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335 REnCiMa, v.9, n.2, p. 335-353, 2018. PRÁTICAS COMPARTILHADAS NO DESENVOLVIMENTO DE UM PROJETO ESTATÍSTICO COM ALUNOS DO 1.º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL PRACTICES SHARED IN THE DEVELOPMENT OF A STATISTICAL PROJECT WITH STUDENTS FROM THE FIRST GRADE OF ELEMENTARY SCHOOL Estefânia Bissoni Universidade São Francisco [email protected] Regina Célia Grando Universidade Federal de Santa Catarina [email protected] Selene Coletti Secretaria Municipal de Itatiba-SP [email protected] Resumo Este texto relata uma pesquisa dentro de um projeto estatístico que integrou matemática, educação estatística e tecnologia em uma turma de 1.º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública. Buscou-se identificar como os alunos produzem conhecimentos matemáticos e estatísticos por meio da utilização de tecnologias computacionais em situações de ensino. O material de pesquisa envolveu registros dos alunos; registros videográficos e audiográficos das atividades; registros produzidos pela professora parceira; e o diário de campo da pesquisadora. Em parceria, a pesquisadora e a professora planejaram, desenvolveram e analisaram situações de ensino. Os resultados indicam a importância, para a aprendizagem interdisciplinar dos alunos, da colaboração no planejamento e replanejamento das situações de ensino. A articulação entre recursos computacionais e ações corporais e materiais possibilitou aos alunos a construção de um repertório linguístico e de conhecimentos sobre estatística. Palavras-chave: Projeto estatístico. Recursos tecnológicos. Anos iniciais. Educação matemática. Abstract It is presented a research developed by the researcher and a partner teacher in the production and analysis of a statistical project, by integrating mathematics, statistical education and technology. The research was developed in a public school in a first grade of elementary school class. We tried to identify how the students produce mathematical and statistical knowledge using computational technologies in teaching situations. The research material produced involved: children’s records; videographic and audiographic records of activities; records produced by the partner teacher and the researcher’s field diary. A working partnership was established between the researcher and the teacher that

Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa ...Segundo Pocho et al. (2003, p. 14), essa formação inicial perpassa a ideia de alfabetização tecnológica do professor, entendida

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335 REnCiMa, v.9, n.2, p. 335-353, 2018.

PRÁTICAS COMPARTILHADAS NO DESENVOLVIMENTO DE UM

PROJETO ESTATÍSTICO COM ALUNOS DO 1.º ANO DO ENSINO

FUNDAMENTAL

PRACTICES SHARED IN THE DEVELOPMENT OF A STATISTICAL PROJECT WITH STUDENTS FROM THE FIRST GRADE OF ELEMENTARY SCHOOL

Estefânia Bissoni

Universidade São Francisco

[email protected]

Regina Célia Grando

Universidade Federal de Santa Catarina

[email protected]

Selene Coletti

Secretaria Municipal de Itatiba-SP

[email protected]

Resumo

Este texto relata uma pesquisa dentro de um projeto estatístico que integrou matemática,

educação estatística e tecnologia em uma turma de 1.º ano do Ensino Fundamental de

uma escola pública. Buscou-se identificar como os alunos produzem conhecimentos

matemáticos e estatísticos por meio da utilização de tecnologias computacionais em

situações de ensino. O material de pesquisa envolveu registros dos alunos; registros

videográficos e audiográficos das atividades; registros produzidos pela professora

parceira; e o diário de campo da pesquisadora. Em parceria, a pesquisadora e a

professora planejaram, desenvolveram e analisaram situações de ensino. Os resultados

indicam a importância, para a aprendizagem interdisciplinar dos alunos, da colaboração

no planejamento e replanejamento das situações de ensino. A articulação entre recursos

computacionais e ações corporais e materiais possibilitou aos alunos a construção de um

repertório linguístico e de conhecimentos sobre estatística.

Palavras-chave: Projeto estatístico. Recursos tecnológicos. Anos iniciais. Educação

matemática.

Abstract

It is presented a research developed by the researcher and a partner teacher in the

production and analysis of a statistical project, by integrating mathematics, statistical

education and technology. The research was developed in a public school in a first grade

of elementary school class. We tried to identify how the students produce mathematical

and statistical knowledge using computational technologies in teaching situations. The

research material produced involved: children’s records; videographic and audiographic

records of activities; records produced by the partner teacher and the researcher’s field

diary. A working partnership was established between the researcher and the teacher that

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developed the following actions: to plan, develop and analyze teaching situations. The

results indicate the importance of collaboration in the planning and replanning of teaching

situations, practice that favors the interdisciplinary student learning. The articulation

between the computational resources and the physical and material actions enabled

students to build a linguistic and statistical knowledge repertoire.

Keywords: Statistical project, Technological resources, Early years, Mathematics

education.

Introdução

Quais são as contribuições da parceria entre a pesquisadora e a professora para

investigar como as crianças do 1.º ano do Ensino Fundamental produzem

conhecimento matemático e estatístico em um ambiente tecnológico? A busca

sistemática por responder a essa questão de investigação nos levou a práticas

compartilhadas de pesquisa, com o objetivo de identificar como os alunos produzem

conhecimentos matemáticos e estatísticos através da utilização de tecnologias

computacionais em situações de ensino planejadas. Entendemos as situações de

ensino como tarefas planejadas e organizadas pelos professores, a fim de levar o aluno

a situações coletivas de aprendizagem e compreensão de conceitos e de linguagem

matemática/estatística. Para a organização das situações de ensino, os professores

coordenam aspectos epistemológicos, históricos, cognitivos, sociais e linguísticos do

conhecimento matemático, em prol da compreensão, pelos alunos, de conceitos,

procedimentos e linguagem.

