alfabetização e letramento um compromisso de todas as áreas

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the ESPecialist, vol. 27, n 2 (121-146) 2006

ISSN 0102-7077

ALFABETIZAO E LETRAMENTO: UM COMPROMISSO DE TODAS AS REAS Literacy: A Responsibility of All Areas of Study Adelaide Ferreira MARGATO (UNIP; LAEL/PUC-SP, So Paulo, Brasil)

Abstract The aim of this article is to analyse part of a teaching unit theoretically underpinned in the PCN-LE (1998a), (National Curriculum Parameters English Language, Elementary Education). This unit was elaborated by me for students of Cieja that are finishing basic education. I highlight the educational and socio-political role of English in the school curriculum and stress how the awareness of the importance of this role can enable the teacher to play a significant part in social transformation. Finally, I approach the importance of a foreign language, especifically the English language, in the curriculum of Brazilian schools, emphasizing its role in the student s literacy and education. Key-words: National Curriculum Parameters Foreign Language (Elementary School); socio-political role of English; language; social transformation. Resumo O objetivo deste artigo analisar parte de uma unidade de ensino fundamentada teoricamente nos PCN-LE (1998a). Tal unidade foi construda por mim em 1998 para alunos da ltima srie da educao bsica do Cieja. Saliento, com este trabalho, o papel educacional e sociopoltico do ingls no currculo escolar e como a conscincia desse papel pode permitir ao professor atuar no processo de transformao social. Por fim, enfatizo a importncia da lngua estrangeira, especificamente, a lngua inglesa, na grade curricular das escolas brasileiras, evidenciando seu papel no letramento e na formao do aluno. Palavras-chave: Parmetros Curriculares Nacionais de lngua estrangeira (Ensino Fundamental); papel sociopoltico do ingls; linguagem; transformao social.

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1.

Introduo Tem ingls da primeira srie [do ciclo II] ao terceiro ano do Ensino Mdio. Todo mundo comea com o qu? Verbo to be. Alunos saem do terceiro ano sem saber nem o verbo to be. Que aprendizagem significativa essa? (Gabriel Chalita, 2002).

Professora de ingls da rede pblica h vinte anos e, na poca deste trabalho, diretora de escola municipal, devo confessar, com tristeza, os momentos difceis e frustrantes vividos junto com os professores da rea ao ver o aluno no aprender. A questo se repete: por que o aluno no aprende ingls na escola pblica brasileira? So comuns, entre o alunado, comentrios que subestimam a qualidade do ensino de ingls e questionam sua necessidade. comum tambm, entre professores de ingls, a sensao de culpa pela falncia de seu trabalho. Frustrados, muitos chegam a abandonar a profisso. Pior ainda constatar que geraes de brasileiros tm terminado o ensino mdio funcionalmente monolnges, conforme aponta Celani (1996), confirmando as idias da epgrafe. A verdade que o ensino de lnguas, sobretudo na escola pblica, tem-se apresentado totalmente distante da realidade do aluno. Aliado a isso, apontam os especialistas, falta aos professores de ingls maior clareza sobre o papel formativo da lngua estrangeira no currculo (Fundao Carlos Chagas, 2001). Dizendo em outras palavras, em que medida, ns, professores de ingls, temos contribudo para formar os futuros cidados que podero transformar a sociedade? Procurando caminhos para questes to inquietantes, decidi estudar os Parmetros Curriculares Nacionais de Lngua Estrangeira, Ensino Fundamental (PCN-LE, 1998a), elaborados por Maria Antonieta Alba Celani1 e Lus Paulo da Moita Lopes2, em um curso promovido pelo departamento de Lingstica Aplicada da PUCSP, em 1998, que discuto logo mais. Na poca, fiz um trabalho de transposio didtica

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PUC-SP UFRJ

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(Chevallard, 1985) dos PCN-LE (1998a) para a sala de aula, que se concretizou em uma unidade de ensino cuja anlise parcial o objetivo deste artigo. Tal unidade destina-se a alunos do Cieja (Centro Integrado de Educao de Jovens e Adultos), que caracterizo a seguir.

2.

