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Rotina de Treinamento Laboratorial em Microcirurgia do Instituto Nacional do Câncer Routine Training in Microsurgery Laboratory of the National Cancer Institute Autores (Authors) Diogo Almeida Lima: Cirurgião Plástico. Membro Especialista da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica Pós Graduando em Microcirurgia Reconstrutiva do Instituto Nacional do Câncer, Rio de Janeiro, RJ, Brasil; Cirurgião Plástico do Hospital Regional do Câncer e da Santa Casa de Misericórdia de Passos, Passos, MG, Brasil. Mário Sérgio Lomba Galvão: Fundador da Seção de Microcirurgia Reconstrutiva do Instituto Nacional do Câncer, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Chefe da Seção de Microcirurgia Reconstrutiva do Instituto Nacional do Câncer, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Marcelo Moreira Cardoso: Cirurgião Plástico. Membro Titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. Staff do Serviço de Cirurgia Plástica e Microcirurgia Reconstrutiva do Instituto Nacional do Câncer, Rio de Janeiro, RJ, Brasil; Orientador e responsável pelo Laboratório de Microcirurgia Experimental do Instituto Nacional do Câncer, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Paulo Roberto de Albuquerque Leal: Doutor. Membro Titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica Chefe do Serviço de Cirurgia Plástica e Microcirurgia Reconstrutora do Instituto Nacional do Câncer, Rio de Janeiro, RJ, Brasil; Presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica Regional Rio de Janeiro Descritores (Palavras-chave) : Microcirurgia Reconstrutiva, Laboratório, Treinamento, Cirurgia Plástica Keywords: Reconstructive Microsurgery, Laboratory, Training, Plastic Surgery. Resumo: A Microcirurgia é uma técnica na qual se realiza cirurgia sob magnificação ótica em vasos de diâmetro menor que 3 mm. Jacobson e Suarez foram os primeiros a utilizar o termo microcirugia para descrever anastomoses experimentais de vasos com calibre entre 1 e 2 mm em 1960 sendo a origem da moderna prática microvascular creditada a eles. Desde então, foram desenvolvidos e publicados diversos tipos de transferências microvasculares de tecidos para reparo de grandes defeitos corporais e ocorreu intensa modernização das óticas e design dos instrumentos. Embora essa evolução, a prática laboratorial é indispensável e permite ao cirurgião alcançar a habilidade necessária à realização da técnica de microanastomoses. Assim sendo, esperamos colaborar apresentando a rotina de treinamento em microcirurgia realizada no Laboratório de Microcirurgia Experimental do Intituto Nacional do Câncer, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Abstract: The Microsurgery is a technique in which surgery is performed under magnification optics in vessels smaller than 3 mm diameter. Jacobson and Suarez were the first to use the term microsurgery to describe experimental

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Rotina de Treinamento Laboratorial em Microcirurgia do Instituto Nacionaldo Câncer

Routine Training in Microsurgery Laboratory of the National Cancer Institute

Autores (Authors)Diogo Almeida Lima: Cirurgião Plástico. Membro Especialista da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica Pós Graduando em Microcirurgia Reconstrutiva do Instituto Nacional do Câncer, Rio de Janeiro, RJ, Brasil; Cirurgião Plástico do Hospital Regional do Câncer e da Santa Casa de Misericórdia de Passos, Passos, MG, Brasil.Mário Sérgio Lomba Galvão: Fundador da Seção de Microcirurgia Reconstrutiva do Instituto Nacional do Câncer, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Chefeda Seção de Microcirurgia Reconstrutiva do Instituto Nacional do Câncer, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.Marcelo Moreira Cardoso: Cirurgião Plástico. Membro Titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. Staff do Serviço de Cirurgia Plástica e Microcirurgia Reconstrutiva do Instituto Nacional do Câncer, Rio de Janeiro, RJ,Brasil; Orientador e responsável pelo Laboratório de Microcirurgia Experimentaldo Instituto Nacional do Câncer, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.Paulo Roberto de Albuquerque Leal: Doutor. Membro Titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica Chefe do Serviço de Cirurgia Plástica e Microcirurgia Reconstrutora do Instituto Nacional do Câncer, Rio de Janeiro, RJ, Brasil; Presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica Regional Riode Janeiro

Descritores (Palavras-chave) : Microcirurgia Reconstrutiva, Laboratório, Treinamento, Cirurgia Plástica

Keywords: Reconstructive Microsurgery, Laboratory, Training, Plastic Surgery.

