwitz-Birkenau, e11 de abril de 1944.

    Minha outra famlia surgiu aps a grande tragdia. Minha mulher, Marika, e meus trfilhos, Mario, Alessandro e Alberto, sabem muita coisa melhor do que eu e tm como baessencial a honestidade e o respeito ao prximo. A tenacidade de minha mulher fez com queles crescessem e se tornassem homens dos quais me orgulho. Marika tambm dedicomuitos cuidados a mim, tornando mais leves as enfermidades que resultaram do meaprisionamento nos campos. Merece muito mais do que o meu afeto silencioso. Obrigado ptudo que fez at agora e pelo que continua a fazer pelos nossos cinco netos, Alessandra, DaniMichela, Gabriel e Nicole, assim como por nossas noras Miriam, Angela e Sabrina.

    Do marido, pai e avShlomo Venez

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    A verdade completa bem mais trgica e assustadora

    Zalmen Lewent

    1O manuscrito em idiche de Zalmen Lewental foi encontrado em outubro de 1962, enterrado no ptio do Crematrio. Foi redigpouco tempo antes do desencadeamento da rebelio do Sonderkommando, para deixar um testemunho e um vestgio do extermndos judeus nas cmaras de gs. Lewental provavelmente morreu em novembro de 1944, a poucas semanas da Libertao. Extrado

    Des voix sous la cendre. Manuscrits des Sonderkommandos dAuschwitz-Birkenau, com organizao de Georges BensoussRevue dhistoire de la Shoah , no171, janeiro-abril de 2001.

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    SUM RIO

    CapaFolha de Rosto

    CrditosDedicatriaEpgrafePrefcio

    dvertncia de Batrice PrasquierI. Avida na Grcia antes da deportaoII. O primeiro ms em Auschwitz-BirkenauIII. SonderkommandoIV. Sonderkommando (continuao)

    V. A revolta do Sonderkommando e o desmonte dos CrematriosVI.Mauthausen, Melk e Ebensee

    gradecimentosNotas Histricas

    A Shoah, Auschwitz e o Sonderkommandopor Marcello Pezzetti

    A Itlia na Grcia: Pequena histria de um grande fracassopor Umberto Gentiloni

    BibliografiaFotos

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    PREFCIO

    Shlomo Venezia chegou a Auschwitz-Birkenau em 11 de abril de 1944, e eu, vindo Drancy, cheguei quatro dias depois. At 9 de setembro de 1943, tnhamos vivido ele nGrcia e eu em Nice sob a ocupao italiana, com a sensao de estarmos, pelo menprovisoriamente, ao abrigo da deportao. Mas aps a capitulao da Itlia, o cerco nazisimediatamente se estreitou, para os que viviam tanto na regio dos Alpes-Martimos quan

    no arquiplago grego.Quando eu falo da Shoah, frequentemente evoco a deportao e o extermnio dos judeda Grcia, pois o que se passou nesse pas ilustra perfeitamente a obstinao dos nazistas coa aplicao da Soluo final, a perseguio dos judeus at nas menores e mais recuadas ilhdo arquiplago. Foi ento com um interesse bem particular que li o depoimento de ShlomVenezia, judeu, cidado italiano, falante no apenas do grego, mas tambm do ladino, dialeto dos judeus de Salnica, onde ele vivia. Seu nome, Venezia, remete ao tempo em qseus ancestrais, nos anos de errncia que se seguiram expulso dos judeus da Espanha, e1492, tinham tomado o caminho da Itlia, antes de chegarem a Salnica, a Jerusalm d

    Blcs, cidade que teve 90% da sua comunidade judia exterminada.Leio inmeros relatos de ex-deportados que, toda vez, me fazem mergulhar novamente

    vida do campo. O de Shlomo Venezia, entretanto, particularmente perturbante, pois nico testemunho completo que temos de um sobrevivente dos SonderkommandoPassamos a conhecer, com preciso, como foram condenados a cumprir aquela abominvtarefa, a pior de todas: ajudar os deportados selecionados para morrer a se despirem entrarem nas cmaras de gs, carregando em seguida todos aqueles cadveres, corpmisturados que tinham se debatido, para os fornos crematrios. Cmplices dos carrasc

    contra a prpria vontade, os membros do Sonderkommando foram quase todos assassinadocomo aqueles que eles conduziam s cmaras de gs.A fora desse depoimento vem da honestidade irrepreensvel do autor, que con

    exclusivamente o que viu, sem nada omitir: nem o pior, como a barbrie do responsvel peCrematrio, nem as execues sumrias ou o funcionamento ininterrupto das cmaras de ge dos fornos crematrios. Ele cita tambm o que pode parecer atenuar o horror da situacomo a relativa clemncia de um oficial SS holands ou as condies de sobrevivncia, menatrozes do que as dos demais deportados, de que gozavam os membros dSonderkommando, servidores indispensveis da mquina de morte. O que igualmente torn

    o seu testemunho excepcional ter sido necessrio esperar o dilogo com Batrice Prasqui

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    para que Shlomo Venezia ousasse evocar os aspectos mais macabros de seu trabalho nSonderkommando, trazendo detalhes insuportveis que do toda a medida da abominao dcrime.

    Com palavras simples, Shlomo Venezia restitui vida a rostos definhados, a olharextenuados, resignados e frequentemente aterrorizados daqueles homens, daquelas mulherescrianas com os quais ele esbarrava uma nica e ltima vez. Havia aqueles que ignoravam sedestino; aqueles que, vindo dos guetos, achavam no haver mais qualquer esperana

    sobrevivncia; e, finalmente, aqueles que tinham sido selecionados no campo e sabiam quemorte os aguardava mas isso era, ento, para muitos, uma libertao.Um claro de humanidade s vezes surge, iluminando o horror em que Shlomo Venez

    tentou sobreviver, apesar de tudo. Houve o encontro, na entrada da cmara de gs, com o tiLon Venezia, enfraquecido demais para trabalhar, e a tentativa de lhe dar algo para comeantes da morte. Pde, assim, oferecer um ltimo gesto de ternura e pronunciar, em seguidum kadish2 em sua memria. Houve tambm a gaita que ele s vezes tocava. Houve, enfimaqueles gestos de solidariedade que o ajudaram a se manter um ser humano, como tantvezes foi o caso, para a maioria dos deportados.

    Shlomo Venezia no tenta silenciar episdios que poderiam gerar crticas, se algum atrevesse a formul-las. Apenas o enaltece a coragem de contar sua sensao de ter sidcmplice dos nazistas, o egosmo de que precisou, s vezes, para sobreviver, mas tambmseu desejo de vingana por ocasio da libertao dos campos. Para quem eventualmente sugeque, tendo estado em um kommando, onde se alimentou e se vestiu melhor, talvez tensofrido menos que outros deportados, Shlomo Venezia pergunta: de que vale um pouco made po, de descanso e de roupas, quando se tem diariamente as mos na morte? Por tambmter passado pelas condies de vida normais nos campos, de que ele fala com preciso

    veracidade excepcionais, Shlomo Venezia declara, sem hesitao, que preferiria morrer a foglento a trabalhar no Crematrio.De que maneira, ento, sobreviver em tal inferno, tendo como nica perspectiva

    momento da prpria morte? A essa pergunta, cada deportado tem sua resposta. Para muitocomo Shlomo Venezia, simplesmente no se devia mais pensar: Nos 10 ou 20 primeirdias, eu estava constantemente chocado com a enormidade do crime, depois a gente para pensar. A cada dia ele preferia morrer e, no entanto, a cada dia lutava para sobreviver.

    Que Shlomo Venezia ainda esteja aqui, hoje, representa uma dupla vitria sobre o procesde extermnio dos judeus; pois, em cada membro do Sonderkommando, os nazistas quiseramatar o judeu e a testemunha, cometer o crime e apagar os vestgios. Mas Shlomo Venezsobreviveu e contou, tendo se calado durante muito tempo, como muitos ex-deportados. ele, como eu e tantos outros, s falou tardiamente, foi porque ningum queria ouvi-lVoltvamos de um mundo em que procuraram nos banir da humanidade: queramos contisso, mas esbarramos na incredulidade, na indiferena, se no na hostilidade alheia. Foi apenanos aps a deportao que encontramos a coragem de falar porque, enfim, fomos ouvidos.

    Por isso esse testemunho, como os de todos os deportados, deve ser entendido por cadum como um apelo reflexo e vigilncia. Para alm daquilo que nos esclarece sobre

    Sonderkommandos, Shlomo Venezia nos lembra o que foi o horror absoluto, o crime cont

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    a humanidade: a Shoah. A voz de Shlomo Venezia, como a de todos os deportados, vai extinguir um dia, mas permanecer esse dilogo com Batrice Prasquier, entre umtestemunha uma das ltimas que viu e uma jovem mulher, representante da nogerao, que soube ouvir; pois ela prpria, h anos, j dedica uma ampla parte da sexistncia luta contra o esquecimento. Que se agradea a ela, sobretudo por ter tido coragem de acompanhar Shlomo Venezia nesse retorno assustador ao passado.

    Cabe agora a essa nova gerao no esquecer e fazer com que a voz de Shlomo Venez

    ressoe para sempre.Simone V

    Presidente da Fundapela Memria da Shoa

    2Orao para os falecidos. (N. da E.)

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    ADVERTNCIA

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    Batrice Prasquier

    O presente testemunho foi redigido a partir de uma srie de entrevistas que tive coShlomo Venezia, em Roma, com a ajuda do historiador Marcello Pezzetti, entre 13 de abril21 de maio de 2006. As entrevistas, feitas em italiano, foram traduzidas e transcritas na mai

    conformidade possvel com a verso original e revisadas pelo prprio Shlomo Venezia, pano alterar a autenticidade da narrativa.

    Por ter estado no centro daquela mquina de triturar vidas humanas, Shlomo Venezia esentre os raros sobreviventes a poder dar testemunho das vtimas absolutas, aquelas afogadna multido dos rostos esquecidos e que o acaso e a exceo no salvaram.

    Seu testemunho se situa alm de um ato da memria; um documento histrico quesclarece o ponto mais sombrio da nossa histria.

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    CAPTULO I

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    A vida na Grcia antes da deportao

    Eu me chamo Shlomo Venezia e nasci em Salnica, na Grcia, em 29 de dezembro d1923. Minha famlia teve que deixar a Espanha no momento da expulso, mas antes de estabelecer na Grcia meus antepassados passaram pela Itlia. Por isso me chamo Venezia

    Os judeus vindo da Espanha no tinham, na poca, nomes de famlia; se chamavam, pexemplo, Isaac filho de Salomo. Chegando Itlia, escolheram sobrenomes qcorrespondiam cidade em que se estabeleceram. Por esse motivo, muitas famlias judias tnomes de cidades. Em nosso caso, foi o que nos permitiu manter a cidadania italiana.

    ramos uma famlia com cinco crianas, sendo dois meninos e trs meninas. Meu irmmais velho, Maurice, tinha dois anos e meio a mais que eu, e em seguida vinha Raquel, coum ano e meio a mais. Depois as duas ltimas: Marica, nascida em 1930, e Marta, que nascem 1933. Nos primeiros anos, minha famlia vivia numa casa bem pequena. Mesmo n

    sendo grande, era bem melhor do que os barracos de madeira em que a maioria dos judeupobres de Salnica morava. medida que a famlia crescia, a casa ia ficando pequena demaEu devia ter cinco anos quando ela foi vendida e se construiu ao lado, em um terreno qpertencia a meu av, uma casa maior, de dois andares. Meu pai era um tanto egocntricomandou que o nome dele fosse escrito, Venezia Isacco, com tijolos vermelhos no caminhque levava porta de casa. O segundo andar era alugado a famlias gregas. O dinheiro daluguel ajudava meu pai a pagar os impostos. Infelizmente, as coisas mudaram com sumorte, que aconteceu cedo demais. Devamos estar em 1934 ou 1935, e meu pai deixava patrs cinco rfos.

