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cadernospetfilosofia

pet · Alexandria Costa, Libanio Cardoso Neto, Luame Cerqueira, Lucio Souza Lobo, Scheila Cristiane Thomé, Vicente Azevedo de Arruda Sampaio, Wandeílson Silva de Miranda

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M e t a f í s i c a : F u n d a m e n t a ç ã o e C r í t i c a

e a r t i g o s v a r i a d o s

2013

Os cadernospetfilosofia são uma publicação do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná

editoresConiã Costa Trevisan, Eduardo Emanoel Dall’Agnol de Souza, Gustavo Perlingeiro Beltra-me, Luiz Alberto Thomé Speltz Filho, Marcos Sirineu Kondageski.

grupo petLeandro Neves Cardim (professor-tutor), Rodrigo Brandão (professor-tutor), Clara Mari-ana Romanovski, Coniã Costa Trevisan, Eduardo Emanoel Dall’Agnol de Souza, Felipe Augusto Campos de Lima, Gustavo Perlingeiro Beltrame, Kamila Cristina Babiuki, Luan Gonçalves da Silveira, Luiz Alberto Thomé Speltz Filho, Marcos Sirineu Kondageski, Nicole Martinazzo, Renato Alves Aleikseivz, Tatiane Aparecida Martins Lima.

pareceristas desta ediçãoAdriano Bueno Kurle, Adriano Marcio Januario, Alberto Marcos Onate, Amaro de Ol-iveira Fleck, André Gustavo Biesczad Penteado, Andre de Macedo Duarte, Diogo Gon-dim Blumer, Edmilson Menezes Santos, Evaldo Becker, Filipe Bravim Tito de Paula, Israel Alexandria Costa, Libanio Cardoso Neto, Luame Cerqueira, Lucio Souza Lobo, Scheila Cristiane Thomé, Vicente Azevedo de Arruda Sampaio, Wandeílson Silva de Miranda.

Reitor: Zaki Akel Sobrinho

Vice-reitor: Rogério Andrade Mulinari

Pró-Reitora de Graduação: Maria Amélia Sabbag Zainko

Diretora do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes: Maria Tarcisa de Silva Bega

Chefe do Departamento de Filosofia: Maria Adriana Camargo Cappello

Coordenador do Curso de Graduação em Filosofia: Vivianne de Castilho Moreira

Departamento de Filosofia UFPRRua Doutor Faivre 405 6º andar 80060-150 Curitiba Brasil

Telefone (41) 3360 5098

www.filosofia.ufpr.br

PET-Filosofia [email protected]

http://petfilosofiaufpr.wordpress.com/

ISSN 1517-5529

edito

rial

Os cadernospetfilosofia são uma publicação do PET (Programa de Educação Tu-

torial) do curso de Filosofia da UFPR (Universidade Federal do Paraná), dedicada à

divulgação da pesquisa realizada por estudantes de graduação e pós-graduação em

Filosofia. Trata-se, assim, de uma revista de estudantes, editada por estudantes (sob a

supervisão de professores-tutores) e endereçada a estudantes de filosofia, visando ofe-

recer-lhes um certo modelo e padrão de pesquisa desenvolvida por seus pares no Brasil.

Os cadernospetfilosofia recolhem textos em torno de um núcleo temático, que

serviu de norte aos seminários e ao ciclo de conferências realizados pelo grupo PET-

-Filosofia UFPR no decorrer do ano. Os artigos publicados nos cadernospetfilosofi

estão divididos em duas partes: a primeira parte com o Dossiê de artigos que tratam

especificamente do respectivo tema da revista; e a segunda parte, com artigos de

tema livre.

O tema do Dossiê do número 14 dos cadernospetfilosofia (tema em torno do qual

foram realizados os seminários e conferências do PET-Filosofia no ano de 2012) é Me-tafísica: Fundamentação e Crítica. A metafísica, ou a filosofia primeira, foi desde o

início da história da filosofia caracterizada como o saber próprio do filósofo enquanto

tal. Assim, Aristóteles designará a filosofia primeira como um saber do ser enquanto

ser, o qual deve ser o fundamento de todos os outros saberes, na medida em que eles

lidam com objetos cujo ser e cuja natureza eles apenas pressupõem. A metafísica sur-ge, desse modo, como um saber que concentra a atividade filosófica por excelência, da qual todo o conhecimento humano depende direta ou indiretamente.

Ao longo de sua história, no entanto, a metafísica não só conheceu novas fun-damentações, diferentes daquela de Aristóteles, como também críticas que rom-peram a identificação entre filosofia e metafísica. Assim, se de um lado Tomás de Aquino introduz em seus “Comentários à Metafísica de Aristóteles” uma interpre-tação que sublinha a identidade entre metafísica e teologia, e Descartes, por sua vez, abandona o método aristotélico e procura fundamentar a filosofia primeira a partir do sujeito de conhecimento (o cogito), de outro lado, pelo menos a partir do século XVIII, somam-se críticas radicais e ao mesmo tempo diferenciadas sobre a possibilidade de uma fundamentação da metafísica: Hume, Kant, Marx, Nietzsche, Carnap, Wittgenstein, Adorno, cada um a seu modo pretendeu mostrar, sempre com novas premissas e no interior de novos contextos históricos e filosóficos, que a filosofia primeira havia perdido sua razão de ser ou, pelo menos, que as vias até então seguidas caíram no descrédito.

Com isso, porém, tais críticas à metafísica levantam a questão de saber o que vem a ser filosofia, se ela não mais se identifica com uma reflexão metafísica ge-nuína. Além disso, trata-se de saber se essas críticas não pressupõem argumentos e ideias que poderiam ser classificadas também de metafísicas. Ou trata-se de saber se não é possível um novo tipo de pensamento metafísico que possa escapar aos problemas apontados por aquelas críticas.

Nas páginas que se seguem, os nove artigos do Dossiê de um modo ou de outro giram em torno dessa questão onipresente na história da filosofia.

Os Editores

sum

árioMetafísica: Fundamentação e Crítica

O possível fim da metafísica: Kant e os devaneios da razão/ Marcio Tadeu Girotti

O Problema de Kant/ Glauber Cesar Klein

Voltaire e os Limites da Metafísica ou A Metafísica dos Escombros / João Carlos Lourenço Caputo

O Dogmatismo de Platão em Nietzsche e Deleuze, entre a Crítica e a Promoção/ Maria Fernanda Novo dos Santos

A filosofia da vida e o círculo hermenêutico segundo Wilhelm Dilthey/ João Evangelista Fernandes

A tese da primazia da ontologia da Vorhandenheit (disponibilidade) e a necessidade de uma destruição da história da ontologia em Ser e Tempo / Marcel Albiero da Silva Santos

Notas sobre o problema da fundamentação da moral na Dialética do Esclarecimento/ Jéverton Soares dos Santos

Jacques Maritain e a Noção de Tomismo como “Verdadeira Filosofia”/ Felipe Sérgio Koller

Revolução Científica e o Papel da Filosofia / André Rosolem Sant’Anna Artigos variados

A gênese do sofrimento segundo Arthur Schopenhauer/ Paulo Rodrigues Souza do Nascimento

Poder Político em Rousseau: do estado de natureza à sociedade civil / Fabrício Behrmann Mineo

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Marcio Tadeu GirottiDoutorando em Filosofia / Universidade Federal de São [email protected]

O possível fim da metafísica: Kant e os devaneios da razão

Resumo O artigo aborda alguns escritos da década de 1760, da filosofia kantiana, com o intuito de apontar quais são os elementos de cunho crítico presentes nesses escritos, que desembocam na obra Träume eines Geistersehers,

erläutert durch Träume der Metaphysik (1766). No ano de 1763, com Der einzig

mögliche Beweisgrund zu einer Demonstration des Daseins Gottes e com o Versuchden

Begriff der negativen Größen in die Weltweisheit einzuführen, Kant aponta para o papel da experiência na existência do simples possível e para o papel da oposição real para os acontecimentos da ordem fenomenal. Tem-se, por parte de Kant, uma preocupação com o estatuto da metafísica tradicional que se apoia em provas não concretas e busca, por meio de inferência e pelo princípio de contradição, mostrar a ordem do mundo e a existência do real. Nesse sentido, Kant começa a engendrar uma crítica ao racionalismo de cunho dogmático, em especial a escola Leibniz-wolffiana, tendo como influências as inovações da ciência newtoniana e o ceticismo de David Hume. Assim, é possível encontrar, nos Träume eines Geistersehers, ‘pistas’ que conduzem à interpretação da obra como um fechamento da filosofia pré-crítica de Kant, abrindo as portas para o criticismo presente na Dissertação de 1770, segundo o próprio autor (Carta a Tieftrunk em 1797).

Palavras-chave Jovem Kant. Racionalismo dogmático. Criticismo. Limites do conhecimento.

A tríade de obras: Der einzig mögliche Beweisgrund zu einer Demonstration

artig

o

Marcio Tadeu Girotti

12 Metafísica: Fundamentação e Crítica

des Daseins Gottes (Único argumento possível - BDG), Versuchden Begriff der negativen Größen in die Weltweisheit einzuführen (Grandezas Negativas - NG) e Träume eines Geistersehers, erläutert durch Träume der Metaphysik (Sonhos de um visionário - TG) configuram, em diversos aspectos, a década de 1760 da filosofia do jovem Kant como um período antidogmático. Tal caracterização é dada levando em consideração a crítica kantiana dirigida à escola Leibniz-wolffiana, uma crítica ao racionalismo que concede à razão, entre outras coisas, a força de determinar, por meio de conceitos lógico-formais, a existência de tudo o que pode existir.

No livro de Daniel Omar Perez (intitulado “Kant pré-crítico: a desventura filosófica da pergunta”) encontra-se uma articulação entre as obras da década de sessenta no que diz respeito à determinação lógica e real, que desembocam na crítica kantiana à metafísica tradicional.

Em sua argumentação, Omar Perez afirma que nos anos de 1750 Kant antecipa uma preocupação que será tratada nas Grandezas Negativas, na tentativa de delimitar a explicação do real (a existência), através do princípio lógico (princípio de contradição). Na Nova Dilucidatio seu intuito era elucidar os primeiros princípios do conhecimento humano baseando-se no princípio de contradição, em que um sujeito não pode ser e não ser ao mesmo tempo, o que impossibilitaria sua existência, uma vez que a melhor formulação seria dizer que uma coisa é (existe) quando o seu oposto é falso.

O princípio de contradição, tão caro ao princípio de identidade, transforma-se, em Kant, em princípio derivado e não primeiro, ou seja, ele é afirmativo e/ou negativo: “tudo aquilo que é, é”; “tudo aquilo que não é, não é”. Assim, na filosofia kantiana o princípio de contradição é caracterizado diante daquilo que se diz como impossível, isto é, não dá conta da existência do real, uma vez que o conceito permanece como um simples possível e se houver contradição ele se torna impossível.

Na busca por esclarecer o problema da distinção entre lógico e real, empreende-se uma reformulação do princípio de razão suficiente, que em Kant é uma razão determinante (contra a concepção wolffiana). Para Wolff, a razão esclarece porque uma coisa é em vez de não ser, ao passo que para Kant a razão se encontra na relação do sujeito com o seu predicado e, nesse sentido, ele considera um princípio de determinação (razão determinante) que exclui de um predicado o seu oposto.

Portanto, surge uma razão determinante que se divide em duas partes respondendo ao quê e ao porquê, a razão de ser e a razão de não ser. Logo, Kant concebe uma razão anteriormente determinante “cuja noção precede àquilo que é determinado”; e uma razão posteriormente determinante em

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O possível fim da metafísica: Kant e os devaneios da razão

cadernospetfilosofia número14 | 2013

que “a noção do determinado deve ser dada”. Essas duas determinações permitem distinguir o estatuto lógico do estatuto do existente, ao passo que a afirmação wolffiana acerca da razão não esclarece o existente e sim aquilo que pode ser determinado de modo lógico. Ou seja, a razão produz existentes com regras lógicas e não promove a existência de modo efetivo, o que levou Kant, no Único argumento possível, a uma crítica do modo lógico de determinar aquilo que só pode existir como mera possibilidade e mesmo assim é dada a sua existência como efetivamente válida.

A proposta kantiana diante do existente caminha em direção à distinção entre ordem lógica e ordem real, uma vez que a existência de Deus é determinada por si mesma, sendo uma operação de ordem ideal, não real. Tem-se a noção de Deus como ideia do ponto de vista da essência, que reforça ainda mais a possibilidade da razão, em seu uso lógico, determinar o existente, pois, ela pode somente configurar a essência de um conceito e prová-lo como existente, porém, não efetivamente em uma ordem real (somente conceitual).

A diferença entre operações de ordem ideal e de ordem real começa a ser estabelecida, a partir da relação com o sensível. A ordem lógica, sem qualquer relação com o sensível é uma op-eração de caráter ideal, desse modo vai-se colocando um limite ao princípio de determinação em relação com a existência. O logicismo parece ser uma espécie de “bunker” da metafísica tradicional, pelo fato de fornecer uma aparência de imagem verdadeira a posições dogmáticas. A operação consiste em con-siderar o que é meramente lógico como se fosse conhecimento real do objeto. (Perez, 1998, p. 60, grifo do autor).

A oposição entre ordem lógica e ordem real é tratada nas Grandezas Negativas, uma vez que a oposição lógica é uma contradição e a oposição real é algo dado sem contradição. Para Kant, a ordem real foi esquecida pelos metafísicos, o que levou os mesmos a diversos erros e provas duvidosas.

Por definição, a oposição lógica é quando em um mesmo sujeito se afirma e se nega algo ao mesmo tempo, o que gera contradição, se reduz a nada; a oposição real é a possibilidade de afirmar algo de um sujeito por meio de dois predicados que se opõem, mas não são contrários e podem suprimir um ao outro sem contradição e tem-se como consequência algo.

O tratamento dado nesse ensaio à operação lógica e à operação real, permitiu Kant tratar da existência também no Único argumento possível em relação ao pensamento lógico e a verdade existente, ou seja, não se pode provar a existência por inferências, uma vez que ela é “posição absoluta”.

Marcio Tadeu Girotti

14 Metafísica: Fundamentação e Crítica

Como pode-se observar, a existência não é um atributo e nem mesmo um complemento daquilo que existe efetivamente, ela não é um acréscimo. Para Kant a existência não é aquilo que falta a uma coisa, o que o leva a afirmar que há uma diferença entre o pensável e o realmente existente, visto que da reunião de certos atributos designados a um sujeito não prova que ele realmente existe – o mesmo vale para a existência de Deus.

Pode-se observar que no ano de 1763, Kant engendra uma investigação à procura por uma metafísica que possa se fundamentar como ciência, com a crítica aos racionalistas presente nessas obras. Seguindo esse raciocínio, Kant escreve em 1766 os Sonhos de um visionário, uma obra que supostamente possui um conteúdo de cunho crítico, à medida que vai de encontro aos metafísicos intitulados como dogmáticos, e cética, quando duvida dos dogmas da razão e compara as teses metafísicas a sonhos de fantasistas.

A argumentação desenvolvida no escrito aponta um elemento de cunho crítico que será utilizado na Crítica da razão pura (KrV), a saber: conceitos possíveis e impossíveis estão relacionados à experiência uma vez que um conceito que possui uma referência sensível é possível, ao passo que um conceito somente abstrato sem referência empírica é impossível. Com efeito, nas palavras de Franco Lombardi, pode-se aproximar os Sonhos de um visionário com a Crítica e, consequentemente, com o Único argumento possível.

[...] In essi [Sonhos de um visionário] Kant ci dirá anche che forse qualcuno potrà in seguito presentare in riguardo alla metafisica diverse opinioni, ma non potrà presentare vere e proprie con-oscenze. Sono, questi, accenti che già preludono alla Critica, e, se essi si ritrovano per uno lato nei Sogni, si possono già sentire o presentire nello stessos critto in cui Kant sembra vogila presentar el’argomento per una dimostrazione dell’esistenza di Dio. (Lombardi, 1946, p. 201, grifo do autor).

Segundo afirma Lombardi, no Único argumento possível encontram-se argumentos que provam a existência de Deus, os quais são de certo modo dirigidos às provas já existentes sobre o assunto. Nesse sentido, Kant afirma que somente é necessário se convencer da existência de Deus sem a necessidade de demonstrá-la, porém, a demonstração é essencial aos argumentos posteriores dirigidos aos dogmáticos da razão, o que aproxima a obra de 1763 aos Sonhos de um visionário, visto que nesta obra a metafísica é posta em questão e não se difere muito da argumentação do Único argumento possível. Pois, aqui, fala-se de Deus e sua existência; lá, fala-se da existência do espírito e das provas a priori e constatadas por um visionário que transporta os invisíveis

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O possível fim da metafísica: Kant e os devaneios da razão

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para o campo sensível e os abarca no suprassensível por meio do espaço e tempo – formas da sensação.

Portanto, pode-se dizer que existe uma possibilidade de aproximação entre o Único argumento possível e as Grandezas Negativas, pois, considerando a primeira no que diz respeito ao conceito de simples possível e a segunda no que concerne à oposição real em detrimento da oposição lógica, é possível dizer aquilo que Kant pretende: afirmar que algo é possível não quer dizer que ele não existe e afirmar que algo existe também não demonstra que este nunca foi um simples possível. Em outras palavras, a oposição lógica tida como contradição aplicada ao simples possível não permite a sua existência, mas a oposição real com sua divisão em atual e potencial permite afirmar que algo, respectivamente, existe ou está em potência, pode ou não existir.

Com efeito, o Único argumento possível abre, de certo modo, as portas para a argumentação das Grandezas Negativas, pois, a existência como posição absoluta se refere à oposição real, uma vez que essa se desenrola no campo empírico (causalidade). Ao mesmo tempo, a oposição lógica justifica a impossibilidade do princípio de contradição determinar a existência, pois, tal princípio não está articulado com o campo sensível permanecendo no campo lógico, ou seja, inferências que não estão relacionadas ao sensível não podem provar a existência de nenhum objeto (conceito).

Do mesmo modo, as duas obras desembocam nos Sonhos de um visionário, já que é nesta obra que é possível observar a distinção entre um mundo visível e um mundo invisível, além da articulação entre o conceitual e o empírico, já que todo conceito deve possuir uma correspondência sensível para obter validade objetiva. Ou seja, o conceito de algo existente se encontra no espaço e no tempo que são formas puras da sensibilidade que permitem o conhecimento do sensível, bem como dos conceitos puros do entendimento.

Desse modo, observa-se que as obras da década de 1760 estão estritamente interligadas, e se olharmos mais de perto, a obra Sonhos de um visionário anteciparia, em alguns aspectos, a argumentação da Dissertação de 1770 e também da Crítica. Portanto, torna-se visível que os escritos pré-críticos são relevantes para a compreensão do criticismo, além disso, as obras da década de sessenta caracterizam, em diversos aspectos, as argumentações posteriores que serão encontradas nas obras críticas de Kant.

Corroborando a argumentação acima, o desfecho das Grandezas Negativas parece conduzir ao início dos Sonhos de um visionário, visto que em ambos Kant se dirige aos racionalistas e seu pedantismo em saber tudo de tudo e tudo explicar. Na primeira, Kant afirma: “Nada sabe, nada compreende, mas

Marcio Tadeu Girotti

16 Metafísica: Fundamentação e Crítica

fala de tudo e tira partido do que fala”1 (NG, AA 02: 200). Pode-se perceber que esta afirmação segue em direção aos racionalistas, como Wolff, levando Kant a chamá-los, nos Sonhos de um visionário, para a discussão acerca do conceito de “espírito”, conceito por muitos utilizado e por quase nenhum explicado.

De um modo semelhante, Kant parece utilizar o mesmo argumento no final das Grandezas Negativas e no início dos Sonhos de um visionário:

O palavrório metódico das universidades é muitas vezes tão-só um acordo em desviar de uma questão de difícil solução através de palavras ambíguas, porque dificilmente se ouve nas academias o cômodo e o mais das vezes razoável “eu não sei”2. (TG, AA 02: 319, grifo nosso).

Conforme Jaume Pons, a atitude de Kant nesse escrito culmina nas obras críticas, pois há a mistura da metafísica com as fantasias de Swedenborg3 (o

1 Er weiß nichts, er versteht nichts, aber erredet von allem, und was er redet, darauf pocht er.

2 Das methodische Geschwätz der hohen Schulen ist oftmals nur ein Einverständniß, durch veränder liche Wor-tbedeutungen einer schwer zu lösenden Frage auszuweichen, weil das bequeme und mehr entheilsvernünftige: Ich weiß nicht, auf Akademien nicht leichtlich gehört wird.

3 O sobrenome Swedenborg é de origem sueca. Na Suécia era comum mudar o sobrenome das famílias de acordo com a região onde elas residiam ou mesmo quando a família recebia um título de nobreza concedido pelo rei. No caso da família Swedenborg, nota-se o seguinte: a palavra ‘Sweden’ era o nome do domicílio da família: a Suécia; o sufixo ‘borg’ é oriundo de um título de nobreza concedido à família de Swedberg; assim, o sobrenome da família passou a ser: Swedenborg (nos Sonhos de um visionário, na versão original em alemão e na tradução brasileira, encontra-se o nome Schwedenberg e não Swedenborg; porém, em outras traduções ou mesmo em obras de intérpretes da filosofia kantiana, vê-se Swedenborg). Pode-se dizer que Emanuel Swedenborg passou da ciência natural à teologia quando já passava da meia idade e tal teologia pode ser explicada pela origem heredi-tária, uma vez que seu pai era um bispo luterano, Jesper Swedberg, que acreditava na presença de anjos entre os homens, anjos como “espíritos ministrados”, os quais cabiam a tarefa de anunciar aos homens aqueles que serão os “legatários da salvação”. Jesper afirmava viver e conversar com seu “anjo da guarda”, acreditando na posse de dons espirituais e poder hipnótico de cura. Com isso, não é difícil aludir à influência do pai sobre Emanuel Swedenborg, o qual afirmava possuir um relacionamento íntimo com o mundo espiritual. Emanuel Swedenborg nasceu em Estocolmo (29 de jan. de 1688), realizando diversas viagens pelo mundo adquirindo conhecimentos diversos, o que justifica seus projetos: projeto de um navio que podia mergulhar com a tripulação ao fundo do mar e atacar o navio inimigo; sistema de comportas para suspender navios cargueiros; sistema de moinhos movido pela ação do fogo sobre a água; metralhadora pneumática que podia dar de sessenta a setenta tiros sem recarga; máquina voadora. Mas, entre todas as invenções, o principal invento foi a descoberta do método para determinar a longitude da Terra com base na lua. Tal método não foi bem acolhido pelos sábios da época. Teve como profissões: assessor titular do Conselho de Mineração, engenheiro, teólogo-espiritual (após receber a missão divina de explicar aos homens o verdadeiro sentido das palavras da Escritura), filósofo, físico, “médico” (por conta de suas pesquisas de anatomia), matemático, astrônomo, por fim, visionário. Muitos de seus projetos e obras, não obtiveram êxito, mas hoje há Institutos (principalmente na Inglaterra, mas também no Brasil – “A Nova Jerusalém”) que se dedicam a estudar a vida e obra de Swedenborg. Sobre o assunto ver: TROBRIDGE, G. L. Swedenborg, vida e ensinamentos. Rio de Janeiro: Sociedade Religiosa A Nova Jerusalém, 1998. Ver também: www.swedenborg.com (Sociedade Swedenborg).

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O possível fim da metafísica: Kant e os devaneios da razão

cadernospetfilosofia número14 | 2013

visionário) demonstrando pouco a pouco os limites da razão promovendo a crítica ao idealismo (1982, p. 42). Nesse sentido, Kant postula que todo o conhecimento deve possuir validade na experiência, ou melhor, todo conceito deve possuir uma correspondência sensível, justificando assim o trabalho daqueles que falam do conceito de espírito (ser imaterial) e provam sua existência por meio de inferências lógicas sem medo de refutação; pois, toda a explicação é dada racionalmente sem fundamento algum, e com a credulidade dada aos visionários, fica fácil acreditar na existência de um ser imaterial.

Ao tratar do conceito de espírito, Kant se refere à necessidade da existência de um mundo dos espíritos, o que fica evidente à medida que os racionalistas, como: Descartes, Leibniz e Wolff utilizam a alma humana para configurar a relação entre o mundo material com o mundo imaterial, promovendo assim uma visão una da mesma coisa. Ou seja, o homem abarca o mundo visível e o invisível, pois atribui a infinidade a Deus que supostamente reside no mundo imaterial (dos espíritos), ao mesmo tempo em que abarca o mundo real. Mas, o problema reside no modo através do qual os ‘indivíduos’ podem abarcar o invisível, isto é, aquilo que ultrapassa o campo da experiência e também os próprios limites do conhecimento humano.

Com efeito, a experiência parece ser o único meio que concebe validade objetiva a todo o conceito engendrado e a todo o objeto possível de ser conhecido. Assim, Kant estabelece que a base para o conhecimento seguro é a experiência, pois, é somente nesse campo que o homem conhece, visto que é ali que ele possui a sensação dos objetos colocados no espaço. Por fim, a argumentação dos Sonhos de um visionário caminha em direção aos limites do conhecimento humano, uma vez que os visionários utilizam as formas da sensibilidade espaço-temporal para abarcar seres imateriais, ao passo que os racionalistas utilizam os mesmos critérios e confirmam a existência de seres que transcendem o mundo material. Nesse sentido, os filósofos racionalistas são comparados por Kant aos visionários, uma vez que estes seriam os únicos que poderiam salvar a metafísica de sua decadência, uma vez que eles podem provar a existência do mundo imaterial além da própria possibilidade de ver tais seres no espaço e no tempo, ou seja, na sensibilidade.

Segundo Daniel O. Perez (2000), em seu artigo A predicação do ser..., Kant teria apontado na década de 1760 alguns temas que renderam frutos para a filosofia crítica (no início da década de 1770), entre eles destacam-se: o uso de regras lógicas que possuem sua validade na formação de proposições, mas que não se coadunam com a existência real dos sensíveis (Único argumento possível); o uso dos princípios da experiência para abarcar objetos não sensíveis, não concedendo fundamento objetivo a estes (Sonhos de um

Marcio Tadeu Girotti

18 Metafísica: Fundamentação e Crítica

visionário); e a mistura das relações lógicas abstratas com os existentes, impedindo sua vinculação de modo adequado (Dissertação de 1770 – uso real e uso lógico do entendimento).

Desse modo, é possível afirmar que as obras tratadas até o momento constituem, de certo modo, uma ligação temática dentro do percurso filosófico de Kant, promovendo a possibilidade de interpretar a década de sessenta como um período de caráter crítico dentro da filosofia pré-crítica. Além disso, proporcionam uma leitura dos Sonhos de um visionário como um possível escrito que fecha o período da juventude kantiana e abre as portas para o criticismo configurado inicialmente com a Dissertação de 1770.

Abaixo cito uma passagem das Grandezas Negativas que corrobora o trecho citado acima com referência ao palavrório metódico, que Kant atribui àqueles que dizem tudo saber e nem ao menos provam o que falam.

É sobretudo digno de nota o fato de que, quanto mais sonda-mos nossos juízos mais comuns e confiantes, mais descobri-mos ilusões desta espécie, pois contentamo-nos com palavras, sem compreender o que quer que seja das coisas4. (NG, AA 02: 192).

Diante disso, no Único argumento possível, Kant argumenta logo no Prefácio que para atingir o objetivo acerca da prova da existência de Deus e, com isso, esclarecer outros pontos, por exemplo, a própria existência dos seres, ele diz:

Mas, para chegar a este fim, é preciso aventurar-se sobre o abismo sem fundo da metafísica. Um oceano tenebroso sem margens e sem faróis, onde deve-se proceder como o marinhei-ro sobre um mar desconhecido, que, logo que entra em terra firme, examina seu trajeto e investiga se as correntes marítimas, sem que ele se desse conta, modificaram o seu curso, a despeito de todo o cuidado que sempre ofereceu a arte de navegar5. (BDG, AA 02: 65-66, tradução nossa).

4 Es ist überaus merkwürdig: daß, je mehr man seine gemeinste und zuversichtlichste Urtheile durchforscht, desto mehr man solche Blendwerke entdeckt, da wir mit Worten zufrieden sind, ohne etwas von den Sachen zu verstehen.

5 Zu diesem Zwecke aber zu gelangen muß //II66// man sich auf den boden losen Abgrund der Metaphysik wagen. Ein finsterer Ocean ohne Ufer und ohne Leuchtthürme, wo man es wie der Seefahrer auf einem unbeschifften Meere anfangen muß, welcher, so bald er irgendwo Land betritt, seine Fahrt prüft und untersucht, ob nicht etwa unbemerkte Seeströmes einen Lauf verwirrt haben, aller Behutsamkeit ungeachtet, die die Kunst zu schiffen nur immer gebieten mag.

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O possível fim da metafísica: Kant e os devaneios da razão

cadernospetfilosofia número14 | 2013

Nessa passagem, Kant utiliza-se de metáforas marinhas para apresentar a metafísica. Assim, compreende-se que a metafísica é ainda um terreno vasto e inexplorado, como um oceano imenso sem que seja possível enxergar seus limites (margens). Nesse sentido, aquele que se encontra no campo da metafísica deve estabelecer claramente os conceitos e as provas, procurando rever sempre o caminho percorrido, buscando uma base firme que possibilite a construção das teses; em outras palavras, a metafísica que busca se estabelecer como ciência deve, em algum momento, ter algo in concreto, exposto no sensível, comprovado na experiência.

É possível perceber, pela citação acima, que no Único argumento possível, Kant já articulava a possibilidade de pressupor limites à razão e é assim que ele chega aos Sonhos de um visionário, afirmando que a razão não pode transpor os limites do sensível para atingir o mundo do suprassensível, mas é natural que de lá ela peça informações. Assim, pode-se aproximar esse contexto com a passagem da Dialética Transcendental da Crítica da razão pura, ponto em que Kant ressalta a curiosidade do entendimento em buscar conhecer o outro mundo (não sensível) dotado de suas categorias que devem ser aplicadas ao conhecimento do sensível (uso empírico do entendimento). O desejo do entendimento em ampliar seus conhecimentos para além do campo da experiência, o coloca em contato com ‘fantasmagorias’ que culmina na ilusão transcendental. Ao mesmo tempo, a razão na busca pela determinação das coisas em si mesmas também cai na ilusão, mas, segundo Kant, uma ilusão sadia, inevitável e natural (KrV, B 354).

Na passagem abaixo, retirada da Crítica6, a metáfora marinha está novamente presente e parece dizer a mesma coisa: a metafísica é um campo vasto que deve possuir os seus limites.

Agora não somente percorremos o domínio do entendimento puro, examinando cuidadosamente cada parte dele, mas tam-bém o medimos e determinamos o lugar de cada coisa nele. Este domínio, porém, é uma ilha fechada pela natureza mesma dentro de limites imutáveis. É a terra da verdade (um nome sedutor), circundada por um vasto e tempestuoso oceano, que é a verdadeira sede da ilusão, onde o nevoeiro espesso e muito gelo, em ponto de liquefazer-se dão a falsa impressão de novas terras e, enquanto enganam com vãs esperanças o navegador errante a procura de novas descobertas, envolvem-no em aven-turas, das quais não poderá jamais desistir e tão pouco levá-

6 Seção Terceira da Doutrina Transcendental da Capacidade de Julgar (ou Analítica dos Princípios).

Marcio Tadeu Girotti

20 Metafísica: Fundamentação e Crítica

las a termo. Entretanto, antes de arriscarmo-nos a esse mar para explorá-lo em toda a sua amplidão, e de assegurarmo-nos se se pode esperar encontrar aí alguma coisa, será útil lançar ainda antes um olhar sobre o mapa da terra que precisamente queremos deixar, para perguntar, primeiro, se não poderíamos porventura contentar-nos com o que ela contém, ou também se não teríamos que contentar-nos com isso e por necessidade, no caso em que em parte alguma fosse encontrado um terreno sobre o qual pudéssemos edificar; segundo, sob que título pos-suímos esta terra e podemos considerar-nos assegurados contra todas as pretensões hostis7. (KrV, B294-295).

A passagem expressa que a metafísica precisa ser melhor fundamentada para atingir o estatuto de ciência. Porém, vale ressaltar que a “Faculdade do Entendimento” possui a curiosidade de atingir o outro mundo e por sua fraqueza em distinguir o que pode ou não conhecer ultrapassa seus limites, fazendo com que caia por si mesma em ilusão e, aos poucos, retorne ao puro conhecimento do verdadeiro e real.

Nos Sonhos de um visionário há uma passagem que diz respeito à fraqueza do entendimento, corroborando a possibilidade da articulação entre o Único argumento possível, Sonhos e Crítica.

A fraqueza do entendimento humano em ligação com sua curi-osidade faz com que se juntem inicialmente verdade e mentira sem distinção, mas pouco a pouco os conceitos são depurados, uma pequena parte permanece, o resto é jogado fora como lixo8. (TG, AA 02: 357).

7 Wir haben jetzt das Land des reinen Verstandes nicht allein durch reiset und jeden Theil davon sorgfältig in Augenschein genommen, sondern es auch durchmessen und jedem Dinge auf demselben seine Stelle bestimmt. Dieses Land aber ist eine Insel und durch die Natur selbst in unveränderliche Grenzen eingeschlossen. Es ist das Land der Wahrheit (ein reizen der Name), um geben von einem weiten und stürmischen Oceane, dem eigentlichen Sitze des Scheins, wo manche Nebelbank und manches bald wegschmelzende Eis neue Länder lügt und, in dem es den auf Entdeckungen herumschwärmenden Seefahrer unaufhörlich mit leeren Hoffnungen täuscht, ihn in Abenteuer verflechtet, von denen er niemals ablassen und sie doch auch niemals zu Ende bringen kann. Ehe wir uns aber auf dieses Meer wagen, um es nach allen Breiten zu durchsuchen und gewiß zu werden, ob etwas in ihnen zu hoffen sei, so wir des nützlich sein, zuvor noch einen Blick auf die Karte des Landes zu werfen, das wir eben verlassen wollen, und erstlich zu fragen, ob wir mit dem, was es in sich enthält, nicht allenfalls zufrieden sein könnten, oder auch aus Noth zufrieden sein müssen, wenn es sonst überall keinen Boden giebt, auf dem wir uns anbauen könnten; zweitens, unter welchem Titel wir denn selbst dieses Land besitzen und uns wider alle feindselige Ansprüche gesichert halten können.

8 Die Schwäche des menschlichen Verstandes in Verbindung mit seiner Wißbegierde macht, daß man anfänglich Wahrheit und Betrug ohne Unterschied aufrafft. Abernach und nach läutern sich die Begriffe, ein kleiner Theil bleibt, das übrige wird als Auskehricht weggeworfen.

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O possível fim da metafísica: Kant e os devaneios da razão

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Por fim, considerando o período que comumente é dito como pré-crítico e tendo como marco da virada crítica o escrito Acerca da forma e dos princípios do mundo sensível e inteligível, buscou-se argumentar em favor da década de 1760 como um período antidogmático da filosofia kantiana, com a abordagem dos escritos que possivelmente podem ser configurados como escritos que conduziram Kant a engendrar sua filosofia crítica e sua proposta de impor limites à razão a fim de “salvar” a metafísica tradicional que se encontrava em perfeito embaraço.

Por fim, é possível concluir essa investigação do seguinte modo: tanto no Único argumento possível como nas Grandezas Negativas e nos Sonhos de um visionário o papel da experiência esteve presente, ou como base para a posição absoluta do existente (no espaço) ou como campo imprescindível para o conflito real e também como confirmação da existência de conceitos racionais como espíritos, os quais os visionários buscavam abarcar com as metáforas de espaço e tempo. Assim, pode-se notar a importância que era dada à experiência antes mesmo de Kant escrever a Dissertação de 1770 e afirmar que espaço e tempo são formas a priori da nossa intuição sensível e que há uma distinção entre mundo sensível e mundo inteligível. Tudo isso para enfim desembocar na Crítica da razão pura e concretizar, em alguns aspectos, seu pensamento que se desenrolava desde 1746 com seu primeiro escrito ainda de cunho científico que abriu o caminho para reflexões que iriam alcançar o patamar metafísico que se inicia, supostamente, em 1755 com a Nova Dilucidatio. Concluindo que os Sonhos de um visionário podem, de certo modo, ser caracterizados como o fim do período pré-crítico demarcando com a Dissertação de 1770 uma passagem entre este período e a publicação da Crítica da razão pura.

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Glauber Cesar Klein Mestre em filosofia / Universidade Federal do Paraná[email protected]

O Problema de Kant

Para Ana, que me despertou da letargia

“Quando consideramos os construtores de castelos no ar dos

tantos mundos de pensamento, cada um dos quais habita

tranqüilamente o seu com exclusão dos outros (...), teremos

paciência com a contradição de suas visões, até que estes se-

nhores tenham acabado de sonhar.”1

Resumo Neste artigo nosso objetivo será estabelecer as condições para a formulação kantiana da distinção entre fenômeno e coisa-em-si; trata-se de defender que o idealismo transcendental de Kant, cujo fundamento é justamente a noção por nós explorada, é uma tentativa inaudita de solução sistemática de diversos problemas, em especial os que representavam aporias ou limitações do pensamento iluminista, ainda que a avaliação geral kantiana estenda-se a toda a tradição metafísica.

Palavras-chave Coisa-em-si, idealismo transcendental, metafísica.

1. A formulação do problema

Kant apresenta o objetivo da Crítica da Razão Pura como uma tentativa

1 KANT, 2005,Sonhos de um visionário explicados por sonhos da metafísica, terceiro capítulo, II 342 (tradução de Joãosinho Beckenkamp), pp. 176-7.

artig

o

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inaudita2 de dissolver as dificuldades que a metafísica inevitavelmente en-contra3. Inevitavelmente porque a metafísica é, por definição, conhecimento que ultrapassa os limites da nossa experiência, o que para Kant significa uma pretensão de conhecer o que não se pode provar. Esta pretensão, contudo, é justificável, pois se funda na tentativa de completar o conhecimento empíri-co, assim como satisfazer necessidades que são, por natureza, suprassensíveis.

Pode-se progredir indefinidamente no conhecimento por princípios necessários e reconhecidos na experiência sensível, por esse caminho, no en-tanto, nunca se encontrará respostas que esgotem as questões. Assim, segun-do Kant, procurou-se princípios que não estão fundados na experiência e que a ultrapassam; com eles, livra-se da incompletude e relatividade. Contudo, esta tentativa de solução, não obstante sua aparente inevitabilidade, acabou por levar a metafísica à pluralidade de sistemas e à falta de critérios para de-cidir entre eles, uma vez que se abandonou a experiência como fonte e como pedra de toque. Os metafísicos acreditaram então que critérios meramente lógicos poderiam ser uma pedra de toque satisfatória para suas investigações transcendentes, uma vez que assim progrediu e se consolidou a lógica e a matemática4. Os resultados da aplicação do método lógico ou matemático à metafísica, no entanto, foram desastrosos: pluralidade de sistemas, ineficácia da mera lógica como critério de decidibilidade entre eles5, falta de unidade

2 Tentativa que assim se apresenta apenas inicialmente, sendo ao fim provada como plenamente satisfatória, KANT, 2001, XXII, nota [Doravante, citaremos esta obra com a sigla CRP, seguida de indicação da edição alemã e de sua respectiva paginação (A ou B)]: “Neste prefácio unicamente apresento, a título de hipótese, a mudança de método exposta na crítica e que é análoga a esta hipótese copernicana. Esta mudança será contudo estabelecida no corpo da obra (...) Será assim provada, já não hipoteticamente, mas apodicticamente”.

3 CRP, A VII ss.

4 Com correção, a tradição assim entendia, mas parte da argumentação kantiana consistirá justamente em defen-der que a geometria funda-se nas formas puras da intuição, não em simples conceitos.

5 O que significa dizer que, nesse contexto, cada sistema metafísico é um mundo diferente, isolado, no qual seu autor vive tranquilamente. Assim, diz Kant, em Sonhos de um visionário explicados por sonhos da metafísica, os sistemas metafísicos não diferem dos sonhos, no que esses têm de particular, subjetivo, introvertido. Seus autores dormem. O despertar significa a consciência de um mundo comum, que não pode comportar, no entanto, as contradições que existem entre aqueles mundos particulares. Cf. KANT, 2005, pp. 176-7: “Aristóteles diz em algum lugar: quando estamos acordados, temos um mundo em comum, mas quando sonhamos cada qual tem seu próprio. Quer me parecer que deve ser possível inverter a última proposição e dizer: se de diversos homens cada qual tem seu próprio mundo, então é de supor que eles sonham. Nesta base, quando consideramos os construtores de castelos no ar dos tantos mundos de pensamento, cada um dos quais habita tranqüilamente o seu com exclusão dos outros (...), teremos paciência com a contradição de suas visões, até que estes senhores tenham acabado de sonhar. Pois, quando eles alguma vez, queira Deus, estiverem inteiramente acordados, isto é, abrirem os olhos em uma direção que não exclui a concordância com o entendimento de outro homem, nenhum deles verá algo que não devesse, à luz de suas demonstrações, mostrar-se evidente e certo também a qualquer um dos outros, e os filósofos habitarão então um mundo comum, tal como os matemáticos já possuem há muito tempo, um acontecimento importante que já não pode demorar muito, na medida em que se possa confiar em

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metodológica6, constante desacordo quanto aos objetos próprios dessa ciên-cia e, ainda, ignorância da razão do próprio fracasso.

Após uma tentativa malograda de pôr fim às disputas seculares por meio de um caminho inteiramente novo, a de Locke7, dando assim a impressão de que todas as possibilidades de realizar a metafísica como ciência já haviam sido aventuradas, em vão, e a meio do sucesso das demais ciências8, nome-adamente a Lógica, a Matemática e a Física9, a credibilidade da metafísica fica sub judice, com três consequências principais, que são: 1. Apelo ao senso-comum10, o que para Kant significa uma confusão de gêneros, uma vez que o bom senso é útil e encontra seu limite nos juízos que se aplicam unicamente à experiência imediata, portanto, às questões particulares, enquanto que a metafísica é o gênero de conhecimento que necessita de juízos gerais, a partir de simples conceitos. A confusão, pois, está no uso de juízos empíricos em questões que são metafísicas11, o que nunca poderá resultar bem. 2. Ceti-cismo12, consequência direta da pluralidade de sistemas e da falta de critérios para decidir entre eles. 3. Indiferença13 frente às pretensões da metafísica, que

certo sinais e premonições que apareceram há algum tempo sobre o horizonte das ciências” (grifos no original). Desta passagem, que data de 1776, portanto cinco anos antes da primeira Crítica, podemos ver ainda que Kant já concebia a situação da metafísica como o “teatro das disputas infindáveis”, levando a antinomias, que só podem ser dissolvidas por um “despertar”, similar ao que atravessou a matemática, que então estava sendo apontado pelos sinais no “horizonte das [demais] ciências”. A propósito, cf. CASSIRER, 1993, pp. 555ss, pp. 565ss.

6 Vale ressaltar que a metafísica dogmática possui método (análise) e critérios (lógicos, como princípio de não--contradição, etc.), porém, eles são insuficientes. Sobre isso, Kant já parece estar convencido em 1763, no Ensaio para introduzir a noção de grandezas negativas em filosofia, Observação geral, II 202ss, cf. KANT, 2005, pp. 96-9; cf. também CASSIRER, 1993, op. cit., pp. 555-6: “El ensayo sobre las Magnitudes negativas terminaba trazando una línea divisoria entre el reino de los conceptos y el reino del ser. El principio de contradicción no sirve para expresar ni resolver los problemas planteados por la existencia empírica. La filosofía wolffiana buscaba el criterio de la realidad en la ordenación y la trabazón de lo concreto, pero ahora se ve que estas características lógicas resultan insuficientes, si a ellas no vienen a añadirse otros factores y criterios “materiais”.”

7 CRP, A IX.

8 CRP, B VIII. Cf. também Prol., A 5, p. 12,: “Parece quase ridículo que, enquanto todas as outras ciências progridem continuamente, ela ande constantemente às voltas no mesmo lugar, sem avançar um passo, ela que quer ser a própria sabedoria e cujos oráculos todos os homens consultam. Também os seus adeptos se dispersaram muito e não se vê que aqueles que se sentem suficientemente fortes para brilhar noutras ciências queiram arriscar nesta a sua fama, onde toda a gente, que, aliás, é ignorante em todas as outras coisas, se atribui um juízo decisivo porque, neste campo, não existe na realidade uma medida e um peso seguros para distinguir a profundidade da loquacidade trivial.”

9 CRP, B VIII – XVIII.

10 Prol. p. 16, A 11, 12.

11 Prol., p. 17, A 13, 14. Cf. também BONACCINI, 2003, p. 190, nota 9.

12 Prol., p. 144, A 164: “O cepticismo, na sua origem primeira, brota da metafísica e da sua dialéctica indisciplinada.”

13 CRP, A X. Vale notar que este indiferentismo é uma consequência, para Kant, do espírito iluminista, que a tudo

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não consegue repetir os resultados das outras ciências14, a despeito de sua antiguidade e de suas repetidas tentativas.

A conjunção destes três fatores forma o contexto da metafísica tal como Kant o encontrou. São peças de um quebra-cabeça que nunca se encaixam. E Kant não será outro a tentar uma nova organização com a esperança de finalmente encontrar a que complete perfeitamente a posição destas peças. Ao contrário, ele está convencido de que é preciso jogar com outro tabuleiro. Para isso, no entanto, ele precisa antes provar o porquê da necessidade de mudar o jogo e suas peças. Em outras palavras, mais corretas, ele precisa mostrar porque a metafísica, até então, descambava para as consequências funestas que explicitamos, ou ainda, por que o fracasso da metafísica em sua pretensão de cientificidade não é um resultado contingente, mas antes uma consequência necessária de princípios ou pressupostos falsos de que partiram os dogmáticos.

Embora seja habitual julgar que a necessidade dos fracassos da metafísica devia-se à falta de um método (adequado) e de critérios universais, que per-mitiriam estabelecer os limites do objeto e das investigações desta ciência (juízo que se vale de uma analogia com as ciências bem-sucedidas e que de certa forma faz parte da colocação do problema por parte de Kant), pensa-mos 15que esta é uma caracterização negativa, revelando antes as consequên-cias do que a causa. O ponto é que para elaborar um método adequado e estabelecer critérios seguros e universais, sem recorrer no erro das tentativas pré-críticas, é necessário saber por que o método e os critérios anteriores eram falhos, enfim, saber quais os pressupostos e princípios do modo anterior de fazer metafísica.

Em carta a Garve, datada de 21 de novembro de 1798, Kant indica que sua investigação crítica começou e foi motivada pelas antinomias:

A antinomia da razão pura – ‘o mundo tem um começo; ele

submete ao tribunal da razão: “Porém, esta indiferença, que se produz no meio do florescimento de todas as ciên-cias e ataca precisamente aquela, a cujos conhecimentos, se pudéssemos adquiri-los, renunciaríamos com menos facilidade do que a qualquer outro, é um fenômeno digno de atenção e de reflexão. Evidentemente que não é efeito de leviandade, mas do juízo amadurecido da época, que já não se deixa seduzir por um saber aparente...” (grifo do original). E que, diferentemente das outras duas consequências indicadas, aponta para um novo começo (CRP, A X): “Agora, depois de serem tentados todos os caminhos (ao que se vê) em vão, reina o enfado e um in-diferentismo, que engendram o caos e a noite nas ciências, mas também, ao mesmo tempo, são origem, ou pelo menos prelúdio, de uma próxima transformação e de uma renovação dessas ciências, que um zelo mal entendido tornara obscuras, confusas e inúteis”.

14 Com exatidão, da Lógica, da Matemática e da Física.

15 Pensamos com BONACCINI, 2003, pp. 169-70.

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não tem nenhum começo’, e assim por diante, até à quarta: ‘há liberdade no homem’ contra ‘não há nenhuma liberdade, só a necessidade da natureza’ – é o que primeiro me acordou de meu sono dogmático e me dirigiu à Crítica da razão pura, para resolver o escândalo da ostensiva contradição da razão consigo mesma.16

Outras passagens17 parecem abonar esta interpretação18, qual seja, de que o diagnóstico kantiano acerca da razão do fracasso metafísico está fundado na análise das antinomias. A metafísica redunda em antinomias, isto porque tenta responder, com o uso da razão pura, a questões que ultrapassam os limites da experiência possível. Como já vimos, isto ocorre porque a metafísica é justamente a ciência que deve tratar das questões que ultrapassam os objetos sensíveis:

...os meus princípios que fazem das representações dos sentidos fenómenos, em vez de transformarem a verdade da experiência em simples aparência, são antes o único meio de evitar a ilusão transcendental mediante a qual a metafísica, desde sempre, se iludiu e foi induzida aos esforços infantis de agarrar bolas de sabão, porque se tomavam os fenómenos, que são simples

16 KANT, 1910, XII, 257-258. Grifos nossos. Também citada, com algumas diferenças, por LEBRUN, 1993, p. 95: “Meu ponto de partida não foi a investigação da existência de Deus, da imortalidade, etc., mas a Antinomia da razão pura... foi ela que me despertou pela primeira vez do sono dogmático e me levou à crítica da própria razão, para fazer cessar o escândalo de uma aparente contradição da razão consigo mesma”. É pertinente, ainda, notar a explicação de Rubens Rodrigues TORRES FILHO, 2004, p. 37, sobre a expressão “sono dogmático” – por ocasião da análise de outra passagem de Kant, mais célebre, na qual o despertar crítico é consagrado à “advertência de David Hume” sobre a justificação do princípio de causalidade, na qual “sono” (Schlummer) quer dizer mais propriamente “sono pesado, letargia, ou, mesmo, modorra”.

17 CRP, A XII-XIII: “Assim, enveredei por este caminho, o único que me restava seguir e sinto- me lisonjeado por ter conseguido eliminar todos os erros que até agora tinham dividido a razão consigo mesma, no seu uso fora da experiência. Não evitei as suas questões, desculpando-me com a impotência da razão humana; pelo con-trário, especifiquei-as completamente, segundo princípios e, depois de ter descoberto o ponto preciso do mal--entendido da razão consigo mesma, resolvi-as com a sua inteira satisfação”. B 22-23: “Como, porém, até agora todas as tentativas para dar resposta a essas interrogações naturais, como seja, por exemplo, se o mundo tem um começo ou existe desde a eternidade, etc., sempre depararam com contradições inevitáveis, não podemos dar-nos por satisfeitos com a simples disposição natural da razão pura para a metafísica, isto é, com a faculdade pura da razão, da qual, aliás, sempre nasce uma metafísica (seja ela qual for); pelo contrário, tem que ser possível, no que se lhe refere, atingir uma certeza: a do conhecimento ou ignorância dos objetos, isto é, uma decisão quanto aos objetos das suas interrogações ou quanto à capacidade ou incapacidade da razão para formular juízos que se lhes reportem; consequentemente, para estender com confiança a nossa razão pura ou para lhe pôr limites seguros e determinados. Esta última questão, que decorre do problema geral acima apresentado, poderia justamente formular-se assim: como é possível a metafísica enquanto ciência? B 434, A 408; cf. também A 413-24 (sic), B 451-2. Ver ainda GUYER, 1987, pp. 385ss.

18 Que foi defendida, ou pelo menos enunciada, pela primeira vez por ERDMANN, B. Die Entwicklungsperioden von Kants theoretischer Philosophie. In: Reflexionen Kants zur kritischen Philosophie (1882-1884), Stuttgart: Frommann-Holzboog, 1992, p. xxviii; apud FIGUEIREDO, V. Apresentação, in: KANT, 2005, pp. 15-6.

