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Mor folog ia do Português Florianópolis - 2011 Felício Wessling Margotti Rita de Cássia Mello Ferreira Margotti Período

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Morfologia. EaD.

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  • Morfologia do Portugus

    Florianpolis - 2011

    Felcio Wessling MargottiRita de Cssia Mello Ferreira Margotti2

    Perodo

  • Governo FederalPresidncia da RepblicaMinistrio de EducaoSecretaria de Ensino a DistnciaCoordenao Nacional da Universidade Aberta do Brasil

    Universidade Federal de Santa CatarinaReitor: Alvaro Toubes PrataVice-Reitor: Carlos Alberto Justo da SilvaSecretrio de Educao a Distncia: Ccero BarbosaPr-Reitora de Ensino de Graduao: Yara Maria Rauh MllerPr-Reitora de Pesquisa e Extenso: Dbora Peres MenezesPr-Reitor de Ps-Graduao: Maria Lcia de Barros CamargoPr-Reitor de Desenvolvimento Humano e Social: Luiz Henrique Vieira da SilvaPr-Reitor de Infra-Estrutura: Joo Batista FurtuosoPr-Reitor de Assuntos Estudantis: Cludio Jos AmanteDiretor do Centro de Cincias da Educao: Wilson Schmidt

    Curso de Licenciatura Letras-Portugus na Modalidade a DistnciaDiretor da Unidade de Ensino: Felcio Wessling MargottiChefe do Departamento: Izabel Christine SearaCoordenadoras de Curso: Roberta Pires de Oliveira e Zilma Gesser NunesCoordenador de Tutoria: Renato Miguel BassoCoordenao Pedaggica: LANTEC/CEDCoordenao de Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem: Hiperlab/CCE

    Comisso EditorialTnia Regina Oliveira RamosIzete Lehmkuhl CoelhoMary Elizabeth Cerutti Rizzati

  • Equipe de Desenvolvimento de Materiais

    Laboratrio de Novas Tecnologias - LANTEC/CEDCoordenao Geral: Andrea LapaCoordenao Pedaggica: Roseli Zen Cerny

    Produo Grfica e HipermdiaDesign Grfico e Editorial: Ana Clara Miranda Gern; Kelly Cristine SuzukiCoordenao: Thiago Rocha Oliveira, Laura Martins RodriguesAdaptao do Projeto Grfico: Laura Martins Rodrigues, Thiago Rocha OliveiraDiagramao: Pedro Augusto Gamba e Raquel Darelli MichelonFiguras: Pedro Augusto Gamba e Raquel Darelli Michelon Capa: Raquel Darelli MichelonTratamento de Imagem: Pedro Augusto Gamba e Raquel Darelli MichelonReviso gramatical: Srgio Meira (Soma)Design InstrucionalCoordenao: Vanessa Gonzaga NunesDesigner Instrucional: Maria Luiza Rosa Barbosa

    Copyright 2011, Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSCNenhuma parte deste material poder ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrnico, por fotocpia e outros, sem a prvia autorizao, por escrito, da Coordena-o Acadmica do Curso de Licenciatura em Letras-Portugus na Modalidade a Distncia.Catalogao na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitria da

    Universidade Federal de Santa Catarina.

    Ficha Catalogrfica

    X999y Sobrenome, Nome Ttulo do Livro / Nome Sobrenome, UFSC, UAB. Florianpolis : LLV/CCE/UFSC, 2009. XXXp. : XXcm ISBN XXXXXXXX 1. xxxxxx. 2. xxxxxx. I. xxxxxx. II. xxxxxx. CDD 410

  • Sumrio

    Unidade A: ESTRUTURAS MORFOLGICAS .............................. 91 Delimitao do Objeto de Estudo ..........................................................11

    1.1 O que morfologia ..........................................................................................11

    1.2 Palavra e vocbulo ............................................................................................13

    1.3 Formas livres, formas presas e formas dependentes ...........................16

    1.4 Forma, funo, significado e classe ...........................................................18

    2 Conceitos bsicos de morfologia e princpios tericos ..................25

    2.1 Morfema, morfe e alomorfe ..........................................................................25

    2.2 Classificao dos morfemas ..........................................................................35

    2.3. Anlise mrfica princpios bsicos e auxiliares ..................................48

    2.4 Mudana morfofonmica ..............................................................................53

    2.5 Sincronia e diacronia .......................................................................................55

    Unidade B: FLEXO NOMINAL E VERBAL ................................633 Flexo Nominal .............................................................................................65

    3.1 Morfemas flexionais (desinncias) .............................................................65

    3.2 Estrutura mrfica dos nomes .......................................................................66

    3.4 Flexo de gnero ..............................................................................................69

    3.5 Flexo de nmero ............................................................................................77

    3.6 Estrutura pronominal .....................................................................................81

    4 Flexo Verbal ..................................................................................................87

    4.1 Estrutura verbal .................................................................................................87

    4.2 Padro geral de flexo verbal .......................................................................91

    4.3 A lgica dos temas verbais ............................................................................98

    4.4 Verbos irregulares ou desvios do padro geral ....................................101

    UNIDADE C: O LXICO ................................................................. 109

    O Lxico ........................................................................................... 1095 Formao dos Vocbulos .......................................................................111

  • 5.1 Os processos de formao de vocbulos ...........................................111

    5.2 Tipos de derivao ..........................................................................................113

    5.3 Composio ......................................................................................................126

    5.4 Outros processos de formao de vocbulos ......................................133

    6 Classificao dos Vocbulos Formais .................................................147

    6.1 A classificao das palavras de acordo com a NGB ............................147

    6.2 Revisando conceitos ......................................................................................148

    6.3 A proposta de Mattoso Cmara Jr. ............................................................150

    Unidade D: MORFOLOGIA GERATIVA .................................... 1577 Conceitos Bsicos da Morfologia Gerativa .......................................159

    7.1 A teoria gerativa transformacional ...........................................................159

    7.2 A morfologia gerativa ...................................................................................160

    Referncias ........................................................................... 167GLOSSRIO BSICO DE MORFOLOGIA LINGUSTICA ................................169

  • Apresentao

    Q uando elaboramos este texto, tivemos a inteno de oferecer a voc, aluno de graduao em Letras, um guia de estudos da mor-fologia do portugus, seguindo de perto a orientao de Mattoso Cmara Jr. e as contribuies de Jos Lemos Monteiro. Visando a alcanar esse objetivo, fizemos um esforo para que os tpicos fossem apresentados e or-denados de forma didtica, em linguagem acessvel e complementados com outras referncias e exerccios.

    A nossa expectativa que, no final do curso, o aluno esteja capacitado a utilizar os princpios de anlise morfolgica para descrever estruturas de palavras da lngua portuguesa, identificando diferentes tipos de morfemas e sua distribui-o, distinguindo os processos de flexo, composio e derivao. Tambm esperamos que o aluno seja capaz de reconhecer diferentes critrios utilizados na classificao de palavras.

    De antemo alertamos que a adoo de um modelo descritivo, cuja perspec-tiva a anlise sincrnica, no est isenta de problemas, mas, de outro lado, temos a convico de que outros modelos tambm apresentam restries e no do conta de todos os fatos. Nesse sentido, no temos a pretenso de esgotar todas as questes que fazem parte do programa da disciplina, mas, certamente, a leitura atenta das explicaes, ancorada em exemplos diversos, a reflexo e o reforo de outros textos possibilitaro novos conhecimentos sobre a gramtica da lngua portuguesa, no que diz respeito morfologia. No temos a pretenso de oferecer um conhecimento pronto e acabado, dogmtico e inquestionvel, mas, sobretudo, instrumentalizar ( Olha um neologismo a!) o aluno a des-crever a lngua, focalizando as palavras e suas estruturas, isto , as formas.

    Organizamos o material impresso em sete captulos, a saber: Delimitao do objeto de estudo (Cap. I); Conceitos bsicos e princpios tericos (Cap. II); Flexo nominal (Cap. III); Flexo verbal (Cap. IV); Formao de palavras (Cap. V); Classificao dos vocbulos formais (Cap. VI); e Conceitos bsicos da morfologia gerativa (Cap. VII). A ideia , num primeiro momento, fami-liarizar o aluno com o instrumental terico adotado e com os conceitos para, depois, fazer o caminho da descrio dos vocbulos, com informaes sobre os mecanismos de flexo e sobre os processos de formao de palavras. Por

  • fim, desenvolver uma reflexo crtica sobre a classificao tradicional dos vo-cbulos e introduzir alguns conceitos da chamada morfologia gerativa.

    Para o melhor acompanhamento da disciplina, sugerimos que a leitura deste material impresso seja sempre subsidiada por consultas aos livros Estrutura da Lngua Portuguesa, de Joaquim Mattoso Cmara Jr., e Morfologia Portuguesa, de Jos Lemos Monteiro. Alm disso, sugerimos que os modelos aqui propos-tos sejam sempre confrontados com os modelos propostos pelas gramticas escolares, pois os fatos, em muitos aspectos, podem ser descritos e explicados de forma conflitante, ou incompleta, abrindo espao para questionamentos e reflexes.

    Felcio Wessling Margotti

    Rita de Cssia Mello Ferreira Margotti

  • Unidade AEstruturas Morfolgicas

  • Captulo 01Delimitao do objeto de estudo

    11

    1 Delimitao do Objeto de Estudo

    Para iniciar nosso estudo, vamos delimitar as tarefas da morfologia e quais as unidades da lngua que pretendemos descrever. Tambm vamos

    refletir sobre a relao que a morfologia tem com outras unidades da gramtica.

    1.1 O que morfologia

    Entre os diferentes nveis de anlise lingustica, que vo desde as unidades mais amplas do discurso, como as frases e as partes que a compem, at as unidades menores, como os sons e as slabas, h um nvel intermedirio que visa estudar as unidades da lngua que apre-sentam certa autonomia formal, representadas concretamente pelas entradas lexicais nos dicionrios, isto , as palavras. Tambm parte desse mesmo nvel de anlise o estudo das unidades de sentido que compem as palavras. Trata-se do nvel morfolgico.

    O termo morfologia foi inicialmente empregado nas cincias da natureza, como a botnica e a geologia. Na constituio do termo mor-fologia encontram-se os elementos [morf(o)] e [logia], do gr. morph = forma e loga = estudo. Em estudos lingusticos, morfologia a parte da gramtica que descreve a forma das palavras. Ou ainda: morfologia o estudo da estrutura interna das palavras (JENSEN apud MONTEIRO, 2002, p. 11). Segundo Nida (1970, p. 1), a morfo-logia pode ser definida como o estudo dos morfemas e seus arranjos na formao das palavras.

    Como se depreende das definies acima, saber de que se ocupa a morfologia implica saber o que se entende por forma, tomada como sinnimo de estrutura, cujas partes so os morfemas. Inicialmente, va-mos adiantar que toda estrutura contm elementos relacionados. Nes-sa perspectiva, as palavras so formadas por unidades menores que, combinadas, produzem um significado. Essas unidades de sentido so

    Ao final do livro voc encontra um glossrio dos termos de morfologia utilizados nese livro-texto!

  • Morfologia do Portugus

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    combinadas de um certo modo para exercer determinadas funes na estrutura formal da qual fazem parte. O mesmo ocorre com as pala-vras, que, combinadas com outras palavras, exercem funes no enun-ciado em que so empregadas. Isso significa dizer que forma, funo e sentido so elementos solidrios e interdependentes, cuja existncia em separado s possvel no plano abstrato.