Inicialmente tomamos contato com os conteúdos que a professora parceira,

terceira autora deste texto, pretendia desenvolver em sala de aula. Decidimos elaborar

um projeto de estatística que contemplasse um dos assuntos trabalhados por ela

naquele momento na disciplina de Ciências e, ao mesmo tempo, potencializasse o

aprendizado da Matemática em um ambiente tecnológico. Optamos pelo tema

“alimentação saudável”, uma vez que havia a intenção de desenvolver um trabalho

estatístico com os alunos envolvendo a sistematização e a análise por meio de tabelas

e gráficos. O próximo passo foi decidir o software que utilizaríamos. Acabamos optando

pelo Microsoft Excel, pois ele atenderia às nossas necessidades: a construção de

instrumentos de coleta de dados, a tabulação de dados, a elaboração de tabelas e de

gráficos representativos, a fim de analisá-los.

Em seguida, após a delimitação do tema a ser trabalhado como conteúdo pela

professora, elaboramos o “Projeto Estatístico Alimentação Saudável”. Logo,

começamos a planejar as atividades que seriam desenvolvidas com os alunos de um

1.º ano, determinando em que situações poderia ser possível introduzir os recursos

tecnológicos.

De forma geral, o desenvolvimento deste trabalho de pesquisa pretendeu

evidenciar em que medida é possível, a professores de sala e professores de

informática, trabalhar juntos e de forma colaborativa, processo em que cada um

contribui com o seu conhecimento, visando a um objetivo maior – a aprendizagem das

crianças. Desenvolvemos, portanto, um trabalho colaborativo dentro do ambiente

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educacional, em que

[...] a colaboração possa ser produzida por intermédio das

interações estabelecidas entre as múltiplas competências de cada

um dos partícipes, a professora, com o potencial de análise das

práticas pedagógicas; e a pesquisadora, com o potencial de

formadora e de organizadora das etapas formais da pesquisa.

(IBIAPINA, 2008, p.20)

Apresentaremos neste texto, inicialmente, uma discussão sobre as tecnologias

digitais, a educação estatística em contextos de infância e a dimensão do trabalho

colaborativo desenvolvido entre pesquisadora e professora parceira. Em seguida

exporemos a metodologia de pesquisa, os resultados e as considerações sobre a

pesquisa desenvolvida.

Tecnologias digitais, educação estatística e infância

Embora as tecnologias já façam parte do trabalho docente em um número

considerável de escolas, o que percebemos é que muitas delas ainda não sabem ao

certo como incorporar as tecnologias em suas rotinas de trabalho.

Segundo Porto (2006, p. 44), “a escola defronta-se com o desafio de trazer para o

seu contexto as informações presentes nas tecnologias e as próprias ferramentas

tecnológicas, articulando-as com os conhecimentos escolares e propiciando a

interlocução entre os indivíduos”.

Utilizar as tecnologias e articulá-las aos conteúdos trabalhados em sala de aula

não é tarefa fácil e exige segurança do professor. Assim, é necessário que haja

formação (ou que o docente a busque) para isso, já que um trabalho com tecnologias

sem a devida (e mínima) formação predispõe para que este não produza os efeitos

desejados. Nesse sentido, concordamos com Porto (2006), ao dizer que o potencial

educativo das tecnologias pressupõe sensibilização e preparação docente para o seu

uso, considerando o contexto de ação. Também concordamos com Pocho et al. (2003,

p.14), quando afirmam que

[...] incorporar as tecnologias requer cuidado com a formação

inicial e continuada do professor. É preciso trabalhar com o

conceito de alfabetização tecnológica do professor, a partir da

ideia de que é necessário o professor dominar a utilização

pedagógica das tecnologias, de forma que elas facilitem a

aprendizagem, sejam objeto de conhecimento a ser democratizado

e instrumento para a construção de conhecimento.

Segundo Pocho et al. (2003, p. 14), essa formação inicial perpassa a ideia

de alfabetização tecnológica do professor, entendida como “o domínio contínuo e

crescente das tecnologias que estão na escola e na sociedade, mediante o

relacionamento crítico com elas”. Para os autores, esse domínio se traduz, dentre outras

coisas, na capacidade do(a) professor(a) para “lidar com as diversas tecnologias,

interpretando sua linguagem e criando novas formas de expressão, além de distinguir

como, quando e por que são importantes e devem ser utilizadas no processo educativo”

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(POCHO et al., 2003, p. 14).

A falta de domínio das tecnologias apresentada por alguns professores é objeto

de estudo em trabalhos de pesquisa, como em Silva (1997). A pesquisadora cita os

vários programas de formação oferecidos pelas Secretarias de Estado da Educação e

por algumas universidades, que têm contribuído para a difusão dos conhecimentos de

informática entre os professores, mas reconhece que ainda são poucos os que

conseguem implementar o uso do computador em suas atividades de ensino. Os

impedimentos para a introdução dessas práticas são variados, e é certo que apenas

dispor deles não parece ser o suficiente. Destacam-se, como fatores impeditivos, além

da falta de conhecimento “técnico”: a) espaço físico inadequado; b) quantidade

insuficiente de computadores; c) ausência de pessoal de apoio para colocar em prática

projetos envolvendo recursos tecnológicos; d) computadores que não funcionam; e) falta

de manutenção; f) falta de acesso à internet (muitas vezes, essencial para o tipo de aula

preparada pelo professor), dentre outros.