O Cieja: sua histria e caracterizao

O Cieja (Centro Integrado de Ensino para Jovens e Adultos) refere-se a uma modalidade de ensino que oferece escolarizao da primeira oitava srie; um curso supletivo, digamos assim, considerado distncia pela deliberao 23/94, cuja durao depende da velocidade do aluno. As condies para matrcula so as mesmas exigidas para o ensino supletivo, ou seja, ter catorze anos completos e estar no mercado de trabalho. Mais especificamente, destina-se esse tipo de ensino ao aluno trabalhador, que no pode se prender a horrios fixos e freqncia obrigatria. A apresentao do curso se faz em mdulos: os mdulos 1 e 2 correspondem ao ciclo I do ensino regular, 1a a 4a sries, portanto; e o mdulo 3 equivale ao ciclo II, 5a a 8a srie.

3.

O material didtico de ingls do Cieja

O material do Cieja era (e ainda hoje ) encaminhado por SME3 e elaborado pelos professores de ingls dos diversos Ciejas que existem em So Paulo. Constitua-se de doze apostilas que se restringiam a alguns exerccios estruturais e descontextualizados de gramtica, tais como: preencher lacunas, relacionar itens, afirmar e negar. Gostaria de lembrar o leitor de que eu no era professora de ingls desses alunos, mas diretora da escola, na poca deste trabalho. Tal posio no me deu condies de avaliar seu grau de conhecimento lingstico, nem tampouco que estratgias de leitura conheciam.

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Secretaria Municipal de Educao.

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Entretanto, analisando o material adotado, ouvindo e lendo os depoimentos dos professores, no me parece difcil arriscar uma anlise: os alunos do mdulo 3 do Cieja nunca haviam lido um texto produzido por falante nativo. E mais, quando liam, limitavam-se a ler em voz alta pequenos dilogos dos quais trato a seguir.

4.

A situao difcil e contraditria vivida em 1998 por alunos e professores de ingls em um Cieja na cidade de So Paulo

Os alunos do Cieja apresentavam um baixo rendimento em ingls que os conduzia evaso, ameaando, principalmente, a continuidade da lngua inglesa na grade curricular dessa modalidade de ensino. Convm lembrar que, em 2000, o ingls foi sumariamente extinto da grade curricular das escolas de ensino supletivo; voltando, todavia, por questes legais, no ano seguinte. Tal situao parece fornecer indicadores para se concluir que a maioria das escolas de ensino supletivo apresentava os mesmos problemas de evaso com relao lngua inglesa j apontados. Na tentativa de resolver o grave problema de evaso dessa escola, todos os professores de ingls da escola, a equipe tcnica e a delegacia de ensino reuniam-se semanalmente, com o objetivo de achar caminhos para lutar contra ele. Mostro, a seguir, o diagnstico feito pelos professores de ingls de seus alunos, depois de um ms de reunies semanais. Segundo o relatrio, os alunos do Cieja: so trabalhadores; portanto, no tm tempo, precisam aprender rpido, so adultos e tm pressa de ter evidncias visveis e imediatas do seu progresso; tm uma motivao flutuante: no incio do curso muito grande e depois, infelizmente, vai enfraquecendo; so adultos e, quanto mais velhos, maiores dificuldades encontram para aprender, principalmente ingls, que exige boa memria e ouvido;

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rendem pouco; quando se propem a aprender ingls na escola, esto cansados fsica e mentalmente, depois de um dia de preocupaes e trabalho (Relatrio apresentado por escrito pelos professores de ingls do Cieja, junho de 1998, divulgado por SME em outubro).