    A morfologia aborda, portanto, predominantemente os processos nos quais se acrescenta um segmento a outro(s) j existente(s) para modificar o sentido. No entanto, os processos morfolgicos podem ser de outros tipos, como: alternncia de um segmento por outro, sub-trao, reduplicao, ausncia (morfema zero). Vejam-se exemplos de processos morfolgicos por acrscimo em (1) e de alternncia em (2).

    1) legal < i + legal < i + legal + idade

    plano > plano + s

    diretor < diretor + a

    estudar < estudar + re + mos

    2) pude pde

    av av

    fiz fez

    Os processos morfolgicos so realizados de acordo com cer-tas regras gramaticais. Veja-se, por exemplo, que as unidades que mar-cam o nmero (singular e plural) ocorrem sempre na posio final das palavras. Nos verbos, as unidades tm uma distribuio fixa: a unida-de bsica do sentido + vogal temtica + desinncia modo-temporal + desinncia nmero-pessoal. O gnero feminino s vezes marcado pela desinncia [-a], que ocorre na posio final, ou imediatamente antes do [-s], quando a palavra estiver no plural.

    Ateno: A oposio de gnero av/av, no entanto, feita atra-

    vs de um trao suprassegmental, isto , pela alternncia de vogais.

  • Captulo 01Delimitao do objeto de estudo

    13

    Nos casos em que no h oposio de gnero, as formas femininas

    no so marcadas. Em casa, face, flor, entre outros vocbulos,

    nada existe para indicar que os mesmos pertencem ao gnero fe-

    minino.

    Alm dos processos que dizem respeito formao de palavras e flexo, temas que abordaremos adiante, cabe tambm morfolo-gia apesar de no haver consenso sobre isso entre os especialistas a classificao das palavras. A questo que na classificao de palavras devem ser considerados, alm dos critrios formais de competncia da morfologia, tambm critrios sintticos e semnticos. Isso porque nem sempre possvel classificar uma palavra examinando exclusivamente sua forma. O vocbulo canto, por exemplo, pode ser um substantivo ou um verbo, dependendo da funo e do sentido em que empregada. Nesse caso, o que conta a relao sintagmtica, isto , a combinao com outros termos na frase, ou no sintagma. De outra parte, convm lembrar que qualquer forma pode ser um substantivo, como, por exem-plo, No gosto do intransigir, em que o vocbulo intransigir tem a funo de substantivo.

    possvel que vrias coisas ditas at aqui paream estranhas a voc, ou de difcil compreenso. natural, uma vez que estamos apenas ini-ciando a reflexo sobre os temas de interesse dessa disciplina. Lembra-mos, todavia, que essas questes sero retomadas oportunamente com mais profundidade e detalhamento.

    Por enquanto, levando em considerao o que j foi dito, analise a frase citada em (3) e reflita sobre os tpicos relacionados a seguir.

    3) Ns convocamos o encontro de amanh para debater os temas relacionados s reas de transporte, infraestrutu-ra, equipamentos comunitrios, educao, lazer, esporte e segurana nos municpios de Santa Catarina.

  • Morfologia do Portugus

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    1.2 Palavra e vocbulo

    Como vimos, o centro de interesse da morfologia a palavra. Mas o que se entende por palavra? Para os usurios da lngua, parece mais ou menos claro que a palavra identificada como uma unidade formal da linguagem, que, sozinha ou associada a outras, pode constituir um enun-ciado (PETTER, 2003, p. 59). No entanto, para os estudiosos da lngua, no to simples caracterizar o que uma palavra. Vejamos por qu.

    Na escrita, a representao das palavras se faz pelo critrio for-mal, deixando-se, entre elas, um espao em branco. Deste modo, parece bvio que em Vi trs crianas hoje h quatro palavras, ao passo que em Comprei livros interessantes h uma sequncia formada por trs palavras. Mas, ao contrrio do que parece primeira vista, o critrio grfico, ou ortogrfico, s vezes, gera indeciso quanto delimitao de palavras. Em enunciados como os de (4), quantas palavras existem?

    4) a) Ouvia, ouvias, ouvamos e ouviam so formas do verbo ouvir.

    b) Segunda-feira dia de maria-vai-com-as-outras.

    c) O Vice-Governador de Santa Catarina sul-rio-grandense.

    d) Trouxe-o fora.

    Se na escrita, o espao em branco entre as palavras vlido para

    A frase formada por quantas palavras?

    Quais as palavras da frase que podem ser segmentadas em unidades de sentido menores?

    Em que palavras h elementos marcadores de plural?

    Em que palavras h elementos marcadores de gnero?

    Em que palavras h elementos marcadores de tempo?

    Em que palavras h elementos marcadores de pessoa?

    H palavras que no aceitam acrscimo de elementos e, por isso, so classificadas como invariveis?

  • Captulo 01Delimitao do objeto de estudo

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    identificar a maior parte delas, o mesmo no se presta para identificar palavras na fala, na qual possvel distinguir vocbulos formais e vo-cbulos fonolgicos. Certas sequncias de sons podem ser associadas a um s vocbulo formal, ou a mais de um, conforme o contexto e o significado que a elas se atribui. Vejamos alguns exemplos em (5).

    5) a) detergente / deter gente

    b) armarinho / ar marinho

    c) barganhar / bar ganhar

    d) contribuir / com tribo ir

    e) danoninho / d no ninho

    f) habilidade / hbil idade

    Em um dos jornais de Santa Catarina, certo colunista, ao escre-ver uma nota sobre o cantor sambista Zeca Pagodinho, no se sabe se propositalmente ou no, registrou a forma Zeca Padinho que, fonologi-camente, pode ser interpretada como Z Capadinho.

    O vocbulo fonolgico no s se distingue do vocbulo formal em razo da diferena de significado, mas tambm e, principalmente, devido ausncia de pausa ou de marca fonolgica que indique a deli-mitao entre vocbulos na corrente da fala, como em (6). Nesses casos, em geral, ocorre um deslocamento do acento tnico, que perde, assim, sua capacidade de distinguir e delimitar palavras.

    6) a) paz slida [pazlida]

    b) as asas azuis [azazazuis]

    c) bonde andando [bondeandando]

    d) as rosas amarelas [azrozazamarelas]

    At aqui, empregamos indistintamente palavra ou vocbulo para designar um conjunto ordenado de sons (fonemas) que expressam um significado. Analisemos, ento, as sequncias de sons expressadas em (7).

    7) A janela de vidro.

    Para obter maiores infor-maes sobre vocbulo fonolgico, sugerimos ler o captulo VII A acentua-o e o vocbulo fonolgi-co do livro A Estrutura da Lngua Portuguesa (CMA-RA JR., 1972)

    Apesar das diferenas ci-tadas no quadro-destaque seguinte, a distino entre vocbulos e palavras ser mantida, neste livro-texto, somente nos casos em que se fizer necessria. De modo geral, empre-garemos um termo pelo outro.

  • Morfologia do Portugus

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    Nesse caso, constata-se que janela significa, por exemplo, aber-tura de casas e vidro o material de que feita a janela. Ambos os termos esto associados e ambos expressam ideias. Mas, ao contrrio, a e de parecem vazios de significado, embora tenham uma funo na combinao apresentada em (7).

    1.3 Formas livres, formas presas e formas dependentes

    A identificao dos chamados vocbulos formais e a consequen-te diferenciao entre palavras e vocbulos leva distino estabelecida por Bloomfield entre formas livres e formas presas. Para melhor com-preender a diferena entre formas livres e formas presas, vamos exami-nar os vocbulos formais em (8).

    8) Juzes convocam servidoras pblicas.

    As formas livres aparecem sozinhas no discurso, especialmente como respostas a perguntas. So vocbulos formais que podem ser pro-nunciados isoladamente e, mesmo assim, expressam ideias. Por isso, so consideradas palavras. Exemplos: juzes, convocam, servidoras, pbli-cas. Em contrapartida, as formas presas s tm valor (ou funcionam) quando combinadas com outras formas livres ou presas. Em juze-s, o [s] uma unidade formal que indica plural. Esse sentido, isto , a ideia de plural, s atualizado na relao que a forma [s] tem com a forma [juze]. Como [s], nesse caso, no funciona sozinho, diz-se que forma

    Com base nessa distino, o termo palavra costuma ser reserva-do somente para vocbulos que apresentam significao lexical, ou extralingustica. O princpio adotado o seguinte: Toda pala-vra vocbulo, mas nem todo vocbulo palavra (MONTEIRO, 2002, p. 12). H, portanto, vocbulos, tais como as preposies e conjunes, entre outros, que no so palavras. So apenas ins-trumentos gramaticais, cujo significado que meramente gra-matical s possvel perceber na relao com outros vocbulos.

    FORMAS LIVRES: Quando constituem uma sequn-

    cia que pode funcionar isoladamnte como comu-

    nicao suficiente (ex.: Que vo fazer?. Resposta:

    replantar. Replantar o qu? Resposta: flores).

    FORMAS PRESAS: S fun-cionam ligadas a outras,

    como re- de replantar, rever, recriar etc. (CMARA

    JR., 1979, p. 69-70).

  • Captulo 01Delimitao do objeto de estudo

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    presa. O mesmo pode-se dizer sobre as formas [juze] e [e], ao passo que juiz forma livre. Resumindo: Em juzes, distinguem-se duas formas livres (juiz e juzes) e trs formas presas [juize], [e], [s].

    Considerando ento o que foi dito sobre o vocbulo juzes e a seg-mentao das unidades de sentido dos demais vocbulos, quantas for-mas livres e quantas formas presas existem em (8)?

    Outros exemplos:

    in-cert-ez-a (2 formas livres = incerteza e certeza e 4 formas presas = [in], [cert], [ez] e [a])

    des-leal (2 formas livres = leal e desleal e 1 forma presa = [des])

    des-lea-i-s (2 formas livres = leais e desleais e 4 formas presas = [des], [lea], [i] e [s])

    des-control-ad-a-s (4 formas livres = controlada, controladas, descontrolada e descontroladas e 5 formas presas = [des], [con-trol], [ad], [a] e [s])

    H, por outro lado, certos vocbulos formais que no tm significa-do prprio. Observe a frase (9).

    9) No caderno com arame h trs folhas de papel em branco.

    Nesse caso, os vocbulos no (em + o), com, de, em no expressam ideias externas lngua. So, portanto, vocbulos formais, mas no so palavras. Para Mattoso Cmara Jr. (1972), vocbulos tonos (artigos, preposies, algumas conjunes e pronomes oblquos tonos) que no podem constituir, por si s, um enunciado, so formas dependentes. Servem de exemplo: em, o, te, se, quer (conjuno), para (preposio) etc. J vocbulos tnicos, como j, si, quer (verbo), cem, caboclo, arma,: pra (verbo) etc. so formas livres.

    Resumindo: os vocbulos formais podem ser formas livres (so vocbulos com status de palavras) ou formas dependentes (so vocbulos, mas sem status de palavras).

  • Morfologia do Portugus

    18

    As formas dependentes no se segmentam em outras unidades de

    sentido, isto , so sempre formadas por um nico morfema (veja,

    no Cap. II deste livro, o conceito de morfema), ao passo que as for-

    mas livres so constitudas de um ou mais morfemas, representados

    por formas livres ou formas presas.

    1.4 Forma, funo, significado e classe

    A seguir, vamos tentar entender um pouco melhor o conceito de forma, uma vez que ela o centro das atenes da morfologia (literal-mente o estudo das formas, no caso, das formas lingusticas).

