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MARÍLIA ANCONA-LOPEZ (arg.) ANGELA M. R. VORCARO . CHRISTlNA CUPERTlNO . CLÁUDIA B. BRUSCAGIN . DELBA T. R. BARROS . GOHARA YVETTE YEHIA . MARCOS T. MERCADANTE . MARIA LUlZA P. MUNHÓZ . MARY D. E. SANTIAGO. SILVIA ANCONA-LOPEZ . TEREZA I. H. MITO. YARA MONACHESI PSICODIAGNOSTICO: Processo de intervenção – 2º edição – 1998 - EDITORA CORTEZ SUMÁRIO Psicodiagnóstico: uma prática em crise ou uma prática na crise? PG 9 Mary Dolores Ewerton Santiago Psicodiagnóstico: processo de intervenção? - Silvia Ancona- Lopez, PG 26 Psicodiagnóstico formal e avaliação informal - Tereza /ochico Hatae Mito, 37 Compreender ou estranhar: incidências no psicodiagnóstico - Angela Maria Resende Vorcaro, PG 51 Introduzindo o psicodiagnóstico grupal interventivo: uma história de negociações, Marília Ancona-Lopez - 65 Reformulação do papel do psicólogo no psicodiagnóstico fenomenológico-existencial e sua repercussão sobre os pais, Gohara Yvette Yehia PG 115 o psicodiagnóstico fenomenológico e os desencontros possíveis, Christina Menna Barreto Cupertino pg 135 A criança participante do psicodiagnósticoinfantil grupal . Maria Luiza Puglisi Munhóz PG 179 "Reflexões sobre o uso do psicodiagnóstico em instituições, Yara Monachesi PG 196 O processo de escolha diagnóstica em uma equipe multidisciplinar: análise das negociações - Marcos Tomanik Mercadante PG 205 Bibliografia comentada: psicodiagnóstico - Cláudia Beatriz S. Bruscagin - Delba Teixeira Rodrigues Barros PG 216 Bibliografia complementar, Claudia Beatriz S. Bruscagin, Delba Teixeira Rodrigues Barros PG 232 PSICODIAGNÓSTICO: UMAPRÁTICA EM CRISE OU UMA PRATICA NA CRISE? Mary Dolores Ewerton Santiago*

PSICODIAGNÓSTICO - PROCESSOS DE INTERVENÇÃO - ANCONA-LOPEZ M

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MARÍLIA ANCONA-LOPEZ (arg.)

ANGELA M. R. VORCARO .

CHRISTlNA CUPERTlNO .

CLÁUDIA B. BRUSCAGIN .

DELBA T. R. BARROS .

GOHARA YVETTE YEHIA .

MARCOS T.

MERCADANTE .

MARIA LUlZA P. MUNHÓZ .

MARY D. E. SANTIAGO.

SILVIA ANCONA-LOPEZ . TEREZA I. H. MITO.

YARA MONACHESI

PSICODIAGNOSTICO: Processo de intervenção – 2º edição – 1998 - EDITORA CORTEZ

SUMÁRIOPsicodiagnóstico: uma prática em crise ou uma prática na crise? PG 9Mary Dolores Ewerton Santiago Psicodiagnóstico: processo de intervenção? - Silvia Ancona-Lopez, PG 26

Psicodiagnóstico formal e avaliação informal - Tereza /ochico Hatae Mito, 37

Compreender ou estranhar: incidências no psicodiagnóstico - Angela Maria Resende Vorcaro, PG 51Introduzindo o psicodiagnóstico grupal interventivo: uma história de negociações, Marília Ancona-Lopez - 65

Reformulação do papel do psicólogo no psicodiagnóstico fenomenológico-existencial e sua repercussão sobre

os pais, Gohara Yvette Yehia PG 115o psicodiagnóstico fenomenológico e os desencontros possíveis, Christina Menna Barreto Cupertino pg 135

A criança participante do psicodiagnósticoinfantil grupal . Maria Luiza Puglisi Munhóz PG 179 "Reflexões sobre o uso do psicodiagnóstico em instituições, Yara Monachesi PG 196O processo de escolha diagnóstica em uma equipe multidisciplinar: análise das negociações - Marcos Tomanik Mercadante PG 205Bibliografia comentada: psicodiagnóstico - Cláudia Beatriz S. Bruscagin - Delba Teixeira Rodrigues Barros PG 216Bibliografia complementar, Claudia Beatriz S. Bruscagin, Delba Teixeira Rodrigues Barros PG 232

PSICODIAGNÓSTICO: UMAPRÁTICA EM CRISE OU UMA PRATICA NA CRISE?

Mary Dolores Ewerton Santiago*

Vários são os modelos adotados para obter uma compreensão ou conclusão diagnóstica sobre o paciente e, entre eles, aquele proposto por O campo e Garcia Arzeno parece norte ar o trabalho de grande parte dos profissionais da área. O fato de as referidas autoras terem sistematizado com propriedade os conceitos concernentes ao psicodiagnóstico sob uma ótica psicanalítica e oferecerem dele uma concepção ampla e enriquecedora - principalmente no que diz respeito à relação transferêncial / contratransferencial e à devolução diagnóstica ao paciente no final do processo - contribuiu para divulgar seu

trabalho em nosso meio.Ocampo e Garcia Arzeno caracterizam o psicodiagnóstico como uma prática bem delimitada, cujo objetivo é "obter uma descrição e compreensão o mais profunda e completa possível da personalidade total do paciente ou do grupo familiar. (u.) Abarca os aspectos pretéritos, presentes (diagnóstico) e futuros (prognóstico) dessa personalidade. (...) Uma vez obtido um panorama preciso e completo do caso, incluindo os aspectos patológicos e os adaptativos, trataremos de formular recomendações terapêuticas adequadas (terapia breve e prolongada, individual, de casal, de grupo familiar ou grupal; com qual freqüência; se é recomendável um terapeuta homem ou mulher, se a terapia pode ser analítica ou de orientação analítica ou então outro tipo de terapia; se é necessário um tratamento medicamentos o paralelo etc.)"I.Abarcar esta proposta, procurando realizá-Ia tal como foi formulada, facilmente mobiliza no profissional muita ansiedade, pois ele acha-se convocado a revelar um amplo e profundo conhecimento das teorias e técnicas psicológicas que dão suporte ao seu trabalho; as fantasias que permeiam e influenciam suas atitudes tendem a oscilar entre a onipotência e a impotência, principalmente se ele tem pouca experiência clínica. De fato, dar conta de compreender tantos aspectos implicados no atendimento psicodiagnóstico, em um curto período de tempo, evidencia facilmente a magnitude da tarefa e pode levar o profissional, inconscientemente, a se comprometer mais com ela do que com o seu paciente. Neste sentido, realiza entrevistas que coletem o máximo possível de informações, e o paciente, solicitado a buscar nos arquivos de sua memória fatos significativos que ajudem o psicólogo a construir uma compreensão clara sobre seus problemas, assume fundamentalmente o papel de informante.Mas o paciente busca auxílio psicológico em um momento muito particular de sua vida. Algo rompeu seu status quo psíquico, de tal modo que ele, sozinho, não consegue dar conta da situação. Sua busca denuncia a falência das medidas anteriormente tomadas para a resolução dos problemas que o afligem, assim como uma insuficiência dos sistemas explicativos que construiu sobre suas causas. É esta condição singular que exige uma atenção mais demorada de ambos os participantes, sem a precipitação de logo iniciar uma pesquisa sobre toda a história do paciente.Como, muitas vezes é a primeira modalidade de atendimento psicológico buscada pelo indivíduo, o psicodiagnóstico em uma importância significativa, não só quanto à conclusão diagnóstica, mas principalmente quanto ao modo de o psicólogo colher o paciente, relacionar-se com ele, dimensionar com certeza suas dificuldades sem torná-las o objeto único de suas Investigações. Supomos também que a busca de auxílio psicológico poderia estar revelando um momento de crise do paciente.Vejamos alguns pontos de vista sobre a crise. Moffatt, Cuja concepção psicopatológica está mais centrada nos transtornos de identidade, considera que "a crise se manifesta pela vasão de uma experiência de paralisação da continuidade do ) processo da vida"2. O que provoca a crise é o inesperado de Ima situação; se a perturbação se intensifica "há uma desconinuidade na percepção de nossa vida como uma história ;coerente, organizada como uma sucessão na qual cada uma Ias etapas é conseqüência da anterior"3. Neste contexto, o indivíduo não consegue perceber a si mesmo como aquele de mentes e nem tampouco manter uma atitude prospectiva.Simon aponta que "o essencial na geração da crise é o 'ato de o indivíduo se ver frente a uma situação nova e principalmente transformadora"4. Apoiando-se em conceitos klei-lianos, considera que "os sentimentos de intensa angústia, às rezes de pânico, que assaltam o sujeito em crise, não seriam levidos apenas à falta de solução para o novo, mas à projeção : identificação do novo com fantásticas ameaças provocadas )elas figuras

aterrorizantes das camadas do inconsciente que : mergem nesses estados de extrema tensão emocional".Estas concepções distintas, que relacionam a crise à perda da construção imaginária do tempos, ou à irrupção de ansiedades arcaicas anteriormente sob controle6 e que privilegiam diferentes tipos de crises ("crises evolutivas e traumáticas"7, "crises por perda e por aquisição"8), têm, no entanto, um denominador comum: a crise é provocada por um fato novo, inesperado, desconhecido.

O fato novo que ocorre com o paciente é que ele não está conseguindo lidar sozinho com os problemas que o afetam, que suas tentativas neste sentido foram infrutíferas. É este fato novo que provoca uma mudança no equilíbrio psíquico anterior, mantido com certas crenças acerca de si mesmo ou do mundo. "Algo" está em desacordo com elas e esse desacordo freqüentemente é acompanhado de sentimentos de dor e ansiedade, que podem despertar temores antigos e tornar ainda mais difícil a sua condição interna atual. Assim, podemos considerar que ao buscar um profissional, o paciente está em uma situação de crise.

A nosso ver, faz-se necessária, uma atitude continente e empática com o paciente, uma disposição para escutá-Io e estabelecer com ele um verdadeiro diálogo. E isso implica necessariamente incluir o paciente no processo diagnóstico de um modo diferente do que comumente ocorre, ou seja, estimulando-o a compartilhar do trabalho compreensivo em curso. Ele poderá assim vincular-se à tarefa de modo mais ativo, encontrando um outro lugar na relação que não somente o de mediador dos dados sobre sua história, e gradativamente poderá tomar contato com alguns aspectos mais manifestos de sua conduta.

Estamos familiarizados com a idéia de que o psicólogo deve incluir-se no trabalho clínico, que é sempre e fundamento.uma relação humana, fazendo uso de seus recursos intelectuais, suas emoções, suas percepções para melhor compreender o paciente. Mas ainda não atentamos suficientemente para a rotina diagnóstica, que em geral configura uma relação e uma expectativa de que o saber, o conhecimento, a atitude mental ativa durante o processo são privilégio ou dever somente do psicólogo.

Pode ocorrer que o paciente procure delegar ao profissional toda a responsabilidade de chegar a uma compreensão e explicação plausível sobre o que está lhe acontecendo, baseando-se na crença de que somente ele tem o saber e o poder de fornecer sugestões úteis. Mas esta situação é equívoca, dado que pode estar respondendo a uma necessidade defensiva .O paciente no momento. E a tendência, se o psicólogo assim permitir, é de que se estruture uma relação muito assimétrica, em que o paciente é marginalizado do processo compreensivo que vai se delineando no diagnóstico.

Dois aspectos podem ser observados aqui: primeiro, a fantasia de incompetência, de "não saber" do paciente é : compartilhada pelo psicólogo e talvez aceita por ele como Ima realidade; segundo, a expectativa ansiosa de ambos para chegar a uma compreensão dos problemas e encontrar medidas remediadoras. .

Contudo, uma relação deste gênero, baseada nas fantasias .e impotência de um e de onipotência de outro, dificulta : sobremaneira um trabalho clínico proveitoso porque fundamenta- se na negação. Negação das capacidades ou potencialidades do paciente, negação dos limites do psicólogo, negação da dificuldade de realizar um trabalho profícuo com tantas distorções perceptivas e sem a participação compreensiva do paciente.

Poder-se-ia argumentar que essa modalidade de relação é comum no diagnóstico, devido principalmente às fantasias do paciente e à dificuldade ou mesmo à impossibilidade de lidar com elas no breve período de tempo disponível para esse trabalho. Embora tal

argumento seja verdadeiro, parece-nos apenas um ângulo da questão, que é mais ampla e tem outras implicações.

Referendar a negação do paciente quanto às suas próprias capacidades e aceitar a idealização que ele faz da pessoa do psicólogo exacerba a relação assimétrica e favorece o estabelecimento de um vínculo com os aspectos mais emergentes e debilitados do paciente. E, nessas condições, é provável que ocorra um "esvaziamento" das possibilidades inerentes ao processo psicodiagnóstico: a construção de um espaço intersubjetivo, compartilhado por ambos, psicólogo e paciente, com lugar para o saber de um e o saber de outro, o reconhecimento dos limites de um e de outro.

É comum na entrevista inicial que o paciente chegue ansioso, não somente por suas dificuldades, por sua situação de crise, como supomos, mas também por estar com uma pessoa desconhecida, em um encontro que envolve a questão da avaliação.Em suas considerações sobre a teoria e a técnica da entrevista, diz Eleger: "A entrevista é sempre uma experiência vital muito importante para o entrevistado; significa com muita freqüência a única possibilidade que tem de falar o mais sinceramente possível de si mesmo com alguém que não ojulga, senão que o compreende. Desta maneira, a entrevista atua sempre como um fator normativo ou de aprendizagem, ainda que não se recorra a nenhuma medida especial para consegui-lo. Em outros termos, a entrevista diagnóstica é sempre e ao mesmo tempo, em alguma medida, terapêutica" 9.

Esta concepção de Bleger parece dimensionar adequadamente a importância do trabalho clínico. No encontro com o paciente, a qualidade da relação com ele estabeleci da é fundamental. A nosso ver, também o psicólogo que realiza o psicodiagnóstico deveria atentar mais para este aspecto e visarUma maior exploração, dos efeitos terapêuticos do processo. Mas, para isso, torna-se necessário reexaminar alguns de seus procedimentos, especialmente aqueles relativos aos assinalamentos e à devolução diagnóstica.

O campo e Garcia Arzeno consideram que "é necessária uma devolução de informação diagnóstica e prognóstica discriminada e classificada, em relação com as capacidades egóicas does) destinatários(s)" 1°. Acrescentam que ela deverá ser feita após o término das entrevistas e testes, pelo psicólogo que realizou o processo psicodiagnóstico, em uma ou várias entrevistas. "Tanto o psicólogo, como o paciente ou os pais, podem colocar a necessidade de outras entrevistas devolutivas. De qualquer modo, é necessário dar oportunidade aos interessados para metabolizar o que foi recebido na primeira entrevista e esclarecer, ampliar ou retificar o que foi compreendido nela" lI.

Vale notar alguns aspectos desta proposta:

1. separação nítida entre uma primei~a etapa do diagnóstico (quando o psicólogo trata de fazer uma investigação por meio de entrevistas e testes) e a etapa final (quando ele devolve um conhecimento e compreensão);

2. provável intensificação da ansiedade do paciente devido ao período de espera entre a entrevista inicial e a final;

3. dificuldade de retomar atitudes anteriores do paciente que possam contribuir para uma melhor integração do material devolvido e que dependem, portanto, da memória do psicólogo e do paciente;

4. As possibilidades de esclarecimento, reflexão ou "metaboização" do paciente, que dependam da ajuda do psicólogo, Jarecem estar concentradas nas entrevistas finais;5. prolongamento do processo psicodiagnóstico, que poderia então incluir várias entrevistas

devolutivas.Ainda que possamos reconhecer muitos aspectos valiosos nas contribuições de O campo e Garcia Arzeno para a prática do psicodiagnóstico, temos um ponto de vista distinto no que diz respeito às devoluções ao paciente. Como já dissemos anteriormente, "(...) um profissional experiente e competente pode fazer devoluções no decorrer das entrevistas, assinalando aqueles elementos sobre os quais tem uma compreensão significativa" 12.

Tal conduta permite que o paciente tome contato com algumas de suas atitudes e favorece sua auto-observação. Uma das situações que, a nosso ver, não pode passar despercebida é aquela em que o paciente manifesta, no seu contato com o psicólogo, a suposição de não ser capaz de expressar seu modo de pensar satisfatoriamente ou de não ser bem dotado do ponto de vista intelectual. Essa suposição se traduz em um discurso permeado de expressões do gênero "não sei, não", "eu não entendo", mesmo que em seguida ele formule alguma explicação para aquilo que diz não saber ou não entender. No atendimento clínico institucional, essa situação é bastante observada. Contudo, muitas dificuldades surgem na relação quando este modo de o paciente referir-se a si mesmo não é assinalado pelo psicólogo. Falar das dúvidas, da negação da capacidade de entendimento, dos esforços de compreensão do paciente e das percepções ou pensamentos adequados que ele expressa parece legitimar a capacidade compreensiva e perceptiva do paciente para ele próprio. Temos a impressão de que não basta reconhecer as angústias e emoções do paciente, porque ele precisa recuperar a confiança em sua capacidade intelectual, instrumento importante para a observação, compreensão e resolução de seus problemas.É claro que um assinalamento do psicólogo não levará paciente a mudar seu ponto de vista sobre si mesmo (sabemos lhe algumas atitudes podem estar cristalizadas e ter seus benefícios secundários), mas uma observação pertinente, no momento oportuno, resulta muitas vezes útil porque possibilita ° paciente tomar contato com determinado aspecto de sua personalidade. Outras vezes ocorre o contrário: o paciente já formulou seu próprio "diagnóstico" e vem para confirmá-lo ou revela muita desconfiança quanto ao profissional ou quanto O trabalho a ser realizado. É importante também que tais atitudes sejam assinaladas para que o processo se desenvolva le modo mais explícito, principalmente no que se refere àrelação paciente-psicólogo.

A questão de fazer uso de assinalamentos ou interpretações nas entrevistas diagnósticas é controversa. Alguns propõem-se decididamente a essa idéia, considerando que o psicólogo, na tarefa diagnóstica, deve limitar-se a realizar uma investigação. ), outros, como O campo e Garcia Arzeno, deixam claro que os assinalamentos só devem ser feitos em circunstâncias especíricas: o psicólogo intervém na entrevista inicial quando há "situações de bloqueio ou paralisação por incremento da angústia, para assegurar o cumprimento dos objetivos da entrevista"13 e na devolutiva "(...) quando surgem indícios de fracasso na entrevista, como as condutas estereotipadas ou a insistência em negar certos conteúdos (...)"14, focalizando mais o tipo de vínculo que o paciente tem com ele do que propriamente o conteúdo de tais condutas.

Não obstante, alguns outros profissionais reconhecem a necessidade de fazer certos apontamentos ao paciente durante o processo psicodiagnóstico por considerarem que o trabalho alcança uma dimensão mais ampla e compreensiva. Também argumentam a favor de devoluções parciais e de realizar um trabalho em conjunto com o paciente.Verthelyi, por exemplo, expressa idéias bastante interessantes sobre esta questão: "em

certo sentido a devolução se inicia no momento mesmo da pré-entrevista e se encontra inevitavelmente presente durante toda a avaliação. Entendida assim, a devolutiva se converte em um 'processo' e não somente em um ponto de chegada, ainda que reservemos a ou as últimas entrevistas para a integração final dos resultados e as recomendações" .15

Ampliando o conceito de devolução, Verthelyi esclarece que há aspectos implícitos que vamos "devolvendo" ao paciente durante o processo e que incluem a disposição do consultório, nossa atitude, nosso modo de' pensar, perguntar, planejar o atendimento desde o primeiro contato telefônico ou a primeira entrevista. Por exemplo: um consultório que possua uma poltrona confortável e cadeiras mais incômodas ou então assentos similares para todos, pode transmitir e enfatizar o grau de simetria-assimetria e a distância que tentamos dar à relação; quando solicitamos que os pais compareçam à primeira entrevista e explicamos o "porquê" desta insistência, estamos "devolvendo" nossa valorização do papel paterno. Desta forma, conclui a autora, "não se pode não 'devolver' (informar, redefinir, esclarecer) certos aspectos de nossos critérios de saúde, doença e cura, inseridos em um sistema ideológico e de valores que se expressam com maior ou menor grau de consciência em nossa conduta" .16

Mas Verthelyi fala também das comunicações explícitas e das intervenções do psicólogo durante o processo psicodiagnóstico. Definindo as intervenções como perguntas, sugestões, comentários e assinalamentos que podem se dar basicamente em relação a:1. condutas observáveis na relação do paciente com o psicólogo e a tarefa;2. aspectos do material recolhido (testes).

A autora considera que: "Todas essas intervenções, ao mesmo tempo que ampliam a informação que o psicólogo recolhe a respeito da flexibilidade ou rigidez do entrevistado (...) funcionam antecipando aspectos da devolução final"17.

Esse enfoque permite-nos observar que as intervenções modificam a qualidade do atendimento, levando-nos a estimar com mais clareza as possibilidades e limites do paciente. Essas intervenções são, portanto, absolutamente necessárias para uma melhor compreensão diagnóstica sobre ele. Por outro lado, elas também funcionam como devoluções parciais, dando ao paciente a oportunidade de ter uma imagem diferente de si e de suas circunstâncias. No contexto de um processo de avaliação diagnóstica como uma tarefa conjunta, tal como propõe Verthelyi, a devolução deve ser sempre útil. e enriquecedora para o indivíduo.

Não passa despercebido, contudo, o fato de Verthelyi usar o termo genérico "devolução" em vez da específica expressão "devolução diagnóstica". Também não passa despercebido o cuidado com que aponta para a necessidade de diferenciar psiCodiagnóstico de psicoterapia: "convém diferenciar com clareza a ou as entrevistas de devolução das possíveis entrevistas terapêuticas ou de orientação posteriores que podem surgir a partir das recomendações já previstas ou das temáticas que aparecem no fechamento do diagnóstico. Qualquer entrevista posterior à devolução requer o estabelecimento de um novo contrato que explicite o enquadre, as características e os objetivos da tarefa" .18

Esta preocupação de delimitar nitidamente as fronteiras entre psicodiagnóstico e psicoterapia talvez seja compartilhada por grande parte dos profissionais que realizam o psicodiagnóstico. Parece haver um receio muito grande de confundir os dois processos, teoricamente concebidos como distintos. Mas, na prática, é possível manter essa diferenciação?

Priedenthal discute esta questão em um interessante artigo em que ressalta a necessidade, na aplicação das técnicas projetivas, de dialogar com o paciente e de rastrear

juntamente com ele a significação do material de testes, à medida que este se apresenta, fazendo uso de perguntas, comentários e assinalamentos. Argumenta ser este procedimento imprescindível para testar as hipóteses que vão sendo formuladas e assim obter maior esclarecimento e compreensão do material, pois o psicólogo, muitas vezes preocupado com o "mundo interno" do paciente, pode ficar com elementos algo abstratos tais como a "imagem" que o paciente tem do casal (sem vinculá-Ia com sua relação concreta de casal) ou seu "nível de aspiração" (sem vinculá-Io com seu trabalho ou com seus estudos). Mas, dialogar com o paciente, fazer-lhe perguntas que, muitas vezes, ao chamar sua atenção sobre um aspecto, funcionam como assinalamentos, é diagnóstico ou terapia?

Para Priedenthal, a distinção entre os dois é apenas teórica, impossível de ser mantida na prática clínica. Pois "que significa tudo isso de falar com o paciente sobre seu material e fazer-lhe perguntas, pedir-lhe associações, mostrar-lhe como se inibiu, que lapsos teve, quantas repetições de imagens negativas, ou que formas de reagir ocorreram em sua produção etc? Não é isso tornar consciente o inconsciente (ou como se queria formulá-Io teoricamente)? Não é isso fazer psicoterapia?,,19

Priedenthal vai mais longe e considera que o psicólogo pode fazer um maior uso desse procedimento, "seja porque pretende explorar a capacidade de insight do paciente e sua reação a interpretações, ou porque quer converter o próprio processo de psicodiagnóstico em uma intervenção terapêutica"2o.

Friedenthal parece focalizar sua atenção na exploração de todos os recursos disponíveis (a relação paciente-psicólogo, os testes, os comentários e lembranças do paciente), a fim de ir ampliando, junto com o paciente, a compreensão que ele tem de si mesmo. É com esse objetivo que faz intervenções, perguntas e assinalamentos específicos (estes últimos os mais eficazes, em sua opinião).

Estamos de acordo com Priedenthal que esta forma de trabalho é muito mais enriquecedora para ambos os participantes (psicólogo e paciente) e que a introdução de assinalamentos durante o processo psicodiagnóstico (nas entrevistas ou ao final da administração de cada teste) "permite que o processo introjetivo característico da devolução se dê de forma dosificada" 21.

Também consideramos que é difícil manter a fronteira entre psicoterapia e psicodiagnóstico, dado que, no atendimento psicodiagnóstico, como diz friedenthal, as intervenções fazem-se quase sempre necessárias: "seja para esclarecer situações trans ferenciais que interferem, seja para aliviar a ansiedade aguda do paciente, ou para pôr à prova como ele responde a interpretações, o psicólogo (de orientação psicanalítica) logo intervém com comentários que por sua vez alteram ou gravitam na conduta posterior do paciente, de modo que se embarca em um processo característico da psicoterapia". 22

Podemos observar que os modos de proceder no psicodiagnóstico, seguindo O campo e Garcia Arzeno ou Verthelyi e Friedenthal, implicam significativas diferenças. O tipo de trabalho realizado pelas duas últimas evidencia a necessidade de uma conduta mais plástica por parte do psicólogo, a necessidade de que ele desenvolva sua capacidade clínica, sua sensibilidade para captar indícios significativos e decidir quando e como deve atuar com aquele determinado paciente. Em outras palavras, evidencia que ambas as tarefas, diagnóstico e psicoterapia, exigem a mesma capacidade de compreensão e empatia para o trabalho.

Essas idéias são importantes porque convidam a refletir sobre o modo tradicional de

realizar o psicodiagnóstico, que comumente resulta em um conhecimento que tem utilidade apenas para o futuro, isto é, para o encaminhamento terapêutico do paciente, nem sempre seguido por este, como já fez notar Ancona-Lopez23 em um trabalho de pesquisa sobre o atendimento psicológico nas clínicas-escolas. A par desta constatação, sabemos que o processo psicodiagnóstico, território absoluto do psicólogo, onde estão assentadas as diferenciações que lhe conferem identidade, tornou-se também um domínio para o qual confluem muitas divergências. As diferentes leituras possíveis do material do paciente, os distintos referenciais teóricos nos quais elas se baseiam tornam as conclusões diagnósticas um alvo fácil para muitos questionamentos e reduzem a credibilidade a elas outorgada por outros profissionais. Não raro o paciente torna-se objeto de disputa de poder pelo conhecimento ou é novamente submetido a outra situação diagnóstica para que o profissional ao qual foi encaminhado para atendimento psicoterápico possa formular seu próprio parecer sobre o "caso".

Este quadro tem suscitado muitas inquietações naqueles que trabalham com o psicodiagnóstico em consultório particular ou em instituições, levando-os a questionar a finalidade do trabalho realizado com o paciente. Afinal, os problemas evidenciados não sugerem a existência de "lacunas" na concepção que o psicólogo tem de seu papel no psicodiagnóstico? Não está afetada a sua própria identidade profissional? Para quem o psicodiagnóstico é útil: para o psicólogo que realizou o processo, para o paciente ou para o terapeuta ao qual ele foi encaminhado? Não se faz necessário redefinir o papel dopsicólogo e modificar a prática diagnóstica, de modo que ela se torne, tanto para o psicólogo quanto para o paciente, dotada de sentido ou de especificidade durante a sua realização?

Estas interrogações pertinentes obrigam-nos a reconsiderar nossa relação com o paciente, que vem em busca de ajuda para saber e compreender o que está lhe acontecendo e vê suas necessidades frustradas quando o psicólogo se exime de uma interação mais ativa com ele silenciando sobre suas suposições ou percepções acerca do que se passa nas entrevistas. A idéia de que o paciente só poderá realmente tomar contato com suas dificuldades e tratar de seus problemas posteriormente, em uma psicoterapia, é altamente duvidosa. Pode-se supor que a inobservância das recomendações terapêuticas ou a falta de motivação para segui-Ias derivam da experiência psicodiagnóstica, que pode influenciar de modo significativo a atitude do paciente para com outros profissionais ou instituições. Se ele não pode sentir-se compreendido, se não pode conhecer ou reconhecer alguns de seus aspectos, suas expectativas serão de que o mesmo ocorrerá no tratamento proposto.

É preciso rever antigas concepções que encaram o psicodiagnóstico apenas como um referencial para o encaminhamento psicoterápico e consideram que seu valor é apenas compreensivo, uma vez que a relação com o paciente, mesmo quando enfocada sob o ângulo da transferência e contra-transferência, não pode ser usada como instrumento de trabalho. Do mesmo modo, é preciso abandonar a idéia de que o psicodiagnóstico não tem objetivos terapêuticos e empenhar-se em fazer dele uma prática cujos efeitos sejam terapêuticos.

Essa necessidade de revisão também se aplica às crenças de que as intervenções do psicólogo durante o psicodiagnóstico poderiam ter conseqüências desastrosas, de que o paciente poderia desorganizar-se, já que não suportaria entrar em contato com alguns de seus aspectos ou não compreenderia o que o psicólogo quisera lhe dizer ou mostrar. Essas ressalvas valem para alguns pacientes, mas não para todos. É oportuno lembrar que nossas fantasias inconscientes a respeito do conhecimento (e mais especificamente do

autoconhecimento) influenciam sobremaneira nosso trabalho e podem impedir-nos de discriminar adequadamente se nossas atitudes derivam do cuidado de não tornar as devoluções (parciais ou finais) traumáticas ao paciente ou se respondem às nossas próprias necessidades defensivas.

Observamos que, muito freqüentemente, o psicólogo adota a atitude de quem sabe ou compreende tudo, mas não pode comunicar esse saber ao paciente, ou a de quem nada sabe e portanto nada pode falar, esperando que os testes lhe dêem alguma informação ou confirmem algumas de suas suposições. Em outras palavras, o psicólogo oscila entre uma supervalorização e uma desvalorização de suas condições pessoais.

Grande parte dos argumentos que apóiam tais idéias e atitudes remete à questão da interpretação, da inadequação de seu uso no psicodiagnóstico e da especificidade do trabalho psicoterápico. Não obstante, embora muitos considerem a interpretação como o elemento que marca a distinção entre psicodiagnóstico e psicoterapia, é pertinente atinar também para um outro elemento que marca a semelhança entre os dois processos: a relação paciente-psicólogo.Os autores aqui citados deixam claro a importância primordial dessa semelhança e concordam que o efeito terapêutico do processo psicodiagnóstico decorre basicamente da qualidade da relação estabelecida com o paciente. Nosso principal foco de atenção e preocupação deveria, então, ser este: nossa relação com o paciente. Se nossa intervenção for necessária em algum momento - e ela sempre o será se nos dispusermos a realizar um trabalho conjunto com o paciente -, procuraremos nos orientar pelos emergentes da situação. Neste contexto, será possível respeitar as resistências do paciente, discriminar os aspectos acessíveis e aceitáveis para ele no momento, fazer devoluções parciais que não signifiquem uma antecipação de algum material que só adquire sentido quando integrado.

Este tipo de procedimento, que permite um contato mais profundo com o paciente, pode realmente suscitar muito mais ansiedade no psicólogo, já que exige dele uma abertura maiorpara suas próprias experiências internas e para as dificuldades e podem surgir com as resistências e ambigüidades do ciente. No entanto, se pensamos que todos esses aspectos tão inextricavelmente ligados à nossa condição de psicólogo 'nico, observamos que não há como iludi-los na situação agnóstica. Como diz Friedenthal; "Talvez não seja somente interpretação que faça com que as entrevistas diagnósticas assemelhem às sessões de terapia, se não o mero fato de le em umas e outras se produzam fenômenos transferenciais "24.Poder-se-ia ainda objetar que os procedimentos que su:rem uma atitude mais ativa de ambos os participantes no processo psicodiagnóstico podem ser aplicáveis somente quando i uma procura espontânea do atendimento psicológico, quando ) montamos com a motivação do paciente e com o seu desejo e compreender a si mesmo. Mas, mesmo naqueles casos em ue isso não acontece, pensamos que há necessidade de rastrear s motivos que o levaram ao psicólogo, assinalando o que for 19nificativo para que o trabalho possa ser uma tarefa conjuntaas devoluções não pareçam estranhas ao paciente. Algumas 'vezes o paciente já teve

experiências anteriores, já iniciou ou realizou o psicodiagnóstico com outros profissionais; então, é pertinente nos perguntarmos: o que ele veio buscar aqui comigo? O que eu posso fazer com ele neste momento

PSICODIAGNÓSTICO: PROCESSO DE INTERVENÇAO?

Silvia Ancona-Lopez*

INTERVIR (do latim intervenire): meter-se de permeio, ser ou estar presente, assistir, interpor os seus bons ofícios I.

Meter-se de permeio: indica atuação. Posição ativa de alguém que interfere, que se coloca entre pessoas, que de algum modo estabelece um elo, uma ligação.

Interpor os seus bons ofícios: ação de quem tem algum preparo em determinada área e põe seus conhecimentos à disposição de quem deles necessita. Ação de quem acredita no que faz.

Estar presente: não indica necessariamente uma ação, o que leva a pensar em alguém disponível, que aguarda uma solicitação. Estar presente parece indicar uma posição, alguém a quem se pode recorrer e que está inteiro na situação.Assistir. indica ajuda, cuidados, apoio.

Na maioria das vezes, quando uma pessoa recorre a um atendimento psicológico, já utilizou, sem sucesso, seus recursos e seu repertório de conhecimentos para resolver determinado impasse. Ao aceitar a proposta do psicólogo de passar por um psicodiagnóstico, esta pessoa demonstra que está buscando

* Doutoranda em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Diretora da Clínica Psicológicadas Universidade São Marcos. Professora da Universidade Paulista - UNIP.

I. FREIRE, L. Grande e novíssimo dicionário da língua portuguesa. Rio deJaneiro: A Noite, 1942, p. 3011.

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compreender atitudes suas ou de outra pessoa (um filho, por exemplo) que não se enquadram no que considera normal ou enquadram. Outras vezes o faz porque um terceiro (professor médico) lhe diz que há algo errado.

Em qualquer dos casos, esta situação provoca uma sensação estranheza, se não de sofrimento, permeada por uma impressão de incompetência, que impelem a pessoa a buscar ajuda profissional.

Freqüentemente é um momento de fragilidade - 'já não sei mais o que fazer"-, em que o cliente espera encontrar n profissional que esteja disponível, inteiro, totalmente voltado ira ele, interessado e preocupado em ajudá-la, em dar-lhe apoio e em diminuir seu desconforto.

Para poder abrir-se e participar com seus relatos e informações, o cliente precisa sentir-se acolhido e confiar que tem diante de si alguém preparado, que inspire segurança, que se 10stre capaz de compreender sua demanda e que, com a ajuda de seus conhecimentos, o leve a vislumbrar novas possibilidades.

Conhecer alguém implica, entre outras coisas, conhecer l rede de relações da qual esta pessoa faz parte. Quando o pedido de psicodiagnóstico partir de um terceiro (pais ou escola, no caso de crianças; empresa ou médico, no caso de adultos), caberá ao profissional estabelecer o elo de ligação entre as pessoas e as instituições envolvidas. Cabe-lhe ajudar o cliente a explicitar a dinâmica dessas ligações a fim de esclarecer como essa rede é vivenciada.

Os vários sentidos da palavra intervenção - citados em epígrafe - podem ser encontrados na prática do psicodiagnóstico. Há, no entanto, diferentes níveis de intervenção possíveis e diferentes atitudes dos psicólogos diante dessa possibilidade, de acordo com a postura teórica ou filosófica que adotarem. Pretendo, neste artigo, tecer alguns comentários sobre essas diferenças.

O psicodiagnóstico é uma atividade que veio se desenvolvendo paralelamente à própria psicologia e à profissão de psicólogo, recolhendo suas práticas nas inúmeras teorias que procuram conhecer e compreender o homem. Apresenta a questão da pluralidade das referências, da flexibilidade dos modelos, da utilidade e das limitações do process02.

O modelo tradicional de psicodiagnóstico é considerado pouco mais que uma coleta de dados sobre a qual se organiza um raciocínio clínico que vai orientar o processo psicoterápico. Assim, o psicodiagnóstico costuma ser um momento de transição, passaporte para o atendimento posterior, este sim considerado significativo (porque capaz de provocar mudanças), no qual o cliente encontrará acolhida para suas dúvidas e/ou sofrimento.

A relação que se estabelece nesses psicodiagnósticos normalmente é mediada não só pelo "terceiro", que fez o pedido, como também por um pressuposto profissional ausente, o futuro psicoterapeuta. Esta triangulação, ou mesmo quadratura, influenciará a aproximação entre psicólogo e cliente durante o processo que se está desenrolando. O modo como o psicólogo considerar as diferenças entre os papéis de diagnosticador e de psicoterapeuta se refletirá em posturas diversas, mesmo que ele próprio venha a desempenhar as duas funções. Os que aproximam o papel de diagnosticador ao de observador imparcial tenderão a se distanciar na relação de psicodiagnóstico, evitando assumir uma atitude de intervenção para manter-se em uma postura investigativa, que resguarda seus conhecimentos sobre o "sujeito". Neste caso acredito que o processo perderá muito de seu sentido e mesmo de interesse ou utilidade para o cliente.

Toda atuação psicológica é uma ação de intervenção cujo significado será dado pelo campo relacional que se estabelece

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entre as partes e que é exclusivo e peculiar àquele momento e àquela relação.No entanto, de acordo com o pensamento psicológico tradicional, para que a relação

psicológica - se assim a podemos chamar - se transforme em uma relação significativa para o cliente, ela deve ser longa e duradoura. Paralelamente, há também nesta tradição a idéia de que um caso só será rico e interessante, para o psicólogo, se for difícil e necessitar de muitas horas de acompanhamento.

Esta postura é mencionada por Freud em "O homem dos lobos" (1918) onde se lê: "As análises que conduzem a uma conclusão favorável em pouco tempo são de valor para a auto-estima do terapeuta, (...) mas permanecem em grande parte insignificantes no que diz respeito ao progresso do conhecimento científico. Nada de novo se aprende com elas. (...) A novidade só pode ser obtida de análises que apresentem especiais dificuldades e, para que isso aconteça, é necessário que a elas se dedique bastante tempo"3 (p. 22).

Anos mais tarde (1937), no entanto, o próprio Freud se questiona sobre o tema da duração da análise. Escreve ele: "A experiência nos ensinou que a terapia psicanalítica – a libertação de alguém de seus sintomas, inibições e anormalidades de caráter neuróticos - é

um assunto que consome tempo. Daí, desde o começo, tentativas terem sido feitas para encurtar a duração das análises. (u.) Eu mesmo adotei outro modo de acelerar um tratamento analítico, inclusive antes da guerra. (u.) Nesse dilema, recorri à medida heróica de fixar um limite de tempo para a análise"4 (pp. 247-248).

As reflexões de Freud, nesse texto, estendem-se pelos temas complexos do "término da análise" e das possibilidades profiláticas da psicanálise. Todo o texto é permeado por um certo ceticismo quanto à eficácia da psicanálise para provocarmudanças permanentes, alertando para a ingenuidade dos que esperam que seus clientes atinjam "um nível de normalidade psíquica absoluta" (p. 251) mesmo após muitos anos de terapia.Freud aborda essas questões e demonstra claramente seu desconforto: "Partimos da questão de saber como podemos abreviar a duração inconvenientemente longa do tratamento analítico" (p. 267). E conclui: "Mas outro ponto já se tornou claro: se quisermos atender às exigências mais rigorosas feitas à terapia analítica, nossa estrada não nos conduzirá a um abreviamentode sua duração, nem pa~sará por ele" (p. 255).As questões sobre alta, duração e mudanças ocorridas no decorrer de um atendimento psicológico referem-se sempre às chamadas psicoterapias e, no caso das citações acima, à psicanálise, que é um processo todo especial. Assim, não é fácil estabelecer um elo com o psicodiagnóstico. O que fica claro, no -entanto, é que a idéia de intervenção está sempre ligada ao processo terapêutico.

Mesmo as terapias breves (que buscam resolver o dilema da duração apontado por Freud) consideram que o processo de intervenção se inicia, preferencialmente, após um período que poderia ser chamado de psicodiagnóstico. Este é constituído de algumas sessões nas quais se selecionam os clientes que melhor possam beneficiar-se daquele tipo de psicoterapia e a intervenção acontece apenas em situações especiais5.Mais uma vez podem ser percebidas as marcas da tradição, que se mantém muito forte entre os psicólogos, sobretudo entre os que se dedicam ao psicodiagnóstico. Como lembra Mahfoud, diante das dificuldades do cliente, "a 'resposta padrão' do psicólogo é psicoterapia"6. Esta mesma idéia é expressa por Silva: "Por identificar a prática psicoterapêutica como sinônimo de atuação clínica é que o modelo único tem

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sido mantido (...), a psicologia tem tentado exercer um único modo de atuar através dos atendimentos psicoterápicos de seguimento contínuo e/ou prolongado"7 (p. 31).

