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ARTE DA MEMÓRIA e ARQUITETURA

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  • ARTE DA MEMRIA e ARQUITETURA

  • asnep acnun amla A sem uma imagem mental

    ARISTTELES. In: YATES, F. A. The Art of Memory. Chicago: The University of Chicago Press, 1984, p. 32

  • Renata La RoccaOrientadora: Profa. Dra. Anja Pratschke

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de So Carlos, da Universidade de So Paulo, como parte dos requisitos para obteno do Ttulo de Mestre em Arquitetura, So Carlos, 2007.

    ARTE DA MEMRIA e ARQUITETURA

  • AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

    Ficha catalogrfica preparada pela Seo de Tratamento da Informao do Servio de Biblioteca EESC/USP

    La Rocca, Renata R671a Arte da memria e arquitetura / Renata La Rocca;

    orientadora Anja Pratschke. - So Carlos, 2007. Dissertao (Mestrado) - Programa de Ps-Graduao em

    Arquitetura e Urbanismo e rea de Concentrao em Teoria e Histria da Arquitetura e do Urbanismo -- Escola de Engenharia de So Carlos da Universidade de So Paulo.

    1. Arquitetura. 2. Processos de design. 3. Arte da

    Memria. 4. Mnemnica. 5. Cultura digital. Ttulo.

  • AGRADECIMENTOS

    Desde o incio da pesquisa em 2004, muitas foram as pessoas que, em diversos momentos, contriburam para a construo deste trabalho e para minha formao como pesquisadora.

    Em mbito internacional, a abertura e o prazer em colaborar do artista e pesquisador Robert Edgar, da Universidade de Stanford, Califrnia, foram surpreendentes. Foram fundamentais as conversas via incontveis e-mails numa contribuio mpar para o desenvolvimento do Captulo 03. Ainda, a contribuio atravs da entrevista realizada via e-mail, e o envio de seu portiflio em DVD, com vdeos dos anos 1980 em que explica seu Memory Theatre One, foram muito importantes. Alm, Edgar contribuiu atravs da indicao do contato de outros pesquisadores, dentre os quais Kirsten Wagner, com quem trabalha atualmente na produo de um trabalho que, certamente, merecer investigaes futuras, e que aguardo ansiosamente Memory Theatre Two.

    Foram cruciais as interlocues com os pesquisadores Kirsten Wagner e Peter Matusseki, da Universidade de Humboldt, em Berlim, sobretudo pelas entrevistas realizadas e pelo envio de materiais que ajudaram a construir nossa abordagem. Sem a ajuda de Kirsten seria impossvel compreender em detalhes o ambiente de Realidade Virtual do Memory Theater VR de Agnes Hegeds.

    As conversas com Monika Fleischmann, do Fraunhofer Institute for Media Communication, em Sankt Augustin, foram substanciais, ajudando a desvendar o papel da Arte da Memria no processo de criao dos projetos do grupo MARS.

    Nas conversas via e-mail, foram valiosas as colocaes do Prof. Ranulph Glanville, da Bartlett School of Architecture, sempre pronto a esclarecer minhas dvidas e aberto interlocuo.

    Os congressos da SiGraDi - Sociedade Ibero-americana de Grfia Digital, dos quais participei desde 2005, foram importantes pela oportunidade de troca de experincias nos mais diversos campos de interesse. Dentre os colegas com os quais tive a oportunidade de dialogar, agradeo aos professores Jos Ripper Ks da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Julio Bermdez da University of Utah, Estados Unidos, que contriburam atravs de suas orientaes como editores do IJAC International Journal of Architectural Computing. Em mbito nacional, agradeo CAPES pelo suporte atravs da bolsa de estudos concedida no ltimo ano da pesquisa. Na Universidade de Campinas, foi essencial a interlocuo com o Professor Milton Jos de Almeida. O contato teve incio com uma visita ao grupo Olho, do qual coordenador, em 2004. Foram ainda basilares para o desenvolvimento dessa pesquisa, as contribuies do professor na banca de qualificao.

    Na Escola de Engenharia de So Carlos da Universidade de So Paulo, as contribuies do professor Azael Rangel Camargo, coordenador do grupo E-URB, com seu apoio incondicional e abertura interlocuo, foram essenciais para entender uma rea de pesquisa um tanto oculta. Tambm pesquisador do E-Urb, o amigo Rodrigo Firmino foi uma grande incentivador da pesquisa, e colaborador nas interminveis revises do IJAC.

    No Departamento de Arquitetura da Escola de Engenharia de So Carlos pude contar com o apoio incondicional de colegas, que se tornaram realmente amigos no decorrer desses anos em que trabalhamos em conjunto, aos quais agradeo pela pacincia, pela ajuda e pelas divertidas

  • conversas: Evandro Bueno, do Laboratrio de Ensino de Informtica, Zanardi e Paulo Ceneviva, responsveis pelo Midimagem; Oswaldo, responsvel pelo Laboratrio de Informtica da Ps-Graduao; Srgio, Ftima, Geraldo e Marcelinho, secretrios da Graduao e da Ps-Graduao. No decorrer da pesquisa foi importante a colaborao dos funcionrios da Biblioteca Central da EESC dentre os quais agradeo em especial amiga Lili pelo suporte e pelo incentivo.

    Agradeo ainda, a amizade dos alunos do primeiro ano do Curso de Arquitetura e Urbanismo da EESC, USP, da turma de 2005, que foram meus colegas-alunos no estgio de docncia do programa PAE. Durante o estgio, sob a superviso da professora Anja Pratschke, aprendi muito sobre a atividade docente na disciplina Informtica para Arquitetura.

    Ao Nomads USP que, no locus da 001, me possibilitou armazenar muitas imagines atravs das quais me recordarei de informaes valiosas sobre Arquitetura, Arte, cultura digital, comunidades on-line, design com mdias integradas, modos de morar, modos de vida. Imagines que lembram olhares, msicas, risadas, Amigos. Amigos da Crew e ex-Crew, presentes em vrios momentos, Guto Requena, Gabi Carneiro, Cynthia Nojimoto, Mayara Dias, Varlete Benevente, Rodrigo Peronti, Nilton Nardelli, Marcos Marchetti, Denise Tahan, Nilton Trevisan, Sandro Canavezzi, Luisa Paraguai, Tatiana Sakurai.

    Agradeo em especial aos amigos Fabio Abreu e Ana Siluk, nomads como eu, pela amizade e pelos momentos compartilhados. Agradeo ainda a esses grandes amigos pela ajuda em tradues e correes de ingls. Alm, agradeo Fernanda Borba pela ajuda na reviso das tradues e ao querido IC Ricardo Spsito, que ajudou a desvendar os mistrios da Arte da Memria no Medieval.

    Agradeo em especial ao professor Marcelo Tramontano, pela paixo com que coordena o Nomads e, mais, pelas conversas instigantes nos fins de tarde na 001. Vou sentir saudades.

    querida famlia Flores Ralf, Dada e Isabella, pelas brincadeiras, conversas, momentos de desabafo, de companheirismo... agradeo a grande amizade.

    grande amiga e scia Clarissa Ribeiro, minha gratitude por construir esse trabalho that which was woven together, descobrindo as conexes entre a Arte da Memria e a Complexidade. Alm, gostaria de agradecer imensamente sua contribuio em todos os momentos da pesquisa, com entusiasmo, sempre pronta a ajudar, sobretudo nas leituras, na correo, no projeto grfico e na finalizao dos trabalhos. Agradeo ainda pela grande amizade e incetivo.

    Anja Pratschke, minha gratido por compartilhar comigo a paixo por um tema to inspirador. Agradeo pelos ensinamentos e orientaes nas incansveis reunies e pelas descontradas conversas, cheias de dicas de lugares onde comer, tomar um ch ou um caf, meditar, ler, interagir, aprender. Alm, agradeo por sua amizade e apoio.

    minha Grande Famlia La Rocca, pelo apoio incondicional em todos os momentos. Solange, pela valiosa ajuda na correo dos textos e pela amizade. Ao meu estagirio Rodrigo, por escanear vrias imagens, por se privar da Internet e pelo companheirismo. Aos scios-proprietrios da Xpprint, Beto e Gilberto La Rocca, pelo suporte logstico nos assuntos grficos e pelo carinho. Margot e Gina pela amizade e incentivo. minha irm Denise, e Gisele, pela ajuda nos momentos de correria e pela alegria. Letcia pela compreenso e pacincia, pelo amor com que cuidou de mim nos momentos de dedicao exclusiva pesquisa. Ao meu pai Neuzo La Rocca pela preocupao e incentivo e, alm, pelo exemplo de vida e de luta por ideais.

  • (A arte da memria fornece um ESQUEMA p a r a o p r e s e n t e e PREV o futuro)

    CEDRIC PRICE. In: PRICE, C. Re:CP. Basel, Switzerland: Birkhuser - Publishers for Architecture, 2003,

  • Resumo | Arte da Memria e Arquitetura Partindo da hiptese de que o uso da Arte da Memria pode ser compreendido como um sistema-processo de design para a concepo de espaos no contexto da cultura digital, o objetivo do presente trabalho construir uma compreenso ampliada do design de espaos que do suporte ao armazenamento estruturado de informaes, relacionando imagens e lugares. A investigao contempla o uso da Arte da Memria na concepo de espaos e seus princpios fundamentais desde a Antiguidade Clssica at os dias atuais, atravs de exemplos, construindo um entendimento do desenvolvimento e das conexes estabelecidas por essa Arte em trs momentos: das origens como parte da retrica na Antiguidade Clssica sua apropriao pela Escolstica Medieval, passando sua apropriao pela tradio Hermtico-Cabalstica no Renascimento, com os modelos de Teatros da Memria, sua incorporao no processo de concepo de espacialidades por arquitetos e mdia artistas contemporneos. A inteno contribuir para o entendimento da Arte da Memria como auxiliar criao de espaos como sistemas da memria. Abstract | Art of Memory and Architecture Assuming that the use of the Art of Memory can be understood as a system-design process for the conception of spaces in the context of digital culture, the present work goal is to construct a base understanding of design of spaces that give support to structured information storage by connecting images and places. The research contemplates the use of the Art of Memory, concerning the conception of spaces, from its fundament, of the Classical Antiquity to the present days, by examples, building an understanding of the development and connections concerning three moments of this Art: from its origins as a part of Rhetoric in the Classical Antiquity to its assimilation by the Middle Ages Scholastics, to its appropriation by Hermetic-Cabalistic tradition in the Renaissance and its Memory Theatres models, and finally to its contemporary incorporation in the space design processes by architects and media artists. The aim is to contribute to the understanding of the Art of Memory as an aid to the conception of spaces as memory systems.