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representações, por coisas em si mesmas; daí se seguiram to-das aquelas ocorrências curiosas da antinomia da razão, que mencionarei mais adiante, e que se encontra suprimida por esta simples observação, a saber, que o fenómeno, enquanto for utilizado na experiência, suscita a verdade, mas logo que ul-trapassa os limites da mesma e se torna transcendente produz apenas a aparência.19

Como a experiência não pode fornecer os objetos desta ciência, a metafísi-ca conta exclusivamente com o uso a priori de conceitos puros para respond-er às questões que a razão mesma se coloca, método que, como já foi apon-tado, seguia o juízo da época acerca da matemática. Assim, o insucesso – os resultados antinômicos – da metafísica equivale, para Kant, à legitimidade ou coerência da própria razão. Como a metafísica, com seu uso exclusivamente de conceitos a priori, acaba por redundar em antinomias, parece plausível investigar se não é a própria razão a causa do insucesso20, se não é ela mesma que leva, inevitavelmente, às contradições e aos resultados aporéticos:

Porque será então que ainda aqui não se encontrou o caminho seguro da ciência [metafísica]? Acaso será ele impossível? De onde provém que a natureza pôs na nossa razão o impulso incansável de procurar esse caminho como um dos seus mais importantes desígnios? Mais ainda: quão poucos motivos ter-emos para confiar na nossa razão se, num dos pontos mais importantes do nosso desejo de saber, não só nos abandona como nos ludibria com miragens, acabando por nos enganar! Ou talvez até hoje nos tenhamos apenas enganado no camin-ho; de que indícios nos poderemos servir para esperar, em no-vas investigações, sermos melhor sucedidos do que os outros que nos precederam?21

Assim, o problema que Kant tem de enfrentar é o de resolver as antino-mias, mostrar que a metafísica – conhecimento puro da razão – é possível como ciência, o que equivale a mostrar por que a metafísica dogmática cai em aporias e quais os princípios que a nova metafísica precisa adotar. Se este empreendimento for bem sucedido, Kant garante ao mesmo tempo a validez

19 Prol. A 69 (trad. port. p. 63).

20 CRP, B XV.

21 Idem.

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e consistência da própria razão pura.

2. A solução do problema

Mas como Kant pode criticar, para rechaçar ou validar, a possibilidade de um conhecimento racional puro senão pelo uso do mesmo? Não haveria aqui um círculo, que já de início inviabilizaria a solução do problema levantado por Kant? Se a razão pura é confusa e contraditória, seu autoexame também não o será?22 O ponto de partida da investigação de Kant, entretanto, é outro. Trata-se antes de analisar a possibilidade de um conhecimento a priori dos objetos da experiência do que a possibilidade do conhecimento dos objetos suprassensíveis23. Assim, o primeiro passo da investigação é, justamente, uma análise do modo de proceder dos conhecimentos que já encontraram a via segura da ciência. Kant quer saber, em um primeiro ponto, se os elementos da razão pura em geral operam e são a fonte do conhecimento necessário e universal a que chegam a lógica, a matemática e a física, portanto, do con-hecimento cuja validade não está posta em dúvida.

Mas o deslocamento da investigação dos objetos metafísicos para uma análise das ciências não serve apenas como uma estratégia para escapar do círculo supramencionado, ela é antes uma exigência da própria problemática que Kant enfrenta, uma vez que os dogmáticos buscavam alcançar o con-hecimento seguro na metafísica a partir do exemplo destas ciências. Segundo Kant24, a matemática representava a ciência-modelo para as pretensões dos

22 Dificuldade já apontada de maneira similar por Kant na Investigação sobre a evidência dos primeiros princí-pios da teologia natural e da moral, KANT, 2005, pp. 103-4: “Que modo de proceder, porém, deverá possuir este próprio tratado, em que se deve mostrar à metafísica seu verdadeiro grau de certeza, juntamente com a via pela qual aí se chega? Se esta exposição fosse, uma vez mais, metafísica, então seu juízo seria justamente tão inseguro quanto tem sido até agora essa ciência, que espera adquirir alguma constância e solidez graças a esta exposição, e tudo se poria a perder. Confiarei, por isso, a todo o conteúdo de meu tratado proposições empíricas seguras e consequências imediatas extraídas a partir delas. Não me fiarei nas doutrinas dos filósofos, cuja insegurança dá ensejo justamente à presente tarefa, nem nas definições, que enganam com tanta frequência” (grifos nossos).

23 Cf. Prol., p. 177, A 207, nota: “O idealismo propriamente dito teve sempre uma intenção mística e não pode ter outra; o meu idealismo, porém, visa simplesmente compreender a possibilidade do nosso conhecimento a priori dos objectos da experiência, problema que até agora não foi resolvido, nem sequer levantado” (grifos nossos).

24 CRP A 712, B 741: “A matemática fornece o exemplo mais brilhante de uma razão pura que se estende com êxito por si mesma, sem o auxílio da experiência”.

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metafísicos dogmáticos25. Estes26 entendiam que a matemática constituía-se tão-somente de proposições a priori analíticas (o que para eles era o mesmo), progredindo então pela simples análise, tendo o princípio de contradição como pedra de toque. O método bem-sucedido da matemática, então inter-pretado como absolutamente analítico, fez com que os metafísicos acreditas-sem que o mesmo era possível na sua pretensão de conhecimento de obje-tos que ultrapassam totalmente a nossa experiência. Poderíamos conhecer a origem do mundo, a simplicidade da alma, a existência de Deus, etc., a partir exclusivamente da análise de conceitos a priori. O resultado, no entanto, con-tinuou a ser antinômico. E, segundo Kant, não poderia deixar de ser, pois, de um lado, (1) essa concepção da natureza do conhecimento matemático é errada, por outro, (2) o uso que dela faziam os dogmáticos estava fundado numa falsa pressuposição.

Uma vez bem estabelecidos estes pares, voltemos aos dois pontos que, julgamos, são os essenciais para entender a importância nuclear, para o em-preendimento kantiano, da análise da matemática. O primeiro deles é a argu-mentação de Kant para mostrar que os dogmáticos estavam errados ao julgar que o conhecimento matemático é puramente analítico. De fato, diz Kant, as inferências matemáticas procedem segundo o princípio de contradição, mas disso não se segue que os axiomas sejam conhecidos por análise, pelo contrário, são juízos sintéticos a priori. Temos que, na aritmética, o conceito de doze não está contido o conceito da soma do 5 e do 7, e nem o contrário é possível. A proposição “5 + 7 = 12” só pode ser inferida a partir da presença das unidades 5 e 7 na intuição. Com os princípios da geometria pura ocorre o mesmo: do conceito de linha reta não posso extrair nada mais que qualidade, mas não quantidade; a proposição que diz ser a linha reta a menor distância entre dois pontos requer uma intuição do espaço, e é, portanto, sintética27. Dito ainda de outro modo, Kant argumenta aqui que os dogmáticos igno-raram o fato de que uma análise nada mais pode fazer senão decompor, des-

25 CRP, A 4, B 8: “Pois que uma parte desses conhecimentos, [como sejam os de] a matemática, há muito que é do domínio da certeza, dando assim favorável esperança para os outros, embora estes últimos possam ser de nature-za completamente diferente”. Cf. também CRP A 712ss, B 740ss. No Ensaio para introduzir a noção de grandezas negativas em filosofia, II 167, cf. KANT, 2005, p. 53, Kant distingue dois empregos filosóficos da matemática, quais sejam, imitação de seu método e aplicação de suas proposições aos objetos da filosofia. Em relação a este, Kant defendia ser de uso vantajoso; em relação ao primeiro, no entanto, seu juízo já era negativo.

26 O caso exemplar e fundamental parece ser Leibniz, que defendia que a matemática tem seu fundamento ex-clusivamente em definições e no princípio de contradição, portanto, que ela é absolutamente analítica (cf. Novo ensaio sobre o entendimento humano, livro IV, cap. VII), apud HÖFFE, 2005, pp. 53-4.

27 CRP A 10ss, B 14ss; Prol., A 26ss, pp. 26ss.

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membrar, o conceito28, que, contudo, pressupõe algo a que se refere, o qual só pode nos ser dado através de uma intuição. A impossibilidade desta concep-ção para os pensadores pré-críticos, entretanto, acontecia porque para eles a tese de que os axiomas da matemática são fundados na intuição implicava que ela seria, então, a posteriori, o que vale dizer, sem necessidade e univer-sidade restritas (sendo que estas qualidades serviam de ponto de partida para as suas pretensões). No entanto, a filosofia transcendental de Kant assegura o caráter necessário e universal da matemática, pois os conceitos fundamentais desta são dados na intuição pura.

Assim, para Kant, a matemática constrói seus conceitos29, com o auxílio da imaginação, a partir da forma da intuição pura30, a saber, do tempo. Por tanto, há sempre uma pedra de toque para validar ou não estes conceitos, a saber, a forma da intuição, que, para Kant, é em nós sensível (leia-se passível). No conhecimento metafísico, todavia, opera-se apenas com meros conceitos, sem a possibilidade de apresentá-los em uma intuição correspondente, como acontece na matemática, geometria ou física pura, isto porque seus objetos não são, por definição, sensíveis31. Só seria possível apresentar um correlato intuitivo, isto é, real, aos conceitos racionais metafísicos em uma intuição não sensível, o que vale dizer, numa intuição que nós não possuímos.

Num segundo momento, o ganho da análise da matemática é o da desc-oberta do pressuposto que tornava os princípios dogmáticos responsáveis pelo fracasso da metafísica como ciência: Tais princípios pressupunham que seria possível avançar no conhecimento de objetos metafísicos a partir de meras definições e análise conceitual, o que vale dizer – parte-se do princí-pio de que é possível conhecer as coisas tais como elas são em si mesmas, isto é, seria possível ter acesso à essência – o que o ser é em absoluto, em si mesmo – dos objetos. Este princípio é o que torna possível as pretensões

28 Prol., A 72, p. 65.

29 CRP, A 713ss, B 741ss: “O conhecimento filosófico é o conhecimento racional por conceitos, o conhecimento matemático, por construção de conceitos. Porém, construir um conceito significa apresentar a priori a intuição que lhe corresponde. Para a construção de um conceito exige-se, portanto, uma intuição não empírica que, consequentemente, como intuição é um objeto singular, mas como construção de um conceito (de uma repre-sentação geral), nem por isso deve deixar de exprimir qualquer coisa que valha universalmente na representação, para todas as intuições possíveis que pertencem ao mesmo conceito”.

30 Similar é a análise da “ciência da natureza”. Em CRP B 17 – B 18, Kant cita exemplos de juízos sintéticos a priori da física, por exemplo, em todas as mudanças no mundo corpóreo a quantidade de matéria permanece imutável, sendo que no conceito de matéria não está contido o predicado de permanência. A propósito, ver também Prol., A 73ss, pp. 66ss.

31 Ainda a propósito das diferenças entre os juízos metafísicos e os da matemática e os da física, cf. CRP, A 736, B 764.

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dogmáticas de conhecer objetos, os quais não temos acesso sensível, posto que são inteligíveis, por meio de meros conceitos e análise. Mas, como já salientamos, este pressuposto funda-se, para Kant, num juízo errado acerca do modus operandi da matemática, que, emprestado à metafísica, desemboca em antinomias e na falta de um critério de decidibilidade satisfatório32.

A proposta de solução dada por Kant parte novamente da análise das ciências que, a seu ver, já encontraram “a via segura da ciência”33. Elas tam-bém passaram por períodos de “mero tateio”34, até que então, por meio de uma revolução súbita do modo de pensar35, alcançaram final e definitiva-mente a estabilidade e segurança que agora gozam. O juízo de Kant é o de que esses domínios bem-aventurados do saber humano só foram possíveis quando se compreendeu que

a razão só entende aquilo que produz segundo os seus próprios planos; que ela tem que tomar a dianteira com princípios, que determinam os seus juízos segundo leis constantes e deve for-çar a natureza a responder às suas interrogações em vez de se deixar guiar por esta.36

Com isso, entende-se que o nosso conhecimento não pode partir ou reg-ular-se apenas com o que nos é dado, posto que assim não conheceríamos nada a priori das coisas, portanto, nenhum conhecimento necessário e uni-versal seria possível. Ao contrário, as ciências atestam que antes é necessário ter um plano prévio, orientar-se com princípios e critérios que determinem o que se quer descobrir.

A metafísica deve abandonar o princípio que reza que as coisas-em-si-mesmas nos são dadas, de alguma forma, e então apenas a partir disso

32 CRP, A 740, B 768; Prol. A 212-3, p. 181: “As outras ciências e os outros conhecimentos possuem, contudo, o seu padrão. A matemática tem o seu em si mesma, (...) Mas, para julgar a coisa que se chama metafísica, deve primeiro encontrar-se o padrão (fiz uma tentativa para o determinar a ele e ao seu uso). Que há, pois, a fazer até ele ser encontrado, se, não obstante, importa avaliar escritos deste gênero? Se eles são de tipo dogmático, pode agir-se como se quiser: aqui ninguém se erigirá em mestre relativamente a outros, se se encontrar alguém que lhe pague na mesma medida. Se, porém, são de natureza crítica, visando não outros escritos, mas a própria razão, de maneira que o padrão de avaliação não pode já ser adoptado, mas deve primeiramente ser procurado, podem, neste caso, admitir-se objecções e censuras; a compatibilidade, porém, deve estar na base, porque a necessidade é comum e a carência de conhecimento necessário torna inadmissível a atitude decisiva de um juiz”.

33 CRP, B VII.

34 Idem, ibidem.

35 Idem, B XII.

36 Idem, B XIII.

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regulamos nosso conhecimento delas. Antes, ela deve seguir o exemplo de Copérnico, que, segundo Kant, tentou ver se não teria mais sucesso em suas investigações ao postular que o expectador gira em torno dos objetos (ce-lestes), e não o contrário37. Ela deve, enfim, tentar uma inversão completa do ponto de partida. Isto quer dizer que deve abandonar o princípio de que nossa intuição regula-se pelos objetos que nos são dados. Com efeito, diz Kant38, é um contrassenso imaginar que podemos conhecer algo a priori do objeto (vale dizer, absolutamente a priori, portanto, o único modo de ter deles um conhecimento necessário e universal39), se dependemos que ele nos seja dado. Só podemos pretender conhecer algo a priori de objetos se puder-mos ter acesso a algo deles antes que nos sejam dados40.

Contudo, como já indicamos, essa possibilidade era inconcebível para um pensador pré-kantiano, pois não haveria outro modo de ter acesso intuitivo aos objetos empíricos senão quando eles nos fossem dados. Ter um acesso intuitivo, isto é, sensível, de objetos empíricos, significava somente e exclu-sivamente que eles nos afetam empiricamente. Portanto, não se afigurava de modo algum como seria possível saber intuitivamente algo a priori do objeto. A alternativa kantiana só é possível com a teoria transcendental da intuição, ou seja, com a concepção de que a intuição contém formas puras, tempo e espaço. Na próxima seção do nosso texto, investigaremos qual é a fundamentação que a Estética Transcendental dá a essa teoria das formas puras da intuição.

Mas não basta apenas pensar a possibilidade de ter acesso a priori a algo

37 Idem, B XVII: “Trata-se aqui de uma semelhança com a primeira ideia de Copérnico; não podendo prosseguir na explicação dos movimentos celestes enquanto admitia que toda a multidão de estrelas se movia em torno do espectador, tentou se não daria melhor resultado fazer antes girar o espectador e deixar os astros imóveis”.

38 Idem, ibidem: “Ora, na metafísica, pode-se tentar o mesmo, no que diz respeito à intuição dos objetos. Se a intuição tivesse de se guiar pela natureza dos objetos, não vejo como deles se poderia conhecer algo a priori; se, pelo contrário, o objeto (enquanto objeto dos sentidos) se guiar pela natureza da nossa faculdade de intuição, posso perfeitamente representar essa possibilidade”.

39 Idem, B 3: “Em primeiro lugar, se encontrarmos uma proposição que apenas se possa pensar como necessária, estamos em presença de um juízo a priori; se, além disso, essa proposição não for derivada de nenhuma outra, que por seu turno tenha o valor de uma proposição necessária, então é absolutamente a priori. Em segundo lugar, a experiência não concede nunca aos seus juízos uma universalidade verdadeira e rigorosa, apenas universalidade suposta e comparativa (por indução), de tal modo que, em verdade, antes se deveria dizer: tanto quanto até agora nos foi dado verificar, não se encontram exceções a esta ou àquela regra. Portanto, se um juízo é pensado com rigorosa universalidade, quer dizer, de tal modo que, nenhuma exceção se admite como possível, não é derivado da experiência, mas é absolutamente válido a priori” (grifos no original).

40 Idem, B XVI: “Tentemos, pois, uma vez, experimentar se não se resolverão melhor as tarefas da metafísica, admitindo que os objetos se deveriam regular pelo nosso conhecimento, o que assim já concorda melhor com o que desejamos, a saber, a possibilidade de um conhecimento a priori desses objetos, que estabeleça algo sobre eles antes de nos serem dados”.

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dos objetos sensíveis, no caso, de suas formas, pois o conhecimento cientí-fico depende não apenas desse acesso, é necessário também que se chegue a conceitos, regras e leis aos quais eles estão, necessária e universalmente, sub-metidos. Ora, se estes conceitos e regras dependem do que conhecemos dos objetos, portanto, de que eles nos sejam dados, novamente torna-se impos-sível ter conhecimento absolutamente a priori deles. Assim, faz-se necessário que também os conceitos e princípios sejam algo que o investigador já tem de antemão à sua pesquisa dos objetos empíricos41, que são a condição de pos-sibilidade desta forma de conhecimento. Portanto, Kant precisa igualmente de uma teoria da fonte a priori dos conceitos e princípios, o que ele apresenta na Analítica Transcendental.

Uma vez que estes dois passos estejam fundamentados, Kant leva a cabo a revolução copernicana em filosofia, o que quer dizer: só conhecemos das coisas aquilo que nós mesmos lhes atribuímos: formas puras da intuição e regras universais e necessárias, posto que fundadas em categorias a priori. Essa tese tem, por sua vez, o seguinte princípio: só conhecemos fenômenos, nunca as coisas como elas são em si mesmas, isto é, independentes das con-dições transcendentais. Desta forma, o sucesso do projeto kantiano depende da solução satisfatória do problema do conhecimento a priori42, ou seja, que a distinção entre fenômenos e coisas-em-si-mesmas dissolva as contradições (que então se mostrarão aparentes, pois só existem como consequência de um falso princípio, o de que é possível o conhecimento das coisas-em-si-mesmas) da razão pura43.

Bem entendida, a tese do idealismo transcendental quer provar que não

41 Idem, B XVIII.

42 As objeções de Jacobi a Kant procuram tocar nesta ferida: a distinção transcendental entre fenômeno e coisa--em-si não resolve o problema do conhecimento, o que se evidencia, para Jacobi, no resultado aporético desta distinção, assim como em duas consequências funestas, o ceticismo (nossa ignorância das coisas como são em si) e o solipsismo (só temos acesso a meras representações).

43 Idem, B XIX-XX: “Porém, a verdade do resultado que obtemos nesta primeira apreciação do nosso conhecimen-to racional a priori é-nos dada pela contraprova da experimentação, pelo fato desse conhecimento apenas se referir a fenômenos e não às coisas em si que, embora em si mesmas reais, se mantêm para nós incognoscíveis. Com efeito, o que nos leva necessariamente a transpor os limites da experiência e de todos os fenômenos é o incondicionado, que a razão exige necessariamente e com plena legitimidade nas coisas em si, para tudo o que é condicionado, a fim de acabar, assim, a série das condições. Ora, admitindo que o nosso conhecimento por experiência se guia pelos objetos, como coisas em si, descobre-se que o incondicionado não pode ser pensado sem contradição; pelo contrário, desaparece a contradição se admitirmos que a nossa representação das coisas, tais como nos são dadas, não se regula por estas, consideradas como coisas em si, mas que são esses objetos, como fenômenos, que se regulam pelo nosso modo de representação, tendo consequentemente que buscar-se o incondicionado não nas coisas, na medida em que as conhecemos (em que nos são dadas), mas na medida em que as não conhecemos, enquanto coisas em si; isto é uma prova de que tem fundamento o que inicialmente admitimos à guisa de ensaio”.

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é possível um conhecimento que ultrapasse os limites da nossa experiência possível, isto é, um uso de conceitos que extrapola as possibilidades de refer-ência a representações sensíveis, portanto, a objetos que podem ser apresen-tados a nossa sensibilidade. Contudo, os conceitos de nosso entendimento e as formas de nossa sensibilidade nada mais são que a parte formal do con-hecimento, sendo necessário que a sua parte material nos seja, de alguma forma, dada. Assim, a afirmação de que conhecemos fenômenos implica que pensemos as coisas em si mesmas, sem as quais não haveria a parte material daqueles. Nas palavras de Kant, temos que pensar as coisas-em-si-mesmas como fundamento dos fenômenos, caso contrário “seríamos levados à prop-osição absurda de que haveria fenômeno (aparência), sem haver algo que aparecesse”44.

Consequentemente, a distinção transcendental entre as coisas tal como elas nos aparece (sob as formas de nossas condições intelectuais e sensíveis) e tal como elas são em-si-mesmas (abstração feita das condições formais) implica a distinção entre conhecer e pensar os objetos. O conhecimento de-pende da referência possível dos conceitos à experiência, isto é, à pedra de toque que garante a existência dos objetos aos quais os conceitos de referem. O pensamento, no entanto, não tem de se comprometer com a realidade sensível dos seus objetos, isto é, a que pode ser comprovada, mas apenas com a sua possibilidade. Uma vez que a experiência sensível é a única pedra de toque a que temos acesso para verificação da existência de objetos, à falta dela não é possível afirmar ou negar a existência dos objetos a que fazem referência os conceitos que são meramente pensados.

A referência a um âmbito inteligível, no entanto, é necessária, pois, sem ela, teríamos de admitir ou bem que o conhecimento é impossível, tendo-nos de haver apenas com meras representações subjetivas, o que equivale ao solipsismo, ou bem que conhecemos as coisas tais como elas são, o que, como vimos, leva o pensamento a antinomias insolúveis. O argumento de Kant, ao contrário, é o de que temos efetivamente conhecimento objetivo das coisas, isto é, um conhecimento necessário e universal, mas apenas das coisas como aparecerem para nós, isto é, sob as condições formais necessárias. As-sim, para Kant, é possível o conhecimento objetivo se consideramos que ele está fundado na relação do conteúdo material do conhecido com a forma a priori – universal e necessária – do conhecedor. Conceber, contudo, que o conhecimento se dá na relação do que é dado com o que é ordenador implica necessariamente em conceber algo que pode ser dado, isto é, à parte de sua

44 Idem, B XXVI-XXVII.

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relação efetiva com nós. Desta forma, não obstante a impossibilidade de con-hecermos as coisas fora das suas relações com nós, pensá-las em si mesmas – incondicionadas – é uma exigência da própria distinção transcendental.

Retomando brevemente o que foi dito neste capítulo, temos que (1) a situação factual da metafísica, tal como Kant a entendeu, era de uma luta interminável entre sistemas, (2) esta diversidade e a falta de um critério para decidir entre as teorias acabavam por levar ao ceticismo, à indiferença e ao apelo ao senso-comum, enfim, ao fracasso das pretensões de cientificidade em metafísica, (3) este resultado factual não se devia a erros ou imperfeições internas, mas ao fato das diversas teorias partirem de um princípio comum injustificado, (4) o πρωτον ψευδος dos dogmáticos constituía-se no pres-suposto de que é possível conhecer as coisas tal como elas são em si mesmas, (5) esse pressuposto incluía uma compreensão errônea do sucesso das demais ciências, em especial da matemática, cujos critérios e método eram assimilados à investigação metafísica, (6) a aposta de solução por parte de Kant começa com uma nova compreensão do sucesso das demais ciências, em especial, da matemática; ela concebe que os princípios matemáticos são sintéticos, mas a priori, o que implica por sua vez uma nova teoria acerca da intuição e do entendimento, (7) esta análise do modus operandi da matemática levou Kant a conceber que só podemos conhecer, de modo universal e necessário, das coisas aquilo que nós mesmo nelas colocamos, o que significa dizer que só conhecemos os fenômenos – condicionamento das coisas em relação às formas e conceitos presentes a priori no sujeito do conhecimento –, mas não as coisas-em-si-mesmas e, por fim, (8) que as coisas-em-si-mesmas, não obstante sua incognoscibilidade para nós, precisam necessariamente ser pen-sadas, pois do contrário a própria distinção proposta deixaria de existir e apenas com ela define-se rigorosamente o que pode ou não ser conhecido.

3. Coisa-em-si como númeno

Kant, no capítulo III da Analítica dos Princípios, intitulado Do princípio da distinção de todos os objetos em geral em fenômenos e númenos45, retoma a análise da distinção entre fenômeno e coisa-em-si, agora lida à luz dos ganhos da Estética e da Analítica transcendentais. A ênfase da argumentação kantiana concentra-se, agora, sobre o caráter problemático e, ao mesmo

45 Aqui e no restante do texto, usamos o termo noumena na grafia aportuguesada “númenos”, seguindo a tradu-ção da primeira Crítica usada por nós, cf. KANT, 2001.

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tempo, sobre a função reguladora do conceito (que é exigida pelas próprias necessidades de sistematicidade do saber positivo, isto é, fenomênico) de coi-sas-em-si. Retomemos os passos da argumentação kantiana, com o objetivo de tornar mais clara a significação transcendental do conceito de coisa-em-si em sentido numênico, em especial, ao sentido negativo do mesmo.

Para Kant, há duas faculdades necessárias para o conhecimento: a sensibi-lidade e o entendimento. A sensibilidade é o que torna possível as intuições. Ela tem duas formas a priori, isto é, condições de possibilidade da própria intuição, o que está no sujeito e não no objeto: tempo e espaço. Já o en-tendimento é constituído por doze categorias ou conceitos puros (unidade, pluralidade, causalidade, etc.). Estas são as formas e conceitos puros, tran-scendentais (anteriores à experiência), das duas faculdades. O conhecimento, propriamente dizendo, só se dá com a aplicação das categorias do entendi-mento aos dados recebidos (isto é, por afecção) pela intuição.

Segundo Kant, a metafísica não tomou “a via segura da ciência” por fazer um uso indiscriminado das nossas faculdades, isto é, por não respeitar os limites do conhecimento. Estes terminam onde termina a experiência pos-sível. Em outras palavras, só é possível o conhecimento quando os conceitos são aplicados a intuições sensíveis (veremos que Kant nega outra forma de intuição).

No entanto, não é apenas àquele mau uso do entendimento pela metafísi-ca (uso além da experiência) que Kant protesta, igualmente o faz àquele que se limita ao uso empírico do entendimento:

...o entendimento, que apenas se ocupa do seu uso empírico, que não reflete sobre as fontes do seu próprio conhecimento, pode, é certo, progredir muito, mas não pode determinar para si próprio as fronteiras do seu uso, e saber o que é possível encontrar dentro ou fora da sua esfera inteira, pois para tanto se requerem as indagações profundas que temos realizado.46

É preciso, pois, investigar quais os limites da experiência e do uso empírico do entendimento, é preciso saber as possibilidades do “dentro ou fora”. Esta investigação, portanto, é uma necessidade do trabalho crítico. Vejamos como isso se dá.

O uso empírico do entendimento é o que remete simplesmente aos fenô-menos; o uso transcendental é aquele que remete um conceito a objetos “em

46 CRP, B 297.

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geral ou em si”, isto é, a objetos não dados na intuição, na experiência47. Há, por-tanto, dois tipos de objetos: objetos da experiência, chamados então de “seres dos sentidos (phaenomena)”; e objetos em geral ou em si, sem correspondentes na experiência, chamados então de “seres do entendimento (noumena)”48.

Para que haja conhecimento, como já foi dito, é necessário um objeto empírico que corresponda ao conceito do entendimento – isto é, um uso empírico do entendimento. No uso transcendental, ao contrário, não há este objeto, pois, como vimos, neste o objeto é pensado em si ou em geral, sem correspondente na experiência, o que torna impossível o conhecimento a partir deste uso do entendimento. Por isso, Kant é enfático ao dizer que o uso transcendental não possui validade, pois “é completamente vazio de conteúdo”49. Sem o objeto empírico, o uso dos conceitos “são um mero jogo (blosser Spiel), quer da imaginação, quer do entendimento, com suas respec-tivas representações”50.

Contudo, embora esteja estabelecido que o uso transcendental do en-tendimento (como vimos: mero jogo de conceitos puros) é vazio de conteúdo – isto é, verdadeiramente não possui um uso, pois a partir dele é impossível qualquer conhecimento –, Kant atribui a ele significado (Bedeutung), mais precisamente: significado transcendental51. Este, pensamos, deve ser entendi-do como um significado puramente subjetivo, pois como uso transcendental prescinde de determinação objetiva (dados da intuição).

Os númenos podem ser entendidos em dois sentidos: negativo e positivo. Quando pensamos objetos que não estão dados à intuição, isto é, os objetos a partir da abstração da nossa faculdade intuitiva, temos um númeno em sentido negativo. Mas se pensamos objetos como pertencentes a uma intuição que não a sensível, mas a uma outra forma de intuição, a intelectual, então temos um númeno em sentido positivo52. Ora, uma intuição intelectual, diz Kant, não é possível para nós, portanto, não é possível o númeno em sentido positivo53. Resta-nos, pois, a possibilidade de pensar o númeno em sentido negativo.

Esta possibilidade de pensar o númeno em sentido negativo Kant en-

47 Idem, B 298.

48 Idem, B 306.

49 Idem, B 298.

50 Idem, B 298-9.

51 Idem, B 305.

52 Idem, B 307.

53 Idem, B 308.

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tende como problemática. Vejamos o que isto significa. Um conceito puro do entendimento segue apenas a regra de não-contradição, mas, referindo-se a um objeto em si, isto é, sem o dado da intuição, não pode possibilitar conhecimento. Pensá-lo, todavia, é necessário “para não alargar a intuição sensível até às coisas-em-si e para limitar, portanto, a validade objetiva do conhecimento sensível”54. Em outras palavras: um objeto de um conceito puro pode ser não contraditório, mas ainda assim é inexistente, caso não tenha um correlato objetivo, um dado da intuição sensível. Este pensamento, portanto, embora não fira a regra lógica do entendimento, é vazio, puro, formal, e não pode ser usado assertoricamente55. Mas ele serve-nos, como vimos, para de-limitar a possibilidade de conhecimento. Por isso, o filósofo nos diz que ele, o conceito de númeno em sentido negativo, é um conceito-limite, necessário para melhor limitar o âmbito do conhecimento, ainda que sem conteúdo.

Depois de percorrer esta argumentação, interessa-nos salientar que Kant resguarda um significado (transcendental) ao “mero jogo” dos conceitos puros do entendimento, e com isso uma importância à esfera negativa de objetos:

Afastando-nos dos sentidos, como se pode tornar compreen-sível que as nossas categorias (únicos conceitos que restariam para os númenos) ainda signifiquem alguma coisa, se, para sua relação com qualquer objeto, tem de ser dado algo mais que a simples unidade do pensamento, nomeadamente uma intuição possível a que sejam aplicadas? O conceito de um nú-meno, tomado apenas como problemático, é, todavia, não só admissível, mas também inevitável como conceito limitativo da sensibilidade. (...) O nosso entendimento recebe, deste modo, uma ampliação negativa, porquanto não é limitado pela sen-sibilidade, em virtude de denominar númenos as coisas-em-si (não consideradas como fenômeno).56

4. Breve conclusão

Neste percurso, buscamos determinar (i) a origem da formulação do prob-lema de Kant, que identificamos com a análise da situação factual da metafísi-

54 Idem, B 310.

55 Idem, ibidem.

56 Idem, B 312.

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42 Metafísica: Fundamentação e Crítica

ca tal como ela foi diagnosticada por Kant, a saber, em estado antinômico; (ii) a solução kantiana funda-se na dupla consideração dos objetos, ora como fenômenos, ora como coisas-em-si, com a seguinte tese implicada: só con-hecemos os fenômenos, isto é, os objetos tal como eles nos aparecem (lendo-se: o objeto submetido às condições de possibilidade transcendentais do con-hecimento humano, ou seja, por intuição sensível e por conceitos puros do entendimento); as coisas-em-si, isto é, os mesmos objetos agora tomados em outra acepção, a que justamente abstrai das condições necessárias de con-hecimento por parte do sujeito racional finito, podem e devem ser pensadas, mas nunca nos são propriamente conhecidas; por fim, que (iii) o conceito de coisa-em-si é, ao fim da Analítica Transcendental, redimensionado e resig-nificado, através de duas considerações: (a) coisa-em-si pode ser ou o objeto existente em-si-mesmo, tal como o tomam os dogmáticos, especialmente o realista dogmático, ou enquanto objeto puramente pensado, indeterminado, isto é, numênico; este último sentido, o de coisa-em-si enquanto númeno, é (b) depurado em dois sentidos básicos: positivo e negativo; o númeno posi-tivo é o objeto próprio da intuição intelectual (que, para nós, seres racionais finitos, só pode ser, no máximo, pensada), o númeno negativo é simplesmente o conceito-limite necessário para determinar com máximo rigor os limites do conhecimento sensível.

Referências Bibliográficas

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João Carlos Lourenço CaputoMestrando em Filosofia / Universidade Federal do Paraná[email protected]

Voltaire e os Limites da Metafísica ouA Metafísica dos Escombros

Resumo O presente artigo tem por objetivo investigar na obra de Voltaire a crítica contra a metafísica tradicional e tentar encontrar elementos de distinção entre esta metafísica criticada e uma metafísica que permanece nos textos do autor considerada como sã, mesmo após o processo de crítica. Para tanto, nos ateremos à questão sobre Deus, que será usada como modelo de questão metafísica, tentando encontrar nela estes elementos de crítica bem como aqueles de distinção entre a metafísica rejeitada e aquela sadia.

Palavras-chave Voltaire, Deus, Metafísica, Iluminismo.

Voltaire foi um crítico da metafísica tradicional, sempre atacando os filósofos de sistema como Descartes, Malebranche e Leibniz ao mesmo tempo em que oferecia uma filosofia empirista inspirada em Locke para suplantar o velho modelo racionalista dos sistemas. Será que com esta crítica ferrenha do autor do Cândido poderia sobrar algo de metafísico inserido em sua própria filosofia ou restariam apenas escombros após o impacto da ironia do patriarca de Ferney?

Até que ponto se estende a crítica de Voltaire à metafísica, e quais elementos metafísicos permanecem em sua obra após a crítica? Na tentativa de responder a estas questões, tomaremos a discussão sobre Deus como caso paradigmático na obra de nosso autor e tentaremos encontrar, através da análise desta questão, os pontos propostos por nossa investigação.

Vemos que existe uma preocupação moral que permanece como horizonte das investigações filosóficas de Voltaire, ou seja, toda questão importante e

artig

o

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digna de ser investigada tem consequências que implicam em questões morais. No entanto, por mais que possamos dizer que o fim almejado pelas investigações filosóficas seja dar conta de questões morais, questões como as de Deus se apresentam como fundamentais para que possamos entender melhor o próprio homem.

A pertinência desta investigação reside no fato de que a ideia de Deus, de forma alguma, é inerente aos homens, pois existem aqueles que nascem e morrem sem que jamais tenham contato com tal ideia, o que não seria possível caso ela fosse essencial ao gênero humano. Além disso, tal questão parece se apresentar como fundamento de outras investigações que Voltaire via como importantes. Tendo em vista a importância de sabermos se Deus realmente existe, seguiremos nossa investigação por este caminho, mostrando quais razões nosso autor usa para tanto.

A investigação sobre Deus agitou o espírito de Voltaire desde cedo. Se as Cartas Inglesas e seu exílio na Inglaterra em 1726 representam, talvez, a primeira apresentação filosófica do autor, seu deísmo desembarcou com ele em solo inglês, mas não foi encontrado apenas lá. Segundo Pomeau “D’Anglaterre Voltaire mande à Thiriot qu’il est en train d’ ‘apprendre à penser’. Qu’est-ce à dire? On ne peut prétendre que, débarqué chrétien sur le sol angais, Voltaire y devint deíste. Deíste, il l’était déjà.” (POMEAU, 1974 p.190).

Aluno do colégio jesuíta Luis le Grand, Voltaire foi educado nos moldes da Escola, que se tornaria um de seus alvos favoritos. A filosofia inglesa, apresentada a nosso autor por seu amigo inglês Milorde Bolingbroke, radicado em Paris, seria adotada por Voltaire e usada para rejeitar e atacar o cartesianismo e a filosofia escolástica que lhe foi ensinada pelos padres do colégio.

Não apenas a filosofia escolástica seria rejeitada por Voltaire, mas a própria doutrina cristã será fortemente combatida por ele. Grande conhecedor da bíblia e da história, Arouet realizará uma verdadeira cruzada intelectual anticristã. Se pautando em absurdos bíblicos encontrados durante seus estudos do livro sagrado, Voltaire escreverá uma série de textos lutando contra os dogmas e as intolerâncias religiosas, sobretudo as cristãs. Dentre estes textos de combate religioso, podemos citar as Questões sobre os milagres, O túmulo do fanatismo, Deus e os homens e o famoso Tratado sobre a tolerância. Todos estes textos seguem um certo padrão: Voltaire apresenta passagens bíblicas que representam verdadeiros absurdos ou grandes contradições, aliando-as a exemplos históricos que mostram a religião cristã como não revelada, ou seja, faz com que ela perca o sagrado, sendo muitas vezes exposta como imitação ou cópia de algum culto ou costume pagão.

De todo modo, o que nos importa aqui é frisar que, apesar de não ser ateu,

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Voltaire rejeita com muita força a tradição cristã e sua imagem de Deus. Para isso ele se empenha em apresentar uma visão do Ser supremo muito distinta daquela tradicional, se filiando à física de Newton e a uma análise detida da natureza, sendo ela a verdadeira via pela qual podemos chegar, mesmo que minimamente, à Deus. Numa frase emblemática de nosso autor, ele diz que “Un catéchiste enseigne DIEU aux enfants, et Newton le démontre aux sages.” (VOLTAIRE, 2006 p.327) Vejamos como Voltaire realiza tal projeto.

Antes de tirar as consequências e as relações entre Deus e o papel da metafísica na obra de nosso autor, será necessário prová-lo. No capitulo II do Tratado de Metafísica, a primeira e mais intuitiva prova que temos da existência de um ser divino são os fins e a ordem naturais que vemos no mundo. “(...) quando vejo um relógio cujo ponteiro marca as horas, concluo que um ser inteligente arranjou as molas dessa máquina para que o ponteiro marcasse as horas.” (VOLTAIRE, 1973d p.69). Analogamente ao famoso exemplo do relógio, podemos aplicar essa comparação à natureza e perceber que os fins e a ordem presentes nela nos dão uma inteligência superior que os ordenou de tal forma.

Outra prova apresentada por Voltaire para garantir a existência de Deus é a cadeia de criação, concepção que podemos derivar da existência de qualquer ser no mundo, pois se algo existe, ou esse algo existiu desde sempre, portanto é Deus1, ou recebeu a existência de outro ser, que por sua vez, ou existiu desde sempre ou foi criado, etc. Vemos que esta cadeia não pode regredir ao infinito, pois dessa forma não teríamos uma causa primeira e não haveria criação alguma. Disso resulta a necessidade de aceitarmos uma causa incausada. Este segundo argumento para provar a existência de Deus será para nosso autor um argumento “(...) mais metafísico, menos apto para a compreensão dos espíritos rudes.” (VOLTAIRE, 1973d p.70). Por outro lado, o primeiro argumento, da ordem e dos fins, será mais natural e de fácil acesso ao espírito. Contudo, as consequências que tiramos destes dois argumentos serão inversamente proporcionais ao seu nível de simplicidade. O primeiro argumento, mais simples e natural, nos permite apenas concluir que é provável que um ser inteligente tenha criado e ordenado o mundo. Já o segundo argumento, menos simples, nos permite extrair mais consequências dele2. Este ponto ficará mais claro mais adiante, quando tratarmos dos atributos divinos.

No entanto, poderiam replicar os materialistas, a matéria pode muito bem

1 Note-se que nesta prova fica evidente um dos pontos de divergência entre o Deus de Voltaire e oDeus cristão. Voltaire busca apenas um primeiro princípio, um primeiro motor, qualquer que seja ele.Esse primeiro princípio pode se apresentar muito distante do Deus pessoal cristão.

2 Cf. Voltaire, 1973d p. 69/70

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existir por si mesma desde sempre, sem receber sua existência de nenhuma causa exterior, organizando-se por si mesma. Para escapar desta objeção, Voltaire leva a circunstâncias extremas esta posição e lança mão de um engenhoso argumento. Visto que o todo material depende das partes e é composto por elas, se a matéria fosse necessária e tivesse existido desde sempre, cada menor parte do universo deveria ter sido como é atualmente desde sempre, ou seja, não haveria nenhum tipo de mudança no mundo, tudo deveria ser estático e nada deveria ser criado além do todo já existente, pois nesse caso cairíamos novamente na cadeia de criação.

Nos Elementos da filosofia de Newton Voltaire também toma a primeira de suas provas como a mais forte e convincente, pelo fato de ela ser uma prova sensível. A ordem do mundo, a adequação de certas causas a fins específicos pode ser constatada por qualquer olhar mais atento, o que, por outro lado, além de tornar tal prova extremamente persuasiva, pode fazer com que ela passe despercebida justamente por causa do seu caráter obvio.

Muitas pessoas talvez se espantem com o fato de que, dentre todas as provas da existência de Deus, a das causas finais seja a mais forte para Newton. O desígnio, ou antes, os desígn-ios infinitamente variados, que se revelam nas mais vastas e nas menores partes do universo, constituem uma demonstração que, por ser sensível, é quase desprezada por alguns filósofos. (VOLTAIRE, 1996 p.26).

Apesar de seu caráter óbvio, a prova da ordem e dos fins fala mais forte que qualquer outra, invalidando argumentações contra a prova da cadeia dos seres, pois por mais que objetem contra esta última, dizendo que na verdade não há cadeia de criação, que o universo é um todo composto de uma mesma substância, mesmo que possamos retrucar com novas respostas – o que prolongaria a disputa a perder de vista – a prova do desígnio sempre se imporia. A ordem presente no mundo físico, aos olhos de Voltaire, é inegável. No entanto, a primeira das provas (da ordem e finalidade do mundo) apresenta uma deficiência: não da conta da criação ex nihilo. Voltaire percebe esta brecha no argumento, apesar de sua predileção por ele. Nota Pomeau:

(...) le Traité est le seul texte où soit critiquée la démonstration par les causes finales; cet argument prouve sans doute l’exitence de Dieu ; mais il ne prouve pas la création ex nihilo, ni que Dieu soi <<infini em tout sens>>. Voltaire cherche donc une démonstration plus complète. (POMEAU, 1974 p.204).

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Esta deficiência no argumento da ordem do mundo teria sérias implicações na concepção de Deus voltairiana. Uma vez que Deus deve ser o primeiro motor que cria e ordena o mundo, ele deve, necessariamente, existir antes de qualquer coisa. Não podendo ser criado por nada, ele deve criar tudo o que é, e essa criação deve ser ex nihilo, pois, do contrário, algo existiria antes de Deus. Esta é uma das limitações do argumento que, como dissemos acima, apesar de ser mais simples, nos fornece apenas uma probabilidade da existência e ação de Deus, enquanto o argumento da cadeia da criação seria capaz de nos fornecer mais elementos sobre a divindade.

Podemos notar que todo argumento apresentado por Voltaire na tentativa de provar a existência de Deus não pretende nos dar acesso à essência divina, não se arroga a capacidade de nos fazer conhecer os meios usados por Ele para criar o mundo. Portanto, as razões materialistas que tentam negar Deus a partir da nossa incapacidade de conhecê-lo por inteiro não contrariam em nada a argumentação de nosso autor a favor da existência de um ser superior, pelo contrário, elas se enquadram perfeitamente nessas provas.

O argumento – é preciso que haja fora de nós um ser infinito, eterno, imenso, todo poderoso, livre, inteligente – faz com que as trevas que acompanham essa luz sirvam apenas para mostrar que ela existe, pois aquilo que nos demonstra a existência de um ser infinito vem também demonstrar-nos que para um ser finito deve ser impossível compreendê-lo. (VOLTAIRE, 1973d p.71).

Podemos, então, perceber que a existência de Deus se mostra como algo verossímil para Voltaire, apesar das dificuldades de compreendermos por completo sua essência e modos de ação. Mas até que ponto podemos falar das características deste ser supremo, visto que sua essência não nos é dada em nenhum dos argumentos a favor de sua existência? O que é digno de nota é que em toda prova usada por Voltaire para tentar mostrar que Deus existe, o que temos é uma físico-teologia, ou seja, podemos inferir a existência de Deus tão somente da observação do mundo. Da criação dos seres temos uma causa primeira, dos fins temos uma ordenação estabelecida por alguma inteligência e seguindo pelo mesmo caminho físico-teológico, no Filósofo Ignorante Voltaire dará mais alguns passos importantes na investigação sobre Deus.

Mas antes de nos determos neste outro texto, uma objeção importante, de caráter moral, se apresenta ainda nos Elementos contra a existência de Deus: Como aceitar a existência de um Deus criador que não garanta o bem para suas criaturas? Como conciliar o sofrimento, que o livro sagrado nos diz ser derivado do pecado do primeiro homem criado, com a bondade que deve haver no ser

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supremo que tudo criou?Parece-nos que esta objeção não atinge diretamente a concepção de

divindidade de Voltaire. O Deus metafísico voltairiano parece realmente ser amoral, pois de sua físico-teologia não podemos saltar para a bondade de Deus sem que isso seja uma extrapolação da razão. O mal existente no mundo de forma alguma põe em xeque a existência de Deus, pois como já foi dito, não temos acesso a sua essência, podemos afirmar com certeza pouquíssimas coisas sobre Ele, e sua bondade está longe de ser uma dessas coisas. Voltaire nos dirá:

Negareis um Deus por terdes tido um acesso de febre? Dizei que ele vos devia o bem estar. Que razão tendes para pensar assim? Por que ele vos devia o bem estar? Que tratado havia feito convosco? Vós que não podeis ser perfeito em nada, por que pretendeis ser perfeitamente feliz? (VOLTAIRE, 1996 p.28).

O que podemos, pois, saber de Deus? Quais atributos podemos conhecer Dele com segurança? Ora, fica óbvio nas provas apresentadas até aqui que a inteligência deve ser um destes atributos, pois, se há ordem no mundo, se há fins e meios que foram arranjados convenientemente por um ser supremo, tal ser deve ser dotado de inteligência, afinal, “se os trabalhos dos homens, até mesmo os meus, forçam-me a reconhecer uma inteligência em nós, devo reconhecer uma outra bem superior, agindo na multiplicidade de tantas obras.” (VOLTAIRE, 1973c p.312).

Outro atributo divino extraído das provas dadas por Voltaire de Sua existência é, sem duvida, a eternidade. Visto que a prova da cadeia dos seres exige uma causa primeira, incausada, que é Deus, ela deve existir desde sempre, logo, deve ser eterna. Vimos mais acima que a matéria não pode existir por si mesma, sendo Deus sua causa e, mais do que isso, essa causa deve ser livre. Que motivo há para que o ser supremo tenha criado o mundo tal qual ele é e não de outra forma? O princípio de razão suficiente parece exigir que toda ação seja pautada por uma razão de ser, mas sendo Deus o primeiro motor, não teria como ele ser determinado por algo, a não ser sua própria vontade. Mas, segundo as objeções apresentadas por Voltaire, de duas uma:

Deus teria feito esse mundo ou necessariamente ou livremente. Se o fez por necessidade deve tê-lo feito desde sempre, pois tal necessidade é eterna. Neste caso, portanto, o mundo se-ria eterno e criado, o que implica uma contradição. Se Deus o fez livremente, por pura escolha, sem alguma razão ante-cedente, é ainda uma contradição, pois é contraditório supor o

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Autor infinitamente sábio fazendo tudo sem uma razão que o determina e supor o Ser infinitamente Potente passando toda a eternidade sem fazer o menor uso de sua potencia. (VOLTAIRE, 1973d p.70).

Por outro lado, parece que a própria vontade divina seja uma razão suficiente para Sua ação. Tendo como aceito que Deus existe e que ele difere efetivamente do mundo e da matéria, o argumento que tenta minar a liberdade divina perde seu valor. Ele pode ser reduzido, por analogia ao seguinte: Se não consigo conceber uma razão para que um objeto X exista hoje e não em qualquer outro tempo, posso derivar disso a impossibilidade da existência de tal objeto. De fato, sendo Deus o criador e ordenador do universo, apesar das várias possibilidades de ordem e disposição dos seres criados, a ordem atual é fruto da vontade divina e apenas dela, que basta como razão suficiente para a criação. Mais uma vez, o argumento apresentado pelo autor do Cândido tentando problematizar a concepção de Deus, nesse caso, mostrando incoerências na noção de liberdade, parece exigir ou pressupor um conhecimento essencial do modus operandi divino, o que Voltaire sempre negou, fazendo com que tal argumento não represente um grande problema.

A posição de Voltaire exposta acima é encontrada no Tratado de Metafísica e parece ser muito mais clara e objetiva que a versão do mesmo argumento presente nos Elementos da Filosofia de Newton. Neste segundo texto, Voltaire apresenta vários pontos da disputa entre Clarke e Leibniz de forma que os argumentos usados pelos dois autores pareçam ser sempre equivalentes. No entanto, no final do capitulo III deste mesmo texto, Voltaire dirá, falando do movimento de átomos: “Mas por que este movimento à direita e não à esquerda, para o ocidente e não para o oriente, neste ponto da duração e não em outro? Não é preciso então recorrer à vontade de indiferença do criador? É o que deixamos para ser examinado por todo leitor imparcial.” (VOLTAIRE, 1996 p.36).

Parece-nos que, no fim das contas, a vontade livre de Deus sempre será o último recurso daqueles que tentam explicar os motivos da criação ser como ela é. A oposição constante dos argumentos de Clarke e Leibniz apresentada por Voltaire parece ter a função de ilustrar um aparente equilíbrio de opiniões, que poderia prolongar a disputa sem que ela chegasse a algum ponto de concordância. No entanto, a saída desta desconfortável situação é a apelação à vontade divina como razão suficiente da criação. Somente assim este impasse poderia ser resolvido, o que faz com que tal saída seja preferível às outras.3

3 A liberdade divina, de fato, parece não sair prejudica desta discussão. Voltaire dirá que “Querer e agir é precisa-mente o mesmo que ser livre. O próprio Deus só pode ser livre nesse sentido. Quis e agiu segundo sua vontade.”

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Temos, assim, uma imagem mais completa de Deus do que a que tínhamos no início, mas o Deus de Voltaire se apresenta ainda como um Deus “magro”, muito longe daquele Deus admitido pela doutrina cristã. Quais atributos divinos puderam ser tirados das provas físico-teológicas? Verificamos que Deus, sendo o primeiro motor, deve ser eterno. Além disso, como ele é o ordenador do mundo, deve ser inteligente e livre, pois não há razão anterior que o determine a criar, a não ser sua própria vontade.

Mas quanto à bondade divina, como podemos garanti-la? Em momento algum das provas da existência de Deus temos algum indício da bondade ou do amor de Deus para com as suas criaturas e mesmo as objeções contra a existência do ser supremo parecem achar dificuldades para se sustentar quando assumem um Deus moral. Nas palavras de Voltaire:

Com respeito às criticas de injustiça e de crueldade endereçadas a Deus, (...) respondo, em seguida, que os únicos ideais de justiça que temos são aqueles tomados de toda ação útil à sociedade e conformes às leis estabelecidas por nos para o bem comum. Ora, a ideia de justiça, sendo somente uma ideia da relação homem a homem, não pode ter analogia alguma com Deus. É tão absurdo, nesse sentido, dizer que Deus é justo ou injusto quanto dizer que é azul ou quadrado. (VOLTAIRE, 1973d p.73).

Não podemos derivar, portanto, um caráter moral nem da liberdade, nem da eternidade e nem da inteligência de Deus. Além disso, na passagem citada acima percebemos que Voltaire introduz a noção de utilidade social, noção crucial na concepção do seu Deus político, pois será justamente ai que Deus se apresentará com características morais.4

(VOLTAIRE, 1973d p.82) Em outras palavras, liberdade consiste no poder de agir segundo sua própria vontade, portanto, a vontade ao determinar a ação não interdita a liberdade. Deus agindo segundo sua vontade não deixa de ser livre. Voltaire ainda nos mostra o fundamento da crença de que a liberdade não existe. Ele diz: “De início, notou-se que temos frequentemente paixões violentas que nos arrastam malgrado nós mesmos. Um homem quereria não amar uma amante infiel, e, no entanto, seus desejos, mais fortes que sua razão, o reconduzem para ela; somos arrebatados por ações violentas, em movimentos coléricos incontroláveis (...)”, mas “Tal raciocínio, que é apenas a lógica da fraqueza humana, é em tudo semelhante a este: os homens ficam doentes algumas vezes, portanto, nunca têm saúde. Ora, quem não vê a impertinência desta conclusão? Quem não vê, ao contrário, que sentir a doença é uma prova indubitável de que se teve saúde, que sentir a escravidão e impotência prova inven-civelmente que se teve a potência e a liberdade?” (ibid. Id.).O fato de não termos liberdade absoluta em todos os momentos cria a ilusão de que não temos liberdade nunca. Na verdade, para nosso autor, a liberdade oscila, mas nem por isso ela é ausente. Ela será como “a saúde da alma”. Visto que a liberdade de indiferença não faz sentido, pois seria o mesmo que “querer querer”, não parece proble-mático a Voltaire caracterizar a liberdade como a capacidade de agir segundo sua vontade. Sendo Deus muito mais poderoso do que os homens, Sua liberdade será muito mais plena do que a nossa.