Assim, o psicodiagnóstico não é considerado, na maioria das vezes, como prática de intervenção, pois além de se dar num número relativamente pequeno e determinado de encontros, é entendido como prática de investigação, avaliação ou seleção. Deste modo, não pode ser percebido como um momento passível de abrir perspectivas novas ou possibilitar mudanças positivas para o cliente. Se estas últimas, eventualmente, ocorrerem, serão creditadas à relação estabeleci da com o profissional, mas não assumidas por ele como uma intenção ativa naquele momento. Isso implica que as novas perspectivas abertas ao cliente, por não serem explicitadas, correm o risco de não ser devidamente exploradas e de o processo perder muito da sua nqueza.

A visão clássica do psicodiagnóstico recomenda uma atitude de neutralidade, o que leva a certo distanciamento do profissional, para facilitar as manifestações inconscientes do cliente. Além disso, recomenda-se que os contatos com o psicólogo durante o psicodiagnóstico não se estendam além do "necessário", a fim de evitar o desenvolvimento de uma relação transferencial que exigiria outro tipo de atendimento.

Na minha opinião, esta postura distanciada, durante o psicodiagnóstico, implica certo esforço, por parte do profissional, para impedir que a intervenção seja efetiva, já que, de qualquer modo, ela estará ocorrendo. De acordo com Tsu: "As questões concernentes à relação entre o psicólogo e o cliente, vistos como sujeitos que possuem interioridade psíquica e que se movem numa rede de inter-relações, têm um caráter central em toda a práxis psicológica"8.

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A mesma autora diz que "aquele que entrar em contato direto com o profissional poderá vir a ser psicologicamente conhecido em sua dinâmica interna, ou seja, visto como pessoa que se relaciona com as demais a partir dos dados da realidade exterior e da sua própria realidade psíquica" (p. 40). Ora, este contato não é privilégio de um relacionamento que ocorra dentro de um processo psicoterápico e, portanto, não pode ser desconsiderado em um psicodiagnóstico.Pelos motivos apontados anteriormente, no entanto, há um certo pudor em se admitir que, no caso de um psicodiagnóstico, a relação que se estabelece no âmbito desse processo possa vir a propiciar uma troca que venha a gerar transformações ou abrir novas possibilidades para os componentes da relação.Na verdade estamos tratando aqui de uma visão ampla da psicologia, que não limita a intervenção psicológica a determinadas situações ou settings. Essa maneira de pensar a psicologia exige uma atitude flexível, inventiva e responsável por parte do psicólogo, que deverá transitar entre a teoria e a prática com certa desenvoltura9. À medida que o profissional acredita que todo contato seu com um cliente pode (e a meu ver deve) ser um momento significativo para ambos, sem dúvida adotará uma postura mais ativa e reverá muitos dos conceitos que norteiam sua prática 10.

O relacionamento psicológico será significativo se produzir um conhecimento que se dê na possibilidade de uma formulação

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conjunta da experiência vivida naquela relação, tanto no contexto de um psicodiagnóstico como em uma sessão de psicoterapia.

Quando o cliente busca um psicólogo espera ser atendido em suas necessidades, pouco importando sob que nome este atendimento se efetue li. Muitas vezes,

desconsiderando este pedido do cliente, o psicólogo, ao nomear sua prática, decide postergar a intervenção, empobrecendo um encontro rico de possibilidades.

É preciso então perguntar: como pode se dar esta intervenção no âmbito do psicodiagnóstico?

Inicialmente, torna-se necessário haver por parte do cliente o pedido de uma ajuda imediata: a predisposição para iniciar um movimento no sentido da mudança. Esta demanda, nem sempre explícita, ao ser captada pelo psicólogo deverá ser clareada ao cliente. Por seu lado, se o psicólogo for capaz de despir-se dos conceitos tradicionais já mencionados, que envolvem a práxis psicológica, será capaz de abrir-se para esta demanda e convidar o cliente para uma caminhada conjunta.

Esta colaboração, no entanto, somente será possível se o psicólogo se abrir para a co-participação do cliente e acreditar que este último pode compartilhar os conhecimentos que se forem configurando durante o processo. É uma atuação que se caracteriza pelo fato de o psicólogo partilhar suas impressões sobre (e com) o cliente, levando-o a participar do processo e a abandonar a postura passiva de "sujeito" a ser conhecido 12. A partir daí, o psicólogo manterá sua escuta voltada para as possibilidades de intervenção.

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A intervenção ocorre à medida que não se posterguem os apontamentos que naturalmente ocorrem ao psicólogo durante os encontros, ou seja, quando se compartilha com o cliente, durante as sessões de psicodiagnóstico, a maneira como ele se apresenta: a impressão que causa ao psicólogo e as reflexões

que possibilita. Se for possível captar o estilo do cliente isto é, sob que formas ele estabelece relações com o mundo - e se ele puder ser esclarecido sobre isso, novas perspectivas de autoconhecimento certamente se abrirão para ele.

Os apontamentos serão interventivos se não repetirem as situações de vida cotidiana do cliente. Ou seja, quando introduzirem a estranheza no relacionamento, de modo a fazer o cliente confrontar-se com uma ruptura: a ruptura de seus comportamentos usuais, a ruptura da compreensão costumeira, a ruptura dos jogos relacionais que aprendeu a jogar.

Estabelecendo um paralelo com a relação amorosa e relevando os exageros poéticos e os ciúmes que permeiam o soneto, podemos recorrer a Camões, que exige de sua amada um comportamento diferenciado para com ele, de modo que possa se sentir distinguido entre todos.Diz o poeta:Se a ninguém tratais com desamor,antes a todos tendes afeição,e se a todos mostrais um coraçãocheio de mansidão, cheio de amor;desde hoje me tratai com desfavor, mostrai-me um ódio esquivo, uma isenção; poderei acabar de crer entãoque somente a mim me dais favor.Que, se tratais a todos brandamente, claro é que aquele é só favorecido a quem mostrais irado o continente.Mal poderei eu ser de vós querido, se tendes outro amor na alma presente: que amor é um,

não pode ser partido.13

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Mesmo que o amor do psicólogo seja um amor partido, um amor vendido, nem por isso deixará de ser amor. Mas só será uma relação amorosa pItdutiva e exclusiva se a atitude do profissional garantir ao cliente a sua singularidade no momento do encontro.

Pergunta-se: como gerar esta situação de singularidade? Procurando responder a partir da psicologia fenomenológica, esta singularidade se estabelece à medida que o psicólogo mostra ao cliente o que 'lhe aparece' através do que o cliente ~stá lhe trazendo. Não é um demonstrar ou um avaliar entre verdades e mentiras, mas o iluminar de um momento, de uma ;ituação. Esta iluminação ou clareira 14 que se abre no existir io cliente de algum modo desestrutura o estabelecido (a ruptura le que falava). É apresentar uma situação de modo novo, nusitado e, por isso mesmo, no primeiro momento desconforável pois causa uma desestruturação momentânea 15. Desestruuração provocada pelo aparecimento da angústia que ocorre .0 se dissolver uma imagem solidificada, uma identidade stratificada. Destruída ou abalada a maneira usual de o cliente gir, ele se verá diante da necessidade de uma reorganização, ~ que lhe abrirá a possibilidade de novas escolhas.

Tanto quanto uma psicoterapia, o psicodiagnóstico pode Izer com que o cliente se perceba como campo de possibiI:lades. A situação psicodiagnóstica parece-me privilegiada este sentido porque pressupõe que se procure conhecer a mneira como o cliente se apresenta. Isto é, faz parte do )ntrato do psicodiagnóstico dizer que se tentará mapear a laneira como aquela pessoa estabelece as relações consigo, )m o mundo e com os objetos e o que, na sua maneira de itar no mundo, a está incomodando ou aos outros. Isso se

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faz pesquisando os acontecimentos marcantes, a história de vida e sua influência nas transformações, o modo como a pessoa encara sua existência. Ou seja, pesquisa-se a percepção do cliente a respeito de sua história de vida, percepção mobilizada no ato da relação com o entrevistadorl6.

A fala do psicólogo pode revelar ao cliente a sua própria fala, desocultando o que está encoberto, não interpretando, mas dando sentido. Isto é, a fala do cliente revela como seu mundo lhe aparece. Cabe ao psicólogo, por sua vez, mostrar como este mundo lhe está sendo mostrado pela fala do cliente: o mundo tal como se apresenta ao cliente.

Portanto, o cliente de psicodiagnóstico espera conhecer alguma coisa nova sobre si mesmo. Melhor ainda, espera que a clareira, que abrirá um vazio no conhecimento que tem sobre sua maneira de funcionar, lhe apresente novas possibilidades de ser. É, pois, injusto, por parte do psicólogo, negar esta possibilidade ao cliente e desonesto trair-lhe a confiança, guardando para si os conhecimentos que ele veio pedir que lhe fossem apresentados.

Não pretendo aqui sugerir que a atividade psicodiagnóstica se iguale à psicoterapia,

mas venho propor que não se percaa oportunidade de tornar este momento com o psicólogo um encontro privilegiado,

significativo para o cliente. A idéia de intervenção no psicodiagnóstico faz-se cada vez mais presente entre os psicólogos; discussões e textos sobre o assunto começam a proliferar. Deixo, pois, aqui a minha contribuição.

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PSICODIAGNÓSTICO FORMAL E AVALIAÇÃO INFORMAL

Tereza Iochico Hatae Mito*

o psicodiagnóstico ocupa um lugar de destaque entre as opções oferecidas nos serviços de psicologia que propõem um atendimento sistematizado, independentemente do motivo que leva o paciente a procurar a instituição. Em geral, começa-se por uma inscrição efetivada em uma entrevista de triagem, após a qual o paciente aguarda chamada para psicodiagnóstico, como um trajeto obrigatório que dará acesso a algum tipo de terapia, se a avaliação indicar sua necessidade. Continua a ser realizado em maior número do que as psicoterapias propriamente ditas, se levarmos em conta os encaminhamentos após o psicodiagnóstico, os abandonos e o pouco número de vagas disponíveis para psicoterapia nas instituições de atenção à saúde mental I.

O psicodiagnóstico é quase sempre conduzido de forma tradicional, isto é, estruturado em etapas previamente estabelecidas para atingir determinado objetivo. Segundo a concepção

* Master of Arts in Education pela Osaka University of Education. Doutoranda em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Supervisora da Universidade São Marcos e professora da Universidade Paulista - UNIP.

I. ANCONA-LOPEZ, M. Características da clientela de clínicas-escola de psicologia em São Paulo. In: MACEDO, R. M. (org.). Psicologia e instituição: novas formas de atendimento. 2. ed.. São Paulo: Cortez, 1986.

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psicodinâmica, proposta por Ocampo e Garcia Arzen02, seus objetivos são: conhecer, investigar e compreender o paciente por meio de técnicas de entrevistas, observações dirigidas e aplicação de testes. Há uma preocupação com o levantamento exaustivo da história de vida da criança, a dinâmica familiar, a investigação das relações entre os

comportamentos do paciente e as concepções da psicopatologia. Utiliza-se uma seqüência imposta pela necessidade de avaliar melhor os pontos obscuros para confirmar ou rejeitar hipóteses acerca do paciente: dinâmica psicopatológica, deficiência intelectual, problema neurológico, psicomotor etc.

Entretanto, na avaliação, o profissional não se restringe à interpretação dos dados fornecidos pelo paciente no psicodiagnóstico formal. Não basta investigar apenas aspectos do paciente; é preciso também levar em conta os aspectos do próprio profissional e da relação que se estabelece entre ambos. A elaboração desses aspectos processa-se de uma forma muito particular para cada profissional, que lança mão de recursos pessoais para compreender as possibilidades do paciente e as suas para o desenvolvimento de um trabalho psicológico. Pelo menos duas formas de avaliação são utilizadas: a primeira, decorrente de um trabalho sistematizado, o psicodiagnóstico formal; e a segunda, decorrente de um processo mais pessoal, "pelo qual se avaliam alguns aspectos da relação psicólogo-paciente que não são passíveis de ser analisados no processo convencional do psicodiagnóstico. É a este processo que chamamos de "avaliação informal".

Este artigo quer discutir a relação que se estabelece entre estas duas avaliações, centrando-se nesta última, o diagnóstico informal: o processo de avaliação espontâneo, que acontece quando o profissional recebe o paciente para um primeiro contato, o momento em que avalia a possibilidade de "estar

2. OCAMPO. M. L. S., GARCIA ARZENO. M. E. et aI. O processo psicodiagnóstico. In: OCAMPO, M. L. S., GARCIA ARZENO. M. E. et a!. O processo psicodiagnÔstico e as técnicas projetivas. São Paulo: Martins Fontes, 1981.

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com" o paciente para tornar efetivo seu trabalho, seja este de psicodiagnóstico ou psicoterapia. Em outras palavras, pretendemos abrir um espaço para refletir sobre essa avaliação pessoal, considerando que, no início de qualquer processo, determinados aspectos do paciente, são avaliados para que ele seja aceito. Tal aceitação implica que o profissional julga que tem recursos pessoais para ajudar o paciente e que este tem condições de se beneficiar da relação, independentemente dos resultados obtidos numa avaliação sistematizada como o psicodiagnóstico tradicional.

Podemos considerar que a avaliação informal sempre foi utilizada; que a avaliação formal surgiu da necessidade do profissional apegar-se a instrumentos "mais confiáveis" do que sua própria percepção pessoal. Por um bom tempo os profissionais utilizaram "cegamente" os recursos da avaliação formal, com a certeza e a tranqüilidade de estarem fazendo a coisa "certa", não baseada em inferências pessoais, mas já estruturada e testada por outros. Para tanto, a psicologia utilizou-se de modelos de identificação, principalmente do modelo médico, para se afirmar e ser aceita como ciência, tentando estabelecer as conexões causais para explicar e compreender o homem. Os testes contribuíram para o desenvolvimento de uma linguagem padronizada que pudesse ser aceita pelas disciplinas científicas das quais passou a fazer parte. Assim, a avaliação passou a ser considerada um modelo suficiente para dar conta do diagnóstico psicológico de qualquer caso independentemente do psicólogo que o aplicava.Entretanto, na prática, constatamos que o psicodiagnóstico formal, sozinho, tem pouca

utilidade. Em sua análise da relação entre psicodiagnóstico e psicoterapia infantil, Marques3 constata que o extenso trabalho investido no psicodiagnóstico dentro da instituição é pouco aproveitado pelo profissional para quem

3. MARQUES, Y. M. Utilização dOJ elementos do pJicodiagnÔJtico na pJicoterapia infantil em instituiçi5eJ de atendimento pJicolÔgico. Dissertação de Mestrado, Psicologia Clínica, PUC-SP, 1989, p. 185.

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se encaminha a criança posteriormente. Mesmo quando se realiza um diagnóstico formalizado baseado em "instrumentos mais confiáveis de trabalho", ocorre um outro diagnóstico que é "não formalizado, que atende às necessidades do psicoterapeuta de conhecer seu paciente para poder tratá-l o adequadamente".

Isso significa que os dados obtidos num psicodiagnóstico tradicional não isentam o terapeuta da necessidade de fazer uso da avaliação informal. Por mais completo e exaustivo que seja o relatório de outro profissional, o terapeuta precisa "ver com os próprios olhos" e "sentir" o paciente através de sua própria experiência. Nas palavras de Marques para o atendimento infantil: "o terapeuta precisa sentir a mãe de seu paciente, utilizando seus próprios recursos para identificar os pontos que considera importantes como apoio para o trabalho psicoterápico4 (grifo nosso)."

Não se trata, porém, de substituir o diagnóstico formal pelo informal. Consideramos que correspondem a dois níveis diferentes de compreensão do paciente, mas não estamos tratando de processos exclusivos. Segundo EI-Id5, o psicodiagnóstico informal ocorre "sempre que o psicólogo clínico observa, reúne dados e faz julgamentos a respeito do seu paciente", o que "antecede necessariamente todo processo de tomada de decisão, seja no início, seja no decorrer de qualquer modalidade de intervenção ou psicoterapia" . ;

Neste sentido, verificamos que a avaliação informal não é só complemento, mas parte integrante no estabelecimento de uma relação profissional-paciente. Na medida em que o impaciente não é considerado um mero "objeto" mas um "outro" mais participativo, com necessidades e recursos próprios, a ~ cada início de um novo processo com um novo profissional, exige-se que se leve em conta, que se avalie a possibilidade do trabalho psicológico conjunto, nesta relação específica.

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Ortigues e Ortigues6, criticam o uso que geralmente se faz das entrevistas preliminares, concebidas em função do terapeuta, que "conduz o processo até um ponto por ele definido e estipulado", fazendo propostas de psicoterapia, reeducação ou mesmo

internação quando se considera concluída a avaliação. Consideram essencial que se verifique se a proposta corresponde também aos desejos do paciente e dizem: "o analista não quer uma psicoterapia para esse consulente; averigua o que ele deseja" .

A contribuição de Hollender7, que data de mais de 20 anos, mantém-se muito atual para estes nossos questionamentos. Hollender discrimina situações em que o psicodiagnóstico pode ou não ser separado da psicoterapia, em função de o caso ser agudo, emergencial, ou não. Seu estudo refere-se ao processo de seleção de pacientes, à avaliação e ao começo da psicoterapia, que ele denomina "formas definitivas de psicoterapia". Em síntese, trata-se de uma psicoterapia psicanaliticamente orientada, uma relação a dois para a aquisição de autoconhecimento, que exclui técnicas grupais e outros recursos que não as trocas verbais e não-verbais. Sua principal contribuição foi questionar a avaliação inicial quando esta se resume na tomada da história para reconstrução genética e formulação psicodinâmica, ou para a obtenção de informações específicas. Considera que o mais importante é obter informações para determinar se duas pessoas podem trabalhar juntas, de um modo particular, em direção a um objetivo particular. Neste sentido, importa tentar esclarecer nas entrevistas iniciais: o que a pessoa pode e quer fazer a respeito dos seus problemas; a quem incomoda os problemas e quem deseja ajuda: a própria pessoa ou alguém da família; que tipo de relação a pessoa procura: a pessoa quer aquilo que o terapeuta está preparado para oferecer?

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Essa postura está de acordo com a de Herrmann8, que considera que nas entrevistas iniciais o analista "precisa decidir se a pessoa que o procura requer algum tipo de atendimento, qual o tipo, e, caso seja análise, se ela possui condições mínimas de analisabilidade, ou se ele próprio é o analista indicado". Herrmann prossegue enfatizando que "mais importante é antecipar corretamente como funcionarão juntos no campo transferencial, pelo menos o bastante para decidir que o processo tem alguma chance de ser produtivo. Não basta um paciente apto, aliado a um analista capaz, é preciso uma dupla minimamente ajustada".

Cordioli9 argumenta que a. seleção da intervenção maisapropriada e efetiva depende da habilidade do terapeuta, considerada muito mais como arte do que como uma ciência. Acrescenta que "nossos esforços serão mais úteis se nos dedicarmos a ajustar a relação terapêutica e o método clínico ao paciente e suas necessidades". Ou seja, a intervenção só é possível quando há consonância entre o que o paciente procura e o que o profissional tem a oferecer.

As propostas de avaliar se "duas pessoas podem ou não trabalhar juntas", se "uma dupla é minimamente ajustada" para iniciar um processo analítico, ou de falar na "arte" ou "habilidade" do terapeuta em escolher a intervenção mais apropriada e efetiva, trazem implícitas restrições pessoais utilizadas pelos profissionais para aceitar ou não o paciente, sem deixar claro o processo interno que cada um utiliza para tal. O que fazcom que um terapeuta aceite um paciente e "acredite" no bom prognóstico? Ou, ao contrário, o recuse preferindo encaminhá-lo para outro tipo de atendimento, "acreditando" não poder ajudá-Io? Quais os pressupostos que o terapeuta tem para si, nem

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sempre claramente delineados para os outros, os recursos de que lança mão, baseado na sua experiência, formação teórica etc., para avaliar o paciente possível?

Segundo Herrmannlo a resposta a esses questionamentos não é simples. Se nos referimos a recursos pessoais, incorporados à experiência de cada um, não podemos desmembrá-los e considerar cada parte isoladamente. Os recursos utilizados, para serem efetivos, formam um corpo de conhecimento integrado, que não é passível de verificações isoladas.

A experiência pessoal acumulada permite interpretar os dados obtidos formalmente e integrá-los num todo significativo. Esse processo tende a ser cada vez mais automatizado e rápido, quanto maior a experiência do profissional. A dificuldade de enumerar essas operações e explicitá-las decorre em parte dessa automação, que torna menos explícito o caminho percorrido.

Talvez possamos justificar melhor a dificuldade de ter acesso ao raciocínio clínico desenvolvido, recorrendo às contribuições de Figueiredoll, que discute os conceitos de conhecimento tácito (pessoal) e conhecimento explícito (representacional) a partir dos trabalhos de Polanyi. Para esse autor, a conhecimento tácito é aquele incorporado aos hábitos afetivos, cognitivos, motores e verbais de uma pessoa num nível de experiência em que sujeito e objeto ainda não estão totalmente separados. Isso torna difícil, senão impossível, transformá-lo em regras e instruções. Por outro lado, o conhecimento explícito, que pretende ser objetivo e reflexivo, poderia tornar-se disponível para o conhecimento (críticas, avaliações e correções).

Se entendemos o processo psicodiagnóstico a partir desta ótica, podemos considerar que a dificuldade de tornar explícitas as "crenças" que o psicólogo utiliza na aceitação ou não de um paciente e na indicação de uma intervenção mais apropriada

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advém do fato de tratar-se de um conhecimento tácito, pessoal, acumulado ao longo da experiência.

Figueiredol2 enfatiza que é ilusório pensar na possibilidade de elaborar um conhecimento explícito, objetivo e reflexivo que seja uma reprodução fiel do conhecimento tácito do psicólogo. Refere-se à idéia de que "a experiência incorporada, o conhecimento entranhado no corpo e nos seus órgãos não é totalmente transparente e convertível em teoria". E prossegue: "Na direção inversa, também, os sistemas de representação nunca serão totalmente incorporados às práticas, serão sempre compreendidos de acordo com as possibilidades abertas pelo conhecimento tácito e pessoal".

Neste sentido, ao entendermos o psicodiagnóstico formal e informal como processos configurados a partir do chamado conhecimento representacional e pessoal, constatamos

que não há como prescindir de um ou de outro. Permanecem como dois processos distintos, mas complementares.

Há possibilidade de buscar referenciais comuns, estabelecer regras para os fatores levados em conta na avaliação informal de um caso? Ou seja, é possível passar a própria experiência, senão integralmente, pelo menos parcialmente, delineando algumas regras que possam nortear os passos de outra pessoa?

Devemos supor esta possibilidade na medida em que se mantêm os atendimentos supervisionados na formação do terapeuta em uma determinada técnica e linha teórica. Não hácomo substituir a vivência e a experiência pessoal do profissional em formação, mesmo quando alguém mais experiente orienta seus primeiros passos. Segundo Herrmann13, o único modo de transmitir essa experiência a outra pessoa, é empreender com ela uma reflexão sobre "como se faz". Cada um deve viver sua própria experiência.

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Entretanto, como em qualquer outra área clínica, no caso do psicodiagnóstico os aspectos formais permitem que se ouse iniciar a experiência clínica. O psicólogo deve receber do supervisor a orientação mínima acerca das diretrizes que nortearão seu trabalho.

No psicodiagnóstico formal, é necessário que o psicólogo saiba qual o seu objetivo, de que instrumentos dispõe e como utilizá-l os para avaliar o paciente: se numa entrevista livre ou observação lúdica, se numa situação de aplicação de testes. Pode ser orientado quanto aos aspectos a atentar e investigar, quanto à seqüência e ao manejo adequado do material utilizado.

Na avaliação informal, o supervisor pode auxiliar o psicólogo na busca de suas posições primeiras, dos conhecimentos

e experiências em que se apóia no atendimento de seu caso.,

Contudo, o próprio psicólogo deverá aprimorar sua capacidade de avaliar. Trabalhos nessa direção, que analisam a avaliação informal, chegam a contribuir para o conhecimento formalizado, quando conseguem explicitar alguns de seus pressupostos.

No caso das psicoterapias breves, a especificidade da técnica de intervenção e a preocupação com os resultados determinaram a definição de critérios psicodiagnósticos a considerar no início do processo. Para tanto, a tarefa de investigar sobre o paciente através de testes, foi ampliada e passou a considerar também aspectos motivacionais tanto do paciente como do profissional e as condições mínimas requeridas de um e de outro. Como conhecimento mais objetivo, pode ser definido através de regras que, embora não excluam o uso de critérios mais subjetivos, podem ser enumeradas e explicitadas.

O profissional necessita das seguintes condições mínimas: formação teórica, disponibilidade física, temporal e pessoal para atender, postura ética etc. O paciente, por sua vez, deve poder comparecer e manter a freqüência mínima necessária para poder receber ajuda e, principalmente, ter motivação, de acordo com a concepção de Sifneos. Não basta que o profissional avalie o grau de comprometimento e a necessidade de psico

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terapia, Se o paciente não pode estar ali para isso, se não é capaz de fazer sacrifícios para mudar.

Neste sentido, vários estudos se preocuparam com a sistematização desses critérios para psicoterapia breve de adultos (MalanI4; SifneosI5), como tentativas de evitar indicações inadequadas, pouco frutíferas. Y oshida 16 faz uma extensa revisão das psicoterapias breves e sintetiza a idéia dos principais expoentes com relação aos critérios psicodiagnósticos. Destaca que a efetividade da intervenção decorre da dinâmica resultante da interação entre terapeuta e paciente, em que se levam em conta as condições tanto de um como de outro.

Embora não suficientes, essas diretrizes gerais permitem iniciar uma experiência que deverá ser completada com o desenvolvimento da habilidade pessoal para que o diagnóstico seja um processo proveitoso também para o paciente.

A habilidade pessoal que não pode ser transmitida pelo profissional mais experiente, não pode ser criada, mas deve ser desenvolvida pelo próprio indivíduo, integrará os recursos a serem utilizados na avaliação informal.

O que seria possível sistematizar para o diagnóstico informal? Um dos aspectos importantes a considerar, a partir das contribuições da psicanálise e da psiquiatria psicodinâmica, refere-se à contratransferência, aos sentimentos que o paciente desperta n o profissional. Gabbardl7 assinala que a experiência de um tratamento pessoal permite que o profissional distinga os sentimentos originados de conflitos inconscientes não- resolvidos dos sentimentos provocados pelo paciente, em qualquer pessoa com a qual tenha contato.

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Em que medida essas reflexões poderiam beneficiar nossa prática clínica? Como vimos anteriormente, o exercício do psicodiagnóstico nas instituições vem demonstrando que é necessário repensá-I o para que não sejam perdidos grandes investimentos. As filas de espera, os abandonos, são entendidos, na maioria das vezes, como resultado da inadequação do modelo utilizado para uma clientela que tem necessidades específicas que não podem ser supridas pela simples transposição do modelo de atendimento particular, a longo prazo, para as instituições.

Mas este quadro não parece ser simplesmente fruto desta inadequação, mas também de uma postura com relação ao que se considera prioritário para o paciente. submetê-lo a um longo processo que inclui triagem, psicodiagnóstico e encaminhamento pode parecer adequado do ponto de vista teórico, útil para o processo de formação do terapeuta, mas não se pode dizer que o seja também para o paciente.

Esta preocupação não se restringe ao trabalho institucional, mas atinge também o atendimento nos consultórios particulares, onde se adota o modelo tradicional de avaliação e encaminhamento.

Se, o terapeuta pudesse utilizar melhor seus próprios recursos na avaliação informal de um caso, para aproveitar a motivação inicial do paciente, talvez tivéssemos uma fila de espera menor e menor número de desistências.

Há necessidade de viabilizar uma intervenção mais direta, se não eliminando, pelo menos minimizando a lacuna entre psicodiagnóstico e psicoterapial8. O modelo tradicional de avaliação sugere que o paciente deve aguardar o término do processo para poder receber de volta a indicação e os efeitos benéficos de uma psicoterapia. Entretanto, podemos entender a distinção entre psicodiagnóstico e psicoterapia apenas como

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processos em que predominam um ou outro objetivo: investigar ou tratar. O que as reflexões sobre o tema têm mostrado é que estes objetivos se interpõem e que já a partir das entrevistas iniciais, o paciente se beneficia das intervenções do profissional, mesmo dentro de um processo psicodiagnóstico. A experiência do terapeuta pode permitir que se devolvam informações ao paciente à medida que se compreenda a sua dificuldade, desde que este possa recebê-IasI9. Isso poderá ser feito se a avaliação informal indicar que tal relação poderá trazer benefícios ao paciente.

Ao estabelecer diferenças entre as entrevistas psicodinâmica e médica, Gabbard20 cita Menninger e colaboradores, para afirmar que não só não há distinção entre diagnóstico e tratamento, mas que o tratamento precede o diagnóstico se entendermos que "o paciente vem para ser tratado, e tudo o que for feito, na medida em que lhe diz respeito, é tratamento, independentemente de como o médico o chame". Constatamos que a separação entre psicodiagnóstico e tratamento se faz mais como necessidade do profissional; o paciente nem sempre compartilha deste modo de entender o trabalho. Muitos deles, referindo-se ao psicodiagnóstico feito na instituição responsável pelo encaminhamento, falam de uma melhora decorrente do "tratamento" anterior. Neste sentido, a pessoa que busca ajuda pode sentir-se beneficiada já a partir do primeiro contato.

Como representante da psicanálise, Herrmann21 diz arespeito:

"O diagnóstico não é uma operação isolada que antecede a análise. É, ao contrário, uma das dimensões do trabalho analítico, cujo exercício vem a ser especialmente exigido nos primeiros contatos. (...) as entrevistas prévias já são análise,

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na medida em que nelas o método psicanalítico encontra-se em ação".Na psicoterapia breve, Fiorini22 a primeira entrevista "está destinada a cumprir não

apenas funções diagnósticas e de fixação de contrato; mais que isso (u.) ela desempenhará

um papel terapêutico". As propostas de fazer interpretações de ensaio logo nas primeiras entrevistas (Malan23; Sifneos24) têm o objetivo de avaliar se o paciente tem recursos egóicos adequados para se beneficiar da técnica, ao mesmo tempo que já proporcionam elementos para levá-lo a uma compreensão das suas dificuldades, revertendo em efeito terapêutico. A possibilidade de "estar junto com" o paciente implica já um efeito terapêutico dado pela sua aceitação pelo terapeuta.

Dentro dessa perspectiva, encontramos também as psicoterapias breves infantis, em que a distinção entre psicodiagnóstico e psicoterapia é menos definida, e o psicólogo, desde os primeiros encontros, pode fazer devoluções ao paciente. Essas intervenções breves têm maior chance de sucesso quando a consulta é carregada de potenciais transferenciais que favorecem uma forte aliança terapêutica e motivação para a obtenção de ajuda25.

A partir destas reflexões, podemos concluir que: no processo de avaliação, o profissional faz uso tanto do diagnóstico formal quanto do informal, como processos complementares de um mesmo trabalho. A avaliação informal, no início de qualquer processo, diagnóstico ou terapêutico, permite ao profissional uma integração dos dados obtidos formalmente e uma apreensão mais global do paciente, para decidir sobre a via-bilidade de uma relação específica de ajuda. Esta possibilidade

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depende da experiência, do conhecimento pessoal acumulado pelo psicólogo na percepção do outro, na leitura de suas necessidades, e dos recursos disponíveis ao paciente. Esta habilidade ou bagagem do psicólogo permite que o paciente se beneficie já a partir dos primeiros encontros, sejam quais forem os objetivos do atendimento: consulta, psicodiagnóstico ou psicoterapia. Pelo fato de ser pessoal, tal habilidade não pode ser pensada em termos de regras claramente delineadas, passíveis de ser transmitidas na íntegra de um para outro, embora um trabalho de análise desconstrutiva permita estabe-lecer alguns indicadores utilizados por grupos de profissionais ou para atendimentos específicos. Mas haverá sempre variações individuais no ajuste dos recursos próprios à regra básica, que justificam o termo "informal". O diagnóstico deixaria de ser informal no momento em que fosse objetivado, enumerado eexplicitado para o conhecimento.

Tal objetivação não é possível nem desejável. Pensar em objetivar seria pensar em anular as diferenças individuais na forma de perceber, compreender e sentir o outro, o que não é viável. Também não se deseja essa objetivação, na medida em que essas diferenças permitem maior riqueza e diversidade na compreensão de algo tão complexo como o ser humano.

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COMPREENDER OU ESTRANHAR: INCIDÊNCIAS NO PSICODIAGNÓSTICO'

Angela Maria Resende Vorcaro*

Nada criado que não apareça na urgência, nada na urgência que não engendre seu ultrapassamento na fala.

Jacques Lacan

Do psicodiagnóstico

A dispersividade das diferentes teorias psicológicas produziu, na prática psicodiagnóstica, efeitos de coesão que lhe permitiram uma institucionalização crescente. O estatuto destaprática não foi sustentado por uma teoria específica do sujeito. Por se ancorar na promessa de uma "descrição e compreensão o mais profunda e completa possível da personalidade total do sujeito ou do grupo familiar"2, o modelo que configura tal prática apoiou-se numa multiplicidade de pressupostos.

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No seu ensaio de "globalização compreensiva", a prática psicodiagnóstica combina atividades e instrumentos desenvolvidos nas mais diferentes perspectivas conceituais. Sustenta na mesma construção diagnóstica fragmentos das visões inatista, cognitivista, comportamentalista, genética e psicanalítica, que resvalam na diversidade das estratégias que a aparelham. Privilegiando as incidências técnicas de alguns conceitos, serve-se delas, ao preço de apartá-Ias do campo conceitual a que remetem e do objeto que visam. Tal "aplicação" fragmentária de teorias num mesmo processo (o psicodiagnóstico) cria uma ilusória homogeneidade conceitual, aplainada na suposta síntese do sujeito.

Nos seus movimentos de constituição, as práticas psicodiagnósticas eram basicamente tributárias da herança médica classificatória e diferencial assegurada pelo uso de mediadores psicométricos generalizáveis, que exigiam, como garantia de cientificidade, uma coleta de "dados empiricamente observáveis", obtidos, seja na anamnese, seja nos "estímulos" oferecidos ao paciente.

Posteriormente, com a adesão e incorporação de alguns conceitos oriundos da psicanálise (os que permitiam uma leitura desenvolvimentista e, também, a técnica do jogo, a transferência e a contratransferência), a neutralidade observadora mostrou-se insustentável e assumiu-se a pregnância de um campo transferencial que denunciava e obrigava a reconsiderar o limite empírico e a pretensa captação objetiva de dados. Constatou-se assim a submissão dos instrumentos (e suas bases conceituais).. interpostos entre o psicólogo e o sujeito à "relação" estabelecida.As condições de possibilidade desta relação adjetivada como ..intersubjetiva são hoje geralmente consideradas, quando se admite que tanto as manifestações do sujeito quanto a avaliação sustentada pelo psicólogo são efeitos desta relação.Portanto, o clínico "olha", "registra" o comportamento emergente e "deduz", interpretando os supostos sentidos desta .. conduta de algum lugar, de certo ângulo. Ele está necessaria- .

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mente incluído na cena não só por determinar a interpretação dos dados, mas também porque compõe, em sua presença e em sua própria demanda, a produção do "dado" pelo sujeito "examinado"3.

A constatação do limite das práticas psicométricas pela presença inegável dos efeitos intersubjetivos levou o psicólogo a substituir seu lugar até então de suposto observador de uma "personalidade" estática. Isso não implicou o abandono de instrumentos mediadores tradicionais, mas a independência destes em relação ao escopo teórico em que foram constituídos. Os mesmos instrumentos passaram então a ser usados e interpretados fora de seu eixo de sustentação, nos limites e nas possibilidades conferi das pelo psicólogo diante do que a situação diagnóstica lhe sugere. A subjetividade do psicólogo passa a definir o psicodiagnóstico. Infelizmente, a saída encontrada no "parecer psicológico compreensivo" não supera os obstáculos da prática anterior, mas apenas os camufla, posto que, na aplicação também fragmentária da psicanálise, a psicologia reduziu o estatuto da transferência ao de sugestão. Os conceitos psicanalíticos assumiram portanto a função de preceitos. A consideração da insuficiência teórica para lidar com as manifestações do sujeito não desencadeou a revisão da promessa de compreensão globalizante do psicodiagnóstico. Ao contrário, e, não sem incômodo, tal insuficiência ainda não intimou o psicólogo a circunscrever e problematizar os pressupostos inevitavelmente implicados na sua prática clínica. Na

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verdade, ela tem permitido supervalorizar os efeitos do imaginário do clínico.Encontramos, portanto, nesta prática, um exemplo claro daquilo que Dor4 definiu como

"espaço de inter-ações puramente empáticas", "campo de influências e de estratégias sugestivas".

Se o parâmetro básico da avaliação diagnóstica é o efeito que as manifestações do sujeito causam à subjetividade do clínico em que este último transforma o primeiro, oferecendo-lhe uma interpretação, cabe perguntar se a meta do psicodiagnóstico é a produção de compreensão a partir dos misteriosos efeitos da chamada interação.

O recurso à pluralidade de instrumentos e a constatação da relatividade da extensão de sua aplicabilidade obrigaram o psicólogo a acessar a complexidade constitutiva do sujeito. Mas, produziram, também, um sistema conceitual coagulado, esfacelado, mesmo que, por serem aplicados por um clínico a um paciente, sugiram homogeneidade. Esta clínica corre o risco de criar compreensões abusivas, calcadas no imaginário do psicólogo que veste, e colore, a produção do sujeito.

Efetivamente, nos deparamos com os limites da psicologia. Suas práticas, como diz Figueired05, tentam fazer ecoar uma voz nunca pronunciada. Não é possível, a partir desta afirmação, passar ao largo de algumas questões: o que esta efusão de ecos pretende capturar? e ainda, por que a psicanálise foi convocada para recobrir (na consciência

compreensiva) exatamente aquilo que insistiu em apontar (a impossibilidade de tradução do inconsciente)?

Refletir sobre a clínica diagnóstica exige, a meu ver, considerar seu impasse: problematizar a promessa de compreensão e a pregnância do que lhe é lacunar.

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Numa primeira aproximação desse impasse, trago à consideração o modo de funcionamento de uma clínica diagnóstica que pode se tornar "operador" na reflexão sobre as práticas psicodiagnósticas partindo da crítica de Lacan à suposta naturalidade da comunicação bipessoal entre clínico e paciente.

Problematizando a idéia da relação interpessoal ou recíproca clínico/paciente, na medida em que esta pressupõe a transparência da fala para quem a articula e para quel;Il a escuta, Lacan6 considera a relação a três e não a dois. Propõe tomar a fala do paciente como o terceiro elemento a ser situado para além do paciente e do clínico enquanto unidades corpóreas em interação. A palavra do paciente é discurso que toma triádica a relação entre clínico e paciente, posto que o inconsciente se manifesta na fala. Portanto, sobre a palavra dita há desconhecimento. Desconhecimento tanto daquele que fala, como daquele que ouve. Tomando como referência o paciente, sua palavra o ultrapassa, fala para além do que ele diz, para além de suas "intenções". Se o paciente diz, mas não sabe o que diz, o clínico escuta, mas não sabe o que ouve. Compreender é, portanto, equivocar-se.V árias são as concepções da psicologia que acreditamque a fala é apenas um entre tantos canais de expressão, um dos meios de comunicação de um mundo interno que lhe é independente e previamente constituído. Ao contrário, a fala, para além da consciência, é apelo ao reconhecimento por um outro. A fala é focus privilegiado de constituição do sujeito em sua inédita reedição diante de um ouvinte específico. A busca de compreensão das intenções do sujeito perturba e ofusca a escuta, ao manter não audível aquilo que o sujeito fala. O estabelecimento de significado na ilusão de objetividade ou na valorização de efeitos sugestivos anula, esquece ou nega

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a singularidade daquela, em função da preservação da coerência da escuta e da correlação desta com um significado preenchido pela referência imaginária do clínico.

Pelo contrário, a condição da clínica psicanalítica decorre da consideração dos efeitos da linguagem, ou seja, do inconsciente e de seu sujeito, na opacidade do que fala. A clínica se exerce na valorização daquilo que, na fala do paciente, não se compreende. Supor que há compreensão possível é pressupor uma única relação dos sujeitos com a linguagem, é considerar a ordem simbólica congelada e apropriada uniformemente. É, enfim, assumir uma teoria da linguagem enquanto reflexo do pensamento intencional consciente. Aí a relação entre significantes acomodaria, entre dois sujeitos, um valor unívoco, significados

espelhados a serem descobertos, mas que já estariam escondidos num mundo interno do paciente e seriam desvendados pela nomeação do clínico. Nesta redução da língua a código, as palavras do paciente seriam meras representantes de um sentido "definível" e independente, seja da cadeia discursiva do sujeito que fala, seja da articulação dos signifi-cantes usados, seja ainda do momento em que este sujeito fala ou do clínico para quem o sujeito fala.

O clínico é intimado a enfrentar o próprio desconhecimento quando toma a fala do paciente como mediadora da clínica, como enigma de uma demanda. Afinal, é na incerteza que a fala é plena. Por isso, o parâmetro que orienta a clínica psicanalítica é o efeito da linguagem: a opacidade da fala que vela e desvela o inconsciente. Diante da fala do paciente, o clínico não pode se esquivar à pergunta:

O quê se faz reconhecer na opacidade da fala?