  • SUMRIO

    Prefcio 13 Introduo 17

    1_ Memorizar-Discursar: a Arte da Memria Clssica 27 1.1_ Ars memoriae: origens 30 1.2_ Ars memoriae: o efeito simnides 32 1.3_ Imagines et loci: memorizao espacial 36 1.4_ Arte da Memria e Escolstica: Arquitetura como medium 41 1.5_ Arte da Memria e Arquitetura 52

    1.5.1. Arte da Memria: Diagramas e estruturao espacial 62

    2_ Combinar: Teatros como Sistemas da Memria 67 2.1_ A Arte da Memria no Renascimento 70

    2.1.1_ Da Escolstica ao Hermetismo 71 2.1.2_ A tradio Hermtica 76 2.1.3_Movimento: sistemas dinmicos da memria 81 2.1.4_Rodas da Memria: mquina da memria universal 87

    2.2_ Giulio Camillo Delminio 91 2.2.1_ O Teatro da Memria de Giulio Camillo na Renascena 94 2.2.2_ O Sistema da Memria de Camillo 103

    2.3_ Robert Fludd 112 2.3.1_ O Teatro de Fludd: Sistema da Memria 120 2.3.2_ Globe Theatre como fictitious place 125

  • 3_ Experimentar: aplicaes contemporneas 133 3.1 ars memorativa: ars contempornea. 135 3.2_A idia do Teatro 138 3.3_ MACHINA RATIOCINATRIX 144

    3.3.1_ Efeito Simonides: o Spatial Data Management System, MIT 145 3.3.2_ O processo criativo do grupo MARS: Arte como processo 152 3.3.3_ Teatros da Memria: exemplos de aplicao 155

    3.3.3.1_Memory Theatre One | 1985 155 3.3.3.1.1_A Estrutura Memory Theatre One 160 3.3.3.1.2_O sistema Memory Theatre One 166

    3.3.3.2_Memory Theater VR | 1997 172 3.3.3.2.1_A estrutura do Memory Theater VR 173 3.3.3.2.2_Os Quatro Cmodos da Memria no Memory Theater VR 177

    _Fludds Room 177 _Sutherlands Room 186 _Boccionis Room 192 _Alices Room 199

    3.3.3.2.3_Memory Theater VR e os Teatros da Memria 205

    Consideraes Finais 209 Referncias 227 Iconografia 235

  • PREFCIO Ns vivemos em um mundo povoado por estruturas uma mistura complexa de construes geolgicas, biolgicas, sociais, e lingsticas que no so mais que acumulaes de materiais moldados e endurecidos pela histria. Imersos como estamos nessa mistura, ns no podemos ajudar mas interagir em uma variedade de caminhos com as outras construes histricas que nos cercam, e nessas interaes ns geramos novas combinaes, algumas das quais possuem propriedades emergentes.1 [DE LANDA, 2000, p. 25-26, traduo nossa]

    Sempre acreditamos que a arquitetura comunica mais que a construo fsica, residindo sua riqueza na possibilidade de incorporar significados e contedos diversos, que se articulam com a dimenso fsica desde a concepo dos projetos. Ainda na graduao em Arquitetura, na Universidade Federal de Viosa, sempre nos atraiu a possibilidade de investigar interconexes entre os mais diversos campos disciplinares, como forma de repensar a arquitetura e o processo de design. A conexo mais fascinante, para ns, era com as artes, por sua riqueza de significados, de experimentaes livres e pelo invarivel carter de vanguarda capaz de traduzir nuances do pensamento cientfico, tecnolgico, do contexto social e cultural do momento em que concebida. Assim, a investigao das interconexes entre arquitetura e arte, focalizando a possibilidade de agregar contedos, informao, ao espao, sempre constituiu uma das questes cruciais em nosso processo de trabalho. Alm disso, a preocupao primordial era a de entender e, sobretudo, aprender, como pensar e produzir uma arquitetura que fosse capaz de traduzir, de representar o esprito da poca em que foi concebida; como produzir uma arquitetura capaz de contar a histria do seu tempo? Ou alm, uma arquitetura visionria capaz de enxergar alm de seu tempo? Assim, sempre estivemos entre o interesse por questes atuais e o fascnio pelo carter histrico de questes que perpassavam as abordagens contemporneas. Esse interesse foi o estmulo investigao iniciada no desenvolvimento da Monografia que constituiu a parte terica do Trabalho Final de Graduao, onde construmos, sob o tema Espao para abrigar a Arte, uma reflexo paralela sobre os desdobramentos da Arte interativa desde suas origens at as aplicaes atuais no contexto da mdia digital, alm de uma abordagem histrica acerca dos museus desde seu surgimento, definido inicialmente como templo das musas, at o entendimento presente do museu, como espao para abrigar artes to diversas das que originalmente habitavam o templo das musas. Como elaborao a partir das investigaes tericas, o projeto realizado, um Espao para Abrigar a Arte, constituiu uma explorao das possibilidades em arquitetura de abrigar a arte digital contempornea. Assim, partindo das investigaes do trabalho final de graduao, o desenvolvimento da presente pesquisa iniciou-se com o interesse em instalaes de arte digital, algumas delas 1 Do original em Ingls: We live in a world populated by structures a complex mixture of geological, biological, social, end linguistic constructions that are nothing but accumulations of materials shaped and hardened by history. Immersed as we are in this mixture, we cannot help but interact in a variety of ways with the other historical constructions that surround us, and in these interactions we generate novel combinations, some of which possess emergent properties. [DE LANDA, 2000, p. 25-26]

  • abordadas anteriormente no trabalho final de graduao, que tinham como caracterstica a estruturao dos espaos como modelos mentais e cujas referncias eram de carter histrico, resgatando princpios da Arte da Memria grega. No grupo de pesquisa Nomads.USP encontramos, na linha de pesquisa orientada pela Professora Dra. Anja Pratschke e em especial sobre o uso da mnemnica na concepo de espaos de conhecimento, interessante possibilidade de interlocuo para dar continuidade investigaes que privilegiam as conexes entre processos de concepo da arte e da arquitetura. O fato de a entrada para a pesquisa ser a partir de instalaes de arte digital, nos levou inicialmente a pensar em abordar apenas a questo do design de espacialidades virtuais com caractersticas relacionadas a espaos e contedos a eles associados. Ao confrontarmos outras fontes bibliogrficas, resolvemos ampliar o tema proposto inicialmente, abrangendo espacialidades hbridas misto de concreto e virtual e, alm, espaos mentais, partindo de um resgate histrico do tratamento dos espaos. Esse resgate se torna possvel a partir de exemplos significativos desde a Antiguidade Clssica, passando pelo Medieval e Renascimento, chegando ao momento atual, numa reflexo da Arte da Memria como processo no contexto da cultura digital. A investigao que permitiu ampliar a presente abordagem foi pautada na leitura de vrios autores, tecendo assim, uma rede de conexes entre a Arte da Memria na Antiguidade, seu resgate em outros momentos histricos, includo o atual. Nesse contexto, foi fundamental o contato com vrias publicaes adquiridas pela biblioteca do Nomads.usp, dentre as quais destaco um livro The Art of Memory [1966], de Frances Yates, uma das mais importantes e influentes publicaes do sculo XX sobre a Arte da Memria, que rene as principais informaes sobre os tratados de retrica que deram origem aos desdobramentos da mnemnica, alm de traar um histrico do uso da Arte da Memria desde a Antiguidade at o Barroco, onde Leibniz vai abord-la a partir da lgica combinatria. Ainda, publicaes contemporneas como o livro Virtual Art. From illusion to immersion de Oliver Grau, tratando de instalaes de arte digital, algumas com referncias mnemnicas, ou o livro Sub-urbanism and the art of memory, de Sebastian Marot que, apresentando brevemente as origens da mnemnica, a partir do livro de Yates, investiga seu uso como moldura conceitual em projetos de jardins ao longo de vrios sculos, focalizando discusses contemporneas relacionadas ao espao urbano. Diversas outras publicaes tm contribudo para enriquecer nossa abordagem e para articular as diversas entradas que mapeamos. Destacam-se entre essas, aquisies como A chave universal de Paolo Rossi, importante referncia como base dos princpios da Arte da Memria, Cinema, a Arte da Memria e O Teatro da memria de Giulio Camillo do Professor Dr. Milton Jos de Almeida, da Universidade de Campinas, Unicamp, muito importantes para a construo de nossos referenciais. Publicaes como estas foram basilares no contexto de nossa pesquisa diante do fato de que, no Brasil, so raras as publicaes relacionando a Arte da Memria Arquitetura. Diante disso um grande facilitador de nossa pesquisa bibliogrfica foi a possibilidade de acessar conjuntamente as

  • bibliotecas das universidades USP, UNESP e UNICAMP, em vrios departamentos e institutos, unificados pelo sistema UNIBIBLIWEB, no sem o empenho de busca dos exemplares, de visitas a vrias bibliotecas, num esforo de reunir materiais como o peridico Architectural Association Quarterly, publicado em 1980 pela Architectural Association, com o tema Description: Invention: Reality, que apresentou o artigo Architecture and the Art of Memory de Frances Yates, fundamental em nossa abordagem. Porm, uma grande dificuldade encontrada no decorrer de nosso trabalho, foi localizar fontes que trabalhassem com publicaes mais antigas. A maioria dos pesquisadores a que tivemos acesso, que se aventuraram pelo campo de pesquisa da Arte da Memria baseou-se na pesquisa de Frances Yates. Excees como a do Professor Milton Jos de Almeida que foi Itlia, num trabalho de pesquisa quase que arqueolgico para rastrear os textos antigos apresentam-se como contribuies importantssimas para a pesquisa, por proporcionar uma outra viso sobre o assunto. Alm do esforo por acessar uma bibliografia ampla, capaz de dar suporte s investigaes, foi prioritria a participao em atividades do grupo Nomads.USP, onde integramos a linha de pesquisa Processos de Design, privilegiando a troca de experincias com outros pesquisadores e ampliando as perspectivas das discusses. Dentre as trocas, importante destacar conexes interessantes entre a nossa pesquisa e a pesquisa de mestrado Entre e Atravs: Complexidade e Processos de Design em Arquitetura finalizada recentemente pela MSc. Clarissa Ribeiro Pereira de Almeida, que focaliza a relao entre a complexidade, ou um pensar complexo que emerge com a Ciberntica, a Teoria Geral dos Sistemas e Teoria da Informao, nos anos 1940, e os processos de design em arquitetura em dois perodos dcadas de 1960 e 1970, e dcadas de 1990 e 2000. Encontramos ainda interfaces com a pesquisa em desenvolvimento pela arquiteta e cientista computacional Fernanda Borba Janurio, que trata da relao entre a ciberntica de primeira e segunda ordem o os processos de design propostos por arquitetos nas dcadas de 1960 e 1970, como Cedric Price, por exemplo. Pesquisas essas, orientadas pela Professora Anja Pratschke, dentro da linha de pesquisa Processos de Design. Ainda no Nomads.USP, a participao em atividades do grupo como palestras e discusses em treinamentos para graduandos e o contato com pesquisadores visitantes de renome nacional e internacional das reas de arquitetura e arte digital, foram extremamente valiosos para o enriquecimento do processo da pesquisa. No sentido de construir as interconexes de nossa abordagem, a pesquisa aqui apresentada tem a inteno de ampliar a compreenso acerca dos processos de design em Arquitetura, a partir do resgate da Arte da Memria como processo. Nossa abordagem tem um carter histrico, com o intuito de entender as origens da Arte da Memria, e o modo como foi transmitida, reinterpretada e apropriada em diversos momentos histricos nos perodos: Medieval, Renascimento, Barroco e no momento atual do contexto da cultura digital.