Resumo: A Microcirurgia é uma técnica na qual se realiza cirurgia sob magnificação ótica em vasos de diâmetro menor que 3 mm. Jacobson e Suarezforam os primeiros a utilizar o termo microcirugia para descrever anastomoses experimentais de vasos com calibre entre 1 e 2 mm em 1960 sendo a origem da moderna prática microvascular creditada a eles. Desde então, foram desenvolvidos e publicados diversos tipos de transferências microvasculares de tecidos para reparo de grandes defeitos corporais e ocorreu intensa modernização das óticas e design dos instrumentos. Embora essa evolução, a prática laboratorial é indispensável e permite ao cirurgião alcançar a habilidade necessária à realização da técnica de microanastomoses. Assim sendo, esperamos colaborar apresentando a rotina de treinamento em microcirurgia realizada no Laboratório de Microcirurgia Experimental do Intituto Nacional do Câncer, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Abstract: The Microsurgery is a technique in which surgery is performed undermagnification optics in vessels smaller than 3 mm diameter. Jacobson andSuarez were the first to use the term microsurgery to describe experimental

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anastomosis of vessels with diameter between 1 and 2 mm in 1960 and theorigin of modern microvascular practice is credited to them. Since then, weredeveloped and published several types of microvascular tissue transfer forrepair of large defects and occurred intense modernization of optical andinstruments. Although these developments, the laboratory practice is essentialand allows the surgeon to achieve the skill necessary to complete the techniqueof microanastomoses. Therefore, we hope to collaborate presenting trainingroutine in microsurgery performed at the Laboratory of ExperimentalMicrosurgery of the National Cancer Institute, Rio de Janeiro, RJ, Brazil.

Introdução

A Microcirurgia é, por definição, uma cirurgia realizada sob magnificaçãoóptica, mais comumente sob o microscópio cirúrgico. Um século se passoudesde que Alexis Carrel introduziu as técnicas de tringulação para reparaçãode vaso em 1902. Nylen em 1921, operou o labirinto de coelhos e isto foiseguido pelo uso clinico em Otologia, Oftalmologia e Neurocirurgia,procedimentos que necessitavam de magnificação para prover dissecção maiscuidadosa1. A origem da moderna prática microvascular é creditada a Jacobsone Suarez que usou emprestado o microscópio cirúrgico de seus colegas deotorrinolaringologia na década de 60 e promoveram anastomoses em vasos dediametro inferior a 2 mm. Em 1963, Chen realiza o primeiro reimplante debraço, publicado somente na literatura chinesa e Tamai e Komatsu relataramna literatura inglesa em 1968 o primeiro reimplante de polegar bem sucedido.Cobbet em 1969, na Inglaterra, realizou a primeira transferência de dedo do pépara recontrução do polegar22,23,25. No Brasil, Ferreira et al relizaram em 1972 oprimeiro reimplante de mão com sucesso em humanos9,24. Em sequência outrostipos de transferências de tecido microvasculares mais elaboradas foramdesenvolvidas e publicadas até os dias de hoje. A pesquisa atual emmicrocirurgia deslocou-se para projetar novos retalhos e refinar os já existentese permitiu a extensa aplicação desta técnica em diversas reconstruções2,3,4,5,6.Entretanto, não somente os avanços são importantes no êxito da técnica, osucesso clínico final em microcirurgia também depende de boa habilidademanual na execução da anastomose microvascular.