Para uma aproximação da pergunta acima, deve-se ler em Lacan 7 que o "eu" é referente ao "outro", se constitui em

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relação ao outro. Ele é seu correlato. O nível no qual o outro é realizado na palavra do sujeito situa o nível no qual o eu existe para o sujeito. "É sempre num certo nível, num certo estilo da relação ao outro que se projeta o ato da palavra"8.

Nas ambigüidades da linguagem o inconsciente revela, cria e atualiza: "Ponta pela qual sua ordem inteira se anula em um instante - ponta, com efeito, onde sua atividade criadora desvela sua gratuidade absoluta, onde sua dominação sobre o real se exprime no desafio do não-sentido, onde o humor, na graça maldosa do espírito livre, simboliza uma verdade que não diz sua última palavra"9.

o testemunho da clínica e a clínica com testemunha

A função de demonstração que caracterizou a prática pública de Charcot implicava a apresentação de pacientes como "espetáculo da ciência ou ciência do espetáculo" 10 ao remontar e renomear, no hospital, as práticas do magnetismo I I. Mantendo seu locus e revolucionando seu estatuto, Lacan inventou a "présentation clinique" como ato psicanalítico.

Bergésl2 recria essa prática às terças e quintas em um hospital de Paris. Preservando o ato, ele resgata a legitimidade da fala da criança como possibilidade da clínica. Configura, então, uma cena pública para confrontar o discurso médico, psicológico, pedagógico e fonoaudiológico com a fala da

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criança. Isso sempre nos casos em que os procedimentos usuais destes. profissionais mantiveram o diagnóstico em situação de impasse. Esta demanda dos especialistas é problematizada e confrontada com o discurso da criança. Assim, sem considerar possível a mera rejeição das práticas instituídas, que produzem discursos sobre o mal-estar da criança e seus efeitos no outro, Bergés propõe investigar nelas a emergência de seus lugares de incertezas, equívocos e mal-entendidos, para transformá-Ias em lugar privilegiado, já que é a partir dele, deste lugar, que o clínico pode não apenas reconhecer a palavra da criança, mas também submeter pressupostos à interrogação. A submissão do clínico à escuta do paciente privilegia a fala como enigma de um "assujeitamento" singular. O exercício desta prática diante de testemunhos cria a urgência de limitar as impregnações imaginárias que aí incidem.

Do cenário

A clínica pública é uma possibilidade de tomar a fala como lugar de reconhecimento e de testemunho do incompreensível. Isso se dá num cenário composto pelos especialistas que diagnosticaram "funções" da criança com base nos mais diversos pressupostos e instrumentos. Tal abrangênciapermite qualificá-Io como o discurso social sobre a criança. Uma audiência substancial contorna o espaço em que o responsável pela pré-consulta inaugura a sessão, apresentando a queixa e o discurso familiar que a sustenta. As lacunas, contradições, repetições, surpresas permitem novas aproximações, iluminando, por vezes, demandas "laterais" e mitos que situam a criança ou que determinam a produção sintomática. Em seguida, cada especialista lê as conclusões de suas avaliações, apontando a especificidade da fala da criança em cada situação em que apreendeu singularidade. Novas lacunas, repetições, contradições e surpresas provocam indicações para a formulação de hipóteses sobre a lógica do funciomimento da criança. Tal situação põe em cena não apenas a criança, mas cada profissional, posto

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que eles são intimados a explicitar como opera a referência teórica que leva a um. determinado raciocínio clínico.

Ao chegar à sala, a criança se depara com uma cena pública em que tomará a posição principal, a de ator/autor. O clínico, visando fazer circular um discurso, convida a criança a se posicionar em relação à demanda: "E então, por que você veio me ver?", "o que é que o chateia?", "o que é que mais o incomoda?" "Explique pra mim como isso aconteceu!" A partir das respostas da criança, o clínico procura aproximar-se da dificuldade reconhecida por ela. Se, por exemplo, a criança diz que não consegue ler, mas não conse~ue dizer o porquê, esta situação é explorada, com humor: "E por gue você não gósta de prestar atenção; você prefere sonhar?", "E a professora que o incomoda?", "Você pensa em outras coisas?", "Você não consegue ler as palavras ou você não encontra o sentido delas?" Justifica as perguntas feitas, afirmando o próprio desconhecimento sobre o que se passa: "Eu pergunto tudo isso porque não posso entender o que se passa com você. Nos testes que fizeram com você não encontraram nada, não há nada que justifique esta dificuldade."

Na especificidade da formulação da queixa pela criança, surgem significantes que permitem introduzir uma variedade de temas relativos à história da criança, contados por ela mesma. Histórias da família, dos pais e dos avós, trabalho dos pais, atitude destes

diante das dificuldades apresentadas, grandes mudanças, nascimentos de irmãos e teorias que os sustentam, ciúme próprio e de irmãos, facilidade para fazer amigos, dificuldades para dormir, medos, sonhos, pesadelos e dores, jogos e prazeres preferidos são temas muitas vezes abordados. Diante de atitudes reticentes de algumas crianças, o convite a falar é precedido de comentários ("ah, você aprende palavrões na escola e depois eles ficam colados na sua orelha") ou afirmações que repetem falas de outras crianças ("no outro dia um menino me disse... o que você acha?"), exemplos aleatórios ("tem gente que tem medo de coruja, de e scuro, sei lá, de mil coisas diferentes.

E você, tem medo de alguma

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coisa? ou posições pessoais Eu sou péssimo em futebol, não entendo nada. Me explica como é que você faz, o que acontece no jogo. Questões que abrem a possibilidade de a criança formular sua expectativa em relação à superação da dificuldade, os rituais supostos quando você acha que vai começar a trabalhar na escola, as tentativas de superar os problemas apresentados, seus efeitos e se a criança acha que pode ser ajudada precedem uma proposta de encaminhamento, feita diretamente a ela e, em seguida, aos pais (muitas vezes não publicamente. As conclusões, formuladas e discutidas com a audiência, propõem hipóteses e questões sobre o funcionamento da criança a partir da posição em que esta se coloca na lógica do funcionamento discursivo, salientam enigmas, furos, que se fizeram presentes e que justificam os encaminhamentos dados.

O que cabe ressaltar, especialmente nesta interlocução a dois na presença de um terceiro multiplicado, é que se exige que a criança fale. Neste ato, explicita-se a expectativa do clínico (articule sua demanda!) e a posição da criança (de falante reconhecido como tendo algo a dizer). Aquilo que escapa à coerência do discurso intencional da criança é sublinhado, transformado em piada, repetido num outro contexto ou prolongado. Deslizamentos de sentidos, omissões, silêncios, equívocos, metáforas, negativas, trocadilhos, contradições, diferenças fonéticas, expressões e tudo o que evidencie hetero-geneidade na fala é ressaltado ou desenvolvido, seja repetindo o começo de uma frase, seja estendendo uma frase dita pela criança, seja, ainda, levando a criança a dar continuidade a uma frase iniciada pelo clínico. A interlocução é marcada basicamente pelo lugar de interrogação da opacidade do dito como um campo desconhecido, evidenciando o não compreender, numa aposta na possibilidade de a criança ir além do jádito. Por vezes, ao contrário, muda-se o cenário, estabelecendo-se uma situação de suspensão de falas, momentos de silêncio que interrompem a interlocução muitas vezes quando a criança.

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não parece envolvida nesta) que obrigam a criança a se engajar com seu corpo; a partir de um "quero ver o que você sabe fazer", o clínico convida a criança a se levantar e se afastar dele, seja para imitar gestos, ritmos e/ou reproduzir grafismos assinando seu nome. Retomam em seguida a interlocução de um lugar inesperado, seja porque o clínico o

introduz, seja porque a criança reconstitui o já dito de um outro lugar onde este pode ser articulado.

Dos efeitos da cena

Tanto quanto o clínico e a criança, a presença da audiência é determinante neste acontecimento que intima a função subjetiva dos protagonistas.

Considerando que o paciente se encontra mergulhado numa ação (drama) que implica uma dinâmica fantasmática da coisa em ato, Dorey 13 qualifica a "apresentação" clínica como testemunho, apreendido sob três incidências diferentes e complementares, em que o campo transferencial é bem particular:

I. o testemunho do sofrimento dado pelo discurso dopaciente, reatualizado pela presença dos outros protagonistas;

2. o testemunho da relação do analista ao inconscientedo outro e à teoria;

3. o testemunho da assistência por seu olhar e sua escuta. Olhar terceiro que mediatiza a interação entre analista e paciente, a audiência pode represar partes imaginárias desta troca por se impor enquanto representante da ordem simbólica. A audiência cauciona o dizer do analista e do paciente, conferindo-lhe nova eficácia.

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Definindo a "présentation clinique" como tomada da palavra, Porge14 afirma que a audiência representa um mesmo olhar em nome do qual clínico e paciente falam. A assistência não é uma multidão que vai eleger, tomar partido de um contra o outro, que a ela se dirigem apenas indiretamente: "atualização de um limite que não é representável mas que tem tanta realidade quanto uma corrente de cem mil volts. Este limite é o olhar, é a voz, é o corpo".Limite da onipotência daquele que interroga, o público tem efeito antipersecutório sobre o paciente, em relação ao .saber do clínico.Terceiro que se interpõe (...) na medida em que nenhum dos dois atores tem o domínio. Se domínio deve aí haver, ele não passa pelo afrontamento dos dois atores, mas pelo assenhoramento pela palavra de alguma coisa onde este público será o lugar de realização de uma intenção (como no Witz, segundo Freud), que não é formulado anteriormente e que não é dominável por nenhum dos dois interlocutores.15A situação é dramatizada pelo paciente, mas também pelo clínico, lembra Porge, na medida em que a assistência torna o savoir-faire deste último um risco assumido. E o clínico não está jamais assegurado porque não sabe o que será dito - lógica de jogo que introduz uma aposta, sincronia de três lugares que instauram fendas numa cena na qual cada um age sobre o outro simultaneamente, criando lugar para o inusitado.

Toda fala é endereçada a um outro, diz Lacan16. A fala permite o ensaio do trabalho de reconstrução do sujeito "para um outro" e faz com que o sujeito reencontre a alienação fundamental de sua construção "como um outro". A fala está

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posicionada em relação ao outro e o intima a uma resposta, procura reconhecimento na resposta do outro.

Quando o clínico apresenta uma questão ao paciente, ele o incita a se engajar, ele o convida a dar o testemunho de si, ele lhe sugere que rejeite ou acolha o dito. A presença da audiência transforma o convite em intimação. Amplificação do efeito de apelo operado entre o clínico e o paciente, o olhar e a escuta constituem um campo de espera instigadora da urgência da palavra a ser dita. A audiência silenciosa cria expectativa, faz efeitos, posto que, além de tornar presente no real a ordem simbólica, faz efeitos imaginários que permitem corte e escansão na interlocução, e portanto produz deslizamentos significantes. Força, assim, a retomada do turno dialógico e intima a inscrição da função subjetiva pela fala do clínico e do paciente, na ordem simbólica. Numa posição de borda, em sua passividade do "nada a dizer" e na atividade de seu olhar e escuta a audiência é a possibilidade da fala singular no limite da linguagem, em que se fala mais do que se quer dizer, precipitando na fala o que estava capturado pela queixa.

Reconhecendo o desconhecido, este pode ser introduzido em novas cadeias discursivas, permitindo por vezes um reposicionamento da demanda antes queixa.

Considerações

Este artigo apresentou alguns matizes da clínica pública, não para incitar a sua reprodução, mas para salientar os princípios que discutem a hipótese compreensiva do psicodiagnóstico. Trata-se de uma clínica que implica o discurso psicanalítico, em intenção e em extensão, realizada num contexto e num estilo muito particular cuja importação ou mera aplicação poderia marcar uma prática selvagem. Pretendo chamar atenção para o campo da fala e da escuta na clínica, como possibilidade, não de busca de homogeneidade, coesão e síntese, mas de fazer ou apontar irrupções em discursos constituídos e de reconhecer

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o inapreensível. Suponho que aí residam condições para lidar com a necessidade de criar espaços de problematização da psicologia, que não pode se esquivar de ser submetida ao olhar, às perguntas e ao enfrentamento de terceiros, caso queira analisar o caráter eminentemente imaginário em que se encontra aprisionada.

O psicodiagnóstico, prática clínica da psicologia mais instituída e ao mesmo tempo mais precária em sua consistência interna, deve ser exposto à investigação, às suas lacunas e aosequívocos de suas adesões teóricas fragmentares. Talvez assim ele possa se deslocar da função de resposta ao "que é?", "que fazer?", para em vez de aliviar, no seu projeto e na sua promessa, o desconforto próprio ao exercício de uma profissão de estatuto tão frágil, melhor configurar seus lugares de pertinência, suas possibilidades, e, especificamente,

seus limites.Talvez seja possível assim enfrentar um dos maiores problemas implicados no

psicodiagnóstico, ou seja, seu tributo à alienação, pelo apagamento do que resta e insiste. Por se propor a abranger e a vasculhar todo o campo de manifestações subjetivas, respondendo a solicitações de outros profissionais, da família ou do sistema escolar, muitas vezes atende o pedido de antecipar e assumir pelo paciente e pelo solicitante a formulação das respostas às queixas que Ihes são próprias. Nomeando e explicando, num exercício de tradução, incômodos situados alhures, toma posição a priori incidente e determinante, não só do processo, mas de seus desdobramentos: o não engajamento dos queixosos.

Afinal, o diagnóstico não poderia ser ex-centrado do lugar de promessa compreensiva para um campo de interrogação dos discursos: da queixa do paciente, do corpo teórico, da psicologia e do psicólogo?

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REFORMULAÇÃO DO PAPEL DO PSICÓLOGO NO PSICODIAGNÓSTICO FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL E SUA REPERCUSSÃO SOBRE OS PAIS

Gohara Yvette Yehia*

Levantamentos realizados em instituições que oferecem atendimento psicológico à comunidade mostram que grande parte da população que as procura é constituída de pais de crianças com alguma dificuldade, de aprendizagem, de comportamento, ou outra.

O psicodiagnóstico infantil continua sendo uma prática desenvolvida por psicólogos, principalmente quando o cliente procura uma instituição, uma vez que a partir dele pode-se chegar a uma escolha e indicação terapêuticas melhor fundamentadas.

O psicodiagnóstico infantil realizado nos moldes tradicionais consta de uma ou duas entrevistas iniciais com os pais, para que o psicólogo entre em contato com a queixa, a

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"dinâmica familiar e o desenvolvimento da criança, de testagem da criança e, depois de avaliados os testes e integradas as informações obtidas, de uma ou duas entrevistas devolutivas, nas quais o psicólogo apresenta aos pais suas conclusões diagnósticas e sugere os passos seguintes a serem trilhados: psicoterapia da criança, orientação aos pais, psicomotricidade etc. .

Observamos que os pais que comparecem para os atendimentos indicados a partir desta maneira de desenvolver o psicodiagnóstico, quando comparecem, mostram pouca motivação para os mesmos. Quando questionados a respeito do atendimento anterior (o psicodiagnóstico) revelam desconhecimento do processo pelo qual passaram, limitando-se a repetir a queixa inicial, agora acrescida da indicação terapêutica.

Glguns mostram-se decepcionados com os resultados desse atendimento, que não trouxe os benefícios que dele esperavam:

De fato, eles e a criança foram várias vezes ao psicólogo, e isso apenas redundou em uma melhora inicial, após as primeiras sessões, reaparecendo em seguida os sintomas que haviam motivado o encaminhamento.

C A melhora à qual os pais se referem é um fenômeno conhecido na prática do psicodiagnóstico, e em geral é atribuída à atenção que a criança recebe. Atenção dos pais que a acompanham uma vez por semana ao local do atendimento, dedicando-lhe assim uma parte de seu tempo; atenção do psicólogo que a atende, mesmo que seja apenas para aplicação de testes e realização de observações.

É claro que, para o psicólogo que realizou o trabalho, este se constituiu numa etapa importante do processo. Permitiu-lhe fazer uma indicação terapêutica mais adequada às necessidades do cliente já que baseada na compreensão do que estaria acontecendo com a criança e a dinâmica familiar.

Mas, e os pais? Será que para eles o atendimento só deveria tornar-se efetivo na psicoterapia? Será possível ofere

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cer-Ihes, em troca de suas idas ao psicólogo, algo além de uma indicação cujo significado eles ainda mal compreendem?

O psicodiagnóstico fenomenológico-existencial ofereceume e à equipe com a qual trabalhava I uma alternativa viável que se mostrou bastante satisfatória, quando enfocamos sua repercussão tanto sobre as crianças2 , como sobre os pais, como veremos mais adiante.

o papel do psicólogo e do cliente no psicodiagnóstico fenomenológico-existencial

Todo ser humano está mergulhado no mundo que está sempre presente, embora muitas vezes passe despercebidoLO sentido dos objetos está na relação que eles têm com uma totalidade estruturada de significados e de intenções inter-re

lacionadail Conseqüentemente, o mundo não é obstrutivo, nemo são os objetos do mundo com os quais nos relacionamos diariamente. Isso significa

que, no nosso dia-a-dia, estamos com os objetos de uso corrente, com as pessoas, com nossa família, nosso filho, sem a todo momento nos perguntarmos a respeito do significado de cada coisa.

Entretanto,C9uando há "ruptura", quando falta algo que

deveria haver, é que passamos a notar certos objetos. Similarmente, quando a criança começa a apresentar atitudes e comportamentos que rompem com algumas expectativas dos pais, dos professores ou de outros agentes da comunidade,

surge o encaminhamento ou a busca espontânea do psicólogo.] É neste momento que podem ser problematizadas, questionadas, as relações dos pais e da criança consigo mesmos, com o mundo e com os outros.

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É neste contexto que o psicodiagnóstico se propõe explicitar o sentido da experiência do cliente. Quando se trata do psicodiagnóstico infantil, o trabalho com os pais visa explorar o significado da queixa trazida, dos sintomas apresentados pela criança, a compreensão que eles têm de sua própria situação e de sua relação com o filho.

Poder-se-á argumentar que estes são os objetivos do psicodiagnóstico em qualquer abordagem. Sim, mas este trabalho acaba muitas vezes servindo apenas ao psicólogo que realizou o trabalho, sendo de pouca ou nenhuma utilidade para o cliente, apesar das sessões devolutivas.

Uma das contribuições do psicodiagnóstico fenomenológico-existencial está na reavaliação do papel desempenhado pelo cliente e pelo psicólogo, nesta situação em que o cliente se torna um parceiro ativo e envolvido no trabalho de compreensão e eventual encaminhamento posterior.

Em trabalho anterior3, já sugeria que "mesmo sendo a criança a precisar de atendimento psicológico, são os pais que arcam com muitos dos custos do atendimento infantil: o tempo para levar e buscar a criança, o pagamento das sessões (quando estas são gratuitas, o pagamento das conduções) e os possíveis efeitos transformadores do atendimento infantil na dinâmica da farnília".pesta forma, sem informações, apoio e motivação para este atendimento, fica difícil esperar que os pais estejam dispostos a levá-lo adiante.

Portanto, durante o psicodiagnóstico, e mesmo durante a psicoterapia, quando o paciente designado é a criança, a participação dos pais é extremamente importante.

Por isso, quando recebo pais encaminhados pela professora, pelo pediatra ou por outro agente, trato de trabalhar, desde o início, o significado que este encaminhamento tem para eles.

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mesmos. Enquanto, a necessidade de atendimento psicológico não tiver sentido para os pais, que limitam-se a seguir a indicação de um outro profissional, e a conformar-se com ela, como se estivessem obedecendo a uma autoridade, fica mais difícil, senão impossível, contar com sua colaboração 'ativa. Esta é imprescindível para que consigamos compreender juntos o que pode estar ocorrendo com a criança e, eventualmente, com os próprios pais.

Outro ponto que costumo focalizar é como os pais entendem o atendimento psicológico, sua expectativa em relaçãõa ele. Ofereço-Ihes

esclarecimentos a respeito da minha proposta de trabalho, que consiste em tentar compreender o que está acontecendo com a criança no contexto pessoal, familiar e social. Estes esclarecimentos fazem com que eles entendam melhor por que sua própria participação no processo é importante e quais são os limites do trabalho, e também permitem que decidam, desde o início do atendimento, se estão dispostos a compartilhar deste projeto. Desta forma, o psicodiagnóstico pode se desenvolver sobre bases comuns

entre o psicólogo e o cliente. O trabalho de Larrabure a respeito dos Grupos de Espera4 serve-me de referência para esta fase do processo.

A reavaliação do papel do psicólogo levou-me a uma mudança de postura. Não sou mais o técnico, o detentor do saber que oferece respostas às perguntas trazidas pelos pais. Enquanto psicóloga, também sou uma pessoa, tenho conhecimentos específicos, é certo, mas não parto do pressuposto de que estes têm um peso maior que os conhecimentos que os pais têm a respeito de sua vida, de seu filho. Meus conhecimentos, teóricos, técnicos e os provenientes de minha experiência pessoal representam apenas um outro ponto de vista.

A situação de psicodiagnóstico torna-se então uma situação de cooperação em que a capacidade de ambas as partes.

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observarem, apreenderem, compreenderem constitui a base indispensável para o trabalho. Tanto os pais como o psicólogo observam a si mesmos e ao outro, tanto os pais como o psicólogo procuram compreender o que está sendo vivenciado, sendo que a compreensão dos pais e a do psicólogo são equivalentes e compartilhadas. .

Ao psicólogo cabe compreender a pergunta. Compreender é participar de um significado comum, do projeto do cliente, de sua abertura e limitações para o mundo. É importante identificar os acontecimentos e a forma como se desenvolveram em relação a seu contexto, gerando a pergunta, precipitando a crise e levando ao pedido de atendimento.

A primeira sessão com os pais geralmente se desenvolve a partir daquilo que eles trazem como sendo a pergunta, estendendo-se ao projeto estabelecido por eles em relação ao filho, aos focos de ansiedade e sentimentos mobilizados.

Com a finalidade de tornar minha exposição menos teórica, utilizar-me-ei de trechos de sessões do psicodiagnóstico de J., realizado na Clínica Psicológica Objetivo, em 1991, no setor de atendimento a superdotados5. As sessões foram gravadas com a finalidade de realizar minha pesquisa de doutorado.

Os pais de J., 9 anos, procuraram-me porque ele talvez fosse superdotado e, neste caso, eles queriam ser orientados em relação à melhor forma de lidar com ele. Nas palavras da mãe: ele é diferente das outras crianças; é muito quieto, gosta de ler, de desenhar. No maternal, os professores recomendavam que eu tirasse ele de lá e colocasse numa escola especializada, que ele desenha muito bem e tem muitafacilidade para aprender. Eles têm medo que o filho possa ficar desmotivado e eventualmente "vagabundo". A escola especializada seria aquela que acompanhasse o ritmo das necessidades do filho. Ao longo desta primeira entrevista, o

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filho aparece como um menino muito meigo, muito sensível, ele procura agradar as

pessoas, não gosta de ficar agredindo com palavras ou com atitudes, é muito atencioso, muito melódico, gosta de tudo arrumadinho. Os pais trazem a preocupação da irmã de que ele se torne um menino chatinho, "cd/". O pai tem medo que J. fique um moleque muito voltado para ele mesmo, não aproveite a vida'.

Por outro lado, os pais descrevem J. como uma criança independente, líder quando se trata de atividades que o interessam, mas que se cansa facilmente, retirando-se das brinca-deiras quando estas não o interessam. Não tem muitos amigos e não costuma descer para brincar no playground. Percebo aqui, além da preocupação inicial referente à escola, uma outra: a sociabilidade da criança. Mais tarde, nesta mesma entrevista, a mãe pode trazer outra queixa: o pai, a escola, a família em geral, pressionam e criticam-na por causa de sua forma de lidar com o filho, que poderia vir a torná-Io efeminado. O filho é chamado de maricas pelos outros porque ele prefere desenhar e ler, ficar sozinho a brincar do jeito deles: então eu fico preocupada, ele é uma pessoa diferente! Pesquiso o que é para cada um deles "ser menino". Posso perceber diferenças de expectativa do pai e da mãe em relação ao filho: [o pai diz] um menino, sabe, boné do lado, sujeira no rosto, subir no muro, esta é a imagem que tenho. [A mãe] eu não consigo imaginar que um menino, para ser homem, moleque, tem que ser agressivo, precisa ser boca suja, ser bruto ou precisa ficar falando besteira sobre coisa de mulher, eu acho que um menino pode ser menino sendo uma pessoa educada, fina.

Nesta primeira sessão, tenho então a queixa de um menino que os pais e a escola vêem como "diferente"; esta diferença é relatada inicialmente em termos escolares e acaba abarcando a forma de ser desta criança, sua maneira de lidar com a agressividade, acarretando dúvidas a respeito de sua identidade masculina o que provoca uma série de discussões em casa a respeito da maneira como a mãe o educa.

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Para compreender o que os pais relatam, em geral utilizo meus conhecimentos teóricos, minha vivência, minha experiência anterior. Aceito as observações dos pais a respeito daquilo que eles vêem, pensam, concluem, e procuro ampliar seu campo de visão, contextualizando a queixa particular, inserindo-a num quadro mais amplo. .

Observo e assinalo aos pais aquilo que consigo apreender da relação deles com o filho e entre si (quando comparece o casal). Esses assinalamentos não são considerados verdades, mas apenas - possibilidades de compreensão que podem ser aceitas ou não por eles. Desenvolvo um trabalho alternado de focalização e ampliação, procurando explicitar o significado .dos fenômenos para os pais e para mim mesma.

A compreensão dos pais é valorizada, está no mesmo nível da do profissional. Costumo dizer aos pais que eles têm um conhecimento do filho que é extremamente importante para o desenvolvimento do psicodiagnóstico. Muitas vezes eles não entendem por que, já que procuraram o psicólogo com uma queixa a respeito do filho, são eles que precisam comparecer a tantas entrevistas; por que eles, enquanto pessoas, são ques-tionados. Por isso, esses esclarecimentos são muito importantes. Trata-se de um trabalho em que a cooperação é um pré-requisito que deve ser assumido por ambas as partes, embora, de forma geral, as pessoas estejam acostumadas a buscar os serviços de um profissional, detentor do saber e do poder, que lhes indicará a origem do problema e os caminhos a seguir.

a esclarecimento da pergunta pode se desenvolver em uma ou duas sessões. Entretanto, ao longo do processo, ela permanece. como um pano de fundo para outras questões aspecto que possam surgir.

Assim, voltando a J., quando os pais se referiram à "escola especializada", perguntei-Ihes como o filho se sente na escola que freqüenta, uma vez que, por um lado, sei que não existem escolas especializadas para superdotados e que, por outro, há muitas idéias, às vezes contraditórias, em relação ao que qualquer escola deva oferecer. Meu critério para indicar

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ou não uma mudança de escola é a satisfação ou não da criança com ela, desde que a escola preencha os requisitos mínimos para ser considerada aceitável pelos padrões usuais. Por outro lado, minha valorização da queixa da mãe em relação à sociabilidade do filho (prefere ficar sozinho a brincar com os outros; quieto, gosta de ler e de desenhar) é diferente da dela já que meu contato com a literatura a respeito de crianças superdotadas6 me permite saber que muitas delas apresentam estas características, informação que utilizo para inserir a queixa da mãe num contexto mais amplo, contando-lhe. o que sei a respeito. Ao longo das primeiras entrevistas foi ficando mais claro que aquilo que mobilizava os pais era a questão da identidade sexual da criança, o que gerava discussões quanto à forma como a mãe lidava com ela.

Na segunda ou terceira sessão, antes ainda de conhecera criança, utilizo-me de um roteiro de anamnese. Há muitos roteiros de anamnese disponíveis e, ressalvadas algumas diferenças de organização, em geral enfocam aspectos do desenvolvimento bio-psico-social da criança. É uma prática utilizada por vários profissionais (médicos, assistentes sociais, psicólogos), sendo que cada um focalizará os aspectos que mais lhe interessem para a compreensão do fenômeno que está estudando. Além disso, serve para que os pais se debrucem sobre sua experiência passada e presente com o filho, podendo esclarecer sentimentos e expectativas que atuam no relacionamento com a cnança.

O roteiro que uso me permite observar formas de relacionamento na família, focos de ansiedade, distribuição de forças na dinâmica familiar. Compartilho minhas impressões com os pais à medida que elas se tornam mais claras para mim. Elas servem de ponto de partida para sua própria reflexão a respeito dos fenômenos que focalizamos.

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Em geral, através de minhas intervenções, procuro promover novas possibilidades existenciais na medida em q~e trabalho com o outro a transformação de seu projeto.LO conhecimento que o cliente traz é valorizado, e é a partir dele que minhas falas terão ou não sentido. Por outro lado, para que seja eficiente, a intervenção deve pertencer ao campo de possibilidades do cliente, margeando aquilo que ele não compreende, uma vez que, se estiver distante deste campo, ela poderá não ser compreendida ou ser recusada por ele.

Uma vez realizado este roteiro, tenho uma imagem da criança e do relacionamento familiar. Explicito esta imagem para mim mesma e para os pais. Por enquanto, ainda não conheci a criança, e esta imagem se dá a partir dos relatos dos pais aliados à minha com reensão, sempre compartilhada e discutida com eles.

No caso de J., através da anamnese, os pais contam que a gravidez foi muito desejada, embora tensa, uma vez que antes de cada gravidez a termo a mãe sofreu abortos para os quais os médicos não haviam encontrado explicação. A mãe que, na primeira sessão, se queixara de estar sozinha para educar os filhos e lidar com os problemas do dia-a-dia, mostra que não gosta de interferências familiares quando se defronta com uma situação difícil, preferindo em geral resolver seus problemas sozinha. Noto portanto uma incongruência, que aponto, entre o que ela sente e como lida com as situações. O pai, examinando sua própria forma de se comportar diante de situações difíceis, nota que é menos "corajoso" que a mãe,

. precisando da aprovação dos outros quando se trata de tomar uma decisão. O parto foi cesariana, e a mãe ficou muito desconfiada em relação ao anestesista e ao médico que não eram aqueles com os quais estava acostumada.

Outros episódios do desenvolvimento da criança revelam superproteção, muita ansiedade materna quanto à confiança na capacidade do filho de resolver certas situações, controle decorrente desta falta de confiança, participação do pai quando as crianças estão pequenas mas seu afastamento em função

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de sobrecarga de trabalho passados os primeiros meses. Ainda de acordo com essa descrição, o filho tem algumas necessidades de criança pequena (bichos de pelúcia com os quais dorme até hoje), ao mesmo tempo em que mostra interesses e capacidades de uma criança maior.

Antes de conhecer a criança, há mais um aspecto que é importante trabalhar com os pais: é o que diz respeito às informações forneci das à criança quanto ao trabalho que está sendo desenvolvido e do qual ela irá participar. 'Muitas vezes os pais não conseguem dizer ao filho por que estão consultando um psicólogo. Têm medo de contar-lhe que proçuraram um psicólogo para falar dele e por que o fizeram.' Imaginam que a explicitação daquilo que os está movendo possa fazer com que ele "piore", se "sinta diferente". Esquecem, entretanto, que suas preocupações estão presentes no cotidiano, na forma de lidarem com o filho, nas observações que fazem a respeito dele, nas exigências várias vezes repetidas e nem sempre cumpridas pela criança. Tudo isso faz com que, mesmo que ela não consiga expressar claramente, e da mesma maneira que os adultos, quais as preocupações a seu respeito, a criança perceba, no dia-a-dia, em sua relação com eles, com os professores e colegas, que algo está acontecendo, tendo sua própria compreensão a respeito.

Muitas vezes, a dificuldade dos pais de conversarem abertamente com o filho a respeito do trabalho com o psicólogo revela sua forma de relacionar-se com a criança e com o psicólogo, devendo ser explicitada.

A partir do momento em que o psicólogo entra em contato.com a criança, as sessões com os passo alternadas. Este procedimento tem por objetivo compartilhar pãri-passu com ela e com os pais as. observações a respeito do filho. Não se trata de chegar a conclusões mas de enriquecer a compreensão que cada um tem da

criança a partir de outro ponto de vista, de outro ângulo.Algumas vezes, a partir da observação da criança, é necessário pesquisar mais

amplamente certos aspectos da vida

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e do relacionamento que pareceram irrelevantes até este momento, seja porque os pais não se referiram a eles, seja porque, embora tenham sido relatados, o contato com a criança levou a pensar em outras possibilidades de compreensão.

Na medida em que, para conhecer a criança, o psicólogo recorre a certos instrumentos (testes, observações) que pertencem a um cabedal de conhecimentos técnicos, é importante que cada instrumento utilizado seja discutido com os pais, e que se expliquem seus pressupostos teóricos e de que forma o psicólogo chegou às suas próprias observações.

É indispensável que se proceda dessa forma para que os pais possam compreender melhor os referenciais do psicólogo e participar das decisões a respeito dos aspectos a investigar para esclarecer o que se passa com a criança. rAs explicações a respeito dos instrumentos utilizados também servem para desmistificá-Ios, contextualizá-Ios, mostrar que eles representam mais uma possibilidade de enfoque do que uma verdade absoluta.

Penso nos pais que vêm em busca do Quociente Intelectual (QI) do filho para que eles e a escola possam tomar decisões a respeito do encaminhamento desta criança. Sabemos que cada teste de nível intelectual se baseia num conceito particular de inteligência e que não há consenso a respeito do que seja este fenômeno. A partir da visão psicométrica, esses aspectos foram relegados a um segundo plano e tendeu-se a considerar os resultados obtidos de forma absoluta 7. Hoje, a noção de QI está vulgarizada e a tendência do leigo é valorizar os resultados dos testes. Cabe então ao psicólogo esclarecer os pais sobre esses aspectos, contextualizando os resultados obtidos pela criança.

Desta forma, é preciso que as entrevistas com os pais tenham um conteúdo pedagógico, uma vez que eles não são

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obrigados a conhecer a cultura e os instrumentos da Psicologia. Se consideramos importante que eles participem do trabalho, esta participação precisa ser feita a partir de bases comuns. É claro que, o psicólogo deve ser capaz de adequar sua linguagem ao nível sócio-econômico-cultural dos pais, de forma a se fazer compreender por eles. Cabe a ele fazer uma espécie de tradução dos conceitos teóricos numa linguagem acessível, certificando-se de que sua comunicação está fazendo sentido para os paIs.

O trabalho de muitos anos com clientes de clínicas-escola, em geral pessoas menos favorecidas sócio-econômico-culturalmente, ofereceu-me um excelente treinamento, já que para compartilhar minhas impressões com os pais, tive de desenvolver uma linguagem acessível e próxima à vivência deles. Esse tipo de tradução só é possível quando a teoria está bem integrada, e tem-se um bom domínio dos instrumentos utilizados. Caso contrário, o profissional apenas consegue reproduzir chavões que pouco têm a ver com a

experiência, seja sua, seja do cliente.

No caso de J., quando compartilhei com os pais as observações a partir da utilização dos desenhos, a mãe me conta que o filho lhe disse que estava fazendo o contrário do que é: no desenho da família, ele desenhou todos pequenininhos, acho que ele não quis mostrar como é a família dele de verdade, ele falou tudo ao contrário do que a gente faz em casa. Diante de minha solicitação para que reflitam a respeito do que o filho quis dizer com isso, a mãe diz na hora que ele me contou eu pensei que era, como ele não tinha muito contato com você, ele quis escamotear uma informação, mascarar. E o pai: a gente parou um pouco para pensar, ver o que é a família dele para o J., porque no dia-a-dia a gente não se preocupa muito com isso, né, então será que a gente não tá enchendo muito o saco dele com NOSSOS programas? Depois que lhes apresento o meu modo de compreender o que se passa, que coincide em parte com

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o do pai, a mãe concorda comigo, e admite rever sua própria interpretação.

Nesta entrevista, ela volta a trazer sua preocupação com a possibilidade de o filho ser efeminado em conseqüência da forma como o trata: Porque eu sempre fui muito carinhosa com ele e ele comigo, agora que ele tá mais chegado com o pai e, na minha família, todo mundo ficou falando que eu tava deixando ele muito... maricas, ficava muito em cima, beijando, porque eu gosto, e de repente, eu dei uma parada... sabe... de soltar, pra ele se virar, então eu sinto também que ele sente isso.

Posso utilizar minhas percepções da criança e minha interpretação de sua produção no teste, que não revela dificuldades de identificação sexual, para explícitar isso e mostrar como a expectativa do pai, baseada num estereótipo de masculinidade, contribuiu para que compreendesse as necessidades de afeto do filho como desvio da identidade sexual, levando a atitudes repressoras, impedindo o filho de se manifestar livremente, expressando seu afeto e sensibilidade. Desta maneira, a partir das trocas de impressões, tanto eu como os pais podemos reinterpretar algumas situações, enriquecendo nossa compreensão da criança.

Refletindo a respeito deste trabalho, me ocorre uma imagem: tanto psicólogo como cliente estão organizando um quebra-cabeças, contribuindo com peças diferentes, para chegar à constituição de uma imagem comum. Esta imagem vai se construindo ao longo do processo e os aspectos que nela serão mais nítidos dependerão da colalJoração dos pais, dos conhecimentos do psicólogo e da interação entre ambos.

Aqui se apresenta um outro aspecto que diz respeito ao sigilo e ao respeito que o profissional deve ter em relação às partes envolvidas: pais, criança. Não se trata de contar a uns e aos outros O QUE os pais ou a criança fizeram ou disseram, mas de procurar descrever COMO compreendemos os comportamentos que nos aparecem. O psicólogo compartilha com

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os pais sua experiência com a criança a partir das situações propostas para favorecer a observação de como esta última se relaciona consigo mesma, com os outros e com o mundo.

A partir das conversas com os pais e do conhecimento da criança, ainda durante o psicodiagnóstico, o psicólogo pode sugerir alternativas de ação para os pais. No caso de J., que era uma criança sem nenhuma autonomia, cujos pais não lhe permitiam passar. um final de semana longe deles, alegando ser ele muito pequeno para isto, depois de esclarecer seus medos, de mostrar a capacidade da criança, orientei-os a dar mais autonomia ao menino, confiando em sua capacidade para resolver problemas.

Também a partir da compreensão da dinâmica familiar, o psicólogo pode dar sugestões a respeito do que considera capaz de promover um desenvolvimento mais harmonioso. Novamente no caso de J. pude mostrar uma identificação do menino com o pai, também uma pessoa muito sensível, que gosta de música clássica e possui muitos livros de arte, mas que, em função de um estereótipo de masculinidade, não conseguia aceitar estas características do filho, e não permitia que ele se expressasse livremente. Sugeri ao pai que criasse oportunidades de maior proximidade do filho, levando-o para programas de interesse comum.

Desta forma, o psicodiagnóstico fenomenológico-existencial envolve um trabalho de redirecionamento dos pais a partir da compreensão da criança e da dinâmica familiar, com o objetivo de facilitar o relacionamento, propiciar novas formas de interação e abrir novas perspectivas experienciais.

A repercussão sobre os pais

Muitas vezes, ainda durante o processo, os pais começam a experimentar novas formas de relacionamento com o filho, e suas vivências podem ser trabalhadas com o psicólogo. Freqüentemente, referem-se a mudanças de atitudes. A extensão,

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e o tipo dessas mudanças, podem servir de indicadores para a flexibilidade dos pais, sua capacidade para prosseguir sozinhos ou a necessidade de encaminhamento psicoterápico uma vez encerrado o psicodiagnóstico.

Retomo aqui frases da mãe e do pai de J. que me parecem esclarecer bem o que acontece: [A mãe] Eu sinto assim, depois que eu vim aqui, a gente vai conseguindo perceber mais, que quando você tá naquela rotina, você se envolve, não vê, eu sinto que agora tou mais sensível, presto mais atenção. [O pai, em outro momento] Eu acho que foi resultado deste trabalho... Mudou minha ótica. Eu tinha muito... medo do J. ficar um menino mais efeminado... pelo ritme dele, porque ele é um menino meigo, sensível etc. Hoje euconsigo enquadrar melhor, depois desses nossos contatos, (; eu acho que meu relacionamento com ele melhorou 500 pOl cento depois que estive aqui, tá mais solto entende, ficavc. muito em cima dele, agora tou deixando... pra mim tá maiJ claro, eu tou mais calmo, mais tranqüilo agora, depois desse.

Eles se referem também a mudanças de atitudes do filho que está decidindo mais, defendendo seu próprio espaço, s relacionando mais com os meninos da vizinhança.O pai está se aproximando do filho. Nas palavras d mãe: Então, eu acho que tinha aquela distância, então (nuripasseio ao Playcenter) ele viu que o pai grita, que tem med~

Foi ótimo. Dela mesma diz: Agora eu me sinto mais segurj para tratar com ele.Olhando retrospectivamente para o processo, na últisessão, o pai se refere a eJe como um repensar, um chacoalhã acordar para algumas coisas e tentar rever algumas coisa A mãe diz: Para mim foi importante porque eu fiquei ma segura, eu tava tremendamente insegura, não que eu to segura agora, mas certas atitudes eu tomo assim, mais firm né, eu tou procurando ser menos rígida.