  • Por que estudar o resgate dessa Arte como processo relacionado aos espaos? De que maneira o acesso a tecnologias e meios computacionais pode influenciar nossa maneira de pensar e de organizar contedos? Essas so perguntas que perpassam a construo de nossa abordagem. Acreditamos que, atualmente, no que se refere ao desenvolvimento das mdias e tecnologias computacionais, no contexto de uma cultura digital difundida globalmente, seja essencial repensar o processo de design em arquitetura. um momento em que diversas abordagens privilegiam uma valorizao dos processos em detrimento dos produtos e nesse contexto a Arte da Memria pode ser entendida como uma chave para enriquecer esse processo.

    Renata La Rocca, Primavera de 2006, Inverno de 2007.

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    INTRODUO

    Partimos do resgate da Arte da Memria no momento atual onde, inseridos no universo da cultura digital, os modos de vida incorporam as tecnologias de informao e comunicao. Nesse contexto, nos questionamos sobre como o acesso a tecnologias e meios computacionais pode influenciar nossa maneira de pensar e de organizar contedos e de fazer comunic-los dentro de espacialidades arquitetnicas. Alm, nos indagamos sobre como os meios podem influenciar a abordagem da Arte da Memria como processo. Diante dessa compreenso, Frances Yates julga mais adequado o uso da expresso Arte da Memria, para definir o que na verdade um processo, mais que uma tcnica. Yates enftica ao dizer que prefere [...] usar a expresso Arte da Memria para este processo.1 [YATES, 1984, p. 4, traduo nossa] Compartilhando o entendimento da autora, opta-se aqui por referir a esse processo como Arte, o que confere postura de aproximao afinada com uma compreenso da arquitetura que afinal o principal objeto de estudo desta pesquisa - mais como processo que como produto, e mais como sistema do que como objeto, numa viso que se coloca no mago de um pensar complexo em arquitetura. Nesse sentido, nos questionamos sobre o porqu de se estudar a Arte da Memria como processo na concepo de espaos atualmente. Para responder a essa indagao, nossa construo, que tambm apresenta um carter histrico, trs em sua trama um plano de fundo que conduz a abordagem da Arte da Memria ao longo do tempo atravs dos meios e tecnologias disponveis. Cada poca vai ser influenciada e refletir os meios de que dispe: assim com a oralidade, com as mudanas da imprensa e mais recentemente, com os meios computacionais. Esse plano de fundo serve como base para o entendimento das

    1Do original em ingls: [...] to use the expression art of memory for this process. [YATES, 1984, p. 4].

  • mudanas pelas quais passaram ao longo do tempo, os reflexos da Arte da Memria na concepo de espacialidades arquitetnicas. A pesquisadora Frances Yates, em palestra proferida na Architectural Association, em Londres, para estudantes e pesquisadores de arquitetura, faz uma colocao que sintetiza nosso interesse na Arte da Memria relacionada Arquitetura: Desde que a clssica arte da memria utilizava a arquitetura em suas tcnicas, sua exposio tocar em seus interesses arquitetnicos. Assim, mergulhamos na clssica arte da memria, e deve-se estar entusiasmado para procurar possveis pontos de relevncia para seus estudos.2 [YATES, 1980, p. 4, traduo nossa] Para a definio de nosso objeto, pensamos na Arte da Memria relacionada ao design de espaos que do suporte ao fluxo dinmico de informaes, exemplos apresentados na Arte e na Arquitetura; de espaos que podem ser acessados, articulados por sujeitos em processos de interao com espaos estruturados de acesso a contedos. Assim, propomos entender a mnemnica como Arte e, alm como processo, estudando-a desde as origens da concepo e da aplicao desses mtodos, e seus princpios fundamentais, na antiguidade e nos perodos medieval, renascentista, e do barroco em direo ao contemporneo para mapear e analisar seu resgate e adaptao como processo e ao mesmo tempo como sistema para a concepo e uso de espaos, numa abordagem avessa reduo e simplificao do objeto. Como afirma Morin, O sistema tomou o lugar do objeto simples e substancial e ele rebelde reduo em seus elementos; o encadeamento de sistemas de sistemas rompe com a idia de objeto fechado e auto-suficiente. Sempre se trataram os sistemas como objetos; trata-se de agora em diante conceber os objetos como sistemas. [MORIN, 2003, p.129] Deste modo, o objeto do presente trabalho a investigao do uso da Arte da Memria como processo e ao mesmo tempo como sistema na concepo de espaos desde a Antiguidade Clssica at os dias atuais, para 2 Do original em ingls: Since the classical art of memory used architecture in its techniques, the exposition of it will touch on your architectural interests. So here goes; we plunge into the classical art of memory, and you must be keenly on the look out for possible points of relevance to your studies. [YATES, 1980, p. 4]

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    construir uma compreenso das possibilidades e do carter do emprego desse mtodo como processo no contexto da concepo espacial arquitetnica e artstica. A hiptese formulada inicialmente foi a de que o uso da Arte da Memria pode ser compreendido como um sistema-processo de design para a concepo de espaos no contexto da cultura digital. Para confrontar essa hiptese, o objetivo geral, do presente trabalho foi construir uma compreenso acerca do processo de design de espaos que do suporte ao armazenamento estruturado de informaes e o acesso dinmico num processo que articula a interao entre sujeitos e espao. O objetivo terico especfico consistiu na investigao do uso da Arte da Memria como processo na concepo de espaos e de seus princpios fundamentais desde a Antiguidade Clssica at os dias atuais, para construir um entendimento do desenvolvimento e das conexes estabelecidas por essa Arte ao longo do tempo e seus reflexos atualmente, obtendo subsdios para a definio de critrios para seleo e anlise de exemplos de utilizao da Arte da Memria relacionada a espacialidades arquitetnicas. O objetivo emprico consistiu na seleo e anlise, a partir de critrios estabelecidos dentro de uma estratgia metodolgica, de exemplos da aplicao da Arte da Memria como processo na concepo de espaos. Da Natureza dos Espaos: recortes histrico-temporais A Arte Memria ser o nosso fio de Ariadne, o que vai nos conduzir dentro de uma estrutura que se articula das origens do uso desse modo de construir espaos de conhecimento como espaos mentais na Antiguidade Clssica sua apropriao pelo clero europeu medieval estruturando contedos nas catedrais gticas e mosteiros entre outros, passando sua apropriao para a construo de espaos concretos no Renascimento, e sua incorporao no processo de concepo de espacialidades

  • mescladas, concebidas por arquitetos e artistas da arte mdia contempornea. A presente abordagem prope uma relao espao-temporal de carter glocal, ou seja, com a ausncia de um recorte temporal especfico, mas com vrios recortes formulados a partir do tempo da formulao da mnemnica como arte-processo desde a Antiguidade Clssica at os dias atuais e os modos de usar esse processo, tempos do uso efetivo dessa arte-processo na concepo de espaos em vrios perodos histricos pinados no tempo, analisando uma rede de interconexes e emergncias de um modo de pensar atravs dos sculos, da Antiguidade Clssica aos dias atuais. Optamos por estruturar a presente Dissertao apresentando a Arte da Memria, desde suas origens, atravs dos principais acontecimentos que se construram e que se interconectam ao longo do tempo. Partiremos da Antiguidade Clssica, ou Idade Antiga, focalizando Roma e Grcia, que so a base da Arte da Memria. Com a desintegrao do Imprio Romano do Ocidente, no sculo V (476 d.C.), passamos ao incio da Idade Mdia, e de uma abordagem da Arte da Memria pautada pela influncia da Escolstica. A seguir temos o Renascimento na Europa, entre os sculos XIV e XV que vai resgatar a Arte da Memria a partir das influncias do Hermetismo nesse perodo at chegar ao perodo Barroco, entre os sculos XVI e XVII, com as influncias da lgica combinatria, em direo s abordagens atuais. Ao fazermos a opo por um recorte temporal ampliado, tentamos eliminar o perigo de reduo e mutilao de nosso objeto, e aceitamos o desafio de analisar a relao entre a parte [os exemplos] e o todo [a Arte da Memria] ao longo do tempo. Assim, a partir de uma compreenso da Arte da Memria como processo, procedemos a seleo para anlise de exemplos de seu emprego na concepo de espaos do conhecimento em grandes momentos a Antiguidade Clssica que nos fornece a base para entender as

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    aplicaes e ocorrncias no perodo Medieval; o Renascimento e o Barroco e posteriormente, seu resgate no perodo contemporneo, a partir dos indcios de ocorrncias de aplicaes da Arte da memria evidenciadas em nossas leituras. Esse recorte, de certa maneira fragmentado, visa sustentar a abordagem diante da impossibilidade, frente aos objetivos propostos, de recortar um nico momento, ou um tempo local, um nico tempo como parte para confrontar o todo da hiptese formulada. As Diversas Artes da Memria: parmetros de anlise A partir da hiptese e dos objetivos apresentados, temos um conjunto de parmetros principais que balizaram a seleo e anlise dos exemplos, focalizando o uso da Arte da Memria como processo estruturado de concepo espacial. A pesquisadora da Universidade de Humboldt, Kirsten Wagner faz uma abordagem definindo parmetros para uma comparao entre diferentes projetos de arte digital. Segundo Wagner, As circunstncias atuais pelas quais o histrico Teatro da Memria pode tornar-se to virulento no contexto de novas mdias e da tecnologia computacional, multifacetado.3 [WAGNER, 2006, traduo nossa] Com base nessa considerao, e a partir de uma comparao entre diferentes projetos de arte digital, Wagner elabora 4 [quatro] parmetros onde revela aspectos da tecnologia computacional no que esta parece corresponder ao Teatro da Memria e mnemnica em ltima instncia. Propomos aqui, numa adaptao dos parmetros de Wagner, como princpios bsicos da seleo e anlise dos exemplos, 4 [quatro] parmetros que relacionam aspectos dos processos de concepo espacial mnemnica.

    3 Do original em ingls: The actual circumstances, why the historical memory theatre could become so virulent in context of new media and computer technology, are multi-faceted. [WAGNER, 2006]

  • (1) Aspecto de armazenagem: relacionado ao espao como estrutura de armazenagem pensada para ser universal.

    (2) Aspecto multimdia: esse aspecto se refere estruturao do acesso e armazenagem de imagens, textos e sons a que o espao capaz de dar suporte.

    (3) Aspecto espacial: o foco aqui est no uso do espao como um princpio de organizao que determina o gerenciamento de dados suportado por tecnologia e meios computacionais ou no.

    (4) Aspecto combinacional: esse ltimo aspecto se aproxima do princpio do hipertexto, baseado na capacidade do espao de dar suporte a um fluxo dinmico e no-linear de gerenciamento de contedos hipermdia.