A aderência estrita às regras básicas durante a preparação do vaso e suturaserão para sempre a pedra angular para o bom trabalho em microcirurgia6.Com o tempo, o diâmetro dos vasos anastomosados tornou-se menor e atingirtaxas de permeabilidade de 98% na anastomose de vasos de 1 mm dediâmetro agora é comum. Isto se deve a excelente óptica dos microscópiosatuais, melhora do design dos instrumentos de microcirurgia e ao treinamentoem laboratório realizado por pioneiros como Acland e Buncke.

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Exemplos comuns de uso da microcirurgia são implante de membros ou dedospós amputação traumática, retalhos livres vascularizados em cirurgia plásticareconstrutiva, recanalização de ducto deferente e tuba uterina e em diversascirurgias das especialidades como neurocirurgia, oftalmologia, ortopedia eotorrinolaringologia7. No Brasil, na maioria dos estados não há centros detreinamento ou curso regular de microcirurgia. Nesse contexto um dosprincipais obstáculos é o custo do treinamento o que não diminui a importânciaparticular de existir centros de microcirurgia regional, pois por exemplo, emcasos de emergência, tais como amputação traumática, o tempo paratransferência para um centro de referência em reimplante é curto e nãopraticável2.

O treinamento exige alto grau de dedicação e o domínio da técnica deve serobtido primeiro em laboratório gradualmente antes de ser empregada naprática clínica, pois a prática inicial em materiais e animais vivos é essencialpara o desenvolvimento de habilidade cirúrgica. Existem vários modelos detreinamento que envolvem diferentes materiais e animais9. Também foramdefinidas algumas rotinas de treinamento2,8,9,10,11,12 para que se obtenhapermeabilidade vascular adequada e por conseqüência, êxito na prática diária.O objetivo deste artigo é descrever a rotina de treinamento prático emmicrocirurgia realizado pelos médicos em treinamento do Serviço de CirurgiaPlástica e Microcirurgia Reconstrutora no Laboratório de MicrocirurgiaExperimental do Instituto Nacional do Câncer no Rio de Janeiro/RJ – Brasil.

Material e Método

O laboratório de microcirurgia experimental do Instituto Nacional do Câncer(INCA) existe desde 1981, quando foi criado o primeiro Serviço de MicrocirurgiaReparadora no Brasil no INCA, para funcionar independente das outrasespecialidades, através da cogestão INAMPS- Ministério da Saúde na gestãodo Dr. Ary Frauzino25. Atualmente dispõe de microscópios binoculares ebiotério com ratos da raça Wistar, além do instrumental necessário aotreinamento básico para cada treinando (porta agulhas curvo e sem trava, umapinça reta e outra curva de dissecção, um tesoura curva e outra reta, pinçadilatadora de vaso e clampes microvasculares), sendo autorizado pelo Comitêde Ética e Pesquisa (Figuras 1,2 e 3).

A rotina de treinamento apresenta várias fases que vão sendo executadas emníveis crescentes de dificuldade 2 vezes por semana durante 4 horas por dia.Inicialmente aprende-se a manipular o instrumental microcirúrgico e a manejaro microscópio com no mínimo 16X de aumento, sendo orientado oposicionamento e postura do cirurgião mantendo o apoio dos cotovelos a 90graus e apoio do antebraço e punhos, a fim de se obter uma adequadavisualização bidimensional do campo operatório e evitar fadiga e tremores. Aseguir é realizado o primeiro passo do treinamento em si, quando são utilizadas

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placas de silicone para realização de suturas diversas com fios mononylon 8.0e 9.0 durante 20 horas. As placas são cortadas e posicionadas em váriasorientações durante o treino com o intuito de aumentar o grau de dificuldadegradativamente e simular situações reais (Figura 4). O primeiro plano de suturatreinado é o chuleio contínuo e a seguir são treinados pontos simples (Figura5). Com a habilidade adquirida, são realizados 2 cortes paralelos na placa quepermitam o treino de confecção de tubos os quais são usados para simulaçãode anastomose término-terminal (Figura 6). A próxima fase envolve o treinocom segmentos animais durante 20 horas. Utilizamos o pé de galinha, quepossui uma veia dorso-medial com cerca de 1 a 2 mm de diâmetro. É realizadoo treino com dissecção e preparo do vaso e realização de anastomosestérmino-terminal entre clampes microvasculares (Figura 7).