Outro ponto a ser considerado é que as crianças, desde pequenas, já são

estimuladas à cultura do consumo. As empresas perceberam um novo nicho de mercado

e estão potencializando o desenvolvimento de produtos para as crianças. Atreladas à

cultura do consumo, há inúmeras tecnologias que hoje podem ser facilmente

encontradas nas mãos das crianças: são os videogames de última geração, os celulares,

os tablets, os computadores e, através desses, o acesso à internet, às redes sociais,

entre outros. Segundo Barbosa (2007, p. 1069), “são essas as novas crianças, com suas

múltiplas experiências de infância que chegam todos os dias à escola e, com seu modo

plural de ser, elas manifestam as suas diferenças”. O acesso das crianças à cultura

tecnológica é cada vez mais frequente e precoce: elas manipulam as tecnologias com

tamanha facilidade e de maneira tão natural que, muitas vezes, deixam para trás adultos

experientes.

Porém, sabemos que nem todas as crianças têm acesso às culturas tecnológicas

fora da escola. De acordo com Porto (2006, p. 44), “os contextos sociais, culturais e

financeiros têm um papel definidor entre o sujeito e a tecnologia, ampliando e/ou

limitando as relações e situações que daí se originam”. Entendemos que é direito de

todas as crianças o contato com as tecnologias, independentemente de sua classe

social, porém é nas classes sociais mais desfavorecidas que cabe à escola proporcionar

às crianças o acesso às diferentes culturas, inclusive às tecnológicas.

Portanto, é imprescindível que a escola acompanhe a evolução tecnológica,

colocando-se à altura de seu tempo e oportunizando o acesso de todas as crianças às

tecnologias. Preparar as crianças para o convívio no mundo moderno inclui, para além

do domínio tecnológico, orientá-las desde pequenas para a leitura e a interpretação de

dados apresentados em tabelas e gráficos. Essa nova realidade traz “ao currículo de

Matemática uma demanda em abordar elementos da estatística, da combinatória e da

probabilidade, desde os anos iniciais” (BRASIL, 1997, p. 84).

Ao se trabalhar com noções de Probabilidade e de Estatística nos anos iniciais,

é de fundamental importância que sejam explorados temas presentes no cotidiano dos

alunos e que sejam de seu interesse. Segundo Lopes (2008, p. 58), “[...] é essencial à

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formação de nossos alunos o desenvolvimento de atividades estatísticas que partam

sempre de uma problematização e, como nos conceitos matemáticos, os estatísticos

também devem estar inseridos em situações vinculadas ao cotidiano dos alunos”.

Portanto, é importante que o professor crie situações que levem os alunos a

explorar temas de seu interesse. Segundo exemplos apresentados nos PCN (BRASIL,

1997), podemos propor diversos temas que sejam de interesse e da realidade dos

alunos, como: data de aniversário, altura, peso, nacionalidade dos avós, times de futebol

de sua preferência, etc. Ou, por que não, a merenda da escola? Este foi o tema adotado

por Souza (2007) em seu trabalho de pesquisa. A escolha do tema partiu de uma

situação posterior à visita de funcionários da prefeitura à escola, os quais, na

oportunidade, realizavam com os alunos uma pesquisa de opinião sobre a merenda ali

oferecida.

Além dos temas já citados, podemos também utilizar outros, como: as

brincadeiras preferidas das crianças, os animais de estimação, a reciclagem do lixo e a

alimentação. Para Lopes (2008, p. 62), “[...] deveriam ser colocados em discussão temas

como a poluição dos rios e mares, os baixos níveis do bem-estar das populações, o

abandono da saúde pública”, viabilizando, assim, “a formação de cidadãos, críticos,

éticos e reflexivos”, que, ao mesmo tempo, aprendem Matemática e Estatística.

É conveniente que, após a seleção do tema, o professor possa propor a

construção de tabelas e/ou gráficos, resultado da exploração de uma situação problema,

partindo sempre de uma ou mais perguntas. A elaboração de tabelas e/ou gráficos como

forma de uso de tecnologias, associada ao ensino de Matemática, possibilita ao

professor problematizar situações simples e do cotidiano das crianças, colocando-as no

movimento de pensamento matemático (LOPES; GRANDO, 2012). Segundo os PCN

(BRASIL, 1997, p. 49), “mais do que interpretar representações gráficas o importante é

que os alunos tornem-se capazes de descrever e interpretar sua realidade, usando

conhecimentos matemáticos”.

Ao desenvolver as sequências de ensino com os alunos, é importante que todas

as etapas de um projeto estatístico sejam cumpridas. Lopes (2003) chama a atenção

para a importância de propor atividades de ensino que incluam todo o processo do

tratamento da informação, e não apenas parte dele. Em seu estudo sobre formação de

professoras da educação infantil, a autora esquematizou o processo de tratamento de

dados como sendo formado por etapas que definem um ciclo: primeiro, a definição da

questão ou problema a ser investigado; depois, a coleta dos dados; em seguida, a

representação desses dados; e, finalmente, a sua interpretação, fazendo deduções ou

tomando decisões que levem novamente à definição de uma questão de investigação.

Dimensão colaborativa na parceria entre professora e pesquisadora

Alguns autores consideram os termos “colaboração” e “cooperação” como

sinônimos. Ibiapina (2008, p.33) argumenta que

colaboração não significa cooperação, já que a cooperação

consiste na etapa de trabalho coletivo que ainda não é

considerada efetivamente como colaborativa, visto que parte do

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grupo envolvido nessa atividade não tem autonomia, tampouco

poder de decisão sobre as ações realizadas em conjunto,

caracterizando a existência de co-operação que denota ainda

relações hierárquicas de poder entre os pares.

Ainda segundo a autora, “colaborar não significa cooperar, tampouco participar,

significa oportunidade igual de negociação de responsabilidade, em que os partícipes

têm voz e vez em todos os momentos da pesquisa” (IBIAPINA, 2008, p.33).