    Cada um desses parmetros contempla ainda caractersticas que, observadas em um sistema, podem ajudar a classific-lo como complexo, funcionam aqui como medidas sistmicas de complexidade. Estrutura da dissertao A dissertao estrutura-se em trs captulos que representam, a partir de seus ttulos, uma abordagem da arquitetura como verbo no infinitivo, evidenciando o fato de nossa abordagem priorizar os processos em detrimento dos produtos. Assim, Memorizar-Discursar, Combinar e Experimentar, so os verbos que representam essa estrutura, onde abordaremos, desenvolveremos e contemplaremos os seguintes contedos: O Captulo 01, Memorizar-Discursar: a Arte da Memria Clssica, onde procuramos mapear os primeiros indcios do surgimento das tcnicas de memorizao na civilizao ocidental, abordando a Antiguidade Clssica, ou Idade Antiga, focalizando Roma e Grcia, que so a base do pensamento da Ars memorativa no ocidente, em direo ao perodo Medieval, focalizando no design de espaos em cada um desses perodos, de modo a dar suporte para um entendimento da Arte da Memria relacionada aos espaos 24

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    e de suas mudanas ao longo do tempo. A abordagem se estrutura em quatro partes: 1. A contextualizao da abordagem a partir do surgimento da Arte da Memria, atravs do que chamamos de efeito Simnides e de como se configurava a sociedade da poca, pautada na oralidade. 2. A abordagem da Arte da Memria de Imagines et loci e da memorizao espacial, j relacionada arquitetura. 3. Arte da Memria e Escolstica, onde so apresentadas as mudanas na Arte da Memria, sob os preceitos do clero medieval. 4. A Arquitetura Gtica e a Arte da Memria a partir das catedrais e dos modelos de Diagramas espaciais como estruturadores de contedos. O Captulo 02, Combinar: Teatros como Sistemas da Memria, que trata do perodo em que os sistemas mnemnicos passaram a ser, mais que pensados, imaginados, construdos, na poca do Renascimento na Europa, entre os sculos XIV e XV que vai resgatar a Arte da Memria a partir das influncias do Hermetismo. A abordagem se estrutura em trs partes: 1. A contextualizao da Arte da Memria no Renascimento sob influncia do Hermetismo e os sistemas dinmicos da memria. 2. Apresentao do exemplo do Teatro da Memria de Giulio Camillo, com a abordagem da vida e obra de Camillo e de seu Teatro enquanto estrutura espacial para memorizao, enquanto sistema da memria. 3. Apresentao do exemplo do Sistema Teatro da Memria de Fludd, com a abordagem da vida e obra de Robert Fludd e de seu Sistema da Memria, imaginado para o Teatro de Shakespeare. O Captulo 03, Experimentar: aplicaes contemporneas, que trata do resgate da Arte da Memria a partir dos anos 1970, com as abordagens contemporneas, muitas delas realizadas com o auxlio de um novo meio o computador e potencializadas pela difuso dos computadores pessoais, numa abordagem da Arte da Memria como processo. O captulo se estrutura em quatro partes: 1. Contextualizao do resgate da Arte da Memria e dos Teatros da Memria na era dos computadores, onde ocorrem os desdobramentos da Combinatria em direo

  • Ciberntica, a partir de discusses que relacionam a abordagem da Arte da Memria com as tecnologias computacionais. 2. Abordagem da Arte da Memria relacionada a espaos, enquanto processo, com a apresentao de um panorama de aplicaes da Arte da Memria contempornea, com exemplos de processos de artistas e arquitetos. 3. Apresentao do exemplo do teatro Memory Theater One, de Robert Edgar, com abordagem da vida e obra de Edgar e do projeto Memory Theater One enquanto estrutura espacial para armazenar contedos. 4. Apresentao do exemplo do teatro Memory Theater VR, de Agnes Hegedus, com abordagem da vida e obra de Hegedus e do projeto Memory Theater VR enquanto estrutura espacial pensada como espao de aprendizagem e armazenamento de contedos. Em todos os captulos que compem a dissertao fomos motivados a buscar entradas que dessem subsdios para um entendimento da Arte da Memria relacionada Arquitetura, num esforo de seu entendimento enquanto processo que, com certeza abre vrias frentes para outras abordagens desse tema. Assim, numa aproximao ao que Jacques Le Goff [LE GOFF, 2003, p.437] define como operaes da retrica, queremos convid-los a percorrer a estrutura desse trabalho com o olhar de uma estrutura retrica, que partiu da inventio [encontrar o que dizer], na seqncia enfrentou a dispositio [colocar em ordem o que se encontrou]; teve seus momentos de elocutio [acrescentar o ornamento das palavras e das figuras], na inteno de chegar construo de uma actio [recitar o discurso como um ator, por gestos e pela dico]. Alm, convidamos a percorrer essa estrutura com a mente aberta, receptiva para armazenar os contedos a partir da quinta operao da retrica, que a memoria [memoriae mandare, recorrer memria]. E que a Arte da Memria possa transform-los assim como nos transformou.

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    A questo da Arte da Memria, e de sua relao com uma abordagem espacial, bem como o resgate dessa Arte como referncia para projetos contemporneos so centrais em nossa pesquisa. Para tanto, faz-se necessrio entender o caminho que a Arte da Memria percorreu, desde o seu surgimento, at os dias atuais. Com isso, tentaremos responder: quais foram suas origens? Como se deu sua relao com os espaos, com a Arquitetura? Numa tentativa de responder a essas questes, nos propomos, neste captulo, a apresentar a Arte da Memria, desde suas origens, como mnemnica ou tcnica de memorizao, e seu entendimento enquanto Arte. Essa construo representa o embasamento, os pilares de uma construo que se inicia na Antiguidade Clssica, com o efeito Simnides e os modelos mentais (virtuais) de memorizao, seguindo pela Idade Mdia, onde esses modelos passam a ser construdos, se materializam, sob os preceitos da Arquitetura Gtica. Com essa construo, pretendemos fornecer as bases para o entendimento da Arte da memria nos captulos posteriores, com os desdobramentos no Renascimento em direo a uma apropriao contempornea da Arte da Memria.

  • 1.1_Ars memoriae: origens

    Os gregos da poca arcaica fizeram da memria deusa, Mnemosyne. a me das nove musas, que ela procriou no decurso de nove noites passadas com Zeus. Lembra aos homens a recordao dos heris e de seus altos feitos, preside a poesia lrica. O poeta , pois, um homem possudo pela memria, o aedo um adivinho do passado, como o adivinho o do futuro. a testemunha inspirada dos tempos antigos, da Idade Herica e, por isso, da idade das origens. [LE GOFF, p.433]

    A Arte da Memria, segundo Frances Yates1 [YATES, 1984], foi inventada pelos gregos e transmitida Roma e de l para a tradio europia. Ao iniciar uma pesquisa com a temtica da Arte da Memria, bastante comum encontrarmos nas publicaes sobre o assunto, vrias denominaes para essa Arte, em funo de tradues, perodos histricos, etc. Arte da Memria, mnemnica, mnemotcnica qual desses termos deve ser adotado como representativo desse contedo to rico? Numa tentativa de responder a essa questo, voltaremos nosso olhar para as origens etimolgicas dos termos mnemnica e mnemotcnica, e para seus significados nos contextos em que foram utilizados. A palavra mnemnica (do grego ), a partir de sua etimologia, vem do radical mnem(o)-2, de origem grega mns,s, que significa: 'memria, lembrana' e mnmn,onos 'que se lembra', vocbulo j originalmente grego como mnemnico (mnmoniks). A palavra mnemotcnica ou mnemotecnia construda a partir da juno do radical mnem(o)- (antepositivo) com o pospositivo -tecnia, tambm de origem grega tkhn,s que significa 'arte manual, indstria, artesanato'.

    1 Frances Yates. uma das principais referncias no estudo da Arte da Memria. Sua Publicao The Art of Memory, consiste num dos mais completos trabalhos publicados sobre a Arte da Memria. Frances Amelia Yates (1899-1981) A Historiadora Frances Yates nasceu em 1899 na Inglaterra. Ela teve uma associao ntima com o Warburg Institute da University of London que comeou logo aps a Segunda Guerra Mundial. Yates era Reader in the History of the Rennaissance at 1967, quando se tornou um Membro Honorrio. Suas publicaes incluem: Giordano Bruno e a Tradio Hermtica e The Art of Memory. Yates morreu em 1981. Disponvel em: . Acesso em 17 nov. 2006.

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    2 mnem(o)-. Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa. Disponvel em: . Acesso em 13 jun. 2007.

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    Niccola Abbagnano3, em seu Dicionrio de Filosofia, no verbete mnemotecnia, mnemotcnica coloca algumas tradues para a palavra de origem grega: em latim ars memoriae, ingls mnemonics, francs mnmonique, alemo Mnemonik, Mnemotechnik e italiano mnemnica. Um outro caminho para entender a origem dos termos a partir da Mitologia, atravs da deusa Mnemosine. Como coloca Jacques Le Goff4 [LE GOFF, 2003, p.433], os gregos personificaram a memria sob a forma de uma deusa Mnemosine a deusa da memria e a me das nove musas5, filhas tambm de Zeus, que lembra aos homens a recordao dos heris e seus feitos e preside a poesia lrica. A origem da palavra mnemosine, deriva do verbo mimnskein, que significa lembrar-se de. Como coloca Rosrio, A titnida Mnemosine, assim, vem a configurar no universo mitolgico grego a prpria personificao da Memria. [ROSRIO, 2006] Mnemosine, na mitologia grega, era a memria personificada, filha de Urano (Cu) e de Geia (Terra), sendo uma das titnidas Tia, Reia, Tmis, Mnemosine, Febe e Ttis. Da unio de Mnemosine com Zeus durante nove noites em Piria, nasceram as nove musas. As musas eram cantoras divinas que, alm de inspirar os poetas e os literatos em geral, tinham a atribuio de regular o pensamento em suas variadas formas: sabedoria, eloqncia, persuaso, histria, matemtica, astronomia. A partir de Mnemosine a memria aparece, segundo Le Goff, como [...] um dom para iniciados, e a anamnesis, a reminiscncia, como uma tcnica asctica e mstica. [LE GOFF, 2003, p.434] A reminiscncia, que tambm aparece no 3 ABBAGNANO, N. Diccionrio de Filosofia. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1986. p.810. 4Jacques le Goff Ainda menino, aluno em Toulon, cidade do sul da Frana onde nasceu em janeiro de 1924, o futuro historiador encontrou o seu destino. Depois de ter lido Ivanho, a mais famosa novela histrica de Walter Scott, nunca mais deixou de interessar-se pela Idade Mdia. A tal ponto que, ao completar 80 anos em 2004, foi universalmente reconhecido, juntamente com Georges Duby e Le Roy Ladurie, como um dos maiores Medievalista da Frana do aps-Segunda Guerra Mundial. Disponvel em: Acesso em 23 nov. 2004. 5 As nove filhas de Mnemosine e Zeus, as nove musas so: Calope, a musa da poesia pica; Clio, a musa da Histria; Euterpe, a musa da Msica; Erato, a musa da Poesia lrica; Terpscore, a musa da Dana; Melpomene, a musa da Tragdia; Talia, a musa da Comdia; Polmnia, a musa dos Hinos sagrados e Urnia. In: KURY, M. G. Dicionrio de Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda., 1990, p. 405.