    1.4.1 Forma

    Macambira (1982, p. 17) define a forma como um ou mais fo-nemas providos de significao; a conjuno e uma forma constituda por apenas um fonema, que sob o aspecto semntico exprime a ideia de adio; o adjetivo s tambm uma forma constituda por um s morfema, que denota a ideia de solido, ao passo que ss contm duas formas s e s , cujo segundo elemento acrescenta a noo de plural.

    A rigor, a forma um elemento lingustico do qual se abstrai a funo e o sentido, mas, como observa Saussure (1975 [1916]), as formas e as funes so solidrias e, para no dizer impossvel, difcil separ-las. Do mesmo modo, ainda conforme Saussure, no possvel separar o sentido, pois, na lngua no se pode isolar o som da ideia, nem a ideia do som.

    A noo de forma remete para a noo de estrutura das pala-vras, isto , um feixe de relaes internas (articulao) que d aos ele-mentos sua funo e sentido. Talvez seja mais fcil de entender o que uma estrutura lingustica atravs de um exemplo no lingustico.

    Vejamos: tijolos, tbuas, cimento, pregos e outros materiais no so uma casa. S sero se a essas substncias for atribuda uma estrutura, isto , um feixe de relaes (articulao) que d ao objeto casa sua rea-

  • Captulo 01Delimitao do objeto de estudo

    19

    lidade. O mesmo se pode dizer em relao a elementos da lngua. Para a gramtica da lngua portuguesa, a sequncia a, b, c no constitui uma slaba do portugus, pois os fonemas no se articulam de acordo com padres possveis da lngua. BAC , no entanto, uma sequncia adequada. Exemplo: bac-t-ria. Tambm no so possveis, por exem-plo, as sequncias s + a + bel, livros + os ou os + alunas. A gram-tica do portugus prev que as desinncias de nmero ocorram aps as desinncias de gnero (quando houver), e que essas ocorram aps os morfemas lexicais (bel + a + s). Os artigos, por sua vez, devem ocorrer obrigatoriamente antes dos substantivos, embora seja possvel interca-lar outros elementos entre o artigo e o substantivo (os [bons] livros). Por outro lado, o artigo tende a concordar em gnero e nmero com o substantivo (a[s] aluna[s]). Isso significa que no basta agrupar aleato-riamente as substncias da lngua para que tenhamos uma estrutura. preciso faz-lo de acordo com certos princpios, certas regras gramati-cais. Quando a combinao feita de acordo com a gramtica da lngua, as substncias lingusticas passam a ser formas, com funo e sentido na estrutura de que fazem parte.

    A morfologia, como vimos, tem como foco de interesse a articula-o das formas que se reportam ao significado, tanto externo lngua (morfemas lexicais), quanto interno (morfemas gramaticais). Em alun-a-s, o segmento [alun] refere-se a um tipo de indivduo que se coloca na condio de aprendiz em circunstncias especficas, ao passo que os segmentos [a] e [s], aps [alun], no representam nenhum significado externo lngua, pois as noes de gnero (masculino e feminino) e as de nmero (singular e plural) fazem parte da gramtica, no das coi-sas que existem independentemente da lngua. Devemos adiantar que a noo de gnero no se confunde com sexo, embora tambm se preste, eventualmente, para fazer tal distino.

    1.4.2 Funo

    Funo o papel exercido por um dos componentes lingusticos no conjunto em que h interdependncia: sujeito (do verbo), objeto direto (do verbo), adjunto adnominal (de um nome) etc.

    Funo, ento, a relao que se estabelece entre dois elementos

    Trataremos melhor disso oportunamente, no Cap-tulo 3.

  • Morfologia do Portugus

    20

    que se articulam. Essa relao, no entanto, s pode ser definida pela anlise. Isto quer dizer que no h funo fora do contexto frasal, ou seja, no h funo fora da estrutura.

    Em geral, funo uma relao sinttica em que um termo da orao est subordinado a outro termo da orao. No entanto,

    em sentido mais largo, o fonema contrai uma funo em relao

    a outro fonema, uma slaba contrai uma funo em relao a ou-

    tra slaba, um morfema contrai uma funo em relao a outro

    morfema, um vocbulo contrai uma funo em relao a outro

    vocbulo etc.

    Para melhor entendermos a funo dos componentes no nvel morfolgico da lngua portuguesa, examinemos os exemplos dados em (10).

    10) a) tom-a-re-mos

    b) professor-a-s

    c) in-feliz-mente

    Os constituintes mrficos (morfemas) de tomaremos so 4: [tom] representa o morfema bsico ou raiz que se combina com outros mor-femas derivacionais ou flexionais: [a] indica a primeira conjugao do verbo em oposio s segunda e terceira conjugaes; [re] indica o tempo e o modo do verbo (futuro do presente do indicativo) em opo-sio a outros tempos verbais; [mos] indica a pessoa gramatical e o nmero.

    Sendo assim, no caso dos vocbulos professoras e infelizmente, qual a funo dos constituintes (morfemas)?

    1.4.3 Sentido

    Dissemos antes que as formas se reportam ao sentido, tanto ex-terno lngua (morfemas lexicais), quanto interno (morfemas grama-ticais). Lexical o sentido bsico que se repete em todos os membros de um paradigma, como em belo, bela, belos, belas, embelezar, embelezo,

    Observe que em re-tom-a-re-mos, o [re] colocado

    no incio do verbo tem funo distinta do [re] colocado aps a vogal

    temtica [a].

  • Captulo 01Delimitao do objeto de estudo

    21

    embelezas, embeleza, embelezamento, beleza, beldade, belamente, entre outros, que se concretiza na forma [bel] e cujo sentido pode ser mo-dificado pelos prefixos e sufixos. Gramatical o sentido que distingue os diversos membros de um paradigma, como o singular e o plural, o masculino e o feminino, as pessoas e os tempos verbais.

    1.4.4 Classe

    As classes de palavras so constitudas com base nas formas que assumem, nas funes que exercem e, eventualmente, no sentido que expressam.

    A classificao das palavras deve basear-se primariamente na for-ma, isto , nas oposies formais ou mrficas que a palavra pode assu-mir para certas categorias gramaticais - o que se chama flexo, ou para criao de novas formas - o que se chama derivao.

    O portugus rico em construes formais. Veja-se: pedra, pedras, pedrinha, pedrinhas, pedregulho, pedrada, pedreira etc. Os verbos so os que apresentam maior riqueza.

    Quando as indicaes formais no forem suficientes, usa-se o crit-rio sinttico para fazer a classificao dos vocbulos. Neste caso, deve-se buscar na relao das formas lingusticas entre si, isto , na funo, a indicao da classe. Por exemplo, a diferena entre de (prep.) e d (verbo) s possvel verificar na relao sinttica. A forma ele pode ser pronome ou substantivo conforme a relao com outras formas. Toda-via, quando pronome, existem outras subcategorias, tais como prono-me pessoal do caso reto ou pronome pessoal do caso oblquo. E se for pronome oblquo, pode ser oblquo tnico ou oblquo tono. Essas di-ferentes funes so dadas pela posio que a forma ocupa no sintagma ou pela relao com outros termos.

    Analise os diferentes empregos em (11):

    11) a)A letra ele se parece com uma lngua. (substantivo)

    b)Ele disse que as orelhas servem para ouvir vaias e aplausos. (pronome reto)

    c)Mande a ele algumas fotos nossas. (pronome oblquo tnico)

  • Morfologia do Portugus

    22

    d)Encontrei ele por acaso. (pronome oblquo tono).

    Como se observa, o critrio sinttico tambm til para de-terminar quais os empregos de cada classe gramatical. Assim, possvel estabelecer os empregos do substantivo, do verbo, do pronome, do adje-tivo etc.

    Alm do critrio morfolgico e do critrio sinttico, a classifi-cao dos vocbulos pode, ainda, valer-se do critrio semntico, isto , do sentido. Em (12), a classe da palavra canto s possvel pelo sentido.

    12) Este canto me agrada muito. Ele parece imitar as vozes do ser-to.

    Este canto me agrada muito. Ele serve para destacar os mveis da sala.

    Resumo do captulo

    De forma resumida, os principais tpicos deste captulo so os se-guintes:

    Morfologia a parte da gramtica que descreve a forma das palavras.

    A morfologia aborda predominantemente os processos nos quais se acrescenta um segmento a outro(s) j existente(s) ou se substitui um elemento por outro para modificar o sentido. No primeiro caso, o morfema aditivo; no segundo, alternati-vo.

    Alm dos processos que dizem respeito formao de palavras e flexo, cabe tambm morfologia a classificao das pala-vras.

    Os vocbulos divergem quanto estrutura e quanto ao signifi-cado: alguns se constituem de um s elemento, outros apresen-tam vrios constituintes.

    O vocbulo morfolgico nem sempre coincide com o vocbulo fonolgico. O termo vocbulo tem sentido mais amplo do que o termo palavra, pois este costuma ser reservado somente para

  • Captulo 01Delimitao do objeto de estudo

    23

    vocbulos que apresentam significao lexical.

    Formas livres so aquelas que podem existir sozinhas num enunciado, ou podem servir de resposta a uma pergunta; for-mas presas so partes dos vocbulos formais (morfemas) que s funcionam quando associadas a outras partes (outros mor-femas); formas dependentes so vocbulos formais que no podem, por si ss, constituir um enunciado.

    Forma, funo e sentido so elementos lingusticos solidrios e interdependentes, cuja separao s possvel no nvel abs-trato. Sendo assim, apesar de a morfologia centrar a ateno na forma, o estudo e a descrio dos vocbulos, assim como a classificao dos mesmos, no podero ser feitos plenamente sem considerar os aspectos semnticos e os sintticos.

    Leia mais!

    A Acentuao e o Vocbulo Fonolgico. In: CMARA JR., J. Mattoso. A Estrutura da lngua portuguesa. Petrpolis: Vozes, 1979. p. 62-68.

    O Vocbulo Formal e a Anlise Mrfica. In: CMARA JR., J. Mattoso. A Estrutura da lngua portuguesa. Petrpolis: Vozes, 1979. p. 69-76.

    Princpios Bsicos. In: MACAMBIRA, Jos Rebouas. A estrutura mor-fo-sinttica do portugus. So Paulo: Pioneira, 1982. p. 15-28.

  • Morfologia do Portugus

    24

  • Captulo 02Conceitos bsicos de morfologia e princpios tericos

    25

    2 Conceitos bsicos de morfologia e princpios tericos

    Neste captulo, vamos entrar em contato com um conjunto de conceitos comuns morfologia. Alm disso, apresentaremos alguns princpios tericos e metodolgicos que daro sustentao ao modelo de descrio e anlise dos vo-cbulos formais adotado neste manual. Conhecer esses conceitos e saber lidar

    com eles condio necessria para alcanar os objetivos da disciplina. Isso pode parecer um pouco cansativo, pois so diversos conceitos novos, alguns dos quais talvez voc nunca tenha ouvido falar. Mas, com pacincia e um pouco de esforo, aos poucos voc ficar familiarizado com eles e aprender a utiliz-los

    de modo eficiente na anlise mrfica.

    2.1 Morfema, morfe e alomorfe

    Na descrio mrfica dos vocbulos, til distinguir os conceitos de morfema, morfe e alomorfe, os quais, apesar da ntima relao de sentido, representam noes distintas.

    De acordo com o que vimos at aqui, a morfologia estuda a for-ma ou a estrutura interna dos vocbulos. A estrutura constituda de unidades formais menores associadas e dotadas de significado que se denominam morfemas.