Muitas vezes, o professor trabalha de forma individualizada, e “[...] alguns fatores

acabam por contribuir para o isolamento do professor como: a arquitetura das escolas, a

estrutura dos seus horários, a sobrecarga de trabalho e a própria história da profissão

docente” (DAMIANI, 2008, p. 219). Pacheco e Flores (apud GAMA; FIORENTINI, 2009,

p. 449) destacam algumas razões culturais que dificultam a constituição de práticas

colaborativas entre professores:

Diversos estudos confirmam a existência de uma cultura

individualizada, muito longe de uma cultura de colaboração, em

que o professor cumpre uma tarefa que lhe está atribuída, não

tendo por hábito partilhar as dúvidas, os problemas surgidos no

cotidiano escolar.

Apesar dessa constatação, nos tempos atuais, ainda segundo os autores, essa

cultura individualista tende a ser minimizada para dar lugar ao desenvolvimento de

trabalhos colaborativos, pois os participantes são instigados a realizar novas

experiências e a compartilhá-las. A necessidade de resgatar a cultura do trabalho

colaborativo nas escolas se torna evidente, porém, isso só será possível quando houver

o envolvimento e o comprometimento de seus colaboradores. Assim, é preciso que todos

os envolvidos queiram participar e estejam dispostos a colaborar. Segundo Ibiapina

(2008, p. 38), “o ciclo colaborativo de pesquisa em educação inicia com a sensibilização

dos colaboradores”.

Uma vez sensibilizados e integrados, esses professores/colaboradores precisam

entender que trabalhar colaborativamente exigirá empenho por parte de todos, sabendo,

ainda, que precisarão dedicar tempo para os encontros durante o planejamento, o

desenvolvimento e a análise de atividades, que extrapolarão os momentos dedicados às

salas de aula, uma vez que todas as ações necessitam ser planejadas em conjunto.

Mas, se, de um lado, os professores e demais colaboradores precisam tomar ciência de

seu papel, por outro, também a escola e as secretarias que as comandam precisam

observar a necessidade de que sejam legitimadas essas horas a mais destinadas ao

trabalho colaborativo, de modo que o horário destinado para esse fim seja respeitado

para as atividades que realmente fazem parte dele.

Assim, o sucesso de um trabalho colaborativo só será possível com o

envolvimento de todos e se as atividades forem planejadas, desenvolvidas e analisadas

em conjunto, sabendo que a contribuição dada por cada um de seus colaboradores será

diferenciada, levando em consideração seus conhecimentos, sua área de atuação e

formação profissional. Ibiapina (2008, p. 33-34) acrescenta que “colaborar não significa

que todos devam participar das mesmas tarefas e com a mesma intensidade, mas que,

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sobre a base de um projeto comum, cada partícipe preste sua contribuição específica,

isto é, contribua para beneficiar esse projeto”.

Para Ibiapina (2008), a colaboração se efetiva a partir da interação entre pares

com diferentes níveis de competência. Assim, cada indivíduo participa, dando sua

contribuição num empreendimento comum, cujo resultado beneficia a todas as pessoas

envolvidas. De um lado, estão “os professores, com o seu potencial de análise das

práticas pedagógicas” (IBIAPINA, 2008 p.20), conhecedores de conteúdos sobre a

infância, a aprendizagem, porém, nem sempre com o conhecimento técnico para

trabalhar com as tecnologias. Do outro, estão os monitores de informática, conhecedores

das muitas tecnologias, porém inexperientes em articular as tecnologias com os

conteúdos trabalhados em sala de aula.

Nesse processo, em que se atrelam conhecimentos técnicos e pedagógicos, as

limitações de conhecimento apresentadas pelos membros acabam sendo diluídas

quando trabalham colaborativamente, pois produzem saberes e compartilham

estratégias, promovendo o desenvolvimento profissional de todos. Nesse sentido, “a

atividade de co-produção de conhecimento e formação em que os pares colaboram entre

si possibilitam resolver conjuntamente problemas que afligem a educação” (IBIAPINA,

2008, p. 25). Ainda segundo a autora, o trabalho colaborativo possibilita o diálogo

constante entre os colaboradores, uma vez que o verdadeiro sentido de colaborar só se

torna evidente em situações dialógicas, isto é, na interação entre pares. “A interação

entre esses potenciais representa a qualidade da colaboração, quanto menor as relações

de opressão e poder, maior o potencial colaborativo” (IBIAPINA, 2008, p. 20). Tais

considerações permitem confirmar a dimensão colaborativa do trabalho desenvolvido

pela professora e pela pesquisadora, na pesquisa aqui relatada, com vistas ao ensino de

Matemática e Estatística, de modo a criar possibilidades de melhorar ainda mais as

situações de ensino e de aprendizagem no contexto da cultura digital.

Metodologia

A pesquisa buscou identificar como os alunos produzem conhecimentos

matemáticos e estatísticos por meio da utilização de tecnologias computacionais em

situações de ensino. A pesquisadora, juntamente com a professora parceira,

desenvolveu um trabalho colaborativo – no planejamento das situações de ensino, no

registro, na reflexão e na análise das práticas de ensino adotadas – muito próximo do

que diz Ibiapina (2008, p. 9) quando se refere à pesquisa-ação colaborativa:

[...] o estudo é desencadeado a partir de determinada prática social susceptível de melhoria; é realizado levando-se em consideração a espiral de planejamento, ação, observação, reflexão, nova ação; é desenvolvido, preferencialmente, de forma colaborativa.

Todas as ações entre a pesquisadora e a professora parceira foram estabelecidas

em comum acordo, potencializando o que cada uma das profissionais envolvidas tinha

de melhor a oferecer: a professora contribuiu com sua experiência de sala de aula e

práticas educacionais, e a pesquisadora, com o seu conhecimento na área tecnológica.

Juntas, potencializaram os conhecimentos na produção de atividades matemáticas

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auxiliadas por tecnologia e estabeleceram, assim, um ambiente propício para o trabalho

colaborativo.