  • tratado de Aristteles De memoria et reminiscentia, faz parte da distino colocada por ele entre [...] a mnem, mera faculdade de conservar o passado, e a reminiscncia, a mamnesi, faculdade de evocar voluntariamente esse passado. [LE GOFF, 2003, p.435] No que concerne reminiscncia, h a possibilidade da criao de tcnicas de aprendizagem para evocao da memria. Nesse sentido, a palavra mnemotcnica originada a partir da juno dos radicais que formam a palavra: mnem+tcnica significa tcnica de memorizar, ou ainda, segundo Niccola Abbagnano [ABBAGNANO, 1986, p.810], significa a arte de cultivar a memria, ou simplesmente Arte da Memria. 1.2_Ars memoriae: o efeito simnides A Arte da Memria tinha o objetivo de aperfeioar a memorizao de contedos a tal ponto que as pessoas pudessem proferir longos discursos de cor, com preciso infalvel. Segundo Frances Yates,

    O primeiro fato bsico que o estudante da histria da clssica arte da memria deve lembrar que a arte pertence Retrica como uma tcnica atravs da qual o orador pode aperfeioar sua memria, a qual pode possibilitar a ele proferir longos discursos de memria com preciso infalvel.6 [YATES, 1984, p. 2, traduo nossa]

    Em tempos em que havia poucos registros atravs da escrita, a memorizao era fundamental no apenas para proferir discursos, mas tambm para declamar poesias e, sobretudo, para transmisso de conhecimento por muitas geraes, rompendo barreiras de espao e tempo. O primeiro registro do uso da mnemnica no ocidente foi atribudo ao poeta grego Simnides de Cos7 [cerca de 556-468 d.C.]. Segundo Frances Yates, no tratado De

    6 Do original em ingls: The first basic fact which the student of the history of the classical art of memory must remember is that the art belonged to rhetoric as a technique by which the orator could improve his memory, whichwould enable him to deliver long speeches from memory whith unfailing accuracy. [YATES, 1984, p. 2]

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    7 Simnides de Cos [cerca de 556-468 a.C.] pertenceu era pr-socrtica. Foi um dos admirados poetas lricos gregos. [YATES, 1984]

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    Oratore, Ccero8 conta a inveno da mnemnica por Simnides,

    Num banquete oferecido por um nobre da Tesslia chamado Scopas, o poeta Simonides de Ceos declamou um poema lrico em honra de seu anfitrio, mas incluindo uma passagem em louvou a Castor e Plux. Scopa deu a entender ao poeta que ele apenas iria pagar metade da soma acordada para o panegrico e que ele deveria obter o restante dos deuses gmeos aos quais ele tinha devotado metade do poema. Pouco depois, uma mensagem foi trazida a Simonides, de que dois jovens homens que desejavam v-lo, estavam aguardando do lado de fora. Ele levantou-se do banquete e foi para fora, mas no encontrou ningum. Durante sua ausncia, o teto da sala do banquete desabou, esmagando Scopa e todos os convidados, morreram sob as runas; os corpos estavam to mutilados que os parentes que foram chamados para lev-los embora para sepultamento, foram incapazes de identific-los. Mas Simnides recordou os lugares nos quais eles tinham estado sentados na mesa e foi portanto, capaz de indicar aos parentes qual era seu morto. Os visitantes invisveis, Castor e Plux tinham generosamente pagado por sua parte no panegrico, tirando Simonides do banquete instantes antes do acidente. E essa experincia sugeriu ao poeta os princpios da arte da memria da qual ele tido como inventor. Notando que isso foi atravs da sua memria dos lugares nos quais os convidados tinham estado sentados que ele tinha sido capaz de identificar os corpos, ele compreendeu que, organizao metdica essencial para boa memria.9 [YATES, 1984, p. 2, traduo nossa].

    8 Ccero. Marco Tlio Ccero (Marcus Tullius Cicero em latim) nasceu em Arpino, 3 de Janeiro 106 a.C. e morreu em Formies, 7 de Dezembro 43 a.C. Foi filsofo, orador, escritor, advogado e poltico romano. Ccero nasceu numa antiga famlia do Lcio, a quem tinha sido dada a cidadania romana somente em 188 a.C. O pai proporcionou aos dois filhos, Marco, o mais velho, e Quinto, uma educao muito completa, sendo Marco Tlio entregue aos cuidados do clebre senador e jurista romano Mcio Cvola. Viveu num perodo especialmente turbulento da histria de Roma. Ccero , com Demstenes, o melhor expoente da oratria clssica. Pela sua voz, postura, gnio, paixo e capacidade de improvisao est dotado para o exerccio da eloqncia. So famosos os seus discursos contra Verres, em prol da Lei Manilia, contra Catilina, em favor de Milo e de Marcelo e contra Marco Antnio. autor de diversos tratados filosficos sobre o Estado, o bem, o conhecimento, a velhice, o dever, a amizade, etc., que transmitem a tradio do pensamento grego. As suas prprias idias sobre a arte da oratria, assim como uma histria desta, expressam-se em tratados escritos de forma dialogada, como De Oratore, Brutus, Orator, etc. 9 Do original em ingls: At a banquet given by a nobleman of Thessaly named Scopas, the poet Simonides of Ceos chanted a lyric poem in honour of his host but including a passage in praise of Castor and Pollux. Scopas meanly told the poet that he would only pay him half the sum agreed upon for the panegyric and that he must obtain the balance from the twin gods to whom he had devoted half the poem. He rose from the banquet and went out but could find no one. During his abscence the roof of the banqueting hall fell in, crushing Scopas and all guests to death beneath the ruins; the corpses were so mangled that the relatives who came to take them away for burial were unable to identify them. But Simonides remembered the places at which they had been sitting at the table and was therefore able to indicate to the relatives

  • Quando Simnides faz a associao entre a lembrana das pessoas as imagens e a lembrana do local onde estavam sentadas os lugares , confere grande importncia organizao metdica para a mnemnica, fixando, como afirma Le Goff, [...] dois princpios da memria artificial, segundo os antigos: a lembrana das imagens, necessria memria, e o recurso a uma organizao, uma ordem, essencial para uma boa memria. [LE GOFF, 2003, p.436]. Esse tratamento da memria pela entrada da organizao apresenta-se como pea chave no entendimento da Arte da Memria como processo de organizao contedos. Dentro desse contexto de desenvolvimento da Arte da Memria, podemos apontar trs principais tratados de retrica que versam sobre as questes da memria: Instituto Oratrio de Quintiliano [do fim do primeiro sculo de nossa era], De Oratore, de Ccero [55 a.C], e o livro texto annimo Ad Herennium [entre 86 e 82 a.C]. Segundo Le Goff,

    Esses trs textos desenvolvem a mnemotcnica grega, fixando a distino entre lugares e imagens, precisando o carter ativo dessas imagens no processo de rememorao [imagens agentes] e formalizando a diviso entre memria das coisas [memria rerum] e memria das palavras [memria verborum]. [LE GOFF, 2003, p.437]

    Apesar de a Grcia ser considerado o bero da Arte da Memria, os trs textos acima referidos, que desenvolvem a mnemotcnica grega, so romanos. Estes so os tratados mais antigos que sobreviveram e chegaram at nossos dias, escritos originalmente em latim e constituem a teoria clssica da memria artificial. Em um desses tratados, o De Oratore, Ccero descreve a memria como uma das cinco partes da retrica e introduz uma breve descrio da mnemnica relacionando lugares e imagens loci et imagines. Segundo Ccero,

    [...] pessoas desejando treinar essa faculdade, devem selecionar lugares, formar imagens mentais dos fatos que

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    which were their dead. The invisible callers, Castor and Pollux, had handsomely paid for their share in the panegyric by drawing Simonides away from the banquet just before the crash. And this experience suggested to the poet the principles of the art of memory of which he is said to have the inventor. Noting that it was through his memory of the places at which the guests had been sitting that he had been able to identify the bodies, he realised that orderly arrangement is essential for good memory. [YATES, 1984, p. 2].

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    elas desejam lembrar e armazenar essas imagens nos lugares, com o resultado que a organizao dos lugares vai preservar a ordem dos fatos, e as imagens dos fatos vo designar os fatos eles mesmos, e ns devemos empregar os lugares e imagens respectivamente como uma placa de cera de escrever e as letras nela escritas.10 [CICERO, 1988, p. 467, traduo nossa]

    Ao estudar esses textos clssicos e as descries e apropriaes feitas a partir deles, constatamos uma tendncia de utilizao das tcnicas de memorizao fortemente relacionada Arquitetura, ao espao. Referindo-se ao tratado De Oratore, de Ccero, o historiador Paolo Rossi11 coloca a questo de uma ordem relacionada aos espaos, como sendo fundamental para a Arte da Memria, afirmando que,

    A ordem com que os lugares so dispostos dar a capacidade de lembrar os fatos. A arte de memorizar parece, portanto, assim comparvel e anloga ao processo da escrita: os lugares compreendem a mesma funo da tabuleta de encerada, e as imagens tm a mesma funo das letras. O uso das imagens parece baseado na necessidade de um recurso do sentido e na maior persistncia da memria visual. Os lugares tero de ser muitos, evidentes e situados em pequenos intervalos (modicis intervalis); as imagens resultaro tanto mais eficazes quanto mais aptas a atingir as faculdades imaginativas. [ROSSI, 2004, p.45]

    A partir dos tratados clssicos da Arte da Memria, possvel compreender de que forma uma disposio ordenada de espaos e das imagens relacionadas aos lugares constitui elemento chave para o processo de memorizao um processo de memorizao espacial. De acordo com a abordagem e o contexto do uso da mnemotcnica, esta definida como uma tcnica de

    10 Do original em ingls: He inferred that persons desiring to train this faculty must selected localities and form mental images of the facts they wish to remember and store those images in the localities, with the result that the arrangement of the localities will preserve the order of the facts, and the images of the facts will designate the facts themselves, and we shall employ the localities and images respectively as a wax writing tablet and the letters written on it. [CICERO, 1988, p. 467] 11 Paolo Rossi: nascido em Urbino, Itlia, em 1923, lecionou Histria da Filosofia na Universidade de Florena. scio nacional da Academia dos Linces. Em 1985 foi condecorado pela American Histiry of Science Society com a medalha Sarton por sua obra sobre histria da cincia.