A última etapa envolve o treino com animais vivos em 60 horas. O animalutilizado é o rato da raça Wistar. Antes dessa fase, o treinando aprende a lidarcom o animal e anestesiá-lo para o procedimento. Para a pega no dorso doanimal utilizamos para proteção luva de raspa de couro a fim de expor oabdome para a aplicação da solução anestésica via intraperitoneal. A soluçãoanestésica empregada é clorpromazina (1,7 mg/kg/dose) e ketamina120mg/kg/dose. Antes do procedimento deixamos preparados soluçãoheparinizada, sendo 1 frasco de 5 ml (5000 ui/ml) diluído em 100 ml de RingerLactato a fim de irrigar o lúmen dos vasos trabalhados no intuito de removerimpurezas e coágulos. Também usamos solução de lidocaína 2% paraaplicação sobre os vasos a fim de diminuir o vasoespasmo e soro fisiológico0,9% morno para irrigação das alças intestinais e limpeza do campo operatório.Trabalhamos com fios de nylon monofilamentar 8, 9 e 10.0 na execução dasanastomoses e o abdome é suturado ao final com categute 4.0 no planoperitoneo-muscular e Vicryl 4.0 para pele, sendo usado para analgesia pós-operatória Paracetamol via oral.

Antes do procedimento, deixamos todo material e soluções a serem utilizadaspreparados e posionados próximos ao campo operatório (Figura 8). Nosprocedimentos iniciais abordamos por incisão mediana todo o abdome,rebatendo o peritônio e alças intestinais para esquerda deixando-os envolvidosem gaze que é umedecida com SF 0,9% morno constantemente. Usamosafastador autostático Weitlaner para afastar a parede abdominal (Figura 9).Através de microdissecção efetuamos o preparo dos vasos. O primeiro vasotrabalhado é aorta abdominal que é dissecada e preparada em seu segmentoinfra ou supra-renal para posicionamento dos clampes. Para realçar o campovisual, lança se mão de pedaço de luva estéril verde ou do envelope do fio desutura abaixo dos vasos e tecidos subjacentes para facilitar a visualização docampo operatório. Inicialmente realizamos o treino com a sua secção parcialem 50% da circunferência anterior e sutura com pontos simples entre osclampes (Figura 10). A agulha entra perpendicular ao vaso, a uma distância daborda que seja o dobro da espessura do vaso, incluindo toda a íntima. A sutura

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deve everter os bordos e o nó executado sem excesso de tensão. Após adquirirtal habilidade o treino ocorre com secção total do vaso (Figura 11) eanastomose término-terminal com pontos simples. O primeiro ponto é dadoonde seja mais confortável na parede anterior de forma que o segundo pontoseja realizado a um terço de distância ou 120° do primeiro (Cobbet). Vira-se oclampe 180° e realiza-se outro ponto a 120° dos demais25,26. Pela técnica detriangulação fazemos a sutura da parede posterior para ambos os lados até osdois primeiros pontos (Figura 12). Assim, a parede anterior é fechada porúltimo, após voltar-se o clampe para a posição inicial (Figura 13). Procede-seao final ao teste da patência vascular com duas pinças fechadas quedelicadamente se afastam exanguinando o vaso (Figura 14). A seguir aproximal no caso da artéria ou distal no caso da veia são liberadas, sendo ofluxo checado neste momento (Figura 15). O treino de anastomose venosa érealizado término-terminal e usamos a veia cava (Figura 16 e 17) e renal(Figuras 18 e 19) procedendo da mesma maneira que para a artéria descritaanteriormente. A partir dessa fase se o treinando é considerado capaz, elepassa à pratica clínica supervisionada para treinamento de microanastomoses.No laboratório continua o treinamento de técnicas com nível de dificuldademaior, como anastomose término-lateral entre a artéria renal e aorta,interposição de enxerto venoso e microneurorrafia do nervo ciático. Durantetodo o treinamento em laboratório, ocorre o aprendizado simultâneo em centrocirúrgico, onde o treinando participa de cirurgias que envolvem a utilização deretalhos livres para correção dos mais diversos defeitos decorrentes deressecções oncológicas e seqüelas traumáticas, entre outros.