Outro ponto presente neste trabalho foi o movimento em espiral de planejamento,

ação, observação, reflexão, desenvolvido de forma colaborativa, no qual as etapas foram

retomadas em vários momentos distintos. Esse processo aconteceu desde o início da

produção dos dados, pois pensávamos na construção de atividades matemáticas e

estatísticas que pudessem ser trabalhadas em sala de aula e estendidas às aulas no

laboratório de informática. Para isso, planejamos colaborativamente as tarefas que

seriam utilizadas no “Projeto Estatístico Alimentação Saudável”. Começamos com a

elaboração de questionários para as crianças responderem, gerando dados que se

transformariam em tabelas e gráficos. As observações e as reflexões aconteceram por

meio de registros no diário de campo da pesquisadora, em audiogravações,

videogravações e imagens fotográficas da sala de aula.

A sala de aula e o laboratório de informática de uma escola pública municipal no

interior do estado de São Paulo compuseram o espaço para a produção de dados desta

pesquisa, que envolveu uma turma de 30 alunos de 1.º ano (turma B) da professora

parceira: 9 meninas e 21 meninos, com faixa etária entre 6 e 7 anos.

Iniciamos o trabalho de pesquisa em outubro de 2013 e encerramos em dezembro

de 2013. Durante esse período realizamos diversas reuniões dentro e fora das

dependências da universidade, destinadas à elaboração e ao planejamento das

situações de ensino, e atividades de campo na escola parceira, para o desenvolvimento

das situações de ensino.

Posteriormente à produção dos dados, pesquisadora e professora organizavam e

selecionavam episódios para analisar o movimento de produção de conhecimento

matemático dos alunos. Todos os encontros foram audiogravados e transcritos. Em

alguns deles, contamos com a participação da orientadora da pesquisa, segunda autora

desse texto, que também colaborou com a análise dos dados.

A análise do tipo interpretativo trabalhou com os dados produzidos durante a leitura

das transcrições, das videogravações e das audiogravações, do diário de campo da

pesquisadora e das análises dos processos de aprendizagem, realizada conjuntamente

pela pesquisadora, pela professora parceira e pela orientadora. Esse procedimento

assumiu duas dimensões: 1) de colaboração e parceria entre pesquisadora e professora;

2) das ações das crianças, pela pesquisadora, p e l a professora parceira e p e l a

orientadora.

Desenvolvimento do projeto: alimentação saudável

Reunimo-nos para pensar no desenvolvimento do Projeto Estatístico Alimentação

Saudável, que seria a prioridade no momento: escolhemos os instrumentos que seriam

utilizados para a coleta dos dados e decidimos que seria elaborado pela professora

parceira um questionário que, posteriormente, seria levado para casa pelas crianças, para

ser respondido com o auxílio dos pais. Ainda durante esse encontro, conversamos sobre

a possibilidade de elaborar, com os alunos, perguntas que seriam transformadas

posteriormente em tabelas e gráficos para a investigação sobre a sua alimentação. As

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sugestões de perguntas foram as seguintes:

• Quantas frutas vocês comem por dia?

• A merenda da escola é saudável ou não?

• Quantas vezes as crianças comem doce por dia?

• Qual a sua comida predileta?

• Qual é a sua fruta preferida?

• Já fizeram dieta ou regime alimentar?

• Quantas porções de cada grupo alimentar consomem em um dia?

A preocupação era elaborar questões que possibilitassem o desenvolvimento de

reflexões sobre uma alimentação saudável por meio da organização e da interpretação

de dados em tabelas e gráficos. Para além disso, optamos por medidas de tendência

central, como moda e média, para depurar as análises e a elaboração de hipóteses. O

projeto estatístico tinha um importante papel: levar uma mensagem de conscientização

aos alunos, como, por exemplo, a necessidade de comer frutas todos os dias e de ter

uma alimentação saudável. A questão sobre o regime alimentar foi proposta pela

professora: ela revelou que vários alunos já tinham feito regime em razão da obesidade

infantil ou por restrições alimentares. A pesquisadora passou, então, a trabalhar na

elaboração da fórmula do gráfico do Excel, para que os alunos, ao registrarem os dados

na tabela, pudessem construir os gráficos automaticamente.

Figura 1: Layout do protótipo de registro de dados tabulados

Fonte: Acervo da pesquisadora

As dúvidas da pesquisadora sobre alguns conceitos estatísticos foram elucidadas

pela construção do gráfico de colunas agrupadas. Na análise do procedimento,

juntamente com a professora e a orientadora, surgiu a necessidade de reformulação do

procedimento, para que as colunas não estivessem juntas. A prática e a segurança da

professora parceira possibilitavam que os alunos surpreendessem a cada encontro e os

conceitos estatísticos fossem garantidos.

Conhecendo um projeto estatístico

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Inicialmente, precisávamos elaborar os instrumentos para coleta de dados com os

alunos. Pensamos em utilizar uma das aulas da professora parceira para construir com

os alunos um questionário.

Iniciamos os trabalhos na sala de aula do 1.º ano B. A professora parceira

começou falando para os alunos do seu interesse em desenvolver um projeto de

pesquisa sobre alimentação saudável, tema que os alunos já vinham estudando em

Ciências. O objetivo era descobrir se o perfil dos alunos da sala era de uma alimentação

saudável. Ela explicou também que havia realizado um censo com os alunos do ano

anterior e, nesse momento, questionou os alunos sobre o significado da palavra “censo”.

PP.: Alguém já ouviu falar na palavra “censo”?

A.: Tem o senso de humor.

PP.: Muito bem E., tem o senso de humor. Senso de humor é se a pessoa tem humor ou não tem. Esse senso que você está falando é assim: “senso” [grafa a palavra na lousa] é o senso de humor. Senso de fazer a coisa certa, de sentido. Só que o senso que eu estou falando é com a letra “C‟ “censo”. E “censo”, com a letra “C‟ alguém já ouviu falar?