  • memorizao espacial, o que atesta a relao ntima entre Arte de Memria e Arquitetura desde suas origens. Nossa pesquisa parte dessa abordagem da Arte da Memria como processo de memorizao espacial, da relao entre Arte da Memria e Arquitetura. 1.3_Imagines et loci: memorizao espacial

    Existia um tipo especial de mnemnica, ou treinamento-memria, o qual era usado pelos oradores Romanos: ele era chamado de memria artificial; ele consistia em lugares e imagens. Voc memorizava uma srie de lugares usualmente em um edifcio. Voc circulava pelos cmodos de sua prpria casa, talvez, ou algum outro edifcio, memorizando aquela porta, aquela esttua, aquela coluna, imprimindo firmemente na sua memria esses lugares, na ordem na qual eles ocorriam no edifcio. Ento voc escolhia imagens para te lembrar dos pontos do seu discurso, e voc colocava essas imagens, na sua imaginao ou sua memria, nos lugares os quais voc tinha memorizado.12 [YATES, 1980, p.4, traduo nossa]

    O uso de artifcios mnemnicos era bastante recorrente na Antiguidade, relacionando, muitas vezes, imagens a lugares arquitetnicos, como na definio mnemnica de Quintiliano, autor de um dos trs tratados clssicos da Arte da Memria. Quintiliano desenvolveu um sistema de informao, onde instrua o usurio a percorrer mentalmente os cmodos de um edifcio, para que fosse capaz de recordar os contedos (textos) que deveriam ter sido previamente associados queles cmodos (lugares) sendo vinculados a imagens neles armazenadas. Assim, tendo-se construdo mentalmente um espao arquitetnico, ou mesmo reconstrudo mentalmente um edifcio existente, dever-se-ia associar a ele as idias que se pretendia recordar. Quando fosse necessrio lembrar os contedos armazenados, vinculados s imagens, bastaria revistar mentalmente esse edifcio. Ao descrever o exemplo da

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    12 Do original em ingls: There was a special type of mnemonic, or memory-training, which was used by the Roman orators: it was called the artificial memory; it consisted in places and images. You memorised a series of places, usually in a building. You walked round the rooms of your own house, perhaps, or dome order building memorise that door, that statue, that column, imprinting firmly on your memory these places, in the order in which they occurred in the building. Than you chose images to remind you of the points of your speech, and you placed these images, in your imagination or your memory, on the places which you had memorised. [YATES, 1980, p.4]

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    ncora, Yates supe que o sistema de Quintiliano funcionava do seguinte modo:

    No discurso o qual voc preparou to cuidadosamente com antecedncia, seu quinto ponto, deixe-nos dizer, ser concernente com assuntos navais. Enquanto voc profere seu discurso, voc est andando na imaginao [mentalmente] circulando pelos cmodos da sua casa, retirando dos lugares memorizados, as imagens, as quais voc memorizou neles. Quando voc vai para o quinto lugar, uma coluna no trio, deixe-nos dizer, voc vai ver nela a ncora que voc colocou l. Ento voc vai lembrar o quinto ponto no seu discurso: Agora ns nos voltaremos para assuntos navais.13 [YATES, 1980, p.4, traduo nossa]

    Dentre os trs tratados clssicos da Arte da Memria, o texto de Quintiliano o que apresenta de forma mais clara, exemplos de aplicao da mnemnica. Quintiliano chega mesmo a descrever a necessidade de se escolher imagens marcantes para facilitar a memorizao como, por exemplo, imagens grotescas ou de beleza extrema, de modo a chamar a ateno, por serem exticas, incomuns, para o contedo a ser memorizado. Quintiliano reafirma a eficcia desse artifcio explicando que, o motivo de no nos esquecermos de fatos da infncia, se explica por estarmos vendo as imagens relacionadas a estes pela primeira vez sendo, aos nossos olhos de criana, exticas e impressionantes pela novidade. Pode-se afirmar que as regras contidas nos trs tratados clssicos da Arte da Memria De Oratore, Instituto Oratorio e Ad Herennium , constituram a base para todos os desenvolvimentos posteriores relativos Arte da Memria ao longo dos sculos. Posteriormente aos trs tratados, outros textos aparecem como referncia em diversos momentos na Histria ocidental, como os textos

    13 Do original em ingls: In the speech which you have prepared so carefully before hand, your fifth point, let us say, will be concerned with naval matters. As you deliver your speech, you are walking in imagination round the rooms of your house, drawing from the memorised places, the images, which you have memorised on them. When you come to the fifth places, a column in the atrium, let us say, you will see on it the anchor which placed there. So you will remember, the fifth point in your speech: Now we turn to naval matters. [YATES, 1980, p.4]

  • de Santo Agostinho14, com forte conotao religiosa, numa apropriao da Arte da Memria no contexto do cristianismo. No sculo XIII, Alberto Magno15 e Toms de Aquino16, escrevem seus estudos a partir das colocaes de Santo Agostinho, acrescentando a referncia explcita ao Tratado de Aristteles De memoria et reminiscentia, um tratado que remonta antiguidade clssica como os De Oratore, Instituto Oratoria e Ad Herennium mas que apresenta uma abordagem distinta da memria artificial, no a partir da mnemotcnica, ou uma tcnica para

    14 Santo Agostinho: Aurlio Agostinho nasceu em Tagasta, cidade da Numdia, de uma famlia burguesa, a 13 de novembro do ano 354. Seu pai, Patrcio, era pago, recebido o batismo pouco antes de morrer; sua me, Mnica, pelo contrrio, era uma crist fervorosa, e exercia sobre o filho uma notvel influncia religiosa. Indo para Cartago, a fim de aperfeioar seus estudos, comeados na ptria, desviou-se moralmente. Caiu em uma profunda sensualidade, que, segundo ele, uma das maiores conseqncias do pecado original; dominou-o longamente, moral e intelectualmente, fazendo com que aderisse ao maniquesmo, que atribua realidade substancial tanto ao bem como ao mal, julgando achar neste dualismo maniqueu a soluo do problema do mal e, por conseqncia, uma justificao da sua vida. Tendo terminado os estudos, abriu uma escola em Cartago, donde partiu para Roma e, em seguida, para Milo. Afastou-se definitivamente do ensino em 386, aos trinta e dois anos, por razes de sade e, mais ainda, por razes de ordem espiritual. Entrementes - depois de maduro exame crtico - abandonara o maniquesmo, abraando a filosofia neoplatnica que lhe ensinou a espiritualidade de Deus e a negatividade do mal. Destarte chegara a uma concepo crist da vida - no comeo do ano 386. Entretanto a converso moral demorou ainda, por razes de luxria. Finalmente, como por uma fulgurao do cu, sobreveio a converso moral e absoluta, no ms de setembro do ano 386. Agostinho renuncia inteiramente ao mundo, carreira, ao matrimnio; retira-se, durante alguns meses, para a solido e o recolhimento, em companhia da me, do filho e de alguns discpulos, perto de Milo. A escreveu seus dilogos filosficos, e, na Pscoa do ano 387, juntamente com o filho Adeodato e o amigo Alpio, recebeu o batismo em Milo das mos de Santo Ambrsio, cuja doutrina e eloqncia muito contriburam para a sua converso. Tinha trinta e trs anos de idade. Depois da converso, Agostinho abandona Milo, e, falecida a me em stia, volta para Tagasta. A vendeu todos os haveres e, distribudo o dinheiro entre os pobres, funda um mosteiro numa das suas propriedades alienadas. Ordenado padre em 391, e consagrado bispo em 395, governou a igreja de Hipona at morte, que se deu durante o assdio da cidade pelos vndalos, a 28 de agosto do ano 430. Tinha setenta e cinco anos de idade. Santo Agostinho. Disponvel em: . Acesso em 13 dez. 2006. 15 Alberto Magno (Lauingen, c. 1193-Colonia, 1280) Filsofo e telogo alemo. Descendendo talvez dos condes de Bollstdt, estudou filosofia, matemtica e medicina em Paris e em Pdua e cursou teologia em Bolonha. Foi professor em Colnia e outros lugares. Reitor da Universidade de Colnia (1249), bispo de Ratisbona (1260), renunciou ao episcopado; em 1274 pregou na Alemanha e em Bomia a cruzada de Gregrio X e assistiu ao Conclio de Lyon. Sem sua contribuio enciclopdica (servindo os filsofos, telogos, matemticos e mdicos muulmanos e judeus), a sntese de seu discpulo Toms de Aquino teria sido impossvel. Distinguiu e exigiu delimitar os mbitos da f e da razo, se dedicou a estudos experimentais e foi um grande investigador (sobretudo em qumica, campo no qual realizou descobertas). Conhecido como Doutor universalis, e doutor da Igreja e foi canonizado em 1931. Disponvel em: Acesso em 23 nov. 2004.

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    16 Toms de Aquino: Nasceu Toms em 1225, no castelo de Roccasecca, na Campnia, da famlia feudal dos condes de Aquino. Era unido pelos laos de sangue famlia imperial e s famlias reais de Frana, Siclia e Arago. Recebeu a primeira educao no grande mosteiro de Montecassino, passando a mocidade em Npoles como aluno daquela universidade. Depois de ter estudado as artes liberais, entrou na ordem dominicana, renunciando a tudo, salvo cincia. Tal acontecimento determinou uma forte reao por parte de sua famlia; entretanto, Toms triunfou da oposio e se dedicou ao estudo assduo da teologia, tendo como mestre Alberto Magno, primeiro na universidade de Paris (1245-1248) e depois em Colnia. Em 1252 Toms voltou para a universidade de Paris, onde ensinou at 1269, quando regressou Itlia, chamado corte papal. Em 1269 foi de novo universidade de Paris, onde lutou contra o averrosmo de Siger de Brabante; em 1272, voltou a Npoles, onde lecionou teologia. Dois anos depois, em 1274, viajando para tomar parte no Conclio de Lio, por ordem de Gregrio X, faleceu no mosteiro de Fossanova, entre Npoles e Roma. Tinha apenas quarenta e nove anos de idade. Toms de Aquino. Disponvel em: . Acesso em 13 nov. 2006.

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    memorizao de contedos com finalidade prtica. Ao tratar da abordagem de Aristteles, Paolo Rossi em seu A Chave Universal, como, mesmo no sendo pensado como um tratado sobre a mnemotcnica, o De memoria et reminiscentia influenciou muitos tericos no perodo medieval, sendo referncia para novos desenvolvimentos naquele perodo como o eram os trs tratados clssicos. Segundo Rossi,

    Os tericos da tcnica de memorizar fazem referncia s seguintes doutrinas aristotlicas: a) A tese da presena necessria da imagem ou fantasma (fntasma [fntasma]) visando ao funcionamento da memria (mnme [mnme]). O recurso necessrio imagem (que uma espcie de sensao sem matria ou de sensao enfraquecida) faz com que entre a memria e a imaginao (fantasa astetik [fantasa astetik]), de um lado, e a memria e a sensao, do outro lado, ocorram relaes muito estreitas. b) A tese de que a lembrana ou memria reflexa ou efetivao da memria apagada da conscincia (anmnesis [anmnesis]) seja facilitada pela ordem e pela regularidade, como ocorre por exemplo no caso da matemtica, ao passo que, o que confuso e desordenado dificilmente pode ser lembrado. c) A formulao de uma lei da associao com base na qual as imagens e as idias se associam em virtude da semelhana, da oposio ou da contigidade. [ROSSI, 2004, p. 42-43]

    A experincia da memria em Aristteles17, mais que a relao entre imagens e lugares com objetivos prticos porque implica em uma transformao do sujeito pela experincia. Em Aristteles est presente a relao entre 17 Aristteles (384 a.C. - 322 a.C) Este grande filsofo grego, filho de Nicmaco, mdico de Amintas, rei da Macednia, nasceu em Estagira, colnia grega da Trcia, no litoral setentrional do mar Egeu, em 384 a.C. Aos dezoito anos, em 367, foi para Atenas e ingressou na academia platnica, onde ficou por vinte anos, at morte do Mestre. Nesse perodo estudou tambm os filsofos pr-platnicos, que lhe foram teis na construo do seu grande sistema. Em 343 foi convidado pelo Rei Filipe para a corte de Macednia, como preceptor do Prncipe Alexandre, ento jovem de treze anos. A ficou trs anos, at famosa expedio asitica, conseguindo um xito na sua misso educativo-poltica, que Plato no conseguiu, por certo, em Siracusa. De volta a Atenas, em 335, treze anos depois da morte de Plato, Aristteles fundava, perto do templo de Apolo Lcio, a sua escola. Da o nome de Liceu dado sua escola, tambm chamada peripattica devido ao costume de dar lies, em amena palestra, passeando nos umbrosos caminhos do ginsio de Apolo. Esta escola seria a grande rival e a verdadeira herdeira da velha e gloriosa academia platnica. Morto Alexandre em 323, desfez-se politicamente o seu grande imprio e despertaram-se em Atenas os desejos de independncia, estourando uma reao nacional, chefiada por Demstenes. Aristteles, malvisto pelos atenienses, foi acusado de atesmo. Preveniu ele a condenao, retirando-se voluntariamente para Eubia, Aristteles faleceu, aps enfermidade, no ano seguinte, no vero de 322. Tinha pouco mais de 60 anos de idade. Aristteles. Disponvel em: . Acesso em 13 dez. 2006.