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Quanto à mudança de escola, que motivara a busca do atendimento, decidiram manter o filho naquela que já freqüentava, uma vez que já estava adaptado a ela, não revelava nenhum desejo de mudar-se de lá e que eles estavam satisfeitos com o ensino proporcionado. Perceberam que não havia necessidade de outro tipo de escola e .que eles mesmos podiam propiciar uma série de oportunidades de desenvolvimento extra-escolar ao filho. que, de fato, confirmou um elevado potencial intelectual e grande talento para desenho.

Embora eu tenha me detido sobre o caso de J. para facilitar minha exposição, posso citar várias outras falas de pais que vão nesta mesma direção.

Em geral, referem-se ao processo pelo qual passaram como uma oportunidade para prestar atenção, perceber e pensar sobre o que está acontecendo.

Para o pai de L. - um menino de 8 anos que atendi no consultório em 1989 -, as sessões foram importantes porque o levaram a perceber que sua forma de se relacionar com o filho repetia a forma como ele mesmo havia sido educado pelo pai. Embora continuasse a pensar que esta era a maneira adequada de educar um filho, pôde perceber que os tempos haviam mudado. Ao abrir-se mais para as necessidades de seu filho, conseguiu aproximar-se dele. Enfatizou também que só conseguira aceitar o que eu lhe dizia porque você não falou coisas estranhas; partimos daquilo que eu mesmo dizia e abrimos perspectivas que tinham sentido. É importante ressaltar que, embora a iniciativa de procurar um psicólogo tivesse partidó da mãe de L., seu pai participou de todas as sessões, apesar de dizer no início que não acreditava nesse tipo de trabalho. ".'

F ollow up

Concluídos os psicodiagnósticos, após um intervalo de seis meses a um ano, realizei sessões de follow up com pais.

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que haviam participado deste processo. Pude então observar um fenômeno interessante: freqüentemente, apesar de ter havido encaminhamento da criança para psicoterapia com outro profissional, esta não havia sido feità. Os pais justificavam sua decisão dizendo que o psicodiagnóstico havia sido suficiente para resolver o "problema" que motivara a busca do

atendimento.Em outro caso, a mãe decidira tratar-se primeiro já que como sou eu quem educo

meus filhos, achei que era mais importante eu fazer terapia primeiro, inclusive para não es-tragar o trabalho que seria feito com meu filho. Ao contrário daquela, uma mãe a quem sugeri psicoterapia me disse: Em relação à psicoterapia que você indicou, achei melhor eu me modificar, eu já tinha sentido que estava me abrindo mais enquanto nós conversávamos e resolvi prestar mais atenção para as coisas não voltarem ao que eram.

Penso que, muitas vezes, o encaminhamento para psicoterapia revela resquícios da visão tradicional de psicodiagnóstico, assim como insegurança quanto à continuidade das mudanças observadas durante o processo.

Em outras oportunidades, houve encaminhamento para psicoterapia e esta foi realizada.

Atualmente, inclino~me a deixar que os pais decidam se sentem necessidade de um encaminhamento para si mesmos e para o filho. Também me coloco à disposição deles para contatos posteriores, após o encerramento do trabalho e passados algum tempo. Percebo que esta abertura é importante na medida em que permite, após algum tempo, que os pais e a criança se debrucem novamente sobre sua experiência a fim de sentir como estão.

Posso então dizer que minha experiência com esta forma de trabalhar, elucidando a pergunta (queixa) trazida pelos pais, conhecendo. com eles os momentos expressivos do desenvolvimento do filho e de sua relação com ele, compartilhando minha própria compreensão da criança a partir de seu contato

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comigo, oferece-Ihes oportunidades para rever sua maneira de se relacionar com o filho, perceber novos sentidos possíveis para as situações de interação com ele, reformulando sua forma de exercer seu papel e, às vezes, seu desenvolvimento enquanto pessoas.

Pude observar que, dependendo de suas possibilidades para se modificarem, de sua plasticidade, em outros termos, o psicodiagnóstico é muitas vezes suficiente não havendo necessidade de atendimentos psicoterápicos posteriores. É claro que isso não acontece em todos os casos. Também é possível que, passado algum tempo, quando os pais são chamados para o follow up, percebamos que nossa atenção e a deles estiveram focalizadas em certos aspectos que os preocupavam na época, mas que, após certo tempo, e mesmo havendo mudanças na dinâmica familiar, neste momento são outras queixas que são valorizadas, o que pode levar a reencaminhamentos.

É o caso de c., menino de 7 anos, cuja mãe havia procurado o setor de superdotados da Clínica Psicológica Objetivo, encaminhada pela professora que o considerava muito adiantado para a primeira série e pensava num possível adiantamento escolar. Na ocasião, pudemos compreender que os comportamentos apresentados por C. na escola (problemas de disciplina, faz só o que quer, o que acha interessante) e em casa (um pouco manhoso, dá impressão que qualquer coisa que faça não se gosta dele) tinham por finalidade chamar a atenção dos pais que trabalhavam fora o dia todo enquanto as crianças ficavam aos cuidados da avó. Esta tinha preferência pelo irmão menor e exigia que as crianças ficassem quietas enquanto estivessem em sua casa. Quanto à possível superdotação, notei que C. tinha uma memória privilegiada e interesse pelo mundo circundante, o que dava a

impressão de que era mais capaz que os outros. C. apresentava necessidades lúdicas não satisfeitas, preçisava da companhia dos pais que pudessem proporcionar-lhe mais possibilidades de atividades. Essas observações, compartilhadas com a mãe ao longo do psicodiagnóstico e com as quais ela concordava, permitiram-lhe privilegiar

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o contato com os filhos. Ela decidiu reorganizar seu horário de trabalho para poder ficar com eles mais tempo durante a semana, oferecendo-Ihes mais oportunidades para estarem com outras crianças e brincarem livremente.

Na entrevista de follow up, um ano depojs, ela dizia que, no que diz respeito à escola, C. mostrava-se mais satisfeito, mas o que a preocupava mais neste momento era uma bronquite asmática cujas crises estavam sendo freqüentes. De fato, durante o psicodiagnóstico, a mãe havia se referido rapidamente a crises de bronquite que a criança havia apresentado quando menor mas que haviam diminuído com o tempo, chegando a desaparecer. Desta forma, a bronquite parecia um problema ultrapassado e não havia sido valorizada, nem pela mãe, nem por mim. Um ano depois, entretanto, a bronquite aparece como o centro das preocupações da mãe. Assim, as insatisfações da criança no que diz respeito à falta de atenção podem ser re-significadas, levando a uma indicação de psicoterapia.

Ocorre-me que, na medida em que o psicólogo, neste trabalho, respeita o ritmo dos pais e sua forma de se referir à vivência, sua atenção pode estar focalizada nos aspectos por eles escolhidos, não vendo outros possíveis. Mas não sejamos onipotentes, nem pensemos que o psicólogo pode e deve perceber tudo o que está acontecendo com o outro. Sempre existem limitações, seja do paciente, seja do psicólogo. O importante é estar disponível para percebê-Ias e procurar lidar com elas.

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REFORMULAÇÃO DO PAPEL DO PSICÓLOGO NO PSICODIAGNÓSTICO FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL E SUA REPERCUSSÃO SOBRE OS PAIS

Gohara Yvette Yehia*

Levantamentos realizados em instituições que oferecem atendimento psicológico à comunidade mostram que grande parte da população que as procura é constituída de pais de crianças com alguma dificuldade, de aprendizagem, de comportamento, ou outra.

O psicodiagnóstico infantil continua sendo uma prática desenvolvida por psicólogos, principalmente quando o cliente procura uma instituição, uma vez que a partir dele pode-se chegar a uma escolha e indicação terapêuticas melhor fundamentadas.

O psicodiagnóstico infantil realizado nos moldes tradicionais consta de uma ou duas entrevistas iniciais com os pais, para que o psicólogo entre em contato com a queixa, a

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"dinâmica familiar e o desenvolvimento da criança, de testagem da criança e, depois de avaliados os testes e integradas as informações obtidas, de uma ou duas entrevistas devolutivas, nas quais o psicólogo apresenta aos pais suas conclusões diagnósticas e sugere os passos seguintes a serem trilhados: psicoterapia da criança, orientação aos pais, psicomotricidade etc. .

Observamos que os pais que comparecem para os atendimentos indicados a partir desta maneira de desenvolver o psicodiagnóstico, quando comparecem, mostram pouca motivação para os mesmos. Quando questionados a respeito do atendimento anterior (o psicodiagnóstico) revelam desconhecimento do processo pelo qual passaram, limitando-se a repetir a queixa inicial, agora acrescida da indicação terapêutica.

Glguns mostram-se decepcionados com os resultados desse atendimento, que não trouxe os benefícios que dele esperavam:De fato, eles e a criança foram várias vezes ao psicólogo, e isso apenas redundou em uma melhora inicial, após as primeiras sessões, reaparecendo em seguida os sintomas que haviam motivado o encaminhamento.

C A melhora à qual os pais se referem é um fenômeno conhecido na prática do psicodiagnóstico, e em geral é atribuída à atenção que a criança recebe. Atenção dos pais que a acompanham uma vez por semana ao local do atendimento, dedicando-lhe assim uma parte de seu tempo; atenção do psicólogo que a atende, mesmo que seja apenas para aplicação de testes e realização de observações.

É claro que, para o psicólogo que realizou o trabalho, este se constituiu numa etapa importante do processo. Permitiu-lhe fazer uma indicação terapêutica mais adequada às necessidades do cliente já que baseada na compreensão do que estaria acontecendo com a criança e a dinâmica familiar.

Mas, e os pais? Será que para eles o atendimento só deveria tornar-se efetivo na psicoterapia? Será possível ofere

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cer-Ihes, em troca de suas idas ao psicólogo, algo além de uma indicação cujo significado eles ainda mal compreendem?

O psicodiagnóstico fenomenológico-existencial ofereceume e à equipe com a qual trabalhava I uma alternativa viável que se mostrou bastante satisfatória, quando enfocamos sua repercussão tanto sobre as crianças2 , como sobre os pais, como veremos mais adiante.

o papel do psicólogo e do cliente no psicodiagnóstico fenomenológico-existencial

Todo ser humano está mergulhado no mundo que está sempre presente, embora muitas vezes passe despercebidoLO sentido dos objetos está na relação que eles têm com uma totalidade estruturada de significados e de intenções inter-re

lacionadail Conseqüentemente, o mundo não é obstrutivo, nemo são os objetos do mundo com os quais nos relacionamos diariamente. Isso significa

que, no nosso dia-a-dia, estamos com os objetos de uso corrente, com as pessoas, com nossa família, nosso filho, sem a todo momento nos perguntarmos a respeito do significado de cada coisa.

Entretanto,C9uando há "ruptura", quando falta algo que

deveria haver, é que passamos a notar certos objetos. Similarmente, quando a criança começa a apresentar atitudes e comportamentos que rompem com algumas expectativas dos pais, dos professores ou de outros agentes da comunidade,

surge o encaminhamento ou a busca espontânea do psicólogo.] É neste momento que podem ser problematizadas, questionadas, as relações dos pais e da criança consigo mesmos, com o mundo e com os outros.

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É neste contexto que o psicodiagnóstico se propõe explicitar o sentido da experiência do cliente. Quando se trata do psicodiagnóstico infantil, o trabalho com os pais visa explorar o significado da queixa trazida, dos sintomas apresentados pela criança, a compreensão que eles têm de sua própria situação e de sua relação com o filho.

Poder-se-á argumentar que estes são os objetivos do psicodiagnóstico em qualquer abordagem. Sim, mas este trabalho acaba muitas vezes servindo apenas ao psicólogo que realizou o trabalho, sendo de pouca ou nenhuma utilidade para o cliente, apesar das sessões devolutivas.

Uma das contribuições do psicodiagnóstico fenomenológico-existencial está na reavaliação do papel desempenhado pelo cliente e pelo psicólogo, nesta situação em que o cliente se torna um parceiro ativo e envolvido no trabalho de compreensão e eventual encaminhamento posterior.

Em trabalho anterior3, já sugeria que "mesmo sendo a criança a precisar de atendimento psicológico, são os pais que arcam com muitos dos custos do atendimento infantil: o tempo para levar e buscar a criança, o pagamento das sessões (quando estas são gratuitas, o pagamento das conduções) e os possíveis efeitos transformadores do atendimento infantil na dinâmica da farnília".pesta forma, sem informações, apoio e motivação para este atendimento, fica difícil esperar que os pais estejam dispostos a levá-lo adiante.

Portanto, durante o psicodiagnóstico, e mesmo durante a psicoterapia, quando o paciente designado é a criança, a participação dos pais é extremamente importante.

Por isso, quando recebo pais encaminhados pela professora, pelo pediatra ou por outro agente, trato de trabalhar, desde o início, o significado que este encaminhamento tem para eles.

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mesmos. Enquanto, a necessidade de atendimento psicológico não tiver sentido para os pais, que limitam-se a seguir a indicação de um outro profissional, e a conformar-se com ela, como se estivessem obedecendo a uma autoridade, fica mais difícil, senão impossível, contar com sua colaboração 'ativa. Esta é imprescindível para que consigamos compreender juntos o que pode estar ocorrendo com a criança e, eventualmente, com os próprios pais.

Outro ponto que costumo focalizar é como os pais entendem o atendimento psicológico, sua expectativa em relaçãõa ele. Ofereço-Ihes

esclarecimentos a respeito da minha proposta de trabalho, que consiste em tentar compreender o que está acontecendo com a criança no contexto pessoal, familiar e social. Estes esclarecimentos fazem com que eles entendam melhor por que sua própria participação no processo é importante e quais são os limites do trabalho, e também permitem que decidam, desde o início do atendimento, se estão dispostos a compartilhar deste projeto. Desta forma, o psicodiagnóstico pode se desenvolver sobre bases comuns entre o psicólogo e o cliente. O trabalho de Larrabure a respeito dos Grupos de Espera4 serve-me de referência para esta fase do processo.

A reavaliação do papel do psicólogo levou-me a uma mudança de postura. Não sou mais o técnico, o detentor do saber que oferece respostas às perguntas trazidas pelos pais. Enquanto psicóloga, também sou uma pessoa, tenho conhecimentos específicos, é certo, mas não parto do pressuposto de que estes têm um peso maior que os conhecimentos que os pais têm a respeito de sua vida, de seu filho. Meus conhecimentos, teóricos, técnicos e os provenientes de minha experiência pessoal representam apenas um outro ponto de vista.

A situação de psicodiagnóstico torna-se então uma situação de cooperação em que a capacidade de ambas as partes.

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observarem, apreenderem, compreenderem constitui a base indispensável para o trabalho. Tanto os pais como o psicólogo observam a si mesmos e ao outro, tanto os pais como o psicólogo procuram compreender o que está sendo vivenciado, sendo que a compreensão dos pais e a do psicólogo são equivalentes e compartilhadas. .

Ao psicólogo cabe compreender a pergunta. Compreender é participar de um significado comum, do projeto do cliente, de sua abertura e limitações para o mundo. É importante identificar os acontecimentos e a forma como se desenvolveram em relação a seu contexto, gerando a pergunta, precipitando a crise e levando ao pedido de atendimento.

A primeira sessão com os pais geralmente se desenvolve a partir daquilo que eles trazem como sendo a pergunta, estendendo-se ao projeto estabelecido por eles em relação ao filho, aos focos de ansiedade e sentimentos mobilizados.

Com a finalidade de tornar minha exposição menos teórica, utilizar-me-ei de trechos de

sessões do psicodiagnóstico de J., realizado na Clínica Psicológica Objetivo, em 1991, no setor de atendimento a superdotados5. As sessões foram gravadas com a finalidade de realizar minha pesquisa de doutorado.

Os pais de J., 9 anos, procuraram-me porque ele talvez fosse superdotado e, neste caso, eles queriam ser orientados em relação à melhor forma de lidar com ele. Nas palavras da mãe: ele é diferente das outras crianças; é muito quieto, gosta de ler, de desenhar. No maternal, os professores recomendavam que eu tirasse ele de lá e colocasse numa escola especializada, que ele desenha muito bem e tem muitafacilidade para aprender. Eles têm medo que o filho possa ficar desmotivado e eventualmente "vagabundo". A escola especializada seria aquela que acompanhasse o ritmo das necessidades do filho. Ao longo desta primeira entrevista, o

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filho aparece como um menino muito meigo, muito sensível, ele procura agradar as pessoas, não gosta de ficar agredindo com palavras ou com atitudes, é muito atencioso, muito melódico, gosta de tudo arrumadinho. Os pais trazem a preocupação da irmã de que ele se torne um menino chatinho, "cd/". O pai tem medo que J. fique um moleque muito voltado para ele mesmo, não aproveite a vida'.

Por outro lado, os pais descrevem J. como uma criança independente, líder quando se trata de atividades que o interessam, mas que se cansa facilmente, retirando-se das brinca-deiras quando estas não o interessam. Não tem muitos amigos e não costuma descer para brincar no playground. Percebo aqui, além da preocupação inicial referente à escola, uma outra: a sociabilidade da criança. Mais tarde, nesta mesma entrevista, a mãe pode trazer outra queixa: o pai, a escola, a família em geral, pressionam e criticam-na por causa de sua forma de lidar com o filho, que poderia vir a torná-Io efeminado. O filho é chamado de maricas pelos outros porque ele prefere desenhar e ler, ficar sozinho a brincar do jeito deles: então eu fico preocupada, ele é uma pessoa diferente! Pesquiso o que é para cada um deles "ser menino". Posso perceber diferenças de expectativa do pai e da mãe em relação ao filho: [o pai diz] um menino, sabe, boné do lado, sujeira no rosto, subir no muro, esta é a imagem que tenho. [A mãe] eu não consigo imaginar que um menino, para ser homem, moleque, tem que ser agressivo, precisa ser boca suja, ser bruto ou precisa ficar falando besteira sobre coisa de mulher, eu acho que um menino pode ser menino sendo uma pessoa educada, fina.

Nesta primeira sessão, tenho então a queixa de um menino que os pais e a escola vêem como "diferente"; esta diferença é relatada inicialmente em termos escolares e acaba abarcando a forma de ser desta criança, sua maneira de lidar com a agressividade, acarretando dúvidas a respeito de sua identidade masculina o que provoca uma série de discussões em casa a respeito da maneira como a mãe o educa.

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Para compreender o que os pais relatam, em geral utilizo meus conhecimentos teóricos, minha vivência, minha experiência anterior. Aceito as observações dos pais a respeito daquilo que eles vêem, pensam, concluem, e procuro ampliar seu campo de visão,

contextualizando a queixa particular, inserindo-a num quadro mais amplo. .

Observo e assinalo aos pais aquilo que consigo apreender da relação deles com o filho e entre si (quando comparece o casal). Esses assinalamentos não são considerados verdades, mas apenas - possibilidades de compreensão que podem ser aceitas ou não por eles. Desenvolvo um trabalho alternado de focalização e ampliação, procurando explicitar o significado .dos fenômenos para os pais e para mim mesma.

A compreensão dos pais é valorizada, está no mesmo nível da do profissional. Costumo dizer aos pais que eles têm um conhecimento do filho que é extremamente importante para o desenvolvimento do psicodiagnóstico. Muitas vezes eles não entendem por que, já que procuraram o psicólogo com uma queixa a respeito do filho, são eles que precisam comparecer a tantas entrevistas; por que eles, enquanto pessoas, são ques-tionados. Por isso, esses esclarecimentos são muito importantes. Trata-se de um trabalho em que a cooperação é um pré-requisito que deve ser assumido por ambas as partes, embora, de forma geral, as pessoas estejam acostumadas a buscar os serviços de um profissional, detentor do saber e do poder, que lhes indicará a origem do problema e os caminhos a seguir.

a esclarecimento da pergunta pode se desenvolver em uma ou duas sessões. Entretanto, ao longo do processo, ela permanece. como um pano de fundo para outras questões aspecto que possam surgir.

Assim, voltando a J., quando os pais se referiram à "escola especializada", perguntei-Ihes como o filho se sente na escola que freqüenta, uma vez que, por um lado, sei que não existem escolas especializadas para superdotados e que, por outro, há muitas idéias, às vezes contraditórias, em relação ao que qualquer escola deva oferecer. Meu critério para indicar

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ou não uma mudança de escola é a satisfação ou não da criança com ela, desde que a escola preencha os requisitos mínimos para ser considerada aceitável pelos padrões usuais. Por outro lado, minha valorização da queixa da mãe em relação à sociabilidade do filho (prefere ficar sozinho a brincar com os outros; quieto, gosta de ler e de desenhar) é diferente da dela já que meu contato com a literatura a respeito de crianças superdotadas6 me permite saber que muitas delas apresentam estas características, informação que utilizo para inserir a queixa da mãe num contexto mais amplo, contando-lhe. o que sei a respeito. Ao longo das primeiras entrevistas foi ficando mais claro que aquilo que mobilizava os pais era a questão da identidade sexual da criança, o que gerava discussões quanto à forma como a mãe lidava com ela.

Na segunda ou terceira sessão, antes ainda de conhecera criança, utilizo-me de um roteiro de anamnese. Há muitos roteiros de anamnese disponíveis e, ressalvadas algumas diferenças de organização, em geral enfocam aspectos do desenvolvimento bio-psico-social da criança. É uma prática utilizada por vários profissionais (médicos, assistentes sociais, psicólogos), sendo que cada um focalizará os aspectos que mais lhe interessem para a compreensão do fenômeno que está estudando. Além disso, serve para que os pais se debrucem sobre sua experiência passada e presente com o filho, podendo esclarecer sentimentos e expectativas que atuam no relacionamento

com a cnança.

O roteiro que uso me permite observar formas de relacionamento na família, focos de ansiedade, distribuição de forças na dinâmica familiar. Compartilho minhas impressões com os pais à medida que elas se tornam mais claras para mim. Elas servem de ponto de partida para sua própria reflexão a respeito dos fenômenos que focalizamos.

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Em geral, através de minhas intervenções, procuro promover novas possibilidades existenciais na medida em q~e trabalho com o outro a transformação de seu projeto.LO conhecimento que o cliente traz é valorizado, e é a partir dele que minhas falas terão ou não sentido. Por outro lado, para que seja eficiente, a intervenção deve pertencer ao campo de possibilidades do cliente, margeando aquilo que ele não compreende, uma vez que, se estiver distante deste campo, ela poderá não ser compreendida ou ser recusada por ele.

Uma vez realizado este roteiro, tenho uma imagem da criança e do relacionamento familiar. Explicito esta imagem para mim mesma e para os pais. Por enquanto, ainda não conheci a criança, e esta imagem se dá a partir dos relatos dos pais aliados à minha com reensão, sempre compartilhada e discutida com eles.

No caso de J., através da anamnese, os pais contam que a gravidez foi muito desejada, embora tensa, uma vez que antes de cada gravidez a termo a mãe sofreu abortos para os quais os médicos não haviam encontrado explicação. A mãe que, na primeira sessão, se queixara de estar sozinha para educar os filhos e lidar com os problemas do dia-a-dia, mostra que não gosta de interferências familiares quando se defronta com uma situação difícil, preferindo em geral resolver seus problemas sozinha. Noto portanto uma incongruência, que aponto, entre o que ela sente e como lida com as situações. O pai, examinando sua própria forma de se comportar diante de situações difíceis, nota que é menos "corajoso" que a mãe,

. precisando da aprovação dos outros quando se trata de tomar uma decisão. O parto foi cesariana, e a mãe ficou muito desconfiada em relação ao anestesista e ao médico que não eram aqueles com os quais estava acostumada.

Outros episódios do desenvolvimento da criança revelam superproteção, muita ansiedade materna quanto à confiança na capacidade do filho de resolver certas situações, controle decorrente desta falta de confiança, participação do pai quando as crianças estão pequenas mas seu afastamento em função

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de sobrecarga de trabalho passados os primeiros meses. Ainda de acordo com essa descrição, o filho tem algumas necessidades de criança pequena (bichos de pelúcia com os quais dorme até hoje), ao mesmo tempo em que mostra interesses e capacidades de uma criança maior.

Antes de conhecer a criança, há mais um aspecto que é importante trabalhar com os pais: é o que diz respeito às informações forneci das à criança quanto ao trabalho que está

sendo desenvolvido e do qual ela irá participar. 'Muitas vezes os pais não conseguem dizer ao filho por que estão consultando um psicólogo. Têm medo de contar-lhe que proçuraram um psicólogo para falar dele e por que o fizeram.' Imaginam que a explicitação daquilo que os está movendo possa fazer com que ele "piore", se "sinta diferente". Esquecem, entretanto, que suas preocupações estão presentes no cotidiano, na forma de lidarem com o filho, nas observações que fazem a respeito dele, nas exigências várias vezes repetidas e nem sempre cumpridas pela criança. Tudo isso faz com que, mesmo que ela não consiga expressar claramente, e da mesma maneira que os adultos, quais as preocupações a seu respeito, a criança perceba, no dia-a-dia, em sua relação com eles, com os professores e colegas, que algo está acontecendo, tendo sua própria compreensão a respeito.

Muitas vezes, a dificuldade dos pais de conversarem abertamente com o filho a respeito do trabalho com o psicólogo revela sua forma de relacionar-se com a criança e com o psicólogo, devendo ser explicitada.

A partir do momento em que o psicólogo entra em contato.com a criança, as sessões com os passo alternadas. Este procedimento tem por objetivo compartilhar pãri-passu com ela e com os pais as. observações a respeito do filho. Não se trata de chegar a conclusões mas de enriquecer a compreensão que cada um tem da criança a partir de outro ponto de vista, de outro ângulo.

Algumas vezes, a partir da observação da criança, é necessário pesquisar mais amplamente certos aspectos da vida

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e do relacionamento que pareceram irrelevantes até este momento, seja porque os pais não se referiram a eles, seja porque, embora tenham sido relatados, o contato com a criança levou a pensar em outras possibilidades de compreensão.

Na medida em que, para conhecer a criança, o psicólogo recorre a certos instrumentos (testes, observações) que pertencem a um cabedal de conhecimentos técnicos, é importante que cada instrumento utilizado seja discutido com os pais, e que se expliquem seus pressupostos teóricos e de que forma o psicólogo chegou às suas próprias observações.

É indispensável que se proceda dessa forma para que os pais possam compreender melhor os referenciais do psicólogo e participar das decisões a respeito dos aspectos a investigar para esclarecer o que se passa com a criança. rAs explicações a respeito dos instrumentos utilizados também servem para desmistificá-Ios, contextualizá-Ios, mostrar que eles representam mais uma possibilidade de enfoque do que uma verdade absoluta.

Penso nos pais que vêm em busca do Quociente Intelectual (QI) do filho para que eles e a escola possam tomar decisões a respeito do encaminhamento desta criança. Sabemos que cada teste de nível intelectual se baseia num conceito particular de inteligência e que não há consenso a respeito do que seja este fenômeno. A partir da visão psicométrica, esses aspectos foram relegados a um segundo plano e tendeu-se a considerar os resultados obtidos de forma absoluta 7. Hoje, a noção de QI está vulgarizada e a tendência do leigo é valorizar os resultados dos testes. Cabe então ao psicólogo esclarecer os pais sobre esses aspectos, contextualizando os resultados obtidos pela criança.

Desta forma, é preciso que as entrevistas com os pais tenham um conteúdo pedagógico, uma vez que eles não são

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obrigados a conhecer a cultura e os instrumentos da Psicologia. Se consideramos importante que eles participem do trabalho, esta participação precisa ser feita a partir de bases comuns. É claro que, o psicólogo deve ser capaz de adequar sua linguagem ao nível sócio-econômico-cultural dos pais, de forma a se fazer compreender por eles. Cabe a ele fazer uma espécie de tradução dos conceitos teóricos numa linguagem acessível, certificando-se de que sua comunicação está fazendo sentido para os paIs.

O trabalho de muitos anos com clientes de clínicas-escola, em geral pessoas menos favorecidas sócio-econômico-culturalmente, ofereceu-me um excelente treinamento, já que para compartilhar minhas impressões com os pais, tive de desenvolver uma linguagem acessível e próxima à vivência deles. Esse tipo de tradução só é possível quando a teoria está bem integrada, e tem-se um bom domínio dos instrumentos utilizados. Caso contrário, o profissional apenas consegue reproduzir chavões que pouco têm a ver com a experiência, seja sua, seja do cliente.

No caso de J., quando compartilhei com os pais as observações a partir da utilização dos desenhos, a mãe me conta que o filho lhe disse que estava fazendo o contrário do que é: no desenho da família, ele desenhou todos pequenininhos, acho que ele não quis mostrar como é a família dele de verdade, ele falou tudo ao contrário do que a gente faz em casa. Diante de minha solicitação para que reflitam a respeito do que o filho quis dizer com isso, a mãe diz na hora que ele me contou eu pensei que era, como ele não tinha muito contato com você, ele quis escamotear uma informação, mascarar. E o pai: a gente parou um pouco para pensar, ver o que é a família dele para o J., porque no dia-a-dia a gente não se preocupa muito com isso, né, então será que a gente não tá enchendo muito o saco dele com NOSSOS programas? Depois que lhes apresento o meu modo de compreender o que se passa, que coincide em parte com

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o do pai, a mãe concorda comigo, e admite rever sua própria interpretação.

Nesta entrevista, ela volta a trazer sua preocupação com a possibilidade de o filho ser efeminado em conseqüência da forma como o trata: Porque eu sempre fui muito carinhosa com ele e ele comigo, agora que ele tá mais chegado com o pai e, na minha família, todo mundo ficou falando que eu tava deixando ele muito... maricas, ficava muito em cima, beijando, porque eu gosto, e de repente, eu dei uma parada... sabe... de soltar, pra ele se virar, então eu sinto também que ele sente isso.

Posso utilizar minhas percepções da criança e minha interpretação de sua produção no teste, que não revela dificuldades de identificação sexual, para explícitar isso e mostrar como a expectativa do pai, baseada num estereótipo de masculinidade, contribuiu para que compreendesse as necessidades de afeto do filho como desvio da identidade sexual, levando a atitudes repressoras, impedindo o filho de se manifestar livremente, expressando

seu afeto e sensibilidade. Desta maneira, a partir das trocas de impressões, tanto eu como os pais podemos reinterpretar algumas situações, enriquecendo nossa compreensão da criança.

Refletindo a respeito deste trabalho, me ocorre uma imagem: tanto psicólogo como cliente estão organizando um quebra-cabeças, contribuindo com peças diferentes, para chegar à constituição de uma imagem comum. Esta imagem vai se construindo ao longo do processo e os aspectos que nela serão mais nítidos dependerão da colalJoração dos pais, dos conhecimentos do psicólogo e da interação entre ambos.

Aqui se apresenta um outro aspecto que diz respeito ao sigilo e ao respeito que o profissional deve ter em relação às partes envolvidas: pais, criança. Não se trata de contar a uns e aos outros O QUE os pais ou a criança fizeram ou disseram, mas de procurar descrever COMO compreendemos os comportamentos que nos aparecem. O psicólogo compartilha com

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os pais sua experiência com a criança a partir das situações propostas para favorecer a observação de como esta última se relaciona consigo mesma, com os outros e com o mundo.

A partir das conversas com os pais e do conhecimento da criança, ainda durante o psicodiagnóstico, o psicólogo pode sugerir alternativas de ação para os pais. No caso de J., que era uma criança sem nenhuma autonomia, cujos pais não lhe permitiam passar. um final de semana longe deles, alegando ser ele muito pequeno para isto, depois de esclarecer seus medos, de mostrar a capacidade da criança, orientei-os a dar mais autonomia ao menino, confiando em sua capacidade para resolver problemas.

Também a partir da compreensão da dinâmica familiar, o psicólogo pode dar sugestões a respeito do que considera capaz de promover um desenvolvimento mais harmonioso. Novamente no caso de J. pude mostrar uma identificação do menino com o pai, também uma pessoa muito sensível, que gosta de música clássica e possui muitos livros de arte, mas que, em função de um estereótipo de masculinidade, não conseguia aceitar estas características do filho, e não permitia que ele se expressasse livremente. Sugeri ao pai que criasse oportunidades de maior proximidade do filho, levando-o para programas de interesse comum.

Desta forma, o psicodiagnóstico fenomenológico-existencial envolve um trabalho de redirecionamento dos pais a partir da compreensão da criança e da dinâmica familiar, com o objetivo de facilitar o relacionamento, propiciar novas formas de interação e abrir novas perspectivas experienciais.

A repercussão sobre os pais

Muitas vezes, ainda durante o processo, os pais começam a experimentar novas formas de relacionamento com o filho, e suas vivências podem ser trabalhadas com o psicólogo. Freqüentemente, referem-se a mudanças de atitudes. A extensão,

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e o tipo dessas mudanças, podem servir de indicadores para a flexibilidade dos pais, sua capacidade para prosseguir sozinhos ou a necessidade de encaminhamento psicoterápico uma vez encerrado o psicodiagnóstico.

Retomo aqui frases da mãe e do pai de J. que me parecem esclarecer bem o que acontece: [A mãe] Eu sinto assim, depois que eu vim aqui, a gente vai conseguindo perceber mais, que quando você tá naquela rotina, você se envolve, não vê, eu sinto que agora tou mais sensível, presto mais atenção. [O pai, em outro momento] Eu acho que foi resultado deste trabalho... Mudou minha ótica. Eu tinha muito... medo do J. ficar um menino mais efeminado... pelo ritme dele, porque ele é um menino meigo, sensível etc. Hoje euconsigo enquadrar melhor, depois desses nossos contatos, (; eu acho que meu relacionamento com ele melhorou 500 pOl cento depois que estive aqui, tá mais solto entende, ficavc. muito em cima dele, agora tou deixando... pra mim tá maiJ claro, eu tou mais calmo, mais tranqüilo agora, depois desse.

Eles se referem também a mudanças de atitudes do filho que está decidindo mais, defendendo seu próprio espaço, s relacionando mais com os meninos da vizinhança.O pai está se aproximando do filho. Nas palavras d mãe: Então, eu acho que tinha aquela distância, então (nuripasseio ao Playcenter) ele viu que o pai grita, que tem med~

Foi ótimo. Dela mesma diz: Agora eu me sinto mais segurj para tratar com ele.Olhando retrospectivamente para o processo, na últisessão, o pai se refere a eJe como um repensar, um chacoalhã acordar para algumas coisas e tentar rever algumas coisa A mãe diz: Para mim foi importante porque eu fiquei ma segura, eu tava tremendamente insegura, não que eu to segura agora, mas certas atitudes eu tomo assim, mais firm né, eu tou procurando ser menos rígida.

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Quanto à mudança de escola, que motivara a busca do atendimento, decidiram manter o filho naquela que já freqüentava, uma vez que já estava adaptado a ela, não revelava nenhum desejo de mudar-se de lá e que eles estavam satisfeitos com o ensino proporcionado. Perceberam que não havia necessidade de outro tipo de escola e .que eles mesmos podiam propiciar uma série de oportunidades de desenvolvimento extra-escolar ao filho. que, de fato, confirmou um elevado potencial intelectual e grande talento para desenho.

Embora eu tenha me detido sobre o caso de J. para facilitar minha exposição, posso citar várias outras falas de pais que vão nesta mesma direção.

Em geral, referem-se ao processo pelo qual passaram como uma oportunidade para prestar atenção, perceber e pensar sobre o que está acontecendo.

Para o pai de L. - um menino de 8 anos que atendi no consultório em 1989 -, as sessões foram importantes porque o levaram a perceber que sua forma de se relacionar com o filho repetia a forma como ele mesmo havia sido educado pelo pai. Embora continuasse a pensar que esta era a maneira adequada de educar um filho, pôde perceber que os tempos haviam mudado. Ao abrir-se mais para as necessidades de seu filho,

conseguiu aproximar-se dele. Enfatizou também que só conseguira aceitar o que eu lhe dizia porque você não falou coisas estranhas; partimos daquilo que eu mesmo dizia e abrimos perspectivas que tinham sentido. É importante ressaltar que, embora a iniciativa de procurar um psicólogo tivesse partidó da mãe de L., seu pai participou de todas as sessões, apesar de dizer no início que não acreditava nesse tipo de trabalho. ".'

F ollow up

Concluídos os psicodiagnósticos, após um intervalo de seis meses a um ano, realizei sessões de follow up com pais.

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que haviam participado deste processo. Pude então observar um fenômeno interessante: freqüentemente, apesar de ter havido encaminhamento da criança para psicoterapia com outro profissional, esta não havia sido feità. Os pais justificavam sua decisão dizendo que o psicodiagnóstico havia sido suficiente para resolver o "problema" que motivara a busca do atendimento.

Em outro caso, a mãe decidira tratar-se primeiro já que como sou eu quem educo meus filhos, achei que era mais importante eu fazer terapia primeiro, inclusive para não es-tragar o trabalho que seria feito com meu filho. Ao contrário daquela, uma mãe a quem sugeri psicoterapia me disse: Em relação à psicoterapia que você indicou, achei melhor eu me modificar, eu já tinha sentido que estava me abrindo mais enquanto nós conversávamos e resolvi prestar mais atenção para as coisas não voltarem ao que eram.

Penso que, muitas vezes, o encaminhamento para psicoterapia revela resquícios da visão tradicional de psicodiagnóstico, assim como insegurança quanto à continuidade das mudanças observadas durante o processo.

Em outras oportunidades, houve encaminhamento para psicoterapia e esta foi realizada.

Atualmente, inclino~me a deixar que os pais decidam se sentem necessidade de um encaminhamento para si mesmos e para o filho. Também me coloco à disposição deles para contatos posteriores, após o encerramento do trabalho e passados algum tempo. Percebo que esta abertura é importante na medida em que permite, após algum tempo, que os pais e a criança se debrucem novamente sobre sua experiência a fim de sentir como estão.

Posso então dizer que minha experiência com esta forma de trabalhar, elucidando a pergunta (queixa) trazida pelos pais, conhecendo. com eles os momentos expressivos do desenvolvimento do filho e de sua relação com ele, compartilhando minha própria compreensão da criança a partir de seu contato

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comigo, oferece-Ihes oportunidades para rever sua maneira de se relacionar com o filho, perceber novos sentidos possíveis para as situações de interação com ele, reformulando sua forma de exercer seu papel e, às vezes, seu desenvolvimento enquanto pessoas.

Pude observar que, dependendo de suas possibilidades para se modificarem, de sua plasticidade, em outros termos, o psicodiagnóstico é muitas vezes suficiente não havendo necessidade de atendimentos psicoterápicos posteriores. É claro que isso não acontece em todos os casos. Também é possível que, passado algum tempo, quando os pais são chamados para o follow up, percebamos que nossa atenção e a deles estiveram focalizadas em certos aspectos que os preocupavam na época, mas que, após certo tempo, e mesmo havendo mudanças na dinâmica familiar, neste momento são outras queixas que são valorizadas, o que pode levar a reencaminhamentos.

É o caso de c., menino de 7 anos, cuja mãe havia procurado o setor de superdotados da Clínica Psicológica Objetivo, encaminhada pela professora que o considerava muito adiantado para a primeira série e pensava num possível adiantamento escolar. Na ocasião, pudemos compreender que os comportamentos apresentados por C. na escola (problemas de disciplina, faz só o que quer, o que acha interessante) e em casa (um pouco manhoso, dá impressão que qualquer coisa que faça não se gosta dele) tinham por finalidade chamar a atenção dos pais que trabalhavam fora o dia todo enquanto as crianças ficavam aos cuidados da avó. Esta tinha preferência pelo irmão menor e exigia que as crianças ficassem quietas enquanto estivessem em sua casa. Quanto à possível superdotação, notei que C. tinha uma memória privilegiada e interesse pelo mundo circundante, o que dava a impressão de que era mais capaz que os outros. C. apresentava necessidades lúdicas não satisfeitas, preçisava da companhia dos pais que pudessem proporcionar-lhe mais possibilidades de atividades. Essas observações, compartilhadas com a mãe ao longo do psicodiagnóstico e com as quais ela concordava, permitiram-lhe privilegiar

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o contato com os filhos. Ela decidiu reorganizar seu horário de trabalho para poder ficar com eles mais tempo durante a semana, oferecendo-Ihes mais oportunidades para estarem com outras crianças e brincarem livremente.

Na entrevista de follow up, um ano depojs, ela dizia que, no que diz respeito à escola, C. mostrava-se mais satisfeito, mas o que a preocupava mais neste momento era uma bronquite asmática cujas crises estavam sendo freqüentes. De fato, durante o psicodiagnóstico, a mãe havia se referido rapidamente a crises de bronquite que a criança havia apresentado quando menor mas que haviam diminuído com o tempo, chegando a desaparecer. Desta forma, a bronquite parecia um problema ultrapassado e não havia sido valorizada, nem pela mãe, nem por mim. Um ano depois, entretanto, a bronquite aparece como o centro das preocupações da mãe. Assim, as insatisfações da criança no que diz respeito à falta de atenção podem ser re-significadas, levando a uma indicação de psicoterapia.

Ocorre-me que, na medida em que o psicólogo, neste trabalho, respeita o ritmo dos pais e sua forma de se referir à vivência, sua atenção pode estar focalizada nos aspectos por eles escolhidos, não vendo outros possíveis. Mas não sejamos onipotentes, nem pensemos que o psicólogo pode e deve perceber tudo o que está acontecendo com o outro. Sempre existem limitações, seja do paciente, seja do psicólogo. O importante é estar disponível para percebê-Ias e procurar lidar com elas.