    Voc, ento, era bem jovem. Como sentiu o falecimento dele?

    Eu tinha 11 anos e estava na escola quando uma prima de meu pai veio me buscar pavisit-lo no hospital. Tinha sido operado de uma doena no fgado, mas nada mais podia sfeito. Eu, alis, sequer tive tempo de v-lo; j estava morto quando cheguei. De repenficamos quase sozinhos e sem recursos. Meu pai administrava uma pequena barbearia quemeu av mandara construir. Eu, claro, no podia substitu-lo quando morreu, pois era ain

    muito menino. Seu assistente, ento, assumiu o negcio, em troca de um pequeno percentupago minha me, toda semana. Mas no bastava para alimentar uma famlia com cincrianas. Apenas graas ajuda dos quatro irmos de minha me pudemos ter o que comtodos os dias. Eu ia casa deles todas as quintas-feiras, para que me dessem um saco dlegumes com berinjelas, cebolas e outras coisas que cultivavam e separavam para a irm. Esajuda era indispensvel, mas insuficiente, tanto que, um ano aps a morte de meu pai, precisabandonar a escola para procurar um trabalho, e assim sustentar financeiramente minhfamlia. Tinha apenas 12 anos.

    E seu irmo mais velho, o que fazia?

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    Ele foi enviado pelo consulado italiano para estudar em Milo. Como ex-combatente Primeira Guerra Mundial e cidado italiano, meu pai tinha direito a certas vantagens. Pans, isso significava ter uma boca a menos para alimentar. Aps a promulgao das leis raciade 1938, na Itlia, meu irmo foi excludo do instituto tcnico Marchioni, de Milo,mandado de volta para a Grcia. Nem ele, ento, conseguiu terminar os estudos.

    Esses anos em que o regime fascista revelou sua verdadeira identidade, meu pai no conheceu. Ele se sentia to orgulhoso de ser italiano na Grcia que no hesitara em vestir

    camisa preta do novo regime e exibi-la desfilando orgulhosamente em qualquer ocasio que apresentasse. Para ele, Mussolini era socialista, e ele no compreendia a verdadeira natureza dfascismo. Estvamos longe demais para ver os desvios do regime. Como ex-combatente, eparticipava de todas as manifestaes e paradas organizadas pelos italianos. Era sua nidiverso. Isso lhe dava a impresso de prestgio, em comparao aos outros judeus de SalnicNo eram numerosos, dentre os judeus vindos da Itlia, e puderam manter a nacionalidaditaliana. A maioria agia como meu pai, via a realidade de longe, sem realmente compreendersituao na metrpole.

    Sentiam alguma diferena, em Salnica, entre judeus italianos e judeus gregos?

    Dos 60 mil judeus da cidade, ns, de origem italiana, devamos ser pouco mais dtrezentos. Mas ramos os nicos que podiam mandar os filhos escola italiana. Ecomparao aos outros, que iam em geral escola judaica, isso gerava algumas vantagentnhamos tudo de graa, nos davam os livros, comamos no refeitrio, distribuam leo fgado de bacalhau... Usvamos uniformes muito bonitos, com aviezinhos para os meninosandorinhas para as meninas.

    Naquela poca, os fascistas tentavam chamar a ateno para a prosperidade italiana. Epropaganda para outros pases, mas a gente se beneficiava disso. Desse modo, aos sbados nescola havia o sbado fascista, ao qual todas as crianas deviam comparecer. Participdaqueles desfiles me deixava orgulhoso, eu me sentia diferente dos outros e gostava dissInclusive fui duas vezes a colnias de frias na Itlia, com os Balilla,3 numa poca em qpraticamente ningum viajava. Alm disso, tnhamos outras vantagens, pois a embaixaitaliana nos ajudava muito. Por exemplo, em certos feriados, o consulado distribua sapatoslivros aos italianos que no tinham muitos recursos. Para ns, essas pequenas coisas faziauma bela diferena. preciso lembrar que a comunidade judaica de Salnica era repartida e

    trs categorias: uma nfima parte era muito rica, uma pequena margem se virava mais omenos, mas a grande maioria das pessoas saa pela manh para trabalhar sem saber conseguiria voltar com dinheiro suficiente, noite, para alimentar a famlia. Na minha casatriste admitir, eu no podia dizer: Estou com fome, vou comer, pois tudo faltava. Nadparecido com as crianas de hoje, que a gente precisa forar para que terminem o prato. Ltudo era limitado, cada um devia se arranjar para achar o que comer. Lembro que tnhamvizinhos ainda mais pobres do que ns. Minha me sempre tentava ajud-los, apesar de nmesmos estarmos em necessidade. Isso d uma ideia da extrema pobreza que nos cercava. Ta

    coisas forjaram o meu carter. Estou convencido de que o estado constante de carncia tornas pessoas mais fortes.

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    Como se passava a vida judaica em Salnica?

    Devia haver uns cinco ou seis bairros judaicos na cidade, todos bem pobres. Em geraeram denominados pelo nmero do bonde que os servia. Mas o principal se chamava BaroHirsch, que era o nome de um rico benfeitor que havia ajudado a comunidade judaica dSalnica. Mais de 90% da populao morando nesse bairro era judia. Morvamos fora desrea, mas eu ficava quase o tempo todo entre judeus. Em casa, tudo era kosher. No que min

    famlia fosse religiosa ou realmente praticante, mas porque todas as lojas do bairro eram koshPrincipalmente a carne, que comprvamos nas raras vezes em que podamos. Comamos nsexta-feira, com vagem; era o prato rico dos pobres. Para se comer no kosher era precirealmente querer e procurar bem longe, fora do bairro. Na escola, ao contrrio, a comida nera kosher, mas isso no era um problema. Para ns, o principal era comer para no morrer dfome.

    Ao nosso redor, havia muitos judeus religiosos. Mas provavelmente no como nos vilarejda Polnia, onde todo mundo era, de fato, praticante. Quando fiz meu bar mitzvah,4 nsabia falar hebraico, ento precisei decorar tudo que devia dizer. Meu pai j no estava ma

    conosco e foi meu av quem me levou sinagoga. A partir desse dia, toda vez que eu dormir em sua casa, ele me acordava ao amanhecer para que eu o acompanhasse na orao manh. Como qualquer menino de 13 anos, que prefere dormir tranquilamente, eu mrevirava na cama, grunhindo, para tentar escapar.

    Como eram as relaes entre judeus e no judeus?

    No havia problemas em particular. Apesar de muitos dos meus amigos serem judeus, e

    tambm convivia com cristos. Ainda assim aconteciam algumas rixas, quando certos jovedas redondezas vinham ao bairro judeu para nos provocar e brigar. Mas eram, sobretuddisputas entre garotos. No sei se podemos falar de antissemitismo com relao a isso. Lembde um episdio que quase acabou mal para mim, quando eu tinha 12 ou 13 anos. Na poca gente saa muitas vezes, no final da tarde de sbado, para olhar e encontrar meninas doutros bairros. Mas os rapazes ficavam rapidamente enciumados e tentavam nos expulsar dterritrio deles. Uma vez, eu estava com quatro ou cinco amigos e demos de cara com ubando de outro bairro. Meus amigos deram meia-volta s pressas, mas eu, sem me dar condo perigo, continuei a andar. Quando percebi o quanto estavam com raiva, comecei a fing

    que mancava. Ao passar por eles, me disseram: Vamos te deixar em paz porque mancseno... Dei ainda uns dez passos daquela maneira e fugi correndo. So coisas que acontecemcom todo menino.

    Mas no sentia qualquer hostilidade especfica contra os judeus...

    O nico momento em que se sentia uma tenso desagradvel era na Pscoa ortodoxa. Ncinemas, era possvel ver, naquelas ocasies, filmetes que alimentavam o antissemitism

    dizendo que os judeus matavam crianas crists e usavam o sangue para fazer po zimEram os momentos mais difceis, mas no me lembro que degenerassem em violncia. Senti

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    se, entretanto, a dificuldade de ser judeu quando o governo mudava e um governo fascistomava o poder. Nesse momento os judeus tinham problemas com mais frequncia. Mesmquando outros meninos vinham procurar briga, os judeus eram sempre apontados como responsveis. Mas fora isso, estvamos to distantes dos negcios do mundo que poucos dns sabiam o que se passava na Alemanha durante aquele perodo. At o fim, alis, ningupodia imaginar. Voc entende, no tnhamos telefone, nem rdio, exceto nos dois txis cidade. Um dos dois motoristas era judeu, e quando passvamos perto do carro ouvam

    algum falando de um jeito estranho; era o rdio. Isso nos intrigava e queramos saber comaquilo era feito, o tal do rdio. Mas eu, em todo caso, era jovem demais para me interesspelo que estava sendo dito.

    os 12 anos, ento, foi preciso se arranjar sozinho e deixar a escola, para trabalhar...

    Sim, eu no tinha mais apoio de fora para me encorajar e ajudar com os estudos. Minhme, apesar de nascida na Grcia, no falava grego, pois seus pais, como muitos judeus, nquiseram que suas filhas convivessem com os no judeus. A lngua em minha casa sempre f

    o ladino, o dialeto judeo-espanhol. Mas com os amigos, na rua, sempre falei grego. E falavperfeitamente, sem o sotaque e as entonaes particulares dos judeus de Salnica. Tudo qeu sabia, aprendera na rua. No tinha estado na escola judaica, apenas na escola italiana. Ntinha mais meu pai para ensinar as coisas da vida e minha me se limitava a algumrecomendaes prticas. Nas famlias pobres, a preocupao no era com a educao, municamente com a procura do que comer. Crescia-se assim, com o ar.

    Aos 12 anos, comecei, ento, a fazer pequenos trabalhos. Aceitava tudo que encontravpara levar um pouco de dinheiro para casa e ajudar minha me. Por exemplo, trabalhei algu

    meses em uma pequena fbrica de espelhos. Eu ainda era pequeno, mas fui colocado nprensa; fixava o espelho ao cabo. Em seguida, trabalhei na fbrica do pai de um amigo, uitaliano no judeu. Produziam-se termostatos. Trabalhei tambm numa fbrica de camas, qficava perto de casa. Fazia coisas simples, levava isso, buscava aquilo... nada importante, mpara minha me aquele dinheiro fazia diferena.