  • memria e imaginao, entre memria e sensao. Existe, contudo, semelhantemente ao que se verifica nos tratados clssicos aqui citados, a referncia relao entre ordem e facilidade de recordao. Alm, est tambm presente a relao entre imagens e idias em virtude da semelhana, da oposio ou da contigidade. Essas relaes entre ordem e facilidade de recordao, entre imagens e idias , que aparecem no texto de Aristteles, no entanto, no so apresentadas com propsito de orientar a memorizao de contedos, com objetivos prticos. A ordem colocada por Aristteles, diz respeito ordem das coisas, ou ordem em que a informao armazenada ou acessada, atravs do movimento, que se faz pela memria a partir de um incio at chegar ao assunto que se queira lembrar. Como afirma Aristteles, O lembrar , com efeito o ter em si uma capacidade que move. E isso de modo a ser movido a partir de si mesmo e dos movimentos que se tm [...] Mas preciso tomar um incio [i.e. ponto de partida]. [ARISTTELES, 2002, p. 35-36]. Completando esse pensamento, Aristteles afirma que,

    Por isso, algumas vezes parece que [os homens] rememorem a partir de lugares. E a causa o fato de irem rapidamente de uma coisa para outra: por exemplo, de leite para branco, de branco para ar, disto para fluido, a partir do qual [algum] lembrou de outono, se estava procurando por esta estao. [ARISTTELES, 2002, p. 36]

    No processo de memorizao, seguindo o pensamento de Aristteles, imagens esto relacionadas a idias. Assim, se temos a inteno de lembrar de outono (uma idia), podemos memorizar ou relacionar uma seqncia de elementos que facilitem recordao, como no exemplo citado, a partir da figura do leite (uma imagem), movendo-se em direo idia outono, ou seja: de leite para branco, de branco para ar, disto para fluido, at chegar a outono, que o que se quer lembrar.

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    1.4_Arte da Memria e Escolstica: Arquitetura como medium

    A voz fica-me na garganta e os soluos interrompem-me ao ditar estas palavras. Foi conquistada a cidade que conquistou o universo. Assim So Jernimo [c. 347-420) anuncia a invaso e a pilhagem de Roma, em 410, pelos visigodos [...]. [ABRO, 2004, p. 103]

    A queda do Imprio Romano, em um perodo marcado pelas invases brbaras, marca o incio da Idade Mdia. O perodo medieval traz mudanas na incorporao e utilizao da Arte da Memria, no contexto de uma Europa dominada por uma Igreja que se empenha em difundir a f catlica, em difundir a f dos catlicos apostlicos romanos. nesse perodo que se desenvolve a Escolstica18 cujo desenvolvimento, segundo Bernadette Siqueira Abro, [...] vale-se, alm da Igreja e a sua imposio da unificao da f crist, do emprego do latim, tornado universal, embora restrito a pequenos crculos de letrados. [ABRO, 2004, p. 105] O empenho da Igreja Catlica medieval em difundir os preceitos de sua f vai alm de ideais religiosos. esse empenho que garante a sobrevivncia da cultura e da lngua do Imprio Romano que deixava de existir como imprio naquele momento, atravs dos sculos, no interior de mosteiros, protegidos das pilhagens dos brbaros. Emergem nesse momento, esforos no sentido de preservar a essncia do sistema educacional da antiguidade clssica. Durante essa era de colapsos, entre 410 e 430, Martianus Capella escreveu um livro chamado De nuptiis Filologiae et Mercurii, um trabalho que, segundo Yates [...] preservou durante a Idade Mdia a essncia do sistema educacional da antiguidade, baseado nas sete artes liberais (gramtica, retrica,

    18 Escolstica: pensamento cristo da Idade Mdia, baseado na tentativa de conciliao entre um ideal de racionalidade, corporificado esp. na tradio grega do platonismo e aristotelismo, e a experincia de contato direto com a verdade revelada, tal como a concebe a f crist; escolasticismo. Etimologia: prov. fem.substv. de escolstico (sc. filosofia); o voc. registra-se no lat. scholastca, mas no sentido de 'declamao'; JM supe um gr. skholastik, de skolastiks,,n 'que tem descansos, cios, desocupado; que consagra os momentos livres aos estudos ou escola, estudioso, relativo ao estudo ou escola, prprio da escola'. ESCOLSTICA. Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa. Disponvel em: . Acesso em 13 dez. 2006.

  • dialtica, aritmtica, geometria, msica, astronomia).19 [YATES, 1984, p. 50] Desde a antiguidade, a Retrica (do grego rhetorik), uma das sete artes liberais, est intimamente associada ao desenvolvimento da Arte da Memria. interessante observar o modo como Aristteles inicia o seu Retrica, escrito em 350 a.C.. Nas palavras de Aristteles,

    Retrica o complemento da Dialtica. [...] Todos os homens fazem uso adequadamente, mais ou menos, de ambas; at certo ponto todos os homens tentam discutir declaraes e as manter, se defender e atacar outros. Pessoas ordinrias ou fazem isto ao acaso ou por prtica e hbito adquirido. Ambos modos sendo possveis, o assunto pode ser claramente dirigido de forma sistemtica, por isso possvel inquirir a razo pela qual alguns oradores tm sucesso por prtica e outros espontaneamente; e todos concordar imediatamente que tal investigao a funo de uma arte.20 [ARISTOTLE, Book I, Part 1, 2007, traduo nossa]

    Essa compreenso da Retrica como arte permanece na Idade Mdia. Uma arte do discurso, da argumentao, essencial em um contexto em que a Igreja se empenhava em difundir sua f. Nesse contexto, a lngua e a forma de expresso apresentam grande importncia relacionada ao conhecimento e, utilizar estruturas de memorizao como forma de estruturar o conhecimento, era prtica bastante recorrente. Durante a Idade Mdia, a memria desempenhava um papel fundamental no mundo social, cultural e escolstico. Segundo Le Goff, A idade Mdia venerava os velhos, sobretudo porque via neles homens-memria, prestigiosos e teis. [LE GOFF, 2003, p.444] na Idade Mdia tambm que podemos observar um renascimento das idias da retrica enquanto um sistema.

    19 Do original em ingls: [...] preserved for the Middle Ages the outline of the ancient educacional system based on the seven liberal arts (grammar, rhetoric, dialectic, arithmetic, geometry, music, astronomy). [YATES, 1984, p. 50]

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    20 Do original em ingls: Rhetoric is the counterpart of Dialectic. [] Accordingly all men make use, more or less, of both; for to a certain extent all men attempt to discuss statements and to maintain them, to defend themselves and to attack others. Ordinary people do this either at random or through practice and from acquired habit. Both ways being possible, the subject can plainly be handled systematically, for it is possible to inquire the reason why some speakers succeed through practice and others spontaneously; and every one will at once agree that such an inquiry is the function of an art. [ARISTOTLE, Book I, Part 1, 2007]

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    A memria a quinta operao da retrica: depois da inventio [encontrar o que dizer], a dispositio [colocar em ordem o que se encontrou], a elocutio [acrescentar o ornamento das palavras e das figuras], a actio [recitar o discurso como um ator, por gestos e pela dico] e, enfim, a memoria [memoriae mandare, recorrer memria]. [LE GOFF, 2003, p.437]

    Martinianus foi estudante de retrica em Cartago e como todos os estudantes de retrica do seu tempo, conhecia as tcnicas da memria artificial em um tempo em que a civilizao clssica europia ainda no tinha sido totalmente obliterada pelas invases brbaras. Posteriormente, na Europa dominada pelos brbaros, como afirma Yates, [...] as vozes dos oradores foram silenciadas. No havia mais segurana para os encontros pacficos para discursar. O aprendizado se recolheu aos monastrios, e a Arte da Memria para retrica se tornou desnecessria, apesar de talvez ainda existir utilidade para a memorizao Quintilianista de uma pgina preparada (elaborada).21 [YATES, 1984, p. 53, traduo nossa] As invases brbaras iniciaram uma mudana social que foi refletida na Arte da Memria. O medo e a insegurana fizeram com que a Arte fosse deslocada da figura do orador que proferia seus discursos em pblico, para espaos religiosos, como os monastrios e posteriormente as catedrais. Paralelo a essas mudanas, os estudiosos da Arte da Memria continuaram pesquisando os manuscritos e as poucas fontes que existiam sobre o assunto, j que o conhecimento da Arte da Memria era pautado na tradio oral. Entre eles est Alcuno, que compilou a sua retrica a partir de duas fontes: De inventione de Ccero e a retrica de Julius Victor, mesclando algumas poucas referncias de Casiodoruss22 e Isidore23, que no mencionavam a memria artificial em seus estudos.

    21 Do original em ingls: [...] the voices of the orators were silenced. People cannot meet together peacefully to speeches when there is no security. Learning retreated into the monasteries and the art of memory for rhetorical purposes became unnecessary, though Quintilianist memorising of a prepared written page might still have been useful. [YATES, 1984, p. 53] 22 Casidoruss foi um dos fundadores do monasticismo e segundo Yates no mencionava a memria artificial na seo sobre a retrica em sua enciclopdia sobre as artes liberais.