A(s).: Não, sim...

PP.: Então “censo” é uma pesquisa que a gente faz para descobrir alguma coisa. No censo, a gente entrevista todo mundo. (22/10/2013)

A professora continuou a explicar para os alunos sobre a pesquisa. Mostrou

imagens das várias etapas da pesquisa realizada com os alunos do ano anterior, desde

a entrevista, a coleta de dados, a tabulação de dados, o que resultou na produção de

tabelas e gráficos durante as aulas de informática.

Nesse momento, a professora negociou os significados e o conhecimento que os

alunos tinham, advindos da cultura infantil, da cultura escolar, etc.

PP.: Aqui a gente mostrou como fazer para contar os votos da pesquisa. Depois que a gente contou os votos da pesquisa a gente foi lá na sala de informática, montamos os gráficos da pesquisa e marcamos. Onde será que a gente marca?

A.: Na tabela.

PP.: Na tabela! E onde fica mais fácil enxergar os dados?

A.: No gráfico.

PP.: No gráfico. (22/10/2013).

A professora apresentou o projeto desenvolvido com os alunos no ano anterior e,

à medida que mostrava as tabelas e os gráficos, aproveitava para questioná-los sobre os

resultados apresentados. Assim, após apresentar o projeto anterior, a professora passou

a expor a proposta que seria trabalhada com aquela turma.

A elaboração do instrumento de coleta de dados

Após explicar que iriam desenvolver um projeto de pesquisa, a professora orientou

a turma para a elaboração das perguntas.

PP.: ... agora nós vamos pensar nas perguntas que a gente poderia fazer, para descobrir se a nossa classe tem uma alimentação saudável ou não.

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A.: Você come bastante verdura?

PS.: Você come bastante... mas agora veja só... e se a pessoa não come bastante, ela come pouco, como que a gente pode saber?

A.: Sim ou não. Você come verdura? Você come muita maçã? Você come pouca ou muita verdura?

PP.: Então, a primeira pergunta. Você come muita verdura ou pouca verdura? (22/10/2013)

Os questionamentos da professora auxiliaram os alunos na produção de seis

perguntas, que resultaram no questionário apresentado na Figura 2.

Figura 2: Questionário

Fonte: Acervo da pesquisadora

A coleta dos dados

A coleta dos dados aconteceu em dois momentos distintos: um, como tarefa de

casa – em duas fases distintas – e outro, em sala de aula. A tarefa de casa (Figura 3) foi

elaborada e depois de reproduzida entregue individualmente para os alunos

preencherem. Na primeira parte da tarefa, cada aluno deveria anotar a quantidade

de frutas consumidas por ele durante dois dias no café da manhã, no almoço, na escola,

no jantar e à noite. Após responderem às perguntas com a ajuda dos pais, deveriam

apresentar a atividade em classe. A Figura 3 exemplifica os resultados dessa fase da

tarefa.

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Figura 3: Tarefa de casa: tabela de frutas Fonte: Acervo da pesquisadora

Na segunda fase da tarefa de casa, os alunos consultaram a pirâmide alimentar

para responder quantas porções de cada grupo de alimentos cada um deles consumia por

dia. Os registros estão exemplificados na Figura 4.

Figura 4: Tarefa de casa: tabela de alimentos – pirâmide alimentar.

Fonte: Acervo da pesquisadora

O segundo momento da coleta de dados ocorreu em sala de aula: os alunos liam

coletivamente as questões em voz alta e cada um registrava sua resposta no seu questionário

individual.

Ao ajudá-los na compreensão da pergunta, a professora trabalhava conceitos

matemáticos – noções de quantidade, de frequência (quantas vezes comiam por dia). As

explicações durante o preenchimento do instrumento foram importantes para revisitar

conceitos de Ciências sobre os alimentos e para ressaltar a importância ou não de consumi-

los, bem como a rotina de alimentação dos alunos.

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A tabulação dos dados

Sentados em roda, os alunos receberam novamente a folha com a tabela de frutas

(Figura 5), já com os dados coletados durante a lição de casa. A professora parceira

reproduziu na lousa a tabela de frutas e pediu que os alunos realizassem o somatório das

frutas consumidas nos dois dias e anotassem o resultado na folha.

PP.: Agora vocês vão contar o total e marcar aí embaixo, aqui embaixo, quanto

deu... o total dos dois dias. Se precisar, usa o fio de contas; senão, usa o dedinho.

(24/10/2013)

Figura 5: Momento em que a professora reproduz na lousa a tabela de frutas. Ao lado, vemos

o aluno A. realizando a contagem das frutas consumidas.

Fonte: Acervo da pesquisadora

Os alunos utilizaram o fio de contas1 e/ou os dedos para contar. Em sala de aula, as

crianças são estimuladas a utilizar as mãos para realizar contagens, pois “na fase de

alfabetização Matemática, destaca-se a função do corpo como fonte de conhecimento

matemático: em contagem e cálculos” (BRASIL, 2012, p.70).

Durante as aulas, os alunos tabularam outros dados e criaram outras tabelas, como a

“tabela total de frutas comidas nos dois dias” e a tabela “média de frutas consumidas por

todos os alunos do 1.º ano B” (Figura 6).

Figura 6: Tabela total de frutas consumidas nos dois dias

Fonte: Acervo da pesquisadora

1 Fio de contas, colar de contas ou enfiamento: é um recurso de apoio para o ensino da Matemática. Através dele os alunos podem fazer contagens simples, como somar, subtrair e resolver situações problemas.