Resultados

Os níves de patencia vascular avaliados pelo teste de enchimento do vaso deAcland alcançados pelos residentes variam. Todos estão entre os valoresaproximados encontrados na literatura entre 85 e 95%10 e exigidos para ainiciação da prática clínica na instituição.

Através da rotina exercida em níveis de dificuldade crescente, os treinandosatingem o objetivo que é torná-los aptos a realizar microanastomose edissecção de retalhos livres em pacientes de forma segura e supervisionada nohospital de ensino a fim de se tornarem capazes de resolver as mais diversassituações encontradas no seu dia a dia em Cirurgia Plástica Reparadora,quando da realização de transferênciamicrovascular de tecidos.

Discussão

O treinamento inicial em microcirurgia pode ser longo e tedioso caso não seelabore um planejamento para realizá-lo. O treino deve ser obtido primeiro emum ambiente que não envolva pacientes, devido a complexidade querepresenta13. Observa-se que a cada fase o treino se torna mais estimulante,visto a percepção da evolução prática manual que o próprio treinando percebe

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de si. Assim, através da rotina estabelecida no serviço, gradualmente oresidente se familiariza com as táticas e técnicas que envolvem o ato de relizarmicroanastomoses que o tornem apto a executar a prática clínica

Pessoa relata que no inicio do treinamento é importante aprender algumasnoções teóricas sobre como lidar com os instrumentos, com o microscópio,técnicas de dissecção, sutura e anestesia de ratos. O nivel de dificuldade dosexercícios deve ser progressivo para assegurar melhor adaptação com omicroscópio e instrumentos, sendo aconselhado se evitar o uso de animaisvivos precocemente para treinar8. Na fase inicial não é importante trabalhar emuma situação que simule o “real” com animais vivos, sendo até uma atitudeética e econômica, uma vez que muitos animais podem ser poupados.

O uso de material sintético como silicone para treino é bastante prático para otreino inicial, embora tenha a desvantagem de não oferecer estruturas deconsistência similar aos tecidos biológicos e não permitir treino de técnicas dedissecção. São executadas suturas em variadas direções, como demonstradona figura 4. Assim o treinando aproveita essa etapa para treinar a habilidade dese posicionar e executar o ponto em diferentes direções, ângulos e inclinaçõescomeçando a evitar posições viciosas, o que na prática clínica muitas vezes éexigido quando o local da microanastomose não é favorável.

É muito útil o uso de peças animais, que podem ser armazenadas por dias norefrigerador sem perder sua consistência tecidual20. Vários segmentos animaisinertes podem ser utilizados para treino14,15,16,17,18. Escolhemos o pé de galinhapor ser de fácil obtenção em locais onde são ofertados para o consumo, baixocusto e de fácil armazenamento. Atribuímos a essa etapa a importância deaprender a manipular e sentir a delicadesa das estruturas microvasculares aose fazer a dissecção e microsutura, sem a presenca do fator estresse, quepoderia ocorrer inicialmente no trabalho com animais vivos. Estes sãosensíveis a vários fatores como pequena perda volêmica, tempo cirúrgicoprolongado e lesão inadvertida pelo treinando sem experiência suficiente ainda,levando ao óbito dos animais com mais facilidade, o que poderia aumentar oscustos do treinamento.