  • Nesse perodo, tais trabalhos ficaram mais populares e a procura por manuscritos como o Ad Herennium uma das fontes mais utilizadas atingiu o seu pice entre os sculos XII e XIV, perodo em que apareceu um grande nmero de manuscritos, at mesmo pelo fato de ser o incio de uma nova fase de propagao da mdia escrita. At essa poca no se sabia de nenhum manuscrito completo do Ad Herenium, que contivesse a parte da seo sobre a memria, o que confirma o fato de ele ser um tratado annimo. Porm, durante o perodo medieval, sua autoria foi, muitas vezes atribuda a Ccero, ou Tlio, referindo-se ao seu sobrenome: Ccero Marco Tlio. Sobre a profuso dos tratados nesse perodo, Paul Zumthor coloca que,

    [...] Mesmo que os autores desses tratados e o pblico ao qual se dirigem pertenam ao meio restrito dos iniciados da escritura, a concepo da memria que transmitem implica a idia de uma presena real dos corpos: um lao, em particular, entre a memria e a vista, fundado sobre a funo da imagem e suas relaes com a palavra. [ZUMTHOR, 2001, p. 141]

    Essa relao colocada por Zumthor, entre a memria e a vista, pode ser comparvel memria verborum, memria das palavras pela associao entre imagens e palavras, num paralelo entre imagens e lugares. Zumthor fala ainda do conceito de rememorao que, nesse contexto, se apresenta como um passo alm da simples recordao, na medida em que a pessoa ao se lembrar, lana mo de diversos sentidos, partindo do conhecimento, passando pela inteligncia e pelo talento de elaborar essa relao entre as palavras e as imagens de maneira to breve. Na Idade Mdia o tratado De inventione, de Ccero era descrito pelos estudiosos da Arte da Memria como apresentando a Primeira Retrica, ou a Retrica Antiga e era imediatamente seguido pelo Ad Herennium que seria a Segunda Retrica ou a Retrica Nova (ento atribudo a Ccero). Como mostra Yates,

    Existem muitas provas de que essa classificao era universalmente aceita. Dante, por exemplo, certamente a toma como certa, quando fornece prima rethorica como a

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    23 Assim como Casidoruss, Isidore de Sevilha no mencionava a memria artificial nos seus escritos.

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    referncia para uma citao do De inventione.24 [YATES, 1984, p. 55, traduo nossa]

    Essa relao entre os dois tratados ainda permaneceu quando foi publicada a primeira verso impressa dos mesmos em 1470, em Veneza, sob o ttulo Rethorica Nova et Vetus. Entender a associao entre os dois livros nesse perodo muito importante para compreender o que vem a ser a chamada memria artificial na Idade Mdia. No tratado De inventione a ateno maior era dada tica e virtude como as invenes ou coisas com as quais o orador deveria lidar para estruturar seu discurso. A segunda oratria (Ad Herennium) dava as regras de como essas coisas inventadas seriam armazenadas, regras de memorizao de contedos a partir da relao entre imagens e lugares. No medieval, a seo que tratava da memria no Ad Herennium foi muitas vezes lida sem a relao com as outras duas fontes da memria clssica Instituto Oratrio de Quintiliano e o De Oratore de Ccero o que resultou no que Yates classifica como [...] a transformao medieval de uma arte clssica.25 [YATES, 1984, p. 55, traduo nossa]. em conseqncia dessa postura que as regras mnemnicas eram compreendidas de forma dissociada da prtica dinmica da oratria, como descrito no Instituto Oratrio de Quintiliano. A associao era restrita ao trabalho do Ccero na sua primeira retrica, tratando da tica, e de uma referncia quase que exclusiva ao Ad Herennium a Retrica Nova ou Segunda Retrica , atribudo por muitos tambm a Ccero. Assim, a Arte da Memria ensinada e utilizada pelo clero como artifcio didtico se restringia em grande parte relao entre imagens e lugares (loci et imagenes). Por

    24 Do original em ingls: Many proofs could be given as to how this classification was universally accepted. Dante, for example, is obviously taken it for granted when he gives prima rethorica, as the reference for a quotation from De inventione. [YATES, 1984, p. 55] 25 Do original em ingls: [...] the medieval transformation of a classical art. [YATES, 1984, p. 55]

  • esse motivo, para compreender a transformao dessa Arte da Memria no medieval, Yates recomenda a leitura da seo da memria do Ad Herennium, que est diretamente relacionada descrio de Quintiliano do processo mnemotcnico: [...] o caminhar no entorno do edifcio, escolhendo os lugares, as imagens recordadas dos lugares para lembrana de pontos do discurso.26 [YATES, 1984, p.77, traduo nossa] Nas catedrais gticas, a relao entre imagens e lugares se estruturava de acordo com as orientaes do Ad Herennium, que era utilizado em prol do pensamento didtico medieval. As coisas que se pretendia lembrar percorrendo um edifcio, no se relacionavam mais a extensos discursos que eram proferidos em pblico, e sim a um doutrinamento dos fiis nos preceitos da religio. Esses contedos esculpidos em lugares nessas catedrais, Segundo Yates, Certamente eram coisas relacionadas salvao ou condenao, os artigos da f, as estradas para o cu atravs das virtudes e para o inferno atravs dos vcios.27 [YATES, 1984, p.55, traduo nossa] assim que, no contexto da Escolstica, a memria passa a ser considerada como uma das trs partes da Prudncia, que uma das quatro virtudes (prudncia, justia, coragem e temperana). Alm da memria, as outras duas partes da Prudncia eram a intelligentia e providentia, como mostra Yates [YATES, 1984, p.54] a partir de Alcuino. Nesse contexto, destacam-se as idias de Boncompagno de Signa, que fazia parte da escola de Bolonha.

    001 | 1_ esquerda:. Justia e Coragem. direita: Temperana e Prudncia 26Do original em ingls: [...] the progress round the building choosing the places, the images remembered of the places for reminding of the points of the speech. [YATES, 1984, p.77]

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    27 Do original em ingls: Surely they were the things belonging to salvation or domination, the articles of the faith, the roads to heaven through virtues and to hell through vices. [YATES, 1984, p.55]

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    Na escola de Bolonha, no incio da Idade Mdia, a clssica tradio da Retrica tomou a forma de Ars dictaminis28. A escola tinha ainda uma tendncia a colocar a retrica, como comenta Yates, numa esfera de quase santidade para competir com a teologia. A seo sobre a memria do Ad Herennium era bem conhecida na tradio do Ars dictaminis. Boncompagno de Signa, um dos expoentes dessa escola, escreveu um dos primeiros tratados sobre a Arte da Memria do perodo medieval Rhetorica Novisssima , onde faz uma definio de memria natural e artificial um pouco diferente da definio do Ad Herennium. Para Bomcompagno, a memria natural, [...] surge exclusivamente como um dom da natureza, sem auxlio de nenhum artifcio.29 [BOMCOMPAGNO apud YATES, p. 58, traduo nossa] e a memria artificial [] chamada artificial, derivando de arte, pois obtida atravs de sutilezas da mente.30 [BOMCOMPAGNO apud YATES, p. 58, traduo nossa] No que se refere memria natural e artificial em Boncompagno, a diferena de sua abordagem que ele inclui na seo sobre a memria de seu Rhetorica Novissima, a memria do Paraso e do Inferno, o que pode ter sido, segundo Yates, [...] a base sobre a qual Albertus e Toms formularam suas cuidadosas revises das regras de memorizao.31 [YATES, 1984, p. 58] Entender essa colocao de Boncompagno sobre as memrias natural e artificial importante para o entendimento da abordagem de Alberto Magno e Toms de Aquino e de suas regras de memorizao no contexto da igreja, com suas vises de Paraso e Inferno. Alberto

    28 Ars dictaminis: uma arte de escrever cartas e de estilo para ser usada em procedimentos administrativos. Um dos mais importantes centros dessa tradio era Bolonha e, no final do sculo XII e incio do XIII, a escola bolonhesa de dictamen era reconhecida atravs da Europa. Um famoso membro dessa escola foi Boncompagno de Signa, autor de dois trabalhos sobre a retrica, o segundo dos quais o Rhetorica Novssima, foi escrito em Bolonha em 1235. [YATES, 1984, p. 57]. 29 Do original em ingls: [...] comes solely from de gift of nature, without aid of any artifice. [BOMCOMPAGNO apud YATES, p. 58] 30 Do original em ingls: [] is called artificial from art because it is found artificially through subtlety of mind. [BOMCOMPAGNO apud YATES, 1984, p. 58] 31 Do original em ingls: [...] the background against which Albertus and Toms formulated their carefull revisions of the Memory rules. [YATES, 1984, p. 58]

  • Magno estudou na escola Dominicana em Bolonha, antes de tornar-se um membro da ordem Dominicana em 1223 e Toms de Aquino foi treinado por Alberto. Para Alberto e Toms, paraso e inferno so considerados lugares de memria. Como coloca Yates,

    Alm disso, pode-se observar que em tratados de memria tardios, que certamente se originam na nfase escolstica sobre a memria artificial, Paraso e Inferno so tratados como lugares de memria, em alguns casos com diagramas destes lugares, para serem usados na memria artificial.32 [YATES, 1984, p. 60, traduo nossa]

    Alm dessa influncia de Boncompagno para recordar o Paraso e o Inferno, Alberto Magno e Toms de Aquino utilizavam o Ad Herennium, como fonte de referncia para a Arte da Memria. Os tratados deles no constituem partes de um tratado de retrica como as fontes antigas, pois a memria artificial para os dois no tratava mais de retrica, mas de tica memria como parte da Prudncia Sobre essa questo, Yates acredita que:

    A memria artificial se deslocou da retrica para a tica. considerando memria como parte da Prudncia que Albertus e Toms a tratam; e isso , certamente, uma indicao de que a memria artificial medieval no exatamente o que chamamos mnemotcnica, o que, mesmo sendo til eventualmente, deveramos evitar de classificar como uma parte da uma das virtudes cardinais.33 [YATES, 1984, p. 57, traduo nossa]

    Toms e Alberto liam as regras, no as associando com a prtica da oratria, mas com foco nos ensinamentos sobre tica da Primeira Retrica. Para que seja possvel entender a postura desses dois escolsticos, interessante relacion-los ao pensamento de Boncompagno, do incio da Idade Mdia, que propunha tomar virtudes e vcios como notas memoriais atravs das quais seria possvel recordar os caminhos para o cu e para o inferno. Como sugere Yates, as imagenes agentes, [...] que haviam

    32 Do original em ingls: Moreover we shall find that in later memory treatises which are certainly in the tradition stemming from the scholastic emphasis on artificial memory, Paradise and Hell are treated as memory places, in some cases with diagrams of those places to be used in artificial memory [YATES, 1984, p. 60]

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    33 Do original em ingls: The artificial memory has moved over from rhetoric to ethics. It is under memory as a part of Prudence that Albertus and Toms treat of it; and this is in itself, surely, is an indication that medieval artificial memory is not quite what we should call mnemotechnics, which, however useful at times, we should hesitate to class as a part of one of the cardinal virtues. [YATES, 1984, p. 57]

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    sido moralizadas em belas ou hediondas figuras humanas como corporeal similitudes de intenes espirituais para alcanar o Paraso ou evitar o Inferno, e memorizadas alinhadas ordenadamente em algum edifcio sagrado.34 [YATES, 1984, p. 77, traduo nossa] As regras para lugares, formuladas por Toms Aquino e Alberto Magno transpareciam, no uma compreenso das mesmas como no Ad Herennium, mas uma deturpao dessas regras para preservar a igreja, utilizando a piedade medieval com um senso de devoo, na forma do que definem como corporeal similitudes. Alberto e Toms defendiam o exerccio da memria artificial como parte da Prudncia. Eles se empenharam numa reviso geral, reexaminando as regras antigas da memria artificial nos aspectos que diziam respeito s virtudes e aos vcios, e