Rapazote Joao Territorios Contemporaneos Do Documentario o Cinema

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  • Territrios Contemporneos doDocumentrio: O Cinema Documentalem Portugal de 1996 Actualidade

    Joo Antnio de Oliveira Gonalves RapazoteUniversidade Nova de Lisboa

    ndice1 A ANTROPOLOGIA E O DOCUMENTRIO . . . . . . . 131.1 O Lugar em Antropologia . . . . . . . . . . . . . . . . . 131.1.1 O Lugar do Outro e Outros Lugares . . . . . . . . . . . . 151.1.2 Dos Cativos do Lugar aos Multi-situados . . . . . . . . 281.2 Da Escrita ao Cinema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 371.2.1 Do Consumo Produo de Imagens A Imagem-Objecto

    e a Imagem-Texto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 381.2.2 O Cinema na Etnografia e o Documentrio . . . . . . . . 51

    2 MOMENTOS DE DERIVAO . . . . . . . . . . . . . . . 662.1 O Tempo e os Modos de Representao . . . . . . . . . . 662.1.1 A Propsito de Flaherty e Vertov A Imagem-Documento

    e a Imagem-Instrumento . . . . . . . . . . . . . . . . . . 682.1.2 Mecanismos da Realidade e da Fico . . . . . . . . . . 832.2 Terramotos e Naufrgios: Actos de Uma Histria . . . . . 872.2.1 O Registo das Primeiras Dcadas . . . . . . . . . . . . . 882.2.2 Picos e Abismos de um Documentrio a Metro . . . . . . 912.2.3 A Dcada do Subgnero ou um Subgnero de Dcada . . 98

    Dissertao de Mestrado de Antropologia Antropologia do Espao. Universi-dade Nova de Lisboa. Faculdade de Cincias Sociais e Humanas. Departamento deAntropologia.

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    2.2.4 O Novo Cinema Etnogrfico . . . . . . . . . . . . . . 1032.2.5 E Depois de Abril . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106

    3 CONSTRUO DE UM TERRENO: DE 1996 ACTUA-LIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111

    3.1 O Lugar e o Apelo do Real: Uma Proposta de Classificao 1173.1.1 Lugares Prprios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1183.1.2 Territrios Culturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1203.1.3 Entre Territrios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1223.1.4 Etnogrfico-Folclricos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1243.1.5 Situaes Artsticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1263.1.6 Casos Particulares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1293.1.7 Histrico-Biogrficos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1303.1.8 Cientfico-Naturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1333.2 Aproximao s Prticas Actuais . . . . . . . . . . . . . . 1363.2.1 Cronologia e Temticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1373.2.2 Fontes de Financiamento . . . . . . . . . . . . . . . . . 1433.2.3 A Durao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 160

    4 LUGAR A UM NOVO MOMENTO . . . . . . . . . . . . . 1664.1 A Perspectiva Tcnica: Actuais Protagonistas . . . . . . . 1664.1.1 Territrios da Produo . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1674.1.2 Territrios da Montagem . . . . . . . . . . . . . . . . . 1714.1.3 Territrios da Fotografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1754.1.4 Territrios do Som . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1784.2 A Perspectiva Conceptual: Os Realizadores . . . . . . . . 1834.2.1 Casos Isolados Territrios de Ecloso . . . . . . . . . . 1844.2.2 Aqueles que Persistem Territrios de Afirmao . . . . 2014.2.3 Uma Seleco Territrios de Consolidao . . . . . . . 223

    5 CONCLUSO: Lugar(es) do Documentrio em Portugal . . 2396 BIBLIOGRAFIA/WEBSITES . . . . . . . . . . . . . . . . . 2557 ANEXO QUADROS DE APOIO AO TEXTO . . . . . . . 269

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo a todas as pessoas e entidades que, de alguma forma, con-triburam para a recolha da informao indispensvel sobre os filmes,nomeadamente a AporDoc (muito especialmente a Nina Ramos) e oICAM (nas pessoas de Roslia Coelho do Centro de Apoio Produo ea Patrcia Severino, Maria Jos Nunes e Slvia Morgadinho do Centro deDocumentao). Mas tambm a Maria Jorge Branquinho (Cmara Mu-nicipal de Seia/Festival CineEco), Mit (Biblioteca da CinematecaPortuguesa-Museu do Cinema), a Sara Martins (Clube Portugus deArtes e Ideias/Festival de Vdeo de Lisboa), a Isabel de Carvalho e JooAlves (Rdio Televiso Portuguesa) e a Lurdes Lopes e Alexandra Mar-tins (Videoteca de Lisboa/Mostra de Vdeo Portugus).

    Um agradecimento especial devido s seguintes pessoas ou enti-dades produtoras que se prestaram a responder atempadamente a ques-tes especficas sobre os respectivos filmes, assim ajudando a colmataralgumas lacunas de informao existentes nas fontes previamente con-sultadas ou permitindo compreender um ou outro contexto de trabalho:Ana Torres (UAL), Andr Dias (LabCC/UNL), Catarina Mouro (La-ranja Azul), Elsa Baro (SubFilmes), Fernando Gustavo de Carvalho,Ivan Dias, Joo Nisa, Laura Domingues (Museu Nacional de Etnolo-gia), Leonor Areal (Videamus), Lus Alves de Matos (Amatar Filmes),Manuela Penafria (UBI), Marlia Maria Mira, Pedro Duarte, Pedro Efe(Acetato/PE Produes), Rui Blanes (ISCTE), Susana Duro, VictorCandeias e ainda Akademya Lusoh-Galaktyka, ContinentalFilmes, Lx-Filmes e Valentim de Carvalho Televiso.

    Por fim, o meu apreo aos professores das disciplinas do Mestrado,que souberam entender a necessidade de adaptao das temticas dasmesmas ao objectivo especfico desta dissertao: Maria Cardeira daSilva (Leituras e Pesquisa em Antropologia Contempornea e Antropo-logia do Turismo), Maria Luclia Marcos (Alteridades) e Paulo FilipeMonteiro (Modos da Fico). Apreo que se estende ao Departamentode Antropologia da Universidade Nova de Lisboa, em particular a Filo-mena Silvano e, muito especificamente, a Catarina Alves Costa.

    Dirijo uma ltima palavra de gratido, distinta e pessoal, FernandaMadeira (temvel e atenta primeira leitora), ao Arne Kaiser, Lusa

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    Yokochi e, sempre presente, ao Jrgen Bock. A memria, essa vai parameu pai, que sempre me incentivou a continuar os estudos mas no tevetempo para ler esta dissertao.

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    RESUMO

    Nesta dissertao estabelecem-se as relaes entre a Antropologia e oCinema atravs do questionamento do conceito de Lugar quando, comoespao de produo e produto daquele que o habita, este se revela outrolugar ou mesmo o lugar do outro, e quando, como cenrio real dodocumentrio, tratado e representado at fico.

    Aborda-se a problemtica da validade da produo de conhecimentoantropolgico com base na imagem, contrapondo o seu paradigma rea-lista ao paradigma reflexivo e analisando, por essa via, as transfor-maes verificadas naquilo que se entende por Filme Etnogrfico e assuas interaces com o documentrio.

    Reflecte-se sobre a origem do movimento internacional do docu-mentrio e as sucessivas dicotomias que se foram instalando no seu per-curso, dos modos de representao expositivos aos reflexivos, incluindoo inevitvel confronto com a fico.

    Percorre-se a histria breve e turbulenta do documentrio em Por-tugal, das suas lacunas, dos seus altos e baixos, das suas contingnciase ironias decorrentes de um posicionamento perifrico em relao aomovimento internacional do gnero.

    Constri-se uma Base de Dados dos Filmes Realizados entre 1996e 2002, suporte desta dissertao, com o levantamento de 423 filmesfinalizados nesse perodo, bem como das suas principais caractersticastcnicas.

    Expe-se um possvel retrato das prticas do documentrio regis-tadas nesse perodo, com especial incidncia nas caractersticas temti-cas, de financiamento e da durao dos filmes.

    Escrutina-se um novo momento no documentrio feito em Portugal,partindo dos seus protagonistas (produtores, editores, operadores de c-mara, tcnicos de som e realizadores), dos relacionamentos que esta-belecem entre si, bem como das particularidades e contextos das obrasque o constituem, assim delineando os territrios contemporneos quedo origem e sedimentam a concretizao de um Documentrio Cria-tivo.

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    INTRODUO: Cinema-Espao O Cinema do Lugare do Outro que o Habita

    You wont know what you will find until you get there

    Vindo de uma rea do conhecimento, a Geografia, onde o espao (asuperfcie terrestre) est presente na etimologia da cincia e na prpriadefinio da disciplina, cuja especificidade sempre se fundamentou numolhar atento sobre o territrio, foi para mim claro desde o incio que ochamamento para o Mestrado de Antropologia do Espao provinha daafinidade vislumbrada nessa palavra abstracta: Espao. A frequente ad-jectivao deste vocbulo criou a expectativa de encontrar outras abor-dagens, o que rapidamente foi concretizado num outro termo, o Lugar,cuja importncia em Antropologia se revelou encantatria.

    Em Geografia imperativo o conhecimento da inter-relao entre oespao e a sociedade que o habita/constri, assim como notria a cons-cincia da dificuldade em delimitar e estabelecer fronteiras fsicas ouconceptuais entre, por exemplo, espao natural/espao geogrfico, es-pao rural/espao urbano, para ficar por duas dicotomias clssicas. EmAntropologia, v-se isso no 1o captulo, o Lugar, definido como iden-titrio, relacional e histrico, que se mostra relevante na sua construocomo cincia, como cincia do Outro de todos os Outros, como refereAug, numa ironia talvez impossvel descrio sistemtica de Fou-cault (1984) que o habita, sendo ainda esse mesmo Lugar que se tornadifcil de circunscrever e problemtico de conceptualizar.

    Na histria da Antropologia, coube crtica ps-moderna a des-construo da concepo do Lugar e da disciplina, ao demonstrar aexistncia de uma metodologia assente na dupla iluso da neutralidadedo observador e do fenmeno social observvel, ou ainda, numa di-menso histrica mais profunda, ao desmontar a preocupao da cul-tura moderna ocidental com o sentido do tempo reflectida no fascniopelo primitivo e na busca das origens, patentes nos conhecimentos de-senvolvidos por Darwin (a evoluo biolgica), Nietzsche (a genealo-gia) ou Freud (o inconsciente) e organizada em volta da arqueologia dahistria natural e humana.

    O Lugar, contudo, no perdeu a sua relevncia. Instalada a descon-fiana sobre a questo das origens, as narrativas fundadas em sequn-

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    cias de desenvolvimento no tempo so substitudas por sequncias derelaes espaciais. ento que o Espao se revela na sua extenso, seconsubstancia na forma de relaes de colocao (Foucault, 1984) e sedesdobra numa constelao de conhecimentos, assim rememorando ainfinidade da(s) realidade(s) e a impossibilidade de a(s) explicar na suatotalidade modstia introduzida nas Cincias Sociais por Max Weber ou, por outro lado, assim apontando para a utopia da unificao daleis fundamentais da natureza ou de qualquer outro projecto de conhe-cimento universal.