    Meu irmo ainda estava na Itlia e nem minha me nem minhas irms trabalhavamMinha me tinha se casado bem moa e nada recebera da vida, alm de ns, seus filhoDedicara-se inteiramente sua famlia e fazia tudo que podia por ns. Lembro que sua nidiverso, quando ainda ramos pequenos, era uma sada no fim da tarde de domingo. Meu

    pais nos levavam a um lugar que vendia cerveja e queijos. Sentavam-se a uma mesa, pediauma ou duas cervejas e o garom trazia um pouco de queijo. No os deixvamos em papedindo o tempo todo um pedacinho. Minha me, no final, sempre ficava sem nada para eGuardei essas lembranas, apesar de me deixarem triste. Muitas vezes pensei em tudo qupoderia ter feito para ajudar minha me. Eu a amava muito e sei que tinha um carinhespecial por mim. Chamava-se Doudoun Angel Venezia. Sei de todos os sacrifcios que fpor ns e me esforcei para ajudar tanto quanto podia. Mesmo assim, gostaria de ter feito mai

    Mas eu era moo e tambm queria aproveitar a vida. Por exemplo, tentava economiz

    algumas moedas para poder alugar uma bicicleta. Eu adorava aquilo. Acabei me virandsozinho. Como no podia comprar uma, consegui construir eu mesmo uma espcie

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    patinete. Utilizei um pedao comprido de madeira e um outro para me servir de guidomduas rodas que encontrara, e quebrei a cabea inventando um sistema que permitisse girar guidom. Consegui, mas para us-la precisava percorrer a p 200 ou 300 metros, at chegaruma estrada em condies de uso. A patinete representou minha primeira grande decepo infncia. No primeiro dia em que sa para experiment-la, me sentia orgulhoso e muito feliCarreguei-a nos ombros e passei ao lado de uma charrete parada. A estrada estava com muilama e o cavalo no conseguia puxar o carro. Ao me ver passar, o cocheiro pegou minh

    patinete sem me pedir e usou-a para espancar com fora o cavalo, que ficou com medo e livrou da lama que o prendia. A patinete ficou jogada no cho, toda quebrada. Eu nada podfazer seno chorar. Ele a pegara, quebrara, o cavalo sara do lodaal e eu fiquei preso nele. Vopode imaginar a decepo de uma criana que pusera toda sua energia na construo de sebrinquedo. Foi uma lio de vida.

    s coisas mudaram quando seu irmo voltou da Itlia?

    Ele voltou em 1938, aps a promulgao das leis excluindo os judeus da escola, na Itlia.

    situao, em casa, no mudou tanto. Eu tinha um pouco de raiva, porque em vez de pensar famlia, ele s pensava em si mesmo e em se divertir... Acho que ele prprio se ressentia cominha me, por t-lo mandado para to longe. Nunca fomos muito prximos: ele tinha a sturma, e eu, a minha. Com minha irm, apesar de mais velha, era eu quem fazia o papel dirmo mais velho protetor. Lembro, inclusive, que um dia rasguei uma blusa que ela mesmtinha costurado, porque achei decotada demais...

    guerra se preparava no horizonte. Como reagiam as pessoas em volta e como se passou para vocs o

    incio do conflito?

    No nos dvamos conta muito bem. Os responsveis pela comunidade se reuniam pafalar disso. Sentiam-se inquietos e olhavam a Tor, tentando interpretar os acontecimentoMas, para ns, tudo aquilo estava longe. Ouviam-se certas coisas a respeito da AlemanhTudo que eu sabia que o regime alemo tinha raiva dos judeus. Tnhamos tanta fometantos problemas com a nossa prpria vida que no havia tempo para questes relacionadas futuro. Por isso, mais tarde, os alemes no tiveram dificuldade alguma para deportar judeus da Grcia. Foi fcil fazer-lhes acreditar que lhes dariam moradias em funo d

    tamanho de cada famlia e que os homens trabalhariam, enquanto as mulheres ficariam ecasa. ramos ingnuos e ignorantes quanto aos acontecimentos polticos. Alm disso, suponhque as pessoas achassem que os alemes eram gente confivel e honesta. Quando se compraalgo feito na Alemanha aquilo funcionava bem, tinha preciso. As pessoas acreditavam no qlhes prometiam. Para aqueles que no tinham o que comer, eles falavam de moradia em trode trabalho. No parecia to dramtico...

    Para ns, a guerra realmente comeou com a ocupao italiana da Albnia, em outubro d1940.5 Antes mesmo de entrar na Grcia, a Itlia bombardeou a cidade de Salnica. A

    bombas punham fogo nas casas e assustavam a populao. Quando a Itlia declarou guerrapolcia grega imediatamente prendeu os homens de nacionalidade italiana. Eu ainda no e

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    maior e portanto fui deixado, mas prenderam meu irmo Maurice. Um policial que econhecia me disse que eu podia, por enquanto, ficar tranquilo, mas que devia tomar cuidadpara nunca ter nos bolsos objetos que pudessem causar problema. No entendi de imediatoque queria dizer, mas, na realidade, se encontravam algum com um espelho no bolspodiam acus-lo de ter feito sinais aos avies.

    Pegaram, ento, meu irmo, mas no somente ele. Prenderam tambm todos os italianojudeus e no judeus, e os levaram para um grande prdio no centro da cidade. No era um

    priso, mas no podiam sair. O problema que foi justamente a zona que os italianbombardearam. Por sorte no foram mortos. Foram, em seguida, transferidos para perto tenas e s os soltaram com a chegada dos italianos. Meu primo Dario Gabbai, que tamb

    estava entre eles, com o irmo e o pai, me disse que um judeu bem rico pagou para que judeus italianos pudessem permanecer em um hotel, sob vigilncia. Eles, pelo menos, comiamelhor do que em casa.

    Durante todo esse tempo, eu subia diariamente no telhado de uma casa ocupada pelsoldados do exrcito grego. Sabia que um caminho vinha todos os dias, na mesma hordistribuir alimentos para os soldados. Eu tinha simpatizado com eles, e como ndesconfiavam que eu fosse de nacionalidade italiana, tambm me davam comida. Eu no fazgrandes coisas, mas pelo menos podia comer. As coisas ficaram assim durante trs meses:Itlia avanava e depois era repelida pelo exrcito grego, entrava e era obrigada a recuar. Oalemes finalmente invadiram a Grcia pelo norte, para ajudar o aliado italiano. Para nosinfelicidade, Salnica, a principal cidade do norte da Grcia, foi imediatamente ocupada pelalemes. Se, em vez de bombardear as cidades, os italianos tivessem bombardeado pontesoutros pontos estratgicos, teriam entrado facilmente, pois a Grcia no tinha um exrciforte. Em vez disso, foram os alemes que invadiram a Grcia, sem encontrar a men

    dificuldade.No dia em que as tropas alems entraram em Salnica, estvamos em um refgio situadsob grandes edifcios, perto do porto e do depsito de mercadorias. Nossa casa ficava muiperto da estao e o lugar corria o risco de bombardeio; ns, ento, nos aproximamos de ondmoravam meus tios. Eu, como de costume, procurava sempre alguma coisa para comer. Vque as pessoas vinham do porto carregadas de mantimentos. Se serviam para nada deixar aalemes. Fui at l, ento, e peguei um barril de azeite, que fui rolando at onde estarefugiada minha famlia. No caminho, um dono de restaurante me perguntou se eu nqueria vend-lo. Achei que poderia fazer isso e voltar rpido para pegar um outrNegociamos e ele me deu imediatamente um mao de notas. Entreguei o azeite e voltei porto, mas nada mais encontrei. Voltei para casa e contei a minha me o que tinha acontecidO que voc fez? Com aquele azeite poderia ter feito alguma coisa, mas o dinheiro no vamais nada, ela exclamou. Fui com ela at o dono do restaurante. Ela suplicou e elfinalmente, aceitou devolver a metade do azeite que eu tinha lhe vendido.

    Uma outra vez, tive mais sorte. Encontrei um forno de assar po rabe, sem fermento,consegui pegar vrios pes, pois conhecia os bons caminhos ao interior do armazm. Todmundo quis comprar e ento comecei a vender. Depois, voltei ao lugar onde os encontr

    Nesse meio-tempo tinham fechado o acesso. Vi, porm, um pequeno buraco pelo qu

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    consegui passar. Peguei tudo que podia carregar e voltei para casa com os pes e com dinheirCom a chegada dos alemes, as coisas s pioraram, e ficava cada vez mais difcil encontrar

    que comer. Por sermos italianos recebamos mais ajuda do que outros judeus. Os soldaditalianos no eram numerosos, pois a cidade estava ocupada pelos alemes, mas criei laos amizade com alguns. Isso me permitiu encontrar mais facilmente o que comer. Fora isso,consulado italiano continuava a nos ajudar, distribuindo, uma vez por semana, alimentos econserva, massa e parmeso. ramos seis em casa, havia muita coisa a carregar. Eu usava u

    carrinho para ir ao local da distribuio. Voltando, em vez de seguir o caminho normal, bemconservado, preferia pegar um atalho em pior estado, porm mais rpido. Uma vez, fparado por um policial grego:

    Ei, voc! Onde pegou tudo isso? Eu ganhei. Sou italiano; um direito meu. No acredito, venha comigo delegacia. Por qu? No roubei, isso meu, de direito! Por favor, deixe-me ir para casa!Entendi que ele, na verdade, queria uma parte do bolo, era s isso. Disse ento que vies

    comigo e, em troca, lhe daria o parmeso. Ele logo aceitou e me escoltou at minha casa. Esdesventura evitou que eu encontrasse outro policial que, inevitavelmente, exigiria a mesmcoisa. Eu o encontrava todas as semanas e o cenrio se renovava a cada vez. De qualqumaneira, se desse a volta maior, seria parado por outros. Ele, pelo menos, me protegia.

    Mas como as ajudas no bastavam, comecei a fazer pequenos trficos e a trocar coisas nmercado negro. Em geral, passava os dias com os outros, esperando na estao a passagem dtrens militares. Soldados italianos e alemes desciam rapidamente na estao de Salnicacompravam ou vendiam o que podiam, como cigarros ou medicamentos contra a malria, qrevendamos aos camponeses em troca de batatas ou de farinha para fazer po. Era preci

    tomar o trem e ir longe para encontrar o que trocar. Para no pagar a passagem, eu mpendurava na traseira do vago, mesmo no frio. Era uma vida dura, mas eu era jovemsaudvel.

    Uma vez, enquanto estvamos ali, esperando, encostados em um muro, um policial gregchegou e levou todo mundo para o comissariado. ramos todos judeus. Ele nos fez entraum de cada vez, em sua sala, para nos interrogar. Fui o ltimo e tinha rapidamente entendidque ele obrigava todos a espalmarem a mo para bater nela com uma vareta de ferro asangrar. Quando chegou a minha vez de entrar na sala, fui dizendo:

    Em mim voc no pode tocar, sou italiano! No faz diferena que seja italiano, abra a mo! ordenou.Meu irmo, porm, que no estava comigo no momento da deteno, soube que eu esta

    no comissariado e foi falar com um soldado italiano que conhecamos bem. O soldado entrona sala furioso e pegou o policial pela gola, vociferando:

    Ele italiano, tome muito cuidado para no encostar num fio de cabelo dele!