4 A noção de um Deus político se encontra presente em alguns textos de Voltaire, mas, no entanto, não nos

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Na questão sobre Deus apresentada acima podemos notar algumas características da investigação de Voltaire que nos permitem impor limites ao método do autor e enquadrá-lo naquilo que será considerada a sã metafísica. Ao investigar Deus, percebemos que o francês utiliza uma espécie de físico teologia, ou seja, se certifica da existência de Deus e de seus poucos atributos partindo de uma observação da própria natureza para, a partir disso, chegar às suas conclusões. Esta físico teologia renderá uma imagem mirrada de Deus, com poucos atributos. O caráter moral de Deus será aceito por Voltaire apenas pela fé, que surgirá a partir de uma análise histórica e de uma necessidade de fundamento moral para as ações humanas.

Dado que não há demonstração em metafísica, o critério de seleção das teorias é a verossimilhança, ou seja, a posição que se sustente com menos dificuldades devera ser a escolhida, do contrário, não poderíamos optar por uma dentre várias posturas teóricas distintas.

Vimos que a imagem de Deus desenhada por Voltaire é extremamente limitada, e este limite é fruto, justamente, do seu método de investigação, que é o que tentaremos expor com mais detalhes a seguir. Esse ponto é importante, pois é o método de Voltaire que nos permitirá diferenciar a metafísica presente em sua obra, daquela que nosso autor descarta como vã e infrutífera. Tendo em vista o desenvolvimento da questão trabalhada nos perguntamos: Quais elementos encontramos nelas que as diferenciam da metafísica tradicional que Voltaire critíca? Pensamos que são quatro estes elementos: Ausência de sistema, o caráter empírico-experimental, a utilidade da investigação e o estatuto da crença.

Sobre o primeiro elemento, Voltaire segue uma postura muito comum no séc. XVIII, que rejeita o assim chamado espírito de sistema. Os sistemas metafísicos, sobretudo aqueles do século XVII, apresentavam uma concatenação de ideias interdependentes que, na maioria das vezes, partiam de princípios abstratos. No verbete Systeme da Enciclopédia, além dos princípios abstratos, o autor do verbete elenca mais dois tipos de princípios para os sistemas: “des suppositions qu'on imagine pour expliquer les choses dont on ne sauroit d'ailleurs rendre raison” e “faits que l'expérience a recueillis, qu'elle a consultés & constatés” (DIDEROT e D’ALAMBERT, 1765 verbete Systeme). Destes três tipos de sistema “C'est sur les principes de cette derniere espece que sont fondés les vrais systèmes, ceux qui

interessa diretamente no assunto que estamos abordando. Pude tratar com mais calma deste ponto em minha dissertação de mestrado, capítulo III. De forma sucinta, podemos dizer que Voltaire lança mão da figura de um Deus político, que pune, recompensa e apresenta atributos morais, como um mecanismo de coesão social fun-cionando como uma espécie de fundamento moral (fundamento garantidas ações dos homens em sociedade). Estes atributos morais, como vimos, não podem ser aplicados à figura de Deus de forma argumentativa, visto que a experiência não nos fornece elementos para tanto. Estes mesmos atributos serão vinculados à Deus através da fé e da utilidade social.

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mériteroient seuls d'en porter le nom” (Ibid. Id.). Mas qual o fundamento desta recusa dos princípios abstratos e das suposições? Por que os sistemas filosóficos do século XVII assustavam tanto os pensadores das luzes?

Dois grandes expoentes da filosofia de sistema foram Espinosa e Descartes, os quais apresentavam um encadeamento de ideias que partiam de princípios gerais estabelecidos e caminhavam, a partir deles, para os particulares. Neste processo, muitas vezes, o caminho que o filósofo de sistema trilha não parte da experiência e da observação do mundo, fato este que faz com que Voltaire se refira aos sistemas nas Cartas Inglesas como o romance da alma, enquanto o novo método proposto para as investigações metafísicas e de filosofia natural consistia em analisar os fatos individuais, dados no mundo sensível para, a partir daí, chegar a princípios abstratos universais. Segundo Mota:

(...) no século XVIII, buscou-se uma outra concepção de verdade e de filosofia que possibilitou mais amplitude, mais liberdade, mais mobilidade, mais concretude e mais vivacidade, tanto à ideia de verdade quanto à noção de filosofia, renunciando a forma de dedução, derivação e explicação sistemática. O Ilu-minismo não se apoiou em Descartes para formar seu ideal de doutrina filosófica, mas em Newton cuja via de investigação não é a da dedução, e sim a da análise. É exatamente o new-tonianismo que sustentará em grande medida o pensamento voltairiano. Voltaire confessa ver na filosofia de Newton uma doutrina filosófica passível de sofrer alterações, mas não de ser refutada. (MOTA, 2010 p.28).

Símbolo da oposição entre a sã filosofia e a metafísica de sistema será a oposição entre Descartes e Newton.5 Descartes representa, para Voltaire, aquele

5 Interessante notar que esta oposição se estende para além do âmbito metafísico, refletindo na estética e na análise dos costumes. Os sistemas filosóficos, para Voltaire são fruto de condições sociais bem específicas, as quais envolvem dois conceitos desenvolvidos pelo autor: gênio e gosto. O primeiro diz respeito à invenção, sendo ela “(...) o apanágio da genialidade” (BRANDÃO, 2008 p.27). O gênio é aquele que inova, cria algo engenhoso e sem precedentes. Já o gosto representa a força de toda uma tradição que serve, de certa forma, para regrar o gênio, impedindo que sua criação seja totalmente desenfreada. Deste modo, “Le génie conduit par le goût ne commet-tra jamais de fautes grossières (...)” (VOLTAIRE, Apud BRASSAT, 1995 p.594). Do confronto destes dois conceitos Voltaire acaba por concluir que Descartes e seu sistema só poderia ser francês, enquanto Locke e Newton não teriam lugar senão na Inglaterra. A genialidade cartesiana é fruto de uma criação inovadora, porém isolada, e a sociedade francesa da época favorecia tal tipo de criação ao dificultar o diálogo entre filósofos e artistas. Por outro lado, a Inglaterra com sua eficaz Academia de Ciência e por não ter seus pensadores perseguidos a ponto de serem obrigados a fugir do país, favorecia a atuação do gosto sobre o gênio, fazendo com que a força da tradição lapidasse as criações através do diálogo entre as diferentes correntes. Disso se explica o fato de que os sistemas filosóficos geralmente não dialogam, mas se apresentam como “ilhas teóricas” distantes umas das outras. Cf Haag, E. M. Voltaire: Du Cartésianisme aux Lumières e Brandão R. A Ordem do Mundo e o Homem: Estudos Sobre Metafísica e Moral em Voltaire.

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que escreveu o romance da alma, ou seja, o filósofo que partiu de princípios gerais abstratos, sem fundamento na experiência. Para Voltaire, o problema dos sistemas se encontra em seus pressupostos. A maioria deles representam para nosso autor devaneios imaginativos, por isso, romanescos, sem ter fundamentos empíricos no mundo. A imaginação de Descartes é tão fértil que Voltaire chega a afirmar que ela “não pôde ocultar-se nem mesmo em suas obras filosóficas, cheias de comparações engenhosas e brilhantes” (VOLTAIRE, 1973a p.30).

Podemos afirmar que Voltaire tenta aplicar no campo da metafísica o que Newton aplicou no campo da física. A revolução científica newtoniana que tanto admirou Voltaire apresenta, segundo Haag, duas características específicas que permitem e explicam o verdadeiro significado do Hypotheses non fingo – Não crio hipóteses – newtoniano. A primeira destas características é a exigência de que o objeto de estudo passe por experiências exatas, fazendo com que a teoria corresponda aos fenômenos observados.6 A segunda característica consiste em uma “sobriété philosophique qui consiste à tenter la synthèse des découvertes ‘sanctionnées’ et reconnues par toute la cité scientifique” (HAAG, 2002 p.33). Estes dois elementos da ciência newtoniana podem ser traduzidos na supremacia da observação em relação à criação imaginativa dos sistemas filosóficos – juntamente com a preocupação de adequar teoria à observação – e no bom uso da tradição e do gosto na elaboração das teorias. Estes dois parâmetros serão usados por Voltaire na sua crítica aos sistemas filosóficos do século XVII e na escolha de Voltaire por Newton em detrimento de Descartes.

A partir deste primeiro elemento de diferenciação, podemos passar ao segundo: o caráter empírico-experimental da filosofia de Voltaire. Neste ponto, veremos claramente o peso que a influência inglesa exerceu em nosso autor.

Como dissemos acima, o método newtoniano permitiu que fosse realizada uma inversão no caminho da metafísica através da crítica aos sistemas filosóficos. A árvore do saber de Descartes foi invertida. A metafísica que antes era a raiz que sustentava a árvore passa a ser, como diz Paolo Cassini (1995), no máximo sua flor inodora. Ora, com esta inversão, vemos que a investigação empírica ganha primazia no processo de conhecimento, uma vez que todo saber seguro partirá de dados individuais observáveis no mundo. Isso fica claro na investigação sobre Deus, ao percebermos que tudo que é afirmado sobre o Ser supremo parte da observação da própria natureza.

Um século antes, Bacon e Locke já preparavam o terreno para que a assim chamada filosofia experimental germinasse, e Voltaire, durante o período de seu exílio na Inglaterra, teve contato com a obra destes filósofos, passando a

6 Cf. HAAG, 2002 p.30

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incorporar alguns elementos da filosofia inglesa em seus textos. Essa postura empirista faz com que surja uma limitação em sua investigação: A metafísica não pode mais ser desregrada a ponto de versar sobre assuntos que estão além de nossas capacidades. Tudo que nosso autor fala sobre Deus e sobre a alma respeita certos limites de nosso conhecimento que são intransponíveis. Vemos, desta forma, que na própria crítica aos sistemas metafísicos já se encontra, de algum modo, este segundo ponto de delimitação da metafísica de Voltaire. Na própria inversão no caminho da investigação já estão implícitos a empiria e a limitação do conhecimento. Voltaire relaciona de forma estreita estes dois elementos:

Mas não é suficiente estarmos convencidos de que todas as nossas ideias no vêm pelos sentidos. Nossa curiosidade leva-nos também a querer conhecer como elas nos vêm, e, assim, todos os filósofos escreveram belos romances, o que lhes teria sido poupado se tivessem examinado com boa fé os limites da natureza humana. Quando não temos o apoio do compasso da matemática e nem do archote da física, é certo que não podemos dar um só passo. (VOLTAIRE, 1973d p.75).

A herança inglesa, representada por Bacon e Locke, fará com que Voltaire se preocupe com o que será, para nós, o terceiro elemento de distinção: a utilidade do conhecimento. Tendo em vista que a observação e a análise dos fatos são o caminho e o guia que leva o philosophe através de sua investigação e, por consequência, considerando que todo conhecimento é limitado podemos perguntar: Até que ponto as investigações que são frutos da curiosidade humana, como dito por Voltaire na citação acima, são dignas de serem levadas a cabo? Segundo Mota “Voltaire critica as honrarias atribuídas às discussões inúteis em detrimento das descobertas de uso para os homens.” (MOTA, 2010 p.55). Como, então, saber o que é útil ao homem?

Toda questão da metafísica que Voltaire considera sã acaba por desembocar numa moral. Mas, por mais que toda investigação de Voltaire tenha por horizonte as questões morais, isso não faz com que a metafísica seja posta totalmente de lado. A resposta à nossa última questão é dada pelo próprio Voltaire no Tratado de Metafísica:

Devemos examinar o que é a faculdade de pensar nessas difer-entes espécies de homem, como lhes vêm as ideias, se tem uma alma distinta do corpo, se essa alma é eterna, se é livre, se tem virtudes e vícios, etc. Entretanto, a maioria dessas noções dependem da existência ou da não-existência de um Deus.

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É preciso, creio, começar sondando o abismo desse grande principio. Despojemo-nos, agora mais do que nunca, de toda paixão e de todo preconceito e vejamos de boa fé o que nossa razão pode ensinar-nos sobre a questão: Existe ou não existe um Deus? (VOLTAIRE, 1973d p.69).

Percebemos que Voltaire lista certos assuntos que o homem deve investigar. A origem das ideias e a moral estão presentes entre eles. No entanto, todas estas questões se encontram subordinadas à investigação sobre a existência de Deus, ou seja, uma investigação metafísica se coloca como base e ponto de partida para que possamos chegar a outros assuntos importantes para o homem. Essa hierarquia das questões se reflete no próprio plano da obra citada. A primeira das investigações exposta no Tratado é, justamente, sobre Deus, seguida pela origem das ideias, a alma e, só depois das questões metafísicas, nosso autor tratará do homem em sociedade e da moral.

Novamente, neste ponto, podemos derivar esta crítica de Voltaire em relação à utilidade da crítica aos sistemas. Qual utilidade teriam os sistemas metafísicos para o homem? Qual a função deles para a vida prática? A passagem final do Cândido parece, de certa forma, apresentar ironicamente esta questão no momento em que Cândido responde Pangloss, personagem caricato que representa um filósofo adepto do sistema do otimismo de Leibniz:

– Todos os acontecimentos – dizia às vezes Pangloss a Cân-dido – estão devidamente encadeados no melhor dos mundos possíveis; pois, afinal, se não tivesses side expulso de um lindo castelo, a pontapés no traseiro, por amor da Srta. Cunegundes, se a Inquisição não te houvesse apanhado, se não tivesses per-corrido a América a pé, se não tivesses mergulhado a espada no barão, se não tivesses perdido todos os teus carneiros da boa terra de Eldorado, não estarias aqui agora comendo dove de cidra e pistache.- Tudo isso está muito bem dito – respondeu Cândido -, mas devemos cultivar nosso jardim. (VOLTAIRE, 1980a p.236).

Não devemos, no entanto, pensar que o jardim de Cândido representa uma total recusa da metafísica a favor da vida absolutamente prática, como nos diz Brandão: “Contudo, considerando o conjunto dos textos de Voltaire, o resultado de Candide não significa um abandono completo da filosofia em favor do trabalho (...) Cabe afirmar mais uma vez que boa parte da filosofia está preservada” (BRANDÃO, 2008 p.225), o que nos leva a pensar que a metafísica

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regrada, após a crítica de Voltaire, permanece. No entanto, o que a passagem nos mostra é que as filosofias de sistema não parecem se encaminhar para um objetivo prático, ou que atue de forma direta na vida do homem.

Por fim, falaremos do último elemento de distinção da metafísica sadia de Voltaire: o estatuto da crença.

Uma vez aceito que não podemos falar com segurança daquilo que está além de nossos limites, será que aquilo que se apresenta a nós em uma teologia natural, que parte da investigação do mundo, pode ser passível de uma demonstração? Voltaire dirá que não.

Demonstração, em sentido estrito, serão apenas aquelas da matemática e da geometria.7 O que, então, fará Voltaire escolher uma posição teórica dentre tantas? Serão a verossimilhança e a utilidade. Percebemos que nos debates sobre Deus e sobre a alma, Voltaire assumirá posições, mesmo que elas não sejam pautadas em uma demonstração, não caindo num ceticismo completo. A necessidade de se tomar um partido em questões metafísicas permanece, até mesmo no título de uma de suas últimas obras. Il Faut Prendre un Parti reflete a preocupação de nosso autor em se posicionar diante de tais questões, visto que elas são, como mostramos, a base sob a qual se desenvolverão as investigações morais, que são o horizonte da filosofia voltairiana.

À primeira vista, esta postura de Voltaire pode parecer frágil ou pouco fundamentada, mas o próprio autor justificará sua posição no verbete “Certo, Certeza” do Dicionário Filosófico. Grande parte dos conhecimentos da vida humana, que tomamos como certos, na verdade não podem ser demonstrados, e possuem a mesma natureza do conhecimento sobre Deus. O caráter provável da crença, sua verossimilhança, parece ser suficiente para tomarmos um partido, afinal, grande parte dos conhecimentos da vida humana são dessa forma.

Voltaire nos diz neste mesmo verbete:

(...) ’então não tendes a certeza de que Pequim existe? Não tendes já visto sedas de Pequim? Pessoas de diferentes países, de diferentes opiniões, e que escreveram com violência umas contra as outras, proclamando todos a verdade de Pequim, não vos asseguram a existência dessa cidade?’ Responderei que é

7 Além das verdades geométricas e matemáticas, vemos no verbete “Certo, Certeza”, do Dicionário Filosófico, que Voltaire também considera como demonstrável a certeza de nossos sentimentos e de nossa própria existência. Ele dirá: “Existo, penso, sinto a dor; tudo isso será tão certo como uma verdade geométrica? Sim. Por quê? É que tais verdades provam-se pelo mesmo princípio de que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Não posso, ao mesmo tempo, existir e não existir, sentir e não sentir. Um triângulo não pode, ao mesmo tempo, ter cento e oitenta graus, que é a soma de dois ângulos retos, e não os ter. A certeza física da minha existência, do meu sentir, e a certeza matemática têm, por isso, o mesmo valor, embora sejam dum gênero diferente.” (VOLTAIRE, 1973b p.124).

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coisa extremamente provável que haja agora uma cidade de Pequim (...) (VOLTAIRE, 1973b, p. 124).

O que direciona a escolha de Voltaire é, então, seu caráter provável, sua verossimilhança, que será obtida através de um constante embate entre posições opostas. Aquela que se sustentar com um menor número de dificuldades será a escolhida por nosso autor. Devemos notar, no entanto, que a verossimilhança é mais do que apenas um resultado mecânico de um confronto de opiniões. Considerando que um dos critérios expostos anteriormente – recusa dos sistemas – exige a correspondência entre a teoria e os fenômenos observados, podemos ver que a verossimilhança surge de ponderações precisas e de reflexão, não sendo simplesmente uma posição mais fácil de aceitar ou mais conveniente, mas sim fruto de uma investigação séria.

Vemos, então, que existe uma critica à metafísica na obra de Voltaire, porém, para fazer tal crítica Voltaire delimita bem aquela metafísica infrutífera e a separa da filosofia sã, que será aquela derivada de uma investigação empírica, que reconhece seus limites, enquanto a metafísica rejeitada por ele será, sobretudo, aquela do século XVII, que edifica sistemas partindo de princípios abstratos gerais. Além desta recusa dos sistemas, podemos concluir que a metafísica sadia que Voltaire apresenta se relaciona com um fim moral, com um caráter útil ao homem, diferente das filosofias infrutíferas, que representam um saber fechado, uma filosofia de gabinete, distante da atividade.

Podemos concluir, também, pelas questões analisadas, que Voltaire apresenta um pequeno número de saberes seguros (de acordo com seu critério estabelecido de crença) a partir da investigação sobre Deus, não sendo a metafísica apenas desconstruída ou negativa, mas, se bem desenvolvida, digna de prover saberes úteis e firmes à moral do homem. As limitações das conclusões de Voltaire não fazem do autor um cético total, visto que ele chega a algo positivo, mas apenas o afasta de exageros e extrapolações teóricas que levariam sua metafísica a regiões inseguras e incapazes de fundar conhecimentos firmes.

Referências Bibliográficas

BRANDÃO, R. A Ordem do Mundo e o Homem: Estudos Sobre Metafísica e Moral em Voltaire. 254f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.

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BRASSAT, P. Génie in Inventaire Voltaire. Paris: Gallimard, 1995.

CASSINI, P. Newton e a Consciência Europeia. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 1ª ed. São Paulo: Unesp, 1995.

DIDEROT, D. e D’ALAMBERT, J. R. Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et de Métiers, 1ªed. Paris: The ARTFL Project. Department of Romance Languages and Literatures - University of Chicago, 1765. Disponível em encyclopedie.uchicago.edu.

MOTA, V. O. Voltaire e a Crítica à Metafísica: Um Ensaio Introdutório. Rio de Janeiro: Editora da Universidade Federal de Sergipe, 2010.

POMEAU, R. La Religion de Voltaire. Paris: Librarie Nizet, 1974.

VOLTAIRE. Cândido ou O Otimismo in Contos. Tradução de Mario Quintana. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

_______________. Cartas Inglesas. São Paulo: Abril Cultural, 1973.a (Col. Os Pensadores).

_______________. Dieu. Réponse au Système de la Nature in Derniers Écrits sur Dieu. Paris: GF Flammarion, 2006.

_______________. Dicionário Filosófico. 1ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973.b (Col. Os Pensadores).

_______________. Elementos da Filosofia de Newton. Tradução M. G. S. do Nasci-mento 1ªed. São Paulo: Editora Unicamp, 1996.

_______________. O Filósofo Ignorante. 1ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973.c (Col. Os Pensadores).

_______________. Tratado de Metafísica. 1ªed. São Paulo: Abril Cultural, 1973.d (Col. Os Pensadores).

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Maria Fernanda Novo dos SantosMestranda / Universidade Estadual de [email protected]

O Dogmatismo de Platão em Nietzsche e Deleuze, entre a Crítica e a Promoção

“Perverter o platonismo é apurá-lo até o último deta-lhe, é baixar (de acordo com a gravitação própria do humor) até a um cabelo, ao lixo de uma unha, que não merecem o mínimo de consideração a mais que uma ideia.” (Foucault, 1987, p. 40).

Resumo O presente texto procura apresentar um ponto em comum nas leituras que Nietzsche e Deleuze fazem de Platão. O antiplatonismo dos filósofos estaria assentado no dogmatismo incutido na filosofia de Platão, desde a formulação do método dialético. Ao mesmo tempo, posturas tais de Nietzsche e Deleuze revelariam que o antiplatonismo não pode ser limitado a uma recusa arbitrária.

Palavras chave Deleuze, Nietzsche, dogmatismo, antiplatonismo, inversão do platonismo.

Numa certa e comum corrente filosófica de leituras de textos clássicos ou canônicos, contemporaneamente reforçada por Michel Foucault, a interpretação ultrapassa o mecanicismo semiótico tradicional para realizar uma proposta que faz do sentido possível de um texto não uma ordem, mas uma sugestão que o permite alojar-se, não num refúgio seguro, mas ao relento de um vasto campo sujeito a toda sorte de intempéries. A capilaridade de tal procedimento parece acompanhar o filósofo em escritos como Theatrum

artig

o

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Philosoficum1 (1970), pelo qual desenvolve uma leitura privilegiada de Gilles Deleuze em Diferença e Repetição e Lógica do Sentido. Para Foucault, se tomadas no sentido do modelo clássico da semiótica e de seu aparelho interpretativo, essas obras seriam, por excelência, anti-interpretativas já que realizam o projeto deleuziano que prima pela diferença, e ao mesmo tempo combate as determinações filosóficas de semelhança e identidade nas imagens dogmáticas do pensamento denunciadas em Diferença e Repetição. Atento ao percurso de Deleuze, Foucault nos mostra no referido ensaio o contrário do que seria uma interpretação tradicional, abrindo os espaços entre as palavras e projetando sentidos para fora da tradicional recepção interpretativa que comumente visa uma logicidade e uma historicidade coerentes.

Na breve conferência que precede o ensaio sobre Deleuze, Foucault reconhece que Marx, Nietzsche e Freud foram restauradores de novos problemas no que diz respeito às técnicas interpretativas (FOUCAULT, 1987, p.9). Neste contexto, o filósofo está interessado nas várias técnicas de interpretação que animam a história da cultura, onde a linguagem como seu grande recurso sustentador produzira dois tipos de suspeita: 1. a linguagem não diz o que diz; não diz, não por uma falha ou uma deficiência, mas sim por dizer outro significado, não revelado pelo significado primeiro ou primordial; 2. a linguagem, ao mesmo tempo que rebaixa a forma verbal, desqualifica os tipos de linguagem não verbais (FOUCAULT, 1987, p.6). Destas duas suspeitas a primeira ganha maior relevância para nossa proposta em curso neste texto. Procuraremos identificar possíveis pontos de contato entre leitura do jovem Nietzsche sobre Platão na Introdução ao estudo dos diálogos de Platão2 (NIETZSCHE, 2005) e a leitura de Deleuze sobre Platão, presente numa passagem de Diferença e Repetição (DELEUZE, 2006), no capítulo dedicado à Imagem do Pensamento. Apoiamo-nos na hipótese de que cada uma dessas leituras compartilha a perspectiva que elege Platão o precursor do dogmatismo do pensamento na filosofia desde a instauração sectária do platonismo. Ainda que isso seja assumidamente declarado tanto por um como por outro filósofo, nos colocamos na tarefa de encontrar pontos de contato que evidenciam essa postura nos referidos textos. E não obstante, talvez pudéssemos reconhecer que a investida de Nietzsche e Deleuze poderia ter propiciado uma expansão dos usos que se faz da filosofia platoniciana3.

1 Este texto foi publicado pela primeira vez “Theatrum philosophicum”, Paris: Critique, novembro de 1970, no 282. O ensaio também pode ser encontrado na coletânea Dits e Écrits, (FOUCAULT, 2001) .

2 Todas as traduções dos trechos aqui transcritos desta obra são de nossa responsabilidade.

3 Optamos pelo uso deste termo para designar estritamente a produção filosófica de Platão representada pelos

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O Dogmatismo de Platão em Nietzsche e Deleuze, entre a Crítica e a Promoção

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No atravessamento pelo campo de interpretações nietzschiano e deleuziano, das quais tais leituras ofereceram algo de novo que se diferencia da tradicional recepção exegética dos Diálogos, Foucault nos guiará na tarefa de comprovar sua própria hipótese de que a linguagem “quer dizer algo diferente do que diz” (FOUCAULT, 1987, p.7). Hipótese essa que ganha corpo quando Foucault identifica que o deslocamento simbólico promovido pela tríade do pensamento moderno, não significa que os autores tenham propiciado uma mudança nos símbolos do mundo ocidental, mas que, antes, alteraram a natureza dos símbolos e a forma usada para interpretá-los (FOUCAULT, 1987, pp 10-11). Por meio desta pré-análise, poderíamos observar que em Nietzsche a interpretação ganha relevância suprema na medida em que a própria filosofia é concebida como uma espécie de filologia não fixada, ou mesmo uma filologia ativa, como quer Deleuze4.

Diante dessa transmutação simbólica, a pretensa tarefa de estabelecer conclusões mais ou menos precisas torna-se inócua; afinal, a infinidade de recombinações numa móvel e constante cadeia interpretativa faria da busca conclusiva algo de, no mínimo, delirante. Por isso, para Foucault não há nada de primário a interpretar, pois tudo já é interpretação, alimentando uma variável e incessante remissão simbólica. Todavia, tal remissão nunca alcança um possível elemento originário; e, se existe alguma primordialidade ela deve ser associada à própria interpretação, arrancada do símbolo a golpes de martelo, como Foucault nietzschianamente assevera (FOUCAULT, 1987, p. 18). Podemos de antemão notar que as regras antitéticas deste jogo são constantemente exploradas em Platão, onde, por exemplo, a definição de justiça no livro III da República (PLATÃO, 433a) poderia ser prova de que o triunfo dos conceitos positivos somente é possível pois seu princípio incoativo foi infiltrado pela existência de seu contrário. Deste modo, o jogo dialético a que Foucault se refere seria explorado por argutos questionadores, que se dispuseram a embrenhar-se nos liames de sustentação do método platônico. Enfim, a hipótese que ora nos motiva é aquela que percebe em Nietzsche e Deleuze a suspeita da filosofia de Platão como uma precursora imagem dogmática do pensamento.

Diálogos. O termo platônico será utilizado neste texto quando a referência se situar na tradição filosófica instau-rada por Platão, e que ultrapassa os Diálogos.

4 Esta expressão aparecerá em Nietzsche e a Filosofia, no subitem do capítulo III intitulado A tranformação das ciências do homem, onde Deleuze procura identificar os parâmetros (sintomatologia, tipologia, genealogia) utili-zados por Nietzsche para recompor uma ciência que pudesse interpretar atividades reais. Cf. op. cit., pp. 83-86. A extensão dessa expressão aparecerá em Foucault, no Theatrum Philosophicum, ao tratar da filosofia de Nietzsche como uma “filologia que nunca seria absolutamente fixada”. Cf. op. cit., p. 15.

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1. A leitura de Platão no jovem Nietzsche: o dogmatismo pela abstração

Nos meandros de uma tarefa filológica em que a expressão filosófica já se faz sentir, Nietzsche faz surgir uma imagem nada gloriosa dos intocáveis mestres gregos Platão e Sócrates. O modo como Nietzsche se aproxima da sacralidade grega, como veremos adiante, nos faz crer que o jovem filólogo tenha visto algo de aterrorizante, que talvez o tenha impedido de dar continuidade à velha exegese das obras de Platão e do culto a Sócrates. Sob esta perspectiva, a Introdução ao estudo dos diálogos de Platão pode ser o anúncio de uma pretensa postura de dirupção das leituras correntes dos diálogos de Platão e da sacralização de Sócrates, na medida em que convoca os leitores5 a acompanhar os Diálogos recusando a cristalização e a reverência idólatra de certos saberes que a tradição crítica atribui a eles. Atento às leituras clássicas de consagrados helenistas alemães como Tennemann e Schleiermacher (NIETZSCHE, 2005, I §1, pp.33-44), Nietzsche marcará, no primeiro capítulo da Introdução, a distinção de sua leitura frente à historicização ascética que tende a se distanciar da relação intrínseca entre vida e obra de Platão. Por isso, para Nietzsche, o homem Platão será o melhor recurso para entender a obra platoniciana, ou seja, será preciso submeter os Diálogos à vida de Platão, afastando-os de leituras que marcam somente o tempo histórico, aproximando-os, assim, de uma temporalidade da existência cujos pormenores saltam do subterrâneo para reclamar um lugar ao lado dos grandes acontecimentos que marcaram sua vida.

Isto posto, reconstituímos o início do percurso de Nietzsche no segundo capítulo quando o filósofo se volta para o desocultamento da fundação da epistéme grega, de filiação socrático-platônica, a qual seria derivada de duas concepções de acesso ao conhecimento, quais sejam: 1. Racional; dada por ensinamento, aprendizado (fundamento), e 2. Doxa alethesis (opinião verdadeira); dada por convencimento (NIETZSCHE, 2005, II §1, p.73). Essas duas espécies de conhecimento associam-se a dois gêneros de objetos: aquele das ideias imutáveis, ligado à teoria das Ideias de Platão, e aquele da ‘ligeireza’ das coisas materiais, sujeitas ao devir. Partindo das proposições de Aristóteles, para quem Platão teria travado contato incipiente com os ensinamentos de Heráclito (NIETZSCHE, 2005, II §1, p.73), Nietzsche assegura que Platão, absorvido pelo contato com tal conhecimento, colocou-se diante

5 Cf. Introdução à edição francesa onde o editor esclarece que a Introdução se refere à anotações de cursos ministrados entre os anos de 1871 à 1876.

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de um problema que talvez fosse insolúvel sem a presença de Sócrates. Deste modo, a máxima heraclítica que diz “tudo o que é revelado aos sentidos está em fluxo perpétuo, o que, portanto, escapa ao conhecimento” (NIETZSCHE, 2005, II §1, p.73), pode ser ultrapassada com o método oferecido por Platão, qual seja, a dialética. Ainda, em outros termos, a influência heraclitiana sobre Platão encontrou sua viravolta na figura de Sócrates - pai da indução e da definição, como quer Nietzsche (NIETZSCHE, 2005, II §2, p.74); só assim Platão pôde afirmar que a definição de algo deve supor o conhecimento daquilo que não muda. Vemos aqui o elemento germinativo da teoria das Ideias, e sua vocação legisladora acerca da definição. O conhecimento possível não seria calcado na inconstância do devir, mas sim na imutabilidade daquilo que não pode estar sujeito a tal inconstância, ou seja, o conhecimento possível deve ser a manifestação do inteligível. Assim, Nietzsche nos mostra que Platão só pôde operar a superação de Heráclito partindo de três proposições de inspiração socrática: 1. Da Ideia enquanto objeto conhecido pelo conceito, cuja existência se deve à enunciação de uma definição possível; 2. as definições universais não são coisas sensíveis; e 3. as definições universais são objetos imóveis, como o próprio conceito (NIETZSCHE, 2005, II §2, p.74). Com isso, de antemão, podemos com Nietzsche considerar que para Platão o sensível é alinhado a uma certa ideia de degradação que não pode ser abarcada pelo conceito. E este, por sua vez enquanto conhecimento verdadeiro, não pode sofrer as máculas do imperioso devir, comprovando assim, que a ordem de Heráclito seria regurgitada por Platão, de modo a ser expressa de maneira diametralmente oposta. Ou seja, diante da nascente epistéme de matriz socrático-platonica, o devir teria se tornado vassalo do soberano conceito.

Deste modo, Nietzsche reforça a crítica ao conjunto platônico de debilitação do sensível, levada a cabo com a contribuição do esteio socrático (NIETZSCHE, 2005, II §6, p.80). As variáveis em jogo nesse momento crucial são diversas, mas caberia aqui uma questão elucidativa a respeito de um tema filosófico, por excelência, incutido na leitura filológica de Nietzsche: seria o sensível o temeroso incômodo que obriga o filósofo a sair de uma prosaica tendência, revelada cedo por Sócrates, pela qual o faz procurar a estabilidade ao invés de se lançar em ousadas expedições, onde o pensar não contaria com a segurança do imutável encarnado na definição dos universais? A resposta a esta questão poderia ter sido acenada por Nietzsche no contexto do Crepúsculo dos Ídolos, onde o filósofo expressa a superação de Heráclito feita por Platão, identificando na figura de Sócrates um incontornável motivo platoniciano de debilitação do sensível, o qual se apoia propriamente na soberania da razão sobre os instintos. Ali, o filósofo pontua que a influência

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de Sócrates sobre Platão foi promotora de efeitos profundos acerca de sua busca por estabelecer regras e medidas para a apreensão do conhecimento verdadeiro; parâmetros os quais parecem oferecer, para Nietzsche, a trajetória que o levou ao nascedouro da teoria do conhecimento de Platão.

Sob esta perspectiva, vemos nas palavras de Nietzsche que

“o fanatismo com que toda reflexão grega se lança à racion-alidade mostra uma situação de emergência: estavam em perigo, tinham uma única escolha: sucumbir ou ser absurda-mente racionais... [...] É preciso ser prudente, claro, límpido a qualquer preço: toda concessão aos instintos, ao inconsciente, leva para baixo”. (NIETZSCHE, 2006, §10, p.21)

Esta condição de desagregação dos instintos teria contribuído para o estabelecimento de um lastro com variáveis conceituais que tornaram possível o exercício da influência de Sócrates sobre Platão. São elas: 1. a verdadeira essência das coisas não pode ser atribuída ao devir e à mudança, e 2. o erro e a aparência não figuram na essência das coisas (NIETZSCHE, 2005, II § 4, p.79). Assim, o que vemos neste filosofar a golpes de martelo parece já estar presente no jovem Nietzsche da Introdução. Visão pela qual a voz platoniciana que brada a impotência do sensível é forçada a considerar os pressupostos abstratos de bom, justo ou belo, por exemplo, para garantir que o enunciado dos ideais de bondade, justiça ou beleza tenha um assento racional. Assim, diz Nietzsche,

“Nunca vemos o justo, nem o Belo, mas nos contentamos sem-pre a nomear belas e justas coisas particulares. De onde tiramos estes conceitos? Não da experiência. Ainda mais, nós os introdu-zimos primeiro na experiência e os aplicamos à experiência. Nós os temos em ‘nós’; há nisso algo que só está, primeiramente, ‘in sensu’ para em seguida estar ‘in intellectu’ (...) É preciso pensar que Platão partiu de tais abstrações como o Belo, o justo e não do conceito de cavalo”. (NIETZSCHE, 2005, I §7, p.81).

Deste modo, podemos observar que a recusa de Platão ao discurso dos heraclitianos o afasta do relativismo das posições do conhecimento variantes da dóxa, o que o faz recusar a existência de uma possível essência diante do devir (NIETZSCHE, 2005, II § 4, p. 77-78). E ao mesmo tempo, tal recusa acentua a tendência, efetivamente instaurada por Sócrates, que lança mão da abstração, encarnada nos universais.

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Em suma, Nietzsche reforça sua leitura de recusa de Platão do sensível diante da improbidade de um conhecimento verdadeiro que se apoie na variante do devir. E para isso foi preciso distinguir dois tipos de conhecimento, quais sejam: aquele proveniente de representações dependentes dos sentidos, e aquele dos conceitos não sensíveis. O primeiro precedente do pensamento ilógico expõe o homem à imoralidade, à vulgaridade e ao erro, enquanto o pensamento lógico, dos conceitos não sensíveis, torna os homens morais, corretos e justos, parecidos com Sócrates, como diz Nietzsche (NIETZSCHE, 2005, II §8, p.90). Daí, vemos, segundo a leitura de Nietzsche, que esta classificação é parte do procedimento antitético adotado por Platão, acerca da crítica da faculdade de conhecer pela via da dóxa, e se estenderá até seu desdobramento, a saber, a retórica. Todavia, diante desse binarismo que projeta em sentidos opostos a base do conhecimento verdadeiro para sofistas e socráticos, nosso interesse deste texto limita-se à imagem do pensamento platoniciano apresentada por Nietzsche, a qual se sedimentaria a partir do um modelo lógico-abstrato do pensamento, cujo método dialético é sua grande expressão.

Isso posto, podemos desviar nosso percurso rumo à crítica de Nietzsche sobre a operação platônica de debilitação do sensível exposta de modo incipiente da Introdução, e levada às últimas consequências pelo Nietzsche tardio. Além do Bem e do Mal anuncia, desde o arguto prefácio, que o dogmatismo não passa de um jogo infantil do qual a filosofia usou e abusou durante milênios para desastrosamente estabelecer a verdade. Vemos no escrito introdutório desta obra que a crítica ao dogmatismo, em especial de ordem platônica, foi causticamente enfrentada por Nietzsche, para quem Platão representaria os mais perturbadores dos erros, a saber, o puro espírito e o bem em si6 (NIETZSCHE, 1992, p.8). Para além da detida leitura que esta obra exige e que ultrapassa nossos objetivos neste texto, caberia apenas destacar, que o projeto de inversão do platonismo ali anunciado ganharia a

6 Cf. sobre o projeto de inversão do platonismo anunciado em Além do Bem e do Mal, remetemos ao artigo de Oswaldo Giacóia, o qual nos esclarece: “Nietzsche quer dizer com isso [denuncia do puro espírito e do bem em si] que com a crença na razão pura e no bem em si o Sócrates platônico dá origem ao gesto metafísico por excelên-cia, aquele que consiste na instauratio e na consagração, como elementos matriciais do pensamento filosófico ulterior, da oposição ‘idealista’ entre sensível e supra-sensível, essa divisão fatal que põe fim ao ‘realismo’ dos antigos helenos, na medida em que implica e supõe uma desqualificação do sensível em proveito do inteligível, do temporal em função do eterno, do verdadeiro mundo em favor do mundo somente aparente, do ser em contraposição ao vir-a-ser. É a isso que Nietzsche denomina renegação e desqualificação da vida, antinatureza, fuga da realidade”. GIACÓIA, 1997, p. 31. Além disso, vemos neste artigo que a exploração filológica dos diálogos por Nietzsche remonta ao uso das figuras retóricas dos Diálogos, a qual foi introduzida e explorada na própria filosofia de Nietzsche.

Maria Fernanda Novo dos Santos

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leitura privilegiada de Deleuze em Nietzsche e a Filosofia7 (DELEUZE, 1962).

2. A aposta de Deleuze: o antiplatonismo de Nietzsche

Em Nietzsche e a Filosofia Deleuze dedicará parte de seus esforços para reconhecer no filósofo alemão sua indisposição diante do dogmatismo dialético. Sabemos que tal crítica é, em ampla medida, dirigida à dialética de matriz hegeliana, todavia como procuraremos demonstrar, acompanhando Deleuze, a processualidade da dialética pode ser abarcada nesta crítica desde sua manifestação platônica. Isto se considerado que qualquer novo pensamento, filosófico ou científico, moral ou religioso, possui uma forte tendência a tornar-se dogmático, e que a dialética platônica guarda em si um traço transversal que recai sobre todas as demais variantes deste método. De outro modo, a aplicação do método da dialética é feita a partir da demonstração de ideias e não sobre os fatos, o que força a experiência real a adaptar-se, mesmo que forçosamente, aos postulados de tal método. Não raro estes postulados estão restritos a conceitos representados pela linguagem, como se ela, por princípio, já contivesse o conteúdo desconhecido do conceito descoberto. No limite, este argumento de filiação platônica apresentado por Deleuze, nos leva a acreditar que a linguagem usada pela filosofia não é apenas um recurso de composição, ela guarda em si a pretensão de universalidade do conceito; portanto, reserva-se ao direito de reclamar uma filiação congênita com a verdade.

Isso posto, podemos acompanhar em Nietzsche e a Filosofia a demonstração nietzschiana da denúncia da imagem dogmática do pensamento no capítulo dedicado à crítica de Nietzsche, a qual seria dada a partir de três teses (DELEUZE, 1962, p.118) essenciais, quais sejam: 1. o pensador que ama a verdade, pois o pensamento contém a verdade; 2. dizemos que somos desviados da verdade por coisas exteriores ao pensamento (corpos, paixões, interesses sensíveis); e 3. é preciso, então, de um método para pensar verdadeiramente; um método como o científico, que nos ‘aproxima’ da natureza do pensamento. Essas “teses essenciais da imagem dogmática do pensamento” (DELEUZE, 1962, p.118), dirá Deleuze, guardam um componente do universal abstrato8. De outro modo, Deleuze nos diz que na imagem dogmática do pensamento a verdade é conhecida por um universal abstrato, já que “nunca se relaciona a

7 Todas as traduções dos trechos aqui transcritos desta obra são de nossa responsabilidade.

8 Cf. Idem ibidem

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forças reais que fundam o pensamento” (DELEUZE, 1962, p.118). Deste modo, para o filósofo, a verdade como conceito é sempre um fato indeterminado; não existe verdade que não seja a realização de um valor. Por isso, para estabelecer o juízo sobre a verdade de um pensamento é preciso considerar a força ou a potência que determina o pensar (DELEUZE, 1962, p.118). Em outras palavras, é preciso sempre questionar qual é o sentido e qual o valor desta verdade, dirá Deleuze (DELEUZE, 1962, p.118).

Sob este domínio de apreensão da verdade, a dialética seria uma das expressões mais bem definidas, já que, por um lado, guarda uma relação com a disposição da verdade concebida de antemão:

“Quando nos falam da verdade ‘simplesmente’, do verdadeiro tal como é em si, para si ou mesmo para nós, devemos pergun-tar que forças se escondem no pensamento daquela verdade, portanto, qual é o seu sentido e qual o seu valor” (DELEUZE, 1962, p.118).

Por outro lado, esta verdade ‘esconderia’ as forças que sustentam a produção de um pensamento, o qual teria uma evidente disposição dogmática. Assim, para Deleuze, a imagem dogmática do pensamento oculta “(...) o trabalho das forças estabelecidas que determinam o pensamento como ciência pura, o trabalho das potências estabelecidas que se exprimem idealmente no verdadeiro tal como ele é em si.” (DELEUZE, 1962, p.119).

No mesmo sentido que os pressupostos dogmáticos de Platão foram identificados por Nietzsche, Deleuze em Nietzsche e a Filosofia nos ajuda a entender que a dialética pode desfavorecer a nitidez do conjunto de forças. Caberia aqui uma breve consideração sobre a teoria das forças apresentada por Deleuze, por guardar, para o filósofo francês, um importante dispositivo para entender a indisposição de Nietzsche diante da dialética. O conceito nem para Nietzsche, nem para Deleuze deve preservar um pressuposto negativo. Isso porque, uma força não deve negar a outra, mas deve, sobretudo, afirmar sua própria diferença (DELEUZE, 1962, p.9). Assim, no trecho que posiciona Nietzsche contra a dialética podemos ler:

“Em Nietzsche, a relação essencial de uma força com outra nunca é concebida como um elemento negativo na essência. Em sua relação com uma outra, a força que se faz obedecer não nega a outra ou aquilo que ela não é [...]”. (DELEUZE, 1962, p.119).

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Em última análise, Deleuze afirma que a reposição da força se dá em função do sua própria atividade, portanto do seu ‘perfil’ ativo e da afirmação de sua diferença (DELEUZE, 1962, p.10). Todavia, para efeito de nossa investigação, esta consideração sobre a ‘teoria das forças’ cumpre o papel de nos introduzir a uma problemática que acreditamos subsistir - hipótese que desenvolveremos a seguir - nas dialéticas tanto de matriz platônica quanto hegeliana, qual seja, a presença do elemento negativo no progresso dialético de estabelecimento da verdade. Em Platão, tal elemento parece ser apoiado no que já vimos da leitura de Nietzsche na Introdução. O que nos faz crer que o negativo é, sobretudo, um recurso de apoio para o desenvolvimento do próprio método dialético. Já em Hegel, ou melhor, na leitura deleuziana de Hegel presente em Nietzsche e a Filosofia (DELEUZE, 1962, pp.180-183), na qual nos apoiamos, a negação como conceito ou o conceito negativo nascem por contraste, “tardiamente em relação ao conceito original” (DELEUZE, 1962, p.10). Isso significa dizer que o negativo é introduzido na dialética hegeliana como elemento necessário, não mais como método, mas como subproduto do próprio método. A abertura dessas proposições em nosso texto nos leva a recorrer às originais propostas de leitura da dialética hegeliana presentes em O Avesso da Dialética (LEBRUN, 1988).

3. Fontes do antiplatonismo, dialética e representação como modelos do pensamento dogmático

Gerard Lebrun, num minucioso trabalho que investiga os pormenores dos fundamentos da dialética de expressão hegeliana, se lança num percurso incontornável que o obriga a retornar aos interstícios da dialética platônica. Ali, Lebrun pretende esclarecer de que maneira a dialética se mantêm presa a certas escolhas semânticas que anunciam alianças e posições “infra-racionais” (LEBRUN, 1988, p. 16), e cujas implicações não foram, exatamente, pensadas por ela. Sob esta perspectiva, comungariam, segundo Lebrun, dialéticos platônicos e hegelianos, pois fazem com que o método desloque os usos comuns da linguagem a fim constituir um conhecimento que extraia os homens do ordinário da vida, e os lancem na busca de algo maior, supremo ou absoluto. Vemos com as palavras de Lebrun:

“o dialético, portanto, se encarrega de remar contra a corrente e de afastar seus ouvintes do uso comum da linguagem: ao deslocar os conceitos usuais, ao dissipar as pobres convicções

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que os induziam, ele conduzirá o interlocutor da incultura até o saber absoluto. Essa é a Paidéia presente tanto na alegoria da Caverna quanto na Fenomenologia” (LEBRUN, 1988, p. 12).

Sendo assim, privilegiamos na análise de Lebrun a leitura do capítulo que versa sobre a postura desconfiada de Nietzsche acerca dos domínios inquebrantáveis da dialética, em especial a platônica. No capítulo intitulado A grande suspeita, Lebrun aposta numa rede interpretativa oferecida por Nietzsche em que questiona conteúdos que parecem inquestionáveis. Novamente, a exegese ganha no filósofo alemão um sentido outro, não da veneração, mas sim do desocultamento do mito. Vemos isso em alguns momentos de Nietzsche que pudemos explorar na breve análise que sugerimos na primeira parte deste trabalho.

O antisocratismo de Nietzsche, dirá Lebrun, começa pelo reforço na formação de um indivíduo auto suficiente, em relação à “vida ética das massas”9, porém, ao mesmo tempo, submisso e passivo, “sem condições de mandar, incapaz de instituir, incapaz para qualquer emprego político” (LEBRUN, 1988, p. 116). O que estaria por trás da formação deste individuo paradoxal é a “pedagogia” de Sócrates, a qual propõe uma substituição da autoridade. Autoridade esta que é simplesmente a negação de todas as pulsões, razão necessária do adestramento. Este conteúdo nos remete novamente ao Problema de Sócrates (NIETZSCHE, 2006), em que a decadência socrática seria, de todo modo, a expressão da repressão e dissolução dos instintos, ao mesmo tempo, que pretensamente quer valer-se de restaurador, apoiado numa real tendência universalista.

Poderíamos, com isso, entrever que tal universalismo confere a disposição necessária para o fortalecimento do dogmatismo socrático, o qual faria da verdade um impulso que atua não sobre a afirmação predicativa, mas sim pelo seu contrário, pela negação. Em outras palavras, a verdade sob essa perspectiva socrática não existe sem a consideração de seu duplo oposto, a saber, o erro. Neste sentido, a sentença verdadeira só ganharia cidadania no mundo quando garantisse um parentesco com a afirmação do seu contrário.

Mais uma vez – assim como Deleuze –, agora segundo Lebrun, a interpretação de Nietzsche sobre o binômio Sócrates Platão confere aos trajetos de construção da verdade uma chave de leitura, que anunciam uma tópica celebrada em O avesso da dialética definida como ‘vontade de verdade’

9 Apoiado na leitura de Humano Demasiado Humano, Lebrun esclarece que este indivíduo auto- suficiente co-meça a ser formado desde o rompimento com a “vida ética das massas”, já presente no projeto da Polis desde Péricles. Op.cit., pp.114-115

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(LEBRUN, 1988, p. 142). Porém, adverte Lebrun, esta força promotora da vontade de verdade pode ser rebaixada e enfraquecida (na medida em que a força criadora se anula). Quando a verdade se cristaliza, seja pela indisposição do filósofo em lançar-se na busca de verdades ainda não evidenciadas, seja pela sua comodidade de continuar atuando com verdades que não são suas, a criação filosófica se torna inútil. Por fim, pode-se considerar que o modelo de verdade que é sustentado pela existência de seu oposto - o falso - é também uma forma de preservar o método socrático da dialética da falaciosa dóxa, a qual confiaria a verdade a critérios incertos, como esclarece Lebrun: “Se aquele que vive na doxa pode a qualquer momento ser vítima do engano, o homem-que-sabe está a salvo disso” (LEBRUN, 1988, p. 149).

Vimos até agora que tanto a verdade deficitária em sua autoafirmação, dependente do erro (ou da afirmação do seu contrário), quanto os universais abstratos podem revelar, em certa medida, quais pressupostos estão incutidos no jogo das ideias dialéticas. Esse tipo de análise pela qual passa tanto o arguto olhar de Nietzsche na Introdução, quanto na leitura de Deleuze em Nietzsche e a Filosofia poderiam nos revelar um expediente, neste caso, muito nietzschiano operado por Deleuze no capítulo sobre a Imagem do Pensamento em Diferença e Repetição (DELEUZE, 2006). Ali, vemos um desenrolar de uma busca periscópica por princípios incoativos, que se estabeleceriam antes dos conceitos, e pelos quais se oferecem as coordenadas para os traços de imagens dogmáticas do pensamento opositoras de qualquer ideia de afirmação da diferença. Em outras palavras, encontramos neste singular projeto deleuziano um notável trato com as linhas de pensamento na história da filosofia que se opuseram a diferença, de maneira explícita ou latente. Tal oposição, segundo Deleuze, acontece por dois motivos10: 1. pela inabilidade de seus próprios pressupostos no trato com a diferença (natureza reta do pensamento), ou 2. pelo amor dos pensadores pela verdade (boa vontade do pensador). No referido capítulo, Deleuze nos esclarece que tais postulados

“não tem necessidade de serem ditos [pelos conceitos]: eles agem muito melhor em silencio, no pressuposto da essência como na es-colha dos exemplos; todos eles formam a imagem dogmática do pensamento. Eles esmagam o pensamento sob uma imagem que é a do Mesmo e do Semelhante na representação [...]”. (DELEUZE, 2006, p. 240)

10 Esta hipótese, pela qual Deleuze identifica a filiação do pensamento filosófico ao senso comum, que parte das máximas aristotélica e cartesiana das quais se refugiam muitos ‘começos’ em filosofia, está exposta no primeiro postulado, do princípio da Cogitatio Natura Universalis. As máximas, como Deleuze as conhece são: “todo mundo tem por natureza o desejo de conhecer” e o “o bom senso é a coisa no mundo melhor repartida”. Cf. DELEUZE, 2006, p. 192

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Todavia, para a tarefa que ora nos ocupa nos limitamos a acompanhar o quarto postulado que, segundo Deleuze, sustenta a imagem do pensamento pela qual se projeta a representação, guiada pelo modelo da recognição, o qual submete todas as faculdades ao seu domínio.11 As faculdades às quais se refere Deleuze possui um evidente referencial ao projeto kantiano da doutrina das faculdades (DELEUZE, 2006, p. 199). Contudo, o filósofo francês oferece uma nova demarcação do domínio das faculdades, já que sua proposta é liberta-las tanto do modelo do entendimento quanto do modelo da recognição. Tanto um modelo como o outro estariam calcados na pulverização do senso comum, pelo qual se realizaria na concordância de todas as faculdades12. Este modelo que vincula o acordo entre elas seria celebrado também por Platão13. Segundo Deleuze, a reminiscência ainda guarda algo do modelo da recognição, pois mesmo que a reminiscência ultrapasse a estrutura básica da recognição, pois é necessário que a reminiscência conserve a identidade com alguma coisa, neste caso, com aquilo que só pode ser pensado, sem equivalência no sensível. Ora, o que se limita ao domínio do pensamento senão as qualidades impressas nos universais, como belo e o justo? É aí que Deleuze dirá que a “a reminiscência incide sobre um outro objeto, que se supõe associado ao mesmo, independentemente de uma percepção distinta. Esta outra coisa envolvida no signo deveria ser, ao mesmo tempo, o nunca-visto e no entanto já-reconhecido [...]” (DELEUZE, 2006, p. 206).