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O PSICODIAGNÓSTICO FENOMENOLÓGICO E OS DESENCONTROS POSSÍVEIS

Christina Menna Barreto Cupertino*

'I

Uma das dificuldades que encontramos no exercício da nossa profissão é o distanciamento entre teoria e prática. Ela tem a ver principalmente com o status, pregresso e atual, da psicologia enquanto ciência.

Qualquer psicólogo experiente, nos dias de hoje, percebe que muito do que se passa no contexto cotidiano do atendimento não encontra eco em nenhuma das abordagens teóricas. E não é porque estas sejam poucas, ao contrário. Aproximações descritivas e/ou explicativas para os comportamentos humanos proliferam, em diferentes direções, desde que a psicologia se constituiu, buscando o status de ciência.

Assim como não conseguimos encontrar teorias que dêem conta de parte dos fenômenos. humanos observados na prática, o inverso também acontece. Ê conhecido o argumento de que "não existem os casos de livro", ou seja, pessoas reais, típicas que sejam, que reproduzam em suas vidas mecanismos ou perfis descritos teoricamente.

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Tal argumento é curioso, na medida em que reflete o fato de que, em suas tentativas de exemplificação dos fatos . estudados, os teóricos geralmente relatam os aspectos que corroboram aquilo que querem demonstrar. Isso faz parte do procedimento usual de quem faz a ciência "normal".

O avanço na compreensão dos fenômenos psíquicos vem passando pelos mesmos processos das demais ciências. O alienista de Machado de Assisl, fornece-nos um exemplo interessante de duas dessas etapas. Na passagem, o personagem central, Simão Bacamarte, e o vigário comentam o recolhimento à Casa Verde de um "rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos. de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim".

Inconformado, o padre Lopes encontra para si mesmo a ex~l~cação, para ele. situada em algum lugar entre um paradigma relIgIOso e um racional: ,

Quanto a mim, (...) só se pode explicar pela confusão i de línguas na torre de BabeI, segundo nos conta a Escritura; ~ provavelmente, confundidas antigamente as línguas, é fácil trocá-Ias agora, desde que a razão não trabalhe (grifo meu). ..', Responde a ele o alienista, por sua vez a partir de uma,. perspectiva ditada pela capacidade e neutralidade da razão'humana:

Essa pode ser, com efeito, a explicação divina do fenômeno, (...) mas não é impossível que haja também uma razão humana, e puramente científica...

Essas afirmações retratam, em romance, as tendências explicativas de duas visões diferentes sobre o desencadeamento de acontecimentos psicológicos. Sabemos também, atualmente, que o próprio paradigma racional e seu padrão de funcionamento - teoria, experimento, confirmação - estabeleceu na psicologia

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uma outra torre de BabeI, criando uma extensa variedade de discursos, com suas correspondentes investigações confirmadoras, distanciando-se da possibilidade de compreensão daquilo que "não encaixa".

É muito difícil encontrar relatos que analisem aspectos discrepantes de um mesmo fenômeno. Quando isso ocorre, em geral acontecem dois movimentos: ou observamos alterações e inserções na teoria, que "forçam" o fenômeno para dentro dela, ou atribuímos o "fracasso" à falha na reprodução das condições ideais para que de fato ocorresse o que a teoria prognosticava.

Esses movimentos originam-se na própria constituição da psicologia enquanto ciência. A peculiar condição pela qual produtor do conhecimento e objeto de estudo se confundem cria uma série de problemas que vêm sendo enfrentados ao longo do tempo, produzindo diferentes configurações paradigmáticas.

Desde que a ciência moderna passou a considerar o sujeito de que falamos, por sua racionalidade, a fonte de todo conhecimento possível, a abordagem de sua relação com o mundo visou condições de "assepsia" que tornassem sua produção compartilhável e, acima de tudo, digna de confiança.

A fenomenologia husserliana reproduz em parte esse esforço, ao sugerir um método rigoroso para o estudo dos fenômenos. Conduz, ao mesmo tempo, a uma radical refor-mulação, ao derrubar o mito da neutralidade científica. A partir dela consideramos a relação indissolúvel entre sujeito e objeto, definida pela intencionalidade.o psicodiagnóstico fenomenológico e os reflexos dessa reformulaçãoOs efeitos deste modo de abordar os fenômenos são claramente sentidos no contexto do psicodiagnóstico, ao proporcionar uma redefinição das relações entre cliente e profis

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sional, que envolve a localização do poder, a delimitação dos papéis e das tarefas a executar.

Basicamente, as condições possibilitadoras do psicodiagnóstico nesta abordagem pressupõem alguns requisitos, calcados na conceituação geral que norteia a posição fenomenológica.

Segundo o conceito husserliano de intencionalidade, a consciência é sempre consciência de alguma coisa, e os objetos intencionais não existem a não ser para a

consciência que os apreende.

Sujeito e objeto estão, dessa forma, situados um a partir do outro, constituindo-se reciprocamente o tempo todo. Não há o sujeito como observador de uma realidade objetiva da qual se encontra distante, mas sim um sujeito que experiencia o mundo, atribuindo significados e sendo por ele constituído. Isso faz com que qualquer forma de conhecimento sobre uma pessoa deva levar em consideração seu contexto particular de vida. A unidade de estudo, então, é o ser-no-mundo, o homem contextualizado, em relação com o ambiente e com aqueles que o cercam.

As afirmações acima nos conduzem, dentro do contexto do psicodiagnóstico, à reflexão sobre a qualidade da participação do cliente em seu próprio processo de avaliação, bem como a uma análise do papel do psicólogo e da situação na qual pode ocorrer um trabalho desse tipo.

A compreensão à qual o psicodiagnóstico se dirige decorre do encontro entre os participantes, uma vez que os consideramos duas pessoas situadas uma em relação à outra.

Psicólogo e cliente se envolvem, a partir de pontos de vista diferentes mas igualmente importantes, na tarefa de construir os sentidos da existência de um deles - o cliente. Nesta medida, o psicodiagnóstico não se presta apenas a preencher as necessidades de compreensão do psicólogo, com a conseqüente definição da patologia e indicação de medidas terapêuticas. Deve servir, principalmente, aos interesses do

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cliente, na medida em que a compreensão terá efeitos em sua vida, propiciando transformações.

Assim, enquanto esperamos do psicólogo uma postura mais "democrátiCa", colocando-se como um dos elementos da relação, desejamos que o cliente esteja disposto a cooperar, abrindo-se para essa intervenção.

A situação de atendimento constitui-se em espaço para a produção de significados múltiplos hierarquicamente semelhantes sobre um mesmo tema. É imprescindível que estes sentidos sejam partilhados para que se insinue alguma compreensão. O consenso, no entanto, não é obrigatório, desde que as partes tenham se deixado afetar pelas possibilidades levantadas dos dois lados.

Ao psicólogo cabe avaliar constantemente a relação, com o intuito de trabalhar com o movimento do cliente de colocar-se em suas mãos passivamente e a tendência complementar de realmente aceitar essa entrega. Ao cliente cabe o trabalho inverso, que é o de reconhecer sua própria responsabilidade para o sucesso deste esforço conjunto, considerando e maximizando suas próprias possibilidades de entendimento e de transformação.

Esses acordos são efetuados explicitamente, no início do atendimento. Todo o processo é compartilhado entre psicólogo e cliente, a começar pelo contrato de trabalho. Este é discutido, delimitando desde o motivo da procura para aquele atendimento específico até quais as condições de tempo, espaço e custo dentro das quais ele vai acontecer e quais os aspectos que devem ser avaliados. "A origem da avaliação deveria

ser uma decisão contextual e compartilhada, baseada sobre a experiência que psicólogo e cliente têm um do outro"2.

Mas, acima de tudo, eles vão sendo retomados, assumindo novas configurações ao longo do processo. Através dele, o

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cliente toma consciência de que é um participante ativo e de que todos os dados por ele fornecidos lhe são devolvidos, associados a discussões que possibilitam re-significar os modos de funcionamento apontados, optando ou não por uma maneira de redirigir sua vida.

Isso é possível pela constatação, em conjunto com o psicólogo, de como ele "está sendo-no-mundo", nesse momento específico. Os reposicionamentos na relação e o compartilhar dos resultados tornam isso possível, o que é diferente da postura cristalizada de colocar-se nas mãos de alguém que sabe mais, que vai tomar conta de tudo e resolver o problema.

Ao abrir caminho para um relacionamento mais igualitário com o cliente, o profissional proporciona a si mesmo a possibilidade de modificação de seus pontos de vista, semelhante àquela disponível para o cliente, e se estabelece entre os dois um interjogo de trocas em diferentes níveis que pode favorecer o crescimento de ambos.o que acontece não é sempre o que gostaríamos

o que foi acima descrito refere-se à atitude esperada diante da tarefa do psicodiagnóstico fenomenológico que, em geral, transcorre sem problemas, sendo atingidos os objetivos propostos sem maiores dificuldades. Quer dizer, o cliente sai, ao final do processo, re-situado em sua maneira de agir e concluirá novos arranjos possíveis dos fatores que podem estar contribuindo para suas dificuldades atuais, ou para as dificuldades apresentadas por seus filhos, no caso dos pais. Como se chega a um encaminhamento em conjunto, os clientes demonstram maior clareza quanto às razões que têm para f segui-!o, compreendendo para que serve e para que precisam dele. E possível esclarecer formas específicas de funcionamento,bem como qual tipo de atendimento é o mais indicado para " trabalhar a dificuldade trazida, se houver necessidade de algum. . O cliente aprende mais sobre si mesmo, e sobre o processo

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de um atendimento psicológico, através dessa vivência particular. Apesar de ser diferente do contexto terapêutico, o contato entre cliente e psicólogo propicia ao primeiro estender o conhecimento adquirido nesta situação para as eventuais outras de que venha a participar futuramente.

No entanto, ao longo de anos de prática, é possível perceber que nem sempre isso acontece. Existem ocasiões em que o processo se desgasta, por alguma razão, e não é possível chegar a uma compreensão conjunta da situação. Tal fato acontece, no contexto do diagnóstico infantil, com relação ao nível de cooperação possível entre o psicólogo e os

pais. Há casos em que, apesar dos esforços de todos, essa cooperação, a partir de determinado momento, deixa de existir, prejudicando o andamento da avaliação como um todo. E há também casos em que esse esforço para uma compreensão conjunta nem chega a existir.

Tais momentos causam insatisfação para nós enquanto profissionais, pois, apesar de o processo psicodiagnóstico ter sido percorrido, não conseguimos nos fazer entender pelos clientes nem tampouco compreendê-Ios adequadamente. Ficamos com a sensação de que o conhecimento adquirido acabou não servindo a ninguém, pois seu principal destinatário não conseguiu fazer uso dele. Em geral, ficam a frustração e o sentimento de fracasso.

Quando um momento destes acontece, percebemos duas tendências principais. Em atitude extrema, atribuímos a falha ao cliente. Dizemos que ele não estava preparado para aquilo que iríamos dizer, que estava "resistente", quase como se ele não oferecesse condições para o exercício do nosso trabalho. É importante frisar que, dentro desta perspectiva, há também o fato, tão conhecido pelos psicólogos e bastante compreensível, de que, se as problemáticas trazidas são muito sérias, por vezes o cliente necessita de mais de uma opinião ou de algum tempo para que aceite o que se passa.

Mas mais curiosa é a outra possibilidade, quando observamos que, apesar de trabalharmos em uma postura que se

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diz completamente oposta à visão experimentalista da psicologia, exercemos um tipo de crítica baseado quase que na possibilidade de reproduzir situações vivenciais como se fossem variáveis passíveis de controle. O movimento por parte de quem avalia tais situações é atribuir o insucesso àquele que o praticou, em geral sob a forma de "... se você tivesse dito ou feito diferente". A tendência é atribuir o insucesso à deficiência na reprodução das condições ideais, numa visão muito calcada na idéia de reprodutibilidade em experiências científicas.

Não que o atendimento não pudesse ser realizado demodo completamente diferente, "se" fosse outra pessoa, "se" quem atendeu tivesse dito coisas diferentes. De fato, podem ocorrer desacertos ou infelicidades por parte do psicólogo, que podem ser atribuídos a vários fatores. No entanto, por vezes isso acontece com profissionais competentes e experientes, sem que consigamos chegar a alguma compreensão conclusiva a não ser a partir da análise daquela situação específica e da convivência e interação daquelas pessoas em particular. Que, de fato, poderiam ser até diferentes em outro momento.

Em vez de imaginarmos o que poderia ter acontecido "se" o atendimento tivesse transcorrido de outro modo, podemos tentar entender o que de fato acontece entre os participantes

de um acontecimento deste tipo. Ou, em outras palavras, que tipo de relação pode estabelecer-se quando o que não ocorre é a esperada cooperação. Podemos buscar as razões que em determinados casos tornam inviável, ou pelo menos difícil de atingir, o entendimento necessário para que sejam garantidos minimamente os pressupostos de um psicodiagnóstico numa perspecti va fenomenológica.

Esta análise exige uma forma de pensamento psicossocial, e leva em conta basicamente as regras de relacionamento estabeleci das explícita e implicitamente entre cliente e psicólogo, enfocadas sob o prisma das negociações entre ambos, para definir e

preservar seus respectivos papéis durante a interação. Uma vez que as participações de cliente e psicólogo são

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equivalentes na abordagem fenomenológica, cria-se um campo de interações específico, ele mesmo objeto de compreensão.

Para descrever como esses modos de relacionamento podem encaminhar-se para um final insatisfatório, gostaria de comentar um caso em especial, selecionado para análise na medida em que se converteu num fracasso paradigmático do ponto de vista do psicodiagnóstico fenomenológico, desencadeando a reflexão sobre as possíveis razões para que isso houvesse ocorrido. Para tanto, optei por analisá-Io em profundidade, uma vez que ficou bastante claro que não foi possível chegar a conclusões que mostrassem que estávamos indo pelo mesmo caminho.

O relato visa apresentar, por meio da análise das posições assumidas pela cliente e por mim, as dificuldades de comunicação que foram emergindo, concretizando-se porque o caso foi conduzido levando em conta aquilo que era esperado teoricamente: o acúmulo de resultados e a conseqüente mudança do ponto de vista dela sobre o filho, a partir da cooperação compreendida pelo compartilhar das informações por ambas as partes. A descrição passo a passo objetiva demonstrar como as rupturas foram emergindo, e de que forma foram sendo tratadas, até o que se considerou um final "fracassado" para o caso.

Análise de um caso

M. procurou na clínica o serviço de atendimento para avaliação e encaminhamento a pessoas que se considerem, ou a seus filhos, superdotadas. Veio procurar ajuda porque seu filho sempre foi muito mal na escola, e, ao ouvir uma reportagem sobre superdotados, começou a imaginar se não seria essa a razão das dificuldades de A.

O atendimento de A. e da mãe foi realizado em dois meses, e o psicodiagnóstico não foi encerrado porque os pais

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não compareceram à última sessão, em que seria discutido o relatório final.

Os contatos iniciais e a definição da interação

o atendimento teve início através de uma entrevista à qual compareceram M. e A. M. começou sua apresentação mencionando superficialmente uma série de problemas do filho, escolares e pessoais, de doenças, dificuldade de relacionamento etc. Afirmou que sua suspeita de superdotação vinha do fato de ter ouvido que muitas vezes a criança superdotada tem uma única habilidade, e disse de forma vaga que desde muito pequeno o

filho tinha habilidade para carros. Já haviam passado por atendimento psicológico, e, naquela ocasião, o resultado do trabalho havia apontado um Q! de 35 ou 40, aliado a problemas motores e emocionais. A. passou por tratamento durante seis anos, e mostrou melhora significativa.

Havia uma diferença muito grande entre a quantidade de problemas mencionados e a possibilidade alegada de superdotação. As evidências para o lado negativo eram muito maiores e mais palpáveis do que a tênue habilidade descrita. O que mais perturbou e mostrou a incongruência do que ela afirmava foi a visão do menino, que apresentava dificuldades aparentes, de postura e expressão, e outras constatadas depois, em contatos com ele, de verbalização, fluência, compreensão das questões e raciocínio. Apareceu nesta entrevista a ansiedade de M., que tomava a dianteira o tempo todo, não permitindo que o filho se expressasse livremente, pois isso derrubaria sua argumentação. Preferiu esconder o filho atrás da alegação de um temperamento fechado, como forma de ocultar as deficiências.

Naquele momento ficou evidente para mim que o caso apresentava uma série de inconsistências, principalmente a discrepância entre o que a mãe dizia e o comportamento do menino ali, naquela hora. Mais presente ainda era o fato de

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que M. havia procurado um serviço de atendimento para superdotados trazendo um filho aparentemente deficiente mental.

A segunda sessão era para complementar de forma mais detalhada os elementos trazidos no primeiro contato, e esperava-se maior participação de M. do que minha, na medida em que ela é que iria trazer as informações necessárias para situar o problema e definir-lhe as dimensões. Isso ocorreu, mas apenas aparentemente. Ela falou bastante, mas o que ficou definido e claro foi muito pouco. Praticamente todas as minhas tentativas de situar e contextualizar a dificuldade trazida foram rebatidas com uma forte dose de ambigüidade no discurso. A partir do que foi dito, eu não conseguia afirmar, ao final da sessão, nada de positivo, apenas suposições baseadas em descrições vagas das situações vividas. Houve um jogo constante de confundir, de não permitir o confronto, nem que as coisas fossem esclarecidas.

Essa ambigüidade se apresentou de diferentes maneiras. A que mais apareceu foi a dificuldade em reconhecer os reais limites do menino. Logo no início M. admitiu que ele tem muita dificuldade..., mas, ao longo de todo o relato, sempre que se fazia tal afirmação, era imediatamente contraposta a alguma outra que a justificasse. Por vezes havia uma constátação clara e assumida de que ele chega até certo ponto, imediatamente derrubada pela descrição em que se mostra algo que ele faz que surpreende. De forma geral, essas "surpresas" eram extremamente inconsistentes, como por exemplo, no caso da suposta habilidade para carros, que mostrou restringir-se ao conhecimento das placas e das cores. Não se sabia se ele não fazia as coisas por não querer ou por não conseguir. Muitas vezes ele foi apresentado como preguiçoso, outras como vítima de perseguição alheia, muitas vezes como incompetente mesmo.

M. não sabia em quem focalizar tanto as dificuldades como sua origem. Fazia um jogo constante de ora assumir para si a culpa do que acontecia (ele tem dificuldades porque nós

sempre podamos...), ora culpar A. (não faz porque não quer, porque é preguiçoso), ora os outros (ele foi muito

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marcado na escola, porque tinha problema de coordenação, então as professoras estavam sempre em cima dele...). Outro fator alegado para justificar os insucessos de A. era a inca-pacidade do observador em perceber como ele é mesmo, o que, segundo ela, ocorreu a vida toda, com professoras, médicos e com a psicóloga anterior. Justificava a idéia de que ele era perseguido alegando que os problemas dele eram banais, coisas normais de criança. Essa perseguição estaria na origem de um "trauma" por escola, explicação que M. tinha para a possível fonte de problemas atuais do filho. Além disso, a mãe acreditava que a falta de estimulação adequada para aquilo em que ele mostrava anteriormente "habilidade" poderia ter gerado tanto os problemas acadêmicos quanto os de relacio-namento e de comunicação com os outros.

Quando confrontada com a ambigüidade, tentava livrar-se dela confundindo mais as coisas para quem ouvia. Assumia não saber explicar o que acontecia, constatando a seqüência dos fatos, mas na posição de quem não sabe por que, em vez de melhorar, só foi piorando. Além disso, toda vez que eu apresentava resumidamente o que ela ia me dizendo, ou os resultados anteriores, começava de novo a confusão de informações.

M. parecia precisar da cumplicidade de outros profissionais, para sustentar a ilusão de que estava tudo bem com o menino, e de que não só ela não havia notado nada até muito tarde: o médico não disse nada..., ou então nunca foi notado nada... etc. Chegou a anunciar que eu talvez também não chegasse a nenhuma conclusão, porque o caso era muito complexo. No contexto escolar, a família sempre escondeu a produção dele por vergonha, por aquilo que os outros poderiam pensar deles. Mencionou a vontade de ter escondido o relatório da escola e das professoras, como se pensasse que, se elas não ti vessem os resultados, não enxergariam as dificuldades.

Do ponto de vista da estruturação do campo de interação, meu contato com os clientes caracterizava-se como um encontro

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focalizad03 em virtude de nossa opção espontânea por nos encontrarmos com o objetivo comum de compreender o que se passava no contexto daquela família, e mais especificamente com um de seus membros. Com isso criava-se o espaço para interferências mútuas, ao longo de todo o período em que estaríamos reunidos. E a sensibilização e influência de uma parte sobre a outra combinavam com a proposta original do psicodiagnóstico fenomenológico.

Um encontro focalizado pressupõe a existência de alguns requisitos para garantir a realização da tarefa proposta, como definir quem são os participantes e quais as suas intenções, para que todos possam projetar a situação. Essa projeção é determinada pelos contatos iniciais, nos quais as informações necessárias são transmitidas. Uma vez

configurada a situação, estão colocados os limites que a definem tal como deve se desenvolver futuramente. Dessa forma cria-se um terreno estável para os participantes, que permite que o relacionamento evolua sem grandes contradições. Neste caso, não foi imediatamente possível estabelecer este terreno estável, pela impossibilidade de definir imediatamente a intenção de M. ao me procurar, o que dificultou o estabelecimento de um mundo compartilhado.

Eu estava ali desempenhando um papel4: o de psicóloga. Neste caso, mais especificamente, psicóloga diagnosticadora dos aspectos psicológicos do comportamento, dentro de uma abordagem fenomenológica. As regras eram, portanto, bastante claras para mim: estavam relacionadas, genericamente, à constituição dos significados dados pelo cliente aos problemas trazidos por ele, além dos que fossem surgindo relativos aos

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eventos acontecidos ou discutidos ao longo de nossos encontros. Na minha maneira de pensar, esse era um ponto crucial, a função mesma da avaliação psicológica.

Se tomarmos o início da interação como elemento dedefinição do mundo compartilhado necessário a um encontro focalizado, fica evidente que a ambigüidade demonstrada ao longo dos primeiros encontros, não permitia uma definição clara das regras que norteariam a posição da cliente. Isso impedia a formação de uma projeção compartilhada. As insinuações de como se desenrolaria nosso relacionamento, quando existiam, eram logo refutadas por informações contraditórias. Não aparecia explicitamente se M. estava em condições de colaborar, e o que exatamente eu poderia fazer por ela.

A ausência de condições básicas impediu o estabelecimento de outras, como confiança e solidariedade, o que dificultou o andamento do processo como um todo. M. havia chegado trazendo uma constatação, definida por avaliação anterior, de que o filho era deficiente mental, com problemas emocionais e motores. Em momento nenhum desta primeira entrevista ela contestou frontalmente o diagnóstico, e, mesmo assim, minhas próprias pré-concepções a respeito do contexto da avaliação psicológica, aliadas ao fato de que ela procurou não só este tipo de atendimento, mas especificamente um serviço para superdotados, levaram-me a supor a existência de uma dúvida sobre a definição anteriormente estabelecida no diagnóstico já realizado.

Esta dúvida foi assumindo proporções maiores dentro de mim, a ponto de me fazer acreditar que M. tinha razão ao relatar sua percepção do filho, como se ela estivesse intuindo o que ninguém mais poderia ver. Estabeleceu-se dentro de mim uma divisão quanto à forma de encarar o caso, até certoponto necessária dentro do raciocínio clínico. Por um lado, havia a constatação dos desencontros entre as diferentes coisas que ela dizia e o confronto destas coisas com a imagem do menino. Por outro, havia a possibilidade de que a incongruência

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estivesse na situação mesma, ou seja, A. poderia mesmo ser uma pessoa surpreendente.

Os contatos subseqüentes e a busca de um terreno sólido

Na terceira sessão foi feita a anamnese. Eu entrei para a entrevista imaginando que o fato de lidarmos com questões mais específicas pudesse encaminhar melhor o delineamento do que anteriormente havia ficado vago. O início da entrevista foi dirigido mais à vida anterior dos pais. Optei por esse procedimento com o intuito de determinar a especificidade do contexto familiar, e a importância que poderia ter para os pais o sucesso ou fracasso futuro dos filhos. Nesta sessão ficou claro que desde o início, a vida familiar não foi fácil, e que o problema de A. tinha realmente uma amplitude muito maior do que parecia, maior também do que o que M. podia agüentar. Sua forma de significar a experiência anterior atenuava essa percepção, com o sentido de tornar o filho mais aceitável, ou, pelo menos, mais parecido com o que ela esperava.

No começo, notava-se uma tênue diminuição na ambigüidade, e os acontecimentos foram relembrados com um pouco mais de clareza. M. estava mais relaxada, fazendo até algumas brincadeiras. Mas isso ocorreu apenas até a parte do relato em que se falava especificamente sobre A. Ao falar dele, retomou novamente o discurso ambíguo, apresentando os problemas de modo cuidadoso e gradual. A. passou por sérias dificuldades em sua vida. Podemos citar, entre outros, problemas relacionados a fator RH, além de fatos como não ter chorado ao nascer, de só sustentar a cabeça com um ano, problemas respiratórios, cabeça grande demais, obesidade e falta dos testículos. Ficou bastante clara a frustração com relação a ele desde o início, pois logo ele mostrou uma passividade que não correspondia ao que era esperado pela mãe: teve um desenvolvimento atrasado em geral, não era travesso nem audacioso como ela gostaria. Tudo isso foi apresentado aos

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poucos, e de modo fragmentado, como forma de atenuar a gravidade da situação, de impedir a formação de uma imagem global do menino. Como se M. pudesse disfarçar o resultado final por enfocar um problema de cada vez.

Como conseqüência, A. foi levado a médicos variados, o que até certo ponto se justifica, já que ele foi uma criança realmente doente. Mas a mãe parecia acreditar que, com esse procedimento, pudesse transformá-Io naquilo que ela sempre imaginou. Buscava um aval técnico que desfizesse a sua percepção de que ele não era nem adiantado como a filha, nem normal, independente do que ela fizesse.

A descrição feita acima dos principais fatos relacionados a esta família permite estabelecer algumas associações que podem explicar como M. se situava diante das dificuldades. O casal parece ter carregado todo o tempo uma expectativa bastante alta com relação ao que seria um filho do sexo masculino, e essa expectativa foi frustrada totalmente pela pessoa real do filho. Essa frustração foi grande demais, levando-os a mascará-Ia sempre que possível, para si mesmos e principalmente para os outros. O ponto máximo mostrou-se quando M. decidiu que a explicação para os comportamentos do filho, ao invés de uma deficiência, só poderia ter origem na hipótese oposta, a de superdotação.

Minhas intervenções nessa sessão foram, em alguns momentos, as usuais para esse momento específico da avaliação: esclarecer o contrato e o contexto de trabalho,

justificando-o; manter atitude exploratória, tentando esclarecer alguns fatos e relacioná-Ios com o contexto específico da vida daquela família; resumir e devolver o que eu ia entendendo, como forma de verificar essa compreensão, para que a mãe confirmasse ou não e prosseguisse. Em outros momentos, tentava controlar a ambigüidade que ia tomando contorno, pretendendo organizar o relato confuso. Para isso, às vezes retomava e dizia novamente coisas que M. havia falado, com a intenção de situar melhor fatos que eram descritos de modo vago. Por vezes pedia sua opinião sobre fatos. e apontava os sentimentos

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relacionados a eles. Nestas tentativas, raramente eu era bemsucedida.A principal crença que norteava meu comportamento nesta primeira fase do

atendimento era a de que M. tinha vindo me procurar porque queria esclarecer algo que para ela não estava claro. E que, para isso, algumas coisas deveriam acontecer. Uma delas é que ela me contaria o que já sabia, ou como ela entendia o que estava se passando, não de forma absolutamente clara, mas que precisasse apenas de ajustes para esclarecer pontos obscuros, para mim e para ela. Desencadear-se-ia então um processo de reflexão, permitindo a reorganização na forma pela qual vinha pensando a respeito do filho. Neste fato estava implícito que ela tivesse alguma compreensão racional sobre o que se passava, que quisesse contá-la para mim e que quisesse mudá-la por meio dos esclarecimentos a que fôssemos chegando. Este era um pressuposto bastante presente para mim.

Nossas projeções para a situação eram, portanto, diferentes. Enquanto eu imaginava uma situação de esclarecimento e mudança de perspectiva, M. esperava uma série de confirmações e respostas que eu não poderia lhe dar. Ela estava, sem dúvida, envolvida e mobilizada pela avaliação, mas sua maior preocupação consistia em mostrar, através das conclusões a que pudéssemos chegar em conjunto, que estava certa. A esperança dela era grande: esperança de que eu dissesse que nada disso estava acontecendo, de que eu reconhecesse umafalha palpável que pudesse ser remediada, ou de que apontasse uma solução eficaz para A. ser como ela queria: se de repente você me disser assim, olha, você realmente estimula ele nessa área, que ele vai se dar bem, ou não vai se dar bem... .

Depois da terceira sessão, a mãe passou a invalidar o desempenho adequado do papel ao qual eu me propunha, por não concordar com a configuração da situação por mim planejada, que ela parecia já ter identificado com muita sensibilidade. Sua ambigüidade trazia como resposta, da minha

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parte, uma sensação de estar caminhando sobre um terreno bastante instável, o .que levava-me a ter um comportamento vago, ambíguo também, por vezes, como se a instabilidade tivesse poder paralisante. Eu sentia que algumas das afirmações que eu fazia para mim mesma poderiam ter apenas o caráter de especulação ou idéia pré-concebida, já que nada parecia se confirmar no discurso dela. Posteriormente pude identificar esse terreno instável como a dificuldade de comunicação que

já aí se apresentava. O fato de o problema ser maior do que ela poderia agüentar no momento incapacitava-a de se envolver numa tarefa que para mim era condição fundamental de trabalh(}: a cooperação. E eu continuava trabalhando não só como se esta fosse um pressuposto, mas como se existisse.

Assim, diante da ambigüidade, eu buscava definir uma impressão, quando, ao contrário, diferentes modos de expressão eram usados para não permitir que se estabelecesse uma impressão única, e sim uma série delas, contraditórias entre si. Como eu não conseguia deixar claro qual o real motivo da procura para o atendimento, foi como se eu tivesse preferido assumir que o que estava acontecendo é o que usualmente acontece neste tipo de relação.

A diferença de expectativa levou-me a idealizar suapeiformance5. Eu a tomei pelo "cliente ideal", ou seja, reagia a comportamentos quase que imaginários, que seriam os esperados em qualquer cliente, perdendo de vista a unicidade do comportamento específico dela. Isso fez com que, durante um tempo, eu me limitasse a seguir caminhos cegamente, tateando, por não saber em que informação acreditar, se naquela que dizia que um cliente se comporta de uma maneira específica - ou seja, vem à clínica à procura de algo que posso lhe oferecer, e assim por diante -, ou se na leitura

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de um outro nível de mensagem que deixava claro que não, que este não era o principal intuito dela.

Ao mesmo tempo, M. utilizava recursos verbais e de comportamento como forma de manter o controle da situação de entrevista, para que eu reagisse de modo compatível àquele esperado por ela6. A ambigüidade era inegável e evidente, bem como as tentativas de manipulação, e ainda ficavam como dúvidas para mim a delimitação da capacidade de A., a confirmação ou não dessa suposta habilidade para carros mencionada e a verificação das condições do contexto dessa família que haviam feito com que todos aparentemente brigassem por tanto tempo para mostrar ao mundo que o menino não era como aparecia aos olhos dos que conviviam com ele. Esse último fato fazia-me pensar, por alguns instantes, que eles poderiam ter razão, e que era possível que A. tivesse mesmo algum recurso que ninguém percebéra e que eles o haviam intuído de alguma forma. O psicodiagnóstico era, para mim, o contexto para esse esclarecimento.

A quarta sessão foi utilizada para complementar os dados da anamnese e o contrato para o início do atendimento ao menino. Continuando seu relato, M. mostrou a pseudo "união" da família como forma de coibir a liberdade dos indivíduos, pois na medida em que eles tinham de andar todos juntos, ninguém podia fazer aquilo que tinha vontade. Isso começou então a ser usado por ela como empecilho para continuar vindo, talvez já preparando o terreno para uma possível desistência.

Passou a desvalorizar muito o marido, cuja incapacidade permeava o dito "trauma" de escola de A., já que este aconteceu porque ela o colocou na escola cedo demais, por ter de trabalhar para ajudar o marido, que, no fundo, ela via como

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incompetente: eu tinha que ajudar... teve uma época que ele ganhava pouquíssimo... então eu tinha que ajudar mesmo. Insinua sutilmente que A. "puxou" todos os defeitos do pai, e que o marido era de algum modo culpado pelo que estava ocorrendo, por ser má influência ou por colocá-Ia em situações em que ela não podia cuidar adequadamente dos filhos.

A. teve uma adaptação péssima à escola. Em parte, talvez, porque M. não estava convenci da de que queria colocá-Io em qualquer escola, em parte porque sempre foi difícil para ele, desde o começo. Ela chegou a admitir isso em algumas passagens: ... sei que foi péssimo aluno, desde o maternal, mas logo negava a percepção inicial de que era difícil, e justificava o baixo rendimento como preguiça, uma preguiça sem fim... . Era ambígua também quanto ao que podia escutar por parte dos profissionais.

Ao falar do desempenho escolar dele, podia chegar a fazer várias afirmações contraditórias em uma única frase, como no seguinte relato: Português ele adora! Eu acho que ele escreve até bem. Sabe, não sei... não sei te dizer assim... acho que porque ele guardou muito bem palavras... ele semprefoi muito bem em ditado... apesar que na parte gramatical ele vai pessimamente. Ele não vai bem em... entendimento de texto, porque não lê o texto. Ele vai chutando. E... ai... e redação. Realmente ele vai pessimamente mal. Mas porque não lê nada, também. Ele não quer ler nem um gibi. Esse vaivém tinha o objetivo de impedir que se estabelecessem as relações mais óbvias: ela não juntava as coisas, cada fato era isolado como se não tivesse relação com nenhum outro.

Assumiu claramente o que eu havia imaginado como hipótese na sessão anterior, ou seja, a frustração cumulativa quanto ao filho esperado: primeiro achou que era menino e veio menina. Depois achou que seria normal e não era.

Recorria a um raciocínio circular em que não se conseguia definir se ele não estudava por ser. difícil ou se era difícil porque ele não estudava. Aparentemente, a aceitação do que havia de errado era em parte dificultada por esse tipo de

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raciocínio, que, por exemplo, levava-a a admitir não ter condições financeiras para dar outro encaminhamento a A., o que tornaria possível enfrentar a deficiência. Por acreditar que não tinha estrutura econômica para ter um filho deficiente, fazia de conta que ele não era.

Em seu relato por vezes apareciam tentativas de barganha ou negociação, em que ela mostrava que aceitaria até menos do que esperava, desde que fosse mais do que acontecia de fato. A certa altura, admitiu que não esperava que ele estudasse muito, mas que queria que ele fosse... sabe... sei lá, que ele aprendesse algum ofício. Pelo menos.

Ao final da entrevista exibia um movimento duplo: por um lado, demonstrava esperar que eu desse a ela diretrizes precisas sobre como deveria se comportar com o filho, e que definisse claramente o que era possível atingir. Isso ela já havia feito na outra avaliação, e,

mesmo que tal definição fosse possível, ao longo de todo o contato comigo ela demonstrou não confiar, em nenhum momento, nos resultados apresentados pelos outros profissionais. Ao mesmo tempo, retirava toda esperança de se chegar a uma conclusão, ao afirmar que tudo pode ser, nunca é definitivo.

Minhas intervenções nessa entrevista assumiram um caráter um pouco diferente do que havia sido relatado até agora. Persistiam ainda, por exemplo, a devolução resumida daquilo que ela acabara de dizer ou perguntas para tirar dúvidas ou situar o problema dentro da vida cotidiana da família, numa tentativa de explicitar os valores e sentimentos envolvidos. Noentanto, quando constatei que a ambigüidade era um fato constante e até um jogo para me confundir, passei a comportar-me de modo menos vago. Pude então expressar mais livremente pontos de vista que eu vinha adquirindo ao longo do contato, com a segurança de que não eram meras especulações. Isso aconteceu explicitamente, por exemplo, quando eu disse para ela diretamente que A. tinha dificuldade para freqüentar a escola, assumindo claramente uma posição diante das evasivas dela e da aparente falta de entendimento.

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M. rebatia essas manifestações e, entre outras coisas, dizia que eu estava errada ao

pensar que A. tinha de fazer esforço para aprender o que era ensinado. Eu não era capaz,

no entanto, de explicitar que não chegávamos à conclusão sobre o que ela desejava de

verdade, ou sobre o modo como ela imaginava que eu poderia ajudá-la. Tudo isso me

imobilizava, na medida em que eu contava com a colaboração de M. para esclarecimento,

ao mesmo tempo em que proibia a mim mesma o recurso de confiar apenas na minha

interpretação e na sistematização, por precária que fosse, como dado confiável para a

compreensão e descrição do menino. O tempo todo eu estava convencida de que a

compreensão e a descrição tinham de ser comuns. Esta regra era muito clara para mim,

mas, apesar de explicitada no contrato, não contava com a concordância de M. Aqui, se

pensarmos que a experiência é constituída da percepção e da interpretação do

comportamento7, podemos constatar que o último aspecto foi evitado por mim como se

fosse incompatível com as regras da posição fenomenológica, tal como eu a compreendia

naquele momento. O que funda mentava minhas atitudes era a crença de que toda e

qualquer constatação deveria ser colocada em discussão, e de que

mudanças apenas ocorreriam se se chegasse a alguma com preensão conjunta. Por meio

destes movimentos constatamos que acontece aqui uma grave dificuldade de

comunicação, manifestada na minha impossibilidade, neste caso, de esclarecer que estes

mecanismos estavam ocorrendo. Esta impossibilidade não permitiu o exercício de um dos

atributos especificos do meu papel naquele contexto, que seria o de perceber e apontar

eventuais falhas na comunicação que não permitissem o avanço do processo. Esses

fatores, aliados às próprias características

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de M., foram importantes para o desencontro estabelecido entre nós.

A partir daí, o que se supunha no início que deveria ser um trabalho de cooperação transformou-se num embate entre opiniões divergentes, o que ficou claro nas sessões seguintes, quando eu comecei a adquirir, através do contato com A., um ponto de vista mais definido sobre problemas mencionados. Já se manifestava em mim a necessidade, que mais tarde se transformaria em armadilha, de eventualmente poder trazer algum esclarecimento quando entrasse em contato direto com A. Se a situação de entrevista com M. não fosse tão ambígua, essa necessidade poderia ser adiada, na medida em que o próprio relato dela serviria de base ou instrumento para a compreensão do caso, ou de como ela estava percebendo o filho até aquele momento. Como isso não ocorria, a vontade de ver A. surgiu como uma necessidade de "ver a realidade ", como se isso fosse possível. Mais tarde, isso veio a criar a situação de confronto entre duas "verdades" diferentes, a minha percepção e a dela.

Como platéia de uma performance, estamos sensíyeis a qualquer pista que modifique a forma de tratamento, de resposta que o desempenho do outro gera. De modo geral, tendemos a tomar o desempenho como verdadeiro, mas temos a capacidade de perceber as pistas que indicam quando ele não o é, mesmo que não tenhamos condições objetivas de comprová-lo. Este sentimento esteve presente em mim o tempo todo, e a comprovação escorregava pelos meus dedos cada vez que eu tentava alguma forma de verificação. A idéia da dupla mensagem8 era freqüente, a sensação de algo que percebemos por meio de pistas que não conseguimos explicitar.

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Estas pistas, segundo Goffman, são mais usualmente a ambigüidade estratégica e a omissão, fatos constantes no relato de M. A impressão pode ser desacreditada, sem que a expressão seja obrigatoriamente falsa. A falsa impressão mantida pelo indivíduo em alguma parte de seu desempenho pode comprometer o desempenho como um todo, ou a totalidade da relação, na medida em que joga a dúvida em cena.

Uma vez que esta foi instalada, a idéia de uma realidade objetiva tomou corpo. A análise da minha vivência neste processo demonstra que, quando a minha percepção acusava alguma forma de dissonância, a tendência era explicar através de um desencontro entre aparência e realidade. A questão da realidade-para-o-outro perdia em importância para a busca de um terreno mais sólido que me permitisse compreender a diferença entre a

expressão emitida e a impressão que eu obtinha. A realidade "externa" parecia ser a saída, daí minha necessidade de ver A. o quanto antes: isso me daria um dado no qual podia me apoiar.

A essa quarta entrevista seguiu-se uma sessão com A., para contato inicial. Ele se apresentou como um rapaz cordial, educado, mas bastante prejudicado. Bastante grande e gordo para a idade, mostrou dificuldades de compreensão, verbalização e encadeamento do pensamento, mesmo para perguntas simples, sobre como era seu dia-a-dia, ou como imaginava seu futuro. Essas deficiências aparentes fizeram com que o diálogo não fluísse o suficiente para ocupar todo o tempo dedicado à sessão, e optei pelo início da aplicação do WISC, esclarecendo para A., em linguagem o mais próxima possível da utilizada por ele mesmo, essa decisão e de que se tratava o teste. Isso foi explicado à mãe, na saída, quando esclareci que estávamos avaliando a capacidade intelectual do menino, que parecia ser, no momento, a questão fundamental, e que os resultados seriam discutidos com ambos, separadamente, no final desta fase. A. veio ainda mais uma vez para finalização do teste, após a qual foi marcada a quinta entrevista com M.