    O fato de ser judeu, ento, era menos importante do que o de ter a nacionalidade italiana?

    Sim, isso nos protegeu enquanto os italianos estiveram na Grcia. Por mais que fosjudeu, at aquela poca eu era, ainda e sobretudo, italiano. E isso me protegia, at mesmo d

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    alemes. Pois eles tinham comeado imediatamente a perseguir os judeus. Quandprecisavam de gente para trabalhar, fechavam o bairro e apanhavam quem quer que tentasfugir. Depois, faziam uma triagem, ficando apenas os judeus. Eles agrupavam na PraElefteria (Praa da Liberdade) uns quarenta homens judeus, entre 18 e 45 anos. Pahumilh-los, obrigavam que fizessem o que, por zombaria, chamavam de ginstica. populao grega assistia ao espetculo e se divertia, vendo os judeus obrigados a fazer aquelmovimentos ridculos. Frequentemente, depois desses momentos humilhantes, os home

    eram enviados para os trabalhos forados em locais infestados pela malria. Trabalhavam durante um ou dois meses e voltavam magros e doentes, mais mortos do que vivos.Aconteceu de eu de estar por ali quando ocorria uma dessas varreduras. Isso foi antes d

    bairro Baron-Hirsch ser fechado. Eu conhecia muito bem as ruelas para poder escapaMesmo sendo italiano e, teoricamente, estando protegido, era melhor no cair nas mos dele

    Depois, um dia, aps a visita de um alto graduado da SS a Salnica, foi dada a ordem dfechamento do bairro Baron-Hirsch, que foi cercado por arame farpado. O fechamendefinitivo daquela rea aconteceu no final de 1942 ou incio de 1943. As primeirdeportaes comearam trs meses depois.

    Lembro, inclusive, que um alemo que trabalhava no escritrio da Gestapo tentou advertos judeus. Ele tinha simpatizado com os responsveis pela comunidade e transmitinformaes. Esse alemo desapareceu de um dia para o outro. Creio que foi denunciado pagentes da contraespionagem...

    Qual era a situao dentro do gueto?

    A gente no usava a palavra gueto, dizia apenas Baron-Hirsch. Mas parecia um guet

    com uma porta de sada, dando para a estao, e uma porta de entrada vigiada, do outro laddo bairro. O bairro rapidamente se tornou um lugar de passagem, antes das deportaes.Eles cercaram e aprisionaram os mais idosos. Eu, como disse, morava bem prximo, m

    do lado de fora daquela rea, e estava protegido pela nacionalidade italiana. Eu no usavaestrela amarela que foi imposta aos judeus antes do fechamento do bairro. E no documendo consulado, onde estava escrito que eu era cidado italiano, no se mencionava o fato de eser judeu. Meu sobrenome constava como Salomone e no Shlomo. Pude, entpermanecer no lado grego e ajudar meus amigos que estavam presos no bairro. Nada tinhapara comer e marcvamos encontro em um canto isolado, de onde me jogavam dinheiro p

    cima da cerca, para que comprasse os alimentos de que necessitavam. Mas s fazia isso para pessoas que eu conhecia. No durou mais que uma semana, pois foram rapidamendeportadas e substitudas por outros judeus, que eu no conhecia.

    No tive a sorte de ver meus tios e nem meus primos antes que fossem deportados. Sequsoube que j tinham partido. Minha av paterna, Doudoun Levi Venezia, que tinha 63 ande idade, tambm foi deportada, apesar de ter, como meu pai, a nacionalidade italiana. Mmorava dentro do bairro e, mesmo com nossos esforos e as tentativas de Maurice paconseguir a libertao dela, foi impossvel salv-la. Baron-Hirsch se tornara um campo d

    passagem: faziam os preparativos para a prxima deportao e lotavam os trens novamentMas o sofrimento j comeava ali.

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    Em dez dias, os que moravam no bairro Baron-Hirsch foram deportados e depois o crcudas incurses se alargou, com a priso de judeus dos outros bairros para aloj-los no BaronHirsch, no lugar dos desaparecidos. As pessoas dormiam ali apenas uma noite ou duas e eradeportadas pela manh, bem cedo. Li nos cartazes do museu de Auschwitz que duranaqueles dez primeiros dias mais de dez mil pessoas foram deportadas da Grcia pa

    uschwitz.6

    populao grega assistia a essas incurses?

    No, pois as deportaes eram organizadas de manh bem cedo. No havia ainda vivalmnas ruas. O horrio era escolhido de propsito, para que tudo se passasse sem muittestemunhas, discretamente. Eu mesmo nada vi.

    Quando os alemes terminaram de deportar todos os judeus gregos, quiseram fazer mesmo com as famlias judias italianas. O cnsul, Guelfo Zamboni, mais uma vez intervepara nos ajudar. Eu sei que depois da guerra ele recebeu a medalha Justo entre as Naes, dYad Vashem, por ter salvo muitos judeus e no somente italianos;7ele forneceu document

    falsos tambm para judeus gregos, os protegendo como se fossem italianos. Ele, daquela veconvocou os responsveis das famlias judias italianas. Meu irmo foi reunio, no lugar dmeu pai. O cnsul anunciou que os alemes tinham a inteno de nos deportar, mas queItlia no permitiria. Deu-nos a escolha entre sermos transferidos para Atenas, que estaainda sob a administrao italiana, ou irmos de navio para a Siclia. Como, dentre os judeuitalianos que estavam presentes, alguns tinham negcios, empresas ou fbricas na Grcia, elpreferiram permanecer no pas, para melhor controlar seus negcios. Decidiram, ento, enome de todos, ir para Atenas. Infelizmente, foi a escolha da morte, tambm para ns.

    Como se organizou a transferncia para Atenas?

    Foi no ms de julho. Deixamos a casa, levando colches e tudo que minha irm tinpreparado para o seu casamento. O noivo no era italiano e fora deportado em 1943, cotoda sua famlia.

    Os italianos tinham organizado para ns uma partida em um trem em direo a Atenasob a proteo dos militares italianos, que tinham ordem de no deixar que os alemsubissem a bordo. Aparentemente, essa transferncia fora motivo de conflito entre os do

    aliados, mas os italianos julgavam se tratar de um negcio italiano. Levamos dois dias pachegar, pois os alemes procuraram vrias maneiras de travar nosso caminho entre Salnica

    tenas. Usaram diversos estratagemas, como obrigar o trem a parar vrias vezes para qoutros comboios prioritrios passassem, ou nos deixar horas a fio nas vias de espera. Naquepoca, os alemes j no se entendiam muito bem com os italianos. Achavam que podiacontrolar tudo, principalmente no que dizia respeito aos judeus. Os soldados italianos derauma arma a meu irmo, para que pudesse nos defender em caso de dificuldade. No caminho trem passou por zonas infestadas de paludismo, onde trabalhavam os ltimos jude

    designados para o trabalho forado. O maquinista, em combinao com os militares italianodiminuiu a velocidade para que alguns pudessem se agarrar ao trem e fugir conosco. U

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    rapaz subiu em nosso vago e ficou sob a proteo italiana at Atenas.Quando finalmente chegamos cidade, nos alojaram em uma escola. Quem podia, alugo

    um apartamento. Ns ficamos com cerca de vinte famlias naquela escola. Voltou a surgirproblema da alimentao. Como no trabalhvamos, era preciso encontrar um meio de trazcomida, pois o consulado italiano distribua apenas uma refeio por dia e a ajuda que dachegou inevitavelmente ao fim em 8 de setembro de 1943, com a capitulao da Itlia eruptura da aliana com a Alemanha.

    Como no havia mercado negro em Atenas, era preciso encontrar algo para fazer. Os maidosos que estavam conosco na escola no podiam ir pessoalmente vender o que tinham,ento me entregavam para que eu o fizesse, no mercado das pulgas. Tinham, em geral, belroupas tradicionais, costuradas com fios de ouro, que eram usadas em dias de festa. Eraroupas caras, mas deviam ser vendidas, nem que fosse por dois centavos. Precisvamos tancomer... Eu pegava o que as pessoas me davam, elas me diziam o quanto esperavam obteentrvamos em acordo e se eu conseguisse vender mais caro, guardava a diferena, paalimentar minha famlia. Rapidamente compreendi que a melhor maneira de vender aquetipo de roupa era indo a bordis. L havia dinheiro vontade, pois no faltava trabalho para mulheres. E se a roupa lhes agradasse, elas no ligavam para o custo. Eu dizia 20 e elpagavam 20, sem discutir. Para outras coisas, no entanto, era preciso ir ao mercado. Foi onvendi a maior parte dos objetos que minha irm havia preparado como enxoval.

    Como se passaram as coisas aps 8 de setembro de 1943?

    O boato de que a Itlia pedira o armistcio rapidamente se espalhou.Em Atenas, que eu soubesse, havia milhares de soldados italianos, nos quartis e em outr

    lugares. Tive oportunidade de conhecer muitos. Mas os alemes assumiram tudo e vrisoldados se recusaram a voltar para dormir nos quartis, com medo de serem presos pelalemes. Na poca, eu j estava em contato com pessoas da resistncia grega e conhecia muitfamlias na cidade. Tentei intermediar para que algumas delas recebessem soldados, de modque eles no tivessem de voltar aos quartis. Ajudei uns sete ou oito. Soube depois que udeles acabou casando com uma filha da famlia que, por meu intermdio, o tinha recebidoescondido. Nesse meio-tempo, quis tambm pr minha famlia a salvo. Uma vez qutnhamos perdido a proteo italiana, no havia dvida de que seramos, mais cedo ou matarde, deportados quando nossa hora chegasse.

    Os alemes comearam a resolver o problema dos soldados italianos. Disseram que, quisessem continuar a guerra do lado das foras alems, deviam se inscrever em udeterminado escritrio. Se, ao contrrio, quisessem voltar para casa, deviam se encaminharum outro escritrio. A maioria deles no quis continuar a guerra junto aos alemes e, assisendo, foi se inscrever no escritrio indicado. Aps alguns dias, foram informados de que pavoltar para casa deviam se apresentar tal dia, em tal local. Era uma armadilha, pois os enfiaraem vages quase iguais aos que serviam deportao dos judeus. Eu soube, em seguida, qforam enviados a fbricas na Alemanha, para trabalhos forados.

    Dentro desse contexto, como fez para entrar em contato com a Resistncia?

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    Pelos arredores, meu irmo e eu acabamos conhecendo e travando relaes com muigente. Ao nos darmos conta de que as coisas no iam melhorar para ns e que certamente logseramos deportados, pensamos em nos juntar Resistncia. Queramos pr nossa meirms a salvo, enviando-as s montanhas. O problema que os resistentes gregos sabiam quramos italianos e no confiavam muito em ns. Disseram que no precisavam de mais genno maqui e que, para sermos teis, devamos permanecer na cidade e ajudar a organizsabotagens e transmitir informaes clandestinamente.