    Essas realidades, esses lugares, inapreciveis na sua totalidade, des-cobrem-se assim como que ausentes, como imagens reflectidas numespelho (pensamento, linguagem. . . ), sendo este um lugar sem lugar vez utpico e heterotpico onde elas se vem sem estarem l, masponto virtual de passagem obrigatria para serem percebidas. Na hiper-realidade assim criada, multiplicada nos diferentes media ou artefactoshumanos (Baudrillard, 1991), os lugares e as realidades no tm umestatuto ontolgico independente do discurso ou da imagem a repre-sentada.

    Ainda no 1o captulo deste estudo observar-se- como esta abor-dagem aos modos de representao acaba por permitir a ascenso deum novo ramo da Antropologia onde a Imagem aqui, em particular, aimagem mecnica de ressonncia benjaminiana um suporte pro-dutor de conhecimento antropolgico to vlido como o texto escrito.Mais, na Antropologia Visual, assim se designa esse ramo, a Imagem,que reflexo, tambm metfora e estabelece a ponte entre o visvele o invisvel, mesmo quando, numa perspectiva consumidora, se tratade artefactos, pois estes so desmaterializados e tornados conceitos in-seridos em sistemas de conhecimento e aco capazes de possibilitar oacesso a uma dimenso, de outra forma inalcanvel, da cultura que osproduziu.

    precisamente na aproximao a esse poder de evocao do mundointerior das culturas, antes apresentadas apenas como objecto de estudo,que se vislumbra o lugar do Cinema (etnogrfico) na abertura de novoscaminhos Antropologia. Assim como nessa possibilidade de encararas descries e representaes etnogrficas como actos imaginativosque procuram aproximar-se da vida de estranhos, reflectida na capaci-dade do cinema permitir partilhar experincias, mesmo que fragmen-

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    trias e transitrias, de comunicar e ultrapassar fronteiras intersubjec-tivas e culturais quanto mais no seja por recurso quele mecanismocerebral que faculta a reproduo virtual de um gesto (uma emoo) nosimples acto de o ver ser executado (sentido) por outro , que se divisao lugar da Antropologia nos percursos do Cinema (documentrio).

    A Antropologia e o Cinema, dois objectos que pelas matrizes disci-plinares convencionais se encontrariam em reas de estudo diferentes,cruzam-se aqui na Antropologia Visual, assim se quebrando alguns efei-tos perversos provocados pela excessiva especializao acadmica. Masenquanto tal, ambos participaram no projecto moderno de dar expressoa uma nova e alargada concepo da humanidade, fazendo-o, inclu-sive, de forma simetricamente elegante. O paralelismo, como realaGrimshaw (1997), manifesto no facto das datas simblicas do nasci-mento do cinema, com os Lumire em 1895, e da Antropologia mo-derna, com a expedio de Haddon em 1898, distarem apenas de trsanos. A este par inaugural juntam-se ainda, nos anos 1920, os projectosde Malinowsky e Flaherty e, j nos anos 1930, os de Radcliffe-Browne Grierson, instituindo muito modernamente, uns a etnografia cient-fica, os outros o filme documentrio clssico.

    Quadros, Panormicas, Actualidades, Travelogues, em todos esteslegtimos antecessores dos filmes etnogrficos e dos documentrios sereconhece o apelo do real e o seu tratamento (Winston, 1995) atra-vs da imagem (em movimento), mesmo se apenas alguns o sublimamcriativamente. Todos podem reivindicar o apego ao Lugar e a im-portncia das filmagens in loco s um pormenor , assim se distan-ciando do Cinema de fico.

    Imagem e Lugar, imagens (em movimento) dos lugares. desteslugares comuns que se fazem as malhas que tecem as reflexes cen-trais desta dissertao, o cimento que liga a Antropologia ao Cinema, aAntropologia do Espao Antropologia Visual, ao Filme Etnogrfico eao Documentrio. ento no 2o captulo que se procura deslindar a es-pecificidade e a histria deste gnero cinematogrfico. Seja atravs dosmomentos fundadores e de derivao mais significativos, cujas obrasanalisadas pertencentes a Flaherty e a Vertov no se encontram pre-sas ao seu contexto de origem, antes transportam consigo a inscriode um passado capaz de adquirir significao no aqui e agora da re-cepo (Benjamin, 1992) obras cristalinas que reflectem as diferentes

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    facetas temticas e formais que o gnero explorou posteriormente. Seja,igualmente, atravs de uma anlise diacrnica das suas prticas numcontexto local em Portugal , cujo afastamento dos centros onde odocumentrio mais se desenvolveu est patente nas fragilidades e con-tingncias encontradas.

    Se, por analogia linguagem cinematogrfica, os captulos iniciais,de fundamentao mais terica, correspondem a panormicas ouplanos gerais, o 3o captulo, aquele de aproximao ao objecto con-creto desta dissertao o documentrio contemporneo feito em Por-tugal equivale aos primeiros planos americanose travellings. Nelese afirmam os fundamentos da constituio de uma base de dados de do-cumentrios realizados entre 1996 e 2002, que inclui 423 filmes suma-riamente descritos numa ficha tcnica normalizada. Nele tambm seperscruta o possvel sistema de sustentao da produo documentalatravs das suas estruturas mais significativas, do organismo institu-cional e estatal de apoio ao Cinema aos eventos efmeros de divulgaodeste gnero to afastado do circuito comercial de distribuio, cons-tatando muito pragmaticamente o papel fundamental de ambos no re-gisto e arquivo (conhecimento) dos documentrios que se vo fazendopor esse pas fora, qual rede ou teia que vai captando e fixando aquelespresos nas suas malhas e assim evitando a sua queda no olvido.

    ainda neste 3o captulo que se avana com uma sistematizao dasrealidades e perspectivas que mais atraem os documentaristas em Portu-gal, uma anlise dos documentrios essencialmente temtica e derivadade uma proposta de classificao alicerada nos lugares e naquelesque os habitam, por eles tornados visveis. Assim como aqui quese trata a informao acumulada, estabelecendo um provvel panoramado documentrio produzido em Portugal (quando, o qu, como), tendoprincipalmente em considerao o cruzamento alternado de algumasdas variveis de caracterizao dos filmes, como o ano de concluso,a classificao, a fonte de financiamento e a durao dos filmes.

    Este , portanto, um captulo intrinsecamente metodolgico, ondese definem as metodologias, as abordagens e os conceitos aplicados aoestudo do documentrio realizado em Portugal aqui concretizado e, nofundo, onde se define e constri um terreno que serve de fonte fidedignaao trabalho subsequente.

    Recorra-se novamente metfora dos enquadramentos cinemato-

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    grficos para concluir, no 4o captulo, com a entrada nos zooms e gran-des planos, nas imagens-atraco (Deleuze, 1983) apropriadas aoretrato e ao desvendar dos rostos que do lugar a um novo momento nodocumentrio feito em Portugal.

    Em termos de percepo imediata, o documentrio muitas vezesvisto como um cinema menor. Envolvido que est numa realidade enos lugares em que esta se anuncia, comum o olhar sobre um docu-mentrio ter como ponto de partida mais o seu contedo, o tema queaborda, do que as suas qualidades estticas e de aplicao rigorosa ouinovadora da gramtica cinematogrfica. Isso repercute-se, ao contrriodo que aplicado na Fico por tericos e crticos, mesmo pelos es-pectadores mais cinfilos, na pouca ateno e relevncia dada aos rea-lizadores ou aos profissionais de uma ou outra especialidade tcnica.Todavia, a forma, o estilo e a linguagem cinematogrfica utilizados nafeitura de um documentrio so, talvez mais subtilmente, fundamentaispara as qualidades do mesmo, e o modo como isso se concretiza de-pende forosamente das pessoas nele envolvidas. Alis, tendo em con-siderao o carcter mais artesanal do gnero documental, no sentidode quase sempre dispensar as caractersticas industriais que a Ficoexige, nomeadamente o recurso a grandes equipas e meios tcnicos, hmesmo uma maior vinculao e certeza do controlo do produto finalpelos seus autores, a qual acentua a singularidade das temticas e dosestilos adoptados.

    Num gesto que tambm pretende contribuir para a apreenso destarealidade, o 4o captulo revela os profissionais das diferentes especia-lidades tcnicas envolvidos nas obras analisadas, constatando-se o pesoou significado de cada indivduo nos documentrios efectuados entre1996 e 2002. Desse tratamento inerentemente quantitativo resulta nos o apuramento dos protagonistas mais relevantes desse novo momentodo documentrio, como tambm, associando uma anlise das redes derelacionamento estabelecidas com os respectivos realizadores, a iden-tificao do que assim se designa por territrios da Produo, daMontagem, da Fotografia e do Som. Territrios estes que so espaosde colocao onde, para cada caracterstica tcnica, se detectam vizi-nhanas e proximidades ou, pelo contrrio, distanciamentos e onde tam-bm se vislumbram e sugerem atraces e poderes.

    Ainda que de outra forma, tambm no captulo 4o se ensaia a apli-

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  • Territrios Contemporneos do Documentrio 11

    cao destas colocaes espaciais s obras e s circunstncias em queestas foram criadas, agora adaptando e ampliando a metodologia de se-leco e focando a ateno nos realizadores. A justaposio aos au-tores de uma grelha analtica suportada em dados objectivos tais comoos seus filmes serem de curta ou longa-metragem; terem uma vocaotemtica mais didctica (Histrico-Biogrfica, Cientfico-Natural) ou,pelo contrrio, mais aberta ao lugar (aqui) e ao tempo presente (agora);serem auto-financiados ou antes obterem financiamentos mais institu-cionais (ICAM, escolas, outras instituies pblicas ou privadas); ocontexto de produo ser mais autnomo e amador ou, por outro lado,estar mais inserido no meio cinematogrfico e, finalmente, terem, ouno, algum reconhecimento dos palmars existentes acaba, pois, porpermitir a construo de uma sucesso de Territrios Contemporneosdo Documentrio feito em Portugal.

    Estes territrios, por sua vez, multiplicam-se em nichos com carac-tersticas prprias, plataformas mais ou menos fluidas mas polarizadasnum extremo pelo produto audiovisual e no outro pelo trabalho cria-tivo ou de marcada autoria. So os territrios mais incipientes ou deEcloso, primeiras e nicas obras documentais concretizadas no pe-rodo em estudo, numa quase que justificao a posteriori da opo detrabalhar com o mximo de referncias de filmes possvel. So ainda osterritrios de Afirmao, daqueles realizadores que persistem na rea-lizao de documentrios, seja num percurso a haver ou seja noutroj afirmado em domnios menos relevantes para um certo documen-trio de criao e, por inerncia, mais cinematogrfico. precisamenteesse Documentrio Criativo que surge referenciado no ltimo dosterritrios aqui identificados, os Territrios de Consolidao, ondeculminam os realizadores e as obras mais consistentes deste perodoem que deveras se registou um recrudescimento do gnero documen-tal, agora os referidos territrios assim o indiciam num contextoestruturado passvel de facultar uma continuidade desejada.