Além desta brecha, Deleuze teria encontrado outras duas características que manteriam a reminiscência dependente do modelo da recognição, e que já seria o prenúncio do modelo da representação (DELEUZE, 2006, p. 206). Uma das características é a introdução do tempo na reminiscência, visto que

11 No terceiro postulado Deleuze estabelece a crítica ao modelo da recognição que teria consumido o projeto de grande parte das filosofias, reduzindo a experiência do pensamento ao exercício ideal das faculdades. Cf. Op. cit., pp. 214-220. Este é então o modelo a ser contestado, pois para Deleuze, “quer se considere o Teeteto de Platão, as Meditações de Descartes, a Crítica da razão pura de Kant, é ainda este modelo que reina e que ‘orienta’ a análise filosófica do que significa pensar” Cf. Op. cit., p. 196.

12 O modelo da Crítica kantiana, marcada pela hierarquização das faculdades, revela, para Deleuze, uma subordi-nação perversa ora do entendimento ora da recognição sobre as outras faculdades. O problema para o filósofo é que nenhum modelo se esquiva à multiplicação do senso comum. Assim, dirá Deleuze, “se é verdade que o senso comum em geral implica sempre uma colaboração das faculdades sob uma forma do Mesmo ou do modelo da recognição, acontece que uma faculdade ativa entre as outras, é encarregada, segundo o caso, de fornecer esta formula ou este modelo a que todas as outras submetem sua contribuição.” Op. cit., p. 199

13 No capítulo reservado ao estudo da Repetição para si mesma, Deleuze reconhece que o modelo da represen-tação só ganha existência depois de Aristóteles, porém a teoria das Ideias, como grande arma contra o simula-cro, realidade enfraquecida na qual estariam mergulhados os sofistas, carregaria um invólucro do Mesmo e do Semelhante. Assim, a subordinação da diferença ao Mesmo e ao Semelhante da teoria das Ideias faria Platão partícipe do germe da representação, desenvolvido no capítulo seguinte, quando Deleuze se dedicará à denúncia das imagens dogmáticas do pensamento.

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a reminiscência atua por similitude ao evocar algo nunca visto, e mesmo sem equivalência real. Mas introduzir o tempo é antes um mérito do que um ‘defeito’ da reminiscência; o problema reside, segundo Deleuze, no tempo subordinado ao ciclo físico, pelo qual condicionaria o pensamento a uma boa natureza e a uma resplandecente clareza (DELEUZE, 2006, p. 206). Por fim, a reminiscência seria condenada à identidade ideal ou ao Mesmo, ao tratar daquilo que só pode ser pensado. Ou seja, na medida em que a determinação de algo convoca a presença do universal (o pensamento puro), a definição é perpetuada pela oposição, como dirá Deleuze. Para o filósofo, esses opostos equivalem à “grandeza, que é tão-somente grande, a Pequenez, que é tão-somente pequena, o Peso, que é tão-somente pesado, ou a Unidade que é tão-somente Una” (DELEUZE, 2006, p. 207).

Diante dessas características que sustentam a recognição na teoria da reminiscência, haveria pelo menos uma que coincide com o pressuposto também visto por Nietzsche na Introdução, a saber, o ideal abstrato. O conjunto dessas características nos permite ensaiar uma prévia conclusão com Deleuze:

“Tudo culmina com um grande princípio: que apesar de tudo e antes de tudo, há uma afinidade, uma filiação, ou talvez seja melhor dizer philiação, do pensamento em relação ao verda-deiro, em suma, uma boa natureza e um bom desejo, fundados em última instância na forma de analogia do Bem, de modo que Platão que escreveu o texto da República foi também o primeiro a estabelecer a imagem dogmática e moralizante pen-samento [...]” (DELEUZE, 2006, p. 207)

Referimo-nos até aqui à preocupação de Nietzsche e Deleuze com a afirmação de uma verdade na filosofia que roga por pressupostos que vacilam entre a abstração e a necessidade de dizer o que precisa ser dito, a todo custo, de todo modo. A caminho de uma conclusão, trata-se de notar que a apropriação desses dois filósofos, tanto na Introdução quanto em Diferença e Repetição poderiam sugerir a visão de uma certa descompostura de Platão ao perceberem que a retidão, sua e de seu método, demonstram fissuras na coesão de um modelo indefectível. Acusação esta que se desdobra num iminente dogmatismo, que sussurra a condução de muitos caminhos do pensar, para que, ao fim e ao cabo, aqueles que o seguem possam contemplar sempre o mesmo horizonte.

É evidente que o platonismo não pode ser reduzido ao que o fragiliza nessas escolhas de Deleuze e Nietzsche. Do contrário, se retomarmos a fala

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de Foucault que usamos em nosso texto para preparar o leitor para o contato com as leituras controversas de Nietzsche e Deleuze, veremos que o que se produz sobre a interpretação não se limita aos seus resultados semânticos. São posturas como estas que abrem campos de exploração inteiramente novos, e libertam sentidos há muito cristalizados ao avançar numa recombinação dos elementos que compõem seja um conceito na filosofia ou um símbolo na cultura. Afinal, nem toda discordância é negativa, sobretudo se pensarmos com Deleuze ao dizer que “a imagem do filósofo não sobrevive ao que ele soube encarnar por um tempo em uma época. É preciso que ela seja retomada, que ela encontre um novo campo de atividade na época seguinte”. (DELEUZE, 1962, p. 122). Assim, resta-nos questionar: se o antiplatonismo dos nossos autores teria contribuído para manter a atenção do exercício filosófico sobre o pensamento de Platão, por que não dizer que o fizeram a favor de seu uso, para que se estenda seu campo de ação e suas possibilidades de pensar o platonismo como imagem do pensamento ainda viva?

Referências Bibliográficas

DELEUZE, Gilles. Différence et répétition, Paris: P.U.F., 1968. Diferença e Repetição, trad. bras. Luiz B. L. Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2ªed., 2006.

__________. Nietzsche. Paris: PUF, 1965.

__________. Nietzsche et la Philosophie. Paris: PUF, 1962.

FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud e Marx. Theatrum Philosoficum, trad. port. Jorge Lima Barreto, Porto: Anagrama, 1987.

__________. Dits et Écrits. Paris: Gallimard, 2001.

__________. As palavras e as coisas, tr. br. Salma Tannys Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

GOLDSCHMIDT, Vitor. Os diálogos de Platão, estrutura e método dialético, trad. bras. Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 2002.

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João Evangelista FernandesMestrando em Filosofia/ Universidade Estadual de Maringá[email protected]

A filosofia da vida e o círculo hermenêutico segundo Wilhelm Dilthey

Resumo Neste trabalho, pretendo expor como Wilhelm Dilthey, na recusa do idealismo e da metafísica, bem como do positivismo, aplicados ao estudo das ciências humanas, propõe um novo fundamento para tais ciências, a saber, a vida. O estudo do homem e suas produções deve ter seu ponto de partida na vida, que, segundo Dilthey, pode e deve ser abordada de maneira objetiva, tal como no procedimento das ciências naturais. Esta empresa, denominada por Dilthey “crítica da razão histórica” (Cf. GRONDIN, 1999, p.146), implicará uma Filosofia da vida segundo a qual a vida se interpreta a si mesma, fazendo com que o método do círculo hermenêutico deixe de ser apenas método, passando a constituir o “objeto” da investigação, operando, assim, uma mudança na hermenêutica.

Palavras chave círculo hermenêutico; história; filosofia da vida; vivência; indivíduo.

Introdução

A hermenêutica, como arte de interpretação e exegese de textos, existe desde a antiguidade, porém, até o século XVII, não era sequer nomeada como tal. Nesse processo em que ela se torna uma crítica à exegese e à filologia, Martinho Lutero e seu colaborador, Mathias Flacius Illyricus, têm grande importância, embora sua hermenêutica seja restrita à exegese escriturística. Mas, segundo Grondin, já no século XVII, com Dannhauer,

artig

o

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Meyer e Chladenius, a hermenêutica começa a buscar uma universalidade metodológica de compreensão e interpretação (Cf. GRONDIN, 1999, p.13). No entanto, é no círculo dos românticos que a hermenêutica ganha impulso, mais específicamente com Schleiermacher, a quem é atribuída a criação da hermenêutica clássica como ciência a partir da sistematização do círculo hermenêutico.1 Posteriormente a Schleiermacher, destacam-se Droysen e Dilthey como pensadores que se utilizaram do método do círculo hermenêutico. Estes teóricos se dedicaram à compreensão e intepretação da História, da Teologia e da Filosofia através de textos escritos, obras de arte e outras possíveis fontes. O que eles têm em comum é o fato de utilizarem como método o círculo hermenêutico, cujo objetivo é a compreensão do todo pela parte e da parte pelo todo.

O propósito do nosso trabalho é apresentar a apropriação, por Dilthey, do método do círculo hermenêutico em função de sua crítica da razão histórica, a qual tem como fundamento a vida. Isto fará com que o círculo hermenêutico seja constitutivo da vida vivida, assumindo, portanto, uma característica que vai além do método, ocasionando uma revolução na hermenêutica que passa a ser uma hermenêutica da vida.

A crítica da razão histórica como filosofia da vida

Dilthey, com seu projeto de uma “crítica da razão histórica”, pretende fazer o que, segundo ele, Kant não fez na crítica da razão pura, que é dar uma base epistemológica aos estudos humanísticos. Para a compreensão do homem é preciso elaborar categorias derivadas da vida e não categorias abstratas, intemporais, estáticas e, portanto, exteriores à vida, como pretendia Kant (Cf. PALMER, 1969, pp.107-9). Por isso, através da crítica da razão histórica, Dilthey pretende superar a diferença entre a abordagem das ciências naturais e a das ciências humanas, defendendo que estas últimas podem ser tratadas

1 Costuma-se a atribuir a Schleiermacher a sistematização do círculo hermenêutico, o que é justo; porém, antes dele, Friedrich Ast e Friedrich Schlegel, considerados como pré-românticos, iniciaram, por assim dizer, a herme-nêutica romântica. Segundo Grondin, “O empreendimento de Ast é, naturalmente, estruturado universalmente, uma vez que se trata da evidência hermenêutica do único, idêntico espírito em todas as suas manifestações, oriundas da Antigüidade. Nesse contexto se acrescenta nova relevância à doutrina hermenêutica do ‘scopus’, segundo a qual cada passagem deverá ser explicada segundo sua intenção e seu contexto: cada manifestação particular deverá, agora, ser concebida a partir da totalidade do espírito. Com isto, a idéia do ‘Círculo hermenêu-tico’, como ela será chamada mais tarde, obtém talvez sua primeira e ao mesmo tempo universal característica” (GRONDIN, 1999, p.120). Diante dessa constatação, pode-se atribuir a Schleiermacher a sistematização do círculo hermenêutico, cuja formulação original, porém, foi de Ast, que, juntamente com Schlegel, exerceu grande influ-ência sobre o pensamento de Schleiermacher.

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de modo objetivo como aquelas; e mais, as ciências humanas são anteriores e, portanto, condição de possibilidade para as ciências naturais. Pois a vida e sua experiência dão origem às categorias da vida, que são compreedidas de maneira imediata e interna, através das revivências de estados psíquicos individuais, nas quais se fundamentam as ciências humanas, enquanto que as ciências naturais são fruto de especulações teóricas e posteriores à vida vivida. Esta é um colóquio interior, uma autorreflexão na qual se busca reviver a compreensão; enquanto aquelas são expressões conceituais oriundas desse colóquio (Cf.GRONDIN, 1999, p. 152).

Vida, experiência de vida e ciências humanas encontram-se, assim, em uma conexão interna estável e em uma relação de reciprocidade. Não é o procedimento conceitual que forma a base das ciências humanas, mas a percepção de um estado psíquico em sua totalidade e o reencontro desse estado psíquico na revivência. Vida apreende vida, e a força com a qual as duas capacidades elementares das ciências humanas são realizadas é a condição prévia para a completude em cada parte dessa ciência (DILTHEY, 2010, pp.95-6).

Esta pretensão de objetividade das ciências humanas, a partir da objetivação de estados psíquicos, desde o início apresenta-se como problemática, pelo fato de Dilthey estabelecer a vida como fundamento destas ciências, uma vez que a vida é pré-reflexiva, ou seja, está no âmbito anterior à reflexão. Ora, como abordar cientificamente algo anterior à reflexão racional, uma vez que é a partir da razão que a ciência é elaborada? A tentativa de dar um fundamento às ciências humanas partindo de reflexões histórico-filosóficas leva a um impasse, devido ao seu cartesianismo latente, o que é inconciliável com a filosofia da vida como ponto de partida. É o que diz Gadamer:

Dilthey exige que sua filosofia se estenda a todos os domínios em que ‘a consciência, por meio de uma atitude reflexiva e du-bitativa, encontre-se liberta do domínio de dogmas autoritários e aspire a um saber verdadeiro’. Essa afirmação, nos parece claro, reflete perfeitamente o espírito da ciência e da filosofia modernas em geral. A ressonância cartesiana de tal afirmação não pode, igualmente, ser ignorada. (...) (GADAMER, 1998, p.34).

Não obstante esta objeção apontada por Gadamer, a reflexão de Dilthey muito contribuiu para a hermenêutica, justamente por apresentar avanços tanto em relação à hermenêutica clássica quanto frente ao historicismo.

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Embora a hermenêutica não fosse seu objeto de estudo, pois, assim como Droysen, Dilthey não tem por preocupação fundamental o estudo da hermenêutica, esta é utilizada como método, aparecendo apenas em sua obra tardia. Foi mais especificamente em um de seus últimos manuscritos, intitulado “A edificação do universo histórico nas ciências do espírito”2, que lhe foi conferida a fama de pensador hermeneuta.

Nesses últimos manuscritos aparecem com frequência os conceitos vivência (Erlebnis) e compreensão (Verstehen). O conceito de vivência apresenta-se como conceito-chave e como fundamento para o estudo da vida psíquica, que inevitavelmente tem que se dar através de uma hermenêutica da vida (Cf. GRONDIN, 1999, p.151). Em relação ao historicismo, Dilthey aponta uma falha no fato de que Ranke e Droysen não confrontaram os pressupostos epistemológicos do idealismo alemão com os pressupostos epistemológicos da escola histórica; pelo contrário, confundiram uns com os outros de forma que se tornaram inconsistentes. Diante disso, Dilthey propõe a descoberta de um novo fundamento a partir da experiência histórica e da herança idealista da escola histórica. Trata-se de uma “crítica da razão histórica”, que, segundo Dilthey, somente é possível a partir de uma filosofia da vida, que unificaria a herança idealista da escola histórica à experiência histórica (Cf. GADAMER, 1998, p.28).

A filosofia da vida

A filosofia da vida (Lebensphilosophie), na qual a vida é compreendida de maneira imediata, opõe-se a todo sistema filosófico especulativo. Numa tal filosofia, as categorias devem ter seu fundamento na vida, e esta é objetivada a partir de tais categorias. Por isso Dilthey recorre fundamentalmente à tríade vivência, expressão e compreensão3, que, segundo ele, “formam o primeiro traço fundamental na estrutura das ciências humanas” (DILTHEY, 2010, p.97). Esta fórmula, adotada por Dilthey no intuito de enfatizar a vida em oposição

2 No original em alemão Der Aufbau der geschichtlichen Welt in den Geisteswissenschaften, traduzido por Marco Casanova como A construção do mundo histórico nas ciências humanas. São Paulo: Editora UNESP, 2010.

3 Em alemão, respectivamente: Erlebnis, Ausdruck e Verstehen. O termo Erlebnis é utilizado por Dilthey em um sentido “mais específico e limitado, forjado a partir do verbo erleben (experimentar, especialmente em circuns-tâncias individuais). (...) Assim o verbo ‘experimentar’ é em alemão aparentado com o verbo ‘viver’, uma forma enfática que sugere a imediatez da própria vida quando nos defrontamos com ela. (...)” (PALMER, 1969, p.113). Essa aproximação que há entre experimentar e viver, condensada por Dilthey no termo Erlebnis, faz com que al-guns o traduzam por “experiência” enquanto outros o traduzem por “vivência”. Doravante, quando nos referirmos ao termo Erlebnis, utilizaremos a tradução “vivência”, por considerarmos o termo mais fiel à intenção do autor.

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à especulação conceitual, é direta e permanentemente ligada à vida e, portanto, está no campo pré-reflexivo. Esta seria não só a maior contribuição de Dilthey ao campo da hermenêutica como também uma preparação do terreno para a fenomenologia de Husserl. Para a hermenêutica, a mudança trazida a partir da filosofia da vida está no fato transformá-la em uma interpretação da vida, partindo das vivências e revivências individuais para a compreensão das expressões da vida objetivada em um determinado contexto histórico; já para a fenomenologia a contribuição está no fato de que a vida é um fenômeno histórico e se objetifica na relação com o mundo exterior que também é um fenômeno histórico. O mundo e o indivíduo são unidos a partir das vivências, anteriores à reflexão. Eis a contribuição de Dilthey para a fenomenologia: a descoberta da consciência pré-reflexiva do mundo como algo dado imediatamente, vivenciado como algo anterior à dicotomia sujeito-objeto.

Ao fundamentar sua crítica da razão histórica na filosofia da vida, Dilthey posiciona-se contra a metafísica do sistema kantiano fundado em categorias abstratas; também se opõe ao idealismo hegeliano, para o qual há um espírito absoluto, cuja manifestação se dá como história universal e teleológica. Agora a vida, contrária à metafísica, é a base tanto da filosofia quanto da história. A vida é histórica. No entanto, a história é apenas uma objetivação da vida vivida. Não há mais um espírito absoluto e sim espírito individual, que vive e se manifesta numa relação com o mundo. Nesta relação a história é constituída de acordo com o mundo e seu contexto, que por sua vez são históricos. Isso faz com que espírito e história não sejam mais absolutos e metafísicos. A história parte da vivência de cada indivíduo particular, cujas objetivações, através de tais vivências, se dão de acordo com seu contexto histórico, bem como com seu mundo; ou seja, há uma influência do indivíduo sobre o mundo e sobre seu contexto, e deste sobre o indivíduo. Daí surge a história a partir da vida vivida; essa história é relativa à vida particular de indivíduos de um dado contexto histórico. Por isso o interesse de Dilthey em elaborar uma crítica da razão histórica fundada na filosofia da vida: sendo a vida histórica, é nela que a ciência histórica tem seu fundamento.

(...). No entanto, seria equivocado se quiséssemos restringir a história à ação conjunta de homens com fins comuns. O homem individual particular em sua existência baseada em si mesma é um ser histórico. (...) (DILTHEY, 2010, p.95).

Neste texto é afirmada a prioridade da vida concreta, vivida e, portanto,

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faz-se necessário levar em conta o indivíduo particular, no qual a vida é de forma imediata, só depois podendo ser objetivada e compartilhada com os demais, que, por sua vez, também são históricos e têm também suas vivências objetivadas e compartilhadas. Segundo Dilthey, há um nexo estrutural entre os indivíduos, o que não significa que tenham vidas comuns, mas que o que têm em comum é a vida histórica. Em outras palavras, a vivência, a compreensão e expressão da vida possibilitam a compreensão mútua dos indivíduos. Entretanto, isso não significa que a história se faça a partir dessa ação comum; ela se faz a partir da vivência objetivada de cada indivíduo, uma vez que a vida individual é histórica e a história se objetiva nas produções individuais de cada um, podendo ser, portanto, compreendida por outros indivíduos devido ao fato de estarem também dentro dessa estrutura vital. Nas palavras de Benedito Nunes:

(...) embora transindividuais, os fenômenos da realidade histórica, de que as ciências do espírito formariam os conteú-dos parciais, têm origem, segundo Dilthey, na estrutura psíqui-ca do indivíduo, e seu conhecimento é uma compreensão da experiência em que os produzem. (...). O conhecimento de qualquer parcela do mundo histórico é também histórico e rea-bre o processo de autognose – o conhecimento do homem por si mesmo, compreendendo-se nas suas produções exteriores, que são, ao mesmo tempo, formas expressivas. Ao exteriorizar-se, a vida se objetifica e se expressa. Sua própria estrutura é hermenêutica. Em última análise, a possibilidade das ciências do espírito deriva do caráter hermenêutico da experiência hu-mana, que se estrutura historicamente (NUNES, 2012, p.24).

As vivências, como objetivações da vida, são meios para se compreender a vida do indivíduo. “Na compreensão de um produto histórico enquanto a expressão para algo interior não está contida ainda uma identidade lógica, mas, sim, a própria relação de uma mesmidade de indivíduos” (DILTHEY, 2010, p.258). O conhecimento do indivíduo e de seu contexto histórico por meio de suas produções é uma compreensão da vida pela própria vida. Esta é, segundo Dilthey, individual enquanto vivida e revivida pelo indivíduo; total enquanto manifesta através de objetivações, as quais remetem à vivência de um indivíduo, isto, no entanto, a partir de uma relação com seu contexto histórico. Há, contudo, sempre uma prioridade do indivíduo. Essa preocupação em enfatizar e partir da vivência e revivência do indivíduo se deve a que “na história não se trata já de nexos que são vividos, como tais, pelo indivíduo

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ou que como tais podem ser revividos por outros. A argumentação de Dilthey só vale de imediato para o viver e reviver do indivíduo. (...).” (GADAMER, 1999, p.341). Ora, mas como falar em história e sociedade se a vida é vivida e manifesta no e pelo indivíduo? E os outros? A isto Dilthey responde que há uma conexão estrutural, própria da vida, que faz com que todas as realizações e efeitos particulares centrem-se em si mesmos, sem, contudo, ficarem totalmente fechados em si mesmos, de modo que as realizações particulares

(...) estão estruturalmente ligadas com uma totalidade na qual, a partir da significância das partes individuais, emerge o sen-tido da conexão do mundo histórico-social: e isso de tal modo que todo juízo de valor e todo estabelecimento de fins que se lance para o futuro precisam estar fundados exclusivamente nessa conexão estrutural (...). (DILTHEY, 2010, pp.98-9).

A compreensão de si mesmo é a base para a compreensão dos outros através de suas produções e manifestações vitais, mas o intuito dessa compreensão dos outros é o de compreender o saber histórico, que deve ser fundamentado na vida. Por isso Dilthey fala dessa conexão estrutural, que unifica as realizações particulares em uma totalidade formada já pela significância das realizações do indivíduo. “Cada indivíduo é ao mesmo tempo um ponto de cruzamento de conexões que atravessam os indivíduos, que subsistem nele, mas que se estendem para além de suas vidas (...). Assim, eles são sujeitos de um tipo ideal” (DILTHEY, 2010, p.94). Essa idealidade, bem como seu significado, segundo Dilthey, deve ser entendida como expressão da vida. “A própria vida, essa temporalidade em constante fluir, está voltada à configuração de unidades de significado duradouras. A própria vida se autointerpreta. Tem estrutura hermenêutica” (GADAMER, 1999, pp.345-6). O siginificado de determinado contexto histórico se fundamenta na vida vivida pelo indivíduo, que é o ponto no qual se dá a conexão estrutural, em que a vida é compreendida. Essa concepção do indivíduo, como histórico acima de tudo, cuja vida influencia e recebe influência de seu mundo e contexto históricos, faz com que a consciência não mais seja concebida no sentido representacional; a consciência, assim como o mundo, é histórica, é uma consciência da história de vida do indivíduo e da comunidade em que vive. Por isso Dilthey diz que a história tem a função de atuar “como consciência das comunidades em relação à sua história de vida e como memória dessas comunidades quanto ao seu percurso vital para a vida comunitária da humanidade. (...).” (DILTHEY, 2010, p.265).

A vida e suas manifestações particulares são a base para uma crítica

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da razão histórica. É nas vivências e revivências psíquicas do indivíduo que se encontra a possibilidade de fundamentação das ciências do espírito. A história, o significado, o mundo e a consciência são categorias da vida, que é histórica. A história é história da vida do indivíduo. Somente a partir dessa se pode fazer uma crítica da razão histórica sem cair nos extremos da metafísica e do empirismo. A experiência é primeiramente experiência da vida psíquica (interna) a qual, de certa forma, se dá numa relação com o mundo externo, embora seja imediatamente interna, posteriormente manifestando-se através do que Dilthey chama de objetivação da vida. Entretanto, por mais que a vida seja vivida e expressa de maneira unicamente individual, justamente por causa da vida e de sua conexão estrutural, a filosofia diltheyana da vida não incorre em solipsismo, pois através da mencionada conexão estrutural ou nexo vivencial, as experiências vividas pelos indivíduos podem ser compreendidas por outros indivíduos da comunidade.

(...) eu vivencio meus próprios estados, eu estou entrelaçado com as ações recíprocas da sociedade como um ponto de cru-zamento dos diversos sistemas dessas ações. Esses sistemas provieram da mesma natureza humana que vivencio em mim que compreendo nos outros. A língua em que penso emergiu no tempo, meus conceitos cresceram nessa língua. Eu sou um ser histórico até as profundezas não mais sondáveis de mim mesmo. Assim, surge agora o primeiro momento significativo para a resolução do problema do conhecimento da história: a primeira condição para a possibilidade da viência histórica re-side no fato de eu mesmo ser um ser histórico, no fato daquele que investiga a história ser o mesmo que faz a história. (...) (DILTHEY, 2010, pp.285-6).

A argumentação de Dilthey, recorrendo à vida individual e suas categorias, sustenta-se até determinado ponto. Vivência, compreensão e expressão como bases para a filosofia da vida, que é uma hermenêutica da vida, exercem bem o papel de possibilitar uma epistemologia das ciências do espírito apenas no que tange ao indivíduo e às suas manifestações indiviudais. Até aqui, parece certo o que o próprio Dilthey disse acima: “surge agora o primeiro momento significativo para a resolução do problema do conhecimento da história...”. O indivíduo é histórico, a história se manifesta em suas vivências objetivadas, as quais podem ser compreendidas por outros indivíduos da mesma comunidade, porém apenas vivenciadas por ele. O que possibilita a compreensão das vivências de outros indivíduos é o nexo estrutural, característico da natureza

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humana. Porém, Gadamer apresenta uma objeção em relação à concreção da tarefa de fundamentação epistemológica das ciências do espírito.

O passo decisivo que Dilthey terá de dar na sua fundamentação epistemológica das ciências do espírito será de empreender, a partir da construção do nexo na experiência vital do indivíduo, a transição ao nexo histórico que já não é vivido nem experi-mentado por indivíduo algum. Mesmo com toda a crítica à es-peculação, é necessário, nesse ponto, pôr sujeitos reais no lugar de ‘sujeitos lógicos’. Dilthey vê claramente essa aporia. (GAD-AMER, 1999, p.343).

De acordo com esse texto, parece claro o impasse surgido no projeto de Dilthey. Por mais que ele tentasse solucionar o problema do historicismo e do idealismo partindo de uma filosofia da vida, o idealismo persegue seu projeto como uma sombra. A ponto de Dilthey recorrer a conceitos hegelianos. Nas palavras de Gadamer:

(...), na medida em que é compreendida na perspectiva das idéias que a formam, a vida é submetida a um esquema de interpretação teleológica e é pensada como espírito. Concorda com isso o fato de que, em seus últimos anos, Dilthey se apóia cada vez mais em Hegel e começa a falar de espírito onde antes dizia ‘vida’. (GADAMER, 1999, p.348).

Salvo essas objeções apontadas por Gadamer, com certeza não as únicas que possam surgir em um projeto de tamanha envergadura como o de Dilthey, não podemos negar sua contribuição para a filosofia posterior a ele, sobretudo, como já apontamos, para a fenomenologia e a hermenêutica.4

4 Em relação à contribuição oferecida pela filosofia da vida de Dilthey para a hermenêutica filosófica moderna e contemporânea, é pertinente a menção à hermenêutica da facticidade heideggeriana que, da mesma forma que a filosofia da vida, faz com que o círculo hermenêutico não seja apenas um método, passando a constituir também “objeto” de investigação. Contudo, Heidegger percebe os limites da filosofia da vida, que, centrada no indivíduo e com sua pretensão de superar o racionalismo e empirismo exacerbado, acaba por sucumbir ao cartesianismo, devido a seu idealismo latente. Esta característica da filosofia da vida remete ao conceito de homem racional, bem como às demais categorias herdadas da tradição, o que, segundo Heidegger, impede a radicalização necessária, possível apenas a partir da facticidade (Cf. HEIDEGGER, 2012, p.34). Esta é condição de possibilidade para a sub-jetividade. Por isso, quando se diz que o intento de Heidegger é uma radicalização da filosofia da vida, há que se ter em mente que surgem, assim, os primeiros indícios de algo novo, que pretende uma mudança de paradigma, capaz de transformar a reflexão filosófica, fazendo com que esta deixe de ser mera especulação para ser um modo de ser do homem, o qual, por sinal, não mais se distingue em Heidegger por ser racional e sim por existir. Uma análise da diferença entre a hermenêutica da vida diltheyana e a hermenêutica da facticidade heideggeriana, embora seja um tema instigante, extrapola o escopo deste artigo.

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Para o propósito do nosso trabalho, o que importa é extrair da filosofia da vida o círculo hermenêutico, uma vez que o método do círculo hermenêutico apresenta-se na obra tardia de Dilthey como uma maneira de compreender a vida, que por sua vez é hermenêutica.

O círculo hermenêutico a partir da filosofia da vida

O indivíduo e suas vivências objetivadas constituem o ponto de partida para a crítica da razão histórica, possível apenas, segundo Dilthey, a partir da Filosofia da vida. Isto se funda em que a vida é vivenciada, como se viu, de maneira primeiramente interna (imediata) e depois externa através das manifestações do indivíduo, as quais intervêm no seu contexto histórico que, por sua vez, de alguma forma condiciona o indivíduo. Pode-se dizer que o indivíduo representa o particular, enquanto que o contexto histórico em que vive e sobre o qual exerce influência representa o todo. Neste caso o círculo hermenêutico se dá entre a vida vivida e suas objetivações, que nada mais são que expressões da vida e são compreendidas apenas a partir do contexto vital. A vida, que é hermenêutica, mantém esse nexo estrutural que “(...) está determinado por uma certa relação entre o todo e as partes. Cada parte expressa algo do todo da vida, e tem, portanto, uma significação para o todo, do mesmo modo que seu próprio significado está determinado a partir deste todo. (...).” (GADAMER, 1999, p.342).

Por isso Dilthey é considerado o pai da hermenêutica filosófica moderna. Sua maior contribuição está no fato de ter feito da vida o ponto de partida para a reflexão histórica, o que o levou a uma hermenêutica da vida, vida que é ela mesma, por sua vez, hermenêutica. A vida compreende a vida manifesta na história. Esta é primeiramente individual, sendo posteriormente manifesta através das vivências individuais objetivadas, passando a compor o todo. A história é, portanto, essa relação entre o particular e o todo, cujo ponto de entrecruzamento é o indivíduo e suas vivências objetivadas. O círculo hermenêutico, além de método, passa a ser constitutivo da vida. Com a tentativa de solucionar o problema do idealismo e do positivismo aplicados ao historicismo, Dilthey fez com que o círculo hermenêutico se desse na história concreta, ou seja, na vida. A interpretação desta se dá numa circularidade entre as vivências individuais e o todo, representado pelo contexto histórico em que se dão aquelas vivências.

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Marcel Albiero da Silva SantosDoutorando em Filosofia / Universidade Federal do Paraná[email protected]

A tese da primazia da ontologia da Vorhandenheit (disponibilidade1) e a necessidade de uma destruição da história da ontologia em Ser e Tempo

Resumo Lê-se em Ser e Tempo que uma ontologia radical não teria sido elaborada ao longo da tradição porque esta esteve presa a um conceito predominante e estreito de ser que obstava o deslinde da questão do ser: o conceito de ser como Vorhandenheit. Tal conceito de ser, de proveniência grega, é aquele que foi obtido tendo-se por parâmetro de que fosse o ente em sua totalidade

1 Traduzimos aqui Vorhandenheit por disponibilidade, mas em geral evitaremos tal tradução, bem como outra tra-dução qualquer, nas demais menções a este termo e variações adjetivas (vorhandene, etc.), dada a dificuldade de trazer numa palavra a riqueza conotativa do termo alemão. Nossa escolha por disponibilidade deve ser entendida em sentido amplo e em sentido estrito, tal como Heidegger emprega o termo original. Em sentido amplo, “algo está disponível” indica simplesmente: algo está já aí: “Heidegger compreende o termo Vorhanden, que significa a presença simplesmente disponível, no sentido forte do que está já presente, do que está constantemente dis-ponível sem estar já numa relação com um Dasein singular (DASTUR, 1990, p. 105 – desta afirmação de Dastur ponderamos, porém, que, a rigor, o ente vorhandene sempre tem de estar já numa determinada relação com um ser-aí singular, uma vez que este é distinguido pela compreensão ou abertura do ser). Nesse sentido amplo, portanto, disponibilidade indica intramundanidade, ou seja, o modo de ser do nicht daseinsmäßige Seiende, como observa Brague (cf. 1991, p. 407). Por outro lado, em sentido estrito, dizemos “algo está disponível” quando ninguém utiliza algo ainda ou não o utiliza mais, quando algo está na simples possibilidade de vir ao uso, e não no uso mesmo; não, portanto, quando já está na mão (zuhanden), mas quando está diante da mão (vorhanden). Tal sentido de disponibilidade contrasta com o de manualidade (Zuhandenheit), portanto. De fato, embasando nossa opção de tradução interpretativa, o Deutsches Wörterbuch dos irmãos Grimm – obra, como se sabe, muito estimada e consultada por Heidegger – reserva para Vorhanden (cf. GRIMM) equivalentes latinos tais como restare (opor-se, resistir, restar, manter-se), in promptu (à mão, ao alcance da mão, pronto, preparado, expedito, rápido), ad manum (em prontidão, à mão), praesto (pronto, à disposição), e paratus (provisão, preparado, o que se encontra disponível); cita também as expressões italianas alla mano pronto (pronto para vir à mão) e alla mana, cioè presto, in pronto (à mão, isto é, pronto, à disposição); e ainda o germânico gegenwärtig (presente, atual), associado semanticamente aos termos latinos, também citados, praesens (presente) e instans (que aperta, que insta, iminente, presente; é o particípio presente de insto: apoiar-se em, insistir, estar presente, urgir, ser iminente). Sobretudo nesse último sentido temporal de vorhanden como praesens, gegenwärtig, fica explícito, na palavra mesma, que a crítica heideggeriana à ontologia que se orientou pela Vorhandenheit seja, no fundo, o mesmo que crítica à ontologia da presença ou da presentidade. Notamos, a propósito, que Loparic traduz Vorhandenheit por presentidade (cf. 2004, p. 47).

artig

o

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aquele domínio do ente chamado por Heidegger de intramundano (nicht

daseinsmäßige Seiende). O óbice que tal conceito de ser representa consiste no seguinte: tendo sido aplicado ao ser-aí, vitimando-o com a atribuição indevida de caracteres ontológicos que não lhe pertenciam, o modo de ser da Vorhandenheit funcionaria como um entrave à conceitualização apropriada do ente que tem que ser analisado para o deslinde da questão do ser. Porque o ser-aí não pôde ser compreendido conceitualmente pela filosofia, o horizonte transcendental a partir do qual a questão do ser encontraria o seu lugar e o seu sentido não teria sido liberado: o resultado é o esquecimento do ser

característico da tradição filosófica, ou seja, a falta de colocação da questão do ser após as primeiras tentativas gregas. A fim de evitar o predomínio furtivo da ontologia da Vorhandenheit, Heidegger tem de instituir, de par com a analítica existencial, a tarefa de uma destruição da história da ontologia. Tal tarefa constitui-se numa atividade de vigilância crítica que procuraria denunciar as transgressões categoriais todas que vitimaram o fenômeno do ser-aí, a fim de delimitar o domínio em que tal ontologia categorial seria aplicável de forma válida, que é o do ente intramundano, e com isso preservar o ser-aí de uma conceitualização ou investigação a ele inapropriada.

Palavras-chave Heidegger, ontologia, destruição, analítica existencial, Vorhandenheit.

No § 77 de Ser e tempo, Heidegger comenta o fato de que o Conde Paul Yorck von Wartenburg, em correspondência trocada com seu amigo Wilhelm Dilthey, chamasse o ente não-histórico – ou seja, nos termos heideggerianos, o nicht daseinsmäßige Seiende ou Vorhandensein, ente que não tem o modo de ser do ser-aí – pura e simplesmente de “ôntico”, para diferenciá-lo do “histórico” (a “vida”): “Isso é apenas o reflexo do ininterrupto domínio da ontologia tradicional, que, proveniente da antiga colocação da questão sobre o ser, mantém a problemática ontológica numa estreiteza [Verengung] de princípio” (Heidegger, 1976, p. 403). Importa-nos aqui perguntar: qual a “estreiteza de princípio” que marca a ontologia antiga? E o que significa o “domínio ininterrupto” que ainda exerce tal estreiteza ontológica? E, por fim, o que Heidegger pretende com tal constatação acerca da história da ontologia? Trata-se de um mero diagnóstico doxográfico, ou nela está implícita uma

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proposta acerca do que fazer com a história mesma da ontologia?De saída, devemos notar que Heidegger nos diz ser essa estreiteza um

“domínio ininterrupto”; tal domínio exercer-se-ia sobre toda a tradição filosófica, da Antigüidade até, nomeadamente aqui, pelo menos as reflexões do conde filósofo. Tal domínio é a prevalência da ideia segundo a qual o que é (isto é, o ente, o ôntico) é aquilo que tem o modo de ser da Vorhandenheit ou disponibilidade, – aquilo, portanto, que não é o histórico, que não é a “vida” (humana). Em que pese sua tendência para compreender a historicidade, Yorck von Wartenburg mesmo é flagrado por Heidegger tendo de admitir que o propriamente histórico “não é, senão vive” (Heidegger, 1976, p. 401). É justamente essa recusa de admitir que o histórico seja que denuncia, para Heidegger, o fato de que a tradição filosófica tenha um conceito estreito do que seja ser: o conceito de Vorhandenheit. Quando algo como o fenômeno do ser-aí começou a despontar numa reflexão de cunho ontológico (pois Heidegger vê em Dilthey nomeadamente, mas também, é provável, em seu interlocutor, uma ontologia do ser-aí in nuce, ou, ao menos, o impulso para uma tal investigação), a saída encontrada, dada a atual força, vigência, primazia, da ontologia antiga, foi dizer desse fenômeno que ele “não é”, mas tão-somente “vive”.

Ora, tal observação de Heidegger não deixa de se fazer acompanhada da constatação de que os conceitos tradicionais da ontologia revelam-se de todo inadequados para exprimir a “realidade” propriamente histórica, isto é, para exprimir a consistência ontológica do ente que é propriamente histórico – do ser-aí. O histórico, de fato, não é, se ser define-se como Vorhandensein der Natur (cf. Heidegger, 1976, p. 401). A estreiteza do conceito de ser da ontologia antiga representa, desse modo, um verdadeiro óbice a uma investigação ontológica que tenha por tema o ser-aí.

Esse óbice não significaria, contudo, apenas que o ser-aí tivesse sido vislumbrado uma vez em seu caráter de ser específico, mas, em seguida (ou nesse instante mesmo), tivesse sido deixado de lado devido a preconceitos metodológicos. Não podemos compreender assim o papel que a tese da primazia da ontologia da Vorhandenheit desempenha na obra de Heidegger, pois a tese de Ser e Tempo será a de que, dada tal primazia, o ser-aí não tenha podido ser concebido em sua especificidade ontológica (em seu caráter de ser específico) pela tradição. Isso porque tal tese pretende que o ente como um todo, o ente como tal, tenha sido interrogado e concebido a partir do registro interpretativo, metodológico e conceitual da Vorhandenheit. Desse modo, Heidegger não estaria apenas dizendo que o ser-aí tenha sido descurado por uma investigação ontológica desde a Antigüidade, mas sobretudo que esse

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ente foi concebido como um Vorhandenes, como Vorhandensein, como mais um ente entre outros, possuindo essencialmente um mesmo e único modo de ser fundamental e hegemônico: o da Vorhandenheit.

Com isso, podemos dizer que, no diagnóstico heideggeriano, a tradição tenha operado uma verdadeira transgressão categorial2 no que diz respeito ao ser-aí: aplicou a ele conceitos (ontológicos) que não lhe cabiam, porque hauridos de outro domínio do ente (de outro modo de ser). Seria como se na ontologia antiga se tivesse pensado: se o ente em geral é vorhanden, então o ente que nós somos também há de o ser; se as categorias são os caracteres ontológicos do ente em geral, então o ser-aí deve ser compreendido e explicitado categorialmente, com os mesmos meios de que se deve servir na compreensão e conceituação do ente em geral. Tal conceituação do ser como Vorhandenheit inflecte, portanto, sobre a determinação conceitual mesma do fenômeno do ser-aí, como se vê no trecho a seguir:

E, ademais, porque a compreensão vulgar de ser compreende “ser” indiferentemente como Vorhandenheit, o ser do histórico-mundano3 [Welt-Geschichtliche] é experimentado e interpretado no sentido do ente disponível que vem, se apresenta e desa-parece [ankommende, anwesende und verschwindende Vorhandene] (Heidegger, 1976, p. 389).

Por transgressão categorial, portanto, queremos aqui indicar a atribuição (indevida) de caracteres categoriais ao ser-aí, de maneira que são transgredidos os limites dentro dos quais tal atribuição seria legítima (que são, como veremos a seguir, os do ente intramundano). É a tese de Heidegger: o ser-aí foi sempre, ao longo da tradição metafísica, interpretado categorialmente – isto é, segundo o modo de interrogação e concepção do ente intramundano, categorial –, e não existencialmente.

É digno de nota mencionar que Heidegger compreende que essa hegemonia da Vorhandenheit é de origem grega; com isso deve ficar indicado que o relacionamento de Heidegger com a tradição filosófica grega é essencialmente crítico. Se, de um lado, foram os gregos que puseram em marcha pela primeira vez um questionamento filosófico autêntico – isto é: ontológico –, e, com isso, as teses ontológicas gregas encontram-se, muitas delas, contempladas respeitosamente em Ser e tempo, de outro lado, Heidegger nota que na nascente mesma da ontologia a fonte já secou tão logo tenha jorrado: os

2 Valemo-nos da expressão no sentido em que Reis a emprega (cf. 2000, p. 281), para designar a atribuição ina-propriada de caracteres categoriais ao ser-aí.

3 O “histórico-mundano”, nessa citação, é o ser-aí.

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gregos mesmos não teriam tido olhos para outro conceito de ser que não fosse esse que até hoje predomina. Como bem observa Brague, o “retorno aos gregos” que Heidegger empreende nada tem que ver com o zurück zu Kant dos neokantianos; antes, trata-se de um retorno crítico: trata-se de, indo na sua direção, ultrapassá-los, “entender os gregos melhor do que eles entenderam a si mesmos” (cf. 1991, p. 401-2)4.

De todo modo, é fato que, mesmo no caso da ontologia do ente intramundano (do nicht daseinsmäßige Seiende), a estreiteza da ontologia antiga é patente para Heidegger:

Os gregos tinham um termo adequado para as “coisas”: πράγματα, isto é, aquilo com que se tem o que fazer na lida (πρᾶξις) ocupada. Contudo eles deixaram na obscuridade, do ponto de vista ontológico, justamente o caráter “pragmático” específico dos πράγματα e os determinaram “de saída” como “meras coisas” (SZ, p. 68).

Assim, no caso do conceito de manualidade (Zuhandenheit) – mesmo no domínio da ontologia do ente intramundano, portanto –, Heidegger pretende estar dando um passo que não fora dado pela tradição. Com efeito, Heidegger destaca o fato de que a Vorhandenheit (stricto sensu) é um fenômeno derivado, fundado, quando em comparação com a manualidade, que constitui o “em-si” (“An-sich”) do ente intramundano (cf. Heidegger, 1976, §§ 15 e 16), de modo tal que despe a pretensão de originalidade da ontologia antiga, baseada no primado da Vorhandenheit, isto é, baseada na (pretensa) originalidade e no caráter fundamental e primário (pretensos) de tal conceito de ser.

Mas Heidegger pretende ir ainda mais longe: a tradição teria interpretado o ser-aí categorialmente; a estreiteza do conceito de ser atinge não só a ontologia no que diz respeito à determinação do modo de ser do ente intramundano, mas sobretudo motiva a transgressão categorial no que diz respeito à consideração temática do ser-aí. O seu diagnóstico crítico, de fato, varre um amplo espectro, que vai da ontologia grega de Platão e Aristóteles à filosofia husserliana: toda a tradição filosófica teria interpretado o fenômeno do ser-aí a partir dos caracteres ontológicos pertencentes ao ente intramundano. Desse modo, o fenômeno do ser-aí – a abertura para o ser, o ser-no-mundo, o ente histórico – foi desde sempre vitimado pela transgressão categorial. Com isso, Heidegger pretende pôr a nu o preconceito ontológico todo da filosofia antiga, mas também da filosofia moderna e contemporânea,

4 Talvez seja forte e mesmo exagerada, mas não deixa de ter lá a sua verdade, a afirmação, desse comentador, de que Heidegger pretendesse, com Ser e tempo, escrever o texto original da filosofia – jamais escrito e puramente possível – do qual a tradição toda não foi senão cópia, paráfrase (cf. Brague, 1991, p. 419-420).

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ainda que, expressamente, o pensamento moderno tenha pretendido se colocar numa posição crítica e inaugural em relação à ontologia antiga; tal preconceito é o conceito antigo de ser – de ser como Vorhandenheit. Ou seja, o fenômeno do ser-aí permaneceu essencialmente deturpado para a filosofia, que, desde a Antigüidade grega, seria devedora de uma implícita5 ontologia baseada na Vorhandenheit6.

Uma primeira tentativa, em Ser e tempo, de explicar a causa da exegese do ser em geral como sinônimo de Vorhandenheit vemos no seguinte trecho:

A ontologia antiga tem por solo exemplar de sua interpretação de ser o ente que se encontra dentro do mundo [isto é, intra-mundano]. Como modo de acesso a ele vale o νοεῖν ou então o λόγος. É aí que ela encontra o ente. O ser desse ente precisa, porém, ser apreendido em um λέγειν (deixar ver) distinto, de modo que esse ser seja compreensível antecipadamente como aquilo que ele é e em cada ente já é. A interpelação já sempre prévia do ser na discussão (λόγος) do ente é o κατηγορεῖσθαι (Heidegger, 1976, p. 44).

Para Heidegger, desse modo, os gregos tomaram por parâmetro do conceito de ser (em geral) o modo de ser do ente intramundano – e daí é que deriva o primado da ontologia da Vorhandenheit7. A base exemplar ou o modelo da ontologia antiga é o ente intramundano num determinado como (Wie) ou modo de ser em que pode surgir, tornar-se acessível, categorialmente: o da Vorhandenheit; a base exemplar é, assim, o vorhandene Seiende, o Vorhandene (o ente disponível). Isso não significa, porém, que os gregos tenham sido algo como positivistas avant la lettre, que tenham se contentado, em sua investigação ontológica, com aquilo que lhes fosse dado empiricamente. Em verdade, o que os gregos fizeram foi, mesmo na investigação ontológica daquilo que não fosse um ente intramundano, eleger como modelo do que é,

5 “Implícita” porque, segundo Heidegger, ainda que se trate não de ontologia, mas, por exemplo, de teoria do conhecimento, um tal pressuposto ontológico – o de que ser é Vorhandenheit, categoria – encontra-se sempre vigente de modo sub-reptício na tradição.

6 Ou, também, baseada na presentidade, como observa Brague (cf. 1991, p. 408; cf. também nossa nota de rodapé sobre a tradução de Vorhandenheit por disponibilidade, in fine, sobre as acepções temporais do termo).

7 A despeito de ser decisiva para entender o porquê de os gregos terem tomado a Vorhandenheit como sinônimo de ser em geral, uma análise da fenomenologia do cotidiano de Ser e tempo, na qual é mostrada a decadência (Verfallen) constitutiva do ser-aí como uma tendência para se auto-interpretar em seu ser a partir daquilo com que lida (entes intramundanos), não a desenvolveremos aqui, por ser tarefa que exigiria todo um capítulo à parte.

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como modelo do que “existe”8, o ente intramundano; é assim, por exemplo, que mesmo a investigação antiga sobre a ψυχή, a alma do homem, teria sido compreendida sob a rubrica da Vorhandenheit.

De modo mais fundamental, no entanto, devemos lembrar aqui, em breves linhas, que Heidegger propõe, no § 5º de Ser e tempo, que a origem mesma do conceito de ser como sinônimo de Vorhandenheit encontra amparo especialmente na exegese do tempo como se fosse originariamente presença (Anwesenheit), a qual marcaria decisivamente a história da filosofia ocidental. Em última instância, o primado da ontologia da Vorhandenheit encontra-se fulcrado no antigo conceito de tempo (pretendendo-se originário) como presente, o qual remonta a Aristóteles (cf. Heidegger, 1976, p. 26). Pois, diz-nos Heidegger em outro lugar, “[…] de acordo com o conceito antigo de ser – propriamente é o que sempre é [eigentlich ist, was immer ist]” (1979, p. 241): ser significa “ser-presente”; na modernidade, nomeadamente em Descartes, por exemplo, ser ainda será ständige (também: beständige) Vorhandenheit, ständige Verbleib, expressões que preservam e enfatizam a acepção temporal presente (cf. Heidegger, 1976, p. 95 ss) – o que mostra a pregnância do antigo conceito de tempo ao longo da tradição metafísica. Com efeito, todos os conceitos periféricos de que Heidegger se serve para expor o conceito de Vorhandenheit (como os conceitos-qualificativos: vorfügbar, vorfindlich, etc.) remetem, em última instância, sempre a um certo modo de temporalidade nele implicado: o do já presente (schon Anwesende). Será o conceito de presença (Anwesenheit), aliás, que Heidegger preferirá, em sua obra madura, e que resumirá as concepções de ser legadas pela tradição (cf. Brague, 1991, p. 407-8).

Portanto, seja para a ontologia platônico-aristotélica com sua ψυχή e a antropologia greco-cristã com seu homem racional, criatura de deus, seja para as concepções que abrangem toda teoria do conhecimento (Erkenntnistheorie) – desde o sujeito substancial cartesiano à consciência intencional husserliana –, o diagnóstico será um e o mesmo: interpretou-se o ser-aí categorialmente, ou seja, como um Vorhandenes, como um ente entre outros, como se possuísse o mesmo modo de ser de todo e qualquer outro ente (intramundano) que se encontre ou que ocorre tal como se encontra ou ocorre qualquer outro ente – e assim o caráter existencial específico, próprio, distinto (augezeichnet) do ser-aí manteve-se encoberto, deturpado.

Se, nos termos da seção introdutória de Ser e tempo, uma hermenêutica do ser-aí é indispensável ao deslinde da questão do ser, a analítica

8 As aspas indicam que estamos a utilizar o termo em sentido corriqueiro e indiferenciado, não no sentido utili-zado por Heidegger.