    Os morfemas so, em princpio, formados por um ou mais fone-mas, mas diferem destes por apresentarem significado. Como se pode perceber facilmente, os fonemas, quando pronunciados isoladamente, nada significam. Exemplos: /m/, /a/, /r/, /i/, /s/ etc. Diferentemente dis-so, as combinaes [mar], [ar], [mais] constituem unidades mnimas de significado.

    Apresentamos, a seguir, algumas definies de morfema citadas por Monteiro (2002, p. 13-14). So elas:

    a) Os morfemas so os elementos mnimos das emisses lingus-ticas que contm um significado individual (Hockett).

  • Morfologia do Portugus

    26

    b) Um morfema a unidade mnima no sistema de expresso que pode ser correlacionada diretamente com alguma parte do sis-tema do contedo (Gleason).

    c) Os morfemas so as menores unidades significativas que po-dem constituir vocbulos ou partes de vocbulos (Nida).

    d) Morfema a menor parte indivisvel da palavra que, por sua vez, tem uma relao direta ou indireta com a significao (Dokulil).

    Rigorosamente, no entanto, morfema uma unidade abstrata de sentido, representada por uma ou mais formas, ou seja, na prtica, um morfema pode apresentar variaes formais. Assim, se observarmos os vocbulos dizer, disse, digo e direi, parece evidente que h em todos um mesmo morfema que se realiza nas formas [diz], [diss], [dig] e [di]. A realizao concreta de um morfema se denomina morfe e, quando h mais de um morfe para o mesmo morfema, ocorre alomorfia.

    Alomorfes so, portanto, as diversas realizaes de um nico morfe-ma, ou vrios morfes. O verbo caber, por exemplo, apresenta um morfe-ma bsico ou nuclear que se realiza concretamente nos alomorfes [cab], [caib], [coub]. Em vida e vital, o morfema bsico se realiza nos alomor-fes [vid] e [vit]. Todavia, a alomorfia no um fenmeno exclusivo do morfema bsico, ou raiz. Se considerarmos as formas verbais de terceira pessoa do plural do verbo nascer, por exemplo, veremos que predomi-nam as formas que terminam em [m], como em nascem, nasceriam, nasceram, nascessem, nascerem, nasam etc. Mas, no futuro do pre-sente do indicativo, temos a forma nascero. Conclui-se, ento, que o morfema da terceira pessoa do plural desse verbo isso vale tambm para a maioria dos verbos em portugus realizado concretamente atravs dos morfes [m] e [o]. Nesse caso, a alomorfia ocorre na flexo.

    Apresentamos a seguir alguns tipos de alomorfia, nos quais se per-cebe facilmente a identidade semntica, isto , identidade de sentido, entre as formas aparentadas.

    a) Alomorfia na raiz

    lei / legal [le] ~ [leg]

  • Captulo 02Conceitos bsicos de morfologia e princpios tericos

    27

    carvo / carbonfero [carv] ~ [carbon]

    cabelo / capilar [cabel] ~ [capil]

    noite / noturno [noit] ~ [not]

    ouro / ureo [our] ~ [aur]

    b) Alomorfia no prefixo

    ilegal / infeliz [i] ~ [in]

    aposto / adjunto [a] ~ [ad]

    subaqutico / soterrar [sub] ~ [so]

    c) Alomorfia no sufixo

    durvel / durabilidade [vel] ~ [bil]

    cabrito / amorzito [ito] ~ [zito]

    faclimo / elegantrrimo [imo] ~ [rrimo]

    livrinho / pauzinho [inho] ~ [zinho]

    d) Alomorfia na vogal temtica

    corremos / corrido [e] ~ [i]

    peo / pees [o] ~ [e]

    menino / menina [o] ~ []

    mar / mares [] ~ [e]

    e) Alomorfia na desinncia nominal de gnero

    menino / av [] ~ []

    menina / av [a] ~ []

    Obs.: No par av av, os traos distintivos [] e [] podem ser considerados alomorfes das desinncias [] (masculino) e [a] feminino.

    f) Alomorfes na desinncia verbal

    estudvamos / estudveis [va] ~ [ve]

  • Morfologia do Portugus

    28

    cantars / cantaremos [ra] ~ [re]

    escreves / escreveste [s] ~ [ste]

    falo / estou [o] ~ [ou]

    ledes / cortais [des] ~ [is]

    Como voc pode perceber, a adoo do conceito de alomorfia sim-plifica bastante a descrio mrfica, resolvendo grande parte dos pro-blemas encontrados na segmentao dos vocbulos em suas unidades mnimas significativas. Como j foi dito, todo morfema apresenta uma forma e um significado. s vezes, no entanto, em determinados am-bientes, ocorrem variaes na forma sem que o morfema deixe de ser o mesmo (MONTEIRO, 2002, p. 32). Na lista dos cognatos de vinho, en-contraremos os vocbulos vinhateiro, vinhceo, vinhao, vinhaa, vi-nhataria, vinhoto, nos quais a raiz [vinh]. Mas em vincola, vinfero, vinicultor, vinagre, verifica-se que a forma anterior mudou para [vin-], conservando o mesmo significado. Conclui-se, ento, que [vinh] e [vin] so variaes mrficas de um mesmo morfema, ou seja, alomorfes.

    Nos casos de alomorfia, quase sempre possvel distinguir o morfe mais produtivo, isto , mais frequente, que representa a norma, do mor-fe menos produtivo, considerado um desvio da norma. Como exemplo, tomemos a desinncia de segunda pessoa do singular dos verbos. Na maioria dos tempos verbais, ela marcada pelo morfe [s]: corres, ves-tias, fugisses, animars, digitares, vendes etc.; no pretrito perfeito do indicativo, no entanto, essa mesma pessoa marcada pela desinncia [ste], como em correste, vestiste, fugiste, animaste, digitaste, vendeste, caracterizando-se, pois, como um desvio da norma.

    Alguns autores consideram que apenas os morfes menos produti-

    vos, classificados como desvios da norma, so considerados alomor-

    fes. Essa posio, no entanto, pode apresentar dificuldades de apli-

    cao, pois nem sempre possvel saber de pronto qual a forma

    mais produtiva, como o caso de [vinh] e [vin]. Por outro lado, a for-

    ma que se considera mais produtiva pode ser a mais nova, e, como

    tal, na perspectiva diacrnica, pode ser interpretada como desvio de

    uma norma anterior.

  • Captulo 02Conceitos bsicos de morfologia e princpios tericos

    29

    Na prtica, a aplicao do conceito de alomorfia nem sempre tran-quila, principalmente quando as formas no se parecem aparentadas ou semelhantes fonologicamente. Em princpio, no h razo que impea um morfema de ter alomorfes amplamente divergentes. Tomemos as for-mas verbais sou, era, foste do paradigma flexional do verbo ser. Ser que vlido dizer que os morfes [s], [er] e [fo] so alomorfes de um mesmo morfema? Parece que sim, desde que se considere que as formas divergen-tes listadas sejam componentes do mesmo paradigma verbal.

    preciso, no entanto, distinguir formas heternimas de formas sinni-mas. No paradigma flexional dos verbos ser e ir existem razes heternimas, que podem ser consideradas formas alomrficas. Em se tratando de razes sinnimas, o caso mais delicado. Ser vlido dizer, por exem-plo, que o primeiro componente de datilografia alomorfe do primei-ro componente de dedo? E o que dizer da raiz de pai, padastro, padre, patro, paterno, ptrio, ptria?

    Voc deve ter notado que os exemplos fornecidos at aqui indicam

    que o morfema sempre se realiza atravs de uma forma concreta, que

    denominamos de morfe. Pois bem, s vezes o morfema se realiza mes-

    mo sem a existncia de um morfe. Vamos ver como isso possvel?

    2.1.1 Morfema zero

    J vimos que o morfema uma entidade abstrata que se concretiza, na estrutura de uma palavra, atravs do morfe. O ideal seria que houves-se um nico morfe para cada morfema, mas isso nem sempre acontece. Alm das situaes em que existem mais de um morfe para um nico morfema processos de alomorfia , temos que considerar aquelas em que o morfema se realiza por meio da ausncia de morfe. No existir um morfe no significa que no exista morfema. Quando a ausncia do mor-fe corresponde a um significado, diz-se que o morfema zero. Vejamos alguns exemplos.

    a) A oposio de gnero se faz atravs de formas marcadas para o feminino pela desinncia [a] e de formas no marcadas para o masculino. O que caracteriza o masculino a ausncia de

    Veremos isso mais adian-te, quando tratarmos dos desvios do padro geral dos verbos.

    Formalmente representa-se o morfema zero com o smbolo [].

  • Morfologia do Portugus

    30

    qualquer marca, ou seja, o morfema zero.

    portugus + portugus + a

    professor + professor + a

    guri + guri + a

    juiz + juz + a

    espanhol + espanhol + a

    b) O plural marcado pelo [s], e o singular pela ausncia signifi-cativa de um morfe, ou seja, pelo morfema zero.

    caneta + caneta + s

    gramado + gramado + s

    greve + greve + s

    garagem + garagen + s

    c) Nas formas verbais so frequentes as oposies entre formas no marcadas e formas marcadas.

    (ns) estud + a + re + mos

    (ele) estud + a + r +

    (tu) estud + a + + s

    (ele) estud + a + +

    d) Tambm nas formas derivadas, o sufixo pode ser interpretado como zero. Vejamos, por exemplo, alguns verbos derivados de flor.

    flor + esc + e + r

    flor + ej + a + r

    flor + isc + a + r

    flor + e + a + r

    flor + + i + r

  • Captulo 02Conceitos bsicos de morfologia e princpios tericos

    31

    flor + + a + r

    Observe-se que, diferentemente de florescer, florejar, floriscar e florear, os verbos florir e florar no contm um morfe derivacional, mas claramente so formas derivadas de flor. Nesse caso, a alternativa estruturalmente adequada considerar que o morfema derivacional zero.

    Vejamos outros exemplos:

    chuva chov + + er

    data dat + + ar

    marca marc + + ar

    capim capin + + ar

    e) Embora a raiz seja considerada o morfema bsico (nuclear) que d sustentao a todas as demais formas da mesma famlia, sejam elas flexionadas, derivadas ou compostas, tambm pode-mos afirmar que h vocbulos em que a raiz representada por um morfema zero. Em portugus, o artigo definido e o prono-me oblquo tono [o] servem de exemplo.

    + o + + = o

    + o + + s = os

    + + a + = a

    + + a + s = as

    Convm lembrar que historicamente o artigo definido em portu-

    gus resultado de mudanas sofridas pelos pronomes latinos llu,

    llos, lla, llas. A evoluo deu-se da seguinte forma: llu > elo > lo >

    o; lla > ela > la > a; llos > elos > los > os; llas > elas > las > as. Em outras lnguas neolatinas, a raiz se manteve em formas como: il, el,

    le, les, los, las etc.