    Para terminar, refira-se que frase em epgrafe perdeu-se-lhe a refe-rncia exacta, lida que foi algures entre as obras Anglo-saxnicas con-sultadas para cimentar teoricamente esta dissertao. A pertinncia dasua incluso neste ltimo reparo, contudo, serve para frisar todo umdesgnio de descoberta transformado em mtodo, que em conluio comaquela outra vertente predatria, de rapina, de toda a actividade do con-

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    hecimento que se baseia na(s) realidade(s), do que acontece e pro-duzido com e por outros, se vem aplicados em comum por etngrafose por documentaristas e aos quais se recorreu sem peias na concretiza-o deste estudo. Realce-se ainda, tendo em vista uma leitura fluentedeste texto, que se optou pela traduo livre para portugus de todas ascitaes tiradas de livros em outras lnguas, pelo que a responsabilidadeda mesma cabe em exclusivo ao autor desta dissertao de mestrado.

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    1 A ANTROPOLOGIA E O DOCUMENTRIO

    AFUNDAMENTAO TERICA da temtica abordada neste estudoinicia-se com o estabelecimento das relaes entre a Antropolo-gia e o Cinema, uma afinidade que, dadas as pretenses cientficas daprimeira, no poderia deixar de se estabelecer seno por via do cinemadocumental, cuja linguagem tantas vezes tambm se pretende de al-gum modo cientfica. O percurso entre as duas disciplinas faz-se porsucessivas deslocaes de matrias mais especficas de um ou outrodos domnios para reas partilhadas por ambos, formando territriosde charneira que acabam por esbater os limites precisos de cada um doscampos disciplinares.

    Considerando temticas como a cultura, a fico ou a imaginao,que as atravessam e so primeira vista to etreas, pode parecerparadoxal ser precisamente um territrio (um lugar) e a sua unidademnima (o Lugar) a estar no cerne quer da Antropologia, quer do ci-nema documental. Lugar que surge, assim, como suporte e elemento deligao deste trabalho e do qual partem todas as suas derivaes. Lugarque a Antropologia, esquecendo, memoriza (arquiva) ou o Lugar que ocinema, percorrendo, revela (documenta). Lugar a que o antroplogoou o documentarista no pertencem, ao qual se deslocam e de onderegressam a casa (academia/sala de montagem), a construindo umasua representao.

    1.1 O Lugar em Antropologia

    Este estudo inicia-se com a complexidade estabelecida na teoria antro-polgica contempornea pelo cruzamento do Lugar com o Outro.Lugar que territrio para a sociedade e corpo para o indivduo.Assinale-se desde j a possibilidade de (trans)figurao da abordagemao Lugar como se fosse corpo, pois ambos so espaos habitadosonde as relaes de identidade e de alteridade no cessam de actuar(Aug, 1999: 141), recorrendo a esse como se (Marcos, 2001) queno esconde nem cria distncia, antes medeia toda a possibilidade de

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    percepo do mundo, de apreenso do real e que estrutura toda a re-lao com as coisas.

    No clebre conto A Carta Roubada1, aquele que considerado umdos percursores do romance policial, Edgar Allan Poe, cria um enredode uma surpreendente e aparente simplicidade. Passado no lugar de to-das as conspiraes e jogos de poder a Corte , trs personagenscirculam em volta de uma carta que, ao expor-se, se torna transparente.Esta carta possui uma revelao supostamente comprometedora parauma das personagens, pelo que capaz de perturbar as relaes exis-tentes ao fornecer um forte ascendente no exerccio do poder a quemdela se apodere. As personagens desta narrativa posicionam-se no topoda hierarquia da Corte e definem-se pelo seu relacionamento com a ditacarta: o rei, que a desconhece e no a v; a rainha, que a deixa emcima de uma secretria, entre outra correspondncia e vista de todos,julgando assim t-la escondido; e o ministro, que se apercebe do em-barao da rainha, da sua atitude dissimulada e furta a carta. O ministro,bem como o detective que ajuda o comissrio da polcia a desven-dar o caso, so os elos de ligao segunda srie (virtual) do enredo,repetio do mesmo, agora com o comissrio no lugar do rei, oministro no da rainha e o detective no do ministro, terminando o contoabruptamente com os lugares preenchidos pelas novas personagens.

    Jacques Lacan utilizou este conto para exemplificar o conceito deestrutura e de Estruturalismo, a primazia do significante em relao aosignificado, no qual h uma afirmao dos stios como primeiros emrelao s coisas e aos seres reais que os vm ocupar, [mas tambm emrelao aos] papis e aos acontecimentos que surgem quando eles soocupados (Deleuze, 1995: 262). Este conto exemplo disso porque,primeiro, Poe nunca nos revela o contedo da carta nem nenhuma per-sonagem toma a iniciativa de a ler, depois, porque o enredo, a rede ouestrutura com os seus lugares, envelopes a serem preenchidos, existeindependentemente das personagens que os ocupam, podendo repetir-seem srie e divergentemente.

    1 Verso consultada em Histrias Extraordinrias Vol. II, Publicaes Europa-Amrica, 1998, pp. 123-141.

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    1.1.1 O Lugar do Outro e Outros Lugares

    A histria com que se iniciou este estudo vem a propsito de umtexto de Arjun Appadurai dos anos 1980, onde a referncia ao contode Poe, agora justaposto interpretao lacaniana, serve para denunciara constante presena invisvel do conceito de Lugar em Antropolo-gia e a falta sintomtica do seu questionamento. Nele, Appadurai frisaque a importncia [do lugar] dada como garantida e as suas impli-caes no foram sistematicamente exploradas (1986a: 356), pois oLugar, qual objecto perfeitamente paradoxal e deslocado em relao asi mesmo, sempre circulou pelas diferentes correntes tericas da disci-plina sem o qual ela parece no se definir. A reflexo crtica do Lugarsurge, ento, no mago de um movimento terico que teve o seu apogeunos anos 1980, movimento que repensou a Antropologia ao ponto dealguns terem detectado a sua desagregao em campos e sub-campossem contacto uns com os outros ou com o todo, em contraponto a umperodo anterior onde pelo menos, se no existia um paradigma, eramreconhecveis algumas categorias de filiao terica, campos ou esco-las e um discurso partilhado. A outros, no entanto, essa confuso decategorias e expresso de caos pareceu-lhes serem somente os clssi-cos sintomas do limiar de uma provvel e talvez melhor nova ordem(Ortner, 1984: 127).

    Subjacente a essa atitude resignada em relao presena e im-portncia do Lugar na conscincia antropolgica estava uma generaliza-o da concepo de cultura como dimenso local do comportamentohumano, assim como a construo de um conhecimento antropolgicoligado ideia de culturas e sociedades de pequena dimenso, estveis,coerentes, fechadas, a-histricas e localizadas. certo que a velocidadee a dimenso global em que hoje se processam as mudanas e os movi-mentos de coisas, pessoas e informao, bem como os problemas queestes fluxos levantam, pem em causa este tipo de conhecimento. Noentanto, o questionamento do Lugar feito pelos tericos desse movi-mento tambm pretende revelar a forma como essa assero est im-buda de posicionamento poltico e ideolgico, e assim demonstrar aconivncia da Antropologia com a histria do Ocidente.

    De facto, a origem da Antropologia como ramo da histria natural

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    que estudava a humanidade primitiva no seu estado natural reflectiu-se numa naturalizao do conceito de cultura que permitiu a segmen-tao conceptual do mundo em vrias culturas, cujas diferenas eramadquiridas em diferentes locais geogrficos. Ora, se a construo daAntropologia passa pelo Lugar onde se adquire outra experincia cul-tural, onde se Outro, o encontro entre o estudioso do outro com ooutro comea por se dar precisamente a, nesse lugar geogrfica, so-cial e moralmente distante, evidentemente relacionado com a histria daexpanso europeia e com o colonialismo. Essa colagem da antropologiaaos interesses de domnio da metrpole, associada ao apelo inicial pelopequeno e pelo elementar, criaram as condies para o fortalecimentoda disciplina atravs da constituio de temticas de prestgio (a honranas culturas mediterrneas, a magia nos amerndios, as castas na ndia)que, ligadas ao Lugar, rapidamente se transformaram no que Appadu-rai (1986a) denomina de conceitos gatekeeping, ou seja, na reduometonmica da complexidade de toda uma civilizao a uma ideia ouimagem que, por sua vez, se torna a quinta-essncia desse lugar.

    O outro lado desta moeda, a sua cara, o nativo ou indgena2,aquele que mais do que ser e pertencer a um lugar, est encarceradoou confinado a esse lugar, quer no sentido fsico de imobilidade, querno sentido ecolgico, uma vez que a sua ligao fsica ao lugar umafuno da adaptao do indgena ao meio envolvente. Mais, esse encar-ceramento tem uma dimenso psicolgica, pois [os indgenas] estoconfinados pelo que sabem, sentem e acreditam (Appadurai, 1986b:38), ou seja, o pensamento que limita os nativos ele prprio ligadoao lugar e por ele circunscrito. Claro que os indgenas, essas pes-soas confinadas pelos lugares e aos lugares a que pertencem, sem con-tacto e contaminao pelo mundo mais vasto, nunca existiram, sendoantes uma construo da imaginao dos antroplogos, que tornaramem prises os lugares por eles habitados ao associarem-lhes ideias eimagens que ofuscaram outros aspectos e diferenas, ao simplificarema sua complexidade e ao abolirem quaisquer tipo de fluxos com a en-volvente exterior.

    A Antropologia formatou-se, assim, como a cincia de um Outro

    2 A desconstruo do conceito de native feito nos textos em ingls aqui estudadosfez com que se optasse pela sua traduo para o termo indgena, em portugus, pois ele que parece encerrar a mesma carga de sentido do termo original.

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    mais Outro que outros, aquele que est longe e de cuja cultura se rea-lam os rituais indgenas e os fenmenos de inverso de valores, ou seja,o extico, ignorando-se as realidades translocais, como os contactos dacultura estudada com o exterior ou familiares ao antroplogo, como o caso dos efeitos do colonialismo. Na realidade, se estudar uma cul-tura era evidenciar as suas diferenas decorria da que a sociedade deorigem ou os fenmenos com ela relacionados passavam despercebidosao antroplogo, eram demasiado transparentes para se revelarem comoobjecto de estudo, nisso se equiparando mencionada carta roubada.Para o olhar antropolgico o mesmo era invisvel ou, na sua termi-nologia, sem cultura, pelo que no se pode deixar de frisar a ocor-rncia talvez absurda (seno surrealista!) de homens sem cultura an-darem a estudar homens sem histria. Mas o que esta invisibilidadedo mesmo denotava era a percepo duma sociedade homognea, to-talizante e de certa forma acabada, que no concebia a Alteridade noseu interior, pelo que as diferenas interiores e o carcter problemticoduma cultura s foram evidenciadas com o aprofundamento da noode cultura e a introduo do par norma/desvio, trazendo superfcie ofacto de todas as culturas reconhecerem vrias formas de desvio e lheatriburem diferentes estatutos.