Sabemos que trabalhar com animais vivos e manter um biotério envolveelevados custos. Observamos no Brasil que várias intituições de renome,realizam treinamento em microcirurgia, porém infelizmente encontram algumasbarreiras econômicas para tal fim2,9. Em outros países da Europa e América doNorte o entrave maior se dá devido a discussões de ordem ética sobre aproibição de práticas cirúrgicas em animais. Observamos que a boa execuçãodo treinamento nas fases iniciais com material inerte e segmentos animaisminimiza o uso de animais para a fase final do treinamento, diminuindo asdespesas. Apesar das dificuldades, acreditamos que a experiência comanimais vivos é essencial para o melhor aprendizado da técnica e que mesmoo seu custo elevado se justifica diante dos benefícios que traz, pois tal treino

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leva o residente a se familiarizar com uma situação mais próxima do realrealizado na prática clínica, pois aprende “in vivo” a fazer a correta exposição,dissecção e preparação dos vasos, assim como, a realização de técnicas demicrosutura vascular corretamente.

É importante lembrar que durante o trabalho com animais, deve haver atençãoespecial a alguns itens antes do procedimento, como: separar todo materialcirúrgico necessário e soluções (como visualizado na figura 8) além de tercuidados para se realizar a anestesia correta a fim de evitar sofrimento e perdado animal. Isso economiza tempo, produtos e evita acidentes. Para maiorproveito dos animais, operamos os mesmo duas vezes e se touver um terceiroprocedimento o mesmo é sacrificado.

A aorta e veia cava do animal possuem calibre que varia de 1,0 a 2,5mm,dependendo da idade do rato. Utilizamos inicialmente a aorta por ser um vasoque apresenta maior espessura de sua parede e maior calibre e, portanto, maisfácil de ser suturado. Entretanto, devido a forte retração elástica, quando sefaz a secção total, os cotos vasculares tendem a se distanciar um do outro oque torna a sutura pouco mais difícil para o principiante. Assim, nos primeirosanimais operados realizamos a secção parcial do vaso pois apresenta um nívelde dificuldade menor. Após o aluno estar familiarizado com o procedimento,partimos para a secção total do vaso, onde haverá também a realização desutura primeiramente da parede posterior que é mais difícil tecnicamente parao principiante. A seguir procedemos da mesma maneira para treinar na veia doanimal que apresenta maiores dimensões, todavia possui uma parede muitofina e frágil, sendo facilmente danificada pelo simples transpassar da agulha, oque gera dessa forma, maior grau de dificuldade e estresse na realização daanastomose término-terminal ou interposição venosa. A microneurorrafia étreinada no nervo ciático por estar localizado na raiz da coxa do animalfacilmente acessível. São realizadas suturas epiperineural término-terminal27,28.

Observamos que a evolução no aprendizado da técnica ocorre naturalmente,conforme o treinando vai conquistando índices de permeabilidade vascularadequados, avaliados pelo teste de enchimento do vaso descrito por Aclandvisto previamente nas figuras 14 e 15 e também pela sobrevivência do animalem cada fase do programa de treinamento resumido na tabela abaixo.

Programa de TreinamentoManejo do microscópio

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1) Introdução Reconhecimento do instrumental microcirúrgico

Preparo de soluções Anestesia do animal

5) Placas de silicone Sutura simples em diversas direções

Confecção de tubos para simulação de anastomose6) Material inerte Veia dorsal de pé-de-galinha: Dissecção e sutura

término-terminal7) Animal vivo Aorta: Secção parcial e sutura término-terminal

Aorta: Secção total e sutura término-terminalVeia cava: secção parcial e sutura término-terminalVeia cava: secção total e sutura término-terminalArtéria Renal-Aorta: sutura término-lateralInterposição de enxerto venosoMicroneurorrafia de nervo ciático