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o impasse se instala

Por tratar-se de uma sessão para devolução de informações, nesta quinta sessão o esperado era que eu falasse sobre minhas impressões a respeito de A, comparando-as com as da mãe dele, de forma a chegar a uma compreensão da criança que levasse em conta esses dois pontos de vista. M. ouviu mais do que falou, e, em determinados momentos, parecia que essa compreensão estava começando a se estabelecer. Mas isso era apenas aparente, pois aqui começou realmente o confronto, quando minhas intervenções passaram a ter respostas instantâneas por parte dela, rebatidas imediatamente por mim.

Ela chegou a essa sessão bastante aflita, preparando o contexto, porque ia saber o resultado do WISC. Iniciou o discurso se preparando para o que pudesse vir a escutar, negociando comigo suas expectativas. Através do relato daquilo que não esperava mais, um milagre, expressou de forma confusa e vaga a esperança de que eu resolvesse o problema ou dissesse o que ela queria ouvir. Suas afirmações eram impessoais (se der, ótimo, se não der, paciência), sugerindo que A pudesse eventualmente melhorar, mas insinuando que essa avaliação de fato não iria resultar em nada. Tudo isso foi expresso por ela no início, como forma de se fortalecer para aquilo que poderia vir a escutar. Falou também que o filho já avisara que não tinha ido bem.

Descrevi minha impressão sobre A começando pelo contato inicial. Relatei minhas opiniões sobre a forma como ele se relacionou comigo, o que me pareceu segurança ou insegurança, em resumo, como acreditava que ele devia se mostrar a qualquer pessoa na primeira vez em que houvesse um encontro. De forma geral, ao longo dessa sessão foi possível perceber que, com relação aos aspectos afetivos e sociais do filho, M. não se sentia tão ameaçada, conseguindo falar e ouvir mais livremente, ponderando os argumentos nesse sentido e citando vários exemplos que demonstravam que ela estava atenta e reconhecia essas dificuldades de A. A situação ficava

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diferente quando se tratava do desempenho acadêmico ou do limite de entendimento que ele podia apresentar. Nesse caso, ela assumia uma atitude defensiva de negação ou de aparente falta de compreensão do que se dizia, insistindo em uma imagem que não se sustentava diante do contato com o menino.

Ao devolver os resultados do teste, utilizei-os como forma de confirmar coisas que ela mesma já me havia dito anteriormente. No entanto, era óbvia minha opção por apenas uma das inúmeras hipóteses que ela havia levantado para explicar o que se passava com A., a saber, a da deficiência, da limitação. A partir dessa escolha, passei a emitir de forma definida opiniões sobre essas limitações, como por exemplo o. fato de que a escola era uma coisa bastante difícil para ele, se partíssemos da premissa de que ele tinha capacidade intelectual bastante abaixo da média. Durante toda a sessão minha premissa foi essa, e com isso eu estava claramente eliminando as hipóteses de preguiça ou "mimo", por exemplo.

Usei um procedimento que se caracterizava por frisarvárias vezes os resultados, satisfatórios ou não, numa tentativa de conter a ambigüidade. Referi-me ao fato de que ele me pareceu esforçado, de que deu tudo de si para chegar onde estava, e de que não me parecia ser por falta de vontade que ele não fazia as coisas. Confirmei, também, através dos resultados, informações anteriores sobre as coisas que ele fazia melhor, assim como o fato de que, por terem sempre tomado a dianteira, ao intuírem ou tomarem contato direto com a deficiência, podem tê-Io prejudicado em algumas soluções relativas a aspectos da vida cotidiana. No entanto, marquei sempre que isso pode ter atrapalhado um pouco o limite quejá estava lá, e que é dele. M. foi aparentemente aceitando os resultados, no início. Parecia conformada, mas jogava frases vagas, tentando conduzir-me a conclusões, como por exemplo engraçado, é isempre com escola,numa evidente alusão à sua própria hipótese explicativa de que A. não ia bem por ter trauma de escola. Sua ambivalência quanto ao que podia esperar como

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resultado ou benefício desse atendimento se expressou muitas vezes. Era compreensível que fosse difícil para ela aceitar as limitações de A. Por alguns momentos, mostrou-se deprimida, chorou e se colocou numa postura mais realista. Assumiu as expectativas e as dificuldades, a frustração e a revolta por isso estar acontecendo com ela. Mostrou aí que já tinha clareza quanto aos limites do filho, comparando-o com pessoas em pior e melhor condição. Admitiu inclusive ter sido teimosa ao insistir em mantê-l o na escola em que estava, para provar aos outros que ele não tinha problemas, sem prestar atenção aos reais sentimentos de A. Situou, em alguns momentos, coisas que, segundo ela, ele faz melhorÚnho, numa tentativa de estabelecer limites mais definidos para um encaminhamento futuro da questão. Ainda demonstrava, no entanto, maior facilidade em aceitar as dificuldades afetivas do que as intelectuais.

Ao mesmo tempo, era perceptível que a vasta gama de sentimentos revividos de forma confusa sobrecarregou-a de contradições, e foi possível perceber que para ela era difícil conter esse estado de forma a elaborá-Io melhor. Por vezes seu discurso mostrava essa

dificuldade e a tendência a aliviar a pressão, atenuando ou mesmo negando o sentimento, como quando dizia: revolta não, não tem nada a ver, ou fulano sofre, porque eu não posso sofrer?

Isso tudo fez com que eu acreditasse que a atitude dela havia mudado, e que seria possível continuar o atendimento de forma cumulativa, isto é, através da discussão dos pontos vistos, projetando-os para o futuro, de forma a acrescentar conteúdo e detalhamento a cada um dos aspectos do problema, visando re-significá-Ios. Minha impressão vinha do fato de que, nessa entrevista, chegamos até a conversar sobre a possibilidade de que a mudança de perspectiva de M. com relação a A. fosse algo anterior à procura do atendimento, que teria como razão de ser o esclarecimento de dúvidas até então embaçadas pelo outro pontQ de vista que ela assumia diante de toda a situação.

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Além disso, ela falava com mais sinceridade e clareza a respeito de questões como a humilhação por que já passaram todos na família em virtude da deficiência de A. Essa parecia ser sua principal fonte de angústia naquele momento. O que a preocupava era a imagem do filho e, conseqüentemente, dela mesma perante os demais. Isso originou, segundo ela, o movimento de tentar provar a todo custo que A. era capaz, ao contrário do que todos pensavam. Reconheceu sentir vergonha, e que o fato de ter conhecimento das limitações fazia com que ela imaginasse que todos os que os circundavam também soubessem a mesma coisa. Ela se sentia transparente à percepção do outro, na medida em que a presença desse conhecimento dentro dela poderia torná-Io público.

Isso tudo, no entanto, durou apenas alguns poucos e preciosos instantes. O momento crucial desta entrevista ocorreu quando eu afirmei que ela teria de rever as expectativas que tinha com relação ao futuro de A. Esse mostrou ser o ponto nevrálgico, aquele que gerava a maior ansiedade e que ela se recusava a aceitar. Sua resposta foi: Não, sabe por quê? E a partir daí, ela retomou todo o discurso da habilidade para carros. Foi como se tivéssemos voltado à estaca zero, de onde não saímos mais.

Sua posição transformou-se num girar em círculos em um beco sem saída. Assumiu dois caminhos diferentes. O primeiro foi o de negar a deficiência, seja evocando a existência dessa habilidade oculta, seja planejando para ele atividades que certamente não se encaixavam naquilo que ele fazia melhor, por exigirem um desembaraço e uma iniciativa de que A. não parecia capaz. O outro caminho era o de rejeitar o que não fosse compatível com a limitação, desvalorizando aquilo que A. poderia conseguir se fosse mais inteligente, como, por exemplo, sucesso acadêmico.

Eu não percebi isso de imediato, entusiasmada com sua mudança de atitude, e continuei interpretando suas atitudes como abertura de um caminho para a compreensão partilhada do que se passava com o menino. Insistia em assentar o que

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havia sido levantado, sugerindo que continuássemos a trocar informações como forma de

consolidar o que já havia sido discutido, para dar, conjuntamente, o melhor encaminhamento à situação. Eu agi o tempo todo como se tudo fosse apenas uma questão de repetir algo que ela, por sua vez, começava novamente a se recusar a ouvir. Eu voltei a acreditar na possibilidade de acordo.

M. manifestou seu sentimento de impotência, e se colocou completamente em minhas mãos. Eu assumi a impossibilidade de preencher nível tão específico de necessidade, incitando-a a buscar a resposta junto coinigo. Meu convite era para que refletíssemos sobre a questão principal, a limitação dele, e as possíveis opções para melhorar a situação.

A esta entrevista seguiram-se as restantes com A., uma para discussão dos resultados do WISC e aplicação do Teste Ômega, e outra para finalizar o atendimento com ele. O que havia sido combinado era que M. viria na semana seguinte, para continuarmos nossa conversa.

A fase terminal

Nesta sexta sessão, M. posicionou-se inicialmente como tendo mudado radicalmente a partir do que conversamos. Essa alegada mudança se traduzia na frase já vou começar deixando ele ir sozinho, ao falarmos de uma entrevista à qual A. deveria se submeter para conseguir emprego de office-boy. Outro sinal de modificação apareceu quando ela afirmou que esse emprego -poderia ser uma boa solução, comparando o filho com o rapaz que o indicou para o trabalho, e que, segundo ela, também é meio problemático... não é muito adiantado. Nesse momento, sua intenção era me mostrar, sem ser interrompida, que havia mudado com relação ao filho. O que contrariava essa impressão, todavia, era a intenção de empregá-Io como office-boy, apesar de sua falta de iniciativa, numa insistência equivalente a querer colocá-l o na primeira série quando ele ia tão mal no pré.

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A avaliação do Ômega evidenciara que A. tinha uma auto-estima muito rebaixada, e minha intenção era discutir essa questão com a mãe, apontando que ele não se sentia aceito e que ficava indeciso ao responder por medo de errar. M. demonstrava não só admitir essas dificuldades, mas até acentuá- las, colocando-as como anteparo para a incapacidade do filho. voltou a falar dele como preguiçoso e mimado. Estas características eram, para ela, a definição de A., e ela as passava subentendidas, como por exemplo ao dizer que ele só era capaz de planejar quando se tratava de passeios. Dessa forma, transmitia a impressão de irresponsabilidade, o que confirmava sua hipótese de que ele não aprendia por falta de interesse, e não por causa da limitação intelectual que ela se recusava a aceitar.

M. passou a utilizar novamente os critérios anteriorespara justificar os comportamentos dele, comparando-o com os outros e com ela mesma, nem que fosse para se atribuir características negativas, como quando disse que ele era imaturo, mas que ela também. Minha atitude nesses momentos era a de não argumentar, tentando voltar sempre ao funcionamento dela com relação ao filho. A intenção era a de não entrar no jogo de argumentação e de esvaziar a manipulação, tomando tudo o que ela dizia como "fato" e prosseguindo a partir daí, mostrando minha impressão de como as coisas aconteciam entre eles.

Eu tentava também esclarecer o que para mim aparecia como dificuldade em considerar a possibilidade de deficiência. Consideramos inicialmente o que ela mesma havia classificado como a própria imaturidade. Recriminou-se por não ter feito a coisa certa, apesar de apresentar-se ao mesmo tempo como uma pessoa extremamente responsável, a quem todos da família eram ligados por um vínculo de dependência. Não admitia a hipótese de que os filhos se afastassem dela. De fato, ela assumia de modo exemplar sua parte dentro de casa, mas era possível sentir que o que estava em jogo era sua competência como mãe e dona de casa, assim como a definição rígida dos

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papéis masculino e feminino: uma relação mais equilibrada e de ajuda era vista como sinal de incompetência. As identidades cristalizavam-se nos papéis, sendo definidas por eles. Se o papel não fosse bem desempenhado, punha em risco a definição de cada um enquanto pessoa. Se os filhos se afastassem, seria por não a reconhecerem como boa cumpridora de suas atribuições. Esse sentido de responsabilidade incluía, a meu ver, a insistência autoritária em fazer de A. uma pessoa como as outras ou até melhor, e a idéia de que tudo tivesse de sair de modo perfeito fazia com que fosse muito difícil para ela aceitar as limitações do menino.

Novamente nessa sessão, quando eu me referia ao fato de A. ser diferente do esperado, ela reagia girando em círculos, voltando ao início, com as alegações de preguiça, falta de estímulo e do fato de que ele surpreendia. Admitiu expressamente sua dificuldade em aceitar a deficiência de A. ao dizer que tudo bem que tem limite, mas tem que ter um limite para o limite. Não concordava de maneira nenhuma que ele não tinha um desempenho adequado porque não podia, e não porque não queria: eu esforço mesmo, eu puxo, nem que tenha que empurrar.

a que ia se tornando cada vez mais claro era que partíamos de constatações absolutamente opostas: eu acreditava na falta de capacidade de A. e dirigia toda a minha argumentação para que ela relaxasse a pressão sobre ele, melhorando sua auto-estima. M., ao contrário, afirmava que, se pressionado, ele evoluiria, nem que tivesse de obrigá-Io a isso. Anulava qualquer tentativa que eu fizesse para mostrar que esse esforço exagerado podia gerar nele a sensação de não conseguir agradá-Ia nunca, piorando sua auto-imagem. Para ela isso não importava. a que ela desejava era que o menino cumprisse pelo menos parte das expectativas.

Sua argumentação tornou-se inconsistente e ilógica, e elaestabeleceu um jogo de explicar, uma a uma e isoladamente, cada alternativa que eu levantava, como forma de retirar o impacto da situação vivida em sua forma global. Percebia-a

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impotente e acuada, por seu raciocínio circular, desembocando sempre na dúvida. Minha insistência em mostrar a!fpectos que ela desejava que permanecessem nebulosos fez com que a situação se tornasse pesada demais, e ela resolveu sair da sessão, alegando que

estava sendo esperada uma festa. Concordei com isso, mas voltei a me colocar à disposição para conversas futuras, pressupondo que se tratava de uma questão de apro-fundar uma discussão que na verdade ela não queria ter, por ser extremamente doloroso encarar o problema, delineando seu contorno e alcance e retirando, conseqüentemente, a característica de indefinição na qual ela preferia que fosse mantido. De todo modo, marcamos uma nova entrevista para a

. semana seguinte, que teve início com uma tentativa minha de definir como ela estava entendendo o que havia acontecido até agora, e qual sua posição perante a necessidade ou não de maiores esclarecimentos. A análise mais detalhada da minha participação aponta para um tratamento quase que exclusivo dos aspectos racionais ligados à compreensão do problema, enfatizando pouco os sentimentos envolvidos, o que poderia ter mudado o sentido de todo o trabalho. Nesta sessão cheguei até a fazer isso em determinados momentos, ao perceber como é difícil para ela aceitar o que se passa, mas era tarde demais. M. já assumira uma posição de quem está de saída, acreditando não ter mais nada a lucrar em sua interação comigo.

Ela não viera procurar esse atendimento para entenderalguma coisa. Essas coisas para ela já estavam mais do que claras e entendidas. Viera procurar uma melhora do filho, uma solução para um problema insolúvel. Ao perceber que nosso contato não provocaria nenhuma mudança significativa no modo de ser de A., perdeu o envolvimento que demonstrava no início, quando parecia estar lutando sozinha na busca de uma solução. A partir deste momento, 'desistiu de esperar que eu dissesse o que ela queria ouvir, que eu desse sugestões ou idéias de como ela deveria agir para que o filho deixasse de ser como é. A essa altura parecia fazer qualquer coisa para que eu parasse de atormentá-Ia com as conclusões às quais

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havia chegado. Disse que já estava tratando A. de modo diferente, que mudou de atitude com relação a ele, e que não estava mais obtendo proveito por vir à clínica. Ao contrário, isso estava causando problemas familiares porque o marido brigava com A. por estar dando tanto trabalho.

A partir daí, começou a preencher o tempo voltando obstinadamente às formas discursivas do início do atendimento: não tinham estimulado a coisa certa, A. sempre havia sido discriminado etc. A fragmentação das imagens aumentou, e ela barganhava detalhes, como meio ponto em uma nota específica, e assim por diante. Cada reprovação, cada prova em que A. vai bem ou mal eram isoladas e tratadas como fenômenos separados. Começou a história toda de novo, como se estivesse falando pela primeira vez, repetindo exaustivamente o mesmo assunto, apegando-se a um fato ou dois e girando em círculos. Tudo isso de forma a que eu-ou, de forma mais geral, qualquer interlocutor - me cansasse de argumentar com ela e desistisse, o que de fato aconteceu a partir de determinado momento.

Fiz algum esforço para que ela não parasse de vir, fazendo uma retrospectiva de tudo o que ocorrera, tanto no contexto deste atendimento quanto no da vida deles em geral, mostrando minha posição de que percebia que ela já tentara várias abordagens para o problema, que foram insatisfatórias, e que a dificuldade estava em outro nível, o da relação dela com o filho. Descrevi minha preocupação quanto ao fato de ela sair daqui novamente

sem uma resposta que a satisfizesse, mas falei também que não era possível obter essa resposta definitiva. A evolução da sessão, no entanto, apontava para uma descrença no que a trouxera aqui, e mostrava sua desconfiança em qualquer pessoa que pudesse lidar com o problema de A., por achar que ninguém tinha condições de entendê-I o como ela, já que, acho que você já ouviu dizer que a mãe, às vezes, é mais médico do filho, às vezes mais que o próprio médico.

A partir do momento em que explicitei que, a meu ver, o problema principal estava na relação dela com A., toda a 167

minha argumentação passou a acentuar essa hipótese, que se transformou, para mim, na esperança de reverter o processo e fazer com que ela saísse do atendimento pelo menos vislumbrando a posjção do menino e o quanto sua vontade de que ele fosse diferente prejudicava a ambos. Para isso, passei a privilegiar o ponto de vista de que a procura desse atendimento já era uma tentativa dela de ver o filho de modo diverso. Um exemplo disso apareceu quando eu disse: acho mais importante do que definir se ele chega, mal e mal, até a oitava série, trabalhar sua relação com ele, porque eu acho que o própriofato de você vir aqui, ouvir mais uma opinião, numa postura de quem já tentou tanta coisa que não deu certo, mostra o quanto você se preocupa com ele. Nesse processo, no entanto, por vezes entrei no jogo de contra argumentar, como ela fazia comigo, ponto por ponto, perdendo a visão global, e transformando a conversa em um embate sobre perspectivas diferentes.

Depois disso, a reação de M. foi a de voltar, mais uma vez, ao início. Seu esforço de manipulação, traduzia-se, agora, quase que exclusivamente em retomar e retomar, vezes seguidas,

exaustivamente, cada fato específico. Nesse momento, eu me ' distanciei e perdi, também, qualquer esperança de fazer com que ela compreendesse meus pontos de vista, que nesse momento i

eram o de que A. tinha uma acentuada deficiência intelectual, agravada por uma auto-imagem extremamente negativa, e que M. se recusava a admitir isso, por não conseguir dar conta da frustração e dos sentimentos contraditórios que esse fato determinava nela. Minha atitude, a partir daí, foi a de apenas repetir o que ela ia dizendo, contra argumentando algumas vezes, cada vez mais esporadicamente, conduzindo o atendimento a seu fim.

Encerramos esta entrevista com o compromisso de nos encontrarmos mais uma vez ou duas, para leitura e discussão do relatório final. Na verdade, parecíamos saber que isso não aconteceria, o que se comprovou posteriormente quando, cha- i mada para a última sessão, M. não compareceu.

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Uma reflexão possível sobre o processo

O distanciamento provocado pela passagem do tempo e pela análise detalhada do caso leva a perguntar por que eles procuraram a ajuda de um psicólogo, já que não foi a dúvida com relação à capacidade intelectual de A. que moveu os pais, e principalmente a mãe, a

fazê-lo. É possível levantar algumas hipóteses sobre os motivos que levaram esta família a procurar atendimento, uma vez que parece evidente que ela não buscava esclarecimento.

Parece que, no começo, o que a movia era uma tentativa de estabelecer comigo um pacto para reafirmar uma imagem de A. que vinha tentando preservar, sem sucesso, havia anos. Para isso, M. exibia sistematicamente alguns comportamentos de controle.Se retomarmos a idéia de performance idealizada, a tentativa de estabelecer esse pacto mostra que M. não idealizou meu papel em momento nenhum. Ao contrário, em vez de me tratar como a "psicóloga ideal", uma psicóloga qualquer, abstrata, ela negociava comigo. esta posição a cada momento, imaginando poder estabelecer algum tipo de barganha que me fizesse abrir mão dos valores que norteavam a minha posição dentro do consultório, para fazer o que ela, implicitamente, me sugeria. Sua estratégia de manipulação se baseava, em parte, no fato de se ater a comportamentos, falas, ou fragmentos de um e de outro, para impossibilitar a formação de uma imagem mais genérica do problema de seu filho. Com este objetivo, ela negociou ponto por ponto cada observação, minha ou dela. Contou as coisas de modo truncado e fragmentado, como se quisesse impedir a formação de uma compreensão global do menino. Mostrou ser uma pessoa sensível a cada detalhe do meu comportamento, identificando e contrapondo, um por um, os argumentos que eu ia apresentando numa direção que para ela causava tanto desconforto.

Ao tentar esse pacto, a cliente pode ter imaginado que eu abriria mão da tarefa de explicitar aspectos relacionados

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à sua experiência, principalmente aqueles que ela não queria ver esclarecidos. À medida que ia ficando claro que eu não faria isso, a cada tentativa minha de elucidação de determinado ponto, M. entrava com um jogo sistemático de confundir, através dos mecanismos de manipulação, como ambigüidade e fragmentação do discurso.

Em sua tentativa de desempenhar para mim uma peiformance que se mantivesse idealizada, M. teve de tirar de cena vários aspectos que não eram coerentes com a imagem que gostaria de passar. Ou seja, para manter sua auto-identidade9 intocada, ela precisava exercer manipulação sobre a opinião que eu tinha sobre ela, seu filho e sua família como um todo.É possível, aqui, levantar a hipótese de que sua identidade estivesse de tal modo ligada ao desempenho de seu papel de dona de casa e mãe que qualquer impressão causada por um elemento de sua família era traduzida como impressão sobre ela mesma. Sua sensação de fracasso ou sucesso dependia de que todos em sua casa estivessem bem, como ela mesma verbalizou já no final do diagnóstico. Seguindo essa pressuposição, temos o fato de que o fracasso escolar de A. era para ela um fracasso pessoal, e então, se ela mudasse a opinião sobre ele, minha ou de qualquer outra pessoa com quem se confrontasse ao lidar com esse mesmo assunto, ela estaria mudando também a impressão sobre ela. mesma.

Esses conteúdos e mecanismos tiveram múltiplos efeitosna minha forma de agir, caracterizando toda a primeira fase do atendimento como sendo principalmente de ação da parte de M., e de reação de minha parte. Alguns deles conseguiam mesmo me imobilizar. A dificuldade de M. de fixar as datas dos acontecimentos é um exemplo dessa situação. O horizonte temporal foi eleito por mim como o mínimo de estabilidade

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sobre a qual poderíamos conversar. Não conseguir definir nem este mínimo gerava em mim uma sensação de fluidez que por vezes impossibilitava o prosseguimento do assunto sem que esse aspecto fosse esclarecido. Outros mecanismos faziam com que aparecesse em mim a necessidade de criar confronto com ela, marcando claramente minha forma de pensar, como se ao afirmar algo de modo categórico eu pudesse cercar alguma das circunstâncias descritas, situando-a para mim mesma. Outros ainda desencadeavam um processo de, acima de tudo, tornar o que se passava compreensível, numa visão equivocada de que o que acontecia era falta de entendimento, quando de fato não havia concordância com as conclusões a que vínhamos chegando, e que tomavam o rumo de todas as outras já ouvidas ao longo do tempo.

A exploração dos significados, vista por este prisma, dependia da confiabilidade do relato. Se o que ia sendo dito merecesse confiança, ou pelo menos não aparentasse tanta dissociação, a exploração poderia ir mais longe. Por não haver esse requisito básico da confiabilidade, o foco da atenção mudou para a elucidação das discrepâncias, desviando-se do conteúdo do discurso. Ao mesmo tempo, esta mesma análise demonstra que, na prática, quando a questão do esclarecimento das dissonâncias era deixado de lado, isto é, nos momentos em que eu parava de querer confrontá-Ios e passava a tomar o que M. dizia como" real ", espelhando ou meramente repetindo aquilo que havia escutado, ela também relaxava as defesas e conseguia ir mais longe. Esta foi, no entanto, uma percepção que só tomou corpo depois que o caso foi encerrado, quando tentei compreender as razões para o nosso desencontro. No momento do atendimento, instalou-se uma necessidade grande de ver A. e submetê-Io à avaliação, para confirmar ou rejeitar hipóteses que a relação com a mãe não havia permitido esclarecer. Havia não só um cliente ideal, mas um procedimento ideal que teria de ser posto em andamento. A cada momento eu imaginava que este procedimento poderia ser retomado, e que o esclarecimento de alguns pontos acabaria com a confusão.

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~

A minha impossibilidade em perceber que isso não ia acontecer me impediu até o fim de dar tratamento adequado às impossibilidades de M.

A aplicação e discussão dos resultados do teste de inteligência marcam o início da segunda fase do psicodiagnóstico, que foi da quinta à sétima entrevistas, após as quais M. parou de vir, sem ter concluído o processo. Esta fase foi marcada por um movimento inverso, tanto meu quanto dela. Com os dados do teste em mãos, eu assumi o controle da relação, por sentir-me mais confiante de que minha percepção sobre A. havia sido comprovada de alguma forma. Este estágio do atendimento se caracterizou por ação da minha parte, e reação dela. Eu tinha finalmente um "dado real", podia acreditar nas minhas próprias conclusões, e passei a querer convencer M. delas. Esta foi uma mudança relevante na minha forma de atuar, mais segura, porém levando pouco em consideração as

dificuldades dela.

De ambas as partes, o que aconteceu foi um acirramento das posições, e ela se mostrou muito mais intransigente e detalhista em seus mecanismos de desvalorizar o que eu dizia, por dificuldade em escutar aquelas conclusões. O que estava em jogo era a única imagem que eu passei a admitir como possível: a do filho deficiente, sem atenuantes ou nuances que pudessem melhorar o quadro geral. M. não podia permitir que essa imagem se formasse em sua cabeça, e menos ainda na minha ou na de qualquer outra pessoa. Isso a tornava particularmente hábil em apresentar as dificuldades de modo a que não pudessem se acumular, e também em rebater, ponto por ponto, cada uma das minhas conclusões, negociando-as item por item.

Em alguns momentos, ao contrário, M. parecia demonstrar o desejo de abandonar a luta para provar seu ponto de vista aos outros. Pode-se perceber que, na maior parte do tempo,ela brigava por uma posição na qual não admitia os fracassos do filho, e assumia o desenrolar dos acontecimentos como se eles fossem ocorrer da forma como esperava, isto é, sem

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considerar as dificuldades do menino. Por outro lado, havia momentos em que parecia pensar que, se fosse para admitir minhas conclusões como verdadeiras, eu é que deveria me responsabilizar por A. Isso acontecia nos raros instantes em que ela parecia ter sido atingida por aquilo que eu havia dito, mostrando-se deprimida e mais reflexiva. Constatava os problemas, mas seu movimento era de abandonar-se inteiramente em minhas mãos, delegando para mim a solução deles. Ainda aí se podia perceber que eu não havia conseguido um dos objetivos a que me propusera, que era o de discutir as conclusões e chegar a um encaminhamento comum.

Algumas vezes M. empenhou-se em mostrar que havia mudado radicalmente em relação a A. Para mudar minha impressão sobre ela, passou a adotar os critérios que ela imaginava que eram os meus para definir uma mãe cuidadosa. Como garantia para a manutenção desta identidade, seu discurso não permitia interrupções que poderiam introduzir formas de comunicação não controladas que mostrassem sua fragilidade. Sua dificuldade mais marcante nesta fase diz respeito ao conflito que se estabeleceu quanto aos critérios que seriam adotados para avaliar seu papel de mãe. Por um lado, ela precisava assegurar essa imagem através da procura do atendimento para ajudar seu filho. Por outro lado, essq mesma procura tinha a potencialidade de desmascarar o que, sob o ponto de vista dela mesma, eram falhas neste mesmo papel. A saída que ela parecia ter encontrado era ir ao atendimento, mas esvaziar qualquer encenação específica do meu papel que a confrontasse com a auto-imagem negativa gerada pela constatação das dificuldades do filho.

Algo parecido aconteceu comigo, com respeito ao desempenho ideal ou adequado do papel profissional. As ações de M. demonstravam que eu não estava conseguindo cumprir minha tarefa de modo compatível com a imagem que eu tinha de um bom atendimento. Eu passei todo o tempo na expectativa de poder retomar o processo "como ele deveria ser". Houve situações, como a depressão manifestada por M. durante alguns

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instantes, que pareciam conduzir o atendimento para esta direção. No entanto, essa direção não se manteve, e o confronto se criou quando eu passei a achar necessário desmontar a atuação dela para preservar a minha, num confronto em que estavam principalmente em jogo o controle e o poder sobre a situação, em detrimento da real compreensão e ajuda que são os objetivos principais de um encontro deste tipo.

Considerações finais

No caso de M., o fechamento existencial não permitiu estabelecer relação de confiança, e os limites da própria forma de atendimento, além daqueles colocados por mim, não ajudaram a confiança a se concretizar, gerando o insucesso. Este, por sua vez, propiciou a conseqüente análise de outro tipo de encontro, aquele que é um jogo, que envolve atores e personagens em uma tarefa de negociação. Esta forma de análise se mostrou eficiente e útil para demonstrar os tipos de interação e manipulação que ocorrem quando falta desde o início, ou deixa de existir, o envolvimento fundamental para que surja a abertura necessária às re-significações.

As circunstâncias que permitem essa abertura podem também estar ausentes quando se trata do psicodiagnóstico infantil, uma vez que pai e mãe, que poderiam repensar seu papel dentro da problemática familiar, muitas vezes apresentam dificuldades pessoais que acabam impedindo que isso aconteça, embaçando a compreensão do que se passa. Uma das saídas freqüentemente utilizadas pelos pais para evitar o envolvimento é, então, desviar sempre as observações para o indivíduo que foi inicialmente trazido, como forma de isentar-se da responsabilidade de refletir sobre sua própria existência enquanto ser participante na vida dos demais.Ocorrem, no caso da avaliação infantil, discussões relacionadas à posição e atuação de todos os envolvidos com o problema, mas sempre com a preocupação de não perder de

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vista o foco mais importante, que é o cliente. Foi o que aconteceu neste caso, no qual estávamos avaliando o desempenho e a forma de ser de A., e a de seus pais enquanto relacionadas a ele. Apesar de ser evidente a dificuldade de M. em modificar sua visão com relação ao filho, ficou muito difícil para mim trabalhar esse aspecto mais diretamente, e um dos motivos foi exatamente o fato de que não era ela, diretamente, minha cliente. Eu só me permitiria apontar problemas dela na medida em que estes estivessem ajudando ou perturbando a vida de A., e foi o que eu fiz. Qualquer intervenção mais categórica para querer entender melhor o que se passava com M., a meu ver, esbarraria no fato de que ela estava lá para solucionar um problema do filho, e não os dela mesma. Em resumo, M. não apresentava disponibilidade nem interesse, neste momento de sua vida, para o encontro gerado pela cooperação, como se pode esperar em clientes que procuram ajuda

profissional. Eu também não tinha esta disponibilidade, por sentir-me amarrada pelo contexto, que não era o da psicoterapia dela, e sim o do psicodiagnóstico de seu filho. Isso fez com que, ao invés do encontro, surgisse o impasse, e o conseqüente processo de negociação.

Além disso, para entender melhor a questão do meu problema em mostrar a ela as próprias dificuldades, é necessário lembrar que, uma vez estabelecido o confronto entre nós, este passou a ser, também para mim, um problema de exercício de autoridade. Ao confronto de poderes se contrapõe, como nas diferentes formas de encontro, o confronto que pressupõe alteridades que se abrem uma para a outra. Este acontece sempre que o indivíduo está diante de um outro diferente dele, e que coloca este limite pela sua própria existência, que é diversa. Quando este confronto, terapeuticamente desejável. não é possível, passa a existir aquele em que o que está em jogo é a prevalência de um papel sobre outro, ou, em outros termos, a problemática da autoridade.

O fato de apontar as limitações, caracterizando-as como manifestações de dificuldades pessoais de M., levava-me a

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afirmar que ela apresentava algum tipo de patologia apenas por discordar de mim, devendo submeter-se a algum tipo de tratamento por causa disso. Isso não foi possível naquele momento. A instalação de um "problema de autoridade" decorre do surgimento de um tipo indesejado de confronto: aquele que é gerado pela necessidade da negociação de papéis.Foi o que ocorreu entre M. e mim, quando, ao invés da compreensão compartilhada, teve início um processo de bar ganha cujo objetivo era determinar quem fixava as regras e quem definiria a identidade de A.Estendendo um pouco mais esta questão, entramos por um caminho igualmente delicado e carregado de implicações, que está diretamente ligado a esse problema e ao da respon-sabilidade do cliente. Temos aqui a bifurcação entre a responsabilidade autêntica, através da qual o sujeito acolhe o mundo e o outro, tomando posições e assumindo projetos, e a responsabilidade estratégica, que é dada ou retirada, exercida ou rejeitada, no processo de negociação. Não diferenciando um do outro, pode-se incidir no erro de valorizar acriticamente a participação do cliente como se qualquer participação representasse uma forma autêntica de responsabilidade. A isso se liga a reflexão sobre um outro pressuposto, que diz respeito à necessidade de discussão das informações, conclusões e resultados do psicodiagnóstico, e à expectativa de que mudanças ocorram apenas quando o entendimento conjunto se dá. Este pressuposto gerou um impasse que, como se viu,foi sério para mim: a idéia de que a compreensão teria de ser comum, aliada à dificuldade que eu tinha em assumir determinadas interpretações como dados confiáveis. Com relação ao primeiro ponto, de fato o método fenomenológico não exige o consenso como forma de validação do conhecimento.No entanto, a passagem do método para a prática do psicodiagnóstico insinua que, dentro do processo de compartilhar as informações, é desejável que exista compreensão conjunta destas, como forma de garantir um terreno estável de comu nicação através de uma linguagem comum. Já foi suficiente

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mente demonstrado que, neste processo de avaliação específico, este acordo seria impossível, o que deixa claro o impasse entre teoria e prática, no contexto em que não existe disponibilidade para a cooperação, encontro ou confronto autênticos.

Voltando ao caso em estudo, partir da idéia de que a concordância de M. era fundamental conseguiu me imobilizar por quase todo o tempo. Minha insistência em permanecer dentro de um ponto de vista neutro, em virtude de uma compreensão equivocada de um pressuposto não muito claramente definido, gerou o espaço para a manipulação, já que eu me recusei a assumir responsabilidade por ela, pelo filho ou pelo que pudesse vir a acontecer com eles. Não foi possível para mim assumir a desigualdade momentânea, para depois conseguir, junto com M., superá-Ia. Analisando retrospectiva-mente o caso, é possível perceber, como já foi apontado, que por algumas vezes ela parecia pedir que eu tomasse as rédeas do futuro encaminhamento para o problema, e eu sistematicamente recusei-me a fazê-Io, por acreditar que isso seria um abuso de autoridade. Ocorreu também o inverso, quando ela resolvia assumir o comando, principalmente quando eu emitia opiniões indesejadas sobre A. .A contrapartida disso é uma vantagem do psicodiagnóstico fenomenológico, uma vez que, dentro de um processo diagnóstico tradicional, não seria possível sequer perceber que ela não aceitava o que vinha sendo dito. Se eu a tivesse afastado das discussões sobre os testes e sobre as coisas que eu ia concluindo, e tivesse restringido nossos encontros a duas sessões para devolução de resultados, possivelmente ainda acreditaria que o estudo de caso havia alcançado seus objetivos, na medida em que as opiniões dela não teriam espaço para aparecer. Nos termos deste psicodiagnóstico especifico, a possibilidade de discussão dos resultados, em vez da mera infor mação através de um contato ou dois, permitiu a minha percepção de que não era fJossível chegar incomodar alguns aspectos apresentados por A., principalmente no que se referia à baixa capacidade intelectual. Numa forma de

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atendimento tradicional, não ficaria constatado, para mim e principalmente para ela mesma, a dificuldade de aceitação da problemática do menino. Além destas questões, mais especificamente ligadas ao caso e aos conceitos do psicodiagnóstico fenomenológico, há outras mais gerais. A ciência psicológica, por estar ainda em processo de definição, permite, feliz e infelizmente, diferentes interpretações para as atuações possíveis, que necessitam ser avaliadas e sistematizadas, para que seus contornos assumam limites mais claros. A apresentàção deste caso é uma tentativa de mostrar como certas indefinições podem afetar o desempenho do psicólogo ao atender seu cliente. Apresentou-se a quase infindável gama de fatos que apareciam à luz da análise do atendimento, apontando por vezes a solidez, por vezes a fragilidade de padrões estabelecidos, que usualmente são to-mados cómo certos dentro da prática profissional. Foi possíveluma aproximação a alguns dos aspectos que fazem com que a prática se distancie da teoria, por sutilezas que carregam consigo uma série de posições pessoais, ideológicas e não ligadas diretamente à área psicológica, e idealizações de como os procedimentos deveriam ser, como se fossem independentesdas pessoas.Neste caso, isso se traduziu por meio de um dos valores que me são mais caros: o

princípio da liberdade individualde escolha. Ele foi principalmente desenvolvido e aprimorado através de formação existencial-humanista, ao longo de minha carreira. Este atendimento surgiu para mostrar que, por mo vimentar-me de acordo com esta crença básica, eu incorri o tempo todo no erro oposto, ou seja, cerceei flagrantemente a liberdade de M. de opor-se à minha idéia de autonomia. Defendendo seu direito de ser responsável por sua própria vida, isentei-me da minha responsabilidade, contribuindo em parte para o insucesso do relacionamento.

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A CRIANÇA PARTICIPANTE DO PSICODIAGNÓSTICO INFANTIL GRUPAL

Maria Luiza Puglisi Munhóz*

o interesse pela área de psicodiagnóstico infantil se faz presente desde o início de minhas atividades profissionais. Pesquisando as diferentes formas de atendimento, cheguei a conhecer o modelo grupal numa aproximação fenomenológico-existencial, que vinha ao encontro das necessidades que se apresentavam na instituição em que atuava como psicóloga clínica.

Este enfoque se ajustava à minha forma de trabalhar na área hospitalar, em que as pessoas vivem um momento de sofrimento físico e psíquico e precisam de compreensão e ajuda do profissional que as atende. Compreensão, para que, juntos, possam conhecer o modo como o paciente está vivenciando essas experiências. Ajuda, para que possam resgatar e atualizar os recursos próprios dessa pessoa, os quais permitirão amenizar ou solucionar seus sofrimentos. Por outro lado, considerando os aspectos operacionais e práticos do meu trabalho, este modelo me parecia propício por ser capaz de responder às dificuldades apresentadas nesta situação institucional:

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. grande demanda de crianças com dificuldades de aprendizagem, alterações de condutas e psicossomatizações;. necessidade de tornar o atendimento mais eficaz em uma instituição de saúde e em um espaço de tempo pré-determinado.

A abordagem fenomenológica-existencial parecia-me apropriada por ter como proposta básica a participação dos pais e desenvolver-se em grupo. Apoiei-me nesses aspectos por

considerar que um caminho capaz de levar a mudanças significativas consiste em permitir que o cliente se torne participante ativo, co-operador do processo, por meio da partilha de pensamentos e reflexões sobre os significados que ele atribui ao seu comportamento e ao dos filhos. Quando o trabalho é desenvolvido em grupo, o atendimento é mais eficaz, uma vez que permite. que os pais reconheçam experiências próprias, pois, estando num mesmo estágio de ciclo vital, eles vivenciam, com seus filhos, problemas e dificuldades muito semelhantes. O atendimento grupal também permitiria que, num espaço de tempo delimitado, se respondesse de maneira mais eficaz às solicitações da demanda.

Ao delinear a forma de atuação, procurei adequar os meus procedimentos aos princípios teóricos que embasavam a abordagem, procurando fazer com que as crianças se tornassem participantes ativas do processo e, assim, pudesse conhecer o que estava acontecendo com ela.

o psicodiagnóstico na aproximação fenomenológico-existendal

Pesquisando o que havia a respeito de psicodiagnóstico na aproximação fenomenológico-existencial, encontrei dois posicionamentos distintos. Um deles considera a prática desnecessária, não o utiliza I. Rogers, um dos maiores defensores

180desta idéia, diz que nenhuma descoberta em avaliações psicológicas tem valor real se não for devidamente reconhecida pelo próprio cliente, como acontece nas sessões de aconselhamento ou em encontros terapêuticos. As avaliações a priori são, portanto, desnecessárias. Para Axline2 a atuação diagnóstica, antes do início do processo terapêutico, é considerada um empecilho à livre expressão do indivíduo, tornando-se uma "experiência bloqueadora".