    Ora, se a visibilidade interior da transgresso ou mesmo da inver-so tornaram relativa a noo de cultura ou sociedade como totalidadeconsumada, um dos primeiros efeitos da reflexo sobre o papel do Lu-gar na Antropologia foi o combate antologia de imagens constru-das que associam um grupo e um lugar a um conceito que depois setorna a sua quinta-essncia, em especial em contraste com outros gruposou lugares. Evidentemente, isto implicou uma mudana de paradigmada prpria disciplina. Consciente dessa implicao, Appadurai tratoude clarificar a sua posio, assumindo que no estava em causa des-tituir a Antropologia do Lugar, antes havendo a necessidade da teoriaantropolgica ser transformada no local e com o Lugar, partindo as-sim da possibilidade duma concepo renovada deste. Posto de outromodo, o que a crtica de Appadurai ao papel (de carta) do Lugar naAntropologia revela, em termos de conceito e teoria, tambm alargadoao mtodo e prtica antropolgica pela denncia da concepo detrabalho-de-campo desenvolvida por Bronislaw Malinowsky e pelo

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    Funcionalismo nos princpios do sculo XX, cuja suposta eficcia ins-trumental tornou-se preponderante nesta cincia durante vrias dcadas.

    O contributo de Akhil Gupta e James Ferguson dupla de Antrop-logos revelada j na dcada de 90 vem precisamente do seu posi-cionamento mais pragmtico em relao ao Lugar em Antropologia.Para estes autores, a naturalizao da cultura inerente abordagem Fun-cionalista, em que os elementos constitutivos pretendem satisfazer asnecessidades essenciais do Homem, reforou a j referida segmentaoconceptual do mundo em vrias culturas, cujas diferenas eram adquiri-das nos diferentes locais geogrficos. No entanto, lembram, se esta foiuma corrente dominante na Antropologia, na sua histria houve outrasque desde cedo encararam a possibilidade de um Lugar e de um Outromais prximos ou diferentes dos do mtodo3. Entre essas correntesmais heterodoxas de observar o Lugar, Gupta e Ferguson (1997a) desta-cam os casos do Difusionismo (contra o qual se ergueu justamente otrabalho-de-campo malinowskiano) e dos Estudos de Aculturao pelaateno que davam ao contacto entre culturas, ao movimento e s mu-danas aquilo que o mtodo recusava ver. Ambos punham em causaos limites claros do espao do Outro, do estar em casa e do deslocar-se ao campo: no caso do Difusionismo pelo facto de mostrar inte-resse por contextos polticos e econmicos mais vastos e por sequn-cias histricas dinmicas; no caso dos Estudos de Aculturao por sepreocuparem com as culturas crioulas.

    , portanto, ao tentarem alicerar uma alternativa encruzilhadaque a crtica ao paradigma referido criou na Antropologia que o con-tributo destes dois autores vem complementar, pelo lado mais prtico,a apreciao de Appadurai. Na sua abordagem recordam ainda que ovocbulo campo associado expresso trabalho-de-campo mantma ligao s suas origens na histria natural atravs do seu duplo sen-tido conotativo, seja como lugar agrrio (um lugar cultivado mas nomuito longe da natureza, todavia separado do urbano e do industrial),seja como ramo terico da Antropologia (onde se estabelecem relaesentre certos temas e certas reas culturais). As consequncias desta li-gao atvica acabaram por persistir nas prticas da disciplina, quer pelamanuteno do estabelecimento da separao entre casa e campo e,

    3 Sintomaticamente, no jargo antropolgico o mtodo de trabalho de campo etno-grfico de Malinowsky referido apenas como o mtodo.

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    por conseguinte, da demarcao de tarefas entre uma (a escrita analtica,reflexiva, terica e intertextual feita na academia) e outro (a escrita crua,fragmentria, repleta de reaces subjectivas, feita isoladamente, pertoda experincia, em condies difceis); quer pela insistncia em va-lorizar certos conhecimentos em detrimento de outros, nomeadamentedaqueles derivados da experincia no terreno, da relao face-a-face doobservador-participante com os seus informadores, em oposio ao co-nhecimento de fenmenos menos localizados, como os translocaisou familiares ao antroplogo; quer at, mesmo que paralelamente, pelaobstinao na construo de um sujeito/antroplogo normativo, mas-culino e Ocidental.

    Apresentado mesmo que brevemente o contexto mais recenteda problematizao do conceito de Lugar em Antropologia e da conse-quente complexificao da noo de Cultura, ento possvel a apro-ximao ao que Michel Foucault designou, ainda nos anos 1960, porHeterotopia: o stio da heterogeneidade no espao do de fora quese ope (muito embora reflectindo) s concepes do espao do dedentro descrito pelos fenomenologistas, tambm ele heterogneo masdemasiado prenhe de valores eternos do imaginrio.

    No texto em que ficaram gravadas as palavras ditas numa confern-cia realizada em1967, Foucault (1984) comea por salientar a diferenade paradigma entre o sculo XIX (o sculo do tempo, da histria, daextenso, do progresso linear) e o sculo XX (interpolado pelo espao,o lugar, a posio, o simultneo, a rede e a justaposio), a qual muitodeve ao Estruturalismo e s ligaes que este estabelece entre elementosdispersos no tempo, num espao que faz dos indivduos encruzilhadas.Ao contrrio do tempo, aparentemente j dessacralizado, a presenaoculta do sagrado ainda permite ao espao exterior onde se vive, e naprtica4, ser carregado de qualidades distintivas dadas como adquiridase afirmar-se por binmio ou oposio espao pblico/espao privado,espao de lazer/espao de trabalho , constituindo-se assim em stiospassveis de serem definidos pelas sries ou grelhas de relaes queos delineiam.

    O realce desse texto, todavia, vai para essa nova configurao doespao que joga a sua definio com a Utopia um espao irreal na

    4 Citando Deleuze, segundo Foucault, tudo prtica (1998: 103).

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    medida em que uma localizao sem lugar real , e com a qual temem comum a propriedade de estar em relao com os outros espaosde uma forma que suspende, neutraliza ou inverte as relaes que os de-finem (1984: 6). Nesta nova configurao espacial todos os outrosespaos existentes na cultura em causa so, sua vez, representados,contestados ou invertidos, mas, ao contrrio das utopias, so espaoslocalizveis fora de todos os lugares mas localizveis. As heterotopiasso, portanto, uma espcie de utopias realizadas efectivamente (1984:6) e Foucaul torna-as visveis num contexto, os anos 1960, em que oquadro unitrio de referncia da histria universal posto em causa poruma exploso do sistema consequente tomada da palavra por cul-turas diversas com a pesquisa antropolgica, a descolonizao e porsubsistemas internos prpria cultura ocidental (Vatimo, 1992: 72).Neste sentido, mesmo possvel dizer que as heterotopias surgem comose tratassem duma precipitao quase qumica da Utopia, quando estaperde a capacidade de estar suspensa no sentido de progresso que pres-supe e se deposita no solo numa multiplicao de lugares diferentes.

    Trata-se, pois, de um neologismo para o qual Foucault tenta criaruma espcie de cincia, uma descrio sistemtica que estabelece oque considera serem alguns princpios que as heterotopias assumem. Oprimeiro destes princpios a sua universalidade, pois todas as culturascriam este tipo de espaos absolutamente outros. o caso das hetero-topias de crise nas sociedades ditas primitivas, locais reservados aosritos de passagem, aos indivduos em transio de classe etria ou deestatuto social, e que nos nossos dias tm tendncia a ser substitudaspelas heterotopias de desvio, ou seja, os stios onde se colocam osindivduos cujo comportamento desviante em relao mdia ou norma exigida (Foucault, 1984: 7).

    As heterotopias tm tambm uma funo em relao ao espao en-volvente e possuem um funcionamento especfico e determinado. Afuno pode ir da criao de um local de iluso, que se contrape aoilusrio espao real, at criao de um local de compensao, umoutro espao real to perfeito e meticuloso como o envolvente im-perfeito e desordenado e aqui poder-se-iam recordar todas as tentati-vas de concretizao de utopias de raiz poltica e a influncia das suas

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    propostas nas solues da arquitectura e do urbanismo modernos 5, ouainda a tentativa modelar de ocupao dos territrios colonizados. Jo funcionamento das heterotopias ao longo do tempo pode exigir umacapacidade de adaptao s circunstncias histricas, e o exemplo dapriso a que adiante se recorre disso sintomtico. Antes, contudo,prossiga-se com a caracterstica heterotpica que a capacidade decerto tipo de espaos justaporem num mesmo local real vrios lugaresincompatveis, nisso quase se parecendo com a configurao espacialborgesiana do Aleph6, onde cada coisa infinitas coisas porque vista detodos os pontos do universo, onde o rosto do outro provoca vertigense faz chorar7. Mas quando as heterotopias instalam rupturas temporaisque se revelam na sua plenitude, num percurso que vai da acumulaodo tempo (a eternidade) ao efmero (o presente absoluto).

    Portanto, encontra-se sempre uma Heterotopia no local de passa-gem, de desvio, que tem uma funo ilusria, de compensao, um fun-cionamento prprio, adaptvel, uma capacidade de justaposio de es-paos, de tempo, e que por tudo isso possui um qualquer sistema deabertura que a torna penetrvel, bem como um qualquer sistema deencerramento que a isola, que faz com que ou se v para l compulsiva-mente, ou s se entre com permisso ou submisso a qualquer gnerode rito. Esta configurao espacial complexa, mesmo inconsistentequando se pretende aplic-la, como ela exige que se faa, tratando-sede um espao real e existente no exterior. Mesmo sem cair na tentaode vulgarizar estes espaos diferentes, o que no limite faria do espaodas nossas sociedades um conjunto de heterotopias, reconhece-se quea sua instituio ou construo emana do poder vigente, o Estado e asociedade dominante para Foucault esta distino uma limitao ou de grupos de indivduos representantes de subculturas mais oumenos marginais. Mas no deixaro de ser minoritrias no sen-tido deleuziano do termo, pois se as heterotopias parecem exigir aqueletipo de ligao estranha estabelecida aquando da formao de uma

    5 Como o caso dos socialistas utpicos do sculo XIX, com o Paralelograma deOwen ou o Falanstrio de Fourier.

    6 Lugar onde esto, sem se confundirem, todos os lugares do mundo, vistos detodos os ngulos. (Jorge Luis Borges, I Obras Completas, 1923-1949, Editorial Teo-rema, 1998, pp. 553-651).

    7 Esta era, para Borges, a reaco ao Outro. No entanto, Charles Darwin afirmavaque o choro um enigma.

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    atmosfera que aproxima os corpos, que envolve, enleia, obriga a en-trar num outro mundo (Gil, 2002: 26), ento tambm implicam umdevir, dado que o contacto com essa atmosfera desloca e faz com queos indivduos percam as referncias espaciais e temporais do momentoanterior.

    Dos exemplos concretos de heterotopias fornecidos por Foucault oColgio, o Comboio, o Hotel, a Clnica Psiquitrica, a Casa de Repousoou de Retiro (Lar de Idosos), a Priso, o Cemitrio, o Teatro, o Cinema,o Jardim, o Museu, a Biblioteca, a Feira, a Aldeia de Frias/Turstica,o Bordel, a Sauna/Banho Turco, o Motel (mas ao Navio que MichelFoucault d o lugar de paradigma de Heterotopia) , os casos em quea ideia de iluso, consolao ou desvio heterotpico mais se eviden-cia, em que mais se efectiva o seu carcter rugoso e dobrado, soprecisamente o Colgio, a Clnica e a Priso. No primeiro ainda pos-svel encontrar vestgios dos lugares de crise sacralizados ou interdi-tos de transio dos jovens para a idade adulta, podendo-se associar-lheo Quartel militar; a lua-de-mel (sempre deslocada para outro lugarque no o espao da vida quotidiana), ou igualmente as Universidades,em particular com a recente introduo das praxes acadmicas todosexemplares na sua iniciao ordem e hierarquia estabelecidas.