    Comeamos, ento, a participar de pequenas aes de sabotagem. Geralmente ocorriamnoite, pois durante o dia nada se podia fazer, havia muitos delatores, espies e militares gregcolaborando com os alemes. Reunamo-nos, ento, noite, em pequenos grupos. Ndividamos de acordo com os bairros. Passvamos panfletos por baixo das portas dizendo qvoltaramos no dia seguinte e pedindo s pessoas que nos dessem o que pudessem para ajudaDe modo geral, as pessoas ajudavam, mesmo sendo perigoso tambm para elas. Foi como ntornamos andartis.8

    Finalmente, os companheiros da Resistncia encontraram um lugar nas montanhas paesconder minha me e minhas irms. Meu irmo e eu ficaramos com uma famlia, na cidadMas a mulher que devia nos dar abrigo foi denunciada antes que chegssemos. Minha mficou um tempo escondida com minhas irms em um vilarejo, mas, como no falava gregacabou preferindo voltar escola para ficar perto de ns.

    Os alemes, depois que chegaram a Atenas, no procuraram imediatamente reagrupar os judeus?

    No, nos primeiros meses nada percebemos nesse sentido. Ouvamos falar das derrotmilitares da Alemanha e as pessoas estavam convencidas de que eles no se dariam ao trabalh

    de deportar os judeus de Atenas, naquela situao, havendo outras urgncias. Em janeiro ofevereiro de 1944, foi imposto que todo judeu homem assinasse um registro, numa sala dsinagoga, todas as sextas-feiras. Eu ia com meu irmo, e levvamos uma pequena malprontos para fugir ao menor sinal de alerta. Mas numa sexta-feira, no final do ms de marde 1944, cometemos o erro de ir cedo, pela manh. Naquele dia, em vez de nos deixaremembora, nos mandaram ficar no grande salo da sinagoga, e os responsveis pelo temppediram que esperssemos l, com as outras pessoas que tinham ido assinar. Devamos, eprincpio, aguardar um oficial alemo. Na realidade, era um pretexto inventado pelos alempara que ficssemos l, sem muita histria. medida que as pessoas iam assinar, era

    encaminhadas sinagoga. Por volta de meio-dia, vendo que continuava a chegar gentcompreendemos que estvamos presos em uma armadilha. As janelas eram muito altas, para ver o que acontecia l fora, subi nos ombros de alguns rapazes e vi vrios caminhes SSsoldados alemes com metralhadoras e ces. Preveni todo mundo de que estvamos cercadosque se no encontrssemos, o mais rpido possvel, um meio de sair dali, amos ser levados.maior parte dos que estavam presentes eram judeus de Atenas e dos arredores. Ao contrrio ns, judeus de Salnica, eles no tinham assistido s deportaes e no sabiam de que alemes eram capazes. Preferiram, ento, nada fazer, certos de que seramos mortos

    tentssemos sair antes da chegada do oficial. Por volta das 14h, oficial algum tinha aparecidMas l fora, por outro lado, tudo estava pronto. Ordenaram que sassemos. Diante de n

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    caminhes e soldados armados que nos cercaram. Vociferavam Los! Los! (Vo! Vo!),tivemos que subir nos caminhes. No me lembro se havia pessoas em volta que assistiamcena, certamente havia algumas, que no puderam se aproximar muito.

    Os caminhes nos levaram grande priso de Hadari. Devamos ser mais ou menos um150 pessoas. No havia lugar para ns no edifcio principal. Deixaram-nos presos no local dchuveiros, no ptio da priso. No havia camas, nem colches de palha, somente o cimendo cho e os chuveiros sobre nossas cabeas. Apertados, uns sobre os outros, mal tnham

    espao para nos deitar. Foi penoso e difcil. Do ptio, ouviam-se tiros regulares execusumrias de prisioneiros polticos. O local ficava junto s cercas de arame farpado e ramvigiados por soldados que usavam um uniforme que eu no conhecia, mas que pareciauniforme italiano. Eu, idiota que era, me dirigi a um dos soldados que estava de guardadisse: Eu sou italiano! Acha que eu posso fugir? claro, ele imediatamente apontou o fupara mim e eu recuei, erguendo as mos e dizendo: Tudo bem, eu no disse nada! Era ufascista italiano das milcias que colaboravam com os alemes. De certa maneira ele me salvoa vida, pois, se tivesse dito que eu podia fugir, teria com certeza sido morto, porque havsoldados alemes em todos os cantos, posicionados nas torres de vigia a cada 20 metros.

    creditava mesmo poder fugir?

    Sim, o tempo todo, pois sabia como as coisas tinham se passado em Salnica. Se, nsinagoga, nos tivessem ouvido quando quisemos explicar o que os alemes tinham feito eSalnica os trabalhos forados, o gueto e as deportaes , talvez pudssemos ter forada sada, em vez de esperar que fosse tarde demais. Teramos conseguido, devamos ter tentadfugir. Alguns certamente seriam mortos, mas, de qualquer maneira, era em direo mor

    que iriam. As pessoas tinham a esperana de que cumprindo as ordens seriam poupadas. Foicontrrio.

    Quem estava com voc?

    Meu irmo e meus primos, Dario e Yakob Gabbai. Yakob era casado e 12 anos mais velhque o irmo Dario, que devia ter cerca de 21 ou 22 anos de idade.

    Alm da pequena valise, eu tinha comigo cinco moedas de ouro que minha me me havconfiado. Ela tambm tinha dado cinco outras para meu irmo, mas Maurice gasta

    imediatamente o dinheiro. Mame tirara essas dez moedas das joias que seus irmos e pais lhhaviam confiado antes de serem deportados. Ela sempre evitara categoricamente pegar o qufosse daquele envelope, pois estava convencida de que os irmos voltariam e precisariam ddinheiro para refazer suas vidas. Outros teriam usado aquilo para fugir, mas minha me ehonesta demais e repetia sempre: Ai de quem tocar nesse dinheiro! Vendo que a situao agravava, acabou pegando as moedas e nos deu, para o caso de estarmos em perigo de vidMas eu quase perdi, em Hadari, as cinco moedas que eu guardara to preciosamente...

    De fato, no dia seguinte a nossa chegada priso, os alemes vieram e, com gritos

    pancadaria, ordenaram que sassemos para o ptio e nos alinhssemos em fileiras de cincDepois de pegarem o que bem quiseram no local vazio, nos fizeram entrar, cinco de cada ve

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    mandando que nos despssemos completamente, para nos revistar e, assim, roubar tudo qpudessem. Quem no desse imediatamente os objetos de valor que tinha consigo ebrutalmente espancado.

    Eu tinha o hbito de me colocar sempre entre os ltimos em tais situaes, para ter tempde ver o que acontecia. De repente, quando metade das pessoas j tinha passado, ouvi urrque vinham l de dentro. Os alemes estavam batendo em um rapaz com quem tinhaencontrado uma moeda de ouro escondida no sapato.

    Alm das cinco moedas de ouro, eu tinha tambm um relgio Doxa, que havia compradde um alemo, em troca de cigarros. Junto da marca, havia uma inscrio: Shimshi. Eranome de um judeu de Salnica, de quem o alemo roubara o relgio. Para mim, era o meprimeiro relgio, e eu no queria deix-lo nas mos dos alemes. Coloquei-o no cho e piscom fora, para ter pelo menos a satisfao de no entreg-lo.

    Quanto s moedas, resolvi dar uma a meu irmo, uma a Dario e uma a Yakob, ficandcom duas. Pus a primeira na boca e a engoli. Eles fizeram o mesmo. S que, no meu caso,segunda moeda no passou e eu quase me sufoquei. No tinha po e nem gua, mas estafora de questo morrer daquele jeito, ali, sufocado. Juntei, ento, tanta saliva quanto pude finalmente, a moeda desceu. nossa frente, uns imbecis espalharam o boato de que alemes tinham um aparelho de raios X. Meu irmo entrou em pnico. Eu disse a mimesmo que de qualquer maneira j era tarde demais e que nada podia ser feito para que moedas sassem de imediato. Bom, Que acontea o que tiver que acontecer, pensei comigmesmo.

    Quando chegou a nossa vez, os alemes mal nos revistaram. Provavelmente j tinhapegado o bastante e tinham pressa de acabar. Quando voltamos sala dos chuveiros, nosbagagem de mo tinha desaparecido, mas tnhamos conseguido guardar o principal. No d

    seguinte, cada um de ns foi ao banheiro para fazer o que eu chamei de o ovo de ouro. primo Dario foi o primeiro; nada. Seu irmo, Yakob; nada. Meu irmo disse que no querolhar. No segundo dia, Dario ps o ovo de ouro. Meu primo Yakob e eu, tambm. Meirmo no conseguiu. Veio nos dizer quatro dias depois que, enfim, pusera tambm o ovo ouro.

    Quanto tempo ficaram naquela priso de Hadari?

    Sete ou oito dias. De incio, estava furioso por ter sido preso daquela maneira, sem tent

    fugir. Depois, com o tempo, foi preciso aceitar. Com meu irmo e os primos, ficvampensando o que teramos podido fazer, o que deveramos ter feito.

    Havia, conosco, muitas pessoas que tinham vindo de outras regies da Grcia, de vilarejcom no mximo dez judeus. Tinham sido presos e enviados a Atenas, como, mais tardalguns judeus de Corfu e de Rodes. Na verdade, uma vez que Salnica tinha sido esvaziadtodos os judeus presos passavam por Atenas. Tornara-se o local de trnsito.

    Lembra-se do dia em que foi deportado?

    Foi no final de maro ou talvez em 1 ode abril. Tnhamos sido presos no dia do feriad

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    nacional grego, 25 de maro, e ficamos uma semana na priso. Sei que o trem chegouuschwitz em 11 de abril e acho que a viagem durou 11 dias. Deve ter sido, ento, em 1od

    abril.9

    Naquele dia, os alemes nos mandaram sair para o ptio. Estava cheio de gente. Disseraque tentssemos encontrar familiares nossos e nos mantivssemos em grupos, pois, quandchegssemos ao destino, nos distribuiriam casas de acordo com o tamanho das famliaProcurando, encontrei minha me e minhas trs irms. Meus primos tambm encontrara

    os seus pais, o irmo caula Samy e a mulher de Yakob. O fato de estarmos juntos ntranquilizava. Tentvamos nos convencer de que os alemes diziam a verdade e que teramostal casa. Certamente nos fariam trabalhar duro, mas pelo menos estaramos juntos. Era principal.

    Minha me contou que no mesmo dia em que tnhamos sido presos, meu irmo e eu, alemes cercaram a escola e recolheram todos que encontraram l dentro. Minha irm manova, Marica, estava com uma senhora no judia que morava perto da escola; ela limpavacasa em troca de comida e moradia. Mas quando soube que os alemes iam deportar a famlicorreu para se juntar minha me. Muitas vezes pensei que, se no tivesse sabido o que estaacontecendo, certamente teria permanecido com a tal famlia e poderia ter sido salva. Mas nfoi como as coisas se passaram e, infelizmente, tambm foi deportada.