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existencial terá, então, de trazer à tona os caracteres ontológicos próprios do ser-aí; ou seja, a referida analítica consistirá na explicitação ou descrição hermenêutico-existencial das estruturas de ser do ser-aí. É assim que no § 9.º da obra há de se começar por distinguir os caracteres ontológicos próprios, exclusivos, desse ente – os existenciais – dos caracteres ontológicos categoriais – manualidade (Zuhandenheit) e disponibilidade (Vorhandenheit) – pertencentes ao ente restante, denominado intramundano, sem que se permita haver aqui a menor sombra de confusão ou indistinção entre esses modos de ser incomensuráveis entre si. Aqui, então, tem de ficar manifesto que, a despeito de o ser-aí ser apresentado como absolutamente distinto dos demais entes, ele não é apreendido como sujeito ou consciência que encontra objetos a ele contrapostos. A distinção do ser-aí em relação ao ente intramundano não se confunde, pois, com a distinção moderna entre sujeito ou consciência e objeto; sujeito ou consciência não é o mesmo que ser-aí. Pelo contrário. Consciência ou sujeito, para Heidegger, é um conceito que encontra suas raízes na ontologia antiga, e mesmo quando se trata das versões não-substanciais ou não-coisificadas, como a de Kant ou a de Husserl:

Toda idéia de “sujeito” – caso ela não seja esclarecida por meio de uma prévia determinação ontológica fundamental – partici-pa ontologicamente do ponto de partida [Ansatz] do subjectum (ὑποκείμενον), por mais que se queira, do ponto de vista ôn-tico, enfaticamente combater contra a “substância da alma” ou a “coisificação da consciência”. [...] Não há, pois, nenhum ca-pricho na terminologia quando nós evitamos esses termos, da mesma maneira que as expressões “vida” e “homem”, para des-ignar o ente que nós mesmos somos (Heidegger, 1976, p. 46).

É por tal motivo, aliás, que Gadamer, evocando a constatação heideggeriana da estreiteza ontológica da tradição, bem explicita o que está em jogo na acusação da dívida que mesmo a fenomenologia husserliana, “por participar do ponto de partida do ὑποκείμενον”, teria com a ontologia antiga:

“Ser” não precisa ser compreendido apenas como aquilo de que eu estou consciente que está aí – ou como o Heidegger tardio o interpreta: que está presente. Com o conceito da auto-presença, isto é, com a auto-aparição do fluxo da consciência, Husserl achava que tinha apreendido a essência da consciência do tempo. A crítica heideggeriana visa à estreiteza de tal con-cepção de ser. Heidegger mostra que a constituição fundamen-tal primária do ser-aí humano é com isso desconhecida. O ser-

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aí não consiste na tentativa sempre ulterior de se colocar diante de si mesmo em meio ao tornar-se consciente de si. Ele é muito mais uma dação que se lança para além, e, em verdade, não apenas para as suas representações, mas antes de tudo para a não-dação do futuro (2007 B, p. 17-18).9

A elaboração da distinção ontológica radical do ser-aí em relação aos demais entes é a tarefa da analítica existencial justamente porque o fenômeno do ser-aí teria passado deturpado ou encoberto ao longo de toda a tradição filosófica, uma vez que teria sido desde sempre vitimado pela transgressão categorial. Pois bem: uma ontologia radical só pode ter vez se for liberado o horizonte transcendental desse questionar, o que requer uma analítica preparatória do ser-aí. Eis por que uma autêntica e radical ontologia fundamental (compreendida aqui em sentido lato, como o próprio deslinde da questão do ser) não chegou a se desenvolver ao longo da tradição, reclamando agora a atenção e a mobilização (Zurüstung10 – cf. Heidegger, 1976, p. 437) total da filosofia para a contenda (Streit – id., ib.) pelo ser: porque, dada a primazia da ontologia da Vorhandenheit, a encobrir continuamente o modo de ser do ser-aí, nunca se pôde liberar o horizonte transcendental da questão do ser, que carece de um esclarecimento ontológico prévio sobre o ser desse ente em especial. O modo de ser do ser-aí é incomensurável com o pertencente ao ente intramundano, isto é, não se deixa compreender conceitualmente pelo modo como se compreendem os caracteres categoriais – e a filosofia, no entanto, não teria destacado suficientemente tal incomensurabilidade, não deixando aflorar, por causa disso, o horizonte transcendental da questão do ser.

Com esse encobrimento do ser do ser-aí (e com a conseqüente não-liberação do horizonte transcendental da questão do ser) dá-se, pari passu, portanto, um encobrimento do ser mesmo – ou seja: a uma interpretação que parta da Vorhandenheit corresponde tanto uma interpretação do ser-aí como ente entre outros – e não em sua radical distinção (Auszeichnung) –, como uma confusão entre ser e ente, motivada pela falta da liberação do horizonte transcendental da questão do ser – de modo que o ser não é visto em sua radical diferença em relação a todo e qualquer ente, a qual Heidegger chamará, mais tarde, no seu curso Die Grundprobleme der Phänomenologie,

9 É notável, nesse comentário de Gadamer, que seja explicitada a conexão entre autoconsciência (fazer-se intuiti-va e reflexivamente presente para si) e o conceito antigo de ser segundo o qual “propriamente é o que sempre é”.

10 O termo indica prontidão para a guerra, para o combate; daí Heidegger vinculá-lo a Streit (luta, conflito, con-tenda, lide, litígio, controvérsia, pleito).

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diferença ontológica11. A analítica existencial tem, portanto, por tarefa realizar uma inédita exposição de um fenômeno que, a despeito de sempre ter sido pressuposto pela tradição, manteve-se, porém, encoberto. E com a seguinte finalidade: “Ela deve, antes, preparar a liberação do horizonte em favor da mais originária interpretação do ser” (Heidegger, 1976, p. 17). Mas, para isso, não seria necessário um cuidado especial em relação aos conceitos tradicionais da filosofia, impregnados de um pressuposto ontológico dominante: o de que o padrão (modo) de ser do que é seja o do ente intramundano?

Antes de respondermos a essa questão, e para chegarmos à resposta, consideremos que, de mais a mais, essa interpretação que considera o ser-aí a partir da categoria da Vorhandenheit é o que Heidegger chama ôntica12 – em contraposição à ontológica. O autor a denomina ôntica porque ela aceita de modo indiscutível a antiga tese legada, segundo a qual ser em geral é sinônimo de Vorhandenheit; é, pois, ôntica na medida em que carece de uma clareza propriamente ontológica sobre o seu conceito de ser, cuja admissão é sub-reptícia, pressuposta, não-discutida, inconteste. Uma investigação filosófica ôntica, que não discuta o seu pressuposto ontológico – o conceito de ser já vigente para ela –, termina por admitir, à revelia de toda e qualquer vigilância crítica, o conceito de ser legado pela tradição. Por outro lado, uma investigação autenticamente ontológica – tal como a que Heidegger pretende desenvolver – não pode já de saída sucumbir à obviedade de um tal conceito de ser em geral que foi legado. Isso deverá significar que uma autêntica exegese ontológica deverá sempre procurar se resguardar dos conceitos ontológicos fundamentais que a tradição lega. É aqui que chegamos ao conceito do que seja destruição (Destruktion) da história da ontologia, como etapa coessencial (de par com a etapa da analítica existencial) do deslinde da questão do ser.

Na repetição da questão do ser (ou: colocação da questão do ser) entremeia-se, pois, a tarefa de uma destruição da história da ontologia. Com tal conceito, Heidegger pensa a tarefa de pôr a salvo da autoridade do óbvio as “certidões de nascimento” dos conceitos ontológicos fundamentais

11 Se bem que Gadamer nos dê notícia de que já no início da década de 20 Heidegger empregasse tal termo entre seus alunos (cf. 2007 A, p. 19 e p. 90-91). A primeira referência textual do termo é a do curso supramencionado; a primeira referência textual publicada é a do texto Da essência do fundamento, publicado em 1929.

12 Notemos o seguinte: ôntico é termo polissêmico em Ser e tempo. No caso aqui em análise, é usado como sinô-nimo de investigação que dá o conceito de ser por pressuposto, por óbvio; contrapõe-se, então, a ontológico, a uma investigação que considere o ente quanto a seu ser. Mas há também um outro sentido de ôntico, comumente associado a existenciário, que indica aquilo que pertence ao ser-aí enquanto ente distinto (ausgezeichnet) que é; é assim que encontramos, por exemplo, o conceito ôntico-existenciário de mundo como o em-quê (Worin) do ser-aí fáctico, ou o primado ôntico do ser-aí, que consiste em que ele seja determinado pela existência.

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(cf. Heidegger, 1976, p. 21). Tal tarefa urge em função de que a grande tradição filosófica ocidental teria por pressuposição fundamental um conceito dominante de ser (ser = Vorhandenheit), cuja proveniência não teria sido suficientemente pensada, por estar acobertada pela obviedade (Selbtsverständlichkeit). A obviedade é o que nutre a imiscuição furtiva desse conceito antigo de ser no que nos foi legado; ela é que alimenta o domínio inquebrantável da estreiteza ontológica de que padece a tradição. Desse modo, a tarefa de uma destruição é requerida como instância de resistência ativa à “dependência” constitutiva13 do ser-aí em relação à tradição e sua sedutora obviedade, ou seja, resistência à tendência ou inclinação (do ser-aí) para decair na tradição sem dela apropriar-se.

Mas o que significa destruição, afinal? De modo geral, como nota Gadamer, para Heidegger:

[...] “destruição” não significava de maneira alguma “di-zimação”, mas tinha em vista uma desconstrução com uma meta segura: uma desconstrução das camadas sedimentadas que, por fim, outrora como hoje, não vêm ao encontro senão na língua realmente falada. O que estava em questão era, em outras palavras, a tarefa de se apropriar novamente ou descon-struir a linguagem conceitual de toda a história de pensamento que conduz do pensamento dos gregos, passando pelo latim da Antigüidade e da Idade Média cristã e pela sobrevivência dessa conceptualidade, até a formação do pensamento moderno e de suas línguas nacionais. Portanto, o que estava em questão era tratar desconstrutivamente a terminologia tradicional, a fim de reconduzi-la a experiências originárias (2007 A, p. 29-30).

Tal embate, portanto, com a ontologia da Vorhandenheit não significa que Heidegger pretenda sepultar ou dizimar a tradição filosófica. Antes, é o seu propósito delimitar o domínio em que o conceito de Vorhandenheit pode ter vigência – que será o domínio da intramundanidade –, resguardando o ser-aí de uma atribuição desavisada e inadequada das teses ontológicas que não lhe poderiam ser pertinentes porque vigentes apenas no âmbito do ente intramundano (ou: aplicáveis apenas ao ente com outro modo de ser que não o da existência). Nesse sentido, acreditamos que a tarefa de

13 Seja ressaltado: tal “dependência” não é um fenômeno negativo; antes, é constitutivo do ser-aí: “Explicitamen-te ou não, ele [o ser-aí] é o seu passado” (Heidegger, 1976, p. 20). Mas igualmente importante é ter em conta que a tradição, ao mesmo tempo em que “antecipa os passos” do ser-aí, termina por se deixar compreender como algo que encobre o que lega, chegando mesmo a “[...] obstruir o acesso às fontes originárias das quais as categorias e os conceitos transmitidos foram hauridos [...]” (Heidegger, 1976, p. 21).

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Ser e Tempo é, no que diz respeito às etapas da analítica existencial e da destruição, em sua colaboração, essencialmente crítica – e nos valemos aqui dessa palavra pensando justamente numa analogia com o empreendimento de Kant na Crítica da Razão Pura. Pois, ao menos num de seus níveis, a tarefa da Crítica consiste num esquadrinhamento (transcendental) do modo pelo qual opera a razão e, sobretudo, no cuidado aí implicado de separar o âmbito cognoscível, fenomênico, do âmbito apenas pensável, numênico. Ou seja: trata-se de delimitar o âmbito do cognoscível, como aquele em que as categorias do entendimento têm vigência e aplicação, para preservar o âmbito numênico, pensável apenas, da determinação categorial – interditando, com o “tribunal da razão” assim instituído, o uso transcendente das categorias do entendimento, transgressão que Kant denomina dogmatismo. No que diz respeito ao Heidegger de Ser e Tempo, pensamos que ele procede criticamente na medida em que, pretendendo esquadrinhar quais sejam os vários modos de ser, limita o âmbito do ente em que tem vigência a determinação ontológica da Vorhandenheit – que é o âmbito do ente intramundano –, resguardando o ser-aí, como âmbito essencialmente distinto do ente (melhor: como ente essencialmente distinto, ausgezeichnet), de uma conceituação apenas apropriada ao modo categorial de ser (intramundano). Não se trata, pois, de pura e simplesmente negar e aniquilar a Vorhandenheit, pois o ente intramundano tem, de fato, ou pode ter, este modo de ser; trata-se antes de interditar a (tendência de) exegese do fenômeno do ser-aí segundo o esquema da Vorhandenheit – tendência exegética da qual Heidegger julga encontrar provas sobejas na história da tradição metafísica. Enfim, o dogmatismo está para Kant como a ontologia da Vorhandenheit para Heidegger, sintomas, num caso ou noutro, de uma transgressão injustificada que requer uma prévia crítica (no primeiro caso, do órgão de nosso conhecimento, da razão; no segundo, dos modos de ser do ente).

Se Heidegger, por um lado, é um crítico da ontologia tradicional, por outro, com Ser e Tempo ele não pretenderá aplicar ao ente como um todo o novo modelo ontológico-existencial haurido do ser-aí, promovendo uma transgressão que então poderíamos denominar existencial. Heidegger não pretende tornar o historicismo absoluto, inaugurar uma nova era – de uma primazia, agora, da ontologia da existência. É bem verdade que verá as determinações categoriais sempre como derivadas (abkünftig) ou fundadas (fundiert) em relação às determinações existenciais – e isso porque o ser-aí é a compreensão de ser, o ente distinguido por um primado ôntico-ontológico, o ente que compreende não só o próprio ser, mas também o ser do ente intramundano. Mas, se, de um lado, Heidegger insiste nesse primado do ser-

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aí em relação ao ente intramundano, de outro lado, reivindicará sempre o domínio no qual as categorias encontram-se vigentes pleno juris: o domínio do ente intramundano.

Ora, justamente pelo fato de Heidegger compreender que o filosofar só é possível como escolha existenciária (existenziell), e por também compreender que o ser-aí que existenciariamente escolhe questionar o ser não pode se despir de sua historicidade (Geschichtlichkeit), de tal modo que o seu passado, sua tradição à qual pertence, encontra-se essencialmente vigente, abrindo-lhe o caminho e o horizonte compreensivo-interpretativo, entregando-lhe todo o arsenal conceitual a partir do qual se (man) compreende o ser e a si mesmo; enfim, justamente por isso, todo um cuidado especial deverá ser dedicado à recepção da herança conceitual que informa toda a compreensão ontológica vigente. Portanto, desde que se tenha clareza acerca da historicidade do próprio questionar o ser (do pôr em marcha a questão do ser), faz-se necessária uma apropriação positiva do passado, para ela (a questão do ser) “[...] entrar na posse integral das possibilidades mais próprias de questionamentos” (Heidegger, 1976, p. 21). Tal desvelo torna-se imprescindível uma vez que, dada a historicidade do ser-aí, ele tende não só a decair no mundo, mas igualmente na tradição a partir da qual nutriu-se sua educação (formação) toda. “Esta [a tradição] lhe subtrai a conduta por si mesmo, o questionar e escolher” (Heidegger, 1976, p. 21). Acresça-se a sedução da obviedade (Selbstverständlichkeit) com que a tradição adula as teses ontológicas que lega, tornando sempre mais e mais eficiente a sub-repção de pressupostos ontológicos nada esclarecidos filosoficamente, desarraigados das experiências originárias que animaram tais teses – como é o caso do próprio predomínio sorrateiro da ontologia da Vorhandenheit. É necessário, pois, que, ao lado da analítica existencial, uma atividade de vigilância crítica mantenha-se operante, promovendo o “[...] desenrijamento [ou: escavação, Auflockerung] de uma tradição endurecida e a remoção dos encobrimentos acumulados por ela” (Heidegger, 1976, p. 22).

Se, por um lado, a destruição não se confunde com dizimação, por outro, ela tampouco se confunde com doxografia. Ela se volta sem dúvida para o passado, compreende-se, pois, como “histórica” (historisch, cf. Heidegger, 1976, p. 21); mas ela visa é essencialmente ao “hoje”, à possibilidade de questionar atual – ao questionar “aqui e agora”, como possibilidade existenciariamente assumida. A destruição visa a permitir que o questionar atual concretize-se numa ontologia radical. Para tanto, para fazer-se pensamento ontológico concreto, segundo Heidegger, o questionar terá de desmantelar todo um aparato conceitual consolidado, que encapsula o fenômeno do ser-aí numa

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armadura conceitual cuja proveniência, não raro, encontra-se esquecida na obviedade – tudo de uma maneira tal que deturpa o fenômeno visado. Tal deturpação, tal encapsulação, na modernidade filosófica, tem nome: sujeito ou consciência. Tal é a última “figura” na qual o conceito de Vorhandenheit encontra-se vigente de modo furtivo, e que deve ser então devassada como modo de se liberar o fenômeno do ser-aí e, com ele, o horizonte da questão do ser. Gadamer é especialmente claro quanto à articulação entre a tarefa de destruição da tradição, a proposta de uma analítica do ser-aí e a reabilitação da Seinsfrage:

Mas o que distingue Heidegger é o fato de ele ter conseguido destruir esse encobrimento efetivo no campo conceitual mais próprio à filosofia. A destruição do conceito de “consciência” é em verdade a reconquista da pergunta acerca do ser. O que constitui o caráter revolucionário no empreendimento heideg-geriano é o fato de ele não colocar a pergunta crítica por detrás da consciência, [...] mas de ele colocar a pergunta radical sobre o que se tem de compreender propriamente por ser e de afirmar que isso não é acessível quando as pessoas se recolhem apenas na suposta autenticidade da consciência e da autoconsciência (2007 A, p. 40 – itálicos do autor).

De fato, Heidegger começa já desde o § 10 de Ser e tempo a operar uma crítica, ainda que não exaustiva, ao personalismo de Scheler e de Husserl (cf. p. 46 ss.). Heidegger denuncia aí os preconceitos, nesses dois autores, herdados da antropologia14 antiga e cristã, que são, no que diz respeito à primeira, a idéia de que o homem seja compreendido como um Vorhandensein (cf. p. 48); já no que diz respeito à segunda, a carência de uma clareza ontológica mínima acerca do ser do homem (cf. id., ib.). Entrelaçando-se com o ponto de partida da consciência moderna, tais preconceitos terminaram por abafar o questionamento acerca do ser do homem, dando-o (como se isso fosse óbvio) por um Vorhandensein (cf. p. 49). Se essa falta de clareza acerca do ser do homem é um obstáculo ao deslinde da questão do ser, a destruição da consciência é essencial a uma ontologia fundamental.

De modo mais específico, quanto à tarefa da destruição, Heidegger planejou sua execução concentrada para a segunda parte de Ser e tempo (cf. p. 39), a qual não veio a ser publicada. Ali ele pretenderia o seguinte: se o que ampara, de modo mais originário, a interpretação do ser como Vorhandenheit

14 Conforme Brague, em Ser e Tempo “[...] toda antropologia é o resultado da aplicação ilegítima do modelo da Vorhandenheit ao Dasein” (1991, p. 412).

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é a exegese do tempo como presença, então o foco por excelência da destruição seria a recepção furtiva de tal conceito de tempo dado por óbvio nas “estações decisivas e fundamentais” da história da filosofia (cf. p. 23): Kant, Descartes e Aristóteles. Em última instância, é no tratado aristotélico visado (a Física) que Heidegger vê a gênese da exegese temporal que:

[...] determinou essencialmente toda concepção do tempo póstera – a de Bergson inclusive. A partir da análise do conceito de tempo aristotélico torna-se claro, retrospectivamente, que a concepção kantiana de tempo move-se nas estruturas produzi-das por Aristóteles (Heidegger, 1976, p. 26).

Aí, portanto, no tratado aristotélico, é que se dá a possibilidade de um acesso à base fenomenal e aos limites de toda a ontologia (compreendida em acepção ampla, como sinônimo de filosofia).

Mas se, por um lado, Heidegger planejou a execução concentrada da destruição para a segunda parte de Ser e Tempo, por outro, não deixou de necessitar que a destruição operasse, de modo disseminado, ao longo do texto publicado, em inúmeras passagens, sobre uma grande gama de conceitos. Assim, sendo mais do que um prospecto irrealizado, a destruição marca Ser e Tempo do início ao fim, desde as aspas muitas vezes apostas aos conceitos de essência, mundo e realidade, até discussões mais incisivas sobre o que seja proposição (Aussage), verdade ou consciência – ou a analítica não teria prosseguido e alcançado os “resultados” e “respostas” alcançados, em aberto confronto com a tradição filosófica. Essa observação faz-se indispensável aqui para entendermos que, se Heidegger analisa, por exemplo, o conceito de logos (proposição) no § 33 da obra, tal análise é feita com fim essencialmente destrutivo: é porque a tradição filosófica orientou-se pelo logos, na descoberta dos caracteres ontológicos do ente, que o ser-aí foi concebido como tendo o modo de ser da Vorhandenheit. Uma vigilância crítica, portanto, terá de ser dispensada a tal fenômeno (o do logos), para que não se repita o equívoco da tradição.

Como se vê, portanto, o conceito que define, em Ser e Tempo, a relação de Heidegger com a história da filosofia é o de destruição. Trata-se de um modo peculiar de avaliar a história da filosofia, que, certamente, não poderia ser julgado pelas pretensões de um modelo doxográfico de historiografia filosófica.

Marcel Albiero da Silva Santos

104 Metafísica: Fundamentação e Crítica

Referência Bibliográfica

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Jéverton Soares dos SantosMestrando em Filosofia / Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do [email protected]

Notas sobre o problema da fundamentação da moral na Dialética do Esclarecimento

Resumo Examina-se, neste artigo, o posicionamento crítico de Theodor Adorno e Max Horkheimer com relação ao problema da fundamentação da moral. Investiga-se principalmente a obra Dialética do Esclarecimento, escrita a quatro mãos pelos frankfurtianos. A principal justificativa tanto para a escolha do tema quanto para a obra em questão está no fato de que é de interesse de todos aqueles que discorrem sobre a fundamentação prática, sobretudo os teóricos fundacionistas, de que a ambivalência dos princípios éticos seja levada em consideração ao se tentar encontrar uma base indubitável para a moral. Assim a tese que este trabalho assume é a de que as críticas empreendidas pelos autores servem de um lado para deslegitimar perante a razão as tentativas de fundamentação empreendidas pela tradição do esclarecimento, mas ao mesmo tempo preparar terreno para uma fundamentação que seja realmente crítica e ética, em última análise, filosófica.

Palavras-chave Adorno e Horkheimer; Dialética do Esclarecimento; Fundamentação da Moral;

Introdução A tradução do termo alemão Aufklärung para o português não é

aceita sem polêmica1. Apesar dos esforços teóricos de alguns tradutores e

1 Na edição da Zahar, o tradutor Guido Antonio Almeida, numa nota preliminar explica as razões pelas quais preferiu traduzir a obra por esclarecimento e não por iluminismo ou ilustração: “Em primeiro lugar, (...) a expres-

artig

o

Jéverton Soares dos Santos

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conhecedores da obra adorniana2 de quererem demonstrar que a expressão ‘esclarecimento’ é mais adequada do que a de ‘iluminismo’, ainda assim vemos estudiosos se valendo deste ao invés daquele de maneira indiscriminada3. O problema está no fato de que a palavra iluminismo pode gerar uma confusão teórica tremenda: a de se pensar que o conceito filosófico de esclarecimento se reduz ao momento histórico normalmente atribuído à era das luzes. É verdade que a fase histórica denominada iluminismo faz parte do conceito de esclarecimento, pois tal conceito é real4, mas este não se reduz tout court a um momento da história, pois justamente uma das teses básicas da obra que iremos examinar neste artigo, ou seja, a Dialética do Esclarecimento, é a de que o modelo de racionalidade celebrado pelos pensadores iluministas já se encontra na Odisseia de Homero5.

O propósito deste artigo, contudo, não é discutir questões etimológicas, visto que tais querelas fugiriam do escopo central de nossa investigação. Nosso objetivo aqui é explorar de que maneira a obra Dialética do Esclarecimento, escrita a quatro mãos por Adorno e Horkheimer, pode de fato nos ajudar não só a compreender a posição crítica dos autores perante a temática da fundamentação da moral, mas também nos deslocar para um lugar privilegiado de acesso a tal tema, ainda que prima facie não pareça que tal assunto seja tratado e problematizado no texto.

A análise que faremos visa mostrar de que modo Adorno e Horkheimer demonstram a necessidade de pensar a razão em termos de poder, a moral

são esclarecimento traduz com perfeição não apenas o significado histórico-filosófico, mas também o sentido mais amplo que o termo encontra em Adorno e Horkheimer, bem como o significado corrente de Aufklärung na linguagem ordinária (...). Há outras razões, menos importantes de um ponto de vista teórico- conceitual, mas igualmente importantes do ponto de vista da tradução, para se preferir esclarecimento a iluminismo e ilustra-ção (...). Finalmente, a tradução de “Aufklärung” por esclarecimento vai se tornando mais comum” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 7-8).

2 Podemos destacar alguns nomes significativos neste cenário tais como Rodrigo Duarte, Guido de Almeida, Rogério Bettoni, Luiz Eduardo Bicca, Wolfgang Leo Maar, Paulo Rouanet, entre outros, que traduzem Aufklärung como esclarecimento ao invés de iluminismo, no contexto do pensamento da Teoria Crítica.

3 É claro que isto é mais comum nas traduções feitas em Portugal, tais como a de Artur Mourão, Antonio Marques e João Cachopo. No Brasil, Olgária Matos e Paulo Ghiraldelli Jr., por exemplo, preferem usar iluminismo ao invés de esclarecimento, mesmo uso que se segue nas edições em língua espanhola, que traduzem Aufklärung como sendo Ilustración. É praticamente unânime, nos países de língua inglesa, a tradução deste termo para enligthten-ment, que é bem distinto de iluminism.

4 “Nesse respeito, os dois conceitos (o de mitologia e o de esclarecimento, J.S.S.) devem ser compreendidos não apenas como histórico-culturais, mas como reais” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 13). Isso implica que a Dialética do Esclarecimento é uma crítica histórica e história crítica imanentes. Daí o porquê do postulado da realidade do conceito de esclarecimento, já que é impossível pensar a história da civilização ocidental sem ele.

5 Adorno e Horkheimer afirmam que a Odisseia de Homero é “um dos mais precoces e representativos testemu-nhos da civilização burguesa ocidental” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 15).

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em termos políticos e o pensamento em termos éticos, tudo isso através da ênfase que eles dão à “relação oculta entre o homem e a natureza” (JAY, 1989, p. 410). A grande confusão, que geralmente é feita com relação à leitura apressada de Dialética do Esclarecimento, é a de se pensar que ali há uma total ausência de normatividade6, objetividade e transcendentalidade7. Isso se faz importante porque queremos mostrar que nesta obra já é possível vislumbrar que a crítica empreendida pelos autores propende “preparar um conceito positivo do esclarecimento, que o solte do emaranhado que o prende a uma dominação cega” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 15), ou seja, a ideia de que os autores não quererem abrir mão da promessa de emancipação da Aufklärung, ideia que reaparecerá, muitas outras vezes, em obras assinadas principalmente por Adorno, tais como Minima Moralia e Dialética Negativa.

O desafio de se interpretar sistematicamente a Dialética do Esclarecimento, no sentido de encontrar uma unidade teórica, está no fato de que ela é extremamente antissistemática. É claro que isso não quer dizer que ela seja confusa, ou sem nenhum referencial teórico sólido. Dialética do Esclarecimento é densa e complexa em virtude do próprio objeto com o qual ela se depara, a saber, toda a irracionalidade inerente à racionalidade civilizatória.

É verdade que nossa interpretação desta grande obra foge um pouco do que é geralmente focado na vasta literatura sobre o tema. Existem várias teses filosóficas interessantes em jogo nesta grande obra. Querer resumir ou reduzir os esforços teóricos de Adorno e Horkheimer já seria uma grande injustiça para com eles. Queremos, entretanto, destacar alguns pontos que julgamos mais condizentes com o problema da fundamentação da moral.

Nossa principal justificativa, tanto para a escolha do tema quanto para os autores em questão, está no fato de que é de interesse de todos aqueles que discorrem acerca da fundamentação prática, sobretudo os teóricos que acreditam que exista um fundamento último para a moral, que não caiamos nem na chamada falácia naturalista, nem na falácia idealista, ou melhor, que

6 Como salienta Ricardo Timm de Souza, a Dialética do Esclarecimento tem sua origem numa “indignação ética” (SOUZA, 1996, p. 36).

7 “Naturalmente,entendemos aqui a noção de transcendental numa acepção sensivelmente distinta da kantiana (mas conservando o traço fundamental da „condição de possibilidade da experiência‟ que lhe é cara), no sentido em que, ao contrário de Kant, não se trata de pensar o transcendental como a priori, mas como histórico. Por outras palavras, a rede conceitual através da qual pensamos ,agimos ou sentimos, sendo para nós necessária (sendo prévia à nossa experiência e, nesse sentido, a priori), não deixa por isso de ser analisável no seu devir histórico. A um tal empreendimento corresponde, aliás, a estratégia genealógica avançada por Nietzsche, re-cuperada no século XX por Foucault e, antes ainda, retomada em larga medida pelos autores da Dialética do Iluminismo”(CACHOPO, 2008, p. 64).

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108 Metafísica: Fundamentação e Crítica

não nos satisfaçamos em analisar a moral apenas em termos dicotômicos, sem reconhecermos o próprio devir histórico da moral.

Além disso, na trilha de Schweppenhäuser, acreditamos que “é do interesse de todos os homens, no que se refere à concretização de uma regulamentação racional e moral de suas interações sociais, que a ambivalência das intuições éticas permaneça na consciência” (SCHWEPPENHÄUSER, 2003, p.2), tarefa que, aliás, a Dialética do Esclarecimento consegue fazer como poucas outras na história do pensamento ocidental.

O conceito de esclarecimento

“A essência do esclarecimento é a alternativa

que torna inevitável a dominação”.

(ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 43)

Em um famoso texto de 1783, Kant afirma que o esclarecimento

significa a saída do homem de sua menoridade, pela qual ele próprio é responsável. A minoridade é a incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem a tutela de um outro. É a si próprio que se deve atribuir essa minoridade, uma vez que ela não resulta da falta de entendimento, mas da falta de resolução e de coragem necessárias para utilizar seu entendi-mento sem a tutela de outro. Sapere aude! Tenha a coragem de te servir de teu próprio entendimento, tal é portanto a divisa do Esclarecimento (KANT, 2008, p. 1)

A resposta de Kant para a pergunta sobre o que é esclarecimento não

parece condizer com as características históricas e sociais que geralmente se mencionam quando o tema é o iluminismo. O otimismo kantiano com relação ao poder da razão de libertar o homem das trevas da ignorância é na verdade a tentativa de tratar a própria história como uma ideia, e não como um dado empírico. Porém, o apelo racional na qual o filósofo de Königsberg emprega para se referir à incapacidade de autonomia, típico do sujeito não ilustrado, só reforça indiretamente a ideologia da sociedade burguesa de sua época, pois coloca a culpa da “minoridade”, no medo de se servir de seu próprio entendimento. Adorno e Horkheimer, entretanto, não acreditam que tal conceito tenha nascido na modernidade. Como veremos nesta seção, eles

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afirmam que o pressuposto fundamental do esclarecimento não é o “sapere aude” ou a coragem de se guiar por seu próprio entendimento, mas pelo contrário, o medo ancestral do homem diante da natureza.

Os autores da Dialética do Esclarecimento8 propõem uma reflexão que está muito aquém do século XVIII. Podemos dizer que as raízes do esclarecimento estão nos primórdios da civilização ocidental, mais precisamente na Grécia Antiga, e não na Era das Luzes como acreditam historiadores e sociólogos9. “A referência primordial é o conceito de trabalho em Marx” (LOUREIRO, p. 7). Na verdade é através de uma crítica imanente da concepção de trabalho marxiana que fica possível entender o principal motivo que leva Adorno e Horkeimer a irem tão longe para desvelarem a estrutura do conceito de esclarecimento.

Para Marx, “o mais importante da Fenomenologia de Hegel é [...] que capte, portanto, a essência do trabalho do trabalho e conceba o homem objetivado e verdadeiro, por ser o homem real, como resultado de seu próprio trabalho” (MARX apud VÁSQUEZ, 2011, p. 127). O homem é o produtor e ao mesmo tempo produto do trabalho. Ele ao modificar a natureza externa, através do labor, acaba por mudar sua natureza interna. No entanto, Adorno e Horkheimer não aceitam esta visão positiva do trabalho oriunda de Marx10. Pelo contrário: eles problematizam a ideia marxiana de que o trabalho seria capaz de tornar o homem “objetivado e verdadeiro”. Na visão dos autores da Dialética, a Odisséia de Homero já “mostra o entrelaçamento do mito e do trabalho racional” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 53). Ainda que na sua interpretação de história Marx acreditasse que sempre houvera uma luta de classes, a trajetória teórica dos autores da Dialética é bem distinta: para eles o que se destaca é a interminável luta entre o homem e a natureza externa e interna presente em toda história humana, já que “os homens querem aprender da natureza é como empregá-la para dominar completamente a ela e aos homens” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 20). Essa luta é marcada

8 Doravante, seguiremos usando a expressão Dialética para designar a obra principal deste artigo.

9 “De fato, as linhas da razão, da liberalidade, da civilidade burguesa se estendem incomparavelmente mais longe do que supõem os historiadores que datam o conceito do burguês a partir tão-somente do fim do feudalismo medieval”. (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 54).

10 Como salienta Martín Jay: “Mas ainda não só a Escola de Frankfurt deixou para trás os vestígios de uma teoria marxista ortodoxa da ideologia, senão que também implicitamente incluiu a Marx na tradição do esclarecimento. A ênfase excessiva de Marx sobre a centralidade do trabalho como modo de autorrealização do homem que Horkheimer havia já questionado em Dämmerung foi a razão primária para este argumento. Implícita na redução do homem para um animal laborans, denunciada estava a reificação da natureza como um campo para a explo-ração humana”. (JAY, 1989, p. 418). No entanto, vale sublinhar que mesmo criticando Marx, os autores não abrem mão do projeto de emancipação defendido pelo economista alemão.

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pelo entrelaçamento da “racionalidade e da realidade social, bem como o entrelaçamento, inseparável do primeiro, da natureza e da dominação da natureza” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 15). Como salienta Martín Jay, trata-se de “um conflito cujas origens se remontam até antes do capitalismo e cuja continuidade, na verdade intensificação, era provável depois do fim capitalismo” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 19-20).

A tese de Bacon de que “hoje, apenas presumimos dominar a natureza, mas, de fato, estamos submetidos à sua necessidade; se, contudo nos deixássemos guiar por ela na invenção, nós a comandaríamos na prática” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 19-20), é a chave interpretativa do esclarecimento. Isso, contudo, não quer dizer que o esclarecimento tenha surgido na era moderna, uma vez que “os mitos, como os encontraram os poetas trágicos, já se encontram sob o signo daquela disciplina e poder que Bacon enaltece como o objetivo a se alcançar” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 23). Mais ainda: a própria noção de dialética, enquanto método teórico, já se encontrava presente nas explicações míticas da natureza, já que

quando uma árvore é considerada não mais simplesmente como árvore, mas como testemunho de outra coisa, como sede do mana, a linguagem exprime a contradição de que uma coi-sa seria ao mesmo tempo ela mesmo e outra coisa diferente dela, idêntica e não idêntica. Através da divindade a linguagem passa da tautologia à linguagem (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 29).

A separação do sujeito e do objeto, do conceito e da coisa, que é o pressuposto do método, que por sua vez é a apoteose da filosofia analítica, já está presente no mito. A linguagem, seja ela científica ou mítica, moderna ou antiga, pragmática ou metafísica, através do conceito, que na tradição do pensamento ocidental é “unidade característica do que está nele submetido” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 29), já contém o elemento de “determinação objetivadora” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 29), produto do pensamento dialético. Esta dialética, entretanto, nasceu no mito e se desenvolveu na ciência moderna de maneira cega, pois é “a partir do grito de terror que é a própria duplicação” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 29), que ela reflete nada mais do que o medo ancestral do homem transformado em explicação.

A intervenção esclarecedora no mundo provoca a fusão entre poder e conhecimento, já que “o despertar do sujeito tem por preço o reconhecimento do poder como o princípio de todas as relações” (ADORNO e HORKHEIMER,

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1985, p. 24). O problema está no fato de que “o saber que é poder não conhece nenhuma barreira, nem na escravização da criatura, nem na complacência em face dos senhores do mundo” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 20). A dominação da natureza exterior é correlata com a dominação da natureza interior. Por isso que o “preço que o homem paga pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 24). Daí a necessidade que o esclarecimento tem de “tomar consciência de si mesmo, se os homens não devem ser completamente traídos” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 15). Nesse sentido é importante ressaltar que os autores da Dialética, através da crítica imanente do esclarecimento, têm como objetivo encontrar “um conceito positivo do esclarecimento que o solte do emaranhado que o prende a uma dominação cega” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 15), ou seja, eles não querem abandonar completamente o projeto do esclarecimento, apenas evitar os resultados bárbaros do desenvolvimento contínuo deste modelo de racionalidade.

Da discussão até aqui feita, torna-se imprescindível a resposta para a pergunta sobre o significado que o conceito de esclarecimento tem na Dialética. Para Adorno e Horkheimer,

no sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclareci-mento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra total-mente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imagi-nação pelo saber (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 19).

O esclarecimento está ligado a dois princípios aparentemente paradoxais, mas que estão intimamente ligados: o da libertação e o da dominação. O primeiro é o da libertação da subjetividade das forças míticas, “para qual não há sujeito propriamente dito, uma vez que o selvagem não se entende ainda como um ser separado do mundo natural que o circunda” (DUARTE, 1997, p. 52) e o segundo é o da dominação da natureza tanto interna como externa do homem, com o intuito de garantir que este desligamento amedrontador entre o mundo natural e o interior aconteça e se mantenha através de uma “ditadura da autoconservação” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 51), cuja “essência (...) é a alternativa que torna inevitável a dominação” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 43). Daí a afirmação de que a “maldição do progresso irrefreável é a irrefreável regressão” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 46).

Além disso, para os autores da Dialética houve uma inversão de valores,

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no momento em que o princípio da dominação, imanente ao esclarecimento, ocupou astuciosamente o espaço do princípio de emancipação, solapando a possibilidade de uma humanidade realmente consciente de si:

No instante em que o homem elide a consciência de si mesmo como natureza, todos os fins para os quais eles se mantém vivo- o progresso social, o aumento de suas forças materiais e espirituais, até mesmo a própria consciência- tornam-se nulos, e a entronização do meio como fim, que assume no capital-ismo tardio o caráter de um manifesto desvario, já é perceptível na proto-história da subjetividade (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 60).

Os valores científicos como neutralidade e objetividade são problematizados pelos autores da Dialética. Na verdade, eles são enfáticos em escrever que “na imparcialidade da linguagem científica, o impotente perdeu inteiramente a força para se exprimir, e só o existente encontra aí seu signo neutro. Tal neutralidade é mais metafísica, do que a própria metafísica” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 35).

A ciência moderna não está a serviço da humanidade, ou mais precisamente, de toda a humanidade, porque ela só reforça a divisão econômica da sociedade industrial através da ideia de divisão de trabalho ou especialização, “pois a técnica é a essência desse saber, que não visa conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas o método, a utilização do trabalho de outros, o capital” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 20), além da matematização indevida da realidade, pois, assim operando, o esclarecimento “confunde o pensamento e a matemática” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 36). Desse modo,

o que importa não é aquela satisfação que, para os homens, se chama ‘verdade’, mas a ‘operation’, o procedimento eficaz. Pois não é nos “discursos plausíveis, capazes de proporcionar deleite, de inspirar respeito ou de impressionar de uma ma-neira qualquer, nem em quaisquer argumentos verossímeis, mas em obrar e trabalhar e na descoberta de particularidades antes desconhecidas, para melhor prover e auxiliar a ‘vida’, que reside ‘o verdadeiro objetivo e função da ciência’ (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 20).

Fica fácil de perceber as consequências funestas deste processo milenar,

que já pode ser visto na obra de Homero, tendo se intensificado através

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dos primeiros filósofos gregos11 e atinge sua apoteose na modernidade, com o cogito cartesiano, que ao afirmar o “eu penso eternamente igual que tem que poder acompanhar todas as minhas representações” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 38), acaba por tornar nulo qualquer sujeito, através de um eu, que ao se tornar formal acaba por sucumbir a mentalidade factual, que aparece como triunfo da racionalidade objetiva. Esta submissão de todo ente ao formalismo lógico, tem por preço, contudo, a subordinação obediente da razão ao imediatamente dado (Cf. ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 38).

Mas o que move o esclarecimento afinal? Dito em outros termos, o que faz com que esse modelo de racionalidade, que escraviza o homem e aniquila a natureza, presente em toda história da cultura ocidental, e ao mesmo tempo responsável pelo fato do homem ainda estar mergulhado na pré-história do ponto de vista ético, consiga imperar por tanto tempo? A resposta dos autores da Dialética é claríssima: o medo, já que

do medo o homem presume estar livre quando não há nada mais de desconhecido. É isso que determina o trajeto da desmi-tologização e do esclarecimento, que identifica o animado ao inanimado, assim como o mito identifica o inanimado ao ani-mado (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 29).

“O esclarecimento é a radicalização da angústia mística” (ADORNO

e HORKHEIMER, 1985, p. 29). Daí porque o sistema é tão criticado pelos autores da Dialética. Eles acreditam que o sistema, seja filosófico, científico, capitalista e até mesmo totalitário, nada mais é do que reflexo desta angústia, que tem como fonte a necessidade de dominar toda a natureza, seja na esfera do conceito ou a do real12.

O problema da possibilidade de autodestruição do esclarecimento é levantado por Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento. Mas o que é seria esta autodestruição? Segundo Wiggershaus, “toda Aufklärung, até agora, não a era autenticamente e impedia, ao contrário, a realização da verdadeira Aufklärung” (WIGGERSHAUS apud LOUREIRO, p. 5). Assim sendo, esta é uma questão que gostaríamos de advertir, a saber, a de se pensar que Adorno e Horkheimer, e, por conseguinte, a Escola de Frankfurt, sejam

11 “As cosmologias pré-socráticas fixam o instante da transição. O húmido, o indiviso, o ar, o fogo, aí citados como a matéria primordial da natureza, são apenas sedimentos racionalizados da intuição mítica” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 21).

12 “Nada mais pode ficar de fora, porque a simples ideia do fora é a verdadeira fonte de angústia” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 29).

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precursores do movimento pós-moderno, já que “em sua filosofia preserva-se a noção de mundo objetivo” (LOUREIRO, p. 6) diferentemente das correntes que defendem o postulado da pós-modernidade.

Sem embargo, o esclarecimento ao longo da história da civilização ocidental se apresentou de várias formas. Algumas inclusive aparentemente contrárias tais como o empirismo e o racionalismo13. Todas estas formas pertencem, porém, ao mesmo modelo instrumental de racionalidade. Dos rituais míticos para ciência moderna, do idealismo alemão para o atomismo lógico, da metafísica grega14 até positivismo, em suma, em toda a história do saber e da práxis humana, “o esclarecimento só reconhece como ser e acontecer o que se deixa captar pela unidade” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 22).

Podemos dizer que a história do esclarecimento que os autores apontam é a mesma da vitória da coisificação, que é o triunfo da razão instrumental. Esta por sua vez, é o desdobramento prático do esclarecimento. Se nos primórdios da humanidade, o animismo atribuía alma as coisas, na era moderna, através do advento do industrialismo e da filosofia burguesa, a alma acaba por se coisificar (Cf. ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 29). Isso acontece na falsa sociedade, que é o mundo administrado, porque “a expulsão do pensamento da lógica ratifica na sala de aula a coisificação do homem na fábrica e no escritório” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 42).

Assim a interpretação da Dialética exposta ao decorrer desta seção, encontra respaldo, em certa medida, na leitura feita por Rodrigo Duarte, o qual afirma que a infraestrutura do esclarecimento é “a distância do sujeito-objeto, a universalidade da dominação e a própria subordinação da razão ao que está imediatamente dado” (DUARTE, 1997, p. 47).

Além disso, como salienta bem Ricardo Timm de Souza,

com a análise do sentido profundo do Esclarecimento (e de suas metamorfoses ao longo da história), chega-se à possibilidade de uma crítica realmente válida da sociedade, não em termos cronológicos, no sentido em que se pode partir para a ereção de um corpo crítico coerente que não traia, por sua filiação

13 “De antemão, o esclarecimento só reconhece como ser e acontecer o que se deixa captar pela unidade. Seu ideal é o sistema do qual se pode deduzir toda e cada coisa. Não é nisso que sua versão racionalista se distingue da versão empirista” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 22).

14 “Com as Ideias de Platão, finalmente, também os deuses patriarcais do Olimpo foram capturados pelo logos filo-sófico. O esclarecimento, porém, reconheceu as antigas potências no legado platónico e aristotélico da metafísica e instaurou um processo contra a pretensão de verdade dos universais, acusando-a de superstição” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 21).

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profunda, seus fundamentos e conquistas- mas que se espraie fecundamente ao longo de sua própria formulação conceitual (SOUZA, 1996, p. 39).

Tendo apresentado brevemente o sentido mais geral atribuído ao conceito

de esclarecimento pelos filósofos frankfurtianos, iremos expor, nas seções que se seguem, de modo mais específico, dois temas investigados de perto pelos autores, e na qual acreditamos ser indispensável para a compreensão da obra Dialética do Esclarecimento num todo, a saber, o da liquidação estúpida da metafísica e também o da lógica da dominação enquanto correlata a dominação da lógica, para assim termos subsídios teóricos suficientes para vislumbrarmos o equacionamento do problema da fundamentação da moral presente nesta obra.

A liquidação estúpida da metafísica

“A apologia metafísica deixava entrever a

injustiça da ordem existente pelo menos

através da incongruência do conceito e da realidade”.

(ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 35)

A dissolução da subjetividade é uma das grandes preocupações de Adorno e Horkheimer na Dialética. Através da análise do sentido mais profundo do esclarecimento, do avanço da técnica e também das diversas formas de internalização da barbárie, os autores se preocupam em apontar dialeticamente, o que o uso da razão sem a devida reflexão dos seus fins pode gerar, tanto para a natureza externa do homem, quanto para interna,

em outras palavras, o sujeito experimenta – exatamente na época em que os meios técnicos de dominação da natureza se encontram mais desenvolvidos – sua degeneração em mera coisa, sendo que o mundo físico a ele subordinado transfere sua selvageria para o seio da cultura, âmbito em que, por definição, a autoconsciência do sujeito deveria se colocar como alternativa à inconsciência da natureza (DUARTE, 1997, p. 52).

Eis, pois, a contradição identificável no capitalismo: ele deveria promover através da técnica a produção de condições básicas para uma vida mais digna,

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116 Metafísica: Fundamentação e Crítica

mais humana. Mas não é isto que ocorre:

O aumento da produtividade econômica, que por um lado pro-duz as condições básicas para um mundo mais justo, confere por outro lado ao aparelho técnico e aos grupos sociais que a controlam uma superioridade sobre o resto da população (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 15).

Como se já não bastasse à própria existência da desigualdade econômica dentro da sociedade liberal, ainda assim aqueles portadores dos meios de produção exercem uma verdadeira dominação psicológica sobre os subordinados através da indústria cultural, pois “numa situação injusta, a impotência e a dirigibilidade da massa aumentam com a quantidade de bens a ela destinados” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 14). A ideologia da indústria cultural visa a negação da reificação. Nela “a enxurrada de informações precisas e diversões assépticas desperta e idiotiza as pessoas ao mesmo tempo” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 15). O advento do liberalismo deveria intensificar a verdadeira emancipação do homem, e não a sua indevida massificação.

É importante salientar que quando Adorno e Horkheimer se referem ao conceito de cultura eles não estão a usando como sinônimo de valor, mas como o fenômeno da transformação e padronização da mercadoria como critério último para o agir, sentir e pensar humanos. Fica evidente que a reificação, que em termos gerais é o distanciamento do sujeito e objeto, em termos morais acarreta a apatia ou o distanciamento com o sofrimento e desgraça reais. Para Franscisco Rudiger, reificação no contexto da obra adorniana, deve ser entendida como “a racionalização instrumental das condições de existência” (RÜDIGER, 2004, p.21).

Os poderes econômicos tem a capacidade de elevar o domínio da natureza exterior, através do avanço técnico, também da dominação da natureza interna, através da anulação da subjetividade:

O indivíduo vê se completamente anulado em face dos poderes econômicos. Ao mesmo tempo, estes elevam o poder da so-ciedade sobre a natureza a um nível jamais imaginado. De-saparecendo diante do aparelho a que serve, o indivíduo vê-se, ao mesmo tempo, melhor do que nunca provido por ele (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 14).

Não obstante, a anulação do sujeito não é tão evidente assim tanto em

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termos introspectivos quanto objetivos, pois o esclarecimento astuciosamente faz com que cada indivíduo pense que o seu próprio eu é algo distinto e separado dos demais, como o cogito cartesiano. Este eu, todavia, que não consegue mais ser igual a si mesmo, acaba por não ser diferente do eu coletivo, e sim uma mera representação da “unidade da coletividade manipulada” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 27) que é a própria noção de massa:

Os homens receberam o seu eu como algo pertencente a cada um, diferente de todos os outros, para que ele possa com tanto maior segurança se tornar igual. Mas, como isso nunca se re-alizou inteiramente, o esclarecimento sempre simpatizou, mes-mo durante o período do liberalismo, com a coerção social. A unidade da coletividade manipulada consiste na negação de cada indivíduo; seria digna de escárnio a sociedade que conseguisse transformar os homens em indivíduos (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 27).

Os filósofos frankfurtianos perceberam que com o advento da modernidade, se criou uma falsa individuação, no sentido de que “todas as figuras míticas podem se reduzir, segundo o esclarecimento, ao mesmo denominador, a saber, ao sujeito” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 22). Este sujeito, entretanto, acaba por se tornar em objeto no momento em que sua alteridade é eliminada, graças a uma razão que dá mais importância à fórmula, ao método, à abstração, ao número, em suma, ao ser formal do que ao ser humano.

As tentativas filosóficas de se igualar o ser e o pensar provocaram a falsa realidade do imediato como sendo a única forma de acesso verdadeiro ao real. Só é real o que é factual. A única maneira correta de se julgar a veracidade de um tema é através do recurso a tudo aquilo que é diretamente verificável. O problema desta ontologia mimética é que até mesmo a negação de um conceito tipicamente metafísico, como por exemplo, o de Deus, acaba caindo numa nova forma metafísica15, num processo que caminha ad infinitum, já que toda tentativa de negar a metafísica hoje, será vista como uma nova metafísica aos olhos do filósofo de amanhã. A contínua história da filosofia acaba por fortalecer esta tese.

Assim um dos pontos centrais da crítica de Adorno e Horkheimer exposta na Dialética é a relação contraditória entre metafísica e esclarecimento. A mesma

15 “Mas com essa mimese, na qual o pensamento se iguala ao mundo, o factual tornou-se agora a única referência, que até mesmo a negação de Deus sucumbe ao juízo sobre a metafísica” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 37).

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racionalidade que tenta dar fim a toda e qualquer forma de metafísica, através do postulado da imediaticidade como única fonte segura de conhecimento, acaba se tornando uma metafísica no momento em que esconde a direta relação entre regresso e progresso, entre técnica e desgraça real:

O fato de que o espaço higiênico da fábrica e tudo o que acom-panha isso, a Volkswagen e o Palácio dos Esportes, levem a uma liquidação estúpida da metafísica, ainda seria indiferente, mas que eles próprios se tornem, no interior do todo social, a cortina ideológica atrás da qual se concentra a desgraça real não é indiferente. Eis aí o ponto de partida dos nossos fragmen-tos (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 15).

Assim, para Adorno e Horkheimer, o fato de que o esclarecimento pretender,

através das mais diversas doutrinas teóricas, tais como o pragmatismo e o positivismo, eliminar e condenar todo pensamento com algum resquício de metafísica, por hipostasiar o progresso tecnológico como se fosse sinônimo de avanço humano e moral, não seria tão problemático assim se ele mesmo não fosse metafísica responsável pela barbárie moral.