    O Teatro e o Cinema, por outro lado, distinguem-se pelo poder dejustapor num lugar real espaos incompatveis, quer entre a sala (o es-pectador) e o palco ou o ecr, janelas para o mundo da representao,quer, j em cena e por efeito da montagem, entre os espaos onde se pas-sam as diferentes aces de um enredo mais documental ou de fico.O Jardim, a Estufa, o Zoo ou o Aqurio (em especial na sua mais re-cente configurao de Oceanrio) tambm se sujeitam a este princpioquando tentam reproduzir aqui o den perdido ou os diferentes bito-pos da terra e do mar. J o Museu, a Biblioteca, a Feira (de diverses)ou o Mercado ambulantes so exemplos de heterocronias, pois im-plicam uma ruptura com o tempo tradicional, acumulado nos primeirose anulado nos ltimos. Mas tambm o so, na sua forma efmera, osgrandes concertos ou festivais de msica pop/rock e as festas rave demsica de dana/electrnica que se organizam quase espontaneamentee decorrem apenas durante um ou dois dias num lugar mais ou menosinesperado, em meio rural, em espaos industriais abandonados ou cri-ados para outras actividades. Ou so-no ainda aqueles espaos ligados

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    a esse outro espao-tempo que a noite, onde o consumo, o entreteni-mento e as artes mais variadas se hibridizam, quantas vezes propondoestticas, ticas e comportamentos capazes de os isolar ou torn-los pe-netrveis (...) com uma certa permisso e uma vez cumpridos e aceitesum certo nmero de gestos (Foucault, 1984: 8), justapondo suavertente fugaz a reminiscncia espelhada do ilusrio. Estes exemp-los, contudo, tambm podem ser considerados como heterotopias decrise actuais, locais distantes do espao social de referncia quotidi-ana onde os jovens se deslocam normalmente em grupos e experimen-tam(-se) relaes autnomas e com outros em situao idntica.

    Todavia, foi a Heterotopia da priso que Foucault (1987) procurouestudar atravs da anlise da transformao ocorrida nos sculos XVIIIe XIX, que levou supresso do espectculo punitivo a confissopblica, o cerimonial da pena, a execuo pblica e separao dajustia da parte violenta que est ligada ao seu exerccio. No pela cria-o da priso e da invisibilidade dos que violam a lei isso no eranovidade mas pela sua institucionalizao e difuso em rede, bemcomo de toda uma parafernlia de dispositivos paralelos. Segundo oautor, foi nesse perodo que o corpo humano se tornou objecto e alvodo poder, nomeadamente atravs da disciplina, que separa, analisa ediferencia tudo o que lhe est submetido, que usa um mtodo capaz docontrolo minucioso das operaes do corpo e realiza a sujeio cons-tante das suas foras, tudo com vista formao de uma relao que otorna tanto mais obediente quanto mais til, que o faz operar como sequer, com as tcnicas, segundo a rapidez e a eficcia que se determina.Assistiu-se, assim, instalao de toda uma episteme que prenunciouo regime de produo da sociedade industrial, com a sua valorizaoda fora de trabalho e, portanto, do corpo humano. Um fenmeno queprovm de uma multiplicidade de processos que se repetem, circulame se apoiam, formando gradualmente um mtodo geral que impregnamais ou menos discretamente o exrcito, o colgio, a escola primria, ohospital e a fbrica, e em relao a cujos mecanismos no pode deixarde se verificar o paralelismo com o processo, atrs mencionado, de en-carceramento de indgenas noutros lugares.

    Com este exemplo da Priso pode vislumbrar-se o caminho de adap-tao de uma Heterotopia aos tempos contemporneos, na medida emque nas sociedades ps-industriais, aquelas onde se concretiza a subs-

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    tituio da mo-de-obra pela mquina e se criam hordas de pessoas dis-pensveis do aparelho produtivo8, j no foroso disciplinar, medir,marcar, segregar e explorar os corpos, apenas se torna necessrio con-trol-los, perdendo a priso a funo de reeducar os reclusos. Resta-lhe, por isso, a funo punitiva e de controlo das massas desempre-gadas capazes de forarem a tolerncia zero das regras dominantes, emesmo essas so cada vez mais mediadas pela tecnologia que prolongaos corpos ou os incorpora, acabando de qualquer maneira por afast-losuns dos outros9.

    A priso como lugar onde se colocam os indivduos com compor-tamentos de desvio torna-se, pois, o lugar de representao dos outrosespaos existentes, to perfeitamente organizado que compensa a im-perfeio e desorganizao do espao real envolvente. Priso que de-limitada por muros ou outras barreiras e meticulosamente desenhadasob alada do sistema Panptico10. Priso que possui um sistema deabertura e de encerramento que a isola e faz com que s se v para lsob coaco, capturado. Priso que passa a existir para fazer-nos crerque no toda a sociedade que carcerria (Baudrillard, 1991: 21)e que se torna a materializao espacial de uma forma das sociedadescontemporneas lidarem com o desvio.

    Indo para alm do desvio, as heterotopias so ento o lugar doOutro ou o lugar para o Outro, uma pura constatao do Outro aquimesmo, aquela minoria que irrompe de novas possibilidades de vidaque derivam dos pontos de interseco, das encruzilhadas da geometriaestabelecida pelo espao social e cultural. Pelo que este Outro Outros,no plural, como as heterotopias. Em resultado desta visibilidade, a so-ciedade ou cultura no pode mais ser vista como totalizante e produtorade homens mdios se nela existem espaos de fuga, diga-se assim,

    8 Segundo Viviane Forrester (O Horror Econmico, 1997, Terramar), pela primeiravez na histria existem mais pessoas do que as necessrias para garantir a produode bens de consumo para as elites.

    9 O cenrio delineado aponta a passagem da sociedade disciplinar foucaultianapara a sociedade de controlo deleuziana.

    10 O Panptico tem a capacidade de dissociar o par ver/ser visto e induzir no indi-vduo um estado consciente permanente de visibilidade que assegura o funcionamentoautomtico do poder. Hoje, com as cmaras de vigilncia espalhadas por edifcios detoda a espcie, em alguns casos mesmo nas ruas, j no necessria a arquitecturaespecial de Jeremy Bentham.

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    mesmo que sejam de excluso, existe Alteridade. Com esta tipologiade espaos, o lugar do Outro j no distante, l longe, e quando eleest aqui por perto torna-se difcil confin-lo e, portanto, incapacit-lode comunicao, de contacto, de captura.

    J na dcada de 1990, Marc Aug introduziu a noo de No-Lugar, que tem pontos em comum com as heterotopias mas tambmdelas diverge. Desde logo porque o No-Lugar aparenta ser um pro-duto dos tempos actuais, sendo a expresso mxima daquilo que Augapelida de Sobremodernidade e que caracteriza pela figura do excessoresultante das transformaes aceleradas do mundo contemporneo: i)o excesso de tempo, que resulta da multiplicao de acontecimentos que possvel presenciar e/ou observar e da acelerao da histria da prove-niente; ii) o excesso de espao, que provm das mudanas de escala eda justaposio de espaos decorrentes da velocidade dos tempos con-temporneos; iii) o excesso de indivduo, que como receptor de todasessas referncias procura interpret-las, posicionando-se.

    Se estas trs caractersticas da Sobremodernidade ajudam a com-preender a constituio do conceito de No-Lugar, este afirma-se, comoa prpria palavra indicia, pela oposio ao Lugar em particular ao Lu-gar antropolgico, derivado da concepo de Mauss da cultura comoalgo localizado no tempo e no espao (Silvano, 2001b: 78) e define-se pela negativa em relao a ele. Ou seja, se o Lugar um localcuja forma, funo e significado so independentes dentro das fron-teiras da continuidade fsica, onde, mesmo no sendo necessariamenteuma comunidade, a vida dos respectivos habitantes marcada pelassuas caractersticas (Castells, 2002: 549, 551), j o No-Lugar, es-pao votado individualidade solitria, passagem, ao provisrio eao efmero (Aug, 1994: 84), no um espao identitrio, rela-cional ou histrico e simbolizado. Onde, pela permanncia, o lugarantropolgico produtor da identidade de uns e de outros, de socialorgnico, o No-Lugar cria a identidade partilhada, provisria, ondea actualidade e a urgncia do presente reinam e, portanto, a histriano tem lugar, tudo se passando como se o espao fosse ultrapassadopelo tempo (Aug, 1994: 109), onde o indivduo se encontra consigomesmo numa solido que pode ser sentida como individualidade ou li-

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    bertao dos condicionalismos habituais, mas nisso se igualando a todosos outros frequentadores desses mesmos espaos.

    , pois, nos espaos de fluxos constitudos com certos fins ou fun-es, como o lazer, o comrcio e servios ou o trnsito, que se v commais evidncia o que se acabou de caracterizar como o tipo de rela-cionamento que os indivduos estabelecem com e nos no-lugares. A, suposto os indivduos no interagirem entre si, pelo que a mediaocom o meio envolvente e as condies de circulao nesses espaos sotransmitidas pelos espordicos agentes investidos de autoridade paraintermediar e/ou esto patentes nos conselhos, comentrios e men-sagens transmitidas pelos inmeros suportes audiovisuais que so parteintegrante da paisagem contempornea, que se dirigem simultnea eindiferentemente a cada um dos transeuntes e a qualquer um deles e re-flectem as instituies que se encontram por detrs. Da concluir-se queos limites de um No-Lugar tm de ser evidentes, havendo pelo menosuma ltima fronteira onde se estabelece a oposio entre dentro e fora, oque muitas vezes se materializa no check-in/out, na portagem, na caixaregistadora e traduz a natureza contratual inequvoca da relao do in-divduo com o No-Lugar. s entrada que o indivduo adquire oanonimato ou, pelo contrrio, sada, depois de ter fornecido a provade identidade, que identificado, socializado e localizado, podendo por-tanto aproximar-se dos outros e criar o social.

    O No-Lugar , portanto, um territrio da contemporaneidade comlimites definidos, onde os indivduos vo ou esto em circulao ouestada provisria mas que lhes permite atingir um propsito. Nessesentido, preenchem uma funo, funo esta que exercida na condiode permitir ao indivduo a perda provisria da sua identidade e atingir oanonimato, de suspender o jogo social no presente, e com ele a histria eas caractersticas dos lugares que o circundam ou ele atravessa, mas queacaba por reclamar mediando-os, fazendo do antigo, dos exotismos edas particularidades locais um espectculo especfico.