  • Morfologia do Portugus

    32

    2.1.2 Morfes cumulativos

    Em princpio, espera-se que a um morfe corresponda um signifi-cado. No entanto, nem sempre isso que acontece. Nas formas verbais do portugus h morfes que representam a fuso de dois morfemas. Por isso, esses morfes so denominados cumulativos. o caso das desinn-cias modo-temporais, que simultaneamente contm as noes de tempo e modo, e das desinncias nmero-pessoais, que simultaneamente con-tm as noes de nmero e pessoa. Em cant+sse+mos, a desinncia [sse] indica que o verbo est no tempo imperfeito do modo subjunti-vo. Em razo disso, ope-se a outros tempos verbais, como: canta(va), canta(ria), canta(ra), canta(r)mos etc. Ainda em cant+sse+mos, a desinncia [mos] indica primeira pessoa plural, opondo-se, portanto, a outras formas do singular ou mesmo do plural, como: cantasse(), cantasse(s), cantasse(is), cantasse(m). Observe que, no caso da desinn-cia nmero-pessoal [mos], no possvel dizer que o [s] indica plural e [mo] indica primeira pessoa.

    Na forma verbal olhaste, a segmentao possvel a seguinte: olh + a + + ste. Concretamente, temos os morfes representativos da raiz (ou radical primrio), da vogal temtica e da desinncia nmero-pesso-al. Como podemos observar, no h um morfe que represente o tempo e o modo, razo por que esse morfema zero. Por outro lado, a desi-nncia [ste], que representa a pessoa e o nmero, s ocorre nesse tempo verbal. Em vista disso, pode-se atribuir ao segmento [ste] a funo de representar cumulativamente as noes de pessoa e nmero e de tempo e modo (o mesmo vale para o segmento [stes] da segunda pessoa do plural).

    Considerar a possvel existncia de morfes zeros na estrutura dos vocbulos evita o uso ampliado do conceito de cumulao. Se no utilizssemos o conceito de morfema zero, teramos que admitir, por exemplo, que em famoso a vogal final [o] acumula as funes de vogal temtica e desinncia de gnero. O mesmo aconteceria em relao vogal [e] na palavra face. No artigo, diramos que raiz, vogal temtica e desinncia de gnero seriam representadas pelo mesmo fonema. Em artista, o [a] final acumularia as funes de vogal temtica e desinn-cia?

  • Captulo 02Conceitos bsicos de morfologia e princpios tericos

    33

    2.1.3 Morfes alternantes

    Em portugus, o morfema se realiza predominantemente pelo acrscimo de um segmento fnico, isto , por meio de um morfe aditivo. Assim, o plural dos nomes formado pela adjuno de um [s] direita; a terceira pessoa do plural em geral formada pelo acrscimo de [m] tambm direita. Vocbulos novos podem ser formados pelo acrscimo de prefixos ou de sufixos.

    Mas tambm h casos em que a oposio morfolgica se faz pela permuta de dois fones, como se pode verificar nos seguintes exemplos:

    av av

    pus ps

    fiz fez

    pude pde

    tive teve

    fui foi

    Os morfes alternantes podem ser de natureza voclica, consonantal ou suprassegmental (acentuais ou prosdicos), conforme se verifica nos exemplos listados a seguir.

    a) alternncia voclica

    firo feres

    sinto sentes

    tudo todo

    bebo bebes

    famoso famosa

    porco porca

    b) alternncia consonantal

    digo dizes

  • Morfologia do Portugus

    34

    ouo ouves

    peo pedes

    trago trazes

    c) alternncia acentual (suprassegmental)

    retfica retifica

    exrcito exercito

    2.1.4 Morfes redundantes

    Quando a alternncia o nico trao de oposio entre duas for-mas, diz-se que se trata de um mecanismo de flexo interna. Em geral, no entanto, os morfes alternantes so redundantes ou submorfmicos, pois reforam uma oposio marcada por morfes aditivos. Por exemplo, em poo poos, a alternncia de // fechado para // aberto apenas refora a oposio entre singular e plural, j marcada pelo verdadeiro morfema contrastivo [s]. Tambm em sogro sogra, famoso famosa, porco porca, entre outros, a oposio de gnero se faz pela adio da desinncia [a]. A alternncia na raiz constitui um morfe redundante e, por isso, submorfmico. O mesmo ocorre em algumas formas verbais como: ouo ouves, trago trazes, nas quais a oposio entre a primei-ra e a segunda pessoas do singular se faz prioritariamente pelo acrsci-mo dos morfes [o] [s]. A alternncia na raiz refora a oposio. Sem essa alternncia, teramos: *ouvo ouves, *trazo trazes.

    2.1.5 Morfes homnimos

    comum um mesmo segmento representar diferentes morfemas. O [s], por exemplo, pode indicar o plural nos nomes (alicates, cachorros, gaiteiros, belos etc.) e a segunda pessoa do singular nos verbos ((tu) es-creves, vs, enviarias, escutasses etc.). A vogal [a], por sua vez, pode indi-car o gnero feminino (moa, professora, esperta, vadia etc.) ou a vogal temtica de nomes e de verbos (andar, anda, andamos, planta, casa, mala etc.). Em (tu) am-a-s, temos: raiz [am-], vogal temtica [-a-] e desinncia de segunda pessoa do singular [-s]. J em (as) am-a-s, temos: raiz [am-], desinncia de gnero feminino [-a] e desinncia de plural [-s].

  • Captulo 02Conceitos bsicos de morfologia e princpios tericos

    35

    Conclui-se, portanto, que existe homonmia sempre que houver coincidncia de formas, mas diferena quanto ao sentido. Em (o) canto (musical), (o) canto (da sala) e (eu) canto (verbo cantar), os termos des-tacados so fonicamente iguais, ou seja, so homnimos, mas corres-pondem a significados diferentes. A forma so pode significar santo, sadio ou verbo ser (terceira pessoa do plural).

    Havendo homonmia lexical, a oposio das formas deixa de ser feita com base no plano morfolgico, fazendo-se necessrio recorrer ao plano sinttico para esclarecer a ambiguidade. Quando o contexto inca-paz de desfazer a ambiguidade, a tendncia da lngua eliminar uma das formas. por isso, por exemplo, que no existe co correspondente ao singular de cs, ou falo do verbo falir, ou pulo de polir, ou remo de remir.

    Pelo exposto, convm distinguir os casos de homonmia gramati-cal (morfes fonologicamente iguais) da homonmia lexical (vocbulos fonologicamente iguais).

    Levando em conta as explicaes sobre homonmia, quais so os morfes homnimos nos exemplos a seguir?

    (o) canto (eu) canto

    terrestre terrvel

    vivemos amemos

    vivamos amamos

    Ser que voc entendeu a diferena entre morfema, morfe e alomor-fe? Tambm est clara a diferena entre diversos tipos de morfes? Se no, leia tudo outra vez com bastante ateno, identificando outros exemplos existentes no portugus. Cumprida essa etapa, hora de voc se inteirar das diversas classes de morfemas e das respectivas regras de ordenamen-to. Novamente, convm ler com bastante ateno, correlacionando os conceitos com os exemplos dados e com outros existentes na lngua.

    2.2 Classificao dos morfemas

    Em princpio, todo vocbulo contm um morfema primitivo, tam-bm denominado morfema bsico ou nuclear, ao qual podem se agregar

  • Morfologia do Portugus

    36

    outros morfemas. Apresentamos a seguir uma classificao dos morfe-mas que leva em conta a ordem de ocorrncia, a funo e o sentido.

    2.2.1 Raiz

    Raiz (R) o elemento irredutvel comum a todos os vocbulos da mesma famlia (SAUSSURE, 1975, p. 216). Equivale a semantema de Vendryes, ou lexema de Andr Martinet. Trata-se do morfema sobre o qual repousa a significao lexical bsica. Tambm conhecido por ra-dical primrio, ou forma primitiva. Em cortin-a-s, por exemplo, exis-tem trs morfemas: raiz, vogal temtica, desinncia de nmero.

    Para melhor entender o conceito de raiz, analisemos os seguintes conjuntos:

    1) terra, terreno, terrestre, aterrar, aterrissagem, aterramento

    2) mar, mar, marinho, marinha, marujo, marinheiro, maresia, submarino, marola, martimo, marisco

    Em (1), o elemento comum terr-, razo por que todos os vocbu-los so aparentados, formando um conjunto de cognatos. J em (2), o elemento comum mar. Como se v, no h nenhuma relao de forma e de significado entre os conjuntos (1) e (2), pois ambos se opem: [terr-] [mar].

    Por outro lado, a coincidncia de forma no significa coincidncia de significado. Vejamos o conjunto a seguir:

    3) terror, terrvel, aterrorizar... terrfico

    Em (3), o morfema bsico (raiz) tambm [terr-], mas no o mesmo morfema do conjunto (1), pois no h entre os dois qualquer vnculo de significao.

    Analisemos, todavia, os seguintes conjuntos:

    4) amor, amar, amvel, amoroso, amizade, desamor, amigo... amante

    5) inimigo, inimizade... inimizar

    Nos conjuntos (4) e (5) h divergncias quanto forma, mas

  • Captulo 02Conceitos bsicos de morfologia e princpios tericos

    37

    equivalncia de significado, de tal modo que [am-] e [im-] so alomor-fes de um mesmo morfema.

    Conclui-se, portanto, que o significado essencial no conceito de

    raiz, pois a alterao na forma no cria nova raiz. Isso no quer di-

    zer, todavia, que desnecessrio o vnculo formal para a caracteri-

    zao da mesma raiz. A associao semntica existente entre, por

    exemplo, casa, moradia, apartamento, alojamento, cabana, vivenda, chal, entre outros, formando uma srie de sinnimos, no uma srie de cognatos, pois inexiste entre esses vocbulos

    qualquer relao mrfica (MONTEIRO, 2002, p. 44).

    Para fixar a noo de raiz como elemento irredutvel e comum a to-dos os vocbulos de uma mesma famlia, destacamos os seguintes pontos:

    A raiz a parte de onde origina-se a primeira operao mor-folgica.

    A raiz , em geral, uma forma presa, portadora de significao nuclear.

    A raiz apresenta forma e significado, podendo agregar elemen-tos diversos para a flexo e formao de cognatos.

    A raiz irredutvel, mas a forma pode sofrer variaes em ou-tros vocbulos (processo de alomorfia).

    Considerando o exposto acima, a identificao da raiz de camisoli-nhas se faz atravs das seguintes segmentaes:

    a) camisolinha s

    b) camisolinh a s

    c) camisol inh a s

    d) camis ol inh a s

    2.2.2 Radical

    O radical (Rd) de uma palavra inclui a raiz e os elementos afixais

  • Morfologia do Portugus

    38

    que entram na formao dos vocbulos. Assim, a srie mar, marinho, marinheiro, marinheiresco apresenta, respectivamente, os seguintes radicais:

    [mar] radical de primeiro grau (= raiz)

    [marinh] radical de segundo grau

    [marinheir] radical de terceiro grau

    [marinheiresc] radical de quarto grau

    Na perspectiva sincrnica, a raiz (R) coincide com o radical (Rd) primrio.

    Na descrio lingustica, necessrio desprezar especulaes de or-

    dem etimolgica ou histrica, pois entendemos, com base em Saus-

    sure (1975), que todas as partes devem ser consideradas em sua so-

    lidariedade sincrnica. A descrio dos elementos mrficos deve-se

    pautar na gramtica internalizada dos falantes de uma lngua, no

    em informaes de ordem externa. Voltaremos a tratar disso mais

    adiante.