    Os alemes foram espertos nos agrupando em famlias. Sozinho, a ideia de fugir matentadora. Mas como aceitar abandonar os pais ou os filhos...? Alguns, no entantconseguiram fugir, quase por acaso. No caminho entre a priso e a estao de carga, caminhes que nos transportavam seguiam em fila. Um guarda alemo ficava sentado ao laddo motorista e vigiava os passageiros do caminho da frente. Um desses caminhes enguioe, assim, o que o precedia ficou sem ningum vigiando atrs. Cinco ou seis rapazes saltaram

    fugiram, mas os alemes rapidamente retomaram o controle da situao.Finalmente chegamos plataforma de embarque, onde os vages de transporte de animanos esperavam. Fomos brutalmente empurrados para dentro. No interior, nada havia, apenas tbuas do cho, um lato grande e vazio no meio, e um outro, menor, com gua. Nucanto, vi trs caixas de uvas secas e cenouras. O espao era muito limitado, e, assim que todmundo entrou no vago, vimos que seria impossvel nos deitar e que, no mximconseguiramos nos sentar durante a viagem. Eu imediatamente me coloquei num cantperto da janela.

    Os operrios comeavam a chegar s proximidades da estao para trabalhar e, por isso, alemes tinham pressa, para no chamar muita ateno. Olhando pela janela, vi um oficial Sse irritando com pessoas que pareciam ser da Cruz Vermelha. Achei que estavam ali porququeriam nos libertar. Na verdade, queriam simplesmente distribuir alimentos para a viagem

    o meu ver, eles sabiam qual era o nosso destino final, pois no teriam se incomodado setrajeto fosse pequeno, mesmo naquelas condies. Enfim entraram em acordo e o oficial Saceitou que os caminhes da Cruz Vermelha seguissem o trem at que ele parasse, fora dcidade. Da janela, eu podia ver os caminhes nos seguindo, distncia. O trem parou numrea deserta para que os funcionrios da Cruz Vermelha distribussem pacotes com aliment

    e cobertores.

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    Como eram as janelas do vago? Tinham arame farpado?

    Havia quatro pequenas janelas. No meu vago elas no tinham arame farpado, mas vi qem outros, sim. Tratava--se, certamente, do primeiro comboio partindo de Atenas, e netodos os vages haviam sido adaptados. Chegando a Viena, finalmente colocaram aramfarpado no nosso vago. Tornou-se ainda mais opressor, sufocante e humilhante. At ali, etinha ficado com a cabea do lado de fora durante quase toda a viagem, para ter ar fresco e v

    o que se passava. Foi o que me permitiu tambm, no incio, conseguir um nmero maior dpacotes. O pessoal da Cruz Vermelha tinha tentado distribuir a maior quantidade possvel, eimportante era conseguir pegar. Eu recebia os pacotes e os cobertores e os passava adiantpara meu irmo e meu primo, que abriam espao no vago. Depois de alguns minutos, oficial urrou: Fertig! (Acabou!) e ordenou aos agentes da Cruz Vermelha que se fossem

    ssim que se afastaram, os soldados percorreram os vages para saber quantos pacotes caum tinha recebido. Pude ver o alemo perguntar a algum, no vago nossa frente, quantele tinha. O rapaz respondeu ter recebido oito e o alemo, ento, mandou que entregasquatro. No havia como eles entrarem nos vages para verificar, levaria tempo dema

    precisvamos apenas afirmar algo em que pudessem acreditar. Quando o alemo parouminha frente e perguntou quantos eu tinha recebido, respondi tambm que tinha oito. Comesperado, ele ordenou que lhe jogasse quatro. Na verdade, havia recebido 38 pacotes e vricobertores. Em cada pacote havia po rabe de trigo, leite em p, chocolate, cigarros e outrcoisas teis para se ter durante toda a viagem. claro, dividimos tudo com as demais pessodo vago. Pelo menos tivemos o suficiente para comer e sobreviver nos 11 dias que durouviagem de trem.

    Quantas pessoas havia dentro do vago?

    Devamos ser de 70 a 80 pessoas. Dentre os deportados do vago, eu conhecia alguns qtinham sido evacuados de Salnica ao mesmo tempo que a minha famlia.

    De Atenas, o trem devia passar por Salnica, porque era um entroncamento ferrovirimportante, no Norte. O trem parou nas proximidades da estao para o reabastecimento dcarvo e gua. Me aproximei da lucarna para ver se, quem sabe, no havia algum conhecidOs soldados alemes estavam postados a cada dez metros ao longo do trem. O destino assiquis que o ferrovirio que verificava os trilhos fosse um rapaz que eu conhecia. Chamava-

    Gyorgos Kaloudis, era cinco ou seis anos mais velho que eu e fora meu vizinho quandramos crianas. Seu pai era um comunista notrio que trabalhava na ferrovia. Tinha sidpreso pelos alemes assim que eles chegaram a Salnica. Gyorgos assumira o lugar do pai nestrada de ferro. Seu trabalho consistia em controlar os freios para que no se bloqueassem nrodas e em reajust-los com um martelo comprido. Ao me ver, pareceu muito surpreso e aproximou discretamente, fingindo trabalhar no meu vago. Sem chamar a ateno dalemes, disse em grego: Como foi isso? Tambm est aqui! Tente escapar de qualquer jeitporque l para onde os esto levando, matam todo mundo! Me avisou tambm qu

    estvamos indo para a Polnia. No pude perguntar mais nada, pois os alemes nos vigiavamQuando o trem partiu, contei logo a meu irmo e aos primos o que Gyorgos acabara d

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    me dizer. Tnhamos levado dois dias para ir de Atenas a Salnica. Por mais dois, ainestaramos em territrio grego. At ali, ingenuamente achvamos que os resistentes gregatacariam o trem, no meio do caminho, para nos soltar e impedir as deportaes. Tinham nprometido isso, na poca em que estvamos com eles. Mas o comentrio de Gyorgos me fizeentender que nada se devia esperar e que tnhamos que tentar escapar por conta prpria. Misso significava deixar para trs nossa famlia... Enquanto estivssemos em territrio grego,fuga seria menos arriscada, pois no teramos muita dificuldade para encontrar refgio com

    camponeses. Teriam nos ajudado como resistentes, sem saber que ramos judeus. J eterritrio iugoslavo, as coisas se tornariam mais difceis. Resolvemos, ento, tentar fugnaquela noite mesmo.

    Estvamos magros o bastante para passar pela janela e saltar do trem em movimento. Ebem arriscado, pois os alemes montavam guarda a partir de torres que tinham sidconstrudas sobre alguns vages. Eu havia notado que, em cada trs vages, um era ocupadpela SS. Mas estvamos determinados. Meu irmo seria o primeiro a saltar e depois eu. Eseguida, caminharamos para encontrar os primos que, sucessivamente, tambm saltariamMeu irmo nem teve tempo de pr uma perna para fora e todas as pessoas do vagacordaram e comearam a gritar e chorar. Tinham certeza de que morreramos e que elprprios seriam mortos por nos terem deixado fugir. O pai de Dario, Milton, repetia semparar: Eles sabem quantos somos, quando o trem chegar e virem que esto faltando, vmatar todo mundo. Na verdade, isso nada mudou: todos foram mortos. Mas quem podsaber? Vendo-os chorar, vendo minha me e minhas irms aterrorizadas e nervosas, nconvencemos de que no era justo deix-las sozinhas e tentar escapar. Se no nos tivessepercebido, talvez tivssemos conseguido fugir e nos salvar. Contudo, tentamos mais uma vena noite seguinte. Mas Milton no dormia e vigiava para evitar que fizssemos aquilo. Fom

    de novo impedidos. E, finalmente, samos do territrio grego. Atravessamos a Iugoslviadepois a ustria. Em Viena, com o arame farpado, perdemos por completo toda esperana liberdade.

    Pde falar com a sua me durante o trajeto?

    No, no podia nem me aproximar, pois no tnhamos como nos mover. Para se talguma privacidade, um cobertor foi estendido separando os homens das mulheres. Usegundo cobertor foi utilizado para isolar o lato que servia para as necessidades. M

    podamos nos deslocar. De qualquer maneira, no se falava muito. Todos seguiamergulhados em seus prprios pensamentos, atordoados pela desgraa que se abatia. Nhavia muito a conversar com os outros, pois estvamos todos na mesma situao. Estvamali, destrudos, e era s isso. A ideia da fuga, de ter deixado passar aquela oportunidadprovavelmente nica... Todos sentiam que nada de bom ia nos acontecer. Mas acho quenormal querer manter alguma esperana. Por isso no disse a meus companheiros o quouvira da boca do meu amigo de infncia.

    No fundo, acreditava mais em Gyorgos ou nos alemes que diziam que iriam trabalhar no Leste?

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    Nos dois. Por um lado, queria me convencer de que Gyorgos apenas transmitira boatosera absurdo que os alemes fizessem tudo aquilo apenas para nos matar ao chegarmoNingum poderia acreditar, mas a histria mostrou que Gyorgos tinha razo. Naquela pocos alemes j tinham empreendido a construo da rampa que devia levar os trens at interior do campo. Foi em abril de 1944, e eles no se preocupavam mais com o fato de quos ferrovirios no alemes pudessem ver o interior do campo. Eu suponho que foi assim qo Gyorgos soube do que se passava em Auschwitz.

    O trem parou em outros lugares?

    Parou ainda em territrio grego para esvaziarmos o lato em que fazamos nossnecessidades. No final de dois dias, ele j transbordava, mas foi preciso esperar essa parapara que nos autorizassem a esvazi-lo. E foi a nica vez, alis. Os soldados se colocaramcerca de 15 metros, para se assegurar de que ningum tentasse fugir. Quando as portas dvago foram abertas, eu desci com outros trs rapazes carregando o lato cheio dexcrementos. Quisemos esvazi-lo perto do trem mesmo, mas o soldado mandou q

    fssemos um pouco mais adiante. Sair do vago em que estvamos trancados havia diarespirar o ar fresco e ver a luz do dia naquele espao aberto causou um efeito estranho. Fmais difcil ainda voltar ao vago. A porta ficou aberta por uns 15 minutos, mas de formalguma bastou para renovar o ar. Foi preciso voltar quele fedor, uma pesada mistura ddetritos, de excrementos e de suor humano.

    Depois, o trem atravessou a Iugoslvia e a ustria. Em certo momento em que novamenparou para se reabastecer de carvo, vi passar um homem de uniforme que estava desarmadNo sabia se era um militar austraco ou um ferrovirio. Ele me fez sinal e disse: Komm raus

    (Saia!). Mas no tive confiana, no sabia se queria me ajudar ou denunciar. Ele ganharia ummedalha se me prendesse dizendo que eu tentara fugir. Nada fiz e o trem continuou scaminho.

    Lembra-se de ter visto outras pessoas fora do trem ao atravessar as localidades?

    Sim, de vez em quando. Em Brno, o trem parou mais uma vez. Lembro desse lugar por tme espantado com o nome da cidade. Suplicvamos aos alemes que nos dessem um poudgua. Em vez disso, um bbado parou diante do meu vago e nos fez sinais bem claros co

    a mo, dizendo que todos amos ser mortos, enforcados. Estava completamente embriagadmas v-lo fazer aqueles gestos me deixou com tanta raiva que lhe cuspi no rosto, quando aproximou do meu vago. Um soldado alemo acabou por escorra-lo, brutalmentVoltando a pensar nisso, no sei se ele estava zombando ou se simplesmente tentava navisar... De Brno, levamos ainda dois dias at chegarmos Judenrampe10 de AuschwitBirkenau.