    Os no-lugares materializam-se, assim, nos meios de transporte enas instalaes necessrias circulao acelerada de pessoas e bens(aeroportos, gares), em particular as auto-estradas, viadutos e linhas decomboio de alta velocidade que, destoando da proximidade das velhasestradas nacionais ou linhas de comboio inter-regionais com o territrioque atravessam, afastam a paisagem (que se torna no referido espec-

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    tculo) e do aquela impresso de passagem de um filme intimistapara os grandes horizontes dos western (Aug, 1994: 102). Os no-lugares incluem ainda os grandes centros comerciais, o hospital, o hotel,o clube de frias, os parques de lazer e as redes de postes telegrficosou sem fios que mobilizam o espao extraterrestre para fins de comuni-cao (Aug, 1994: 85). Mas quando Aug refere que o arqutipode No-Lugar o espao do viajante, o espao onde o indivduo sesente espectador sem, verdadeiramente, se importar com a natureza doespectculo (Aug, 1994: 92) e o viajante a figura humana dessanova configurao espacial (Silvano, 2001a: 81), que se vislumbrao enraizamento histrico destes espaos na modernidade e no sujeitomodelar do flneur, essa figura social burguesa e masculina erguida porCharles Baudelaire e Walter Benjamin.

    As semelhanas mas tambm as dissemelhanas entre hetero-topias e no-lugares so insofismveis, a fronteira flexvel e porosa,mas para alm dela h irredutibilidades que no sero alheias ao es-prito do tempo, a episteme em que cada um destes conceitos foi pro-duzido.

    Primeiro as palavras que os designam, ambas provenientes de umaprecipitao da utopia e pretendendo-a realizada. Mas enquantoa Heterotopia a sua concretizao literal, pela multiplicao da dife-rena, dos lugares diferentes, da o significado e a necessidade do neo-logismo, o No-Lugar o seu timo literal11 mas invertido, na medidaem que existe e no alberga nenhuma sociedade orgnica. H assimuma radicalidade na Heterotopia, que se ope utopia existindo, que oNo-Lugar apenas concebe por objeco ao Lugar. Depois, h aquelasexpresses intermdias, de passagem, de experincia mista mais mi-tolgica ou abstracta e que se aplicam quase indiferentemente a um ououtro dos termos da oposio: o espelho, o lugar sem lugar mas que real e est entre a Utopia e a Heterotopia; o espao, que pode ser umaextenso, uma distncia ou uma grandeza temporal e est entre o Lugare o No-Lugar.

    Prosseguindo nesta descrio pendular, tem-se ainda, para ambos,o carcter provisrio, de passagem, a funo ou propsito, os limitesassinalados por um sistema de entrada/sada mais ou menos ritual (masprofana) e a percepo da alterao do espao e do tempo. Todavia,

    11 Utopia provm da palavra grega que significa no lugar, lugar inexistente.

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  • 28 Joo Antnio de Oliveira Gonalves Rapazote

    o que a Heterotopia pode ser ou ter de desvio, de compulsivo, de fun-cionamento prprio e adaptvel, de permanncia histrica, de univer-salidade, de espessura social e identitria (consoante a perspectiva, adiferena identidade), de acumulao ou anulao espacio-temporal, ou tem o No-Lugar de arbitrrio ( com alguma iniciativa prpria quese lhe acede), de homogneo (independentemente da funo, h carac-tersticas comuns), de contemporneo, de vazio social, de anonimato ede suspenso espacio-temporal, ou seja, de espe(cta)cular.

    Tendo em considerao os espaos concretos sugeridos como e-xemplo pelos respectivos autores, a sobreposio entre heterotopias eno-lugares notria nos casos do hotel, do clube ou aldeia de frias edos meios de transportes, em particular do navio, que para Foucault a maior reserva de imaginao e para Aug o ponto de vista ideal doviajante. Mas se o facto do espao do viajante ser o arqutipo do No-Lugar lhe permite englobar as infra-estruturas de transporte (vias decomunicao, aeroportos, gares...), as grandes superfcies comerciais eos parques de lazer, no deixa de ser com alguma perplexidade que nelese consideram o campo de refugiados, o bairro de lata ou o hospital o autor f-lo , a Sauna, o Cemitrio, o Colgio ou a Priso, para citaralguns modelos de heterotopias. Estes so precisamente os casos emque a ideia radical da Heterotopia mais se evidencia, e o seu carcterespesso, dobrado para usar uma expresso foucaultiana se re-vela, em contraste com o que no deixa de se percepcionar como umacerta lisura do No-Lugar.

    1.1.2 Dos Cativos do Lugar aos Multi-situados

    Com o auxlio figurativo da profundidade de campo, o que o percursofeito at aqui permite tornar ntido no horizonte esse deslocamento einteriorizao do lugar da Alteridade, a problemtica das relaes en-tre o Lugar e a Alteridade j no nos locais distantes das ex-colniasmas aqui, onde afinal o outro tambm sempre esteve , assim como apossibilidade de multiplicidade e divergncia da decorrente. Recorreu-se, para esse efeito, aos conceitos de Heterotopia e No-Lugar, esses

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  • Territrios Contemporneos do Documentrio 29

    espaos outros que diferem dos espaos e lugares envolventes, torna-dos visveis por Michel Foucault e Marc Aug.

    Quando, neste mundo globalizado, se coloca o problema cada vezmais veemente do lugar dos imigrantes em casa, l na sua terra deonde nunca deveriam ter sado; ou nos bairros degradados, mais centraisou perifricos, concentrados em guetos pertinente ter em conside-rao a necessidade de pensar a identidade e a relao, o si-mesmo e ooutro (Aug, 1999: 138), ou seja, a Alteridade, que uma questo queinterpela a sociedade como sistema de diferenas institudas o lugardo outro outro , mas que tambm interroga o Sujeito, ele prprioconstrudo no discurso e na diferena o lugar do outro no prprio e sobejamente dissecado pelo pensamento moderno e contemporneo.

    Foucault tornou visveis as heterotopias quando as enunciou em1967, ele que afirmava ter cada poca a sua episteme, os seus enuncia-dos e as suas visibilidades, s podendo diz-los ou v-los em funo dassuas respectivas condies ou na medida em que deles j estivesse im-pregnada qual crculo hermenutico. Com a sua pesquisa arqueolg-ica e a relevncia dada s cincias no estabelecidas, ps em prticaa prospeco do saber local, marginal, alternativo que deriva a suafora da dureza com que se ope a tudo o que o rodeia (Habermas,1990: 263), bebendo no pensamento grego a admisso de que cadadomnio de experincia seja resolvido por princpios diversos (Marcos,2001: 129). Estava-se em vsperas de 1968 e do seu Maio eruptivo e conhecido o seu posterior interesse por novas formas de comunidade,porventura em relao com os movimentos da contracultura americana.As heterotopias, essas realizaes imprevistas, e talvez distorcidas, dautopia (Vatimo, 1992: 74), so assim o(s) espao(s) desses saberes,pois todo o conhecimento provm de um lugar, sobre um lugar (literalou figurado) e o lugar posio, canto nietzscheano da completa ins-talao da possibilidade (Marques, 1989: 44), que habitado quandofrequentado ou que identifica quando frequentado.

    Na senda do pensamento Estruturalista12 que seguiu a ideia dur-kheimiana de as cincias sociais no terem de se preocupar com os indi-vduos, Foucault, que tambm anunciou a morte do homem, deu espao,

    12 Sabe-se que Michel Foucault se auto-exclua de pertencer a qualquer movimentoou escola de pensamento, e no caso do Estruturalismo mostrou mesmo as suas di-vergncias com Claude Lvi-Strauss.

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    fez ver os lugares de manifestao das correntes desviantes dos indi-vduos, conferindo-lhes a capacidade de serem preenchidos e de, inde-pendentemente de quem os ocupasse, se repetirem em srie. Com issocontaminou a ps-modernidade com a ideia de um Outro irredutvel,quanto mais no seja porque a prpria estrutura o contempla, de que ooutro no pode ser absolutamente traduzvel (Marcos, 2001: 35), esseOutro cuja distino radical implica o desfazer da noo etnogrfica deque essa diferena pode ser consumida, ou seja, da Antropologia comotradutora de outra experincia cultural a traduo tambm umafigura da Alteridade. Este Outro, estrangeiro ou estranho, Alteridadepura, sendo perturbador por suscitar uma certa impossibilidade de re-lao ou comunicao e conduzir a alguns mal entendidos patentes naquesto do multiculturalismo, encontra, todavia, um tratamento posi-tivo em algumas correntes do pensamento contemporneo. Para o fil-sofo Emmanuel Lvinas, por exemplo, a estranheza do Outro a suaprpria liberdade (...) na medida em que s quando o Outro est inteira-mente em relao consigo prprio que pode relacionar-se comigo(Marcos, 2001: 178), pelo que o encontro com o Outro , paradoxal-mente, separao para que no haja (re)apropriao pelo mesmo eisto coloca-o na posio radical de falar da subjectividade no do lugardo eu ou da relao mas do lugar do outro (Marcos, 2001: 255).Este posicionamento acaba por no ser totalmente estranho a Foucault,ainda que de outro modo e mesmo sem esquecer que as identidades (in-dividuais ou colectivas) so sempre um pouco mais etreas e volteis,mais imaginadas13 do que uma qualquer sua defesa exacerbada possapretender.

    Por tudo isto, admite-se ainda um outro enfoque ao contributo deMichel Foucault para o movimento de transformao das cincias so-ciais e humanas registado nas ltimas dcadas. Refira-se, em particular,a apropriao por estas disciplinas das novas percepes do conceitode Espao (e de Tempo) proveniente da rea das Cincias Naturais,principalmente por intermdio da Fsica e da sua teoria da MecnicaQuntica, surgida nos incios de 1900, cujo Princpio da Incerteza, rela-cionado com a localizao e o movimento, estabelece a interaco dobinmio observador/observado, figurado de forma fascinante naquele

    13 Recorde-se o estudo de Benedict Anderson Imagined Communities: Reflectionson the Origin and Spread of Nationalism, 1983, Verso.

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  • Territrios Contemporneos do Documentrio 31

    gato confuso e maluco (Barrow, 1998: 213) de Schrdinger. Nessateoria, a Interpretao de Copenhaga14 ainda d um estatuto espe-cial ao observador na concretizao do real, para que faa sentido dizerque o mundo real existe, o que em ltima instncia implica a existn-cia de um observador final no fundo do mundo ou no exterior douniverso (Barrow, 1998: 220). Mas em 1957 irrompe uma outra ver-so Quntica um pouco mais determinista e algo hesitante em relao necessidade dessa conscincia, conhecida como a Interpretao deEverett15, afirmando que tudo o que logicamente pode acontecer, acon-tece, no neste mundo, mas numa multiplicidade ilimitada de mundosreais e paralelos.

    No , portanto, mais possvel falar em Universo, mas sim em Mul-tiverso, e se partida os seres humanos parecem estar confinados avaguear ao longo de um nico ramo da nossa realidade esquizofrnicaem diviso contnua (Barrow, 1998: 219), fica em aberto a sua capaci-dade de interagir com a totalidade da realidade quntica. Neste sen-tido, parece plausvel interpretar as heterotopias de Foucault como sefossem a concretizao, aqui na Terra, desses universos mltiplos, de-pendendo ento a possibilidade de com eles interagir de uma constantelibertao das formas constitudas de experincia, da adopo de umaesttica de existncia fundamentada no conhecimento adquirido nolugar. E se esta assero aparenta remeter para outra que se exps noincio deste estudo, que enunciava a importncia do local na aquisiodas diferenas culturais, no pode com ela ser confundida, pois se essapartia de um conceito universal de cultura e pressupunha um raciocniodedutivo, do geral para o particular, esta fica-se pelo particular, semambio generalista para qualquer tipo de conhecimento.