    Tratando-se, no entanto, de palavra derivada, o radical diferente da raiz. Infere-se da a possibilidade de uma palavra ter vrios radicais, como demonstrado atravs do seguinte exemplo:

    nacion- (radical de primeiro grau ou raiz)

    nacional (radical de segundo grau)

    nacionaliz- (radical de terceiro grau)

    desnacionaliza- (radical de quarto grau)

    desnacionaliza- (radical de quinto grau)

    Convm salientar que o verdadeiro radical de uma palavra sem-pre o de grau mais elevado, que inclui todos os demais. Essa orientao, alm de simplificar o estudo descritivo da estrutura dos vocbulos, traz a vantagem de estabelecer uma espcie de oposio binria raiz x radical

  • Captulo 02Conceitos bsicos de morfologia e princpios tericos

    39

    na formao vocabular, aclarando a delicada questo dos constituintes imediatos (MONTEIRO, 2002, p. 46). Apesar de nos vocbulos primi-tivos haver coincidncia entre ambos, o que deve ficar claro que raiz e radical so conceitos bem distintos.

    2.2.3 Vogal temtica e tema

    Vimos que, nos vocbulos primitivos, raiz e radical se confundem. s vezes, o radical (primrio ou derivado) vem acompanhado de uma vogal tona, que se denomina vogal temtica. Esse conjunto formado por radical e vogal temtica constitui o tema. Os vocbulos com vogal temtica so temticos; os que no contm vogal temtica so atemti-cos. Em geral, so atemticos os nomes que tm na posio final uma vogal tnica ou uma consoante.

    Em portugus, os temas se classificam em nominais e verbais. Os temas nominais sempre terminam em vogal tona; os verbais, no entan-to, podem apresentar vogais temticas tnicas.

    Os temas nominais predominantes em portugus so os seguin-tes:

    a) Temas em /a/: conversa, alma, garrafa, geada

    b) Temas em /o/: certo, afoito, repolho, cavalo, vero

    c) Temas em /e/: alface, alicate, mestre, campestre

    Os temas verbais tambm distribuem os verbos em trs grupos:

    a) Temas em /a/: emoldurar, falar, passear

    b) Temas em /e/: ceder, esconder, anoitecer

    c) Temas em /i/: corrigir, descobrir, esculpir

    Pelo exposto, vocbulos como bambu, amanh, caf, cip, ma-racuj, abacaxi, carter, feliz, agressor, convs, cartaz, lenol, termi-nados em vogal tnica ou consoante, so atemticos. H, no entanto, uma ressalva a fazer em relao aos que terminam com as consoantes /l/, /s/, /r/ e /z/, tais como cnsul, ingls, mar e rapaz. Nesses casos, a vogal temtica aparece no plural: cnsules, ingleses, mares e rapazes. Em

  • Morfologia do Portugus

    40

    razo disso, as formas no singular devem ser interpretadas teoricamente como *cnsule, *inglese, *mare e *rapaze. s vezes, a vogal temtica [e] transforma-se em [i] no plural em razo de processos morfofonmi-cos. Exemplo: *animale > animales > animaes > animais. H casos em que a vogal temtica, depois de transformar-se em /i/, sofre crase com a vogal do radical, como em: *fuzile > fuziles > fuzies > fuziis > fuzis. O vocbulo fuzis deve, portanto, ser analisado como tendo apenas dois morfes: [fuzi]s].

    Cabe ressaltar que nos processos de flexo, derivao e composi-o, a vogal temtica, em contato com elementos mrficos iniciados por vogal, sofre eliso ou crase. Exemplos:

    a) casa + ebre = casaebre casebre

    b) pedra + ada = pedraada pedrada

    c) menino + a = meninoa menina

    d) forte + ssimo = fortessimo fortssimo

    e) *finale + ssimo = finalessimo finalssimo

    Quando a vogal temtica se mantiver aps o acrscimo de sufixos derivacionais, passando a ocupar uma posio pr-sufixal, deixa de ser vogal temtica e passa a funcionar como vogal de ligao (ou infixo). Exemplos:

    a) alegremente

    b) mezinha

    c) ervateiro

    d) legalidade (de *legale)

    O mesmo princpio se aplica aos nomes derivados de verbos. Exemplos:

    a) louvar louvvel

    b) punir punvel

    c) perdoar perdovel

  • Captulo 02Conceitos bsicos de morfologia e princpios tericos

    41

    Resumindo as informaes sobre radical e temtica, Jos Lemos

    Monteiro (2002, p. 51-52) lista as seguintes noes bsicas:

    O tema a parte da palavra que se ope flexo.

    O tema desprovido da vogal temtica o radical.

    O radical formado pela raiz e morfemas derivacionais (prefixos e sufixos), se houver.

    Entre os elementos que formam o radical, s vezes apa-recem morfes vazios.

    A vogal temtica ocorre em posio final ou pr-desi-nencial; a vogal de ligao pr-sufixal.

    2.2.4 Morfema derivacional

    So considerados morfemas derivacionais os afixos, atravs dos quais possvel criar (derivar) vocbulos novos. Os prefixos so morfes aditivos que precedem a raiz e, ao contrrio, os sufixos so morfes aditi-vos que sucedem a raiz. Assim, de cerveja possvel formar cervej-ada, cervej-aria, cervej-eiro etc.; de farra, farr-ista; de mole, mol-ejo; de fiel, in-fiel; de capaz, in-capaz; de incapaz, incapac-idade. Normalmente a derivao se faz pela adio individual de prefixos e sufixos, de modo que uma palavra derivada se forma pelo acrscimo de um prefixo, ou de um sufixo, a uma forma livre j existente. A palavra vergonhosa-mente deriva de vergonh-oso, que, por sua vez, deriva de vergonha.

    Os morfemas derivacionais e os categricos so sempre formas pre-

    sas que se combinam com o semantema. Dito de outra forma: so

    morfes agregados a uma base que constitui a entidade lxica.

    Veja outros exemplos a seguir:

    a) norma + al normal

    b) normal + izar normalizar

  • Morfologia do Portugus

    42

    c) normalizar + ao normalizao

    d) normal + mente normalmente

    e) a + normal anormal

    f) normal + idade normalidade

    g) a + normalidade anormalidade

    2.2.4.1 Prefixos

    Os prefixos, morfemas derivacionais que ocupam posio anterior raiz, modificando o significado do vocbulo primitivo, apresentam as seguintes caractersticas:

    a) Destacam-se facilmente da forma primitiva, e o que resta , em geral, uma forma livre. Exemplos: [in] + capaz, [ds] + con-fiana, [in] + [dis] + posto;

    Convm observar, no entanto, que muitos vocbulos formados his-

    toricamente por prefixao devem hoje ser consideradas como pri-

    mitivos, ou sem prefixo, uma vez que os falantes deixaram de perce-

    ber a relao de sentido com a forma primitiva. Servem de exemplo:

    objeto, sujeito, oferecer, eclipse, biscoito, subterfgio, de-rivar. Nesses vocbulos, no h como separar, respectivamente, os elementos [ob], [su], [o], [e], [bis], [sub] e [de], pois o que sobra no faz sentido.

    b) Quase sempre alteram substancialmente o significado da raiz. Na palavra correto, a adio do prefixo [in] representar exa-tamente o sentido oposto;

    c) No se prestam para indicar categorias gramaticais, como g-nero, nmero, tempo, modo e pessoa;

    d) Comumente se agregam a verbos e a adjetivos;

    e) Em geral, no mudam a classe gramatical dos vocbulos. O verbo continua sendo verbo, o nome continua sendo nome etc. Exemplos: leitura [re] + leitura, pr [com] + por, confor-

  • Captulo 02Conceitos bsicos de morfologia e princpios tericos

    43

    to [des] + conforto, sacivel [in] + sacivel;

    Os vocbulos parassintticos, nos quais a derivao se faz pelo

    acrscimo simultneo de prefixo e sufixo, so exceo a esse prin-

    cpio. Todavia, nesses casos o novo sentido dado pelo sufixo e no

    pelo prefixo.

    f) Certos prefixos so empregados tambm como formas livres. Exemplos: contra, extra, sobre. s vezes, essas formas corres-pondem a construes braquiolgicas, isto , construes nas quais os prefixos adquirem autonomia morfolgica. Exemplos: Pagamentos extras (extraordinrios); Cursar o pr (pr-vesti-bular); Participar do pan (pan-americano).

    2.2.4.2 Sufixos

    Em contraposio, os sufixos apresentam as seguintes caractersti-cas:

    a) Nem sempre se destacam com facilidade. Em condutor, por exemplo, primeira vista o sufixo poder ser [tor]. Mas, aps realizar uma srie de oposies entre formas aparentadas, che-ga-se concluso de que o sufixo de fato [or], principalmente devido existncia da forma precedente conduto;

    b) Aps destacar o sufixo, quase sempre o que sobra uma forma presa: dent + [uo], bol + [eto], significat + [iva], ded + [al] etc.;

    c) Nunca so empregados como formas livres, exceto os casos de derivao imprpria nos quais o morfema aditivo perde seu ca-rter de sufixo: O imperialismo e outros ismos;

    d) No alteram fundamentalmente a significao da raiz: sapat(o) + [eiro], sapat(o) + [aria], sapat(o) + [ada], sapat(o) + [o], sapat(o) + [inho];

    e) Muitos sufixos se prestam para mudar a classe ou a funo da palavra. Assim, [izar] transforma nomes (substantivos e adje-

  • Morfologia do Portugus

    44

    tivos) em verbos: real realizar, energia energizar, canal canalizar. O sufixo [mente] modifica adjetivos em advrbios: sbio sabiamente, difcil dificilmente;

    f) So assistemticos, isto , no se aplicam a todas as formas pri-mitivas;

    O sufixo [udo] serve para formar barrigudo, orelhudo, bocu-do, cabeudo, peitudo, cabeludo etc., mas estranho em *so-brancelhudo, *pernudo, *dedudo, *joelhudo, *sovacudo etc.

    g) Formam uma classe aberta que se presta criao diria de neologismos, como o caso dos verbos em [iz(ar)]: otimizar, ambientalizar, descapitalizar, horizontalizar, criminalizar etc. Foi com base neste princpio que Carlos Drummond de Andrade, no poema Caso Pluvioso, criou os seguintes neo-logismos:

    chuvssima criatura,

    chuvadeira maria,

    chuvil, pluvimedonha,

    as fontes de maria mais chuvavam,

    atro chuvido,

    tal chuvncia ;

    h) No so obrigatrios, pois os sentidos que representam podem ser expressos atravs de outros meios de natureza sinttica: solenemente (de modo muito solene), empreendedor (quem empreende muito), fofoqueiro (que faz fofocas) etc.

    Na segmentao dos sufixos, preciso ter certa cautela para no in-correr em decises arbitrrias. Convm sempre considerar o contedo semntico do sufixo para uma adequada segmentao. Quando surgem dificuldades de interpretao, deve-se recorrer ao princpio da alomor-

  • Captulo 02Conceitos bsicos de morfologia e princpios tericos

    45

    fia. Vejamos alguns exemplos:

    Do substantivo rei forma-se o adjetivo real, do qual se deriva o substantivo realeza. Em vista disso, a segmentao de realeza ser [re] + [al] + [ez] + [a]. Mas o mesmo princpio no se apli-ca a fortaleza, porque inexiste a forma terminada em [al]. Por isso, a segmentao de fortaleza ser [fort] + [alez] + [a], sendo [alez] alomorfe de [ez].

    Se em luarada temos [lu] + [ar] + [ad] + a, com dois sufixos derivacionais, em cusparada s possvel identificar o sufixo derivacional [arad] como alomorfe de [ad].