A segunda postura é a de alguns psicólogos fenomenológico-existenciais que, interessados em repensar o processo diagnóstico psicológico, procuram desenvolver procedimentos que estejam de acordo com a orientação que adotam. Fischer3 considera que esta modalidade de atuação se diferencia dos psicodiagnósticos tradicionais por não dar ênfase à limitação e à patologia, mas, ao contrário, valorizar "o significado mais profundo do psicodiagnóstico que é conhecer amplamente a vida psicológica da pessoa". Vida psicológica da qual fazem parte as percepções, os cuidados e certezas que cada um tem de seu corpo, de seu ambiente, da cultura e comunidade a que pertence. Conhecer a vida psicológica da pessoa é o objetivo principal dos psicólogos que utilizam este modelo de psicodiagnóstico, embasando seus procedimentos nos princípios gerais que norteiam esta abordagem. Estes princípios básicos referem-se à compreensão do homem como ser-no-mundo, capaz de sofrer e promover mudanças, em suas relações com as coisas, com os outros e consigo próprio. Como estratégia clínica, procura privilegiar a experiência vivida, acima dos construtos teóricos, com o objetivo de reconhecer os sentidos dessas experiências, como diz Fischer 4. "Nestas relações o indíviduo não é nunca um recipiente passivo, mas constitui

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seus significados." Desta forma, a abordagem valoriza o encontro como sendo o momento principal da avaliação, que permite uma ação integrativa, compartilhada, facilitando ao cliente uma melhor compreensão de si. É essencial que se desenvolva a "confiança mútua" entre os participantes, suficiente para possibilitar uma comunicação pelo diálogo, com o uso de linguagem corrente e descritiva.

Os procedimentos específicos e instrumentos de avaliação escolhidos e utilizados são apresentados e clarificados ao cliente, explicando-se como são usados e a que objetivos se destinam. Esta forma de proceder leva o cliente a estabelecer suas metas de avaliação, tornando-se um "participante informado" desde o início do processo.

Partilhar experiências semelhantes permite que se compreenda, consensualmente, a situação em que cliente e psicólogo, membros constituintes da relação, participam com sua subjetividade, na busca "da obra da compreensão"5. Para Augras, "a objetividade do processo de diagnóstico ou compreensão do cliente, se fundamenta na intersubjetividade existente na relação". E, completa Fischer6, "engajando o cliente como co-assessor, respeitando a intersubjetividade e a ambiguidade, poder-se-á explorar não somente o que foi, mas o que poderá vir a ser".

A aproximação propõe que as intervenções sejam colaborativas, considerando as perspectivas de todos os participantes, que podem ser avaliadas e reconhecidas por meio do retorno contínuo às experiências. Estas perspectivas devem ser examinadas e clarificadas, constantemente, pelos participantes, para que eles possam reconhecer as condições vividas, e assim criar um campo propício para possíveis re-significações, a fim de "possibilitar uma gama cada vez maior de escolhas"7 e "facilitar

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mudanças positivas"8, uma vez que o homem é compreendido, neste dado enfoque, como um ser-no-mundo com sua obra, sua história e suas possibilidades de realizar mudanças.

Estes objetivos, porém, somente serão atingidos se o profissional estiver interessado na compreensão da experiência tal como ela é vivida, na sua forma existencial, reflexiva e comportamental. Como sugere Fischer, convida-se o cliente a crescer através da reflexão, ação e comunicação.

Interessada em assim proceder, procurei o que havia a respeito das diretrizes básicas e procedimentos do psicodiagnóstico apresentado. Observei que muito se fala sobre a forma de atuar com adultos, mas não encontrei referências bibliográficas, nem tampouco procedimentos sugeridos à atuação com crianças. Neste sentido, propus-me a experimentar, na concretude da prática com as crianças, o que tais estudos estavam me informando.

Apresentação do processo de atendimento

o psicodiagnóstico infantil grupal com a participação do grupo de pais segue o modelo proposto por Ancona-Lopez9. Os grupos são formados e desenvolvidos em atendimentos simultâneos.

A autora considera esse procedimento importante, pois a queixa sobre as crianças sempre envolve uma queixa dos pais. São estes que, encontrando dificuldade para compreender o comportamento dos filhos e relacionar-se com eles, procuram um psicólogo. Além disso, as crianças não são totalmente capazes de decidir por si, e as mudanças decorrentes dos

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atendimentos irão afetar, diretamente, os pais, que, se não as estiverem compreendido e aceitado, não poderão colaborar.

Limitar-me-ia a descrever apenas os procedimentos com as crianças, uma vez que os aspectos importantes relativos às participações dos pais serão abordados em outros textos 10.

O grupo é formado a partir da solicitação do cliente. A hora e o local são informados ao solicitante e somente os pais são convidados a comparecer para a entrevista de triagem, cujo objetivo é conhecer quais os motivos que os levaram a procurar o serviço de psicologia. Esse conhecimento permite avaliar e decidir, conjuntamente, qual a modalidade de atendimento e a conduta mais adequada (individual ou grupal). Os pais de crianças de ambos os sexos, num mesmo estágio de desenvolvimento, com queixas semelhantes, são informados a respeito das condições e de como se processa o trabalho em grupo. Com a aquiescência deles, estabelecemos um acordo e iniciamos as entrevistas grupais.

Os pais comparecem às primeiras entrevistas grupais em que procuram conhecer e explorar o que cada um traz como queixa de seu filho, no decorrer de seu desenvolvimento biopsicomotor, e procuro localizar esta queixa nas diferentes situações vividas pela criança.

É somente na quarta sessão que entro em contato com as crianças, já tendo, contudo, uma idéia formada a respeito delas, adquirida através dos relatos dos pais e das informações enviadas pelos profissionais, professores e médicos que as encaminharam.

Antes porém de conhecê-Ias, pessoalmente, procuro deixar claro, para mim mesma, o que espero encontrar, qual a imagem formada a respeito de cada uma delas. Guardo essas imagens em minha memória e me disponho a conhecê-Ias tal como se apresentam, permitindo-me assim confrontar as expectativas anteriores com as informações obtidas naquele momento.

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Ao término deste primeiro encontro, procuro refletir sobre as diferenças e semelhanças destas informações, o que considero dados importantes a serem discutidos com os pais, no encontro que se processa logo após a sessão com as crianças.

Uma sala é preparada para a Hora Lúdica, com uma caixa aberta, colocada no chão, ou sobre uma mesa, contendo brinquedos, jogos e material gráfico. Procuro inicialmente estabelecer um bom contato com cada criança, verbalmente, em linguagem acessível a seu

desenvolvimento maturacional. Sugiro que se apresentem umas às outras; propicio o reconhecimento do local; a familiarização com o motivo de terem sido encaminhadas à clínica. Converso sobre os objetivos do grupo; estabeleço os elementos do contrato, procurando deixar claro o que vamos fazer juntas e, finalmente, discuto com elas as condições de participação. Proponho que utilizem aquele espaço, tempo e material da forma que desejarem. Digo que estarei ali com elas para nos conhecermos melhor e verificarmos, juntas, como lidam com as dificuldades que estão vivenciando.

A proposta de apresentar às crianças as pessoas com quem irão trabalhar, o que estas irão fazer, como também esclarecer os motivos que levaram seus pais a solicitarem o atendimento, possibilita a criação de um campo menos tenso, facilitador dos contatos iniciais, o que permite que as crianças utilizem, mais livremente os próprios recursos e ajam de forma mais natural. Podem expor o que representa para elas a presença na clínica, o significado existente em relação às próprias vivências e em relação às expectativas de mudança. São conteúdos que emergem com freqüência nesses primeiros contatos, expressos verbalmente, corporalmente, ou através das atividades.

Situar as crianças em relação ao contrato de trabalho, esclarecendo-as quanto aos objetivos a alcançar, posicioná-Ias diante das variáveis tempo e espaço, criar condições para que elas se organizem diante da ansiedade inicial que situações como essas, novas, desconhecidas, freqüentemente despertam,

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permite reconhecer os tipos de comportamentos que utilizam para interargir em situações semelhantes.

Detenho-me em observar as crianças de forma global desde o primeiro momento de nosso contato, procurando centrar minha atenção em três direções distintas: como entram em relação com o ambiente, com outras pessoas e com elas mesmas, o que me permite verificar o aspecto relacional de cada uma delas com o mundo, com o outro e consigo própria. Observo seu nível de desenvolvimento bio-psico-social, se suas condutas estão de acordo com o que se espera para a sua idade cronológica.

Os aspectos relacionais criança-mundo são observados através da sua integração grupal, capacidade de realizar tarefas em conjunto, levando em conta comportamentos de liderança, competição, colaboração, disputa, participação, passividade, criatividade e iniciativa. Tais instrumentais permitem-me reconhecer os recursos que cada criança utiliza em suas vivências grupais, que sentido elas dão ao mundo em que vivem e como se permitem experienciá-Io. Se o fazem de forma atuante, autônoma, experimentando modificações, ou se o fazem de forma apática, distante, desinteressadas do que se passa a seu redor.

a modo como entram em contato com o outro pode ser percebido através de como interagem comigo, com os elementos do grupo e com os materiais. Observo, por exemplo, se ficam isoladas num canto, com medo de interagir, ou se estão absortas na tarefa; se são capazes de manter contatos variados e mútuos, ou apenas dois a dois; se procuram se impor falando somente de si, ou se enxergam e ouvem o outro. Volto a minha atenção para perceber como se aproximam do material, se o escolhem ou o evitam; de que forma utilizam o tempo e espaço disponíveis para suas brincadeiras; como reagem aos limites e regras, se as respeitam, as ignoram ou tentam modificá-Ias. São dados importantes que

refletem suas vivências diárias.Ao procurar conhecer como cada criança se relaciona consigo mesma, observo qual o

padrão que repete ao entrar em contato com as informações dadas, se apresenta alto nível

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de ansiedade, inibição, dependência e insegurança, ou, por outro lado, se demonstra ser capaz de criar saídas alternativas aos desafios que se apresentam em situações como estas, nas quais predominam fatores desconhecidos e uma diversidade de estímulos.

Além dos aspectos levantados, me proponho a constatar, neste trabalho grupal, qual o nível de desenvolvimento mental, físico e social de cada criança, pois estou tendo a oportunidade de vê-Ias em grupo e compará-Ias umas com as outras, da mesma faixa etária, o que funciona como parâmetro, elemento de ajuda na avaliação de cada uma delas.

Ao finalizar a Hora Lúdica, solicito às crianças que me ajudem a guardar os brinquedos e nos sentamos para conversar. Devolvo o que pude captar sobre elas, em conjunto, e a respeito de cada uma, individualmente, enfatizando a compreensão de "como" se encontram naquele momento de vida. Conto-Ihes minhas impressões, facilitando o entendimento através de analogias relativas às situações vividas no seu dia-a-dia. Relato os eventos em seus contextos, especificando minhas perspectivas, o que, segundo Fischer, "evita a pretensão de precisão e deixa o caminho aberto para o desenvolvimento de múltiplos entendimentos" 11. Faço perguntas sobre o que estou contando e aguardo suas respostas, procurando sempre estabelecer uma conversa, um diálogo esclarecedor. Este é um momento importante, porque não só permite verificar como estou sendo entendida pelas crianças, como também ouvir suas respostas que são, muitas vezes, longas histórias, que confirmam, infirmam ou negam minhas observações, criando possibilidades para novos entendimentos.

No final do encontro, digo que .em seguida, estarei com seus pais, deixando claro que não irei me referir ao que foi falado ou feito ali, entre nós, mas que iremos conversar sobre as queixas que trouxeram e o que eu pude entender a respeito

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delas, elemento de ajuda e compreensão dos problemas que os fez procurar a clínica, para o atendimento.

Despedimo-nos, combinando novo encontro para a semana seguinte.Nas sessões seguintes (Y, 6a e 7a) continuo atendendo a criança, utilizando os

recursos que considero necessários para chegar a conhecer os aspectos que me interessam, e que são importantes para a compreensão diagnóstica. Procuro escolher estratégias que se adaptam a esse propósito. Utilizo, em geral, testes para avaliação da inteligência, uma vez que, freqüentemente, a demanda se refere a problemas de aprendizagem. Os testes mais utilizados são a Escala Wechsler para Crianças, para Pré-Escolares ou Escala de Maturidade Mental Columbia; testes projetivos, como o Teste do

Desenho: Casa, Árvore, Pessoa; o Procedimento de Desenhos-Histórias de Walter Trinca; o Teste de Apercepção Temática para Crianças (CAT-A). Lanço mão de testes psicomotores, quando há evidências de problemas nesta área. Utilizo então a Prova Grafoperceptivomotora de L. Bender e o Teste de Ritmos de M. Stamback. Substituo os testes por outras estratégias, como jogos dramáticos ou o de completar histórias, de acordo com as condições e a idade do grupo, e/ou a necessidade de verificar outros aspectos.

Ao iniciar qualquer testagem, converso com as crianças, conto-Ihes o que vamos fazer e o que estamos pretendendo chegar a conhecer. No caso do W I S C, por exemplo, digo qual a proposta como um todo, ou seja, verificar sua capacidade de perceber e aprender coisas novas. Informo a respeito dashabilidades que estão sendo verificadas nas diferentes áreas (execução e verbal). Conto-Ihes que vamos ver juntas como aproveitam os conhecimentos adquiridos; como está sendo desenvolvida sua aptidão em planejar e executar tarefas com as mãos, como as desempenham e o tempo que levam para fazê-Ias.

Com os testes projetivos, o procedimento é o mesmo. Antes de dar as instruções do próprio teste, falo da atividade que vamos desenvolver juntas e o que pretendo reconhecer e

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avaliar através das tarefas propostas. Digo que estou querendo conhecer como cada uma delas se encontra em relação a si própria, como vivenciam seus sentimentos e emoções, qual a maneira de reagir a eles; como se relacionam com as pessoas mais próximas, como se sentem em seu reduto familiar, em sua escola, com seus companheiros e professores, enfim como está se processando seu desenvolvimento afetivo-emocional.

Atuo da mesma forma ao aplicar outros tipos de testes. Por exemplo, ao avaliar aspectos psicomotores, digo que quero conhecer como cada uma delas percebe, capta algo e, depois, é capaz de reproduzir o que viu, o que ouviu, o que ocorre à sua volta, de que forma e em que espaço de tempo.

No final da aplicação, falo à cada criança como foi o seu desempenho no que se refere a estar comigo e em relação à tarefa pedida. Deixo as observações sobre habilidades espe-CÍficas para serem comentados nas sessões seguintes, quando terei a avaliação de cada teste já concluída. No momento, nos sentamos à vontade e conversamos de maneira informal, sobre o que pude obter de conhecimento a respeito delas.

Esclarecer as crianças sobre o que fazemos juntas, o quepretendo conhecer, faz com que se sintam respeitadas e solicitadas a participar do processo. Dessa forma elas se permitem estar mais à vontade em relação ao trabalho, se aproximam, se expõem com mais tranquilidade e mostram como agem no seu dia-a-dia. Nas discussões dos resultados, posso contar com sua participação e respostas, o que me possibilita delinear o caminho que estou perseguindo, redefini-Io ou não.

Procuro desenvolver as testagens em grupo, lançando mão de estratégias que viabilizem esse uso, como os testes gráficos ou de desenhos e histórias, que podem ser executados com as crianças acomodadas em mesinhas distribuídas pela sala, com o psicólogo se movimentando entre elas, se aproximando de cada criança, conversando sobre o que fizeram. Em alguns casos, quando não há condições de atuar em grupo, como em alguns testes de nível mental, os aplico individualmente. A

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Idevolução dos resultados, porém, é feita sempre em conjunto, com a participação de todos, de forma natural e amistosa.

Somente quando estou convicta de que os aspectos importantes a respeito do estudo foram discutidos e devidamente esclarecidos, proponho a sessão final, na qual será lido e discutido o relatório, que está sendo elaborado desde o primeiro encontro: entrevista de triagem. Inicio com as crianças, numa entrevista grupal, na qual conversamos novamente a respeito de como se encontram naquele momento de vida, como cada uma delas atua ao relacionar-se com outras pessoas, de que meios se utiliza para se aproximar dos outros e da tarefa que lhe é proposta, quais sentimentos surgem nestes momentos e como reagem a eles, enfocando os aspectos afetivo-emocionais. Falo sobre as dificuldades e/ou facilidades em aprender coisas novas, sobre as atividades que desempenham, como as fazem e em qual delas encontram maior ou menor dificuldades, referindo-me aos aspectos intelectuais e psicomotores observados. Pergunto-Ihes como se sentiram durante o nosso trabalho, se houve mudanças em suas formas de pensar, agir e sentir, se houve algum ganho no decorrer do atendimento, enfatizando sempre o exercício de escolha e a coragem de enfrentar mudanças. Deste encontro participam somente as crianças, o que facilita a comunicação em linguagem coloquial, acessível ao seu estági() de desenvolvimento e capacidade de entendimento, e promove a oportunidade de se posicionarem de forma mais amadurecida e independente, tanto como grupo, quanto individualmente, uma vez que as estou respeitando como pessoas, dando-Ihes responsabilidades para atuar.

A atitude de contar às crianças o que pude obter no processo de psicodiagnóstico está embasada na crença de que a criança não só é capaz de receber e entender as informações a seu respeito, como tem o "direito" de saber o que está acontecendo com ela, uma vez que foi levada a um profissional para ser avaliada, sendo considerada pelos pais ou por quem as encaminhou como portadora de algum "problema".

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L. F. - Eu vim aqui pra saber como eu tô, como eu vou

Às crianças que têm indicação para outros atendimentos, cujos pais concordaram em seguir a orientação, conto a respeito do que está sendo proposto, procurando deixar claro como e onde será feito e de que forma se dará a sua participação. Discutimos sobre o que significa para elas participar destes atendimentos e se gostariam de ir.

Comentários sobre os conteúdos observados

Já nos primeiros encontros percebo atitudes bastante paricipativas de algumas crianças, umas mais, outras menos, mas odas muito presentes na relação grupal, não só entre eles,

ompanheiros de grupo, como também comigo. Com o desen'olvimento do trabalho, as diferenças vão se evidenciando. .lgumas se mostram mais tocadas, envolvidas e conscientes o processo, falando de si mais espontaneamente do que outras. , partir desta observação, procurando não perder de vista as liferenças individuais, posso perceber que as crianças mais mticipantes são aquelas que têm maior conhecimento do que um atendimento psicológico e qual o motivo de estarem ali.

~tas mostram interesse em se conhecer, como ocorreu com ís Francisco (L. F.), um menino de 9 anos, participante de I grupo diagnóstico, que pediu para tornar mais fácil e mpreensível o que eu dizia. Assim falou sobre o que estava erendo saber.

Psicólogo (P.) - E você L. F., quer contar alguma coisa?L. F. - Ah, eu não sei mesmo. Dá pra falar alguma coisais fácil?P. - Dá, sim, L. F., pode dizer o que você quiser.Ao se sentirem atendidas e aceitas como pessoas únicas portantes, capazes e competentes de se tornar cônscias de das experiências de seu mundo, as crianças se mostram

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confiantes, confirmadas como seres no mundo, não somente no que se percebem ser, com dificuldades e capacidades, como também em suas potencialidades. Essa é uma forma saudável de ser criança. Ao se permitirem seguir sua curiosidade e senso de aventura, expressam sua coragem perante as mudanças.

Presencio algumas mudanças ocorrendo, a partir de minhas observações, ou em conversas entre as crianças, nos momentos em que elas, percebendo os próprios sentimentos e analisando os seus comportamentos em relação aos familiares, professores e amigos, chegam a modificar, de forma apreciável, o conceito de si próprias. Algumas crianças, durante o processo, revelam a percepção de mudanças, ao notarem o que há de diferente em sua maneira de pensar, ou em relação a seus sentimentos, como se deu com Fernanda (F.), uma menina de 8 anos, e L. F. nestes exemplos.

P. - ... enquanto a professora está ensinando alguma lição nova, você pensa em seu gatinho, na bicicleta, no priminho, noutras coisas e acaba esquecendo aquilo que a professora falou. Acontece isso?

F. - Às vezes, só que, agora isso não acontece mais, depois que eu vim aqui, eu fico pensando na minha professora e no que ela pede. Agora eu quero passar de ano.

P. - No ano passado você não queria passar de ano?

F. - Eu queria, meu pai falou que ia me dá a bicicleta, mas depois eu nem liguei. Agora eu quero.

Ou:

P. - Nestas horas você começa a se comparar com os outros e pensa: "Tem horas que eu sou melhor e tem horas que sou pior"?

L. F. - Às vezes a gente fica bravo, às vezes a gente mais bravo, às vezes a gente abraça e fica amigo.

P. - Sabe L. F., eu percebo que você entend« o que está acontecendo com você. Entende sim e faz força para melhorar.

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L. F. - Depois que eu falei com você, eu fico pensando noque você falou, até esqueço da vida, às vezes não.

Outras mudanças são notadas e comentadas pelos pais, ao relatarem os fatos ocorridos com a criança, durante a semana, em casa e na escola.

Não são todas as crianças, em todos os momentos, que participam e que se permitem explorar seus sentimentos e atitudes, falando sobre eles. As crianças demonstram dificuldade em ouvir ou responder com coerência alguns assuntos abordados ou aspectos levantados, o que evidencia o quantum de ansiedade, medo e insegurança que é mobilizado ao se tocar certos pontos que representam ameaça de perda de valores importantes como prestígio, poder, amor e aceitação. Outros aspectos apontados facilitam a expressão de sentimentos, quando algumas crianças se mostram até aliviadas ao compartilhar o que as incomoda. Como ocorre com Luís Francisco:

L. F. - ... só que tem uma coisinha que eu não te disse. P. - Pode contar.

L. F. - Que eu não vou nunca namorar.

P. - É, L. F., é alguma coisa que está te assustando? L. F. - É, eu não gosto de namorar.

P. - Você tem curiosidade, você quer saber o que acontece quando se namora?L. F. - Não gosto e não vou gostar. Agora tô melhor, te contei o segredo.

Em um dos grupos, uma das crianças aparentemente atravessa todo o processo sem ser sensibilizada, a não ser em alguns momentos em que demonstra estar acompanhando o que seus companheiros fazem, conversam, ou respondem àsc. minhas observações. Ao me dirigir a ela, recebo respostas curtas, ou monos silábicas, que demonstram pouco interesse e disposição em participar. Este dado me faz pensar sobre até que ponto eu tenho o direito de impor a esta criança estar presente, segundo o desejo dos pais. Por outro lado, ela

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apresenta problemas e dificuldades de relacionamento, que evidenciam a necessidade de uma ajuda psicológica. Este é um ponto bastante controvertido na área clínica, que merece ser abordado mais detalhadamente. A minha conduta, nestas situações, é observar a

criança, respeitá-Ia, no que ela puder responder ou participar, entendendo como importante a sua presença nas sessões, pois há a possibilidade de se criar um campo propício para que um novo modo de existência se instale e venha a germinar posteriormente.

Nestas ocorrências, delibero sobre cada caso e a respectiva atitude a tomar, experimentando alternativas, sempre que possível efetuadas em trocas com o cliente. É ele quem confirma ou rejeita a escolha feita.

O momento mais rico deste trabalho tem sido aquele em que me é possível penetrar no mundo das crianças, colocando-me em seu lugar, sentindo o que sentem. Para isso, é necessário sair do papel interpretativo, liberar a mente das suposições teóricas que me levam, freqüentemente, e aos profissionais da área, a ver os clientes através da ótica dos dogmas e sistemas teoricamente conhecidos. É preciso procurar, disciplinadamente, experienciar os fenômenos como se apresentam. Essa tem sido a única forma possível de entrar numa relação vivendal com as crianças. Esta tarefa de analisar continuamente as pressuposições que limitam e estreitam a percepção do fenômeno que pretendo conhecer, nem sempre é fácil, uma vez que as limitações humanas são inevitáveis. Apesar das dificuldades inerentes a esta postura, ela foi, sem dúvida, o ponto de partidaencontrado por mim, para poder me aproximar e compreender o fenômeno que pretendia pesquisar.

As crianças participam do processo de psicodiagnóstico infantil grupal, o nível de participação depende das características individuais e das emoções mobilizadas. Há uma maior participação quando me refiro a aspectos mais próximos do seu dia-a-dia, de suas vivências e de seu entendimento. Em vista disso, procuro atentamente fazer uso de linguagem clara e simples, traduzindo o que quero dizer em mensagens aces

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síveis, muitas vezes repetindo a mesma idéia de várias formàs, por meio de diferentes frases, com a preocupação de manter um diálogo entre nós. Deste modo, assumindo uma atitude flexível e ouvindo as próprias crianças, os esclarecimentos que fornecem, posso chegar mais perto dos sentidos de suas experiências, comunicadas não somente por meio de palavras, mas através dos gestos, expressões faciais e movimentos de aproximação, ou distanciamento, manifestando sentiment-os que elas não conseguem verbalizar. São mensagens ricas e impor tantes, que permitem reconhecer como as crianças reagem ao que se diz a elas, como acompanham e entendem as verbalizações, modificando ou legitimando minha compreensão a respeito delas.Baseando-me nestas considerações, informo aos psicólogos interessados em trabalhar com esta modalidade de atendimento que devem, como eu, ter o cuidado de verificar o "como", o "quando" e o "quanto" falar a cada criança. Esta questão, muito discutida quando se trata de psicoterapia, não foi ainda considerada no atendimento psicodiagnóstico.

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REFLEXÕES SOBRE O USO DO PSICODIAGNÓSTICO EM INSTITUIÇÕES

Yara Monachesi*

A realização do psicodiagnóstico como etapa anterior à psicoterapia infantil apóia-se em duas justificativas: a primeira diz. que o psicólogo deve obter a compreensão mais profunda e completa possível da personalidade do paciente para fornecer indicações terapêuticas adequadas e a segunda argumenta que o psicodiagnóstico deve ser utilizado como instrumento para planejar, guiar e avaliar a intervenção terapêutica.

Estas funções do psicodiagnóstico parecem atender às necessidades dos psicoterapeutas que realizam seu trabalho em consultórios particulares e que efetuam o psicodiagnóstico para, em seguida, iniciar o processo psicoterápico. O mesmo não acontece quando um psicólogo realiza o psicodiagnóstico e a seguir encaminha o caso para outro profissional atender eJJ1 psicoterapia.

Na prática clínica institucional, por exemplo, observa-se que não ocorre o planejamento e acompanhamento da atuação terapêutica a partir do psicodiagnóstico. O psicodiagnóstico é utilizado, de fato, para estabelecer se o cliente se enquadra

* Doutoranda em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Professora do curso de Psicologia da Universidade Paulista - UNIP.

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nas propostas de atendimento da instituição, para efetuar encaminhamentos e fornecer orientações. Para este nível de decisão, próprio dos processos de triagem, o psicodiagnóstico tradicional (ou clássico) é um processo superdimensionado. Formas mais abreviadas de trabalho podem preencher essas necessidades.

Em pesquisa realizada em 19891, analisei como se inseria o psicodiagnóstico na prática clínica institucional. Procurei verificar em que medida o psicodiagnóstico realizado por outro profissional era útil para o psicoterapeuta. Nesse sentido, avaliei se as conclusões diagnósticas permaneciam registradas na memória do psicoterapeuta, se ele as utilizava como base para seu trabalho e como parâmetro de avaliação da psicoterapia. Verifiquei que, de fato, os psicoterapeutas utilizam o psicodiagnóstico para eliminar suspeitas de deficiência mental ou de doenças orgânicas, saber se a criança apresenta déficit psicomotor e ter o registro da queixa e da anamnese.

As conclusões do psicodiagnóstico, referentes à estrutura e dinâmica da personalidade do paciente, são praticamente ignoradas pelos psicoterapeutas, que optam por apoiar seu trabalho no diagnóstico informal que realizam. Este constitui-se de entrevistas com os pais e observações das crianças em situação psicoterápica.

Se o psicodiagnóstico formal é pouco utilizado pelos psicoterapeutas que trabalham nas instituições, causa estranheza o fato de continuar a ser empregado sem maiores questiona-mentos2. As limitações de sua eficácia enquanto prática institucional sugerem que, enquanto rotina, o psicodiagnóstico poderia ser eliminado e substituído por um estudo de caso breve,

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por uma triagem ou atendimento em grupo de espera3, restringindo-se sua realização a casos com indicações específicas.

A constituição do psicodiagnóstico e sua prática

o psicodiagnóstico constituiu-se em um interjogo de circunstâncias conjugando práticas e teorias diversas. O interesse por estabelecer uma forma de avaliação sistematizada, com a proposta de roteiros que subsidiem a compreensão diagnóstica do cliente, foi tão amplo que até mesmo Anna Freud4, para quem, "a pesquisa de fatos, em torno de uma avaliação, está fora de questão e é praticamente inútil quando o método analítico não é usado", se contradisse, posteriormente, propondo um esboço de perfil diagnóstico que inclui a aplicação de testes para avaliação de funções, como memória e inteligência, além de aspectos da personalidade.

No Brasil, desde o início dos trabalhos de Psicologia, foi adotado um modelo que inclui entrevistas com os pais, contatos com a criança e aplicação de testes. Esta forma se assemelha ao modelo médico, mais propriamente ao psiquiátrico, com a estrutura básica de queixa-exame-resultados. Desde o final da década de 70, passou-se a dar maior ênfase à questão da relação que se estabelece entre a criança e o psicólogo nesses contatos5. A esta mudança seguiram-se outras, que propõem uma forma compreensiva de abordar o psicodiagnóstico6, ou propõem alterações na estrutura do processo, como, por exemplo,

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o psicodiagnóstico grupal em uma abordagem fenomenológica existenciaF. Neste artigo nos referimos ao processo de psicodiagnóstico tradicional ou clássico, constituído pelos seguintes procedimentos clínicos: queixa livre, entrevista de anamnese, observação da criança, aplicação de testes, entrevista devolutiva.

As etapas do psicodiagnóstico acima citadas decorrem de uma variedade de referências conceituais que orientaram sua concepção e sua prática.

De fato, o psicodiagnóstico constituiu-se de uma multiplicidade de procedimentos técnicos de origens diversas, e atémesmo antagônicas. O que assegura sua validade não é a coerência interna, pois não há uma linha mestra que oriente os procedimentos que parecem somar-se de maneira mais ou menos aleatória, mas sim o raciocínio clínico, que articula e integra os elementos coletados8.

o psicodiagnóstico nas instituições

o psicodiagnóstico realizado nas instituições geralmente tem a mesma estrutura daqueles realizados em consultórios particulares. Caracteriza-se como um atendimento longo e demorado e verificam-se) grandes intervalos de tempo entre a realização do psicodiagniJstico e a chamada para início da psicoterapia infantiI9.]Além disso, esse

processo termina por oferecer poucos ganhos, tanto para. o cliente como para o psicólogo que realizará a psicoterapia. Algumas pesquisa-lo

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mostram que estes atendimentos redundam em uma compreensão quase nula dos seus resultados por parte do paciente, muitos das quais desistem no meio do processo.

Algumas dificuldades estão presentes na realização do psicodiagnóstico e pesam contra sua utilização indiscriminada. Uma delas diz respeito ao custo do processo psicodiagnóstico. Do ponto de vista institucional, sua realização é onerosa devido ao grande número de horas dos profissionais dispendido nessa atividade. O cliente, mesmo no caso de atendimentos institucionais gratuitos, arca com o custo correspondente à sua locomoção, além de eventuais perdas salariais do acompanhante, no caso de atendimento infantil. Por outro lado, a demora na finalização do processo redunda em longas listas de espera para atendimento. Conseqüentemente, deixa-se de acolher a demanda do cliente e da família no momento em que se mobilizam para pedir ajuda, ao mesmo tempo em que, com a espera, se atenuam as ansiedades subjacentes a essa mobilização, sem, contudo, oferecer tratamento adequado.

Apontamos aqui a incongruência entre os procedimentos institucionais e suas propostas de trabalho. Se se propõe tratar psicologicamente determinada parcela da população que apresenta distúrbios emocionais, a instituição deveria constituir-se, basicamente, em um local de acolhimento. O que a instituição necessitaria "saber" de imediato é se quem a procura precisa do tipo de tratamento psicológico e oferecê-Io prontamente. O que acontece, na verdade, é que, em vez de ser acolhido, o sujeito é submetido a um conjunto de exames, sem que a relação entre profissional e cliente se aprofunde. Não há um compartilhar da experiência suficientemente intenso que possa oferecer significativa diminuição do sofrimento psíquico ao cliente. No processo diagnóstico estão envolvidas três figuras: o cliente, a instituição e o psicólogo. As possibilidades de o cliente intervir no processo são praticamente nulas. As regras e a condução do processo estão a cargo da instituição e do psicólogo. As instituições, nem sempre dirigi das por pessoas da área da saúde mental, sofrem influências de ordem político

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administrativa que muitas vezes são contrárias ao bom andamento técnico.Aos psicólogos que realizam o trabalho de psicodiagnóstico cabe portanto propor

mudanças e lutar por elas. Nota-se que, mesmo nos últimos anos, em que surgiram propostas significativamente importantes de modificações na área do psicodiagnóstico, a rotina institucional não se modificou com a mesma intensidade. É, portanto, muito difícil pensar na mudança do atendimento diagnóstico, ignorando a dinâmica da instituição em que se desenvolve. O que surpreende é que, apesar das dificuldades citadas, o diagnóstico subsiste e é muito utilizado.

Por que tal fenômeno ocorre?

Os testes foram e continuam sendo importante elemento na constituíção da identidade profissional do psicólogo. É a única prática exclusiva da profissão, além da elaboração das conclusões psicodiagnósticas. Conseqüentemente, há, na formação acadêmica, uma ênfase no ensino do psicodiagnóstico que, por um lado, é necessário ao desenvolvimento do raciocínio clínico, mas por outro dificulta as críticas correspondentes, que permitiria a flexibilização do modelo para adequá-Io, na prática, às necessidades de cada paciente.

A adoção de técnicas e modelos prontos freqüentemente camufla inseguranças e dificuldades profissionais. Os psicólogos atuam clinicamente apoiados em suas percepções, mas não abrem mão de recursos supostamente objetivos; são estes que permanecem registrados nos prontuários.

É possível mudar?

Consideramos que a possibilidade de mudanças para a melhor adequação do emprego do psicodiagnóstico em instituições deve ser focalizada como parte de um conjunto que envolve o trabalho institucional.

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A ausência de definições claras quanto à concepção do trabalho institucional induz, freqüentemente, à "adaptação" de práticas próprias da clínica particular, sem o necessário cuidado com sua adequação.

Os cursos de graduação dão maior ênfase a outros aspectos da formação, descurando do preparo do aluno para a prática institucional. Assim, é compreensível que, na ausência de modelos e sem uma base teórica sólida que oriente a reflexão, o psicólogo procure adaptar o que conhece.

Cabe à formação acadêmica reformular-se para propiciar ao aluno um modelo de identificação que abarque a dimensão do tratamento psicológico, ao qual se subordina qualquer avaliação diagnóstica. Neste sentido, é preciso aprimorar o desenvolvimento do raciocínio diagnóstico, explorando-o enquanto processo interno do psicólogo que se apóia sobre recursos externos, que podem ou não estar associados ao emprego de técnicas específicas. É necessário fornecer, ainda, ampla gama de informações sobre o campo institucional, que se constitui em significativa parcela do mercado de trabalho, esclarecendo sobre a flexibilização das práticas que se faz necessária para melhor adequação e produtividade. Estas reformulações adquirem um caráter preventivo ao preparar o psicólogo para o questionamento, a análise e a intervenção eficaz nas instituições. Não será necessário, contudo, aguardar que o processo de discussão do trabalho do psicólogo em instituições percorra caminho tão longo para que se realizem mudanças. Paralelamente, pode-se discutir a concepção do trabalho a partir da realidade das instituições e da prática vi vida.

Um primeiro passo para efetuar as correções necessárias é a discussão interna da equipe profissional para estabelecer qual o objetivo da instituição. Definindo-se os limites de sua atuação e delineando-se o perfil da clientela que se propõe atender, é possível estabelecer claramente os parâmetros de um setor de triagem. Um processo de triagem que se apóie seguramente sobre indicadores bem definidos pode fornecer

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apenas aqueles elementos que serão úteis ao psicoterapeuta. Uma conseqüência subjacente será o desmantelamento da rede de procedimentos burocráticos (a fila de espera e sua administração), que acoberta as falhas da organização do serviço.

Uma vez traçado o perfil da instituição, podem ser estabelecidos critérios de exclusão de parte da demanda com relativa facilidade, atendendo-se à necessidade de determinar se o paciente se beneficia do atendimento sem, contudo, submeter-se ao alongado processo diagnóstico. Para esta tarefa, exige-se um profissional seguro, experiente, cuja formação envolva aspectos de desenvolvimeritopessoal que, somados à formação, o habilitem a confiar plenamente em suas percepções, podendo assim prescindir, até certo ponto, de outros instrumentos.

O profissional "seguro" e "experiente" não surge espontaneamente; pressupõe-se que é aquele que ao longo de sua prática profissional teve, ou ainda tem, a oportunidade de avaliá-Ia criticamente através de supervisão adequada. Isso remete, portanto, a outra questão, que é o respaldo fornecido por processos de supervisão institucional e clínica. Raramente nos serviços de psicologia que são desvinculados das clínicasescola este suporte é fornecido aos profissionais. Encontramos em Moratoll a justificativa para que tal procedimento possa ser considerado como imprescindível. Referindo-se à posição de Bowen, a autora afirma que "a implicação (...) é que o supervisor propicie condições para que o supervisionado possa explorar sua própria competência e poder, desenvolvendo assim seu próprio estilo".

O setor de triagem, assim organizado, dará conta designificativa parcela da demanda. Uma parte da clientela, constituída por aquelas crianças que apresentam quadros mais complexos, poderá ser avaliada mais acuradamente para ela

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,boração de diagnósticos diferenciais. Para estes casos, será importante contar com o concurso dos vários profissionais que compõem as equipes multidisciplinares. Recomendável, ainda, que haja a perspectiva de oferecer ao paciente e/ou a sua família um "ganho" resultante dessa experiência~Neste sentido, indica-se o psicodiagnóstico que valoriza os aspectos compreensivos e de intervenção, o qual permite ao cliente levar consigo ao menos uma parcela de compreensão a respeito de suas dificuldades, se for encaminhado a outro local de tratamento, ou ampliá-Ia, se permanecer na própria instituição.

Neste contexto, caberá ao psicólogo que realizará a psicoterapia definir, em processo, como se realiza sua avaliação, quais os instrumentos ou técnicas que utiliza, pois já não será uma etapa diagnóstica isolada, mas alguma coisa que se insere e se articula no corpo da psicoterapia.

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O PROCESSO DE ESCOLHA DIAGNÓSTICA EM UMA EQUIPE MULTIDISCIPLINAR:ANÁLISE DAS NEGOCIAÇÕES

Marcos T. Mercadante*

A atividade de diagnosticar é sem dúvida uma prática fascinante. Implica o uso de capacidades cognitivas complexas, do raciocínio analítico ao indutivo, do dedutivo à síntese etc. Os médicos, desde os tempos da medicina grega e chinesa, procuram desenvolver ao máximo esta habilidade, buscando delimitar adequadamente diferentes entidades nosográficas e subseqüentes condutas terapêuticas. Os mais recentes precursores do médico "moderno", os barbeiros-cirurgiões da Idade Média, exerciam a arte de diagnosticar e curar equilibrando-se entre um esboço de ciência empírica e um curandeirismo religioso, que respondia a uma demanda social daquela época.

Podemos passar deste contexto à história da psiquiatria , da infância, que tem sua primeira cátedra na Paris dos anos , nao tem sua identidade plenamente desenvolvida. Fruto da coalizão da pedagogia, psicologia e neurologia, discute-se sua aproximação com a pediatria ou com a psiquiatria do

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adulto e mais atualmente sua possível dissolução na neurociência.

Pretendo, .neste texto, analisar a prática de diagnosticar em psiquiatria da infância a partir desta ótica: uma especialidade em formação, que, por resultar da conjunção de diferentes ciências, mostra-se como um produto híbrido, a ser identificado pelo mercado.

Como no início da medicina moderna, quando foi necessária uma intensa atividade de adaptações à sociedade e ao mercado de consumo, a psiquiatria da infância, através dos diagnósticos das psicoses da infância e dos distúrbios do desenvolvimento, viu-se obrigada a definir seu trajeto dentro das instituições acadêmicas. Estas traziam consigo uma tradição de origem medieval: as "disputas", torneios intelectuais, em que mestres e discípulos eram questionados publicamente e deviam defender seus pontos de vista 1. Estas ati vidades transformaram-se nas discussões de caso das escolas de medicina dos nossos dias.

Focalizarei neste trabalho o processo de escolha do diagnóstico de uma criança gravemente afetada em seu desenvolvimento psíquico, dentro de uma instituição de ensino médico, visando identificar as atividades concornitantes às "discussões de caso".

É sabida a imprecisão dos diagnósticos das psicoses da infância, em seu sentido mais amplo: há uma sobreposição entre as várias nosografias utilizadas nos nossos dias2, Para aqueles que têm mais experiência na área fica evidente que pode-se atribuir à mesma

criança diagnósticos tão distintos como. criança atípica de Rank ou pré-psicose, distúrbio de

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comportamento ou psicose simbiótica de Mahler etc.3 Inúmeros outros exemplos poderiam ser ainda mencionados.