    A peculiaridade foucaultiana passa, assim, por uma recusa coe-rente da anlise em geral, atendendo antes s formas especficas de ex-perincia continuamente adoptadas e transformadas no Lugar. Comoento se exps, o indgena foi a figura humana que se constituiu comoreflexo em tudo semelhante numa srie que se arriscaria adjectivarde repetida aos processos de subjectivizao a que se sujeito porconceitos gatekeeping, individuando-nos de acordo com as exign-

    14 Assim designada e correspondendo verso do fsico dinamarqus Niels Bohr,o pai da Mecnica Quntica.

    15 Cujo nome provm do seu autor, o americano Hugh Everett III.

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  • 32 Joo Antnio de Oliveira Gonalves Rapazote

    cias do poder (...) e prendendo cada indivduo a uma identidade sabidae conhecida bem determinada16.

    A figura possvel de constituir em coerncia com a anlise de Fou-cault, a haver, irrompe daqueles outros processos de subjectivaoque nenhuma sociedade pode banir por completo e desligam os eusconstitudos em direco a outros espaos (Rajchman: 2002: 107).Estabelecidas estas condies estruturais, na medida em que essesprocessos, esses espaos surgem nas linhas de fuga das intersecesdas coordenadas cartesianas dum espao social, ter-se-iam ento fi-guras (no plural) resistentes a qualquer natureza humana postulada,capazes de rebelarem-se contra aqueles mtodos pelos quais j esta-mos definidos, categorizados e classificados (Rajchman, 1987: 56) eatravs dos quais as pessoas se tornam governveis. Estar-se-ia entoem presena de figuras da vida enquanto portadora de singularidades,enquanto plenitude do possvel (Deleuze, 1998: 123), figuras estaseventualmente pertena de um povo por vir, nascido de uma dester-ritorializao absoluta (Rajchman, 2002: 105).

    Em Foucault no h lugar para a unidade sistemtica do conheci-mento ou do processo histrico; no h lugar para a u(dis)topia ou paraa alternativa global, que exigem a irreversibilidade da flecha do tempo;no h reformas ou revolues a recomendar, pois tudo disperso, par-ticular e vem de baixo, do Lugar ou do saber resistente praticado nesselugar. O futuro no existe17 de forma iluminada e j heterotpico.Nesse sentido, as heterotopias, opondo-se s utopias por existirem e seprecipitarem em condies prticas derivadas, no exclusivas, so aque-les outros espaos ou infra-espaos que escapam ao diagrama dassegmentaes disciplinares do espao e do tempo e podem eventual-mente ser encaradas como contraterritrios relativos ou estratgicosno sentido de uma terra leve que os preceda (Rajchman, 2002: 105).As heterotopias como que propiciam uma desterritorializao relativa,provisria, talvez necessria antes da desterritorializao absoluta deindividuaes, etnias e naes.

    16 Como refere Emdio Rosa de Oliveira (Deleuze, 1998: 10).17 Relembrando o clebre aforismo punk (no future), movimento (scio)musical

    de tendncias anarquistas que se rebelou contra as sonoridades estabelecidas doPop/Rock, ele mesmo uma forma de vida, uma esttica de existncia.

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  • Territrios Contemporneos do Documentrio 33

    Depois do advento do barco, do comboio, do automvel, do avio,do telefone, da cmara fotogrfica e do ecr (de televiso, de cinemaou de computador), a intensidade e o gnero das interaces da decor-rentes confrontam todos os indivduos e todos os povos com a condioconjunta de vizinhana. Cada vez mais pessoas ou grupos lidam coma realidade de terem de se mover ou de se fixar noutros locais em-igrantes, turistas, viajantes de negcios ou em trabalho temporrio ou com a fantasia de se quererem deslocar. Nessa deriva, real ou ima-ginria, d-se o confronto com a Alteridade. O Lugar deixa de ser omesmo, aqui ou alm. O mesmo muda de lugar, sendo ento outro.E esta instabilidade do outro perturba a identidade. As culturas, comoas ideias e as inovaes so cada vez menos passveis (se alguma vezo foram) de localizao, de fixao, de autenticao. Houve essa in-teno enquanto se pensou um sentido para a histria, mas a afirmaode diferentes enunciados e visibilidades puseram-na em causa.

    Quando estuda o Lugar, a Antropologia tambm estuda o espaoonde esse lugar se inscreve e de onde provem as influncias que tmefeito no jogo interno das relaes locais (Aug, 1994: 122), umaquase inverso de posio relativamente ao Difusionismo. Gupta e Fer-guson propem a transformao da teoria no e pelo Lugar (de Appadu-rai) por intermdio de um novo mtodo de trabalho que parte de umaviso mais flexvel e complexa do Outro, adaptada a um mundo inter-conectado, onde nunca se est realmente fora do [trabalho de] campo(Gupta e Ferguson, 1997a: 35), onde o significado e a dinmica dos lu-gares que se habitam se encontram em profunda alterao devido aodomnio e lgica dos espaos de fluxos, aqueles onde a funo e opoder das nossas sociedades se organizam (Castells, 2002: 555). A es-tratgia de Gupta e Ferguson implica o reconhecimento da intervenopoltica da Antropologia, pois mesmo quando esta se situa ou se localizapara estudar um lugar, no pretende uma busca da verdade ao servio deum conhecimento universal, antes deriva por entre os diferentes posi-cionamentos sociais ou polticos disponveis, por entre os diferentestipos de conhecimento(s) na busca de possveis alianas e propsitoscomuns. esta possibilidade de substituio do comprometimento dadisciplina com a localizao por um factor distintivo baseado naateno aos assuntos epistemolgicos e polticos da posio, do co-nhecimento, do conhecedor e do conhecido que instala o dispositivo

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  • 34 Joo Antnio de Oliveira Gonalves Rapazote

    necessrio s etnografias Multi-Situadas, uma justaposio de discur-sos que soltam amarras e adoptam mesmo a noo de conhecimentocomparativo produzido atravs de um itinerrio (Clifford, 1997: 31).

    No seu modelo dos fluxos da cultura global, Arjun Appadurai desig-nou de ethnoscape a paisagem de pessoas que constituem o mundo emmudana em que vivemos: turistas, imigrantes, refugiados, exilados,trabalhadores convidados e outros indivduos e grupos em movimento(...) que parecem afectar fortemente as polticas das e entre naes(1996: 33). Appadurai refere a ambiguidade do conceito sublinhando aforma como a percepo, a perspectiva e a situao do observador afec-tam os processos e a produo de representao, num esquema anl-ogo ao da teoria fsica da Mecnica Quntica, atrs referida, e afimao das paisagens (landscapes) nas artes visuais ou da fuga nas com-posies musicais18, fazendo tambm notar a qualidade no localizadada raiz etno agora rizoma na etnografia. Se os no-lugares deAug, como espaos de fluxos, de variados trnsitos, podem ser os lo-cais ideais de observao mais que de encontro dos ethnoscapesde Appadurai19, j as heterotopias de Foucault so os lugares dos ou-tros aqui, ou talvez os outros lugares por excelncia, da Alteridadena Mesmidade. Por isso, ao contrrio dos no-lugares, onde a aberturado indivduo presena dos outros surge paradoxal e simultaneamente reduo a si mesmo, possvel ver nas heterotopias a configuraode lugares antropolgicos, bastando para tal considerar o jogo social(outro), a afirmao de identidades (a diferena identidade) e a li-gao entre indivduos (outras) por criao de atmosferas que as he-terotopias proporcionam. Ou pelo menos possvel constatar no semalguma perplexidade como algumas parecem oferecer-se, agora numaperspectiva mais sociolgica, como espaos de afirmao do conceitode habitus20, tornando-se lugares de distino social.

    Por ora, realce-se a inteno notria de Michel Foucault em mantero conceito de Heterotopia aberto a novas apropriaes e transfiguraes,adaptveis aos tempos que correm, bem como a noo que o autortinha da constante praticabilidade de ocorrncia desta configurao es-

    18 a que se deve ir buscar o sentido do sufixo scape.19 Em Lisboa, qualquer ida aos armazns El Corte Ingls ou viagem no comboio

    Metropolitano, em especial aos fins-de-semana, um deslumbrante testemunho disso.20 Conforme definido pelo socilogo Pierre Bordieu.

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  • Territrios Contemporneos do Documentrio 35

    pacial. Foi isso que se pretendeu enfatizar quando se deu o exemplohistrico de ajustamento sucessivo da priso, quando se incluram nasheterotopias os festivais de msica Pop, e tambm quando se foi bus-car a noo de No-Lugar. A estes exemplos podem-se ainda associaras transformaes mais recentes ocorridas nos espaos museolgicos,onde a componente arquivista, de acumulao perptua de tempo, riva-liza agora com o efmero do lazer e do consumo, ou mesmo fazer refe-rncia, nestes tempos da desterritorilizao da cultura e do desvanecerda identidade (a relao, contudo e como j se aludiu, -lhe anterior),queles que vem o surgimento de novas heterotopias no ciberespao,chamando a ateno para a experimentao de novos modos de so-ciabilidade verificveis nos Chats, nos Fruns e nos e-mail (Mouro,2002: 76), formalizados em rede e acessveis em diversos sites. Restasaber se essa multiplicao de personas remete para a proposta deleu-ziana de um afastamento do entendimento de ns prprios em termosde identidade e identificao (Rajchman, 2002: 88), que, definitiva-mente, no o mesmo que imaginar ter muitas identidades ou eusdistintos, pois o facto que, surpreendentemente ou no, se assiste nestaEra a um assomo revigorado dos localismos e a um apego expressivodo indivduo ao seu corpo, lugar por excelncia de investimento do eu.

    No final dessa clebre interveno de 1967, Foucault deixou as he-terotopias abertas ao imaginrio a sua referncia inicial a Bachelardtambm vai nesse sentido e declarou o Navio a Heterotopia por ex-celncia. O navio, rugosidade do mar e clausura deriva que se ligae desliga ao porto, esse apndice da terra no mar, tem sido lugar de pro-jeco de sonhos e aventuras, de busca de tesouros recnditos, entre osquais no de esquecer a descoberta de outros Outro21. Hoje, no difcil observar as heterotopias e os no-lugares como locais da Alteri-dade que continuam a prestar-se projeco do imaginrio, em particu-lar do imaginrio sobre o Outro, seja por serem espaos passveis de f-cil delimitao, com os seus mecanismos de encerramento e abertura;seja por serem lugares suspensos, terras de ningum, onde o Outro as-

    21 A duplicidade dos primeiros relatos dos povos indgenas dos novos mun-dos de quinhentos, prenhes da ideologia do mesmo, so curiosos quando, segundoBaudrillard (1991), reflectem o dilema da existncia de humanos desconhecedores dapalavra de Cristo implicar a falha do criador, inaceitvel, ou a eliminao da provadessa perturbao, o seu extermnio.

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  • 36 Joo Antnio de Oliveira Gonalves Rapazote

    sume uma face horrenda (que pode ou no fazer chorar); seja ainda porserem lugares para l de uma zona fronteiria, onde o eu pressenteuma perturbao na comunicao e, como refere Aug (1994), j noreconhece totalmente os cdigos, as condutas, as linguagens, que sode outros.