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No processo de tabulação de dados, realizada coletivamente pelos alunos e pela

professora, os alunos não apresentaram dificuldades e foram capazes de identificar as

suas respostas nas tabelas produzidas. Para o cálculo da média de frutas consumidas por

eles, a professora disponibilizou cartões na mesma quantidade de frutas que os alunos

declararam consumir em 2 dias (95). Em seguida, distribuiu igualmente, entre os 26

alunos (presentes naquele dia), a quantidade total de cartões (frutas). A distribuição não

foi equitativa, mas os alunos puderam perceber que ficaram com uma média entre 3 e 4

frutas consumidas por aluno em 2 dias. Foi interessante constatar que, mesmo para a

tabulação dos dados, eles não utilizaram quantidades inteiras de frutas. Há alunos que

declararam consumir 2 frutas e meia, representadas na tabela por 2 e uma metade, 4

frutas e meia (4 e a metade), e assim sucessivamente. Dessa forma, mesmo que os

estudantes ainda não tivessem a habilidade no cálculo de divisão, procederam ao cálculo

da média, usando os cartões.

A produção dos gráficos

Antes que os gráficos fossem construídos no ambiente computacional, a professora

propôs um gráfico corporal, que foi construído na quadra da escola. A intenção da

professora era a vivência de um dos gráficos que posteriormente seriam analisados no

ambiente computacional. Ela também pretendia verificar se os alunos reconheceriam no

gráfico corporal (Figura 7) o setor que representava as suas preferências. E utilizou a

pergunta número dois do questionário: “Qual a sua fruta preferida: maçã, mamão,

melancia, banana, laranja ou melão?” para construir o gráfico de setores.

Figura 7: Construção do gráfico corporal na quadra da escola.

Fonte: Acervo da pesquisadora

Para a construção do gráfico corporal de setores, a professora organizou os alunos

em círculo, um ao lado do outro, segundo as preferências. Em seguida, passou um

barbante atrás de cada conjunto de alunos que possuíam determinada preferência de

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fruta e retornou o barbante para o centro. Repetiu essa operação com cada conjunto de

alunos, de forma que, ao final, quando os estudantes saíssem do barbante, o gráfico de

setores ficaria desenhado com o barbante no chão. Certamente essa ideia do gráfico de

setores, embora sem precisão estatística na representação, possibilita aos alunos

construírem as primeiras noções dessa representação gráfica.

Esta atividade possibilitou que a professora realizasse perguntas do tipo: Qual é a

“fatia” menor? Que “fatia” representa essa? Nessa “fatia” tem quantas pessoas? Qual

fruta é essa? Essas “fatias” são iguais? Acerca disso, destacamos a importância de o

professor elaborar problematizações, desafiando, questionando e ampliando o

conhecimento da turma. Segundo Lopes (2008, p. 60), “é preciso analisar/questionar

criticamente os dados apresentados, questionando/ponderando até mesmo sua

veracidade. É necessário que os alunos interpretem e comparem dados para que tirem

conclusões”.

Outros gráficos foram produzidos no laboratório de informática da escola, pois,

como o trabalho com aulas de informática na rede municipal acontece regularmente, pelo

menos uma vez na semana, os alunos já estavam familiarizados com o computador e

alguns comandos básicos. A novidade foi o uso do Excel (Figura 8). Além do gráfico de

setores, foram construídos gráficos de colunas, pois, segundo Pires (2009), esses são

úteis para ilustrar comparações entre itens ou para mostrar alterações de dados em um

período de tempo. A leitura, a interpretação e a construção de gráficos de colunas e

barras envolvem conceitos e procedimentos matemáticos como os de ordenação, escala

e conceitos de grandezas e medidas.

Figura 8: Tabela e gráfico da pergunta 1: Você come muita ou pouca verdura?

Fonte: Acervo da pesquisadora

A produção dos gráficos era permeada por conversas e análises coletivas, como

ocorreu no gráfico relativo à pergunta 2 (Figura 9).

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Figura 9: Qual a sua fruta preferida: maçã, mamão, melancia, banana, laranja ou

melão?

Fonte: Acervo da pesquisadora

Depois da construção dos gráficos, houve o reconhecimento de cada um dos

setores.

PP.: Olha só. Aqui, de azul, é o quê?

A(s): Maçã.

PP.: Maçã, só que nós não vamos olhar aqui no que está escrito. A gente tinha visto lá no nosso gráfico, que o pedaço que ficaria maior era qual?

A(s): A maçã.

PP.: A maçã, por que a maçã? Porque o pedaço da maçã fica maior?

A.: Porque tem 10 pessoas.

PP.: Porque tem 10 pessoas. O pedaço maior é da maçã. Depois da maçã, qual pedaço que é maior?

A(s): Mamão, a bananaaaa [eles gritam].

PP.: A banana. Por que não é o mamão?

A.: Porque o mamão tem 3 e a banana tem 8.

Assim os alunos vão reconhecendo quais informações podem ser visualizadas no

gráfico e percebem que os dados da tabela justificam as escolhas.

Ao finalizarmos o “Projeto Estatístico Alimentação Saudável”, tínhamos elaborado

com os alunos do 1.º ano B um total de 8 gráficos: 2 deles produzidos com os dados da

sala (coletivos) e 6 com os dados dos alunos (individuais). Os alunos construíram painéis

e divulgaram na escola os resultados de sua pesquisa. Produziram, também, um texto

coletivo com a síntese sobre a alimentação dos alunos do 1.º ano B, revelando os dados

estatísticos que sustentavam as argumentações. O processo de discussão e análise dos

gráficos e das tabelas nos possibilitou a percepção sobre aprendizagens dos alunos por

meio do projeto.

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Percepções da pesquisadora e da professora parceira a respeito das aprendizagens

das crianças

A finalização da etapa de desenvolvimento do “Projeto Estatístico Alimentação

Saudável” nos possibilitou identificar alguns indícios de aprendizagem pelos alunos do 1.º

ano B em três grandes eixos: Matemática, Estatística e Tecnologia.