Os dados acima parecem indicar uma situao mais de denncia contra o ensino da lngua estrangeira, na modalidade de ensino Cieja, do que uma defesa pela sua permanncia. Todavia, quer pelo pouco espao, quer pela delimitao de meu objetivo, no me estenderei nesta discusso. A verdade que, diante dos fatos, os professores de ingls desse Cieja propem como soluo para os problemas que apontam, acrescentar dilogos s apostilas, como uma estratgia para resolver a evaso. Eis o que pensavam os professores com relao questo: [ preciso]... dar dilogos e desenvolver apenas a habilidade oral para ver se falando, o aluno se interessa mais. Assim, o enfoque deveria ser a conversao (depoimento apresentado pelos professores de ingls em reunio de professores, com a presena da direo da escola e delegacia de ensino, junho de 1998). Assim como os exerccios de gramtica eram descontextualizados, tambm o seriam os dilogos, extrados aqui e ali de um ou outro livro didtico. Enfim, uma colcha de retalhos composta de textos em forma de dilogos e exerccios gramaticais cuja finalidade era a mesma: decorar para a prova que mediria o conhecimento. Em agosto de 1998, estava eu na PUC-SP freqentando um curso sobre PCN-LE (1998a) ministrado pela Dra. Maria Antonieta Alba Celani, uma das elaboradoras dos PCN-LE (1998a), e Dra. Roxane Helena Rojo, quando decidi montar uma unidade de ensino para os alunos do Cieja. Reuni-me, ento, com os professores de ingls da escola e estudamos os PCN-LE (1998a). Tentvamos juntos, atravs desse trabalho, olhar de frente a crise por que passava o ensino de lnguas nas

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escolas pblicas brasileiras e, a partir disso, traar outros modos para o trabalho com a lngua estrangeira. Desenhei em breves pinceladas o cenrio que nos envolvia, no ano de 1998, para a seguir apresentar como foi desenvolvido nosso trabalho.

5.

Repensando os contedos e a metodologia de ensino

Comeamos montando um questionrio com perguntas abertas e fechadas (Mackay, 1978), tendo por objetivo fazer uma anlise das necessidades dos alunos. O resultado obtido apresento na ntegra a seguir.

5.1.

Anlise das necessidades (needs analysis) Nmero de alunos pesquisados: 22 (13 mulheres e 09 homens) Faixa etria: 16 at 35 anos (a maioria tem entre 16 e 18 anos) 1. Onde voc trabalha? Respostas: consultrio, firma, fbrica, loja, Playcenter e dois desempregados. 2. Qual a sua funo ? Respostas: telefonista, ajudante, motorista, operador, microtradutor, balconista, conferente, empregada domstica, secretria, vendedora, auxiliar de escritrio, conferente, organizador. 3.Voc utiliza o ingls no trabalho? Respostas: No: 19 Sim: 2 4.Voc precisa do ingls na sua vida diria? Respostas: Sim: 7 No: 14 5.Voc estuda ingls para qu? Respostas: Porque gosto, para fazer curso de ingls em escola de lnguas, aperfeioar, ingls lingual mundial, poder falar na internet, aprender mais, pensando no futuro.

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6. Voc considera ingls importante? Por qu? Respostas: Sim, para o trabalho, til na vida, para o futuro, por causa da globalizao, para trabalhar com o computador. 7. Que habilidades voc gostaria de desenvolver: escrever, ler, falar, ouvir? Respostas: todas: 12 - leitura e fala: 6- fala: 3 8. Nas demais questes abertas, observei que a maioria dos alunos: Respostas: aprendeu ingls sozinha e sem professor; afirma estar acostumada a ler textos bsicos encontrados nos livros didticos; gosta de ler, na LM, anncios de classificados de emprego, propaganda, notcias de esporte, sendo que o texto jornalstico foi apontado como preferido em relao ao texto literrio. Resumindo, o resultado dos questionrios apontou que: No h variao considervel com relao faixa etria, uma vez que a maioria encontra-se entre 16 e 18 anos; Os alunos (a maioria) no utilizam ingls no trabalho nem na vida diria; As profisses so variadas, desde empregada domstica at tradutor; Todos os alunos tm conscincia da importncia do ingls para o trabalho, ou seja, o conhecimento de outra lngua significa ascenso social; A maioria quer desenvolver todas as habilidades: ler, ouvir, escrever e falar; A maioria dos alunos opta pela leitura de jornais em lngua materna, sendo os classificados de empregos e anncios os textos mais lidos. O que, particularmente, chamou minha ateno nesses resultados foram dois dados. Primeiro, a faixa etria dos alunos, que variava entre