Desse modo fica fácil de entender a tese enunciada pelos autores, no prefácio da Dialética, qual seja a de que “o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 15). É claro que esta tese tem vasto alcance, e pode ser vista de diversas maneiras. O que queremos mostrar é a correlação entre esclarecimento e mitologia, que prima facie parecem opostos. Ora, “os mitos que caem vítimas do esclarecimento já eram o produto do próprio esclarecimento. No cálculo científico dos acontecimentos anula-se a conta que outrora o pensamento dera, nos mitos, dos acontecimentos” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 23). O esclarecimento propõe o mesmo que o mito pretendia fazer, mas com meios diferentes, quer dizer “o mito queria relatar, denominar, dizer a origem, mas também expor, fixar, explicar. Com o registro e a coleção dos mitos, essa tendência reforçou-se. Muito cedo deixaram de ser um relato, para se tornarem uma doutrina” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 23).

Assim, crenças e normas tipicamente modernas, tais como a liberdade de escolha e a lei da oferta e procura são vistas como reflexos secularizados dos rituais e sacrifícios míticos. “Se a troca é a secularização do sacrifício, o próprio sacrifício já aparece como esquema mágico da troca racional” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 57). Nesse sentido, toda a tentativa de desmitologização, empreendida pelo esclarecimento, sempre vai ser em vão, pois ela vai ter a mesma forma “da experiência inevitável da inanidade e

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superfluidade dos sacrifícios” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 60).A liquidação da metafísica para Adorno e Horkeimer é estúpida por duas

razões principais: a primeira é porque por detrás da tentativa de destruição teórica da metafísica, através de um modelo pragmático de racionalidade na verdade está a própria autodestruição da humanidade na prática. A segunda razão se dá devido ao fato de que toda tentativa de se eliminar a metafísica, dentro dos moldes do esclarecimento, acaba por reverter em uma nova metafísica, que não é capaz de pensar seus próprios pressupostos de maneira crítica. Daí a afirmação de que “o pensar reifica-se num processo automático e autônomo, emulando a máquina que ele próprio produz para que ela possa finalmente substituí-lo” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 37).

O conceito de liquidação deve ser entendido aqui em dois sentidos: o primeiro mais literal, qual seja o do aspecto econômico, de compra e venda, ou o da submissão de tudo aos moldes do mercado, da oferta e da procura; já o segundo no sentido mais filosófico ou existencial, ou seja, no sentido usado por Kierkegaard, de “liquidação do mundo das ideias” (KIERKEGAARD, 2004, p. 15), ou seja, o fenômeno da possibilidade do fim da filosofia, graças a um modelo de racionalidade que ao afirmar o progresso universal acaba por esmagar tudo aquilo que seja individual.

Podemos dizer, contudo, que a principal semelhança entre mito e esclarecimento, o que definitivamente faz com que o mito já seja esclarecimento e esclarecimento acabe por vir a ser mitologia , seja o fato de que neles se desdobram tanto na teoria como na práxis “a violência nua e crua” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 55). O que talvez constituísse na mais nítida característica humana, isto é, a de sociabilidade, seja abalada pelo fato de que “em certos momentos, a coletividade só consegue sobreviver provando a carne humana” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 59).

Da dominação da lógica à lógica da dominação

“A universalidade dos pensamentos, como a desenvolve

a lógica discursiva, a dominação na esfera do conceito,

eleva-se fundamentada na dominação do real”.

(ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 28)

Logo no prefácio da Dialética os autores nos revelam suas motivações filosóficas: “O que nos propuséramos era, de fato, nada menos do que descobrir

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120 Metafísica: Fundamentação e Crítica

por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 11).

Adorno e Horkheimer partem da mesma tese esboçada por Freud16, mas que este não a desenvolveu até as últimas consequências, qual seja, a de que “a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 19).

O problema de se querer modificar status quo da barbárie através de uma práxis revolucionária, de antemão já é crítica por eles, pois

é característico de uma situação sem saída que até mesmo o mais honesto dos reformadores, ao usar uma linguagem desgastada para recomendar a inovação, adota também o aparelho catego-rial inculcado e a má filosofia que se esconde por trás dele, e assim reforça o poder da ordem existente que ele gostaria de romper (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 14).

Mutatis mutandis esse trecho aponta para uma questão que geralmente é colocada quando o tema é a Dialética do Esclarecimento, qual seja a de falta de clareza argumentativa. Por exemplo, Habermas acredita que a Dialética é um livro cuja “forma de exposição, que ronda o confuso, não permite identificar, à primeira vista, a clara estrutura do fio do pensamento” (HABERMAS, 1990, p. 110). Entretanto, o que está em jogo aqui e comumente é ignorado por grande parte dos críticos da obra, é aquilo que os autores chamam de “linguagem desgastada” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 12), cuja expressão só tende a conformar-se com as direções predominantes:

Se a opinião pública atingiu um estado em que o pensamen-to inevitavelmente se converte em mercadoria e a linguagem em seu encarecimento, então a tentativa de pôr a nu semel-hante depravação tem de recusar lealdade às convenções lin-guísticas e conceituais em vigor, antes que suas consequências para a história universal frustrem completamente essa tentativa (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 12).

Trata-se de uma espécie de intransigência teórica, no sentido de mostrar que o esclarecimento

16 “Estamos vivendo num período especialmente marcante. Descobrimos, para nosso espanto, que o progresso se aliou à barbárie”, (FREUD apud MAJOR, 2007, p. 13).

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Notas sobre o problema da fundamentação da moral na dialética do esclarecimento

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ao tachar de complicação obscura e de preferência, alienígena o pensamento que se aplica negativamente ao fatos, bem como as formas de pensar dominantes, e ao colocar assim um tabu sobre ele, esse conceito mantém o espírito sob o domínio da mais profunda cegueira (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 13-14).

Em suma, o problema da falta de clareza da Dialética do Esclarecimento remete ao próprio conceito de esclarecimento que os autores visam criticar. Se esclarecimento é um tipo de racionalidade que tacha como falsa ou irracional, toda a forma de pensamento ou de ação que não seja pautada por procedimentos puramente racionais, então o argumento de que a obra se invalidaria por ser obscura, nada mais é do que reflexo da própria concepção esclarecedora de verdade. A crítica à forma de exposição da Dialética do Esclarecimento nada mais é do que uma petição de princípio, já que pressupõe uma forma correta de apresentação do pensamento filosófico.

Além disso, subjacente a estes trechos está a tese de Adorno que toda teoria é um forma de práxis. Daí a necessidade de se pensar o pensamento em termos éticos: uma má teoria, ou a má consciência da realidade efetiva, ou da verdade (Cf. ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 11), faz com que o pensamento se torne cego, compactuando com práticas reprováveis do ponto de vista da ética. Para os autores da Dialética, a perda da superação de antinomias, tal como propusera a dialética hegeliana, significa a perda da verdade (Cf. ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 17). Daí uma das razões da Dialética ser semelhante a Genealogia da Moral de Nietzsche:trata-se de uma história crítica e uma crítica histórica ao mesmo tempo (Cf. OLIVEIRA, 1999, p. 120), entretanto, diferentemente deste, os autores visam uma superação do esclarecimento de maneira imanente, através da dialética(contra e através do esclarecimento), usando assim a ideia de crítica no sentido kantiano, ou seja, a de superação e não total abandono.

“O mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 17). Uma das causas do esclarecimento ter caído no mito é a paralisação por causa do temor da verdade (Cf. ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 13). Essa paralisação se deu em grande medida devido à impotência do pensamento teórico positivista em reconhecer que a verdade não é consciência racional (Cf. ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 13), não é um assunto que deve ser tratado fora da história, por que a própria história nos nega a possibilidade de querer tratar

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122 Metafísica: Fundamentação e Crítica

a verdade como um problema supra-histórico17.Desse modo, para compreender a relação íntima entre a dominação na

esfera do conceito, ou seja, a lógica, com a dominação na esfera do real, aqui tendo em vista não só a própria moral, mas também a esfera política (através dos regimes totalitários) e a do direito18, é necessário estar ciente de que este processo só se efetivou por causa do pensamento de identidade19, que foi o grande objetivo de toda filosofia ocidental:

A lógica formal era a grande escola da unificação. Ela oferecia aos esclarecedores o esquema da calculabilidade do mundo. O equacionamento mitologizante das Ideias com os números nos últimos escritos de Platão exprime o anseio de toda desmitologi-zação: o número tomou-se o cânon do esclarecimento. As mes-mas equações dominam a justiça burguesa e a troca mercantil (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 22).20

As consequências práticas deste processo são nefastas, já que “o esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-os na medida em que pode manipulá-los. O homem de ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 24).

Adorno e Horkheimer não questionam o fato de que a liberdade é fruto do esclarecimento. Até por que sem ela não se poderia nem ao menos escrever um livro radicalmente crítico como Dialética do Esclarecimento. Eles mostram, entretanto, que a liberdade deve ser pensada em sua ambivalência, quer dizer, na sua direta relação com a repressão e naquilo que eles chamam de escravidão voluntária, fenômenos exaustivamente investigados por estes pensadores, porque “a ideia que hoje importa mais conservar a liberdade, ampliá-la e desdobrá-la, em vez de acelerar, ainda que indiretamente, a marcha em direção ao mundo administrado, é algo que também exprimimos em nossos escritos ulteriores” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 10).

17 “Kant e Adorno reconhecem que a história é ela própria uma ideia” (THOMSON, 2010, p.135).

18 “A partir do momento em que ele (o esclarecimento, j.s.s) pode se desenvolver sem a interferência da coerção externa, nada mais pode segurá-lo. Passa-se então com as suas ideias acerca do direito humano o mesmo que se passou com o universais mais antigos”. (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 21-22).

19 “O mundo como um gigantesco juízo analítico, o único sonho que restou de todos os sonhos da ciência, da mesma espécie que o mito cósmico que associava a mudança da primavera e do outono ao rapto de Perséfone” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 39).

20 “Kant e Adorno reconhecem que a história é ela própria uma ideia” (THOMSON, 2010, p.135).

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Notas sobre o problema da fundamentação da moral na dialética do esclarecimento

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Adorno e Horkheimer criticam aqueles que veem a Odisseia como se fosse apenas um romance, pois assim “se deixa escapar que a epopeia e o mito tem de fato em comum dominação e exploração” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 55). E mais: eles pensam que “nenhuma obra presta um serviço mais eloquente do entrelaçamento do esclarecimento e do mito do que a obra homérica, texto fundamental da civilização europeia” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 55).

A astúcia é um elemento fundamental do esclarecimento, pois “o recurso do eu para sair vencedor das aventuras (da Odisséia/j.s.s.), perder-se para se conservar, é a astúcia” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 56). “A astúcia tem origem no culto” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 58). Daí a razão do porquê a dominação é um fenômeno que deve ser compreendido para além das amarras do conceito comum. “O sacrifício é a marca de uma catástrofe histórica, um ato de violência que atinge os homens e a natureza igualmente” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 59). Os homens e a natureza não são os únicos que são alvos da dominação. Até a secularização do sacrifício, ou seja, a troca, é a prova da tentativa humana de dominar os deuses (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 57). “A astúcia nada mais é do que o desdobramento subjetivo dessa inverdade do sacrifício que ela vem substituir” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 59). Deste modo o sacrifício já era o prelúdio para lógica discursiva, pois “embora a cerva oferecida em lugar da filha e o cordeiro em lugar do primogênito ainda devessem ter qualidades próprias, eles já representavam o gênero e exibiam a indiferença do exemplar” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 25). Podemos dizer que o processo lógico de estabelecer certa indiferença com o particular e o individual, através do primado do universal e dedutivo, é correlato ao processo de indiferença moral perante o sofrimento alheio, fruto da racionalização esclarecedora.

A abstração, que é um elemento fundamental na lógica, está baseada na distância do sujeito com o objeto. Esse distanciamento tem consequência não só na epistemologia, pois cria uma dicotomia entre a forma e o conteúdo, mas também na moral, já que “está fundada na distância em relação à coisa, que o senhor conquista através do dominado” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 27).

O núcleo da racionalidade civilizatória é a própria irracionalidade mítica denunciada pelo esclarecimento, mas aprofundada por ele mesmo. Esta irracionalidade mítica se apresenta pela negação humana da natureza no homem. Dito em outros termos, o homem primitivo ao realizar o sacrifício através de outro ser natural, negava mesmo sem consciência disso, a sua própria essência, ou seja, ser membro da natureza. O sacrifício visava nada

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mais do que a dominação sobre a natureza extra-humana (os deuses) e os outros seres humanos. O problema da negação da natureza é que “não apenas o telos da dominação externa da natureza, mas também o telos da própria vida se torna confuso e opaco” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 60). Este é um dos principais problemas do esclarecimento: ser uma racionalidade que não pensa nas más consequências dos meios, sendo aquela “forma de conhecimento que lida melhor com os fatos e mais eficazmente apoia o sujeito na dominação da natureza. Seus princípios são a da autoconservação” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 82).

A dominação da lógica nada mais é do que a transição da substituição do sujeito pelo gênero no momento do sacrifício mítico, pelo sacrifício do sujeito em nome do universal no discurso lógico. Por isso que “a universalidade dos pensamentos, como se desenvolve na lógica discursiva, a dominação na esfera do conceito, eleva-se fundamentada na dominação do real” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 28).

A lógica da dominação se apresenta dentro da sociedade ocidental, através de fenômenos facilmente verificáveis, já que “os conflitos no Terceiro Mundo, o crescimento renovado do totalitarismo não são meros incidentes históricos, assim como tampouco o foi segundo a ‘Dialética’, o fascismo em sua época” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 9). Nela vemos imperar a já mencionada astúcia da desrazão, pois na luta, por assim dizer, entre as instituições e o sujeito, entre o universal e o particular, “a forma astuciosa da conservação é a luta pelo poder fascista e, para os indivíduos, é adaptação a qualquer preço à injustiça” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 89). Em suma,

o instrumento com o qual a burguesia chegou ao poder, o de-sencadeamento das forças, a liberdade universal, a autodeter-minação- em suma- o esclarecimento voltava-se contra a bur-guesia tão logo era forçado, enquanto sistema da dominação, a recorrer à opressão (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 21).

Engana-se, portanto, quem pensa que o fenômeno da dominação se limitaria

aos ditos regimes fascistas e totalitários, pois uma das conclusões drásticas que Adorno e Horkheimer tiveram ao analisarem a democracia nos moldes dos Estados Unidos, enquanto estavam exilados ali por ocasião do terror nazista, foi a de que as normas e princípios morais, dentro do sistema capitalista, nada mais são do que reflexos de um instinto cego de autoconservação, que acaba por solapar com o discurso da liberdade propagado pelo liberalismo. Sobre este ponto, iremos discorrer mais de perto na seção seguinte.

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Notas sobre o problema da fundamentação da moral na dialética do esclarecimento

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Fundamentação da moral como justificação da dominação e da autoconservação

“A bondade e a beneficência tornam-se o

pecado, a dominação e a opressão virtudes”.

(ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 89)

“Para os dirigentes, a forma astuciosa da autoconservação

é a luta pelo poder fascista e, para os indivíduos,

é a adaptação a qualquer preço à injustiça”.

(ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 89)

Adorno e Horkheimer percebem que há uma ligação tácita entre o problema da fundamentação filosófica da ciência e o da moral. Tal ligação torna-se evidente quando eles demonstram que o pensamento sistemático, que seria aquele que é capaz de encontrar “certa unidade coletiva” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 81) frente à diversidade do real, tem uma direta relação com a tentativa do esclarecimento de encontrar uma justificação última para os diversos tipos de saberes, pois

o pensamento no sentido do esclarecimento é a produção de uma ordem científica e a derivação do conhecimento factual a partir de princípios, não importa se estes são interpretados como axiomas arbitrariamente escolhidos, ideias inatas ou ab-strações supremas (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 81).

O pressuposto fundamental de todo sistema é o conceito de unidade. Os autores da Dialética acreditam que “a unidade reside na concordância” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 81). Daí o porquê da afirmação de que “um pensamento que não se oriente para o sistema é sem direção ou autoritário” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 81), já que assim, no próprio instante de sua afirmação, o pensamento sem sistema estaria subvertendo o sistema, não se conformando a ele, e negaria também com isso o princípio da homogeneidade:

A sociedade burguesa está dominada pelo equivalente. Ela torna o heterogêneo comparável, reduzindo-o a grandezas

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126 Metafísica: Fundamentação e Crítica

abstratas. Para o esclarecimento, aquilo que não se reduz a números e, por fim, ao uno, passa a ser ilusão: o positivismo moderno remete-o para a literatura. "Unidade" continua a ser a divisa, de Parmênides a Russell (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 23).

O fato de “o número ser o cânon do esclarecimento” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 22) se dá, sobretudo, por causa da racionalidade burguesa que vê na ciência a possibilidade de efetivação e concretização dos interesses particulares do capital, já que “o esclarecimento comprometera-se com o liberalismo” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 88-89). O esclarecimento neste sentido visa “preparar o mundo para os fins de autoconservação e não conhece nenhuma outra função senão a de preparar o objeto a partir de um mero material sensorial como material para a subjugação” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 84). Assim, o pensamento se torna instrumental, na medida em que não é capaz de pensar a si mesmo, sendo apenas um meio eficaz para atingir os fins necessários para a manutenção da ordem econômica capitalista.

“A ciência ela própria não tem consciência de si, ela é um instrumento” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 84) enquanto que o esclarecimento é a filosofia que visa igualar o conceito de verdade com o conceito de sistema científico. Contudo, ao se fundamentar filosoficamente a verdade científica, o esclarecimento acaba por se utilizar de conceitos que no plano científico não tem nenhum sentido, já que

no trajeto para a ciência moderna, os homens renunciaram ao sentido e substituíram o conceito pela fórmula, a causa pela re-gra e pela probabilidade. A causa foi apenas o último conceito filosófico que serviu de padrão para a crítica científica, porque ela era, por assim dizer, dentre todas as ideias antigas, o único conceito que a ela ainda se apresentava, derradeira seculari-zação do princípio criador (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 21).

A reificação torna-se inerente ao esclarecimento justamente por causa desta instrumentalização do pensamento. Tudo passa a ser substituível, cada ente torna-se descartável, isto é, nada tem seu valor individual, inclusive o próprio homem passa a ser visto sob a ótica da manipulação e da substituibilidade, “mero exemplo para os modelos conceituais do sistema” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 83). No sentido do esclarecimento, “a

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ciência serve para administrar e reificar” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 83). Desse modo se constata que o pensamento reificado é aquele que é apático perante o sofrimento alheio. Com a banalização do conceito de experiência, se esqueceu de que “a experiência é sempre um agir e um sofrer reais” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 82). Por isso que

a ciência em geral não se comporta com relação à natureza e aos homens diferentemente da ciência atuarial, em particular, com relação à vida e à morte. Quem morre é indiferente, o que importa é a proporção das ocorrências relativamente às obrig-ações da companhia (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 84).

Mutatis mutandis para os autores da Dialética, o fracasso nas tentativas filosóficas de se fundamentar a ciência é correlato ao fracasso de se fundamentar a moral.

Tendo como base a definição de esclarecimento feita por Kant, qual seja a de entendimento sem a direção de outrem, Adorno e Horkheimer mostram que este mesmo racionalismo, que é a pedra pilar da teoria moral kantiana, é o pressuposto do pensamento daquele autor que aparentemente é antípoda do filósofo de Königsberg: Marquês de Sade, que seria “o sujeito burguês liberto de toda tutela” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 85), ou seja, o homem esclarecido. O irracionalismo no pensamento de Sade é correlato ao racionalismo de Kant. Isso porque eles compartilham a mesma noção de razão: “o princípio segundo o qual a razão está simplesmente oposta a tudo o que é irracional fundamenta a verdadeira oposição entre o esclarecimento e a mitologia” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 88). Além disso, os autores criticam o otimismo kantiano, na qual acredita que “todo agir moral é racional mesmo quando a infâmia tem boas perspectivas” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 84).

É sabido que na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant postula que um princípio para ser moral não pode ser extraído da experiência, pois “se ele se apoiar em princípios empíricos, num mínimo que seja, talvez apenas por um só móbil, poderá chamar-se na verdade uma regra prática, mas nunca uma lei moral” (KANT, 2007, p.16). Ele acredita que uma filosofia que mistura princípios puros com empíricos não merece ser chamada de filosofia. Somente uma teoria que não se atenha à “natureza do homem ou nas circunstâncias do mundo em que o homem está posto” (KANT, 2007, p.20), pode ser chamada de filosofia moral. Este é o principal motivo da necessidade de uma “metafísica dos costumes”, ou seja, uma filosofia a

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priori sobre os preceitos morais. Define a priori como aquilo que se encontra “exclusivamente nos conceitos da razão pura” (KANT, 2007, p.20). Assim a “fundamentação nada mais é, porém, do que a busca e fixação do princípio supremo da moralidade” (KANT, 2007, p.19).

O fundamento da moralidade na visão kantiana é a razão, porque “todos os conceitos morais têm a sua sede e origem completamente a priori na razão, e isto tanto na razão humana mais vulgar como na especulativa em mais alta medida” (KANT, 2007, p.46). Neste sentido podemos dizer que a teoria fundacionalista de Kant é racionalista. Ela é, entretanto, formal também “porque apela à forma geral das máximas, independentemente da finalidade aos que se dirigem” (ORTIZ-MILLÁN, 2009, p. 300).

Por esta razão também fica fácil de perceber a ligação tácita entre pensadores tão distintos, pois

a obra de Sade, como a de Nietzsche, forma ao contrário a críti-ca intransigente da razão prática, comparada à qual a obra do ‘triturador universal’(Kant, j.s.s.) aparece como uma revogação de seu próprio pensamento. Ela eleva o princípio cientificista a um grau aniquilador (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 92).

O formalismo kantiano, na qual aparentemente é avesso a tudo aquilo que é natural, acaba se tornando justamente um órgão da dominação da natureza, pois acaba por justificar a liberdade de dominação daqueles sujeitos que há muito tempo dominam a natureza21, qual seja o próprio sujeito burguês:

como ela desmascara nos objetivos materialmente determina-dos o poderio da natureza sobre o espírito, como ameaça à integridade de sua autolegislação, a razão se encontra formal como é, a disposição de todo interesse natural. O pensamento torna-se um puro e simples órgão e se vê rebaixado à natureza (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 86).

Adorno e Horkheimer evidenciam que os autores da modernidade considerados sombrios por fazerem certa apologia ao egoísmo, tais como Maquiavel, Hobbes e Mandeville, na verdade foram os primeiros a ver “a sociedade como princípio destruidor e denunciaram a harmonia” (ADORNO

21 “O princípio antiautoritário acaba tendo que se converter em seu próprio contrário, numa instância hostil à própria razão: ele elimina tudo aquilo que é intrinsecamente obrigatório, e essa eliminação permite à dominação decretar e manipular soberanamente as obrigações que lhe são adequadas em cada caso” (ADORNO e HORKHEI-MER, 1985, p. 91).

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e HORKHEIMER, 1985, p. 89) antes que a falsa totalidade fosse hipostasiada pelos grandes realizadores do esclarecimento, tais como Kant, Hegel e Nietzsche22.

Os frankfurtianos sugerem que as tentativas de superação teórica do ceticismo ético realizadas pela tradição do esclarecimento eram na verdade apenas mais um modo da desrazão do esclarecimento se convencer a si mesma de que a ordem existente deve se manter igual, pois

as doutrinas morais do esclarecimento dão testemunho da ten-tativa desesperada de colocar no lugar da religião enfraquecida um motivo intelectual para perseverar na sociedade quando o interesse falha. Como autênticos burgueses, os filósofos pactu-am na prática com as potências que sua teoria condena (ADOR-NO e HORKHEIMER, 1985, p. 84).

Assim, o problema da fundamentação da moral na modernidade está no fato de que os autores que tentaram realizar este feito acabaram por serem vítimas de sua própria concepção de racionalidade, ao sublimarem os próprios impulsos de dominação que motivaram toda a racionalidade do esclarecimento:

As teorias são duras e coerentes, as doutrinas morais propa-gandísticas e sentimentais, mesmo quando parecem rigoristas, ou então são golpes de força consecutivos à consciência da im-possibilidade de derivar da moral, como o recurso kantiano às forças éticas como um fato. Sua tentativa de derivar de uma lei da razão o dever do respeito mútuo – ainda que empreendida de maneira mais prudente do que toda a filosofia ocidental – não encontra nenhum apoio na crítica. É a tentativa usual do pensamento burguês de dar à consideração, sem a qual a civi-lização não pode existir, uma fundamentação diversa do inter-esse material e da força, sublime e paradoxal como nenhuma outra tentativa anterior, e efêmera como todas elas (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 84).

Adorno e Horkheimer mostram que uma teoria moral deve levar em

22 “Nietzsche conhecia como pouco, desde Hegel, a dialética do esclarecimento”. Idem. p.53. Para fundamentar a ideia de que Nietzsche foi um dos grandes realizadores do esclarecimento, nos valemos da interessante leitura de Ricardo Timm de Souza, que se refere a Nietzsche como aquele que realiza a “festa da totalidade”, ou seja, que através de “sua meta-moralidade- tradução do real movimento que subjaz à cultura ocidental- não pode constituir, na prática, senão como exercício de brutalidade totalitária- a festa da Totalidade é realizada sobre os despojos de tudo o que a ela não se inclinou” (SOUZA, 1996, p. 79).

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consideração aspectos constitutivos da natureza interior humana, que geralmente são sublimados numa teoria com pretensão de ser universal. Estes aspectos dizem respeito “as manifestações subjetivas e objetivas que ainda não são pensamentos (ou seja, em sentimentos, instituições, obras de arte)” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 89). Assim,

toda expressão humana e, inclusive,a cultura em geral são sub-traídos à responsabilidade perante o pensamento, mas por isso mesmo se transformam no elemento neutralizado da ratio uni-versal do sistema econômico que a muito se tornou irracional (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 90).

A tendência não só teórica do esclarecimento, mas da práxis burguesa, de

considerar toda forma de sentimento como irracional, tais como a piedade, a compaixão e o arrependimento, tem a sua apoteose com o postulado kantiano do “dever da apatia” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 93), ou seja, na afirmação de que a indiferença ou insensibilidade moral é uma virtude. Adorno e Horkheimer mostram que neste ponto estão completamente de acordo não só Sade e Nietzsche23, mas também os estoicos e Spinoza, sendo que este chega a afirmar que “quem se arrepende do que fez é duas vezes miserável ou impotente” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 94), conclusão muito próxima com a de Sade, que diz que só pode ser assassino aquele que “tivesse a certeza de não ter nenhum remorso” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 93). Vale sublinhar aqui que os autores da Dialética apresentam estas ideias não com o objetivo de defender um ceticismo ético, como acredita Habermas24, mas pelo contrário, para denunciar que por detrás do aparente racionalismo moderno está na verdade um irracionalismo que contradiz com qualquer pretensão ética.

Os autores da Dialética, entretanto, não endossam tout court uma apologia de sentimentos morais como sendo uma saída para o elemento bárbaro do esclarecimento. Isso porque sentimentos morais, tais como a compaixão, só “confirma a regra da desumanidade através da exceção que ela prática” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 98).

Para Adorno e Horkheimer, as tentativas de se fundamentar a ação

23 “Os fracos e os malformados devem perecer: primeira proposição de nossa filantropia. E convém ainda ajudá-los a isso. O que é mais prejudicial do que qualquer vício - a compaixão ativa por todos os malformados e fracos” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 94).

24 “A crítica anteriormente formulada às reinterpretações meta-éticas da moral redunda em concordância sarcás-tica com o ceticismo ético” (HABERMAS, 1990, p. 114).

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empreendida pelos pensadores do esclarecimento, tem sua origem naquele princípio primitivo, qual seja o de autoconservação, já que “se todos os afetos que valem, a autoconservação- que domina de qualquer modo a figura do sistema - parece constituir a fonte mais provável das máximas da ação” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 89) . O problema, no entanto, não está na autopreservação em si, mas no fato de se colocar este princípio acima de qualquer bem, ou seja, colocando a necessidade de garantir a sobrevivência material imediata acima do princípio de organização social, criando uma espécie de “ditadura da autoconservação” (DUARTE, 1997, p. 72).

Desse modo, Habermas acerta quando diz que

(...) a crítica nietzschiana do conhecimento e da moral antecipa uma ideia que Horkheimer e Adorno desenvolvem na forma de uma crítica verdadeira do positivismo, por trás dos ideais de objetividade e das exigências de verdade do positivismo, por trás dos ideais ascéticos e das exigências de justeza da mor-al universalista, ocultam-se imperativos de autopreservação e dominação (HABERMAS, 1990, p. 123).

As tentativas, portanto, de fundamentação filosófica da moral empreendida pela tradição do esclarecimento, na visão dos frankfurtianos, nada mais são do que representações dos impulsos de autoconservação e dominação, que, paradoxalmente, acabam por aniquilar tudo aquilo mesmo que se pretendia construir através da fundamentação da moral, a saber, um mundo onde as pessoas fossem realmente racionais e livres.

Considerações finais

“Já adulto pela covardia, eu fazia o

que todos fazemos, quando somos grandes, e há diante

de nós sofrimento e injustiças: não queria vê-los”.

(PROUST, p. 27)

Da análise feita até aqui, surge a necessidade de compreender como ainda é possível fazer filosofia moral sem cair nas diversas formas de barbárie e irracionalidade, tais como os autores do esclarecimento por eles citados. A alternativa que Adorno e Horkheimer oferecem é uso crítico ou dialético dos

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conceitos. Essa via de acesso ao moral, não justificaria somente suas posições filosóficas, mas também sua visão ética. Apesar desta afirmação parecer ser paradoxal, ela se baseia na ideia de que

enquanto a história real se teceu a partir de um sofrimento real, que de modo algum diminui proporcionalmente ao crescimento dos meios para sua eliminação, a concretização desta perspec-tiva depende do conceito. Pois ele é não somente, enquanto ciência, instrumento que serve para distanciar o homem da natureza, mas é também enquanto tomada de consciência do próprio pensamento que, sob a forma de ciência, permanece preso à evolução cega da economia, um instrumento que per-mite medir a distância perpetuadora da injustiça (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 50).

Deste longo trecho, podemos extrair algumas ideias reveladoras não só sobre a obra em análise, mas também da filosofia moral de Adorno e Horkheimer. O trabalho conceitual seria uma forma de denunciar e desmascarar toda e qualquer forma de injustiça, pois “só há uma expressão para verdade: o pensamento que nega a injustiça” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 204).

Assim sendo o pensar a moral em termos conceituais nos oferece um modo dialético e dinâmico de ver a ética: somente um pensamento que seja capaz de realizar uma crítica imanente da moral é capaz de fazer jus a um nível que pretende ser universal. Daí porque eles considerem que “proclamando a identidade da dominação e da razão, as doutrinas sem compaixão são mais misericordiosas do que as doutrinas dos lacaios morais da burguesia” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 112), já que nelas são afirmados brutalmente aquela verdade chocante, que nos filósofos morais do esclarecimento são encobertas através de uma metafísica que só tende a reforçar a ordem existente. Nas palavras de Zygmunt Bauman, “a busca febril pela ‘fundamentação das regras morais’ surgiu nos modernos de uma necessidade de convencer os dominados” (BAUMAN apud SCHWEPPENHÄUSER, 2003, p. 391).

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Felipe Sérgio KollerGraduado em Filosofia / Faculdade [email protected]

Jacques Maritain e a noção de Tomismocomo “Verdadeira Filosofia”

Resumo Jacques Maritain (1882-1973), filósofo francês, retoma a linha filosófica de Aristóteles e de Santo Tomás de Aquino, a que prefere chamar simplesmente de tomismo, e a reivindica como a verdadeira filosofia. Para tanto, delineia as características inerentes a uma filosofia que se pretenda verdadeira, não sem antes fixar o conceito da filosofia mesma. Identifica no tomismo não tanto uma doutrina quanto um método universal do intelecto humano e ressalta ainda a sua natureza essencialmente progressiva, que em si abarca e assume as diversas correntes filosóficas, retificando seus erros e realçando seus elementos verdadeiros.

Palavras-chave Jacques Maritain, tomismo, aristotelismo, conceituação de filosofia, método filosófico.

Introdução Em tempos de “modernidade líquida”, como nossa época é definida

por Zygmunt Bauman, e de “ditadura do relativismo”, no dizer de Joseph Ratzinger, defender a existência de uma filosofia “verdadeira” e apontar “erros” nas diversas correntes filosóficas pode ser classificado como um absurdo anacrônico e reacionário, ou talvez até mesmo ser acusado de preconceito, presunção e intolerância. Foi esse, no entanto, o trabalho do filósofo francês Jacques Maritain (1882-1973), que identificou no tomismo não mais um sistema filosófico em meio a outros, preso a seu tempo e inaplicável nos dias atuais, nem sequer apenas um sistema filosófico superior aos outros, mas o

artig

o

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método da verdadeira filosofia. Ele escreve em suas Sete lições sobre o ser e os primeiros princípios da razão especulativa (Sept Leçons sur l’être et les premiers principes de la raison spéculative, publicadas originalmente em 1934):

Nossos ouvidos se ofendem, ficamos escandalizados, se falam de um Conhecimento que mobilize, hoje, as mesmas noções fundamentais, os mesmos princípios que aqueles da época de Tsankara, da época de Aristóteles ou da de Santo Tomás. Re-spondemos com bastante frequência que confundir a arte do filósofo com a do alfaiate ou da modista é cair num equívo-co grosseiro. E, além do mais, a verdade não aceita o critério cronológico (1996, p. 13).

Procuraremos neste artigo buscar as razões pelas quais Maritain defendeu sua posição. Para tanto, precisaremos identificar o que esse filósofo entende por filosofia, e a isso dedicaremos a primeira parte de nossa exposição teórica. Posteriormente, buscaremos entender quais são os critérios através a partir dos quais Maritain identifica uma “filosofia verdadeira”. Por fim, delinearemos o lugar que a filosofia ocupa, aos olhos do autor, em meio às outras ciências, à teologia e ao senso comum – empresa que nos levará às conclusões deste artigo. Mas, antes desses três passos, parece-nos necessário proporcionar ao leitor um breve recordo da figura de Jacques Maritain.

Vida e trajetória intelectual de Jacques Maritain: breve excurso

O nome de Maritain pode ser familiar a alguns ouvidos, mas é possível que nos quarenta anos decorridos desde sua morte tenhamos esquecido o alcance que sua figura teve. Lancemos, portanto, um breve olhar à sua biografia, guiados pela introdução escrita por Piero Viotto para a edição italiana de Introdução geral à filosofia (1988, p. 4-21). Maritain nasce em 1882, em Paris, de família protestante. Estudando ciências naturais na Sorbonne, porém, é influenciado pela pregação positivista, que o faz chegar, junto a sua namorada Raissa Oumançoff, judia emigrada da Rússia, às portas do desespero e do suicídio. Em conversas com Henri Bergson, o casal consegue superar o cientificismo materialista e redescobre o significado da vida espiritual, chegando à conversão ao catolicismo através da amizade com

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Jacques Maritain e a noção de Tomismo como “Verdadeira Filosofia”

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Charles Péguy e Léon Bloy. Casados em 1904, superam também o bergsonismo quando o padre Clérissac, seu diretor espiritual, lhes introduz na filosofia de Santo Tomás de Aquino. Jacques, tendo-se laureado em ciências naturais e em filosofia, aprofundando depois o estudo da biologia, dedica-se a partir daí, junto de sua esposa, aos problemas filosóficos e, mais tarde, teológicos.

Jacques e Raissa envolvem-se no debate cultural de sua época, tomando posições claras e desenvolvendo suas ideias nos múltiplos campos do pensamento filosófico. Titular da cátedra de história da filosofia no Institut Catholique, Jacques participa de congressos internacionais e, no decorrer da década de 1930, tem oportunidade de proferir palestras em cidades como Louvaina, Friburgo, Roma, Buenos Aires, Toronto e Chicago. A partir de 1940, com a invasão alemã, não pode voltar à França, pois é procurado pela polícia nazista. Participa, porém, da resistência através de radiomensagens e escritos difundidos clandestinamente na França, enquanto permanece nos Estados Unidos, lecionando nas universidades de Princeton e Columbia e proferindo conferências em Yale, Chicago e na National Gallery of Art, em Washington. Embora com estadias passageiras em outros países nos anos que se seguem ao fim da Segunda Guerra, os Maritain fixam residência nos Estados Unidos até a morte de Raissa, que ocorre em 1960 durante uma estadia em Paris.

Logo ao fim da Guerra, os Maritain passam dois anos em Roma, onde Jacques assume o encargo de embaixador da França junto à Santa Sé. Depois, ele preside a delegação francesa à segunda conferência da Unesco, em 1947 na Cidade do México, proferindo o discurso inaugural. Em seguida à aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1949, a Unesco produz um volume que compendia a contribuição de filósofos de todo o mundo à preparação da Declaração e encarrega Maritain de prefaciá-lo. Revistas culturais do Canadá, dos Estados Unidos, do Brasil e da França dedicam nessa época edições inteiras ao pensamento de Maritain e a Universidade de Notre-Dame, no estado americano de Indiana, funda o Jacques Maritain Center para promover o estudo de suas obras. Com a morte de sua esposa, Jacques se retira para Toulouse, onde passa a morar junto da congregação cuja fundação foi inspirada pela espiritualidade do Beato Charles de Foucauld, os Pequenos Irmãos de Jesus. No encerramento do Concílio Vaticano II, em 1965, é a ele que o Papa Paulo VI entrega a mensagem dos padres conciliares aos intelectuais. Maritain chega a entrar no noviciado dos Pequenos Irmãos de Jesus aos 88 anos e morre três anos depois, em 1973.

Do casal Jacques e Raissa, Viotto escreve: “Unidos no desespero nos anos da juventude, são unidos na paixão pela verdade durante toda sua vida”, e cita Jacques: “Certamente, se houvesse uma salvação fora da verdade, não a

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desejaria, pois amo mais a verdade do que minha alegria e minha liberdade, ou melhor, sei bem que somente a verdade pode engendrar a minha alegria e a minha libertação” (1988, p. 5). À crise da cultura contemporânea Jacques Maritain respondeu com a busca da verdade. Para ele, as raízes dessa crise podem ser entrevistas: a) no antropocentrismo trazido pelo racionalismo iluminista; b) no maquiavelismo político que separou a política da moral; e c) no laicismo liberal que naturalizou o cristianismo. Mais profundamente, porém, a crise se deve à desconfiança na capacidade racional do homem. Em Le docteur angélique, Maritain escreve: “O mal de que sofrem os tempos modernos é antes de tudo um mal da inteligência; começou pela inteligência e agora penetrou até às suas raízes. Por que se surpreender se o mundo parece invadido por trevas? Si oculus tuus fuerit nequam, totum corpus tuum tenebrosum erit”1 (Viotto, 1988, p. 9). A filosofia desenvolvida por Maritain é, pois, uma resposta a essa crise da razão e, como tal, somente poderia ter por centro a busca da verdade através da confiança na razão humana. A Sócrates Maritain atribuirá a característica de

uma invencível confiança na inteligência e na ciência, – mas numa inteligência disciplinada e humilde em face das coisas, numa ciência que conhece seus limites e só progride com força e segurança na posse da verdade na medida em que presta homenagem à soberania do real e se sente cercada de ignorân-cia (Maritain, 2001, p. 50),

o que é uma descrição precisa de como o próprio Maritain vê a capacidade do homem de alcançar a verdade. A razão, segundo ele, foi feita para a verdade (p. 47); logo, sem que se admita a possibilidade de alcançar a verdade, não pode haver filosofia.

O conceito de filosofia para Maritain

É perguntando-se pelo conceito de filosofia que Jacques Maritain começa sua Introdução geral à filosofia, publicada em 1921, primeira parte da obra Elementos de Filosofia (Eléments de philosophie). À primeira vista, define-a como “a sabedoria do homem enquanto homem, a sabedoria que convém ao homem por efeito do labor da razão”, contrapondo-a à sabedoria “em

1 “Se o teu olho está doente, o teu corpo inteiro fica na escuridão”: Maritain cita aqui o Evangelho de São Mateus 6, 23a.

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nós infundida de modo sobrenatural” e à sabedoria “espontânea e irrefletida” (Maritain, 2001, p. 19). Porém, Maritain admite que essa é uma definição superficial, meramente nominal, ou seja “uma definição que permite que se fique de acordo sobre o sentido do termo”. A definição profunda, real, ou seja, “que nos leve ao conhecimento da natureza da coisa”, só nos será clara se antes nos debruçarmos sobre a história da filosofia mesma (p. 20).

Já na escolha desse caminho se nos vai clareando a noção que Maritain tem da filosofia. Voltando às Sete lições sobre o ser..., podemos ler sua defesa da indispensabilidade de receber a tradição filosófica como herança:

Se nos reportarmos à doutrina tomista do magistério humano, se lembrarmos que o homem é, antes de tudo, um animal social porque tem necessidade de ser ensinado, se compreendermos que a arte do mestre é, como a do médico, uma arte que coop-era com a natureza – de tal maneira que o agente principal na obra do ensinamento não é aquele que ensina, que comunica a ciência a outrem, que a causa nele, mas sim a inteligência, a vitalidade intelectual daquele que aprende, que recebe, isto é, que toma parte ativamente nele, que faz nascer, a ciência em si – e que, no entanto, sem a transmissão dos conceitos elaborados pelas gerações humanas, cada intelecto não avan-çaria quase nada na pesquisa e na invenção, então, em tal perspectiva, a necessidade de uma tradição aparece de forma luminosa. Vemos claramente que recusar a continuidade do tra-balho comum das gerações e a transmissão do depósito – e isto antes de mais nada na ordem da inteligência, do conhecimento, é optar pela noite (Maritain, 1996, p. 12).

“Optar pela noite”: se se pretende começar do zero, não se pode chegar muito longe. É por reconhecer valor em toda a tradição filosófica que Maritain se reporta a ela para buscar conhecer o conceito de filosofia, mas sem dúvida também por seguir o espírito aristotélico, como ele mesmo afirma na Introdução geral à filosofia. Não se trata, aliás, de dois motivos, mas de dois aspectos de uma mesma motivação que se alimentam reciprocamente: é reconhecendo a tradição filosófica que Maritain reconhece a validade do método aristotélico, mas é também pela sua adesão a esse método que ele imita Aristóteles, “grande realista” que “nada falava a priori e sempre estudava a evolução histórica dos problemas, antes de propor as soluções, que então aparecem como o termo normal de um processo de descoberta” (Maritain, 2001, p. 20). Nesse ponto, Maritain deixa entrever sua crítica a algumas vertentes de sua época e de épocas anteriores que se denominam

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aristotélico-tomistas, mas que “ao ensinar as conclusões do mestre, parecem desconhecer o seu espírito” (p. 20). Será uma preocupação recorrente em sua obra a defesa de um “tomismo vivo”, e não de um “tomismo arqueológico” (Maritain, 1996, p. 11), a que voltaremos mais tarde.

Maritain inicia sua busca pela Pérsia, pela Índia e pela China, onde consegue reconhecer um pensamento filosófico antes de que haja a filosofia propriamente dita. Entre os egípcios e os semitas, porém, encontra apenas a religião fazendo as vezes da filosofia: “através dela, esses povos possuem verdades filosóficas; mas Filosofia propriamente, eles não têm” (Maritain, 2001, p. 25). Já naqueles outros povos, ocorre o contrário:

Aqui não é a tradição religiosa que substituiu a Filosofia, é antes a Filosofia, querendo dizer a sabedoria do homem, que penetra a Religião, confundindo-se com ela. O sábio desempenha uma função sagrada: não é o chefe de uma escola filosófica, é o fundador de uma seita religiosa e até de uma religião (Maritain, 2001, p.25).

Na Grécia, por outro lado, segundo Maritain, “a razão humana atingiu a idade de sua força e maturidade”, pois lá a filosofia adquire “existência autônoma, distinguindo-se explicitamente da religião”, reconhecendo suas fronteiras e restringindo-se “a um campo estritamente limitado – investigação científica das verdades puramente racionais – enquanto a religião grega, já muito decaída no tempo de Homero, tornava-se cada vez mais incapaz de satisfazer às necessidades da inteligência e corrompia-se dia a dia” (Maritain, 2001, p. 33). É em Tales de Mileto, um dos sete sábios enumerados por tradições da época, que Maritain reconhece, na atenção do testemunho de Aristóteles, o início da filosofia grega, visto que enquanto os outros sábios dos séculos VII e VI a.C. “limitam-se a enumerar lições práticas resultantes de sua experiência da vida”, sendo “homens de ação, legisladores ou moralista”, “Prudentes, mas ainda não Filósofos”, Tales chegou a abordar os estudos especulativos (p. 34). Maritain debruça-se então sobre aquilo que chama de “fase de desenvolvimento ascendente” da filosofia, que vai de Tales a Aristóteles: três séculos em que Maritain distingue três períodos: período de elaboração (os filósofos pré-socráticos), período de crise (os sofistas e Sócrates) e período de maturidade fecunda (Platão e Aristóteles) (p. 35).

Por que Maritain põe no termo de tal fase ascendente o nome de Aristóteles? Porque é nele que o filósofo francês reconhece que “a Filosofia, com o seu valor humano absolutamente universal, constituiu-se de modo definitivo” (p.

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35). Maritain é taxativo quando fala do Estagirita: ele “fundou para sempre a verdadeira Filosofia”, “conseguiu estabelecer de modo definitivo a posse da realidade pela inteligência humana” (p. 57), “é absolutamente único, entre os filósofos: único pelo gênio, único pelos dotes, único por sua obra”, “é por excelência o Filósofo”, mesmo que reconheça os “erros, imperfeições ou insuficiências que manifestam nele os limites da razão humana” (p. 62).

Aristóteles, como foi dito, não começou do zero. Ele recolhe, segundo Maritain, os elementos verdadeiros presentes na filosofia dos pensadores que lhe antecederam e retifica seus erros. Assim é, por exemplo, com Anaxágoras, que o Estagirita diz ter sido o único a “conservar a sobriedade” em seu tempo, e que, opondo-se àqueles que identificam o princípio das coisas com elementos materiais – o próprio Tales, Anaxímenes, Anaximandro, Demócrito –, “compreende que o princípio material, de que são feitas as coisas, não é suficiente para explicá-las. É preciso também conhecer o agente que as produz (‘causa eficiente’ ou ‘causa motora’) e o fim para o qual esse agente age (‘causa final’)” (p. 40); com Heráclito e Parmênides, cuja assunção de tudo que existe no puro Vir-a-ser, no caso do primeiro, ou no puro Ser, no caso do outro, precisa ser corrigida (p. 44); com Sócrates, que merece o louvor por ter delineado a inteligência filosófica como busca das essências das coisas (p. 49), mas que é acusado de erro quando identifica o conhecimento com a virtude e atribui à ignorância todo agir imoral (p. 48); e com Platão, que assume ele mesmo para si a tarefa de “reunir na poderosa unidade de um sistema original todos os pensamentos que os filósofos gregos, seus antecessores, dispersaram”, mas que compõe ao fim uma obra “imperfeita e deficiente” (p. 52).

A esses bons intentos, contrapõem-se, na visão de Maritain, os sofistas, a quem atribui o erro fundamental de não mais tomar “aquilo que é (ou o objeto a ser conhecido) como fim e regra de sua ciência, mas os interesses do sujeito que conhece” (p. 45). Dessa forma, eles corrompem a filosofia – e aqui o filósofo francês não perde a oportunidade de ironizar os filósofos de sua época: “[Os sofistas] acreditavam na ciência, sem crer na verdade, se assim podemos dizer. Semelhante fenômeno histórico reproduziu-se desde então, e em proporções bem aumentadas...” (p. 46).

Depois de percorrer, então, a gênese e a consolidação do pensamento filosófico, Maritain delineia com mais precisão o que entende por filosofia, a partir do que considera os intentos acertados dos filósofos dessa fase. O filósofo francês assim formula seu conceito:

A Filosofia é o conhecimento científico que pela luz natural da razão considera as causas primeiras ou as razões mais elevadas

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de todas as coisas; ou ainda: o conhecimento científico das coi-sas pelas primeiras causas, na medida em que estas se referem à ordem natural (p. 71).

Essas duas descrições contêm elementos-chave para distinguir a filosofia daquilo que não o é: 1) a ideia de conhecimento permite a distinção do conceito de sabedoria como um bem viver; 2) o adjetivo científico que se lhe ajunta precisa que o conhecimento a ser buscado não é meramente provável, mas é um “conhecimento certo pelas causas”: conhecer “com certeza”, escreve Maritain, “e podendo dizer por que a coisa é tal e não pode ser de outro modo” (p. 68); 3) a referência à luz natural da razão ou à ordem natural distingue a filosofia da teologia; e, por fim, 4) essa definição delineia o que distingue das outras ciências humanas a filosofia: esta preocupa-se com as causas primeiras, com os princípios supremos das coisas, enquanto aquelas teriam por objeto “esta ou aquela parte daquilo que é, nelas procurando as causas segundas ou os princípios próximos” (p. 71). A filosofia tem, pois, por objeto formal as causa primeiras, e por objeto material “tudo o que é” (p. 70). Maritain faz ainda a ressalva de que essa definição aplica-se sobretudo à “Filosofia primeira ou Metafísica”, mas que aplica-se também de certo modo a toda a filosofia, na medida em que se refere a causas primeiras em dada ordem, e não de modo absoluto como a metafísica (p. 71).

O caminho que o filósofo francês percorre até fixar essa definição nos mostra sua atitude diante da história da filosofia: herdar a tradição filosófica sim, mas não seus erros. Maritain não se abstém de julgar a filosofia antiga com o instrumento no qual reconhece a filosofia verdadeira: a filosofia aristotélico-tomista. Mas, por que é precisamente em Aristóteles e Santo Tomás que ele julga encontrar a filosofia verdadeira?

A noção de verdadeira filosofia

Ainda na sua Introdução geral à filosofia, Maritain elenca alguns elementos que caracterizam o que seria a filosofia verdadeira, que ele chama de “notas ou sinais exteriores da verdadeira filosofia”. Ao mesmo tempo em que enumeraremos essas notas, iremos verificar como Maritain identifica a presença de cada uma delas na filosofia de Aristóteles e de Santo Tomás, que daqui em diante chamaremos apenas de tomismo. Voltaremos à questão da nomenclatura que essa filosofia pode receber na nossa conclusão.

Em primeiro lugar, 1) a verdadeira filosofia é a filosofia natural do espírito

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humano, no sentido em que desenvolve aquilo que há de mais autenticamente natural em nossa inteligência, tanto no que se refere aos seus conhecimentos primeiros como à sua inclinação à verdade.

2) É também filosofia da evidência, que não se fecha em uma aceitação exclusiva da evidência experimental e nem da evidência intelectual, mas se baseia ao mesmo tempo em ambas essas fontes, “inclinando-se fielmente a todas as exigências do real” (p. 66). Sobre esse aspecto, Maritain fala de Aristóteles como um “lógico rigoroso, mas também realista sempre alerta, acomoda-se sem esforço às exigências daquilo que é, acolhendo no pensamento todas as variedades do ser sem jamais forçar ou deformar o que quer que seja”, e continua afirmando que somente Santo Tomás superará “tal capacidade e liberdade de espírito” (p. 61).

3) É filosofia da inteligência, isto é, confia na inteligência disciplinada e purificada como faculdade do verdadeiro (p. 66).

4) É necessariamente universal, não contradizendo as certezas vitais a que podemos chegar pelo uso reto da razão (que Maritain identifica com o senso comum). A verdadeira filosofia não pode ser

expressão de uma nacionalidade, nem de uma classe, nem de um grupo, nem de um temperamento, nem de uma raça, nem de uma ambição, nem de uma melancolia, nem de uma ne-cessidade prática, mas a expressão e o fruto da razão, que é sempre a mesma (Maritain, 2001, p. 66);

5) É de caráter duradouro, perdurável, donde vem o termo philosophia perennis. Aqui podemos retomar a defesa que o filósofo francês faz de um tomismo vivo. Nas Sete lições sobre o ser..., ele escreve:

O tomismo não é somente algo histórico. Devemos, sem dúv-ida, estudá-lo historicamente, como as outras doutrinas da Idade Média e de todas as épocas. Mas como (em certo sentido) as outras grandes metafísicas da Idade Média e de todas as épocas – e, de modo absoluto, mais do que todas elas, a título eminente, porque as reconcilia, ultrapassando-as, em uma sín-tese absolutamente transcendente –, ele contém uma substância que domina o tempo, por causa de seu alcance universal. Ele responde aos problemas modernos, na ordem especulativa e na ordem prática, tem uma virtude formativa e libertadora do ponto de vista das aspirações e inquietudes do tempo presente. Assim, o que esperamos dele é, na ordem especulativa, a sal-vação atual dos valores da inteligência; na ordem prática, a sal-

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vação atual (na medida em que isto depender de uma filosofia) dos valores humanos (1996, p. 11).