    Certos verbos, como vimos, so formados com o sufixo [iz(ar)] acrescido ao adjetivo. Assim, ridculo daria ridiculizar. No entanto, o que se tem ridicularizar. O jeito considerar a forma [ariz(ar)] um alomorfe de [iz(ar)]. Do mesmo modo, em contemporizar no possvel interpretar /or/ como sufixo. Por isso, [tempor] deve se considerado alomorfe de [temp(o)], jus-tificando a seguinte segmentao: [con] + [tempor] + [iz] + [a] + [r].

    Em geral, o termo sufixo empregado para designar morfemas de-rivacionais, isto , morfemas que se prestam para a formao de novos vocbulos, mas h autores que incluem entre os sufixos os morfemas fle-xionais. Entres esses autores, cita-se Monteiro (2002, p. 57), que afirma:

    quanto funo gramatical, h dois tipos de sufixo, conforme sirvam ao

    mecanismo da derivao ou da flexo. Os que formam novas palavras

    so denominados derivacionais (SD) ou lexicais (SL). Os que apenas per-

    mitem que os vocbulos variem em gnero e nmero (quando nomes)

    ou em modo, tempo, nmero e pessoa (quando verbos) so chamados

    flexionais (SF) ou desinncias (D).

    Considerando que os morfemas derivacionais e os morfemas fle-xionais tm caractersticas e funes distintas, preferimos consider-los em separado.

    2.2.5 Morfema categrico

    Os morfemas categricos, que incluem todos os sufixos flexionais

  • Morfologia do Portugus

    46

    (SF) ou desinncias (D), expressam as categorias gramaticais. Como tal, no derivam novos vocbulos, mas servem para traduzir noes grama-ticais de gnero, nmero, pessoa, tempo e modo. Quando representam categorias de gnero ou de nmero, so desinncias nominais; quan-do representam categorias de tempo e modo ou de nmero e pessoa, so desinncias verbais. Em peru-a-s, o [a] a desinncia nominal de gnero feminino e o [s] a desinncia nominal de plural. J em vende-re-mos o segmento [re] a desinncia verbal de futuro do presente do indicativo e [mos] a desinncia verbal de primeira pessoa do plural.

    Em resumo, ento, podemos dizer que os sufixos flexionais indi-cam as seguintes categorias gramaticais dos vocbulos:

    velh + [a] categoria de gnero

    carta + [s] categoria de nmero

    vi + [mos] categoria de nmero e pessoa

    fize + [sse] categoria de modo e tempo

    De modo geral, os sufixos flexionais ou desinenciais, em contraste

    com os sufixos derivacionais, tm as seguintes caractersticas:

    No criam vocbulos novos;

    So sistemticos, isto , aplicam-se a todos os vocbu-los de uma determinada classe (por exemplo: todos os nomes so marcados quanto ao gnero e ao nmero e todos os verbos so marcados quanto ao modo, tempo, nmero e pessoa);

    So obrigatrios, pois no h alternativas para marcar certa categoria gramatical;

    Formam um grupo reduzido e fechado;

    Sujeitam-se ao vnculo da concordncia: substantivo femi-nino plural impe aos determinantes (artigos, adjetivos, pronomes adjetivos, numerais adjetivos) a concordncia

  • Captulo 02Conceitos bsicos de morfologia e princpios tericos

    47

    no feminino e no plural; sujeito da orao na primeira pessoa do plural impe concordncia do verbo na pri-meira pessoa do plural;

    So morfes arbitrrios cujo sentido s se revela no am-biente morfossinttico no qual eles aparecem. O morfe [s] em posio final de nomes (moleque + [s], novia + [s]) em geral representa o plural, ao passo que em final de verbos (tu fala + [s], tu finge + [s]) representa a se-gunda pessoa do singular.

    2.2.6 Morfema relacional

    Os morfemas relacionais caracterizam-se como formas dependen-tes, isto , vocbulos sem autonomia mrfica, pois, como j vimos, no constituem por si s um enunciado. A classe dos morfemas relacionais formada pelas preposies, conjunes e pronomes relativos. Exemplos: Viajei de carro; Vim, vi e venci; As regras que transcrevi esto obsoletas.

    2.2.7 Morfema classificatrio ou vogal temtica

    Fazem parte deste grupo os morfemas que nada parecem acres-centar ao significado. Tais morfemas so representados por segmentos formais aos quais no corresponde, aparentemente, nenhum significado e, por isso, so tambm designados de morfes vazios. Convm, no en-tanto, considerar que o fato de no traduzirem nenhuma ideia ou noo extralingustica no significa necessariamente no terem nenhum valor semntico, mesmo que esse valor seja meramente gramatical. Servem apenas para distribuir os vocbulos em classes ou categorias. So as vo-gais temticas nominais, como em garot-o, canet-a, fac-e e as vogais temticas verbais, como em cant-a-r, vend-e-r, ment-i-r. Assim, os trs primeiros exemplos pertencem classe dos nomes; e os trs ltimos, classe dos verbos.

    A funo do morfema classificatrio situar o vocbulo num pa-radigma, que um conjunto de unidades lingusticas que se excluem umas s outras por sistemas de oposio. Ou: paradigma um conjunto

    Os vocbulos relacionais no se segmentam mor-ficamente, devendo ser considerados estruturas de um nico morfema.

  • Morfologia do Portugus

    48

    de unidades ausentes que poderiam substituir aquela que est presente na cadeia sintagmtica.

    2.2.8 Vogal de ligao e consoante de ligao

    Em portugus, as vogais e consoantes de ligao, de que servem de exemplo vocbulos como cha-l-eir-a, louv--vel, vest-u-ri-o, so consideradas casos de interfixao. Sendo assim, esses elementos no so tidos como morfemas, havendo tendncia de incorpor-los aos su-fixos que os seguem ou aos radicais que os antecedem (MONTEIRO, 2002, p. 60). No entanto, resta um problema: no existe critrio defini-do e adequado para essa incorporao. Em cafe-t-eir-a, por exemplo, o [-t-] deve fazer parte do sufixo [-teir(a)] ou fazer parte do radical [ca-fet-]? Do mesmo modo, em vend--vel, o [-i-] deve fazer parte do sufixo [-vel] ou do radical [vendi-]?

    Alm disso, afirma Monteiro (2002, p. 60), no se admitindo o in-terfixo como um morfe segmentvel, o nmero de alomorfes cresce as-sustadoramente, o que contraria o princpio da economia e da simplici-dade descritiva. Sendo assim, apesar da alegada falta de significao das vogais e consoantes de ligao, prefervel segment-las como morfes.

    Estruturalmente, as vogais e consoantes de ligao ocupam um po-sio pr-sufixal, isto , entre o radical e um sufixo derivacional. Em geral as vogais de ligao eram vogais temticas no vocbulo que serviu de base para a derivao de outro vocbulo.

    2.3. Anlise mrfica princpios bsicos e auxiliares

    As formas livres e as formas dependentes constituem, como vimos, os vocbulos mrficos. Do que se disse, deve ter ficado claro que o voc-bulo mrfico tanto pode constituir-se de uma unidade indivisvel (um s morfema, ou seja, vocbulo unimorfmico), quanto pode ser com-posto de duas os mais unidades menores (dois ou mais morfemas).

    Resta saber, ento, como proceder para destacar cada um dos mor-femas constitutivos do vocbulo mrfico. Primeiramente, preciso con-

  • Captulo 02Conceitos bsicos de morfologia e princpios tericos

    49

    siderar que os morfemas so unidades de significao, ou seja, s faz sentido segmentar se o segmento corresponder a uma significao. Em segundo lugar, deve-se fazer a comutao com outros vocbulos para identificar as unidades em contraste, segundo o princpio da oposio.

    A seguir, veremos em que consiste a comutao, com vistas seg-mentao dos morfemas.

    2.3.1 Comutao

    A comutao consiste numa operao contrastiva por meio de per-muta de elementos para a qual so necessrias: a) a segmentao do vocbulo em subconjuntos e b) a pertinncia paradigmtica entre os subconjuntos que vo ser permutados. Comutao troca de um ele-mento no plano da expresso de que resulta uma alterao no plano do contedo.

    No exemplo a seguir a comutao feita no nvel fonolgico.

    / l a r / (lar)

    / m a r / (mar)

    / m a l / (mal)

    / m e l / (mel)

    / f e l / (fel)

    Na comutao, em qualquer nvel (fonolgico, morfolgico ou sin-ttico), a troca do significante implica a troca de significado.

    Para melhor entender a tcnica da comutao, imprescindvel na anlise mrfica, analise a comutao no nvel morfolgico representada a seguir:

    a) desinncias nmero-pessoais

    cantava +

    cantava + s

    cantava +

    cantva + mos

  • Morfologia do Portugus

    50

    cantave + is

    cantava + m

    b) desinncias modo-temporais

    tu canta + + s

    tu canta + va + s

    tu canta + r + s

    tu canta + ria + s

    tu canta + ra + s

    tu canta + sse + s

    tu canta + re + s

    c) raiz ou semantema de verbos

    cant + ar

    estud + ar

    cas + ar

    alarm + ar

    copi + ar

    san + ar

    cant + ar

    govern + ar

    Fazer anlise mrfica examinar e segmentar os vocbulos em par-tes providas de significao. Como tal, no se confunde com a anlise dos fonemas e das slabas, ou dos termos das oraes, no nvel sinttico, embora certas informaes fontico-fonolgicas, sintticas e mesmo se-mnticas possam ser teis para a anlise da estrutura mrfica.

    Como vimos, a principal tcnica de anlise mrfica a comutao.

  • Captulo 02Conceitos bsicos de morfologia e princpios tericos

    51

    Essa tcnica impede que as segmentaes dos vocbulos sejam fei-

    tas de modo arbitrrio. A comutao se baseia no princpio de que

    tudo no sistema lingustico oposio e consiste na substituio,

    pelo confronto, de uma forma por outra (MONTEIRO, 2002, p. 38).

    Trata-se de realizar a permuta de uma parte do vocbulo por outra e

    verificar se essa permuta produz alteraes na significao.

    Para demonstrar ainda melhor como funciona a tcnica da comu-tao, examinaremos o adjetivo novssimo e o verbo olharemos:

    novssimo

    a) novssimo + novssimo + s ( s)

    b) novssimo + novssimo + a ( a)

    c) novssim + o novssim + a + mente (o a)

    d) nov + ssimo nov + inho nov +io nov + idade (ssimo inho io idade etc.)

    e) nov + ssimo bon + ssimo, bel + ssimo (nov bom bel etc.)

    As formas mnimas encontradas foram:

    a) Raiz [nov]

    b) Radical [novssim]

    c) Vogal temtica [o]

    d) Tema [novssimo]

    e) Sufixo derivacional [ssimo]

    f) Desinncia de gnero []

    g) Desinncia de nmero []

    olharemos

    a) olhare + mos olhare + i (mos i)

  • Morfologia do Portugus

    52

    b) olha + re + mos olha + ria + mos (re ria)

    c) olh + a + re + mos olh + + e + mos ( a )

    d) olh + a + re + mos corr + e + re + mos ( a e)

    e) olh + a + re + mos estud + a + re + mos ( olh es-tud)

    As formas mnimas encontradas foram:

    a) Raiz [olh]

    b) Radical [olh]

    c) Vogal temtica [a]

    d) Tema [olha]

    e) Desinncia modo-temporal [re]

    f) Desinncia nmero-pessoal [mos]

    2.3.2 Princpios da hierarquia

    Na anlise mrfica, devemos considerar que a ordem dos consti-tuintes no meramente linear, mas hierrquica. Para entender o que isso significa, vamos examinar a formao da palavra reutilizao.

    a) [til] + [iz(ar)] utilizar

    b) [utilizar] + [ao] utilizao

    c) [re] + [utilizar] reutilizar

    d) [reutilizar] + [ao] reutilizao

    Pela ordem, do adjetivo til forma-se o verbo utilizar, derivando-se da o substantivo utilizao; e do verbo reutilizar deriva-se o subs-tantivo reutilizao. Incorreto considerar que o substantivo reutiliza-o fosse derivado de utilizao uma vez que o prefixo [re] em geral se acrescenta a bases verbais.