O diagnóstico "escolhido" resulta, portanto, de um conjunto de discussões, e é nesta perspectiva de discussões/negociações que procurei esclarecer o que é disputado no diagnóstico de uma criança com distúrbio de desenvolvimento, utilizando como referencial a Teoria da Ordem Negociada4. Esta vertente da microssociologia, desdobramento do Interacionismo Simbólico, propicia o estudo das interações não apenas nos seus aspectos racionais, mas considerando que os indivíduos negociam rotinas, sobre bases afetivas, visando estabelecer um cotidiano que mantenha as identidades nele envolvidas5. Assim, a Teoria da Ordem Negociada, após desenvolver vários trabalhos em instituições de saúde6, organizou um modelo teórico, constatando que os conflitos entre os diferentes "atores" de uma instituiçã07 não são resolvidos a partir de recursos puramente cognitivos, como por exemplo a leitura do Regimento Interno de um hospital para resolver problemas surgidos na recepção do cliente. De fato, no cotidiano agimos e nos comportamos seguindo rotinas. Quando estas são rompidas, cria-se uma disputa pelo controle da interação, seguida pelo reestabelecimento de uma nova rotina. Ninguém pensa, na vida cotidiana, como ou por que cumprimentamos as pessoas desta ou daquela

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Uma forma, até porque, se o fizéssemos, ficaríamos em um estado paralisante e cada gesto seria precedido por reflexões infinitas.

Assim, em nosso cotidiano, não é necessário saber por que agimos de determinada maneira. É suficiente que as comunicações sejam dirigidas para parceiros de uma coalizão específica. A repetição e a ritualização destas comunicações dentro de um grupo, mantendo um tom emocional comum, garantido por uma base afetiva, criam o sentimento de coalizão. A reflexão, a teorização, só serão acionadas quando, nessa rotina, alguém disparar alguma comunicação indevidamente, desrespeitando as regras tácitas.

A interação pode, então, ser analisada como market-placesS. Os elementos fundamentais que esta análise focaliza são os recursos emocionais e de comunicação de cada pessoa e de cada grupo. Em síntese, a ordem social, e portanto as instituições, profissões, e os diagnósticos, são o r~sultado de diferentes microcomportamentos interagindo no tempo e no espaço. Assim, as pessoas reconhecem uma outra como médico, desde que ela tenha um comportamento correspondente a esta função, não sendo exigida a apresentação do seu diploma para iniciar o relacionamento. As comprovações legais, ou seja os mecanismos essencialmente cognitivos, só serão acionadas se houver um desafio aos padrões habituais da interação. Deste modo, os acordos informais que regem as interações esclarecem como as identidades e a ordem social são construídas, a

partir da negociação de rotinas9.

Quando os membros de um serviço de atendimento à saúde sentam-se à mesa para discutir o caso de uma criança gravemente afetada em seu psiquismo, eles procuram identificar naquela criança qual a condição mórbida responsável pelo insucesso do desenvolvimento. Porém, quem tem certa intimidade com as categorias nosográficas das psicoses da infância

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(lato sensu) sabe que parte delas são delineadas a partir de diferentes referenciais teóricos, nenhum dos quais completo.

Foi no século XX que a psiquiatria infantil e, em especial, as psicoses da infância ganharam destaque, quando Kraepelin e Bleuler admitiram que alguns de seus pacientes já apresentavam sinais de doença mental na infância. Seguem-se uma série de descrições de quadros (Demência de Heller, Demência de De Sanctis) até a publicação do Autismo Infantil por Kanner, em 194310. Neste período, definiram-se duas grandes vertentes: uma descritivo-fenomenológica e outra psicodinâmica, predominantemente psicanalítica. Basicamente, estas duas vertentes construíram uma infinidade de definições e classificações.

O autismo hoje pode ser compreendido a partir da leitura psicanalítica de Tustin (1978), da proposta de Rutter (1985), centrado em alterações cognitivas e de linguagem, ou, como preferem Ritvo e Ornitz (1976), considerado resultante de distúrbios perceptivos. Entender o autismo a partir de uma concepção psicodinâmica, ou de um modelo biológico, implica descrevê-Io de modo diferente e conseqüentemente incluir crianças diferentes nesse diagnóstico. Mais ainda, significa adotar condutas terapêuticas diversas, correlacionadas às áreas disfuncionais enfocadas pelo modelo teórico.

MahlerII descreve os estádios autísticos e simbióticos do desenvolvimento e propõe a psicose simbiótica como um quadro ligado à dificuldade de individuação da criança na relação com a mãe. Algumas crianças diagnosticadas como desarmôoicas correspondem à descrição de MahlerI2. Lebovici13, aponta a superposição da desarmonia com a pré-psicoseI4, sendo a

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1 diferença encontrada no foco de maior atenção: a questão da evolução estruturante da neurose infantil ou nas discrepâncias do desenvolvimento.

Mesmo entre as classificações que procuram se ater a uma dada posição teórica, há superposições que geram confusões; por exemplo, a síndrome de Heller confunde-se com

a psicose desintegrativa, que pode ser entendida como um quadro demencial e não psicótico, apesar de as duas classificações decorrerem de uma posição...

A esquizofrenia infantil está ligada a propostas extremamente abrangentes como pseudodeficitário, pseudoneurótico e pseudopsicopáticol5, até conceitos indistintos como

os de Creakl6, e as propostas de Kolvinl7 e Rutter18 como quadro fenomenologicamente indistinto do proposto para os adultos.

Além das diferentes definições das psicoses da infância, a dificuldade de estudar e delimitar quadros psicopatológicos em organismos em desenvolvimento e, portanto, em constante transformação dificulta o esclarecimento de situações complexas, como as existentes quando se cogita o diagnóstico de esquizofrenia.

Uma série de trabalhos procurou separar o autismo da esquizofrenia, enfocando, por exemplo, diferenças epidemiológicas nos antecedentes familiaresl9, porém alguns autores des

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crevem crianças autistas que quando adultas passam a apresentar quadro compatível com esquizofrenia2o, o que os leva a defender a proposta de um continuum entre os dois quadros.

A esta diversidade de propostas, aqui apenas exemplificada, somam-se as posições e interpretações pessoais dos profissionais mais graduados que exercem influência no seu meio de atuação. Assim o diagnóstico do autismo infantil, como mostra Gillberg21, é fortemente influenciado pelas preferências e pela experiência do profissional que está realizando o diagnóstico. Esta posição pode ser estendida a todos os diagnósticos de psicoses da infância.

Apesar da inexistência de marcadores biológicos e agentes etiológicos identificados, praticamos os diagnósticos em crianças, muitas vezes muito pequenas e com ausência de fala, apenas pela interpretação dos sinais e sintomas.

Esta interpretação é atravessada pela subjetividade do profissional que realiza o diagnóstico, assim como pela dos pais da criança diagnosticada. Por exemplo, o autismo, segundo o DSM-IIIR22, exige o aparecimento dos sintomas antes dos 30 meses de idade, o que atrela o diagnóstico à memória dos pais23.

Se esta diversidade ocorre em relação ao autismo, um dos quadros mais contemplados pela literatura psicopatológica internacional, podemos considerar o que ocorre com quadros menos estudados, ou abordados por um modelo teórico (como a psicose simbiótica).

Esta imprecisão do conhecimento psiquiátrico necessariamente acompanha os diagnósticos, pois os referenciais teóricos

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não fornecem indicações suficientes para o profissional. Resulta uma intensa atividade do processo de definição diagnóstica. As negociações ali presentes ficam mais evidentes do que no diagnóstico de outros quadros psicopatológicos. A própria variedade das

classificações das psicoses da infância facilita a emergência das negociações.

Acompanhando inúmeras reuniões, notava estas negociações nas "Discussões de Caso", entre membros da equipe das instituições em que trabalhei. Os profissionais, pelo convívio intenso, proximidade, divisão de funções, mostravam intimidade entre si e utilizavam a reunião não apenas para discussões teóricas, mas também como um lugar de relações sociais, determinando um ritmo e forma característicos. Muitas vezes, ao final das discussões, percebia que, embora não fosse claro o que realmente o paciente apresentava, elaborávamos uma conclusão. Passei a me perguntar por que, para que e para quem diagnosticamos. Ou ainda, como ocorrem estas negociações que permeiam as discussões? O que na verdade énegociado? Qual sua influência na elaboração final do diagnóstico?

Analisando as reuniões24 pude verificar que os participantes, através de questionamentos, definições, comparações etc., construíam um raciocínio que apontava para uma escolha diagnóstica. Esta escolha, porém, não resultava apenas daquele momento, mas era uma expressão, possível, da somatória de múltiplos fatores institucionais, ou seja, para "classificar" uma proposta diagnóstica, os participantes utilizavam uma série de estratégias, negociando o resultado final.

Os debatedores estabeleciam "alianças" com participantes que tinham posições semelhantes, somando esforços para o convencimento dos "rivais", apoiavam-se em "cacifes" que lhes eram atribuídos pela posição hierárquica no grupo ou pela

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reputação que o meio profissional lhes atribuía. Nos diálogos, procuravam demonstrar que detinham o conhecimento e que, portanto, ao opositor nada restava, exceto submeter-se (conceito de Caris ma e Desviante25). Por vezes beneficiavam-se de "alicerces informais", como, por exemplo, utilizar o comentário de que o paciente é "muito louco" para embasar uma hipótese diagnóstica de psicose infantil em detrimento de uma proposta c1assificatória de deficiência mentaF6.

Estas estratégias evidenciam que, além da conclusão diagnóstica, outros objetos são negociados durante a discussão, em uma instituição; as posições hierárquicas e as relações afetivas são atualizadas através dos diálogos, influindo intensamente no produto final, o diagnóstico. Assim, quando se reúne, o grupo realiza disputas por posições como a "de quem sabe mais", "quem respeita quem" ou "quem gosta de quem". Não raro uma "definição" diagnóstica é praticamente imposta pela palavra do participante mais graduado hierarquicamente na instituição.

Pelo predomínio de diferentes definições, muitas vezes com sobreposições, a psicose da infância facilmente leva os grupos a dividir-se em posições teóricas distintas, como posturas psicodinâmicas ou biológicas. Dependendo das características dos serviços de saúde, uma posição predomina sobre a outra, delimitando inclusive a identidade desse serviço, que será reconhecida pelo restante da comunidade científica. Nas conversas informais, em alguns serviços, podemos, por exemplo, perceber certo predomínio das afirmações biológicas, como nos casos de psicose desintegrativa com leucodistrofia,

quando a organogênese toma-se suficiente para explicar e justificar todas as alterações de comportamento.

Assim, durante as reuniões que analisei27, o grupo, além de escolher uma categoria nosográfica para aquela criança,

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também se atualizava, reformulando sua estrutura, relações sociais e de afeto, "cotação" de determinada posição teórica, e a identidade do próprio grupo. Durante as falas, os participantes demonstravam o quanto simpatizavam com determinados autores em detrimento de outros, e estas preferências necessariamente tinham relação com o tipo de público com que os profissionais trabalhavam. Esta adaptação entre locutor e ouvinte participa indiretamente, porém de forma marcante, das discussões de casos e suas negociações. Assim, os profissionais discutem como transmitir determinada compreensão diagnóstica para pais intelectualmente limitados, como expor uma perspectiva psicanalítica para pais demasiadamente concretos ou como expor uma conclusão essencialmente biológica para pais com uma formação humanística acentuada.

Diante desta rede de incertezas, para que e para quemdiagnosticamos? Para definirmos uma conduta diagnóstica, para manutenção da ciência Psiquiatria da Infância que se estrutura a partir desta prática, e para a construção da identidade do psiquiatra infantil.

Ninguém questiona nos dias de hoje a capacidade de os cirurgiões operarem uma apendicite em um abdômen e nenhuma outra categoria social consegue competir com o médico nesta função. Por outro lado, a possibilidade de o psiquiatra infantil resolver os distúrbios do desenvolvimento ou as psicoses da

infância é extremamente pequena e difícil de ser verificada. , Muitas vezes limita-se à capacidade de realizar um estudo: 111 mais organizado do diagnóstico que frequentemente já vem estabelecido pelos pais, embora de maneira leiga.Não raro, os pais procuram outras explicações para o fenômeno que observam28, deixando o médico com seu discurso esvaziado. Assim, somos obrigados a considerar que o profissional

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sional diagnostica para poder, no contato com os pais, reafirmar sua função social e sua identidade profissional.

Os que trabalham com psicóticos notam a profunda aflição dos pais diante da

condição de seus filhos e da falta de recursos para assisti-Ios. Desesperados e

desesperançados, eles procuram respostas e soluções. A prática profissional freqüen-

temente os põe em um cenário inintelígivel; os psicanalistas os inserem no quadro das

alterações de seu filho (quando' não os elegem como peças fundamentais), os organicistas

os ino centam e excluem do processo quase que marginalizando-os, os

comportamentalistas interferem em sua vida, procurando treiná-los e aos filhos. Os

seguidores dos modelos de diagnóstico americanos afirmam para os pais que a criança é

autista, profissionais de formação francesa propõem que a criança é desarmônica, e outros

ainda dizem que é deficiente mental, transformando problemas conceituais em objeto

concretizado de disputa, e introduzindo os pais em negociações impregnadas pelos afetos,

níveis hierárquicos, "cacifes" etc., através dosquais construímos nossa função social.

Finalizando, proponho que, nas discussões de caso, passemos a considerar a

perspectiva de estar lidando com produtos de consumo instituístes de identidades, para que

possamos fazer prevalecer, em nossos diagnósticos, o bem-estar dos clientes.

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11

bibliografia comentada psicodiagnostico

Cláudia Beatriz S.Bruscagin* Delba Teixeira Rodrigues Barros**

AMATUZZI, M.; ANCONA-LOPEZ, S.; VILARINHO, M. A. S. & YEHIA, G. Y. Triagem e psicodiagnóstico infantil:processo de intervenção. XXII Reunião da Sociedade dePsicologia de Ribeirão Preto, 1992.Curso ministrado na XXII reunião de Ribeirão Preto, enfocando diferentes processos de intervenção psicológica. ANCONA-LOPEZ, M. Contexto geral do diagnóstico psicológico. In: TRINCA, W. (org.) Diagnóstico Psicológico.São Paulo: EPU, 1985.Aborda características gerais do psicodiagnóstico, teoria e prática, razões de uso, diferentes modelos de atuação.ANCONA-LOPEZ, M. Atendimento a pais no processo psicodiagnóstico infantil: uma abordagem fenomenológica. Tese de Doutorado, Psicologia Clínica, PUC-SP, 1987. Discute características do psicodiagnóstico numa abordagem fenomenológica-existencial. Enfoca o atendimento em grupo de pais que levam os filhos para psicodiagnóstico.

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APPELBAUM, S. & KATZ, J. Self-Help Diagnosis: Self Administered Semi-Projective Device. Journal of Perso nality Assessment, 39, 4, 1975, pp. 349-359.Apresenta um "pacote" de testes, que o cliente responde em casa e devolve pelo correio, com o objetivo de agilizar o processo diagnóstico. As respostas mostram que os clientes que preenchem os formulários seriamente aprendem sobre si e assim se beneficiam através desta tarefa.

AUGRAS, M. O ser da compreensão: Fenomenologia dasituação de psicodiagnóstico. Petrópolis: Vozes, 1978.

Considera que, .no processo diagnóstico de conhecimento, reconhecimento e clarificação, psicólogo e cliente são participantes e co-autores. Propõe uma reformulação do enfoque tradicional do psicodiagnóstico através da abordagem fenomenoló g ico-existencial.

BOY, A. Psychodiagnosis: A Person-Cent~red Perspective. Person-Centered Review. 4, 2, 1989, pp. 132-151.

Critica o uso do psicodiagnóstico, seu propósito, instrumentos, metodologia; considera que é influenciado pela cultura, educação, valores e necessidades psicológicas.

BRODSKY, S. L. Shared Results and Open Files with theClient. Professional Psychology, 3, 4, 1972, pp. 362-364. Para que o cliente se torne um parceiro genuíno e

participante no psicodiagnóstico é importante que testes, resultados e relatórios sejam compartilhados com ele.

BROWN, W. Current Psychological Assessment Practices. Professional Psychology, novo 1976, pp. 475-484.

Pesquisa nacional sobre o uso dos testes psicológicos (objetivos, subjetivos, projetivos) em clínicas de saúde mental.

CAIN, D. J. The Client Role in Diagnosis: Three Approaches.Person-Centered Review, 4, 2, 1989, pp. 171-182.

Parte da premissa de que o que o cliente aprende sobre si mesmo é mais importante do que o que os diagnosticadores apreendem no processo. Descreve os modelos mecânico, pres

Pg 217

critivo e colaborativo de psicodiagnóstico. Considera o último compatível com a teoria e prática centrada na pessoa.

CHOROT, P. Perspectivas Actuales y Futuras de Ia Evaluacióo Psicologica. Revista de Psicologia Geral y Aplicada, 39,

2, 1984.Constatando o desenvolvimento do campo da avaliação psicológica nos últimos anos, a autora apresenta os modelos tradicionais de avaliação e propõe uma avaliação funcional de conduta com base na psicologia experimental e psicofisiologia e também da psicologia da aprendizagem.

COCHRANE, C. T. Effects of Diagnostic Information 00 Empathic Understanding by the Therapist in a Psychotherapy Analogue. Journal of Cons. and Clinical Psycho logy, 30, 30, 1972, pp. 359-366.Pesquisa e analisa a influência da informação diagnóstica no que diz respeito ao entendimento empático do cliente pelo terapeuta no contexto psicoterápico.

COHEN, M. Need For Clearer Thinking About Diagnostic Criteria. American Journal of Psychiatry, 147, 2, 1990, pp. 261-262.Discute a necessidade de uma linguagem mais clara e precisa nos artigos psicológicos, para não haver interpretações diferentes de um mesmo termoCORDIOLI, A. V. Avaliação do paciente para psicoterapia. In: CORDIOLI, A.V. (org.). Psicoterapias: abordagens atuais. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.

Discute os conceitos atuais subjacentes aos vários modelos teóricos e suas aplicações a vários quadropsicopatológicos.

CRADDICK, R. Sharing Oneself in the Assessment Procedure. Professional Psychology, 6, 3, 1975, pp.279282.Para que a relação compartilhada ocorra no psicodiagnóstico,faz-se necessário o desenvolvimento da confiança mútua. O cliente é considerado como pessoa capaz, o que diz é valorizado no desenvolvimento do trabalho. Comenta a relação de poder

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entre cliente e psicólogo quando o processo não é compartilhado.CUNHA, J. et aI. Psicodiagnóstico. Porto Alegre: Artes Médicas,1986.Propõe atender às necessidades do psicólogo que pratica o psicodiagnóstico de modo tradicional, oferecendo conhecimentos sistematizados para orientar esta prática.CUPERTINO, C. Teoria e prática do psicodiagnóstico fenomenológico: uma análise dos desencontros. Dissertação de Mestrado, Psicologia Clínica, PUC-SP, 1990.Analisa um atendimento em psicodiagnóstico infantil que não alcançou o resultado esperado. Analisa o desencontro entre cliente e psicólogo a partir da teoria da ordem negociada.

DANA, R. H. & LEECH, S. Existential Assessment. Journalof Personality Assessment. 38, 1974, pp. 428-435. Apresenta modelo de diagnóstico humanista-existencial, enfo-

cando o encontro e encorajando a responsabilidade do cliente.

DE CHENNE, T. Diagnosis as Therapy for the BorderlinePersonality. Psychotherapy, 28, 2, 1991.

O diagnóstico é examinado como uma possível comunicação terapêutica, interpretação oferecida pelo terapeuta ao cliente, como uma possível intervenção.

DOR, J. Estrutura e perversões. Porto Alegre: Artes Médicas,1991.O autor aborda a noção de avaliação diagnóstica na psicanálise, estuda a diferenciação entre sintoma e estrutura e desenvolve o tema da perversão.

EL-lD, K. Psicodiagnóstico de crianças em grupo: análise de uma experiência. Dissertação de Mestrado, Psicologia Clínica, PUC-SP, 1985.Relata experiência de psicodiagnóstico em grupo numa clínica de Saúde Pública de São Paulo. Propõe técnicas de avaliação grupal.

Pg 219

EPSTEIN, S. The Relative Value of Theoretical and Empirical Approaches for Establishing a Psychological Diagnostic System. Journal of Personality Disorders, 1, 1, 1987, pp. 100-109.Discute a importância de se ter uma abordagem teórica ou uma abordagem empírica nas pesquisas psicológicas. Argumenta que esses processos não devem ser vistos como antagônicos no diagnóstico, mas sim como abordagens facilitadoras do empreendimento científico.

FAIVICHENCO, S. O laudo diagnóstico no trabalho do psicólogo. Dissertação de Mestrado, Psicologia Clínica, PUC RJ, 1977.Apresenta a importância de o laudo diagnóstico traçar o registro coerente da interação do paciente com seu meio. Pode ser a base do prognóstico e da discussão do caso com o cliente ou com seus familiares.

FEE, A. F. et aI. Testing and Counseling Psychologists: Current Practices and Implications for Training.

Journal of Per

sonality Assessment, 46, 2, 1982, pp. 116-118.Pesquisa de opinião sobre a utilização de testes psicológicos por psicólogos que trabalham em aconselhamento.

FIGUEIREDO, M. C. & SCHVINGER, A. A. Estratégias de atendimento psicológico-institucional a uma população carente. Arquivos Brasileiros de Psicologia. Rio de Janeiro, jul./set.l981, pp. 46-57.As autoras apresentam um breve resumo de sua prática como supervisoras junto a uma clínica-escola de psicologia no Rio de Janeiro. Apontam particularidades no atendimento à população carente e sua forma de lidar com ela, tendo por base teórica a fenomenologia-existencial.

FISCHER, C. T. The Testee as Co-Evaluator. Journal of Counseling Psychology, 17, 1970, pp. 70-76.Com base numa visão existencial, propõe uma avaliação psicológica, na qual cliente e psicólogo partilham impressões, resultados dos testes e avaliação escrita.

Pg 220

FISCHER, C. T. Paradigm Changes wich allow Sharing ofResults. Professional Psychology, 3, 4, 1972, pp. 364-369.

Discute a possibilidade de partilhar com o cliente resultados do psicodiagnóstico e efeitos a partir de diferentes paradigmas.

FISCHER, C. T. Individualized Assessment and Phenomenological Psychology. Journal of Personality Assessment, 43, 2, 1979, pp. 115-122.

Revisa a avaliação individualizada referida como colaborativa, contextual e interventiva, na qual o cliente é o participante informado desde o início.

FISCHER, C. T. Individualizing Psychological Assessment.Monterey, CA: Brookscole, 1980.

Apresenta de modo descritivo e exemplificado uma abordagem psicodiagnóstica que pretende assistir os profissionais a tomar decisões no atendimento envolvendo seus clientes como coassessores.

FISCHER, C. T. A Life-Centered Approach to Psychodiagnostics: Attending a Lifeworld, Ambiguity and Possibility. Person-Centered Review, 4,2, may 1989, pp. 163-170.

Enfatiza o uso do diagnóstico como instrumento para conhecer mais profundamente a pessoa, reconhecê-la como agente de sua vida e seu mundo, possibilitando a exploração de novas possibilidades positivas.

FRIEDENTHAL, H. Interrogatório, test de límites y sefíalamientos en el test de relaciones objetales. In: VERTHEL YI, R. F. de (comp.). El test de relaciones objetales de H. Phillipson. Buenos Aires: Nueva Vision, 1976.

Utilizando as técnicas projetivas de modo sensível e criativo para um trabalho de exploração psicológica compartilhado com o paciente, a autora mostra as dificuldades de se manter uma distinção nítida entre a prática psicodiagnóstica e psicoterapêutica.

Pg 221

GOODMAN. J. Diagnosis and Intervention in Young Children: The Continuing Gap. Journal of Psychology, 121, 1, 1987, pp. 21-35.

Encara o diagnóstico como um problema a ser resolvido. A partir da formulação do problema, levanta hipóteses de mudanças possíveis e trabalha interventivamente.

GORI, R.; MILLER, J. A.; W ARTEL, R. La querelle desdiagnostico Paris: Navariu Editeur, 1986 (Col. Cliniques). Artigos discutem como e por que os

psiquiatras diagnosticam, considerando correntes psicogenéticas e humanistas, assim como aproximações biológicas e estatísticas.

GOUGH, H. Some Reflections on the Meaning of Psychodiagnosis. The American Psychologist, 26, 1971, pp. 160 167.Discute razões e propósitos do psicodiagnóstico, aponta áreas que precisam ser melhor desenvolvidas e ensinadas. Vê o psicodiagnóstico como uma tradição vital do domínio psicológico que precisa ser mantida e transmitida.

HA YWOOD, H. & TZURIEL, D. lnteractive assessment. NovaYork: Springer, 1992.

Considerando que mudanças em conceitos teóricos de natureza, desenvolvimento e maleabilidade da natureza humana modificam os objetivos e métodos do diagnóstico, apresenta bases teóricas, pesquisas, estudos de caso e aplicações da avaliação interativa na área psicoeducacional.

HOLLENDER, M. H. Selection of Patients for Definitive Forms of Psychotherapy. Archives of General Psychiatry,

vol. tO, 1964, pp. 361-369.Discute os propósitos e a natureza do processo de seleção de pacientes para psicoterapia, enfatizando mais o paciente e suas necessidades do que a natureza dos problemas.

JUBELINI, S. Psicodiagnóstico grupal. Gradiva: Foro de Debates Psicodinâmicos, 9, 11, 1981.

Apresenta um modo de trabalhar no psicodiagnóstico em grupo. 111

Pg 222

KEEN, E. Introdução à psicologia fenomenológica. Rio deJaneiro: Interamericana, 1979.

Apresentando a psicologia fenomenológica, o autor argumenta que o procedimento diagnóstico é aquele que permite que o indivíduo perceba mais claramente como se vê e ao mundo. O tratamento se daria onde a pessoa seria capaz de descobrir maneiras alternativas de ver as coisas, interpretar o mundo e ser-no-mundo.

KLEIN, R. G. Parent-Child Agreement in Clinical Assessment of Anxiety and Other Psychopathology: a Review. Journal of Anxiety Disorders, 5, 2, 1991, pp. 187-198.Sendo comum entrevistar pais e criança no processo psicodiagnóstico, a autora pesquisa a concordância em suas respostas sobre os sintomas apresentados. Conclui que a concordância ocorre em casos específicos: encomprese, depressão, casos psiquiátricos.

KORCHIN, S. J. & SHULBERG, D. The Future of Clinical Assessment. American Psychologist, 36, 10, 1981, pp. 1147-1158.

Apesar de o uso dos testes ter diminuído de importância, a avaliação clínica se mantém como área importante no campo da Psicologia. Novas concepções e o desenvolvimento de novos métodos têm mostrado a vitalidade da avaliação clínica.

LAMBERT, L. & WERTHEIMER, M. Is Diagnostic Ability related to Relevant Training and Experience? Professional Psychology, Research and Practice, 19, 1, 1988, pp. 50-52.

Pesquisa confirma que os diagnósticos psicopatológicos mostram-se mais acurados quando elaborados por profissionais experientes e bem-treinados.

LARRABURE, S. A. L. Grupos de espera em instituição. In: MACEDO, R. (org.). Psicologia e instituição: novas formas de atendimento. São Paulo: Cortez, 1984.Apresenta forma alternativa de atendimento para pais que. esperam o atendimento em psicodiagnóstico de seus filhos em

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instituição. Trabalha as expectativas dos clientes, o vínculo com a instituição e sua participação ativa no atendimento.

LEE, B. Multidisciplinary Evaluation of Preschool Children and it's Demography in a Military Psychiatric Clinic. Annual Progres in Child Psychiatry and Child Development, 1988, pp. 441-450.

Descreve atendimento multidisciplinar (psiquiatra, pediatra,fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional e assistente social), a crianças pré-escolares, no qual 5 a 6 crianças são avaliadas em três sessões semanais.

LO SEMINERIO, F. Diagnóstico psicológico: técnicas do exame psicológico e fundamentos epistemológicos. Rio de Janeiro: Atlas, 1977.

Discute o processo e ato de diagnosticar do ponto de vista de sua fundamentação epistemológica.

MANNONI, M. A primeira entrevista em psicanálise. Rio deJaneiro: Campos, 1988.

Apoiando-se na consulta inicial de casos clínicos diferenciados

nas situações de desordens escolares, dificuldades caracteriais, reações somáticas e psicose, busca a apreensão de sentidos através da reflexão sobre a especificidade da psicanálise, bem como do psicanalista. Problematiza ainda a questão edípica, as relações inconscientes pais-filhos, discute os testes e a escola.

MARQUES, Y. M. Utilização dos elementos do psicodiagnóstico na psicoterapia infantil em instituições de atendimento psicológico. Dissertação de Mestrado, Psicologia Clínica, PUC-SP, 1989.

Analisa o uso dos resultados do psicodiagnóstico infantil por psicólogos que realizam psicoterapia em instituições. Aponta modificações do processo diagnóstico.

MENAHEM, S. The Child with Psychosomatic Symptoms: The Use of a Therapeutic Prolonged Evaluation. Journal

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of Developmental and Behavioral Pediatrics, 9, 5, 1988, pp. 310-312.

Pediatra propõe avaliação prolongada de crianças com sintomas psicossomáticos para sensibilizar pais quanto aos aspectos emocionais envolvidos na queixa. Verifica diminuição de sintomas e maior facilidade de encaminhamento para psicoterapia quando os pais estão mais sensibilizados.

MERCADANTE, M. Negociando o diagnóstico clínico. Dissertação de Mestrado, Psicologia Clínica, PUC-SP, 1993.

Analisa, a partir da teoria da ordem negociada, interações em reuniões clínicas para discussão de diagnósticos, realizados em instituição de saúde, por uma equipe multidisciplinar.

MIROWSKY, J. & ROSS, C. Psychiatric Diagnosis as Reified Mesurement. Journal of Health and Social Behavior, 30, 1, 1989, pp. 11-25.

Apresenta uma análise crítica da fraqueza inerente do diagnóstico psiquiátrico como forma de medida, principalmente como meio de representar os problemas psicológicos, entendidos por alguns psiquiatras como entidades que tomam o corpo ou a alma de suas vítimas.

MUNHÓZ, M. L. Atendimento a crianças em psicodiagnóstico . infantil grupal numa abordagem fenomenológico-existencial. Dissertação de Mestrado, Psicologia Clínica, PUC-SP,1990.Busca compreender a participação das crianças no psicodiagnóstico infantil grupal, analisando seus comportamentos perante as observações do psicólogo.OCAMPO, M. L.; GARCIA ARZENO, M. E. et aI. O processo psicodiagnóstico e as técnicas projetivas. Trad. Alvaro CabraI. São Paulo: Martins Fontes, 1981.Apresenta o psicodiagnóstico clássico, enfatizando sua evolução na aquisição de uma identidade própria.ORTIGUES, M. C. & ORTIGUES, E. Como se decide umapsicoterapia de criança. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

Pg 225

Apresenta uma reflexão sobre o trabalho psicanalítico com crianças, as condições para sua efetivação e os encaminhamentos que levam à decisão de empreender ou não um tratamento.

PEREIRA, M. S. Diagnóstico psicológico em clínica escola: um questionamento profissional. Dissertação de Mestrado, Metodista, São Bernardo do Campo, 1983.

Apresenta as queixas mais freqüentes apresentadas na clínica-escola da Faculdade Metodista e as prováveis causas. Reflete sobre o alcance social do trabalho do psicólogo.

RÉv AULT D' ALLONES. La démarche clinique en scienceshumaines. Paris: Bordas, 1989.

Discute aproximações e diferenças entre as estratégias clínicas e estratégias de pesquisa, a partir da análise da posição do clínico. Discute diferentes procedimentos de pesquisa utilizando estratégias clínicas.SAFRA, G. Procedimentos clínicos utilizados no psicodiagnóstico. In: TRINCA, W. Diagnóstico psicológico: prática clínica. São Paulo: EPU, 1984.

O autor analisa o papel dos testes psicológicos dentro da perspectiva do diagnóstico compreensivo, apresentando de forma resumida e concisa alguns dos testes utilizados mais

freqüentemente.

SANTIAGO, M. D. E. Entrevistas clínicas. In: TRINCA, W.(org.). Diagnóstico psicológico: prática clínica. São Paulo:EPU, 1984.

aConsiderando basicamente o psicodiagnóstico infantil, a autora analisa a entrevista inicial e as entrevistas devolutivas, apontando seus aspectos fundamentais, sem perder a dimensão da relação entre psicólogo e cliente.SANTIAGO, M. & JUBELINI, S. Uma modalidade alternativa de atendimento psicodiagnóstico em instituição. In: MACEDO, R. (org.). Psicologia e instituição: novas formas de atendimento. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1986.

Pg 226

o atendimento psicodiagnóstico em grupo possibilita uma compreensão do problema apresentado pela criança da dinâmica familiar na ocorrência e resolução do problema.SANTOS, M. A. O psicodiagnóstico infantil em grupo: Uma experiência em Instituição. Arquivos Brasileiros de Psi cologia, 39, 2, 1987, pp. 3-17.Discute etapas, procedimentos e recursos diagnósticos presentes no trabalho em grupo desenvolvido em uma instituição de saúde mental.SEEMAN, J. A Reaction to Psychodiagnosis: A Person-Centered Perspective. Person-Centered Review, 4, 2, 1989, pp. 152-156.

Critica o psicodiagnóstico do ponto de vista da abordagem centrada no cliente. Considera-o relevante apenas para apontar problemas orgânicos ou neurológicos.

SHLIEN, J. Boy's Person-Centered Perspective on Psychodiagnosis: A Response. Person-Centered Review, 4, 2, 1989, pp. 157-162.

Apresenta o psicodiagnóstico como legado da psiquiatria, a serviço do "sistema" e como tal sem utilidade para terapia centrada no cliente.

SILVA, O. V. M. Grupo estruturado de vivência para pais. In: MACEDO, R. Psicologia e instituição: novas formas de atendimento. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1986.Trabalho de sensibilização numa abordagem psicodramática de pais de crianças encáminhadas para psicoterapia a partir de um atendimento psicodiagnóstico.STRYDOM, J. The Negotiation of Meaning in Psychotherapy: Implications for Assessment and Diagnosis. South African Journal of Psychology, 20, 2, 1990, pp. 99-104.Estudos lingüísticos sobre a interação psicoterapêutica sugerem que o progresso nas entrevistas psicodiagnósticas ou psicoterapêuticas depende da cooperação do cliente, não como mero informante, mas como parceiro ativo.

Pg 227

SUGARMAN, A. Is Psycodiagnostic Assessment Humanistic? Journal of Personality Assessment, 42, 1, 1978, pp. 11-2I. Argumenta que críticas ao diagnóstico psicológico são válidas, desde que referidas a práticas inconsistentes e não a uma fraqueza inerente ao processo diagnóstico em si. Engajar o cliente no processo torna-o consistente com uma orientação humanista.

SWEENEY, J.; CLARK1N, J. & FITZGIBON, M. Current Practice of Psychological Assessment. Professional Psy chology: Research and Practice, 18, 4, 1988, pp. 377-380.

Propõe um modo formal e breve de trabalhar em psicodiagnóstico com pacientes internados em instituições psiquiátricas, usando bateria de testes gerais e específicos.TOMM, K. Interventive Interviewing: Strategizing as a Fourth Guideline for the Therapist. Family Process, 26, I, 1987, pp. 3-13.

Propõe método de trabalho. que amplia o alcance terapêutico da entrevista clínica.TRINCA, W. O pensamento clínico em diagnóstico da personalidade. Petrópolis: Vozes, 1983.

Apresenta e analisa o raciocínio psicodiagnóstico como uma das principais atividades do psicólogo, mesmo do que não realiza um trabalho de diagnóstico formal. Descreve diferentesformas de pensamentos clínicos que norteiam o psicólogo durante o psicodiagnóstico.TRINCA, W. Diagnóstico psicológico: a prática clínica. São Paulo: EPU, 1984.

Traz uma visão do processo diagnóstico do tipo compreensivo, abordando as principais questões que se apresentam. hoje sobre o diagnóstico aplicável a todas as idades, sobre a posição do psicólogo no uso de suas próprias habilidades clínicas, além das técnicas e testes psicológicos.

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TSU, T. A relação psicólogo-cliente no psicodiagnóstico infantil. In: TRINCA, W. Diagnóstico psicológico: a prática clí nica. São Paulo: EPU, 1984.

Partindo da inquietante questão da definição de quem é o cliente no psicodiagnóstico infantil, a autora expõe o conceito de instrumentação da relação psicólogo-cliente, analisando-o sob vários aspectos e apontando sua importância no diagnóstico de tipo compreensivo.

VERTHEL YI, R. F. de. Temas en evaluación psicologica.Buenos Aires: Lugar Editorial, 1989.

A autora faz uma revisão da prática psicodiagnóstica, considerando que, em seu país, as modificações com relação às entrevistas devolutivas estavam intimamente ligadas ao reconhecimento do papel de psicólogo clínico.

'" VOLNOVICH, J. Lições introdutórias à psicanálise de crianças. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1991.

Trata-se de seminários feitos pelo autor no Brasil, nos quais apresenta a história e salienta as principais contribuições à psicanálise de crianças, problematiza sua especificidade, redefinindo o psicodiagnóstico e a psicopatologia. Apresenta casos clínicos e trabalha os conceitos de sintoma, sentido, transferência, interpretações e direção da cura em psicanálise de crianças.

VORCARO, A. M. R. Negociando relações: da interlocução entre profissionais numa clínica de distúrbios da comu-nicação. Dissertação de Mestrado, Psicologia Clínica, PUC SP, 1991 (mimeo).

Baseada na teoria da ordem negociada, a autora, utilizando transcrições de reuniões coletivas dos profissionais de uma clínica de distúrbios da comunicação, considera as negociações como construtoras da organização estrutural do serviço atravessadas pela tensão entre as oposições dos conceitos de linguagem e comunicação.

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VORCARO, A. & AUDAT, M. C. Quelques remarques sur Ia consultation publique du Dr. Bergés. Mémoire de Stage, Paris, 1992 (mimeo).

Mostra as determinações culturais que marcam a prática psicodiagnóstica, ainda que a pluralidade de referenciais venha sendo enfrentada na clínica cotidiana, a partir do confronto de distintas posições psicodiagnósticas nos estudos de caso realizados em uma instituição francesa.

WATKINS, C. E. What Have Surveys Taught Us About The Teaching And Practice Of Psychological Assessment? Joumal of Personality Assessment, 56, 3, 1991, pp. 426-437.

Revisão de todos os estudos sobre avaliação psicológica nos últimos 30 anos (1960-1990). Conclui que o uso

do psicodiagnóstico se manteve estável, seu papel é consistente e significativo e as técnicas projetivas continuam sendo utilizadas.

WEINER, J. B. Does Psychodiagnosis Have a Future? Joumalof Personality Assessment, 2, 1972, pp. 534-545.

Discute críticas feitas ao uso do psicodiagnóstico, quanto ao seu propósito, modelo anacrônico, estar sendo descartado pelos clínicos, e de estar desaparecendo do currículo de faculdades. Refuta essas críticas esclarecendo o papel da avaliação psicodiagnóstica no conhecimento da personalidade.

WEINER, J. B. The Future of Psychodiagnosis Revisited. Journal of Personality Assessment, 47, 5, 1983, pp. 451 461.Pesquisas indicam que os métodos tradicionais de psicodiagnóstico continuam a ser ensinados e usados. Novas direções na prática psicológica-forense e saúde - fornecem oportunidades para uso do Psicodiagnóstico.

WEINER, J. B. On Competence and Ethicality in Psychodiagnostic Assessment. Journal of Personality Assessment, 53, 4, 1989, pp. 827-831.Discute a competência e ética no trabalho de psicodiagnóstico. Para ser competente o psicólogo deve conhecer bem o que seus testes medem e ser ético ao agir de acordo com os

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cdados de validade do seu instrumento. A competência é um pré-requisito para a ética.

YEHIA, Y. G. Proposta de uma técnica alternativa de supervisão de estágio para a formação de psicólogos. Dissertação de Mestrado, Psicologia Clínica. PUC-SP, 1983.Revê a supervisão com a participação dos estagiários no processo clínico e propõe uma técnica de supervisão com atendimento conjunto aos clientes pelo supervisor e estagiários. YOSHIDA, E. M. P. Psicoterapias psicodinâmicas breves e critérios psicodiagnósticos. São Paulo: EPU, 1990.Revisão abrangente da literatura e apresentação de diferentes técnicas de psicoterapia breve de inspiraçãopsicanalítica e as especificidades de suas aplicações.ZACKER, J. Parents as Change Agents. A Psychodynamic Model. American Journal of Psychotherapy, 32, 4, 1978, pp. 572-582.Descreve modelo de tratamento desenvolvido por clínicos psicodinâmicos para orientar pais a se tornaremagentes primários de mudança para seus filhos identificados como pacientes.ZACKER, J. It Only Takes One Psychologist to Demonstrat The Impact of Psychological Assessment. Journal of Personality Assessment, 53, 1, 1989.Pesquisa verifica que os resultados de testes aplicados pelos psicólogos influenciam o lrabalho do psiquiatra no diagnóstico e tratamento de pacientes.ZAPATA, M. R. Grupo de observação e triagem de crianças.

Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 34, 3, 1985, pp. 171-172. Breve relato de uma experiência de grupo simultâneo de pais e filhos com objetivo de psicodiagnóstico. Ressalta resultados satisfatórios obtidos.

Pg 231