    Houve quem morresse no seu vago?

    No, ningum morreu no meu vago. Mas no foi o caso em outros vages, de form

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    alguma. No esquema alemo, se as pessoas morressem no caminho, isso era bom, pois chegavam mortas. Viajar naquelas condies, durante 11 dias... No meu vago, tivemos suficiente para comer nos primeiros dias, graas aos pacotes da Cruz Vermelha, mas reservas chegavam ao fim e ningum sabia quando chegaramos. As pessoas comearam a preocupar seriamente e a se agitar. Ns, mais jovens, tentvamos acalm--las para evitar quuma onda de pnico geral tornasse as coisas ainda mais difceis naqueles ltimos dias no trem

    3

    Movimento da juventude fascista.4Cerimnia judaica para meninos, ao chegarem maioridade religiosa (13 anos de idade).5Para maiores detalhes sobre a situao da Grcia e da Itlia durante a guerra, ver a nota histrica da p. 227.6Entre maro de 1943 e agosto de 1944, 22 comboios de deportados saram da Grcia para Auschwitz (mais de 55 mil pessoDezenove comboios partiram de Salnica, dois de Atenas e um de Rodes. Um comboio de judeus de Salnica teve como destinocampo de extermnio de Treblinka, na primavera de 1943.7Guelfo Zamboni salvou quase 280 pessoas, fornecendo-lhes documentos falsos. O Instituto Yad Vashem, em Israel, lhe concedem 1992, o ttulo e a medalha Justo entre as Naes.8Resistente, em grego. O movimento grego de Resistncia se chamava EAM (Frente Nacional de Libertao).9Shlomo Venezia foi deportado no primeiro comboio que partiu de Atenas, chegando a Auschwitz-Birkenau em 11 de abril de 194Pelas indicaes do Museu de Auschwitz, o comboio trazia 2.500 judeus, mas outras fontes indicam um nmero superior.10 Primeira rampa de chegada e de seleo dos comboios de judeus deportados entre maro de 1942 e maio de 1944, antesconstruo da grande rampa que ia at o interior do campo. AJudenrampese situa a meio caminho entre o campo de Auschwitz Birkenau. Ver a nota histrica para maiores informaes, na p. 193.

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    CAPTULO II

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    O primeiro ms em Auschwitz-Birkenau

    O trem nunca apitava ao parar, durante todo o trajeto. Ento, quando ouvi aquele apito tparticular e senti o trem frear de repente, imediatamente entendi que o comboio tinha enfichegado a seu destino. As portas se abriram para a Judenrampe, bem em frente ao armaz

    das batatas. Minha primeira sensao foi de alvio. No sabia por mais quanto tempconseguiria sobreviver naquele trem, sem ter mais o que comer, sem espao, sem ar e sequalquer comodidade.

    Assim que o trem parou, os SS abriram as portas do vago e se puseram a vociferar: Arunter! Alle runter! (Desam todos!) Vimos homens de uniforme apontando metralhadoraspastores alemes latindo para ns. Todos estvamos desorientados e parvos, por causa dviagem, e aqueles repentinos urros ferozes, a barulheira infernal, nos desestabilizavamimpediam que compreendssemos o que estava acontecendo. Eu estava perto da porta e fu

    ento, um dos primeiros a sair. Quis esperar ao lado do trem, para ajudar minha me a descEra preciso pular, pois o vago era alto e o terreno, inclinado. Ela no era to velha, mas esabia que a viagem a teria castigado duramente e queria dar um apoio. Enquanto esperava, ualemo se aproximou por detrs e me deu duas pancadas fortes na nuca, com um cassetetTive a impresso de que me tinha aberto o crnio, de to violentos que foram os golpes. Levas duas mos cabea para, instintivamente, me proteger. Vendo que ele se preparava pabater ainda mais, fui correndo me juntar aos outros na fila. Eles espancavam as pessoas assique chegavam; para relaxar da tenso, por crueldade e tambm para que elas perdessem referncias e obedecessem por medo, sem criar dificuldades. Foi o que fiz e quando me vire

    tentando localizar minha me, ela no estava mais ali. Eu nunca mais a revi. E nem minhduas irms menores, Marica e Marta...

    Como se passou a seleo?

    Logo na descida do trem, os alemes, com chicotes e pancadas, formaram duas filaenviando as mulheres e as crianas para um lado e os homens, sem qualquer distino, paraoutro. Com um gesto de mo, nos indicavam: Mnner hier und Frauen hier! (Os home

    por aqui e as mulheres por l!) Avanvamos como autmatos, respondendo aos gritos e ordens.

    qual distncia ficaram das mulheres? Ainda podiam v-las?

    No incio, sim, mas rapidamente a multido se tornou to densa e, ao mesmo tempo, testruturada que me vi, em pouco tempo, cercado unicamente por homens. De todos homens que se encontravam no trem, sobraram apenas 320, aps a seleo.11

    Tudo se passou relativamente rpido. Como eu disse, no se tinha tempo para pensar. E

    situaes assim a gente se sente desnorteado, fora do mundo. Os alemes nos cercaram co

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    metralhadoras e ces. Ningum podia sair da fila. Ouvi dizer que alguns ainda puderareceber a bno de seu pai ou de sua me. Fico feliz por eles. Infelizmente, nem todtiveram essa sorte.

    E voc, conseguiu ao menos ficar junto de seus primos?

    Sim, permanecemos juntos. O pai deles e os outros, eu no vi mais.

    Puseram-nos imediatamente em fila, diante de um oficial alemo. Um outro oficial chegologo depois. No sei se era o famoso dr. Mengele; possvel, mas no tenho certeza. O oficimal olhava para ns e fazia um gesto com o polegar, indicando Links, rechts! (Esquerddireita!), e, de acordo com a direo que nos apontava, devamos seguir para um lado ou pao outro.

    Notou alguma diferena entre as pessoas que iam para a direita e as que eram mandadas para aesquerda?

    No, nada notei: havia jovens e velhos em ambos os lados. A nica coisa significativa eradesequilbrio evidente entre o nmero de pessoas dos dois lados. Fui enviado para o grupo eque havia menos gente. No final, ramos apenas 320 homens. Todos os outros partiram, sesaber, para o lado da morte imediata, nas cmaras de gs de Birkenau. Meu irmo e meprimos tambm ficaram no lado bom comigo. Nosso grupo foi enviado, a p, para AuschwiI.12

    Quanto tempo acha que durou todo esse processo, desde a chegada at o final da seleo?

    Creio que durou cerca de duas horas. E por que acho isso? Porque ainda era dia quanddesembarcamos naJudenrampee os prisioneiros j no trabalhavam mais quando meu grupchegou a Auschwitz. Percorremos a p os trs quilmetros que separam a Judenrampe dcampo de Auschwitz I, enquanto os outros partiram, sem desconfiar, em direo s cmarde gs de Birkenau.

    Lembro que antes de passar por baixo do porto principal de Auschwitz I, com a inscriArbeit macht frei (O trabalho liberta), notei um cartaz junto ao arame farpado, onde se liVorsicht Hochspannung Lebensgefahr, isto : Cuidado com a corrente eltrica, perigo

    morte.Uma vez l dentro, imediatamente esquerda havia o pavilho 24, que, como soubem

    depois, servia de bordel para os soldados e para alguns privilegiados no judeus. Viam-se njanelas belas mulheres que riam. Pelo que me disseram depois, no eram judiaIngenuamente pensei que, se havia um bordel, se tratava efetivamente de um local onde pessoas trabalhavam.

    Estavam cercados e guardados por SS quando entraram?

    Sim, ao todo devia haver uma dezena de soldados; um a cada dez metros ao longo da nos

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    coluna. Acompanharam-nos at a entrada, mas, uma vez l dentro, nos passaram para os Sque j estavam no interior do campo. Entrando, vimos, de longe, prisioneiros que tentavam aproximar de ns para saber de onde vnhamos e se por acaso tnhamos notcia das sufamlias. De repente, ouvi uma voz chamar: Shlomo, Shlomo! Olhando na direo dprisioneiros, vi o noivo de minha irm Raquel, Aaro Mano, que tentava chamar minateno. Queria saber se Raquel tambm tinha sido presa. Respondi que, infelizmente, tinsido deportada conosco, mas que eu no sabia o que lhe acontecera depois.

    Os alemes, finalmente, ordenaram que nos pusssemos em filas de cinco, em upequeno espao entre dois pavilhes, em frente s cozinhas. Dois alemes, com uma cmernos aguardavam ali. Disseram a um dos prisioneiros que tinha sido deportado conosco que aproximasse para que o filmassem. Lembro-me bem da pessoa, pois tinha o mesmsobrenome que eu, Venezia, Baruch Venezia, mas no era da minha famlia. Era um sujeibem grande, com o nariz adunco e o rosto tpico dos judeus meridionais. Estava com umexpresso contrada e cansada da viagem. A barba por fazer e seu ar derrotado o tornavaainda mais miservel. Ouvi um dos alemes dizer ao outro que o filmasse, pois tinha perfeito perfil judaico. O filme, certamente, era utilizado para a propaganda nazista e serexibido em cinemas, dando uma imagem ruim dos judeus. Naquele momento, compreenque estvamos em um lugar onde o pior nos esperava. Senti sobretudo raiva, fria por tcado to baixo, sendo tratado e humilhado de tal maneira. Nunca teria imaginado que aquifosse possvel. Tinha medo tambm, claro, tnhamos medo o tempo todo, fizssemos o qfosse, pois o pior podia acontecer a qualquer momento.

    O que ocorreu quando os puseram em fila?

    Devamos esperar que um oficial viesse nos dar instrues. Permanecemos imveis pmuito tempo. Antes da chegada do oficial, um intrprete grego de Salnica, que eu conhecveio nos prevenir que o alemo nos faria certas perguntas. Nos aconselhou a responder sepensar e afirmar estarmos com boa sade, sem piolhos e prontos para trabalhar.

    Aquele homem se chamava Salvatore Cunio. Ele mancava e algum assim certamente teria sido enviado para a morte, se no falasse fluentemente alemo. De fato, rapidamencompreendi que, no campo, o domnio de lnguas estrangeiras era uma vantagem muitas vezvital. Cunio era casado com uma alem no judia; tinha sido deportado com o filho, Bub(Hans era seu verdadeiro nome), que tambm fora poupado.

    Quando o oficial enfim chegou, j era noite. Fez as perguntas esperadas e respondemcomo nos tinha indicado o intrprete. Em seguida, o oficial deu a ordem: Alle nach Birkena (Todos para Birkenau!) Demos, ento, meia-volta em direo a Birkenau. Estava escurhavia uma espessa neblina e enxergvamos apenas algumas luzes a distncia. J devia ser 22quando chegamos a Birkenau.

    Entramos pela torre central por onde, mais tarde, comearam a passar os trens. Porm, npoca da nossa chegada, o prolongamento dos trilhos at o interior do campo, prevendodeportao macia dos judeus hngaros, ainda estava em construo. Os comboi

    continuavam chegando Judenrampe, a algumas centenas de metros da entrada de Birkena dentro do campo, no sei se seguimos reto, passando diante dos Crematrios II e III,13pa

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    dar a grande volta por trs, ou se passamos pela Lagerstrasse.14 Atravs da neblina, eu conseguia distinguir algumas pequenas luzes de um lado e de outro da rua, iluminando barraces. Na poca, eu no sabia ainda o que aqueles prdios guardavam e, sendo assim, nprestei muita ateno.