    Vejamos outro exemplo.

    a) suportar + vel suportvel

  • Captulo 02Conceitos bsicos de morfologia e princpios tericos

    53

    b) in + suportvel insuportvel

    O prefixo [in], com valor negativo, somente se acrescenta a bases adjetivais e no a bases verbais. Assim, haveria quebra de hierarquia se a derivao fosse feita na seguinte ordem: suportar *insuportar insu-portvel. Da mesma forma, a palavra invariavelmente constituda de invarivel + mente e no de in + variavelmente, visto que no existe o advrbio *variavelmente.

    2.3.3 Redundncia

    Redundncia um conceito bastante difundido na semntica, sen-do tambm conhecido por pleonasmo, o que significa repetio do sig-nificado: ver com os prprios olhos, subir para cima etc.

    H, por outro lado, a redundncia gramatical representada pela presena de um morfe segmental ou suprassegmental que repete o mes-mo trao gramatical. Como j vimos, a pluralizao do substantivo realizada prioritariamente pelo acrscimo da desinncia [s], mas, ha-vendo combinao com determinantes (artigos, pronomes adjetivos, adjetivos), a concordncia nominal obriga a repetio do [s]: o + [s] seu + [s] belo + [s] olho + [s] verde + [s].

    Nos verbos, a presena do pronome reto que identifica a pessoa e o nmero no exclui a necessidade da flexo e, consequentemente, da concordncia: eu fal + [o], ns fala + [mos] etc.

    Em certos casos, a redundncia gramatical representada por trs marcas distintas: o morfe flexional, a concordncia e a alternncia voc-lica. Em o sogro a sogra, a oposio de gnero marcada pelo sufixo desinencial [] ~ [a], pela concordncia [] = [] / [a] = [a] e pela alternncia das vogais [] ~[]. Em o povo os povos, a oposio de nmero marcada pelo sufixo desinencial [s], pela concordncia [] = [] / [s] = [s] e pela alternncia das vogais [] ~[].

    2.4 Mudana morfofonmica

    Chama-se mudana morfofonmica a alomorfia condicionada fo-nologicamente. So mudanas no sistema fonmico do vocbulo, com

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    repercusso no sistema mrfico. O prefixo in-, por exemplo, pode variar em i, de acordo com o ambiente fontico: incapaz, infeliz; mas imut-vel (antes de consoante nasal), ilegal (antes da consoante l) e irrelevan-te (antes da consoante r).

    Para melhor entender isso, vamos ler a explicao fornecida por Zanotto (1986, p. 40-41):

    O radical do verbo passear passe-, tono, sendo tnica a vogal tem-

    tica -a- Nas formas em que o acento tnico se antecipa para o radical,

    formas ditas rizotnicas, o radical passa a ser passei-, havendo o acrsci-

    mo do fonema -i, desfazendo o hiato (passeo) atravs da ditongao

    (passEIo). O acrscimo do fonema -i alterou o morfema, de passe-

    para passei-. , ento, uma mudana morfofonmica, uma alterao

    morfolgica de origem fonolgica.

    Essas mudanas podem acontecer por supresso de fonemas, acrs-cimo, transformao, crase.

    So exemplos de mudanas morfofonmicas:

    a) sa- + -o saIo (acrscimo do fonema /i/ ao radical com forma-o do ditongo sai-);

    b) escut- + -a- + -va- + -is escutaVEis (vogal i assimila vogal a da desinncia verbal, transformando-a em e);

    c) and- + -a- + -i andEi (vogal i assimila vogal temtica a, transformando-a em e);

    d) ave + cultor avIcultor (alterao da vogal temtica e em i);

    e) viv + i + i vivI (crase da vogal temtica i e da desinncia verbal i);

    f) in + legal Ilegal (supresso da nasal n);

    g) do + e dI (alterao da vogal temtica e em i e conse-quente formao do ditongo);

    h) quintal + s quintaIs (supresso da consoante l do radical e acrscimo de i, com formao do ditongo);

  • Captulo 02Conceitos bsicos de morfologia e princpios tericos

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    i) garot + o + a garota (supresso da vogal temtica o);

    j) p + al peDal (acrscimo da consoante d ao radical);

    k) animal + inho animalZinho (acrscimo de z ao sufixo di-minutivo inho).

    Entender os processos morfofonmicos importante, pois a maio-ria dos alomorfes deve a sua origem a esses processos.

    2.5 Sincronia e diacronia

    Antes de encerrarmos este captulo, precisamos esclare-cer um aspecto relevante, no s para a descrio morfolgi-ca, mas tambm para a descrio de outros nveis lingusticos.

    No estudo da lngua, possvel a evoluo de um estgio a outro, com vistas a identificar e descrever as mudanas ao longo de um perodo de tempo. Trata-se da perspectiva diacrnica. Por outro lado, o estudo de um estado de lngua, num determinado momento de sua evoluo, representa a perspectiva sincrnica. Dito de outra maneira, sincronia e diacronia designaro respec-tivamente um estado de lngua e uma fase de evoluo (SAUS-SURE, 1975 [1916], p. 96).

    Nossa disciplina tem como objetivo utilizar os princpios de anlise morfolgica para descrever a estrutura de vocbulos da lngua portugue-sa, distinguindo os processos de flexo, composio e derivao, alm de identificar e utilizar aspectos da teoria lexical relacionados classificao de vocbulos. Nesse sentido, interessam os fatos lingusticos como eles se apresentam no momento atual, sem especulaes de ordem histrica ou evolutiva. O que deve guiar o estudo do atual estado da lngua portu-guesa a percepo que os falantes tm dos fatos, pois, para os usurios da lngua, a sucesso desses fatos no tempo no existe.

    Fica claro, ento, que na descrio da estrutura dos vocbulos do

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    portugus desnecessrio conhecer o latim ou quaisquer outras lnguas que tenham influenciado a formao da lngua portuguesa. Com isso, no estamos afirmando que os conhecimentos relativos ao latim e tudo aquilo que diz respeito formao da lngua portuguesa so inteis. Na verdade, so altamente relevantes, mas para outros fins, distintos dos de nossa disciplina. Por outro lado, feita uma constatao de ordem sincr-nica, nada impede que a convico a respeito do fato seja reforada por informaes de ordem diacrnica. Alis, teremos oportunidade de fazer isso em situaes diversas ao longo de nosso texto.

    A segmentao dos elementos mrficos deve se pautar pela conscincia do significado, pois, perdida essa conscincia, o morfe-ma tambm se descaracteriza. Segundo Saussure, o linguista que quei-ra descrever um estado de lngua deve fazer tabula rasa de tudo quanto produziu e ignorar a diacronia (1975 [1916], p. 97).

    Vamos ilustrar esse princpio metodolgico com alguns exemplos fornecidos por Jos Lemos Monteiro (2002, p. 67-75).

    Na palavra livreiro, fcil reconhecer a raiz [livr] e o sufixo [eir(o)], indicador de profisso, sem necessidade de recorrer ao latim. Isso sin-cronia. Nesse caso, como em muitos outros, se a identificao dos mor-femas for feita com base no latim, o resultado no ser diferente. H muitos vocbulos, no entanto, cuja segmentao no to simples e a adoo de critrios diacrnicos ao invs de critrios sincrnicos muda totalmente os resultados.

    Vejamos, ento, alguns desses vocbulos:

    a) companheiro como no h conscincia de que deriva de po (aquele que come do mesmo po), sendo com um prefixo, o correto considerar que a raiz [companh].

    b) marqus em portugus, francs e outros vocbulos, ocorre o sufixo [es]. O mesmo no se pode dizer de marqus, em que no se percebe mais a existncia do sufixo. Do mesmo modo, em lembrete h conscincia do sufixo [ete], mas a conscincia desse sufixo deixou de existir em bilhete.

    c) comer se adotarmos critrios diacrnicos, veremos que a atu-

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    al raiz [com] foi outrora um prefixo, uma vez que proveio de comedere, cujos elementos constitutivos eram [com[ed]e]re]]. A raiz [ed] desapareceu completamente na evoluo para o por-tugus, em razo da queda da consoante sonora intervoclica e da crase das vogais. Por essa razo, a atual raiz do verbo comer o que antes foi prefixo.

    d) ovelha, abelha, agulha esses vocbulos eram, em certo pe-rodo da evoluo do latim ao portugus, ovicula, apicula e acucula, com sufixo diminutivo igual ao que ainda se constata em homnculo, gotcula, partcula etc. Se nestes vocbulos ainda h a percepo dos sufixos diminutivos, o mesmo no se pode afirmar sobre aqueles, sendo incorretas segmentaes como [ov] + [elh] + [a], [ab] +[elh] + [a], [ag] + [ulh] + [a].

    e) relgio, embora, fidalgo, almoxarife, Geraldo esses vocbu-los eram compostos, originalmente. Todavia, j no existe mais a conscincia dos elementos constitutivos originais, devendo os mesmos serem considerados vocbulos simples, isto , for-mados por uma nica raiz. S o estudioso de gramtica hist-rica e de etimologia sabe que tais vocbulos foram formados respectivamente por: hora + lgio, em + boa + hora, filho + de + algo, al + moxarife, gerr (guerra) + hard (forte). Casos assim muitas vezes representam emprstimos lexicais de lnguas es-trangeiras, como coquetel, nocaute, futebol, cujos significados originais se perderam totalmente.

    f) rival, sadio originalmente, essas formas derivam de rio (ri-vus) e de so (sannativu), tambm raiz de sanar. Sincronica-mente, no entanto, quem sabe disso?

    A perda da conscincia do significado pode explicar, tambm, a existncia de inmeras construes redundantes ou paradoxais.

    a) binio, trinio, quadrinio, quinqunio e decnio Em to-dos esses vocbulos, encontra-se o semantema da raiz de ano, embora modificada na forma, significando, respectivamente, dois anos, trs anos, quatro anos, cinco anos e dez anos. Mas, em anunio, h um emprego redundante (ano + ano), como se

    Esse exemplo foi citado por Cmara Jr. (1972, p. 14), segundo quem mui-tas vezes o conhecimen-to histrico, aplicado anlise sincrnica, a torna absurda.

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    [nio] fosse sufixo. Como se observa, em anunio impossvel recuperar a conscincia do significado original em [nio]. Do mesmo modo, quem diria que em solene h um morfema cor-respondente a ano. Etimologicamente, solene se refere ao que acontece uma s vez no ano.

    b) biquni a partir da falsa percepo de que biquni signifi-ca duas peas de um certo vesturio, formou-se monoquni. Ocorre que biquni metonmia do nome de um atol. Do mes-mo modo, bermudas metonmia de um topnimo.

    c) preferir as restries normativas ao emprego dos advrbios mais ou antes subordinados a esse verbo respaldam-se na for-mao latina do verbo, no qual ocorre o prefixo [pre]. No latim, de ferre formou-se praeferre. Em portugus, no entanto, no se interpreta o verbo preferir como derivado de ferir, pois este no existe com o si