Pudemos presenciar aspectos de aprendizagem da Matemática, cujas situações

possibilitaram que as crianças colocassem em prática alguns de seus conhecimentos

matemáticos já apropriados, como as compreensões sobre números, operações,

representações numéricas e gráficos de colunas, e outros que tiveram oportunidade de

aprender, como a possibilidade do cálculo de médias, o significado das representações

gráficas, a variabilidade de interpretações dos gráficos, o desenvolvimento de um projeto

estatístico, a compreensão sobre variáveis qualitativas e quantitativas representadas

estatisticamente, a apropriação da linguagem matemática específica (“média”, “possível’),

dentre outros.

Durante a coleta de dados, a professora parceira trabalhou com os alunos a noção

de contagem de quantidades e possibilitou, ainda, que identificassem números. Isso

aconteceu ao questionar os alunos sobre a quantidade de verdura que haviam comido ou

perguntar sobre o número de refeições que haviam feito: 1, 2, 3, 4 ou 5. Em outro

momento, ela pediu para que eles fizessem a contagem em voz alta dos alunos da sala

de aula, com o intuito de descobrir quantas crianças haviam faltado e quantas haviam

respondido à atividade do questionário. A professora parceira também fez uso de

maneiras diferenciadas de cálculo, ao pedir que os alunos fossem até a reta numerada

para contar quantos haviam escolhido a maçã como fruta preferida.

Já na tabulação dos dados na tabela, os alunos realizaram operações básicas da

Matemática, como a adição e a subtração. Em determinados momentos, adicionaram a

quantidade de frutas que haviam consumido nos dois dias e anotaram na folha. Para

realizar o cálculo, as crianças utilizaram, para somar, o fio de contas, material que tinham

disponível na sala de aula, ou mesmo os dedos. Após realizarem a soma das frutas

consumidas nos dois dias, a professora ensinou os alunos a fazer o cálculo da “média”.

O desenvolvimento do “Projeto Estatístico” nos possibilitou perceber indícios da

aprendizagem de conceitos estatísticos pelos alunos. A escolha do tema e a elaboração

das perguntas com os alunos possibilitaram que a professora trabalhasse todas as fases

de um projeto estatístico e que se descobrisse, ao final, se a alimentação dos alunos do

1.º ano era saudável ou não. Segundo Lopes (2008), as fases específicas de um

questionamento estatístico incluem formular perguntas, coletar, organizar, analisar dados,

interpretar descobertas e discutir conclusões. Nessa pesquisa, essas fases foram

contempladas, uma vez que, nesse projeto, os alunos vivenciaram a experiência de

construir e representar tabelas e gráficos, feitos no papel, na lousa, na sala de aula e na

quadra da escola ou com o auxílio da tecnologia, momento em que puderam aprender a

ler, interpretar e compreender esses dados.

Outro aspecto que se destaca é que, durante a construção dos gráficos corporais,

os alunos identificaram quais e quantos eram os alunos que representavam os diferentes

setores do gráfico, momento em que se apropriaram de um novo vocabulário, mais

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próximo da linguagem matemática, ao reconhecerem que construíam um gráfico de

setores e não de “fatias” ou “pizza”, como muitos estavam acostumados a chamar. Dessa

forma, podemos identificar o quanto a diversidade de representações gráficas, associada

a um trabalho de análise e de investigação no projeto, possibilita a apropriação não

apenas de procedimentos pertinentes a um projeto estatístico, mas também de uma

linguagem específica do campo da Estatística.

A utilização do Microsoft Excel para a construção dos gráficos possibilitou que os

alunos do 1.º ano visualizassem em tempo real o movimento de “sobe e desce” das

colunas do gráfico, ao alterarem os dados na tabela, movimento esse que seria

impossível, se utilizassem somente materiais didáticos como: cadernos, livros, jornais e

revistas. Ao construírem os gráficos na planilha Excel, as crianças reconheceram a

existência de outros tipos de gráficos. Alteraram o tipo, o estilo, o layout e as cores dos

gráficos, de forma a apropriar-se de alguns de seus comandos. Além disso, conheceram

novo repertório linguístico-tecnológico – e, em alguns casos, ampliaram o seu próprio –,

ao utilizar palavras como “célula”, “linha”, “coluna”, “tabela”, “gráfico” (de colunas, setores,

etc.), “legenda”, entre outros, familiares para quem utiliza uma ferramenta computacional.

O projeto permitiu, ainda, que, durante as aulas de laboratório, alguns alunos revelassem

seus conhecimentos tecnológicos no uso do computador e sua facilidade/familiaridade

para identificar teclas como: enter, shift, backspace, delete, entre outras.

Podemos concluir, portanto, que este trabalho de pesquisa contribuiu

significativamente para ampliar o conhecimento e o repertório linguístico dos alunos do 1.º

ano B nas áreas de Matemática, Estatística e Tecnologia. A parceria de colaboração

estabelecida entre a pesquisadora e a professora evidencia os ganhos nas aprendizagens

dos alunos, quando há uma produção colaborativa de situações de ensino. Isso favorece

a compreensão de que um trabalho que articule o uso de tecnologias em aulas de

matemática necessita ser negociado entre professores que dominam as diferentes áreas

de conhecimento. Essa parceria aconteceu porque tanto pesquisadora quanto professora

compartilharam ideias e espaços de ensino e de aprendizagem. Não basta ao professor

de tecnologia isolar-se no laboratório de informática – é necessário também participar das

ações de sala de aula com o professor de sala. Somente assim pode compreender as

demandas e os processos necessários à aprendizagem dos alunos.

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Submissão: 31/10/2017

Aceite: 28/03/2018