E, ainda, na Introdução geral...:

(...) antes de Aristóteles e Santo Tomás haverem-na constituído cientificamente, e como filosofia, [a sua filosofia] já existia des-de o primeiro dia em sua raiz, em estado pré-filosófico, como instinto da inteligência e conhecimento natural das primeiras conclusões da razão; de tal modo que desde a sua fundação como filosofia permaneceu estável e progressiva em sua grande vida tradicional, enquanto as demais filosofias se sucediam sem duração (2001, p. 66-67).

6) Por fim, é também una, ou seja, garante harmonia e unidade ao saber humano. Na Introdução geral..., Maritain compara a sabedoria humana, ou seja, a filosofia, a um “edifício perfeitamente bem acabado”, sabendo porém que esse edifício jamais será concluído. Dadas as dificuldades extraordinárias de tal obra, é normal, escreve Maritain, “que só se encontre um operário capaz de realizá-la”: Aristóteles. E continua:

Era necessário que, depois de uma longa preparação histórica, fossem um dia seus fundamentos lançados por um único op-erário. Milhares de artífices poderão por sua vez vir construir sobre esses alicerces (...). Mas terá sido necessário um meste arquiteto só (2001, p. 62).

Há uma outra nota que Maritain não lista junta a essas em sua Introdução geral..., mas que sem dúvida, em seu pensamento, é também marca característica do que seja uma verdadeira filosofia: o potencial ilimitado de desenvolvimento e atualização, a que Maritain alude nessa última citação, e que está entrelaçado às nota elencadas por ele. A filosofia de Aristóteles, segundo o filósofo francês, “encerra também o germe inteiramente formado da sabedoria universalmente humana; as virtualidades contidas neste germe comportam um desenvolvimento ilimitado” (p. 57). A inerência dessa característica à verdadeira filosofia é destacada nas Sete lições..., quando Maritain escreve:

É preciso que mostremos que esta sabedoria é sempre jovem, inventiva e traz em si uma necessidade profunda, consubstan-cial, de engrandecer-se e renovar-se – isto contra os preconcei-

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tos daqueles que gostariam de fixá-la em dado estado de seu desenvolvimento e desconhecem sua natureza essencialmente progressiva (1996, p. 12).

Por isso mesmo, o tomismo – como entendido por Maritain – não se opõe frontalmente a todas as outras correntes filosóficas, como se em Santo Tomás o pensamento filosófico estivesse em sua forma final, tornando irrelevante qualquer doutrina filosófica posterior. Tal posicionamento defensivo contradiria aquilo que Maritain vê como o serviço à verdade. Em uma carta a Jean Cocteau, datada de 1926, ele escreve, lançando um olhar retrospectivo à sua obra até então: “Precisei começar com as controvérsias, mas estas sempre me chateiam demais. (...) Nossa tarefa é procurar aquilo que há de positivo em todas as coisas, é usar a verdade menos para romper do que para curar” (Viotto, 1988, p. 6).

Assim, o relacionamento do tomismo com as demais correntes filosóficas é de abarcamento e de assunção, pondo em relevo o que nelas há de verdadeiro e retificando seus erros. É por essa razão que Piero Viotto diz que “o tomismo para Maritain não é um sistema, mas um método” (1988, p. 4),

um método universal do intelecto humano de confrontar-se com a realidade e a sociedade na busca dos princípios fundamentais do saber e do viverque pode ser compartilhado por homens pertencentes a diversas áreas culturais, a diversas crenças re-ligiosas, a diversos sistemas políticos (p. 10).

O tomismo é assim visto por Maritain como uma “sabedoria essencialmente aberta e sem fronteiras, pelo próprio fato de ser uma doutrina em movimento e em desenvolvimento vital” (Viotto, 1988, p. 10). Nas Sete lições..., o filósofo francês afirma:

O papel dos outros sistemas filosóficos é considerável em tal pro-gresso. Como indicamos em outro lugar, um sistema mal funda-do é um sistema adaptado à visão de uma época, e somente de uma época. Exatamente por causa disto, a sua armadura menos sólida permite que se lance mais rapidamente (porém para fra-cassar) sobre os novos aspectos do verdadeiro que surgem com aquele momento do tempo. Pode-se dizer que todos estes sis-temas mal fundados constituem uma filosofia virtual e fluente, que calvaga sobre formulações opostas, doutrinas adversas e é sustentada por aquilo que todas contêm de verdadeiro.Se existe entre os homens um organismo doutrinal assentado

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por inteiro sobre princípios verdadeiros – e este é, para nós, o caso do tomismo –, ele incorporará, com atrasos maiores ou menores – devidos à preguiça dos tomistas –, realizará pro-gressivamente em si esta filosofia virtual, que se tornará ime-diatamente, e por causa disto, visível e formulável, formada imediatamente e organicamente composta. Em nossa opinião o tomismo está destinado a atualizar, com o seu próprio pro-gresso, o progresso da filosofia.Ao assimilar tudo o que há de verdadeiro nos sistemas parciais, ele dilatará a sua própria substância e fará brotar dela relâm-pagos cada vez mais profundos, que revelarão as energias es-condidas nas verdades que possui. A novidade que ele mani-festa assim – sem buscá-la por ela mesma – é, antes de tudo, uma novidade na forma de abordar as mesmas margens do ser e de distribuir as mesmas riquezas do mistério das coisas. São as novas perspectivas constantemente abertas sobre o mesmo universo inteligível, sobre a mesma paisagem imaterial, que o fazem aparecer transfigurado e nos fazem entrar mais a fundo nos segredos da beleza (1996, p. 23-24).

Mais de trinta anos depois, em 1965, Maritain continua a tocar nessa dimensão do tomismo:

[O tomismo] é aberto aos novos problemas e às novas verdades que a evolução da cultura e da ciência permitem-no realçar. É aberto às contribuições das novas filosofias que surgem em cada época e às novas verdades que elas trazem, mesmo que contaminadas pelo erro. Quero notar que uma tal abertura pressupõe um esforço do intelecto para transcender, por um instante, sua própria linguagem conceitual, a fim de entrar na linguagem conceitual do outro, retornando então daquela viagem depois de colher a intuição de que vive a nova filosofia em questão. (...) Assim se compreende como pode ser possível existirem as mesmas intuições primárias e a mesma sabedo-ria filosófica (...) junto a problemáticas diversas, mesmo a ex-pressões linguísticas diversas (...) (Viotto, 1988, p. 10).

Maritain tem consciência de que, por admitir essa característica essencialmente progressiva da filosofia, deverá sempre se contrapor aos “preconceitos dos espíritos sistematicamente tradicionalistas ou imobilistas” (1996, p. 22), daqueles que, como foi dito, “gostariam de fixá-la em dado estado de seu desenvolvimento” (p. 12). É uma dificuldade frequente na história da

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filosofia que o tomismo seja visto, tanto por seus pretensos defensores como por seus críticos, como algo estático, acabado, de um dogmatismo avesso ao espírito investigativo filosófico e à liberdade do pensamento, um “tomismo arqueológico” a que já nos referimos. Escreve Maritain:

(...) o tomismo terá sempre duas coisas contra si: o ensinamento que o vulgariza nas escolas, com os seus textos, as suas fórmu-las estereotipadas, as suas inevitáveis simplificações e rotinas; e a sua perfeição técnica, que assusta os espíritos que se creem originais e que não compreenderam que as chaves preparadas com tanto cuidado por Santo Tomás são destinadas a abrir as portas, não a fechá-las (Viotto, 1988, p. 11).

Do outro lado da crítica, estão “os preconceitos do individualismo moderno, já que este gosta, estima e procura o novo pelo novo e só se interessa por uma doutrina na estreita medida em que ela representa uma criação, a criação de uma nova concepção de mundo” (Maritain, 1996, p. 11-12). São aqueles a que Maritain se referia, implícita e ironicamente, quando falava dos sofistas. Viotto sintetiza bem o caminho que levou à aversão à noção de verdade que predomina em nosso tempo:

Do realismo clássico, hebraico-cristão-muçulmano, o pen-samento moderno, através do fenomenismo do empirismo in-glês, do racionalismo francês e do criticismo alemão, terminou no idealismo contemporâneo; pois se nós podemos conhecer as coisas somente como nos parecem, fenomenisticamente, en-tão as coisas devem ser como nos parecem, o Eu é criador da realidade mediante o desenvolvimento dialético e é Deus para si mesmo, não obedece senão a si mesmo e se realiza inteira-mente na história (1988, p. 9).

Mesmo nesse ambiente intelectual hostil, porém, Maritain não só conceitua a filosofia e estabelece os critérios de uma filosofia verdadeira, como não se furta a delinear a relação da filosofia com as outras áreas do conhecimento.

Conclusão: o lugar da filosofia

Conscientes dessa sua visão da filosofia de Aristóteles e de Santo

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Tomás, podemos lançar um olhar sobre como Maritain prefere designá-la. Partindo do encontro entre a filosofia de Aristóteles e o labor intelectual de Santo Tomás – “Encontraram-se então a sabedoria humana e a Verdade divina”, narra Maritain (2001, p. 64) –, o filósofo francês explica que o frade dominicano, além de incorporar a filosofia do Estagirita ao pensamento cristão, a superelevou e a transfigurou (p. 65).

Santo Tomás, escreve Maritain,

purificou-a de todo vestígio de erro – na ordem filosófica, pois na ordem das ciências de observação ou ciência dos fenô-menos, Santo Tomás não podia, nem Aristóteles, evitar os erros admitidos em seu tempo, erros que não atingem a Filosofia em si; sistematizou-a poderosa e harmoniosamente, aprofundan-do-lhe os princípios, destacando as conclusões, alargando o horizonte, e se nada cortou, muito acrescentou, enriquecendo-a com o imenso tesouro da tradição latina e cristã (p. 65).

Com base nisso, Maritain conclui que a designação de filosofia tomista convém melhor do que a de filosofia aristotélica. Nas Sete lições..., o filósofo francês diz que as expressões neoescolástica e neotomismo não lhe agradam, pois correm o risco de “nos reportar ao plano da sabedoria ao plano das ciências problemáticas e, consequentemente, de nos conduzir logicamente a reclamar também para o tomismo um progresso de substituição em que o neo acabaria por engolir o tomismo” (1996, p. 22). Sobre o termo escolástica, Maritain prefere não o usar para evitar confusões, já que “a obra de Santo Tomás foi deseferrujar a velha escolástica” (p. 22). Piero Viotto, no entanto, para evitar equívocos, propõe outra nomenclatura à filosofia de Maritain. Segundo ele,

não é o tomismo, se por tomismo se entende a repetição da filosofia de Santo Tomás, mas um realismo crítico, que atravessa toda a história da reflexão humana, que não pertence a uma cultura particular, que não se resolve na busca de um único homem, mesmo de um homem excepcional como Santo Tomás (1988, p. 10).

A nomenclatura de realismo crítico expressa precisão, na medida em que conceitua de fato a filosofia de Maritain, mas sobretudo se destaca por indicar a amplitude de seu pensamento. Ora, o que designa a expressão “realismo crítico” senão a própria atitude racional diante do mundo? Aristóteles, Santo

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Tomás, Jacques Maritain e outros inserem-se numa mesma linha que não busca a fundação de uma escola, a partir de elaboradas sistematizações artificiais, mas simplesmente o conhecimento das coisas. É a partir dessa ideia de unidade do conhecimento – que se contrapõe à “esquizofrenia intelectual” hodierna que postula “verdades” diferentes, até mesmo contraditórias, para cada campo do conhecimento – que Maritain deseja esclarecer o lugar da filosofia diante 1) das outras ciências, 2) da teologia e 3) diante do senso comum.

Enquanto distinta das outras ciências, a filosofia não está isolada destas. Segundo Maritain, ela a) dirige-as, no sentido de que exerce o papel de scientia rectrix, mostrando “o fim próprio das diversas ciências, uma vez que determina especulativamente o objeto próprio de cada uma e o que faz sua unidade e distinção (classificação das ciências) (Maritain, 2001, p. 75). Por isso, ela também b) defende os princípios de todas as ciências humanas, na medida em que esta supõem dados primários que não cabem às próprias elucidar (p. 77). Por fim, a filosofia c) tem o direito de julgar todas as outras ciências humanas. Maritain explica: “Toda ciência é senhora de si, isto é, possui os meios necessários e suficientes para estabelecer a verdade no seu domínio, e ninguém tem fundamento para negar as verdades estabelecidas como tais” (p. 73). Ainda assim, pode acontecer que um cientista se engane acidentalmente, e então a própria ciência em questão pode julgar e retificar seu engano, mas a filosofia também tem esse direito, caso o erro cometido choque-se com alguma de suas verdades – o que não livra a filosofia de rever suas proposições quando se mostram incompatíveis com uma verdade descoberta pelas ciências (p. 74). É certo também que d) a filosofia depende das outras ciências em seu próprio progresso, pois baseia-se nos fatos, nos dados da experiência; mas isso não impede que ela seja a ciência “livre por excelência”, pois, escreve Maritain, “tal dependência é puramente material, isto é, o superior depende do inferior para se servir dele e não parar servir a ele” (p. 78).

O filósofo francês reconhece a superioridade da teologia sobre a filosofia. “A supor que exista de fato uma ciência que seja no homem uma participação da ciência própria de Deus, esta ciência, evidentemente, será mais alta do que a mais alta ciência humana”, escreve ele (p. 80). Por isso, a teologia a) pode julgar a filosofia do mesmo modo que a filosofia julga as outras ciências, isto é, em relação a suas conclusões, já que tanto os princípios quanto o meio pelo qual a filosofia conhece seu objeto são independentes da teologia. Maritain diz que a filosofia, quanto às conclusões, “é limitada na sua liberdade – na liberdade de se enganar” (p. 82). Por outro lado, a teologia b) usa a filosofia

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para suas próprias demonstrações. Ela não seria, em si, obrigada a isso, mas, esclarece o filósofo, “por causa da fraqueza do espírito humano que raciocina sobre as coisas de Deus apenas por analogia com as criaturas, a Teologia só pode desenvolver-se servindo-se da Filosofia” (p. 83). Por isso, apenas nessa situação, quando auxilia o raciocínio teológico, a filosofia denomina-se ancilla theologiae. “Em si mesma (...), não é serva, mas livre”, diz Maritain (p. 83).

Já em relação ao senso comum, Maritain afirma que a filosofia a) não se baseia na autoridade do senso comum, se o consideramos como consenso ou como instinto comum dos homens, mas b) deriva dele se por senso comum entendemos a inteligência natural dos primeiros princípios. Nesse caso, “o senso comum é como uma filosofia imperfeita e embrionária”, diz o filósofo francês. Entretanto, ainda que “superior ao senso comum como o estado perfeito ou ‘científico’ de um conhecimento verdadeiro é superior ao estado imperfeito ou ‘vulgar’ deste mesmo conhecimento” (p. 90), Maritain reconhece que, acidentalmente, c) o senso comum pode julgar a filosofia, com um juízo que, embora filosoficamente insuficiente, pode ser considerado justo, e cita dois exemplos:

Conta-se que Diógenes, diante de quem Zenão de Eleia desen-volvia seus argumentos contra a possibilidade do movimento, contentou-se, em vez de qualquer resposta, em levantar-se a andar. Igualmente a Descartes, que sustentava que o movimen-to é relativo ou “recíproco”, sendo indiferente dizer que o móvel se move em direção ao fim ou o fim em direção ao móvel, o filósofo inglês Henry More respondia: quando um homem corre para um fim, estafando-se e cansando-se, sabe muito bem se é o móvel ou o fim que está realmente em movimento (p. 88-89).

Nesse ponto, em que falamos sobre o lugar da filosofia, convém que foquemos algumas ideias que Maritain expressa no prefácio de sua Introdução geral à filosofia. Tratam-se de algumas ressalvas que ele faz, claramente pensando nos costumeiros críticos da sua e da nossa época. O filósofo francês lembra que o tomismo pode ser chamado de filosofia cristã, visto que é aquela filosofia recomendada e referendada pela Igreja católica, mas deixa claro:

(...) aqui, entretanto, propomo-la ao leitor não porque é cristã, mas por ser demonstrativamente verdadeira. A conveniência desta filosofia, fundada por um pagão com os dogmas revela-dos, é sem dúvida um sinal exterior, uma garantia extrafilosófica

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de sua veracidade; não é dessa conformidade com a Fé que ela tira sua autoridade de Filosofia, mas da própria evidência racional que possui (p. 15).

E complementa, concluindo o prefácio: “Convém notar que, em nossas demonstrações e na própria estrutura de nossa exposição filosófica, não é a fé, é a razão e só a razão, que desempenha todo o papel e toda a autoridade” (p. 15).

Filósofos como Jacques Maritain, tomistas, ou cristãos em geral, foram no último século muito criticados por sua suposta parcialidade ou dependência da fé cristã, que limitaria o seu filosofar. No entanto, convém que nos perguntemos: quem, de fato, limita o pensamento, a razão, a filosofia? Quantos filósofos não abaixaram a filosofia, diante da presunçosa onipotência da ciência? Por mais estranho que possa parecer a nossos olhos, acostumados com uma visão turva da relação entre fé e razão, está claro que, entre os filósofos que mais prezaram a autoridade da razão e o valor da filosofia, estão Jacques e Raissa Maritain.

Referências Bibliográficas

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VIOTTO, P. La filosofia di Maritain: Introduzione alla lettura dell’opera. In MARITAIN, J. Elementi di filosofia (I): Introduzione generale alla filosofia. Milão: Editrice Massimo, 1988.

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André Rosolem Sant’AnnaGraduando em Filosofia / Universidade Estadual de Maringá [email protected]

Revolução científica e o papel da filosofia

Resumo Neste artigo, pretendo abordar o problema relativo ao papel da Filosofia dentro de um cenário intelectual constituído pelas diversas especialidades da ciência. Para isso, recorro a uma análise histórica dos primórdios da ciência, explicitando, em um primeiro momento, como se dá a revolução científica frente as diferentes formas do saber vigentes no século XVI. Em um segundo momento, procuro explicitar como Bacon, um dos grandes expositores da filosofia natural que futuramente daria origem às ciências naturais, concebia o papel da Filosofia na perspectiva da revolução científica que tomava lugar no século XVI. De um modo mais específico, apresento o conceito de philosophia prima de Bacon para explicitar o papel importante que a Filosofia pode exercer no contexto de especialização da ciência. Por fim, tento relacionar uma das tendências naturalistas na filosofia que surgem no século XX com a discussão relativa ao conceito de philosophia prima.

Palavras chave naturalismo, filosofia primeira, revolução científica, Bacon.

Introdução A ciência moderna aparece no século XVI como uma alternativa a

diferentes formas de saberes existentes nesta mesma época, como é o caso, por exemplo, da alquimia e da própria filosofia escolástica. Tendo triunfado sobre estes outros empreendimentos intelectuais, a ciência, antes tomada sob o título de “filosofia natural”, passaria, ao longo dos séculos XVIII e XIX, por um período de emancipação e divisão desta “filosofia natural” nas diversas

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ciências naturais, como é o caso da Física, da Química, da Biologia, e mais tardiamente da Psicologia.

O problema que surge no contexto desta emancipação das ciências naturais diz respeito ao papel que a Filosofia pode exercer frente a esta especialização das ciências. De um modo mais específico, se disciplinas como Física e Biologia tornam-se autônomas relativamente à antiga filosofia natural, estabelecendo objetos e métodos de investigação próprios, qual seria o papel do filósofo nesta comunidade de cientistas especializados em diferentes disciplinas?

Para respondermos a esta questão, um caminho que podemos seguir consiste em analisar como os filósofos e cientistas do período moderno concebiam a Filosofia no contexto da revolução científica que tomava lugar naquele momento. Mais especificamente, a proposta que pretendo seguir aqui pode ser dividida em duas partes: em primeiro lugar, (i) analisaremos os principais aspectos que diferem a ciência moderna de outros três empreendimentos intelectuais (a filosofia escolástica, a alquimia e o saber técnico das oficinas) recorrentes no século XVI para compreendermos as principais características da ciência moderna. Em segundo lugar, (ii) analisaremos o conceito de philosophia prima construído por Francis Bacon para tentarmos compreender qual pode ser o papel da Filosofia dentro de um mundo no qual o conhecimento se divide em blocos especializados. Por fim, tento relacionar as discussões acerca da noção de philosophia prima com algumas discussões recentes na filosofia analítica.

I. Revolução científica e a especialização do saber

O caráter da ciência enquanto forma de saber absoluto em nossa sociedade pode criar a impressão de que a ciência moderna, em seus primórdios, foi aceita de um modo não problemático. Um olhar mais atento para a história, no entanto, parece lançar dúvida sobre tal asserção. Em um livro dedicado à análise de alguns aspectos referentes à sociedade europeia no momento em que surge a ciência moderna, Paolo Rossi (1997) explicita a existência de diversos “modos de saber” concorrentes no século XVI. Dentre estes, podemos destacar a filosofia escolástica praticada nas universidades, o saber hermético dos alquimistas, e o saber prático ou saber técnico caraterístico das oficinas daquele período.

Este arranjo de diversas formas do saber concorrentes representa, em um certo sentido, modos distintos sobre os quais o conhecimento é concebido, o que os torna muito sugestivo para entendermos como se dá a revolução

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científica no século XVI. Neste sentido, para podermos compreender de um modo um pouco mais preciso as principais características da ciência moderna, uma análise destes três modos do saber pode ser frutífera.

O saber dos escolásticosComecemos, portanto, com o saber dos escolásticos. O saber dos

escolásticos, baseado somente em poucos experimentos e em uma ampla e extensiva atividade mental, pode ser classificado sob a analogia que Bacon (1999, XCV) faz entre o empreendimento dos filósofos racionalistas e o trabalho das aranhas. Assim como as aranhas, os filósofos racionalistas se empreendem em construir teias de conhecimento partindo somente de artifícios de suas mentes, sem se preocupar diretamente com os aspectos do mundo natural1.

Bacon classifica o saber dos escolásticos ou das aranhas como uma doença do saber, visto que suas preocupações se restringem apenas à coerência de suas teias de conhecimento, sendo estas, no entanto, alheias aos aspectos do mundo natural. Em outras palavras, o saber contencioso, tal como Bacon denomina o saber dos escolásticos, representa uma enfermidade ao saber porque o seu foco se configura nas discussões e não propriamente no modo em como o mundo opera2.

Além disso, o saber escolástico possui um caráter não-progressivo, já que sua preocupação reside em aprimorar um saber já instituído (a filosofia aristotélica) sem se preocupar em propor conhecimentos novos. Neste sentido, como destaca Rossi (1997, pp. 17-8), a busca dos escolásticos por definições absolutas de um saber já estabelecido e não por novos conhecimentos constituiu um obstáculo à matematização do conhecimento tão importante para as invenções da ciência moderna, visto que a precisão de definições diz respeito a como estas última são construídas, sem, no entanto, levar em conta sua relação com o mundo natural.

O saber dos alquimistasO segundo modo de saber que mencionamos é o saber dos alquimistas.

Este último tem em comum com a ciência moderna a sua preocupação com os experimentos. Os alquimistas, assim como os cientistas, utilizavam-se de técnicas de experimentação para manipular determinados aspectos do

1 Ver Rossi (1986, p. 97)

2 Ver Bacon (2006, livro I, capítulo IV).

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mundo natural. Seus experimentos, entretanto, eram guardados em escritos herméticos, o que impossibilitava o acesso de pessoas não-iniciadas a este tipo de conhecimento.

Neste ponto, podemos destacar um primeiro ponto importante que distingue a ciência moderna da alquimia. Um dos objetivos da ciência moderna, e talvez o principal, é o de propiciar a melhoria das condições de vida do gênero humano3. Assim, a ciência moderna, ao contrário da alquimia, tem como ideal a transmissão e a popularização do saber adquirido. Na ciência, o saber não é mais considerado como um privilégio de poucos, mas sim como algo que pode ser adquirido e empreendido por todos.

Esta pretensão de popularização do saber, de tal modo que a humanidade possa se beneficiar das descobertas da ciência, faz a ciência passar a beneficiar um vocabulário claro e rigoroso, visando evitar qualquer ambiguidade na formulação das teorias. Neste sentido, a ciência moderna rompe com o saber hermético e obscuro que era característico dos alquimistas.

Outro ponto de rompimento do saber científico com o saber da alquimia reside no modo em que cientistas e alquimistas empreendem suas experiências. Como destaca Bacon (1999, VIII), os modos de conhecimento que precedem a ciência moderna devem mais à sorte no que se refere à constituição de seus corpos de conhecimento do que propriamente a qualquer investigação em forma de ciência. No caso da alquimia em específico, a crítica de Bacon reside na ausência de um método para a realização das experiências. Isto geraria, de acordo com Bacon, apenas um arranjo de experimentos que não estão conectados por um método rigoroso.

Temos aqui, portanto, outro aspecto que nos permite diferenciar a ciência moderna do saber dos alquimistas. De um modo resumido, apesar de se fiar nos experimentos como algo essencial para a aquisição do conhecimento, o cientista não pode somente fazer experimentos. Ele precisa, antes, de um método que guie a formulação e realização destes experimentos. Estes aspectos negativos da alquimia levam Bacon a classificar esta última como uma doença do saber, doença esta que ele denomina por saber fantástico (por seu caráter hermético e obscuro) e que deve ser superada pela ciência.

O saber dos técnicosCabe-nos, por fim, analisar o saber dos técnicos. Este último modo de

saber com o qual estaremos concernidos aqui pode ser caracterizado pela sua íntima relação com a manipulação de aspectos do mundo natural. De um

3 Ver Bacon (1999, LXXXI).

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modo mais específico, o saber dos técnicos é um saber que permite a estes últimos reproduzir de modo artificial alguns aspectos e fenômenos do mundo natural. Pela observação do mundo natural, os técnicos podem reproduzir, a partir de suas invenções, fenômenos deste mundo que podem ser utilizados para objetivos específicos.

Um outro aspecto importante para os nossos propósitos reside na possibilidade de acumulação do conhecimento inerente ao saber dos técnicos. Contrário ao saber dos escolásticos, o saber dos técnicos é caracterizado pelas invenções. Estas invenções são aprimoradas e recriadas conforme o conhecimento dos técnicos vai se acumulando ao longo do tempo, de tal modo que o controle e as reproduções dos fenômenos naturais tornam-se cada vez mais acuradas.

Estes dois aspectos do saber dos técnicos que destacamos são de extrema importância para a ciência moderna. Há, no entanto, um problema com este modo do saber, visto que, caso este não fosse o caso, não falaríamos do saber científico como um saber revolucionário, mas sim como um triunfo do saber técnico.

Este problema pode ser visto de modo mais claro com a analogia que Bacon faz dos filósofos empiristas com as formigas. Para Bacon, os filósofos que se atém excessivamente aos experimentos (como é o caso dos técnicos) correm o risco de apenas juntar mais e mais experiências, sem ter de fato um método que guie e unifique estas experiências. Em outras palavras, um saber focado somente na experiência permite apenas um acúmulo de experiências, sem, no entanto, constituir-se como um arranjo organizado e sistemático de experiências que nos permita conhecer o mundo natural.

O saber científicoA crítica de Bacon às três formas do saber que destacamos brevemente

acima permite-nos explicitar de um modo mais preciso as características que diferem a ciência moderna das outras formas de saber vigentes na época em que a primeira emerge. Como vimos, no que diz respeito ao rompimento com o saber dos escolásticos, a ciência moderna não mais aceita um modo de investigação que se baseia somente na construção de teias de conhecimento que estão fundamentadas somente em elucubrações mentais de alguns indivíduos.

Esta negação do trabalho mental excessivo das “aranhas”, no entanto, não significa dizer que a ciência moderna se volta inteiramente para o trabalho

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técnico ou empírico4. Na crítica ao saber dos técnicos e dos alquimistas, Bacon deixa claro que o trabalho de acumulação de experimentos característico das “formigas” não é capaz de produzir bons frutos se não for guiado por um método rigoroso. O máximo que podemos atingir, neste caso, é um acúmulo arbitrário de experimentos, sem podermos, no entanto, relacioná-los de modo unificado e sistemático.

Esta oposição entre filósofos racionalistas e filósofos empiristas, ou, para continuarmos a usar a analogia de Bacon, entre “aranhas” e “formigas”, leva Bacon a conceber a atividade do cientista como semelhante à atividade de um outro animal, a saber, a abelha. O cientista operaria, nesta perspectiva, em um plano intermediário entre os empreendimentos das “aranhas” e das “formigas”, isto é, o cientista não seria nem um experimentador assíduo e nem se dedicaria somente as meditações mentais. Ele seria, ao contrário, como as “abelhas” que recolhem o néctar das plantas para produzir, a partir de si mesmas, o mel. Como destaca Rossi (1986, p. 97): “Como as abelhas, a verdadeira filosofia segue um caminho intermediário [entre racionalismo e empirismo]: obtém seu material das flores dos jardins e dos campos, porém os transforma e os digere com o intelecto”. Torna-se claro, portanto, que o cientista, assim como explicita a crítica de Bacon ao saber dos escolásticos e dos técnicos, deve se empreender em coletar o pólen do mundo natural, sem, no entanto, deixar de lado o trabalho da mente para produzir o mel do conhecimento.

Este reconhecimento da importância do saber dos técnicos5 é de grande importância para a ciência por um outro motivo além daquele referente ao enfoque dado aos experimentos. Este motivo diz respeito às constantes invenções e o sentido de progresso inerente ao saber dos técnicos. Tendo como objetivo providenciar melhorias para a condição humana, a ciência moderna incorpora a busca por novas invenções dos técnicos, invenções estas que possibilitam aos cientistas reproduzir de modo artificial e cada vez mais acuradamente os fenômenos naturais. Esta reprodução artificial dos fenômenos naturais implica certo controle sobre estes fenômenos, o que permite ao cientista manipulá-los de tal modo que eles pudessem ser postos a serviço da humanidade.

Para que a ciência pudesse ser posta a serviço da humanidade, no entanto,

4 Ver Bacon (1999, XCV).

5 Quando a ciência moderna surge, o saber dos técnicos era considerado um saber indigno por envolver um trabalho braçal, forma de trabalho que era atribuída aos escravos. Rossi (1997) destaca esse desprezo ao saber dos técnicos como um dos obstáculos culturais que se impuseram ao surgimento da ciência moderna. Cf. Rossi (1997), cap. 1.

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seria preciso que este conhecimento pudesse estar acessível, da melhor maneira possível, a todos os homens. É aqui que se torna importante o ideal de clareza e rigor assumido pelos cientistas. Ao contrário dos alquimistas, o saber científico não poderia ser transmitido por uma linguagem hermética e obscura somente acessível a alguns iniciados. Este apreço pela linguagem clara e rigorosa, além de tornar a ciência acessível a todos os homens, tornou possível o progresso da ciência na busca por novas invenções: o saber científico transmitido de gerações a gerações permite aprimorar cada vez mais este conhecimento.

Temos aqui uma breve caracterização dos pontos que diferem o saber científico dos outros modos de saber em vigência no século XVI. Tendo rompido e assimilado diferentes aspectos do saber dos escolásticos, dos alquimistas e dos técnicos, podemos dizer que a ciência moderna surge como uma alternativa que proporciona diferentes perspectivas para a obtenção do conhecimento.

Este novo modo de concepção do saber que surgia na filosofia natural no século XVI, entretanto, especializar-se-ia cada vez mais ao longo dos séculos, dando origem a áreas de investigações autônomas que hoje possuem domínios e métodos de investigações distintos, como é o caso da Física e da Biologia. Esta especialização subsequente coloca em questão o papel da Filosofia em um mundo composto por diversas ciências com objetos de investigações definidos. Em outras palavras, teria a Filosofia, assim como as diversas ciências, objetos de investigação específicos? Independentemente de como respondemos a este questionamento, novos problemas surgirão na medida que, no caso de uma resposta positiva, precisaríamos explicitar quais seriam os objetos próprios da Filosofia, o que não seria uma tarefa fácil. Similarmente, no caso de uma resposta negativa, estaríamos colocando em risco o próprio valor da Filosofia, já que, na ausência de um âmbito de investigação definido, qual seria o papel da Filosofia para o conhecimento nos dias de hoje?6

II. Philosophia prima e o papel unificador da filosofia

O questionamento com o qual fechamos a última seção é de extrema importância para entendermos qual a contribuição que a Filosofia pode fazer para o conhecimento nos dias de hoje. Vimos na seção I os principais aspectos

6 Ver Searle (1999) para uma discussão relacionada a este tópico.

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da ciência moderna, anteriormente denominada de filosofia natural, que nos permitiram caracterizá-la como uma revolução tanto em relação ao modo de fazer filosofia anterior quanto a outros empreendimentos intelectuais vigentes no século XVI.

Parece haver aqui, entretanto, um problema. A Filosofia no período antigo e medieval se constituía como o principal meio de investigação que tínhamos acerca do mundo. Se os pensadores do período moderno rompem com esta tradição, tal como pretendia Bacon e Descartes, dando origem a uma nova concepção de filosofia que futuramente seria fragmentada nas diversas ciências, então parece-nos razoável pensar que um dos modos de conceber a retomada da importância da Filosofia seja, em algum sentido, atribuir-lhe objetos de investigação próprios tal como se observava anteriormente à revolução da ciência.

Tal movimento pode parecer o mais razoável e intuitivo frente ao problema que enfrentamos, mas não precisamos subscrever a ele de modo necessário. Podemos, por outro lado, encontrar nos textos de Bacon uma concepção de Filosofia que não se compromete com a assunção de objetos próprios para a Filosofia. Esta concepção é particularmente interessante porque ela faz da Filosofia um empreendimento essencial dentro de um mundo caracterizado pelo saber científico que descrevemos acima. Em outras palavras, a concepção de Filosofia de Bacon permite-nos explicitar a importância desta última em um mundo de ciências especializadas tal como o é o mundo de hoje, sem, no entanto, comprometermo-nos em atribuir à Filosofia objetos de investigação próprios. Neste sentido, estaremos concernidos nesta seção em explicitar os aspectos gerais desta concepção de Filosofia que Bacon denomina por philosophia prima para tentarmos responder o problema que colocamos acima.

Em ambos Novum Organum e Advancemente of Learning, Bacon concebe a noção de uma philosophia prima ou de uma primitive philosophy atrelado à noção do conhecimento como uma árvore. Mais especificamente, o conhecimento seria constituído por um único tronco a partir dos quais vários galhos com diversas ramificações surgiriam a partir deste tronco. Como destaca Rossi (1986, p. 127), esta visão do conhecimento contrasta com a visão segundo a qual o conhecimento é constituído por linhas paralelas que se entrecruzam em determinados pontos7. Em outras palavras, os pontos de contato entre as disciplinas do conhecimento não seria a interseção entre linhas, mas sim o

7 “[A]s divisões e partições do saber não são como linhas que se tocam em um ponto. São similares aos galhos de uma árvore que estão inteiros e unidos antes de suas ramificações”. (Rossi, 1986, p. 127).

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tronco e os galhos a partir do qual estas disciplinas são derivadas.Este tronco que fornece os subsídios para as diversas disciplinas ou ciências

é o que Bacon chama de philosphia prima ou filosofia primeira. De um modo mais preciso, a filosofia primeira seria um conjunto de axiomas que seriam anteriores às diversas divisões do conhecimento. Neste sentido, antes que pudesse haver galhos como a Física e a Biologia e suas diversas ramificações, a filosofia primeira seria um conjunto de pressupostos que sustentaria todas estas ciências.

Portanto, a construção de uma filosofia primeira ou geral tem a ver com o tronco da árvore, que é anterior ao ponto em que se particionam e se dividem os caminhos. A filosofia primeira, que não coincide em absoluto com a tradicional metafísica, deve ser colocada entre os desiderata das ciências. (Rossi, 1986, p. 127)

Bacon quer dar lugar a uma filosofia primeira “que seja o re-ceptáculo dos axiomas que não pertencem propriamente às ciências particulares, mas sim que competem em comum a muitas ciências”. Esta filosofia que é o ascendente ou o geni-tor comum de todo o conhecimento tem por objeto os comuns atributos das coisas e as similitudes que não são só aparentes, mas que são, por outro lado, “as formas mesmas da natureza que se imprimem e deixam seu signo sobre coisas e objetos diferentes” (Rossi, 1986, p. 127)

A filosofia primeira aparece, neste sentido, como um receptáculo das formas gerais da natureza, receptáculo a partir do qual as outras ciências derivam seus axiomas e formas específicas. Conhecer esta filosofia primeira é importante porque ela nos permite empreender analogias entre as diversas áreas do conhecimento, de tal modo que ela nos mostra “as conexões que existem entre campos do saber [e] individualizam os axiomas comuns às várias ciências” (Rossi, 1986, p. 137). O conhecimento destes axiomas tem um papel central no avanço do conhecimento na medida em que eles são “úteis para ampliar o saber mostrando como podem ser transferidas, de um campo a outro, técnicas cognitivas e operativas” (Rossi, 1986, p. 137).

A filosofia primeira, enquanto conjunto de axiomas gerais e pertencentes a todas as ciências, configura-se como uma fonte de analogia entre as diversas áreas do conhecimento. Conhecer estes axiomas nos permite empreender métodos de investigação característicos de uma área em outros domínios do conhecimento, de modo que esta perspectiva pluralista nos permita empreender novas investigações de problemas que anteriormente poderiam

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parecer de difícil solução em uma perspectiva isolada.Além disso, podemos observar que a filosofia primeira possui um papel

unificador no que diz respeito à especialização das ciências que vemos em nossos dias. Se pensarmos no filósofo como o promovedor da aproximação entre as diversas áreas do conhecimento através de analogias baseadas nos axiomas da filosofia primeira, podemos então pensar que um dos objetivos da Filosofia é o de promover a unidade do conhecimento. Este pensamento de unidade, em certo sentido, marca uma grande diferença entre as preocupações dos filósofos e dos cientistas, já que estes últimos, em muitos casos, estão preocupados com os problemas específicos que concernem a um determinado ramo do conhecimento.

Isto tudo não quer dizer, no entanto, que a Filosofia possui um objeto de investigação próprio. O filósofo, assim como o cientista, está preocupado com os objetos da ciência. As partículas elementares e as interações eletroquímicas entre neurônios são também preocupações do filósofo; a grande diferença é que este último pensa estes aspectos do mundo natural a partir de uma perspectiva unificadora do conhecimento. O físico ou o neurocientista não necessariamente pensam nas partículas elementares ou nas interações entre neurônios em uma perspectiva unificadora, mas isto, novamente, não quer dizer que a Filosofia tenha objetos próprios. A Filosofia, por outro lado, pode ser concebida como um olhar unificador para os resultados da ciência, olhar este que, tal como sugere o conceito de philosophia prima, se baseia em princípios e axiomas gerais que são essenciais para o avanço do conhecimento.

III. Filosofia Naturalizada e Philosophia Prima

As últimas décadas na dita tradição “analítica” da Filosofia vem experimentando um crescente interesse pelos desenvolvimentos das ciências naturais. Filósofos como Daniel Dennett (1991, 1995), Paul Churchland (1995, 2007), Patricia Churchland (1988), e mais recentemente Jesse Prinz (2012), representam uma classe de filósofos que tentam integrar os resultados trazidos à tona pelas ciências empíricas e as investigações tradicionalmente denominadas filosóficas. Para os nossos propósitos neste texto, iremos nos focar no trabalho de Dennett, já que seu trabalho nos apresenta importantes pontos de contato com a nossa discussão acerca da filosofia prima.

Dennett é um filósofo especialmente conhecido por seus trabalhos em filosofia da mente e filosofia da biologia. Dentro da filosofia da mente, Dennett

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é um dos grandes defensores do que alguns denominam de funcionalismo homuncular ou teleofuncionalismo8. O funcionalismo homuncular reflete uma posição metafísica associada a uma estratégia de investigação da mente muito popular na inteligência artificial e na psicologia cognitiva: as “abordagens de cima para baixo” (top-down approaches). Assim, quando o funcionalista homuncular pretende explicar uma determinada capacidade mental, ele atribui esta capacidade mental ao funcionamento de determinada parte do cérebro e então divide (funcionalmente) estas partes do cérebro de tal modo que uma análise mais detalhada desta capacidade mental pode ser empreendida9. Cada uma destas partes menos complexas pode ser dividida em partes ainda menos complexas, de tal modo que este processo pode ser empreendido até chegarmos um partes cujo o funcionamento seja tão simples que podemos analisá-lo em termos puramente algorítmicos.

O funcionalismo homuncular está intimamente associado às respostas que Dennett dá a vários problemas dentro da filosofia da mente, dentre eles o problema da intencionalidade e o problema da liberdade10. Não poderemos entrar nos detalhes destes problemas, mas um aspecto importante das discussões de Dennett pode ser identificado a partir de uma olhar em retrospecto de seu trabalho. Este aspecto diz respeito à noção de “algoritmo de substrato neutro” desenvolvido por Dennett em seu livro Darwin’s Dangerous Idea (1995). Para entender esta noção, considere o caso de uma operação matemática. Neste caso, utilizamo-nos de um algoritmo neste processo. Este algoritmo, no entanto, pode ser realizado em diversos meios ou substratos: posso, por exemplo, realizar o algoritmo da divisão com uma folha e um lápis ou posso utilizar uma calculadora para tal. Neste sentido, um algoritmo, enquanto um processo lógico e formal, não depende do substrato em que é realizado, daí a noção de substrato neutro.

Ainda neste texto do 1995, no contexto geral da discussão de suas ideias acerca da biologia, Dennett defende uma postura adaptacionista em relação à evolução das espécies. Podemos dizer que o adaptacionismo, de um modo

8 Ver Lycan (1981 e 1995).

9 Esta é, de fato, a noção de análise funcional introduzida por Robert Cummins (1975). Podemos, por exemplo, explicar uma capacidade mental complexa como o reconhecimento de faces a partir da divisão desta tarefa em tarefas mais simples, associando estas últimas a partes distintas do sistema que realiza a tarefa mais complexa (no caso do ser humano, o cérebro humano). Ver Sant’Anna (2012a) para mais sobre a relação entre análise funcional e o funcionalismo homuncular.

10 Ver, respectivamente, Dennett (1987 e 1984) para mais detalhes sobre esta discussão. Sant’Anna (2012a) discute como uma abordagem baseada no funcionalismo homuncular pode ser empreendida no caso dos qualia. Embora esta abordagem não seja estritamente a de Dennett, é possível encontrar nesta discussão aspectos fundamentais da relação entre o funcionalismo homuncular e o problema dos qualia.

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geral, determina que:

[...] a presença de determinado traço biológico em um organ-ismo é resultado de uma pressão seletiva exercida pelo ambiente, de modo que organismos com características mais aptas a este ambiente seriam selecionados. Em outras palavras, organismos com características mais adaptadas às adversidades do ambiente teriam maior chance de se reproduzir. (Sant’Anna, 2012b, p. 18)

O que é importante para nós na adoção de Dennett de uma postura adaptacionista é o modo em que Dennett caracteriza o processo de adaptação que deu origem aos seres vivos complexos que hoje existem. Na versão do adaptacionismo de Dennett11, a seleção natural é a “chave” para entender a complexidade dos organismos vivos. Neste sentido, poderíamos explicar a complexidade da mente humana a partir do estudo de sua história evolutiva.

Um ponto interessante desta postura de Dennett de acordo com a qual a seleção natural é a chave para entendermos a complexidade dos seres vivos é a caracterização que Dennett faz da seleção natural como um “algoritmo de substrato neutro”. Em outras palavras, a seleção natural seria um processo algorítmico e lento que operaria durante milhões de anos de tal modo que um olhar em retrospecto deste processo nos permitiria ver como ele deu origem a seres vivos complexo como o ser humano. Neste sentido, se a seleção natural é um processo algorítmico de substrato neutro, e se a mente humana tem sua origem neste processo, poderíamos pensar então que a própria mente humana funciona como um algoritmo de substrato neutro.

Embora a noção de algoritmo de substrato neutro seja uma noção posterior aos seus escritos sobre a intencionalidade, por exemplo, Dennett assume de fato aspectos desta noção nestes escritos. Ao discutir em The Intentional Stance a distinção que Searle (1983) faz entre intencionalidade intrínseca e intencionalidade derivada12, Dennett se utiliza das considerações

11 Existem diferentes comprometimentos sob a postura geral que usualmente chamamos de adaptacionismo (ver Godfrey-Smith, 2001). No caso de Dennett, podemos dizer que ele se enquadra, junto com Dawkins (1987) e outros teóricos, na concepção do adaptacionismo explanatório. Em outras palavras, para estes autores as princi-pais questões da biologia evolutiva seriam aquelas relativa ao design dos organismos a partir da seleção natural.

12 Basicamente, o argumento de Searle (1983) é o de que a mente humana é capaz de produzir estados mentais com significado de modo intrínseco, isto é, sem derivar este significado de nenhum outro lugar. Esta é a noção de intencionalidade intrínseca. Em contraposição a esta última noção, Searle introduz a noção de intencionalidade derivada, isto é, a noção de significado associada a objetos ou sentenças que só possuem significado em relação ao um observador com intencionalidade intrínseca. Um exemplo de intencionalidade intrínseca são as sentenças de um livro: elas só possuem significado na medida em que um observador inteligente (com intencionalidade intrínseca) as lê.

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relativas à noção de algoritmo de substrato neutro para tentar mostrar que a distinção de Searle não faz sentido em um cenário evolutivo. De um modo geral, Dennett apresenta uma experiência de pensamento no qual o algoritmo de substrato neutro da seleção natural é empreendido em um projeto de engenharia para criar um robô capaz de agir conscientemente. Neste caso, Dennett argumenta que não estaríamos dispostos a atribuir intencionalidade intrínseca a um robô, ainda que ele tenha sido originado pelo mesmo processo de seleção que nós, isto é, um processo guiado pelo mesmo algoritmo da seleção natural13. Para Dennett, não existe tal coisa como intencionalidade intrínseca: a intencionalidade humana é uma intencionalidade derivada do processo de seleção natural e isso só pode ser visto a partir de uma análise algorítmica deste processo.

Não pretendo com esta breve discussão fazer jus ao complexo debate que aqui menciono. Gostaria de chamar atenção, no entanto, para um interessante aspecto presente no trabalho de Dennett. Este aspecto diz respeito a sua concepção da seleção natural como um processo guiado por um algoritmo de substrato neutro. Note que esta caracterização está intimamente ligada ao funcionalismo homuncular de Dennett. Em outras palavras, quando dizemos que o estudo da mente pode ser empregado por estratégias top-down de tal modo que possamos chegar à análise de sistemas que operam de forma algorítmica, estamos fazendo o processo inverso àquele que a seleção natural fez para dar origem ao que hoje chamamos de mente. Como o próprio Dennett (1995) explicita, a biologia é um processo de engenharia14.

Torna-se claro, neste contexto, como uma definição geral como a definição da seleção natural como um processo algorítmico pode informar discussões dentro da ciência, como é o caso da natureza da mente. Em outras palavras, poderíamos considerar a noção de seleção natural enquanto algoritmo de substrato neutro como um axioma geral útil para ampliar o saber (Rossi, 1986, p. 137). Na verdade, o próprio Dennett considera esta ideia como um “ácido universal”, isto é, um ácido capaz de resolver mistérios como aqueles relacionados à origem do universo15. Em outras palavras, para ele, a complexidade do universo poderia ser explicada pela operação deste algoritmo em um enorme período de tempo, de tal modo que a partir de operações simples e mecânicas como operações algorítmicas, poderíamos entender a complexidade do universo sem apelar para noções misteriosas,

13 Ver Sant’Anna (2012b) para uma discussão mais detalhada sobre este assunto.

14 A ciência cognitiva, por outro lado, seria um processo de engenharia reversa.

15 Ver especialmente o capítulo três de Dennett (1995).

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como é o caso da noção de um designer inteligente. Se tal explicação é plausível ou não exige uma discussão mais detalhada, mas podemos ver aqui a utilização de um princípio geral (tal como os axiomas da philosophia prima) definido a partir da biologia evolutiva e aplicado para outros domínios, como, por exemplo, o domínio das ciências cognitivas.

Conclusão

Se as considerações feitas aqui estiverem corretas, podemos então conceber a Filosofia como um empreendimento importante para o avanço do conhecimento no contexto das várias ciências que surgiram a partir da revolução científica na modernidade. Para isso, não precisamos necessariamente pensar em objetos próprios da Filosofia, tal como se concebia na filosofia dos períodos antigo e medieval. A Filosofia enquanto entendida a partir do conceito de philosophia prima tem seu valor preservado uma vez que compreendemos como os filósofos da modernidade, mais especificamente Bacon, concebiam ela frente a nova revolução trazida pelo pensamento científico. Como vimos, esta visão de Filosofia sem objetos próprios mas aliada aos desenvolvimentos da ciência é refletida nos empreendimentos naturalistas dentro da filosofia analítica nas últimas décadas. Vimos, por exemplo, que Dennett se utiliza da noção de seleção natural como um processo de algoritmo de substrato neutro para resolver problemas dentro da ciência cognitiva e da filosofia da mente, como é o caso do problema da intencionalidade. Neste sentido, vemos que a concepção da Filosofia aliada à noção de filosofia prima mostra-se frutífera no contexto da especialização das ciências naturais em nossos dias.

Referências Bibliográficas

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A r t i g o s v a r i a d o s

170

171cadernospetfilosofia número14 | 2013

Paulo Rodrigues Souza do NascimentoLicenciado em Filosofia / Universidade Estadual Vale do Acaraú[email protected]

A gênese do sofrimento segundo Arthur Schopenhauer

“O andar é uma queda continuamente evitada.”

Schopenhauer

Resumo O presente texto é uma breve abordagem sobre o pensamento do filósofo Schopenhauer. Esta abordagem enfatiza a questão do sofrimento, consequência necessária de sua metafísica sustentada no conceito de Vontade. A partir desta discussão chegaremos a uma consideração mais consistente para a aceitação do sofrimento do homem no mundo.

Palavras-chave sofrimento, Vontade, metafísica.

Na maioria das vezes, quando o nome do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) é proferido, sobrevém logo à mente a ideia de um pensador pessimista. É bem verdade que não é inverídico concebê-lo assim, porém, sua consideração sobre a vida, como sendo um verdadeiro vale de lágrimas ou como sinônimo de dor e sofrimento, é fundamentada metafisicamente. Não se trata, portanto, de uma conjectura do próprio Schopenhauer. É um pessimismo, por assim dizer, que não se ancora principalmente no mundo enquanto infelicidade pessoal. A dor de perder um ente querido, de sofrer decepções amorosas, familiares ou profissionais, por exemplo, não fundamenta a consideração sobre a vida como sendo esta um verdadeiro tormento, algo que, longe de ser uma dádiva pela qual devemos agradecer aos céus, devemos lamentá-la, repugná-la, até mesmo ao ponto de negá-la.

O sofrimento na vida não é o que podemos chamar de “intruso”, algo que

artig

o

Paulo Rodrigues Souza do Nascimento

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seimiscui onde a felicidade, entendida como algo completamente a favor do bem humano, manifesta-se e deve, por isso, ser a ordem natural de todo o estado de vida, de toda atividade do homem. Muito longe de ser a felicidade o estado natural do homem, esta é apenas uma interrupção do sofrimento, que por sua inerência, se mostra como o seu comum muito mais que a própria felicidade. O que Schopenhauer nos mostra é que, por mais que nos seja bom o estado de felicidade, o sofrimento é que é a ordem natural de toda a vida, pois só nos mostramos felizes quando conseguimos, de algum modo, burlar o nosso momento de infelicidade em busca de um apaziguar-se, de um momento suspensório da dor, isto é, somos felizes quando fugimos do sofrimento.

A negatividade da felicidade é mostrada graças ao fato de não ser essa a que prevalece, de não ser algo que nos chega originariamente. O que não é a todo tempo a nossa própria condição existencial. Fica bastante claro se trouxermos essa teoria para o nosso dia a dia, por exemplo: acordamos pela manhã, nos espreguiçamos, levantamos da cama, nos dirigimos ao banheiro para lavar o rosto e tomamos o café da manhã para começar as atividades do dia. Agora se perguntássemos se seríamos felizes se não levantássemos da cama, não fôssemos ao banheiro e não tomássemos café, creio que diríamos que não. Não seríamos felizes, pois tudo isso é preciso que nos sintamos bem e aptos para o desenvolvimento de outras atividades que não admitem a inércia. Todas essas etapas nas quais nos preparamos todo dia constituem uma espécie de felicidade, porque correspondem ao nosso bem estar; porém, é uma felicidade muito efêmera porque assim que conseguimos algo com esforço e dedicação, logo que nos deleitamos com o resultado alcançado, nos surge outra coisa para nos encher a vida e começamos a busca para suprir um momento feliz que se foi e sempre, após a posse, se esvai.O mesmo se poderia dizer de uma pessoa que sente necessidade de sexo e sofrerá a sua falta se não for à busca. Toda espécie de felicidade, seja de anseios profissionais, amorosos etc., não é em si mesma realizada se não for buscada.