    Finalmente entramos na Zentralsauna,15 uma grande estrutura de tijolos que servia padesinfetar os homens e as roupas. A primeira coisa a fazer era se despir completamente. Oproblema dos famosos ovos de ouro se colocou novamente. Meu irmo, meus primos e e

    ento, engolimos as moedas pela segunda vez.No fundo da primeira sala, havia dois mdicos SS usando aventais brancos. Eles nolhavam passar, nus, sua frente. De vez em quando, faziam um sinal a um de ns, para qse pusesse em um canto. Desse modo, puseram no canto umas 15 ou 18 pessoas. Entre elestava um primo do meu pai. Ele sempre tivera uma aparncia de pessoa doente e frgil. Equis saber para onde seriam levados e fiz a pergunta a um grego de Salnica que trabalhava nZentralsauna. Respondeu, certamente para no me preocupar, que aquelas pessoas precisavade cuidados especiais e, ento, seriam tratadas. Nada mais perguntei, mesmo sem entendbem o que ele realmente havia dito. Na verdade, era uma segunda pequena seleo qufomos submetidos, sem saber. Mas era uma seleo superficial, bastava ter as ndegas upouco flcidas para ser condenado morte.

    Os que no foram postos de lado continuaram e passaram adiante. Na sala seguintbarbeiros estavam alinhados para nos raspar a cabea, o tronco e o corpo inteiro. No tendinstrumentos adequados e nem espuma, arrancavam nossa pele a ponto de faz-la sangrar. prxima sala era a do banho. Era uma pea grande com canos e chuveiros sobre nosscabeas. Um alemo bem jovem se encarregava das torneiras de gua quente e de gua frPara se divertir s nossas custas, alternava bruscamente gua escaldante e gelada. Assim que

    gua ficava muito quente, a gente se afastava para no se queimar e ele berrava como uanimal, distribuindo pancadas e nos obrigando a voltar para baixo da gua fervendo.Tudo se passava de maneira muito organizada, como se fssemos produtos numa estei

    de fbrica. medida que avanvamos, outros assumiam nossos lugares. Aindcompletamente nu e molhado, segui a corrente at a sala de tatuagem. Havia uma mecomprida, com vrios prisioneiros encarregados de nos tatuar o nmero de matrcula nbrao. Usavam para isso uma espcie de caneta com uma ponta que furava a pele e fazpenetrar a tinta sob a epiderme. Uns pontinhos eram feitos at que o nmero aparecesse nbrao. Era extremamente doloroso. Quando, enfim, o homem que me tatuava largou o mebrao, eu imediatamente esfreguei o antebrao com a mo, para atenuar a dor. Quando olhpara ver o que fora feito, nada pude distinguir atravs da mistura de sangue e tinta. Fiquei comedo, achando que tinha apagado o nmero. Com um pouco de saliva, limpei o brao e reaparecer o nmero que tinha sido corretamente injetado: 182727, minha matrcula.

    Depois disso, devamos esperar as roupas que seriam distribudas. Os novos prisioneirhavia muito tempo no recebiam mais os uniformes listrados. Em vez disso, recebamroupas desinfetadas, deixadas por prisioneiros anteriores. A distribuio era feita sem qualqupreocupao com os tamanhos certos das roupas. Vinham um palet, uma cala, uma cuec

    meias e sapatos. Era comum as roupas estarem gastas e com furos. Muitos no conseguia

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    entrar em suas calas, outros tinham recebido um par grande demais. Ningum se atrevia a pedir um outro tamanho a quem nos distribua as coisas. Podiam perfeitamente nos bater pisso, apesar de tambm serem prisioneiros. Tentvamos, ento, nos acertar entre ns mesmofazendo trocas. Mas era preciso ter sorte, sobretudo com os sapatos, para que no estivessecom furos na sola. Pessoalmente no me sa mal, apesar de ficar com coisas um tanto quangrandes.

    Como fui um dos primeiros a ficar pronto e ainda havia muitos atrs de mim, procur

    um dos prisioneiros que nos tinham raspado os pelos. Propus ajudar um pouco, em troca dum pedao de po. O prisioneiro responsvel pela equipe de trabalho aceitou e me deu umpequena mquina de raspar cabelos. Eu sabia us-la, pois meu pai tinha uma pequenbarbearia ao lado da casa de caf turco do meu av. Depois da morte do meu pai, para ganhum pouco de dinheiro, eu tinha o hbito de ir aos domingos ao quarteiro pobre de BaroHirsch e oferecer meus servios s pessoas que no tinham como pagar um corte de verdadPor exemplos como esse, digo frequentemente que as pessoas que sofreram na infnciativeram de aprender a se virar sozinhas tiveram mais chances do que as mais privilegiadas pasobreviver e se adaptar no campo. Para sobreviver no campo, era preciso saber coisas teis,no filosofia. Naquele dia, isso me fez ganhar um pedao de po.

    No procurou saber o que havia acontecido com sua me e suas irms?

    Sim, claro. No parava de pensar em minha me. Ouvi algum falando ladino, nosdialeto judeo-espanhol, e me aproximei para perguntar se sabia para onde tinham sidenviadas. Ele me respondeu gentilmente que no me preocupasse, que eu saberia no dseguinte, e, enquanto isso, era melhor no fazer mais essas perguntas. Mas essa resposta n

    me satisfez e me aproximei de um prisioneiro que falava idiche, e perguntei em alemo: Wsind meine Mutter und meine Schwestern? (Onde esto minha me e minhas irms?) Ele nme respondeu e se limitou a me pegar pelo brao e me levar at a janela. Ali, apontou comdedo a chamin do Crematrio. Olhei, incrdulo, o que ele mostrava e compreendi que mdizia em idiche: Todos que no vieram com voc j esto se libertando desse lugar. Olhpara ele, ctico, sem realmente acreditar. Nada mais dissemos. No posso dizer que aquitenha me causado um grande efeito. Era to inconcebvel que pudessem ter nos trazido at apara nos queimar na chegada; eu simplesmente achei que ele quisera me assustar, como se fcom os novatos. Ento, resolvi esperar o dia seguinte para ver por mim mesmo. Entretant

    ele tinha toda razo.

    Como voltou a encontrar seu irmo e seus primos?

    Depois de ter recebido as roupas, ouvi algum me chamar: Shlomo? Onde voc est? Emeu irmo me procurando; reconheci sua voz, mas no conseguia v-lo. Na verdade, estabem perto de mim, mas no reconhecemos um ao outro. No tnhamos mais cabelos e roupas no cabiam em ns. Foi um momento bem triste, talvez at um dos mais tristes. Ver

    estado a que fomos reduzidos... Mas no chorei. Mesmo quando soube a respeito da minhme... A torneira das lgrimas se bloqueara e eu no chorava mais, apesar da tristeza e da dor

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    Quando, finalmente, os alemes nos mandaram sair da Sauna, nos conduziram a ubarraco bem em frente. Estava completamente vazio; no havia camas e nem qualquer outcoisa no cho. Deixaram-nos todos l dentro at o dia seguinte, pois, naquela hora, eproibido ir e vir dentro do campo. Permanecemos ali, sem poder dormir e nem deitar; comanimais. Vrios rapazes religiosos comearam a rezar em um canto. Eles, claro, no tinhaconseguido conservar seus livros, mas conheciam as oraes de cor. Na manh seguinte, s 9os guardas alemes vieram nos buscar para nos levar ao setor BIIa, o da quarentena do camp

    dos homens.16Indicaram-nos um barraco, quase no meio da quarentena, e disseram que entrssemos. Blockltester,17um polons no judeu que se revelou particularmente violento, nos esperavMandou que nos metssemos cinco em cada colcho. Juntamo-nos eu, meu irmo, meprimos e um amigo de Salnica. Por volta das 11h30, a sopa foi distribuda. Era a primeivez que recebamos o que comer desde os pacotes da Cruz Vermelha. Mas para receber a sopera preciso ter uma tigela e o maldito sujeito no julgou necessrio nos dizer onde obt-las. que podamos fazer? Quem no tivesse uma tigela no recebia a sopa e era brutalmenafastado. Ningum se preocupava com o fato de no comermos h vrios dias.

    Somente noitinha pudemos, enfim, engolir alguma coisa. Distriburam uma fatia de ppreto com um pedao de margarina (s vezes, em vez da margarina, recebia-se um pedao dque chamavam Blutwurst, uma espcie de linguia). Engoli tudo de uma s vez, sem sequmastigar, de tanta fome que tinha.

    Na manh do dia seguinte distriburam ch. Quer dizer, no sei se podemos chamar aquegua infecta de gua, ch, infuso de tlia ou sei l o qu, mas pelo menos era quente. Dqualquer jeito, como continuvamos sem as tigelas, ficamos sem nada, mais uma vez. Algumenfim, indicou um lugar atrs da quarentena, onde pude encontrar as tigelas. Em que estad

    estavam! Sujas, enferrujadas, jogadas ao cho. Mas no tinha importncia, a nica coisa qucontava era poder se alimentar o mnimo para sobreviver at o dia seguinte. Era preciencontrar uma maneira de sempre ter sua tigela consigo; fazia-se um buraco na madeira papendur-la na cintura, da maneira que fosse possvel. Era essencial t-la consigo, para ncorrer o risco de ser roubada.

    O que faziam durante o dia?

    Nada em particular. Na quarentena, os prisioneiros tinham o direito de se deslocar n

    interior do setor. Podamos at falar com os outros prisioneiros, no era como nSonderkommando, onde estvamos formalmente proibidos de falar com quem quer qfosse. Os prisioneiros em quarentena praticamente no trabalhavam. Teoricamente, podamir conversar com quem quisssemos. S que a barreira das lnguas e a falta de vontade contar o prprio sofrimento s pessoas que passavam pela mesma coisa nos levavam a nfechar em ns mesmos e nos refugiar no silncio.

    Como se passava a chamada?

    Era feita todos os dias, de manh e noite. Acordavam-nos de manh bem cedo para faz

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    a chamada. Todo mundo do lado de fora, sob gritos e pancadas para nos fazer sair o marpido possvel. Os ltimos eram sistematicamente punidos e recebiam pancadsuplementares. E sempre havia, obrigatoriamente, quem sasse por ltimo, pois no podamsair todos ao mesmo tempo. Todo mundo, ento, se precipitava para sair entre os primeiropara evitar alguns golpes. A chamada podia durar horas, durante as quais era preciso se mantde p, imvel. Depois disso, como estvamos ainda na quarentena e no nos kommandostrabalho, ficvamos encarregados de retirar as ervas daninhas, fazer um pouco de faxina, m

    nada em especial. Vamos os prisioneiros nos outros setores do campo saindo para trabalhar.

    Como eram os barraces, na quarentena?

    Os barraces tinham duas entradas; uma na frente, a entrada principal, e outra atrEntrando, havia dois quartinhos direita e e