    Existe, pois, todo uma gama de olhares sobre o Outro que se projec-tam e/ou recolhem nos lugares do Outro. H o olhar mais ou menos sis-temtico e disciplinar, de que se tem vindo a realar o caso da Antropo-logia. H o olhar do turista, cuja nsia a de contemplar e capturar emimagens essa experincia de contacto (?) com o Outro no seu territrio.Todavia, pelo menos em termos massificados, o poder metafrico donavio (Heterotopia, No-Lugar) talvez se tenha transferido para aliteratura de viagens, o policial, ou a fico cientfica, e, mais ainda,por simulacro, para o cinema Heterotopia da possibilidade de todosos espaos. Esses lugares do Outro tornam-se, assim, particularmentefilmveis porque propiciam a figurao da alteridade na mesmi-dade, porque a o representvel assume caractersticas da outridade.

    No cinema de fico, onde se constri um mundo (diegtico) para oqual o espectador transportado, a figura clssica do heri romnticodes-loca-se e vagueia por esses lugares de aventura, cumprindo asua misso civilizadora, de resgate, de luta contra a barbrie e o mal,sendo dessa capacidade de transcender o lugar que lhe advm todos ospoderes certamente toda a diferena. Na deambulao por essesterritrios de todos os perigos e medos inclusive de captura , oideal romntico concretiza-se na iniciao e crescimento que o esforoe a ameaa fsica associados viagem a um lugar distante implicam, oque, evidentemente, no inclui as qualidades atribudas ao que, por con-traponto, se constituiu como esteretipo do gnero feminino a mulherque tantas vezes, pura emoo desfeita aos gritos, se entrega patetica-mente s mos do seu parceiro masculino.

    Na fico cinematogrfica, o terror e a ameaa sociedade pare-cem ter como cenrio privilegiado esses (no)lugares heterotpicos:as auto-estradas, que so lugares de perseguio por algum outrofacnora, at morte ou salvao final; os aeroportos ou avies, se-questrados por outros hostis e transformados em ameaa para todauma sociedade; os comboios, onde se cometem crimes (quase) per-feitos; os barcos, que so palco de revoltas, de revolues contra o poder

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  • Territrios Contemporneos do Documentrio 37

    do comandante e sua trupe; at os centros comerciais ou avenidas, comolocais de transaco dos segredos mais obscuros ou de cilada ao melhordos espies. Estes so exemplos de como os piratas desapareceram doecr, onde hoje s se vem polcias, espies e terroristas. Mas talvezseja ainda cedo para proclamar a civilizao sem barcos sem sonhos,disse Foucault , pois estes ressurgem fulgurantes nos ecrs como meiode transporte dos despercebidos deste mundo, transbordando de refu-giados ou imigrantes que a eles recorrem para fugir de um pesadelo, procura de um sonho.

    Nesse cinema fico, mas dela muito se inspirou ou tornou rea-lidade. No documentrio, gnero de cinema explicitamente ligado realidade, ao lugar real, em que o espectador mantm uma relao detestemunha com o objecto e este no adquire dimenso diegtica, so i-nmeros os filmes rodados em escolas, fbricas, asilos ou prises. Essarelao privilegiada com o mundo real, histrico e social acentua-sequando se reconhece a tendncia do gnero para revelar os aspectosmais invulgares da realidade, arriscando a descoberta do Outro e doLugar que ele habita. A onde o prprio autor e, por reflexo, o es-pectador , ao dar a ver um lugar, questiona todos os outros; a onde, aoencontrar-se com o outro, se confronta consigo prprio; a onde, mesmorefugiado num no-lugar de observao por detrs de uma cmara, se revela em plena subjectividade.

    1.2 Da Escrita ao Cinema

    As questes tericas que o recurso imagem nas formas de represen-tao antropolgica pem Antropologia passam pela validade da pro-duo do conhecimento antropolgico com base na imagem, que se con-fronta com a veiculada proeminncia da palavra escrita na construodo saber desta disciplina. Passam ainda pelo enquadramento das ima-gens no discurso de uma disciplina de carcter cientfico, que faz partedas cincias sociais e humanas, e pela sua proclamada distino em re-lao ao mesmo tipo de imagens integradas em outros contextos, comoa reportagem, o jornalismo, o turismo, a literatura de viagens ou mesmoa arte e o documentrio. A reflexo aqui proposta enquadra estas duas

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  • 38 Joo Antnio de Oliveira Gonalves Rapazote

    questes na temtica da Antropologia Visual e serve-se delas como pre-texto para esclarecer o percurso deste ramo da Antropologia e do filmeetnogrfico.

    1.2.1 Do Consumo Produo de Imagens A Imagem-Objecto ea Imagem-Texto

    O surgimento da Antropologia Visual como subramo constitudo daAntropologia deu-se nos Estados Unidos em meados do sculo XX,quando a academia percebeu que as concepes do conhecimento antro-polgico que focavam a cultura visual podiam ser agrupadas numdomnio especfico. O que agora se pretende realar que a abordagemaos aspectos visuais de uma determinada cultura pode ser feita por doispontos de vista distintos: o do consumo e o da produo. A Antropolo-gia Visual consome produes culturais de carcter visual, servindo-se delas para alimentar o corpo terico da disciplina. Neste sentido,est reservado a este campo disciplinar o estudo das propriedades dosSistemas Visuais como processos que resultam na produo de objec-tos visveis pelos humanos, quando estes constroem reflexivamente oseu ambiente visual e comunicam por meios visuais (Banks e Mor-phy, 1997: 21), interpretando essas propriedades na sua relao com osprocessos sociais e polticos complexos de que fazem parte.

    Existe, portanto, a noo de que os aspectos visuais de uma dadacultura, a forma como nela se selecciona o que representvel e como representado, ou seja, os seus modos de representao, tm como ine-rente a relao existente entre a aprendizagem do uso dos sistemas vi-suais, os prprios sistemas em vigor e o modo como o mundo vistopelos indivduos em causa. A Antropologia Visual inclui, nesta pers-pectiva, no s o estudo e anlise de fotografias, do cinema e do vdeo,mas tambm o estudo da cultura material, da arte, da investigao degestos e expresses faciais ou dos aspectos espaciais do comportamentoe interaco corporal. Contudo, ao preocupar-se com a obteno dedados sobre os fenmenos visuais para investigao, a AntropologiaVisual no recorre s a objectos e produtos materiais de uma culturaou memria e bloco de notas do antroplogo. Existe uma outra fa-

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  • Territrios Contemporneos do Documentrio 39

    ceta que interessa mais a este estudo, aqui apelidada de produtora eque consiste no uso e produo de material visual prprio como instru-mento metodolgico, seja ele em forma de fotografia, filme ou vdeo.A esses meios reconhece-se a capacidade de captar de forma mais efec-tiva e compreensvel, mais completa e duradoura, muito daquilo que fazparte de uma cultura, e o lugar cimeiro que esses meios conquistaramna Antropologia Visual mais recente deve-se ao acesso cada vez maisfcil tecnologia, eventualmente ao fascnio que esta exerce em quema utiliza e em quem dela usufrui, fascnio que reflecte a sua importnciacomo meio difusor do conhecimento antropolgico.

    Tanto a perspectiva consumidora como a perspectiva produtoralevantam novas questes acerca das capacidades da Antropologia emcomunicar as suas reflexes sobre as representaes visuais colecti-vas. A primeira vertente, oferecendo coisas diferentes para compreen-der, essencialmente uma extenso das tradicionais preocupaes daAntropologia a formas culturais como a fotografia (criativa, histrica,jornalstica, turstica), postais, filmes caseiros ou as decoraes cor-porais e respectivas reas de investigao, que a disciplina foi des-prezando e cuja abordagem recente, mais audaz, encara como cami-nhos paralelos de representao cultural. J a segunda vertente propeuma ruptura mais radical com o discurso antropolgico tradicional epretende oferecer formas diferentes de compreender. Nela, o alarga-mento do que considerado objecto de estudo da Antropologia a assun-tos como a emoo, o tempo, o corpo, os sentidos, a identidade indivi-dual e o gnero encarado como exigindo uma nova linguagem que osmeios visuais, em particular os audiovisuais, parecem permitir.

    No mbito das cincias sociais e humanas, o saber antropolgicono o nico que se preocupa com a interpretao de imagens e ob-jectos existentes, bem como com as condies sociais e culturais emque eles so produzidos. mesmo legtimo dizer-se que no processode constituio dos domnios disciplinares coube Sociologia faz-lono contexto da prpria sociedade e Antropologia ocupar-se deles nassociedades exteriores e distantes. Uma e outra (mas tambm a Histria da Arte , a Filosofia da Esttica ou a Geografia22) lidam com

    22 Daqui no se infere apenas a produo e uso de mapas, esses caminhos abstrac-tos para a imaginao concreta (disse lvaro de Campos), como principalmente afotografia area e todo o trabalho de interpretao da paisagem que nela se suporta.

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    e chegam a usar meios visuais nas suas investigaes. Mas porque asimagens parecem manifestar uma apetncia imediata para servirem deveculo representao de outras culturas, de entre todas, a Antropolo-gia, nomeadamente na prtica etnogrfica, aquela que mais se confrontacom o facto de, no prprio processo de inquirio, acabar por criar umobjecto visual e, portanto, de ter a necessidade de com isso se relacionare nisso reflectir.

    Nesse sentido, a histria do visual na Antropologia acompanha aprpria disciplina desde que esta se instituiu como cincia em termosmodernos, em finais do sculo XIX, e muitos autores j observarammesmo o seu paralelismo com o surgimento e desenvolvimento do ci-nema, algo a que este estudo tambm se reporta. Todavia, a anlisediacrnica do entrosamento destes dois domnios que agora se iniciapode ser descrita como o movimento das mars, constatando-se a e-xistncia de um fluxo de imagens na Antropologia do perodo inicialat aos anos 1930, seguido de um refluxo registado entre o perodo daSegunda Guerra Mundial e os anos 1980, ao qual as ltimas dcadas dosculo XX reagiram com um influxo, qual preia-mar, que se estende at actualidade esta segunda vaga com caractersticas bastante distintasda primeira, como se ter oportunidade de assinalar.

    No perodo da primeira vaga de imagens, entre finais do Sculo XIXe os anos 1930, a utilizao da fotografia e do filme como instrumen-tos de investigao e comunicao substituram rapidamente a prticaento vigente de deslocao dos prprios indgenas para as sofisti-cadas cortes, para as cientes exposies universais, para os srdi-dos circos, quando muito parcimoniosamente se constatou que estes,deslocados do seu meio ambiente, pouco diziam sobre a cultura de ondeprovinham. O manifesto interesse pela cultura material e a prtica deuma Antropologia de urgncia e salvamento das culturas primitivasreflectem-se na ateno ento prestada ao apetrechamento e disposiovisual dos museus antropolgicos. Neste processo, a imagem surgiuassociada s tcnicas de antropometria, aos tratados de catalogao dostipos e ocupaes humanos ou criao de categorias culturais, quando

    Aqui tambm se inclui o registo em filme, como foi o caso nas expedies geogrfi-cas s erupes vulcnicas de 1951 na ilha do Fogo, em Cabo Verde, e de 1957 nosCapelinhos, Aores, por Orlando Ribeiro e Raquel Soeiro de