É extremamente recomendado que o treinando somente executemicroanastomoses na prática clínica depois de obter taxas de sucesso napatência vascular, usando vasos de calibre similares no laboratório, superior a80%8. Assim, conforme evolui no aprendizado, atingindo níveis de patência quecorroboram os da literatura exposta, o treinando começa a fazer o preparo dosvasos receptores e execução da microanastomose vascular na prática clínica,sob supervisão do médico responsável. Existem alguns cursos nos nos E.U.Acom duração de 7 horas por dia durante dois dias, o que é desvantajososo,uma vez que o tempo é demasiadamente curto e extenuante. Para o iniciante,depois das primeiras horas no microscópio é comum ocorrer dores de cabeça,dor muscular, tremores e perda de concentração, além do que a microcirurgia écheia de detalhes e truques e a quantidade de informação é bastante para seraprendida em apenas dois dias19. Seguindo uma rotina de treinamento por umperíodo de tempo adequado e confortável, permiti-nos observar seguramente aevolução da habilidade manual do treinando até se chegar a um nível que seesteja capacitado à prática clínica supervisionada.

Conclusão

No aprendizado da microcirugia a transição entre a prática experimental eclínica não é fácil e automática21. Acreditamos que estabelecer uma rotina, naqual o treinando se oriente e treine em níveis crescentes de dificuldade,maximiza o aprendizado da técnica de microanastomoses e o tornaestimulante. Atribuímos importância a todas as etapas do treinamento,

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especialmente a fase final com animais, pois permite ao treinando simular umasituação “real” vivenciando todo o estresse que pode ocorrer durante arealização de uma microanastomose, antes de empregá-la na prática clínica.Apesar do uso de animais ter o custo elevado, ele se justifica, pois ao treinar eadquirir habilidade nas primeiras fases do treinamento, sua utilização éreduzida nas etapas seguintes, até se alcançar a patência vascular aceitávelpara realização da prática clínica.

Acreditamos que deve haver um estímulo à implantação de novos laboratórioscom biotérios nas instituições de ensino no Brasil e melhora das condições dosjá existentes, visto que existem excelentes cirurgiões plásticos interessados,que seguindo uma rotina básica de treino sob supervisão, poderiam aprender adominar a técnica de microanastomoses e proporcionar aos usuários de saúde,no que tange à Cirurgia Plástica Reconstrutiva, a realização de retalhosmicrovascularizados para reparação de defeitos específicos que comumentesomente são realizados em grandes centros. Isso irá engrandecer ainda mais anossa especialidade no Brasil.

Por fim, é importante ressaltar que o domínio da técnica de microanastomoses é apenas um cofator importante no sucesso de cirurgias de transferência de tecidos. Apenas anos de experiência cirúrgica e enfrentamento de situações clínicas diversas permitirão ao cirurgião alcançar maiores índices de sucesso nessas cirurgias de alta complexidade.

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Imagens

Figura 1: Laboratório

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Figura 2: Bancada com microscópios.

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Figura 3: Biotério: prateleira com animais.

Figura 4: Placa de Silicone: treino de suturas em várias direções.

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Figura 5: Placa de Silicone: sutura simples.

Figura 6: Placa de Silicone: confecção de tubos para simulação de anastomose.

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Figura 7: Pé de galinha: treino de dissecção e sutura términoterminal.

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Figura 8: Campo operatório preparado.

Figura 9: Abordagem por incisão mediana no abdome do rato.

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Figura 10: Secção parcial da aorta e sutura.

Figura 11: Secção total de aorta.

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Figura 12: Secção total de aorta: após suturar a parede posterior sutura-se aanterior.

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Figura 13: Secção total de aorta: anastomose finalizada.

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Figura 15: Teste de Patência: verifica-se o fluxo ao se soltar a pinça proximal naartéria, como demonstrado, e distal quando for veia.

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Figura 14: Teste de patência: pinças se afastam uma da outra.

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Figura 17: Veia Cava suprarenal: acima do fragmento de luva verde usado paracontraste, a sutura términoterminal finalizada.

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Figura 16: Veia Cava suprarenal com clampe posicionado antes da secção total.

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Figura 18: Veia Renal direita: calibre de 1 mm, sendo contrastada dos tecidossubjacentes com um fragmento do envelope verde do fio de sutura.

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Figura 19: Veia Renal direita: após secção total e anastomose término-terminalcompletada.