Já que a felicidade precisa ser buscada, se mostrando assim como a satisfação de um desejo, podemos dizer que os desejos são os causadores de nossas dores, os responsáveis pelo nosso sofrimento, pois se não os satisfazemos, sofremos. É certo que a felicidade é muito rápida, porque estamos sempre sendo bombardeados por uma grande variedade de desejos, de uma forma quantitativamente maior comparada a uma satisfação, não sendo, todavia, todos satisfeitos. É a partir daí que Schopenhauer fundamentará os males da humanidade. A causa de toda a dor e sofrimento dos seres é o desejo, o querer. A vontade de desejar constitui o imo de todo o tormento e acrimônia

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da humanidade, além de ser a causa de toda a realidade efetiva.O conceito principal que Schopenhauer utilizará para sustentar toda a sua

filosofia é o conceito de Vontade. Essa Vontade é a causadora de tudo, não somente dos seres animados que desejam e querem, mas de todas as coisas existentes no mundo. Temos então uma proposta, a de atribuir a um único conceito a causa de todas as outras causas. O anseio de unidade se torna presente na filosofia schopenhaueriana quando é tomada essa perspectiva, esse caminho, a busca por uma síntese do real, que corrobora sua identidade metafísica no momento em que atribui a um único princípio a submissão de toda e qualquer aparição mundana.

Ao encontrar na Vontade1 a base para explicar a totalidade da natureza, sua filosofia mostra-se como uma investida contrária às outras filosofias que viam na razão a capacidade de dar conta deste problema. É atribuído à essência, tanto buscada pela filosofia, um caráter irracional, isto é, impetuoso, já que a Vontade, que o autor nos fala, é uma vontade de ser, de estar no mundo, uma vontade cósmica que não respeita nenhuma ordem lógica de manifestação. Todas as coisas existentes, igualmente a própria razão humana, não são mais do que a desordenada manifestação de uma essência metafísica que é uma vontade irracional que aparece cegamente no mundo.

Este pensamento metafísico de Schopenhauer parte de uma compreensão do próprio corpo sensível, entendido como extensão material. Deste modo, pela analogia a outros corpos iguais ao seu (que é matéria), pode constatar as submissões às quais estes se encontram sujeitos, a saber: o despojamento no tempo e no espaço. A realidade efetiva se mostra assim, percebemos as coisas graças a uma submissão destas em um determinado lugar, cada objeto ocupando um campo específico, isso define características da categoria do espaço. Os objetos, por sua vez, são efêmeros, notamos a permanência e a duração deles devido à noção que temos de tempo.

O tempo e o espaço são entendidos como o princípio de individuação, o princípio que individua e que ordena a manifestação destes objetos no mundo. Mas longe de ser uma conclusão de que há uma Vontade além da aparência, do mundo sensível, baseada somente na visão exterior dos corpos no tempo e no espaço, é através da imediaticidade experimental da existência individual, da percepção interior enquanto vontade. Entrementes, a consciência que o homem tem de possuir a mesma essência da natureza e

1 Gostaria de explicar uma diferença entre as palavras: “Vontade” e” vontade”. Quando me refiro à palavra Von-tade, grafada com letra maiúscula, falo sobre a essência. Quando for a palavra vontade, com a inicial minúscula, falo sobre a vontade do homem, dos insetos etc., isto é, quando ela está submetida ao princípio de razão, quando ela é representação, fenômeno.

Paulo Rodrigues Souza do Nascimento

174 Artigos variados

dos outros seres em geral, parte de uma intuição imediata do próprio corpo como sendo volição, e por analogia constata presente nos outros seres seu mesmo caráter intempestivo.

Há um desejo destas realidades, por mais inconscientes que estas possam ser, de permanência, de prevalência no mundo. Bem claro fica quando as espécies se reproduzem. O que afirma a vontade de vida é o desejo de reprodução, que garante, quando reproduz, vida a outra geração de indivíduos. O que se percebe nos animais não é diferente nas plantas ou até mesmo nos altos penedos. Todos existem porque são provas, mostras, ou melhor, representações de algo que quer ser, porém inconscientemente. A Vontade é a essência que se mostram em todos os fenômenos, ou seja, na concretude, sendo também a causa de sua aparição.

Tudo, todavia, é representação da Vontade, pois expressa uma essência que quer ser. O homem não é diferente dos outros fenômenos, é totalmente idêntico, sendo assim uma forma de representação de uma manifestação cega sobre o mundo. A essência, que é causa ou a razão do mundo e de toda forma de vida, para Schopenhauer, nada tem a ver com Deus ou qualquer outro ser soberano ao qual o homem deve agradecer. É a Vontade que fundamenta a realidade efetiva, no entanto carece de fundamento, apenas existe representada e luta por isso.

A unidade metafísica da Vontade está fora do princípio de razão, falta-lhe uma razão de ser, uma causa. O princípio de razão pressupõe a razão de ser de qualquer coisa – proposta inútil no âmbito da Vontade. Não se pode fundamentar algo como a Vontade porque esta se encontra contrária a tudo quanto se sujeita a representação. Ela é una2, indivisa e não se enquadra nos moldes pelos quais possibilita a existência dos fenômenos. Por isso seu insaciável desejo não é conceituado, é uma volição cega e necessária a este mundo. É irracional porque não obedece a certa organicidade que visa um fim objetivo, um esclarecimento de si, por exemplo. É pura volição apenas em busca de objetivar-se, e essa objetivação é o mundo concreto.

A Vontade é a coisa-em-si kantiana, representada em toda a concretude. Ela é, antes de tudo, uma Vontade de vida. Vida, neste caso, é entendida como o mundo visível em toda a sua forma de extensão possível, compreendendo todo o campo de atuação da Vontade. É entendida tanto como uma pedra desolada no cimo de uma montanha, ou como uma criança recém-nascida.

2 A Vontade é definida como una apenas para ilustrar sua inserção fora dos padrões do princípio de razão, não se deve compreender sua unicidade como sentido de quantidade, pois quantidade diz respeito somente ao mundo empírico. Também se deve compreender do mesmo modo o sentido de fora, que mostra o afastamento da Von-tade do princípio de razão.

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Tudo que existe neste mundo, todas as espécies de plantas e animais, são representações desta Vontade.

A Vontade que, considerada puramente em si, destituída de conhecimento, é apenas um ímpeto cego e irresistível – como a vemos aparecer na natureza inorgânica e na natureza veg-etal, assim como na parte vegetativa de nossa própria vida (...). Por isso denominamos o mundo fenomênico seu espelho, sua objetidade; e, como o que a Vontade sempre quer é a vida, precisamente porque esta nada é senão a exposição daquele querer para a representação, é indiferente e tão-somente um pleonasmo se, em vez de simplesmente dizermos “a Vontade”, dizemos “a Vontade de vida”. (SHOPENHAUER, 2005, p.357-358).

Como se pode observar através das próprias palavras de Schopenhauer, a natureza inorgânica e vegetal, apesar de não ser igual a um animal que sente fome ou sede, também é preenchida de vontade de vida, de um fluxo que as faz aparecer no mundo, pois este foi desenvolvido para o seu serviço. O mundo fenomênico é seu espelho, a reflete sempre, visto que cada fenômeno traz consigo a própria Vontade na medida em que é parte do mundo. O querer que move o animal a buscar alimento ou fazer qualquer coisa é o mesmo que faz uma planta crescer e frutificar na medida em que se entende que ambas são manifestações de uma mesma essência.

O homem, por ser um fenômeno, é vitimado pelo arroubo da vitalidade inerente ao mundo. É de antemão um sofredor, condenado pelo querer necessário de sua essência. Desejar é o ponto principal do homem, o desejo faz jus à sua essência. Nossa vida então, permeada dessa gama de desejos, só pode ser sofrida.

O sofrimento é a consequência dos desejos, da ânsia, isto é, do querer, contido nos animais em geral. Além disso, por mais que após o homem desejar, e em seguida imediatamente realizar seu desejo, o sofrimento ainda prevalece. Novamente cito Schopenhauer:

Querer e esforçar-se são sua única essência, comparável a uma sede insaciável. A base de todo querer, entretanto, é necessi-dade, carência, logo, sofrimento, ao qual consequentemente o homem está destinado originariamente pelo seu ser. Quando lhe falta o objeto do querer, retirado pela rápida e fácil sat-isfação, assalta-lhe vazio e tédio aterradores, isto é, seu ser e sua existência mesma se lhe tornam um fardo insuportável.

Paulo Rodrigues Souza do Nascimento

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Sua vida, portanto, oscila como um pêndulo, para aqui e para acolá, entre dor e tédio, os quais em realidade são seus compo-nentes básicos. (SCHOPENHAUER, 2005, p.401-402).

Talvez possamos dizer de modo eufêmico, que Schopenhauer é, antes de ser um pessimista, um filósofo da vontade. Mesmo assim, há aqueles que dizem ser isso uma coisa só, porque ele foi pessimista justamente porque pensou, como fonte de todo o sofrer, a vontade.

A gênese do sofrimento é encontrada, como vimos, na Vontade. Desejamos sempre, sejam coisas fúteis ou não, e por isso sofremos. Uma das formas de felicidade possíveis, dirá o filósofo alemão, é a lembrança que temos de um mau que passou e só agora não nos ataca. A recordação do que nos afligiu e não mais nos aflige é motivo de satisfação, pois nos vemos livre de um mau. Se tivermos, também, sempre em mente o que nos constitui como indivíduos, isto é, conscientes da nossa condição de representações da Vontade, encararemos as dores deste mundo com uma maior compreensão e tolerância, pois melhor seria se não entendêssemos os sofrimentos como anomalias de nossa existência, e que, antes de ser necessários, seriam maldições.

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Fabrício Behrmann MineoGraduando em Filosofia / Universidade de São [email protected]

Poder Político em Rousseau: do estado de natureza à sociedade civil

Resumo Este artigo pretende esboçar uma articulação entre dois momentos fundamentais do pensamento de Jean-Jacques Rousseau a fim de esclarecer sua concepção de poder político. Para isso, recorreremos inicialmente ao Segundo

Discurso, a fim de compreender a descrição que Rousseau faz do homem no estado de natureza, para, em seguida, tratar do surgimento da desigualdade entre os homens e de como as sociedades estabelecidas perpetuam a injustiça e a desigualdade. Depois, discutiremos os princípios ideais do pensamento político de Rousseau. Para tanto, recorreremos a alguns pontos dos dois primeiros livros de O Contrato Social. Nessa segunda parte, focaremos nos princípios e fundamentos do poder político. Teremos como fio condutor nesse percurso, que vai do estado de natureza à sociedade civil, os conceitos de igualdade e liberdade.

Palavras-chave igualdade, liberdade, estado de natureza, sociedade civil, lei

Introdução O objetivo deste artigo é compreender a concepção de poder político

no pensamento de Jean-Jacques Rousseau. Para isso, teremos em vista o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, conhecido como o segundo Discurso, e os dois primeiros livros de O Contrato Social. Ao percorrer essas obras, a liberdade e a igualdade serão os conceitos norteadores. Tentaremos mostrar qual a relação entre o exercício do poder político e o papel fundamental que esses conceitos desempenham

artig

o

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no pensamento de Rousseau.Em primeiro lugar, analisaremos alguns pontos do segundo Discurso, obra

em que Rousseau elabora sua concepção do estado de natureza. Nesse ponto, trata-se de elucidar qual o método utilizado pelo autor para, em seguida, analisar a descrição do homem natural. Abordaremos as características que Rousseau atribui ao homem original, em especial a liberdade natural e a perfectibilidade. Em seguida, é preciso expor como se dá a passagem do estado de natureza ao estado civil e, consequentemente, como se estabelece a desigualdade política entre os homens. Para isso, é interessante mostrar, de modo geral, a progressão da desigualdade.

Em segundo lugar, será feita uma exposição dos princípios e fundamentos do poder político, nos dois primeiros livros do Contrato Social. Inicialmente, é preciso tratar das considerações de Rousseau sobre o pacto social, isto é, o estabelecimento do contrato que dá existência à sociedade civil. Nessa parte, a ênfase será dada à principal cláusula do contrato: a alienação total. Na sequência, tentaremos elucidar o conceito de vontade geral, que é responsável por determinar o movimento e a direção que o poder político deve tomar após o contrato. Desse modo, é necessário explorar, por fim, o vínculo entre os conceitos de vontade geral e lei.

1. Homem, eis tua história

1.1 O homem no estado de naturezaNo segundo Discurso, a fim de conduzir uma investigação acerca da

origem e dos fundamentos da desigualdade, Rousseau faz uma descrição do estado de natureza. Entretanto, essa descrição não se baseia em fatos nem em documentos históricos; uma descrição pautada nesses registros estaria limitada à condição histórica do homem e não poderia preencher as lacunas da documentação. Uma verdadeira descrição da origem exige um recuo ainda maior. Da mesma forma, a autoridade da religião também é recusada, o autor não recorre ao testemunho da Bíblia1 (cf. Starobinski, 2011, p. 390). A abordagem de Rousseau é coerente com uma de suas principais críticas aos seus antecessores. Para ele, seus predecessores “contrabandearam”

1 Não deixa de ser curioso o fato de que, embora a autoridade da Bíblia seja recusada, o cristianismo de Rousseau aparece no segundo Discurso como um todo (se não explicitamente, ao menos em sua estrutura). Segundo Sta-robinski (2011, p. 389), “Rousseau compõem um Gênese filosófico em que não faltam o jardim do Éden, nem a culpa, nem a confusão das línguas. Versão laicizada, ‘desmistificada’ da história das origens, mas que, suplantando a Escritura, repete-a em uma outra linguagem”.

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características e conceitos que não dizem respeito ao estado de natureza, mas sim ao estado civilizado; por isso, acabaram atribuindo características do homem social ao homem natural. Esse é um primeiro equívoco que é preciso desfazer a fim de encontrar o homem em sua verdadeira origem (cf. Rousseau, 1978, p. 235-7). Mas, então, em que Rousseau se apoia para a descrição do estado de natureza e no que consiste esse estado?

Ao afastar um método de pesquisa que recorre aos fatos históricos, Rousseau reivindica um método hipotético-conjectural. É o método hipotético evolutivo, que progredindo através de uma cadeia consequente de raciocínios pretende remontar à origem, tal como podemos concebê-la ou imaginá-la.

O estado de natureza é, pois, tão somente o postulado especu-lativo que uma “história hipotética” se confere, princípio sobre o qual a dedução poderá apoiar-se, em busca de uma série de causas e de efeitos bem encadeados, para construir a expli-cação genética do mundo tal como ele se oferece aos nossos olhos (Starobinski, 2011, p. 26).

No decorrer do segundo Discurso, o status da descrição do estado de natureza sofre uma alteração considerável. A mera hipótese dá lugar à certeza, o estado “que talvez nunca tenha existido” transforma-se em uma imagem que se impõem, de modo que não é possível concebera origem de outra forma. A descrição do estado de natureza deixa de ser conjectura e torna-se “verdadeira razão” (cf. Rousseau, 1978, p. 259). Para Rousseau, dada a ausência de dados e a lacuna dos fatos, então, não há nada mais provável que a cadeia de raciocínios exposta. Isso posto, vejamos em que consiste essa elaborada cadeia de raciocínios.

O objetivo de Rousseau é mostrar a origem da desigualdade. Mas de que desigualdade, precisamente, estamos falando? Rousseau distingue dois tipos. Em primeiro lugar, a desigualdade pode ser natural: é a desigualdade devida à diferença da disposição dos indivíduos, tanto física – isto é, sua saúde, idade, força corporal – quanto das qualidades do espírito, da alma. Mas existe também a desigualdade moral ou política, a diferença que pode ser observada entre os homens em sociedade: sua distinção de riquezas, de poder, dos privilégios; em última análise, a distinção que, em geral, se exprime na forma da dominação, as relações entre senhores e escravos (cf. Rousseau, 1978, p. 235).

É inútil e nocivo tentar encontrar um vínculo essencial entre esses dois tipos de desigualdade. Buscar uma relação desse tipo equivaleria a querer saber se aqueles que mandam (os senhores) têm realmente mais valor do

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que aqueles que servem (os escravos). Entretanto, no segundo Discurso, o objetivo não é buscar uma pretensa justificação para a desigualdade política – afirmando algo como “a lei do mais forte”. Trata-se de descobrir como, por convenção, os fortes acabam por servir os fracos, ou como o povo foi induzido “a comprar uma tranquilidade imaginária pelo preço de uma felicidade real” (Rousseau, 1978, p. 235). Grosso modo, todo o movimento do segundo Discurso mostra como foi possível, partindo de uma desigualdade natural, chegar à desigualdade política. O primeiro passo, então, consiste em compreender o estado de natureza.

No estado de natureza, o homem vive de uma maneira muita próxima a dos animais, ambos são guiados pelos seus sentidos e sensações; de modo que homem e animal têm em comum a percepção. Esse homem primitivo – com sua constituição física, boa disposição e vigor – não encontra grandes obstáculos para a satisfação de suas necessidades e desejos; o homem selvagem é forte e robusto, a “seleção natural” (para aplicar o termo de forma anacrônica) leva todos os que não são bem constituídos a perecer. A natureza fornece tudo o que é indispensável à subsistência e conservação, basta estender a mão para colher seus frutos. O homem selvagem vive apenas no imediatismo do presente, não faz planos para o futuro: pela manhã nem sequer pensa no que virá ao anoitecer. Não há previsão, antecipação ou planejamento.

No estado de natureza, o selvagem é um animal solitário e, por isso, independente. Não trava relações duradouras e frequentes com outros homens. Logo que o homem deixa a infância não depende mais de sua mãe para sobreviver, assim, está pronto para abandoná-la e seguir seu caminho. Cada um depende apenas de si mesmo para garantir sua sobrevivência e conservação; e, portanto, ainda que exista a desigualdade natural, não há relações de dominação e servidão pela força. A desigualdade natural não é suficiente para originar a servidão: ainda que um homem mais forte decidisse escravizar um outro mais fraco a fim de obter vantagens, precisaria vigiá-lo, cuidar para que não fugisse ou o matasse enquanto dorme; desse modo, traria para si uma preocupação maior do que a que tinha quando apenas precisava satisfazer suas necessidades por conta própria. Em algum momento, a guarda do mais forte deve baixar e, mais cedo ou mais tarde, não poderá evitar a fuga do mais fraco (cf. Rousseau, 1978, p. 258). Por essa razão, a desigualdade natural não pode servir de fundamento para a desigualdade convencional. Poderíamos dizer que, no estado de natureza todo homem goza de uma igualdade natural (derivada de sua independência), que consiste na ausência da desigualdade convencional, isto é, de relações de dominação e servidão.

Como o selvagem é um animal solitário, há também a ausência de uma

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noção de moralidade. Por não haver convivência entre homens, todos estão em uma situação amoral, ou pré-moral. A alcunha de “bom selvagem” só se justifica como juízo retrospectivo do moralista (cf. Starobinski, 2011, p. 41). Entretanto, Rousseau atribui ao homem uma virtude natural: a piedade (pitié), ou comiseração. Essa virtude pode ser descrita como o desconforto provocado no indivíduo por ver o outro sofrer; a piedade atua como moderadora do instinto de autoconservação, do amor de si. Enquanto o amor de si contribui para a conservação de indivíduos, a piedade garante a conservação da espécie como um todo. Mas, para Rousseau, até mesmo as bestas são capazes de algumas demonstrações de piedade. O que, então, diferencia o homem dos animais?

Em primeiro lugar, o que distingue o homem selvagem dos animais é a sua liberdade, que é essencial à natureza humana. Para Rousseau, a princípio, o que diferencia o homem selvagem do animal não pode ser a razão, visto que a faculdade racional ainda não está desperta, só progressivamente se acendem as luzes da razão no homem. Veremos como isso pode se dar a seguir, tratemos antes da liberdade.Homem e animal são como máquinas, mas o animal escolhe ou rejeita somente por instinto, enquanto o homem, por um ato de liberdade. Segundo Rousseau (1978, p. 242), “[...] o homem executa as suas [operações] como agente livre”. O homem tem consciência de sua liberdade e sente-se livre para seguir, ou não, os instintos e impulsos naturais. Portanto, “não é, pois, tanto o entendimento quanto a qualidade de agente livre possuída pelo homem que constitui, entre os animais, a distinção específica daqueles” (Rousseau, 1978, p. 243). Desse modo, temos a primeira qualidade que permite fazer uma distinção entre homens e animais; no entanto, há outra qualidade que estabelece essa distinção sem deixar margem para dúvida ou contestação.

Em segundo lugar, a qualidade específica capaz de distinguir os homens dos animais é a perfectibilidade. Para Rousseau (1978, p. 243), a perfectibilidade “[...] é a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto no individuo”. Na concepção de Rousseau, essa faculdade falta completamente a outros animais, tanto aos indivíduos como às espécies; porque ao cabo de alguns meses, os indivíduos já estarão constituídos para toda vida e, no primeiro ano, a espécie já adquiriu a forma que conservará por milhares de anos. A perfectibilidade é, no entanto, uma faculdade ambígua, pois permite ao homem tanto aperfeiçoar-se como regredir; ou seja, essa faculdade não garante que as transformações e modificações alcançadas pelo homem serão sempre em seu proveito. Existe

182

a possibilidade de que a perfectibilidade conduza a espécie humana por caminhos nefastos, rumo à decadência e à queda. Rousseau chega mesmo a lamentar essa ambiguidade: “Seria triste, para nós, vermo-nos forçados a convir que seja essa faculdade, distintiva e quase ilimitada, a fonte de todos os males do homem” (Rousseau, 1978, p. 243).

A princípio, a perfectibilidade encontra-se adormecida – apenas em latência –, precisando ser “disparada” ou “detonada” para que então a história humana tenha início – com seus acertos e erros, virtudes e vícios. Uma vez que a perfectibilidade seja “detonada”, não há mais volta, a origem está para sempre perdida. A questão que se impõe agora é: como partindo desse nostálgico estado de natureza chegamos às nossas sociedades modernas? Essa é a questão respondida pela segunda parte do Discurso. É a história dos acasos e eventos extraordinários que ao longo dos séculos nos conduziu a esse ponto.

1.2 Sociedade e desigualdadeA passagem do estado de natureza para à condição social deve-se

justamente à perfectibilidade. Por diversos motivos, os homens passam a se relacionar com mais frequência, são obrigados a unir forças para enfrentar as adversidades naturais; tanto as lutas contra predadores, como as vantagens oferecidas pela cooperação, levam os homens a se agrupar em pequenos bandos. Tendo isso em vista, Rousseau inicia a descrição encadeada de “[...] uma série de ‘momentos’ que se condicionam uns aos outros, e que o homem percorre em razão de sua perfectibilidade. Ao obstáculo natural se opõe o trabalho; este provoca o nascimento da reflexão, que produz ‘o primeiro movimento de orgulho’” (Starobinski, 2011, p. 44). Devido à sua perfectibilidade e à relação mútua, os homens começam a utilizar instrumentos e trabalhar. Mas como Starobinski aponta, esse movimento dá origem aos vícios; é o trabalho que desperta na consciência do homem a ideia de sua superioridade em relação aos outros animais: o orgulho é o primeiro vício humano.

Há um movimento contínuo, desencadeado pela perfectibilidade, que torna o homem cada vez mais artificial, com a criação e desenvolvimento de diversas maneiras de relacionar-se. São exemplos disso: a linguagem, o canto, o uso de apetrechos para enfeitar o corpo, a dança, os rituais. De acordo com Starobinski (2011, pp. 398-9), “não existe de modo algum mudança nos métodos de subsistência e de produção (isto é, na economia) que não seja acompanhada, correlativamente, de uma transformação do instrumental mental e da disposição passional dos homens”. Cada passo, cada nova descoberta contribui para o afastamento do seu estado natural. Com o

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trabalho e o instrumento (a técnica), o homem torna-se capaz de obter mais facilmente aquilo que precisa para sua conservação. E, assim, ele pode tirar da natureza mais do que precisa para o seu sustento, então, ocupa-se com o acúmulo de provisões, a construção de abrigos e cabanas, o cultivo da terra, a extração de metais, o conforto. Enfim, o trabalho acaba por multiplicar as posses dos homens.

A produção de bens e o acúmulo de posses só se tornam um problema quando os homens passam a depender uns dos outros. Quando os homens precisam do trabalho de outros para produzir conjuntamente (fazer aquilo que não poderiam sem ajuda de outros) e o acúmulo de posses acende a chama da ambição, então, o trabalho torna-se necessário. De acordo com Rousseau,

[...] desde que o homem sentiu necessidade do socorro de out-ro, desde que se percebeu ser útil a um só contar com provisões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se a proprie-dade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas transformaram-se em campos aprazíveis que se impôs regar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germinarem e crescerem com as colheitas (Rousseau, 1978, p. 265).

Ora, no estado de natureza, a terra e todos os seus frutos são de todos; os homens colhem aquilo que necessitam para uso imediato. Com o trabalho os homens passam a adquirir posses, contudo, a posse ainda não constitui a propriedade dos bens. A noção de propriedade é um passo decisivo para a entrada na sociedade civil. “O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo” (Rousseau, 1978, p. 259). O estabelecimento da propriedade necessitado reconhecimento, isto é, não basta que o primeiro possuidor da terra se declare o proprietário, é preciso também que os outros acreditem nele. Somente com o reconhecimento e aceitação mútua dos homens é que a posse pode tornar-se propriedade. Mas como esse processo se dá?

Inicialmente, os homens que foram capazes de produzir em abundância e de garantir suas posses, defendendo-as pela força, tornaram-se ricos; enquanto os homens incapazes de produzir em excesso e de defender suas posses ficaram na pobreza. Essa distinção entre ricos e pobres, os possuidores e os sem posses, deu origem aos primeiros conflitos. Com o passar do tempo, essa desigualdade torna-se insustentável, pois somente a força não pode

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garantir a propriedade de nada. O que é conservado apenas pela força, pode ser também tomado pela força. Inicia-se, então, um estado de guerra generalizado onde o roubo e a violência constituem a regra. Esse estado, em que os homens voltam-se uns contra os outros é desvantajoso para todos, mas, sem dúvida, aquele que tem mais a perder é o rico. O pobre tem apenas o único bem que lhe resta, isto é, a vida – mas uma vida miserável e precária. Enquanto o rico, por sua vez, vê ameaçada uma vida farta, de privilégios e conforto. “Antes a ordem que a violência; antes uma aparência de justiça que a anarquia: tal é o raciocínio que vai dar origem ao estado civil. Ameaçados em sua segurança, os homens vão acabar de socializar-se” (Starobinski, 2011, p. 402).

O grande trunfo do rico consiste em firmar um pacto com os pobres. Pacto em que os homens concordam em estabelecer a propriedade em troca de segurança. “Todos correram ao encontro de seus grilhões, crendo assegurar sua liberdade, pois, com muita razão reconhecendo as vantagens de um estabelecimento político, não contavam com a suficiente experiência para prever-lhe os perigos” (Rousseau, 1978, p. 269). Esse pacto realiza um astuto logro dos pobres, pensando que o acordo é vantajoso para eles acabam por concordar com a sua condição servil (cf. Nascimento, 1988, p. 125). O que os ricos conseguem com o pacto é assegurar com bases legais a desigualdade de posses, agora tornada propriedade. Esse é o primeiro grau da desigualdade. De agora em diante será instituída a “justiça” e o “direito”, no entanto, é em favor do rico que o pacto funciona. Propondo uma igualdade jurídica, o rico assegura a desigualdade e mantém sua posição privilegiada. “As leis fornecerão a todos a condição da igualdade jurídica apenas, e se constituirão no mascaramento da desigualdade de fato” (Nascimento, 1988, p. 126-7).

É dessa maneira que se estabelecem os Estados, com os ricos tornando-se magistrados, ou antes, proprietários do Estado. Esse constitui o segundo grau da desigualdade, o exercício ilegítimo da magistratura. De acordo com Rousseau,

[...] tendo se tornado hereditários, os chefes acostumaram-se a considerar a magistratura como bem de família e a si próp-rios proprietários do Estado, do qual a princípio não seriam senão funcionários; a chamar seus concidadãos de escravos, a incluí-los, como o gado, entre as coisas que lhes pertenciam [...] (Rousseau, 1978, p. 277).

Com a hereditariedade da magistratura, os “direitos civis” e a “justiça”, constituídos pelo falso pacto, progressivamente são substituídos pelo arbítrio

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dos poderosos, culminando na tirania e no despotismo. O poder político degenera em cega dominação: os súditos não conhecem outra lei, além da vontade caprichosa do senhor; e o déspota segue apenas seus desejos e paixões, a razão é jogada para escanteio. Qualquer noção de direito ou justiça (ainda que falha e precária) não opera mais. “[...] O ponto extremo fecha o círculo e toca o ponto de que partimos; então todos os particulares se tornam iguais, porque nada são” (Rousseau, 1978, p. 280). Estamos no último grau de desigualdade.

Os súditos são cada vez mais desrespeitados e se instaura novamente a violência. O povo já não vê grandes vantagens em honrar o pacto com o tirano. Logo começam as rebeliões e revoltas, as portas ficam abertas para a guerra civil e a revolução. O que acontece, então, é a abrupta dissolução do Estado e da sociedade civil. “Só a força o mantinha, só a força o derruba” (Rousseau, 1978, p. 280). Com isso o povo livra-se da tirania e retoma sua liberdade natural. Nesse ponto é possível dizer que o caminho fica livre para que outro pacto seja firmado entre os membros remanescentes desse Estado. O povo pode instituir uma nova sociedade que, talvez, restabeleça a liberdade e a igualdade entre os homens. Vejamos então o que o Rousseau propõe no Contrato.

2. Liberdade e igualdade no Contrato Social

2.1 Pacto social e alienação total“O homem nasceu livre e por toda parte ele está agrilhoado” (Rousseau,

2006, p. 9). Ora, tendo partido do segundo Discurso, acompanhamos o processo que leva o homem do estado de natureza à sociedade civil. Do ponto de vista do segundo Discurso, esse processo – que se constitui lentamente ao longo dos séculos – é a história humana: uma história de queda e degeneração. O homem parte de uma condição de felicidade, ingenuidade e pureza, de um contato imediato com a natureza, isto é, da liberdade e igualdade naturais, e, no entanto, por conta de sua perfectibilidade, termina preso aos grilhões da sociedade civil. A desigualdade que se consuma no processo civilizatório é o próprio mal. Mas nenhum homem, considerado individualmente, pode ser culpado pela queda. Somente o homem em relação, o homem vivendo coletivamente e organizado em sociedades, pode engendrar essa sequência terrível de erros.

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Resta saber então como é possível constituir uma sociedade justa, que esteja de acordo com a reta razão. Como estabelecer um corpo político verdadeiro, a sociedade que seja, de fato, uma legítima associação de homens livres. Uma sociedade que não seja fundada em relações de senhores e escravos – como vimos no segundo Discurso. Por isso, Rousseau não trata das sociedades tal como são de fato; pelo contrário seu objetivo é estabelecer um campo teórico abstrato no qual o dever ser tem prioridade, é preciso focar no que é de direito. Nesse sentido, Nascimento afirma que “toda a obra, portanto, irá se desenvolver no plano do dever ser, no plano do direito, pois, resolver a questão do que importa é estabelecer os princípios do direito que tornarão possível o julgamento dos fatos” (Nascimento, 1988, p. 120). A principal tarefa do Contrato é revelar os princípios que devem nortear o poder político.

No Capítulo VI do Livro I, intitulado Do Pacto Social, Rousseau supõe uma situação em que os homens tenham sido obrigados a sair do estado de natureza. Temos aqui, uma situação semelhante a que já havia sido relatada por Rousseau no segundo Discurso. No entanto, no Contrato, o que importa não é a descrição do nascimento das sociedades existentes. E aqui reside uma importante diferença entre as duas obras. Rousseau supõe que os homens estejam saindo do estado de natureza, prontos para estabelecer uma sociedade, e, por isso, ainda não foram corrompidos pelas vicissitudes de alguma sociedade injusta. Temos aqui uma situação ideal. Por essa razão, povos saídos de uma revolução ou da dissolução de um Estado não estariam em condições de por em prática os princípios do Contrato (se é que algum povo realmente poderia fazê-lo). Mas não é isso que importa. Os princípios abstratos do Contrato são normativos, por isso podem ser colocados como ideal regulador. Retomemos, assim, as condições do pacto.

No entanto, para Rousseau, não é qualquer agregado de homens que pode formar uma sociedade civil. “Que homens isolados sejam subjugados sucessivamente a um só, qualquer que seja o seu número, não vejo nisso senão um senhor e escravos, e de modo algum hei de considerá-los um povo e seu chefe. É, talvez, uma agregação, mas não uma associação” (Rousseau, 2006, p. 19). O objetivo é mostrar quais os fundamentos de uma sociedade civil legítima, isto é, que tenha como principal finalidade a igualdade e a liberdade convencional, que seja justa. Para isso, em um primeiro momento, é preciso mostrar “o ato pelo qual um povo é um povo” (cf. Rousseau, 2006, p. 19). Desse modo, convém abordar do ato simbólico pelo qual os homens se reúnem em uma associação.

O pacto social é o ato convencional que origina uma forma de associação

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entre indivíduos. A partir do momento em que os homens particulares fazem o pacto institui-se uma associação, os homens saem do estado de natureza. Mas no que consiste essa forma de associação ideal? De acordo com Rousseau (2006, pp. 20-1), o objetivo do Contrato é “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça, contudo, a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes”. A primeira parte da formulação parece não oferecer grandes dificuldades; o pacto permite que os homens unam suas forças a fim de conservar sua propriedade através da força combinada de todos os associados. O problema está na segunda parte. A fórmula paradoxal consiste em propor um modo de associação em que os homens possam ser “tão livres quanto antes”, e que, ainda que unido a outros, cada homem obedeça apenas a si mesmo. É a “quadratura do círculo”. Como garantir a liberdade sem que ela se degenere em licença e como proteger a liberdade contra a possível dominação alheia? Vejamos então como é possível entender esse suposto paradoxo.

Para Rousseau, a solução dessa dificuldade reside justamente nas cláusulas do contrato, sendo que todas elas podem ser reduzidas a uma única cláusula.

[...] Essas cláusulas se reduzem todas a uma só, a saber, a alien-ação total de cada associado, com todos os seus direitos, a toda a comunidade. Pois, em primeiro lugar, cada qual dando-se por inteiro, a condição é igual para todos, e, sendo a condição igual para todos, ninguém tem interesse em torná-la onerosa para os demais (Rousseau, 2006, p. 21).

A alienação total garante a igualdade absoluta de condições no contrato; submeto-me totalmente aos outros para que já não tenha que me preocupar com eles. Desse modo, vemos que a liberdade civil só pode ser obtida pela igualdade de condições. Nesse sentido, Rousseau pode concluir: “Enfim, cada um, dando-se a todos, não se dá a ninguém, e, como não existe um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo o que se perde e mais força para conservar o que se tem” (Rousseau, 2006, p. 21).Ou seja, todos se alienam igualmente, assim, com todos abrindo mão de sua liberdade natural em benefício do todo, nada se perde. Mas vejamos isso de maneira mais detida.

A entrada na sociedade civil representa uma perda e um ganho. Segundo Rousseau, “o que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto deseja e pode alcançar; o que com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui” (Rousseau,

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2006, p. 26). Essa ênfase de Rousseau em apontar aquilo que se ganha ao aceitar o contrato é um dos pontos de diferenciação entre o segundo Discurso e o Contrato. No segundo Discurso, o tom é idílico, carregado de nostalgia do estado de natureza; a sociedade civil é vista como degeneração e corrupção. Segundo Nascimento (1988, p. 128), no Contrato, “[...] a farsa da história não se repete ao nível do direito, onde o único contrato capaz de instaurar a liberdade civil é aquele no qual ‘a condição é igual para todos’ e, sendo assim, ‘ninguém se interessa em torná-la onerosa para os demais’”. O objetivo, agora, é mostrar a perspectiva do Contrato. Nesse caso, a retórica de Rousseau busca convencer o interlocutor sobre os ganhos ao aceitar o contrato; há claramente uma tentativa de persuasão. Como mostrou Lebrun (cf. 2006, p. 230), é preciso mostrar que o contrato é um “bom negócio”; Rousseau busca convencer, fazendo apelo à razão, que não se perde nada, só se tem a ganhar aceitando as cláusulas do contrato. Para Rousseau (cf. 2006, p. 42), bem pesadas as condições, pode-se até mesmo dizer que não há qualquer verdadeira renúncia dos particulares. Afinal, o que implica essa transição do estado de natureza para o estado civil?

O contrato pode garantir a liberdade e igualdade civis, bem como a propriedade das posses dos homens. Recapitulando, de agora em diante a propriedade é um direito reconhecido por todos e protegido pelo corpo político através da força combinada de seus membros. Esses ganhos, contudo, têm como condição necessária a alienação total; ou seja, os homens abrem mão de sua liberdade natural. No resultado final do balanço de perdas e ganhos, temos o seguinte:

Onde “ninguém tem o direito de fazer o que a liberdade do out-ro proíbe”, serei portanto tão livre quanto antes (pelo menos): terei trocado uma vida agressiva, estúpida e arriscada, por uma vida tal que o Outro já não será para mim um obstáculo. Essa é a raiz ultra individualista do Contrato e a razão pela qual a justiça igualitária – que é, para Rousseau, o avesso da liberdade – “deriva da preferência que cada um dá a si próprio” (Lebrun, 2006, p. 227).

Vemos então o que pode haver de proveitoso e vantajoso para os indivíduos no contrato. Ao aceitar suas cláusulas, faço isso em meu proveito. De modo que cada um ganha com a adesão ao contrato. Ninguém é lesado, pelo contrário, todos os direitos só podem constituir-se dessa maneira. Além disso, é manifesta a relação intrínseca entre liberdade e igualdade, as duas faces de uma mesma moeda. Não é possível pegar uma sem levar a outra:

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uma sociedade que pretenda ser justa não pode ignorar a relação desses dois conceitos.

2.2 Vontade geral e leiMas, retomemos por um momento a cláusula principal do contrato, a

alienação total. Ora, em última análise, alienação total implica a submissão da vontade e interesse particular à vontade e interesse geral. De agora em diante, a vontade particular deve ser deixada em segundo plano, a vontade geral deve ter sempre a primazia sobre o interesse particular. Segundo Rousseau (2006, p. 22), o que há de essencial no pacto é o seguinte: “Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e recebemos, coletivamente, cada membro como parte indivisível do todo”. A totalidade que resulta dessa união entre os associados é o corpo político (é chamado de Estado quando passivo e soberano quando ativo), os homens são os membros que compõem esse corpo (e são chamados cidadãos, enquanto parte do soberano, ou súditos, enquanto submetidos às leis do Estado).

No corpo político, a vontade geral é exercida através do poder legislativo, sendo que a função da soberania é dar a Lei. O soberano exprime a vontade geral pela elaboração das leis; para Rousseau as leis são a expressão da vontade geral. As leis dão movimento ao corpo político. “Pelo pacto social demos existência e vida ao corpo político. Trata-se agora de dar-lhe o movimento e a vontade pela legislação” (Rousseau, 2006, p. 45). Antes de examinarmos qual a função do poder legislativo é preciso tentar determinar o conceito de vontade geral.

Em primeiro lugar, para Rousseau, a vontade geral não consiste na soma de vontades particulares; não é apenas a soma da vontade de todos. A vontade particular sempre tende ao interesse privado, de modo que a mera “soma” desses interesses não poderia resultar na vontade geral. Para que a vontade geral seja expressa é condição necessária que nenhum dos membros do corpo político deixe de manifestar sua vontade. No entanto, essa condição necessária está longe de ser suficiente. A vontade geral consiste naquilo que há de comum nas vontades particulares. Segundo Rousseau (2006, p. 37), quando retiram das vontades particulares “os mais e os menos que se destroem mutuamente, resta, como soma das diferenças, a vontade geral”. Ao que parece, os polos extremos das vontades particulares acabam por anular-se reciprocamente, restando apenas o que há de comum entre essas vontades.

Em segundo lugar, a vontade geral é sempre reta, ela nunca erra e tende sempre à utilidade pública, deseja sempre o bem comum. No entanto, o povo

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pode errar, pode enganar-se ou ser enganado. “Deseja-se sempre o próprio bem, mas não é sempre que se pode encontrá-lo. Nunca se corrompe o povo, mas com frequência o enganam, e só então ele parece desejar o mal” (Rousseau, 2006, p. 37). Nesse sentido, um dos obstáculos para a expressão da vontade geral consiste na criação de facções e associações no interior do corpo político. Essas facções, ou partidos, influenciam os membros do corpo político, de modo que sua vontade se ajustaria à vontade de um grupo. Por isso, a vontade de um cidadão ligado a uma facção pode ser geral em relação à facção, mas particular em relação ao corpo político. Quanto menos numerosas são as facções, mais nociva se torna sua presença no corpo político. Se não for possível eliminá-las, é preciso multiplicá-las, de modo que aumente a diferenciação e o “choque” entre as vontades particulares possa produzir, como resultado, a vontade geral (cf. Rousseau, pp. 37-8).

Terceiro, “a vontade particular, por sua própria natureza, tende às predileções, enquanto a vontade geral propende para a igualdade” (Rousseau, 2006, p. 34). Ora, vontade geral e vontade particular são, por definição, radicalmente distintas: tanto do ponto de vista que adotam quanto pelos objetos. Se a vontade geral coincide com uma vontade particular é apenas por um feliz acaso, de modo que não há garantias de que essa coincidência persista por muito tempo; nenhum indivíduo pode representar a vontade geral. E ainda que possa existir uma conformidade entre a vontade particular e a vontade geral, isso só pode ser assegurado através do voto; apenas depois que todo o povo delibera e manifesta sua opinião é que podemos estar certos dessa coincidência (Rousseau, 2006, pp. 51-2). Apenas a totalidade do corpo político pode manifestar e expressar a vontade geral. Nesse sentido, Rousseau afirma que “[...] a soberania, sendo apenas o exercício da vontade geral, nunca pode alienar-se, e que o soberano, não passando de um ser coletivo, só pode ser representado por si mesmo; pode transmitir-se o poder – não, porém, a vontade” (Rousseau, 2006, p. 33). Pelo mesmo motivo, a soberania também é indivisível. Pois, ou a vontade é geral e, portanto do todo; ou é de uma parte e, por isso, particular. Se a vontade é geral, então, é também soberana e quando expressa “é um ato de soberania e faz a lei” (Rousseau, 2006, p. 35).Mas qual é a finalidade dos sistemas de legislação? Dito de outro modo, qual é o fim que a vontade geral deve visar para garantir o bem comum e a utilidade pública?

De acordo com Rousseau (cf. 2006, p. 62), a finalidade de todo o sistema de legislação deve resumir-se a dois objetivos principais, a saber, a liberdade e a igualdade. Na sociedade civil, a igualdade se mostra como o pressuposto da liberdade; se os cidadãos não forem iguais o suficiente – isto é, se a igualdade

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não for objeto do legislativo –, então, podem acabar na dependência de outros e, portanto, não serão livres. O sistema legislativo deve garantir a igualdade em dois aspectos principais: no poder e na riqueza. Isto não quer dizer que todos devem ser matematicamente iguais; mas, a legislação deve garantir que ninguém tenha tanto poder que seja capaz de usar a violência e a coerção com outros; nem que exista alguém tão rico que possa comprar os outros ou indivíduo tão pobre que seja obrigado a vender-se para subsistir (cf. Rousseau, 2006, pp. 62-3). O soberano deve legislar para que o grau de desigualdade não ultrapasse aquilo que seria aceitável, assim, a liberdade de nenhum dos membros do corpo político fica comprometida.

A igualdade é vista por muitos como uma quimera, algo impossível de ser realizado. No entanto, para Rousseau isso não deve servir como desculpa. Pelo contrário, aí está uma forte razão para não descuidarmos da igualdade. Justamente por que as circunstâncias conspiram para a destruição da igualdade – com a consequente imposição de uma desigualdade que ameaça a liberdade de todos – é que a legislação deve sempre visar preservá-la (cf. Rousseau, 2006, pp. 62-3). Portanto, para Rousseau, a sociedade civil justa tem como principal objetivo a liberdade e a igualdade. Por isso, o exercício legítimo do poder político deve sempre ter em vista essa finalidade.

Conclusão

Inicialmente, vimos que animal singular é o homem no estado de natureza. Um animal independente, não está preso a outros indivíduos da mesma espécie. Em razão de sua liberdade não está completamente submetido aos impulsos naturais; é o único animal dotado de livre escolha. Além disso, possui uma faculdade que falta completamente a outros animais: a perfectibilidade. Faculdade ambígua que possibilita ao homem o progresso e o regresso, a ascensão e a decadência. Por um lado, a perfectibilidade é uma faculdade quase ilimitada, por outro lado, a liberdade natural do homem permite a escolha livre. É possível escolher tanto aquilo que lhe é benéfico, como o que é nocivo. Com a combinação dessas duas faculdades, abre-se um leque indefinido de possibilidades; de modo que, uma vez que a perfectibilidade seja “detonada”, o homem torna-se um animal imprevisível. Não é possível determinar os rumos da história humana. No entanto, conhecemos nossa situação atual. Lançando um olhar retrospectivo, como é a investigação de Rousseau, podemos conjecturar como, a partir do estado natural, chegamos às sociedades tal como se encontram (ou, no caso do Discurso, como se encontravam em meados do século XVIII).

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Como Rousseau aponta, as transformações técnicas são acompanhadas por mudanças institucionais; e também alterações das formas de vida. O trabalho e o consequente uso e aperfeiçoamento dos instrumentos, da técnica, dá origem a dependência entre os homens, que passam a multiplicar as posses e depender uns dos outros. A posse dá lugar ao primeiro grau de desigualdade, o estabelecimento da propriedade. Para garantir o direito da propriedade os pobres são logrados e pelos ricos, em um pacto no qual trocam sua liberdade por uma aparente segurança. Em seguida, os ricos tornam-se proprietários do Estado, os magistrados. O estabelecimento da hereditariedade faz com que o Estado torne-se também posse, assim como os súditos, que acabam reduzidos à condição de gado. Assim, o círculo fecha: os senhores passam a fazer de sua vontade e arbitrário a lei, e os homens tornam-se novamente iguais, porque nada são. Com isso, abrem-se os portões da revolta, da guerra civil, da revolução. O Estado é derrubado e os homens retomam sua liberdade natural.

Desse modo, com o fracasso da instituição ilegítima do poder político, no Contrato, Rousseau buscará os fundamentos e condições de legitimidade de todo poder político. Inicialmente, a concepção do Contrato aponta para a importância do pacto social que estabelece e institui a sociedade política. A principal cláusula desse contrato é a alienação total. Essa condição implica que todos os membros do corpo político devem abrir mão de sua liberdade natural, de dispor e fazerem o que quiserem, para submeter-se ao corpo político, isto é, a todos os outros. Assim, a vontade particular de cada membro deve ser deixada em segundo plano, a fim de que a vontade geral, de todo o corpo político, dê a direção à sociedade civil.

A vontade geral, do corpo político, não é somente a vontade de todos. A soma das vontades particulares não resulta na vontade geral. A vontade geral é de todos e para todos; seu ponto de vista e seu objeto é sempre geral, ela não se aplica ao que é privado ou particular. O bem comum e público é o verdadeiro objetivo da vontade geral. Embora a vontade geral seja sempre reta, o povo pode errar, pode enganar-se e ser enganado; por isso, é preciso precaver-se contra as vontades particulares que visam apossar-se da vontade geral. Isso porque o corpo político em sua atividade é o soberano, e a expressão da vontade geral faz a lei. A lei, quando guiada pela vontade geral esclarecida, tem como finalidade a liberdade e a igualdade. É necessário que o poder legislativo tenha em vista a igualdade. Não se deve usar como desculpa a dificuldade da tarefa. É por que as sociedades tendem a ser, ou tornarem-se, injustas e desiguais que o soberano não deve descuidar dessas questões. E nisso consiste o exercício legítimo do poder político. Todo o povo legislando para todo o povo.

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Referências Bibliográficas

LEBRUN, Gérard. “Contrato social ou negócio de otário?”. Trad. Marta Kawano. In: ______. A filosofia e sua história: Gérard Lebrun. Org. Carlos Alberto Ribeiro de Moura, Maria Lúcia M. O. Cacciola e Marta Kawano. São Paulo: Cosac Naify, 2006.pp. 225-236.

NASCIMENTO, Milton Meira do. “O contrato social: entre a escala e o programa”. Dis-curso– Revista do Departamento de Filosofia da USP, São Paulo, n. 17, 1988, pp. 119-129. Disponível em: <http://filosofia.fflch.usp.br/publicacoes/discursoD17>. Acesso em: jul. 2013.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político. 4ª ed. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (Col. Paidéia).

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STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo; seguido de Sete ensaios sobre Rousseau. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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Roger, 1993, cap. 3); (Garber, 2001, p. 198; ver também 1992, p. 305); (Jouanna,

1992, p.507, n 45). Obs. As referências completas deverão aparecer nas referências

bibliográficas, cujas regras serão tratadas a seguir.

4. As referências bibliográficas deverão ser dispostas em ordem alfabética do seguinte

modo:

4.1 LIVROS:

SOBRENOME DO AUTOR, Nome abreviado. Título da Obra: subtítulo. Eventual tradutor.

Local da edição: editora, ano de publicação. (Série)

Exemplos:

FOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Trad. L. F. Baeta Neves. Petrópolis: Vozes, 1972.

NEWTON, I. O Peso e o Equilíbrio dos Fluídos. Trad. L.J. Baraúna. São Paulo: Abril

Cultural, 1979. (Col. Os Pensadores).

4.2 COLETÂNEAS:

SOBRENOME DO ORGANIZADOR, Nome abreviado e especificação “(org.)” ou “(ed.)”.

Título da Obra. Eventual tradutor. Local da edição: editora, ano da edição.

Exemplos:

GARBER, D. & AYERS, M. (eds.). The Cambridge History of Seventeenth-Century

Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.

MARIGUELA, M. (org.). Foucault e a Destruição das Evidências. Piracicaba: UNIMEP,

1995.

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4.3 ARTIGO OU CAPÍTULO EM OBRA COLETIVA OU COLETÂNEA:

SOBRENOME DO AUTOR, Nome abreviado. “Título do Artigo ou Capítulo”. Especificação

“In:” SOBRENOME DO ORGANIZADOR, Nome abreviado e especificação “(org.)” ou

“(ed.)”

[OU]

_________, Título da Obra. Eventual tradutor. Local da edição: editora, ano da edição,

páginas iniciais e finais do artigo ou capítulo.

Exemplos:

MUCHAIL, S. T. “O Mesmo e o Outro: Faces da História da Loucura”. In: MARIGUELA,

M. (org.). Foucault e a Destruição das Evidências. Piracicaba: UNIMEP,1995. p. 10-57.

RIBEIRO DE MOURA, C. A. “A Crítica Humeana da Razão” In: _________, Racionalidade

e Crise: estudos de história da filosofia moderna e contemporânea. São Paulo/Curitiba:

Discurso Editorial/Editora da UFPR, 2001, p. 111-132.

4.4 ARTIGO EM PERIÓDICO:

SOBRENOME DO AUTOR, Nome abreviado. “Título do Artigo” Nome do Periódico, série

(se houver), volume, número, ano da edição e páginas do artigo.

Exemplos:

LIMONGI, M. I. “Sociabilidade e Moralidade: Hume Leitor de Mandeville”. Kriterion, v.

XLIV, nº 108, 2003, p. 224-243.

ELLIS, B. “An Essentialist Perspective on the Problem of Induction” Principia, v. 2, nº

1, p. 103-124.

4.5 A citação de obras disponíveis na rede mundial de computadores (internet) deve

seguir as normas anteriores, com acréscimo do endereço de acesso.

Exemplo:

VALENTIM, Marco Antonio. “Método e metafísica: Descartes entre as

Regras e as Meditações”. Doispontos, vol. 5, n° 1, 2008, p.43-66. Disponível em:

<http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/doispontos/article/view/10046/8417>. Acesso

em: out. 2008.

5. Os trabalhos deverão ser encaminhados ao e-mail dos cadernospetfilosofia,

em estrita conformidade com as normas acima estabelecidas. Os artigos que não

respeitarem tais normas não serão recebidos.

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diagramaçãoSamuel de Castro - [email protected]

caparedesenho de Samuel de Castro da capa de Juliana de Azevedo Rego para oscadernospetfilosofia 08 2006

tiragem500 exemplares