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16 e 18 anos; portanto,adolescentes e no adultos, contrariando, assim, o diagnstico feito pelos professores e entregue em relatrio, que apontei no item 4. Outro fato curioso notar que, enquanto o aluno do curso regular mal conhece o texto jornalstico, o aluno do Cieja, adolescente tambm, tem o hbito da leitura de jornais. Tal anlise levou-nos a inferir que a clientela do Cieja tem necessidades e vivncias diferentes dos alunos do curso regular. Mais do que nunca era necessria uma atitude que garantisse tal diferena. Nesse sentido, nosso trabalho se voltou para a leitura e o estudo dos princpios tericos que embasam os PCN-LE (1998a), a principal ferramenta utilizada para promover nossa reflexo sobre o ensinar e aprender.

6.

A teoria dos PCN-LE

Os PCN so propostas referenciais, um guia, no verdades absolutas, com receitas estabelecidas que todos devem aceitar. Apontam algumas direes e limites, apresentam possibilidades de articulao dos programas de um modo no autoritrio. Apresento a seguir as idias principais dos PCN-LE (1998a), em trs bases: (a) A justificativa social para a incluso de uma lngua estrangeira no ensino fundamental e a nfase na habilidade de leitura; (b) Os dois pilares centrais que embasam os PCN-LE (1998a): uma viso sociointeracional de linguagem e aprendizagem; (c) A transdisciplinaridade e os temas transversais.

6.1.

PCN-LE: a justificativa social para a incluso de lngua estrangeira no ensino fundamental e a nfase na habilidade de leitura

Os PCN-LE (1998a) no tm um carter dogmtico, haja vista a abertura dada em suas discusses sobre qual lngua estrangeira (LE) a ser ensinada em cada escola. Segundo o documento, a escolha de uma LE est intimamente ligada a sua relevncia social, levando em conta as

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necessidades reais da comunidade local. Quanto escolha das habilidades comunicativas a serem trabalhadas, os PCN-LE (1998a) enfatizam a necessidade de se trabalhar, no mnimo, uma das quatro: ler, falar, escrever e ouvir. Nesse sentido, o referencial terico de LE (Ensino Fundamental) enfatiza a habilidade de leitura e assim justifica: o uso de uma lngua estrangeira parece estar, em geral, mais vinculado leitura de literatura tcnica ou lazer (PCN-LE (1998a:20). Tal nfase justifica-se, entre outras razes, conforme apontam os PCN-LE (1998a), pelo fato de a leitura em LE: Atender aos requisitos da educao formal (restritos no Brasil aos vestibulares e admisso a cursos de ps-graduao); Ser a habilidade que o aluno tem condies de empregar em seu meio social de forma imediata; Constituir-se na habilidade mais vivel para ser trabalhada em sala de aula, dadas as condies existentes na maioria das escolas do pas: salas numerosas, carga horria do professor reduzida, pouco domnio da habilidade oral pela maioria dos professores, material didtico reduzido e outros; Auxiliar no desenvolvimento integral do letramento do aluno (PCN-LE, 1998a:20).

Segundo os PCNLE (1998a), essa nfase na leitura no deve ser interpretada como a alternativa mais fcil de ser trabalhada, nem que outras habilidades no possam tambm ser enfocadas. O documento deixa claro que o importante garantir o engajamento discursivo por meio da lngua estrangeira. No Brasil, especificamente, conforme apontam os PCN-LE (1998a), a anlise do quadro atual do ensino de lngua estrangeira indica que a maioria das propostas para o ensino dessa disciplina reflete o interesse pela leitura; entretanto, dependendo das condies e dos objetivos propostos, outras habilidades podem e devem ser trabalhadas.

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Os dois pilares centrais que embasam os PCN-LE (Ensino Fundamental): uma viso sociointeracionista de linguagem e de aprendizagem

O primeiro pilar, a natureza sociointeracional da linguagem, toma como pressuposto a compreenso de que a interao entre falantes de uma lngua no ocorre em um vcuo. Isso quer dizer que todo significado dialgico e marcado pelo mundo social, pela cultura e pela histria, o que significa que, quando falamos, o nosso discurso carrega intrinsecamente os nossos valores, as nossas representaes culturais e sociais. Todavia, lembram os PCN-LE (1998a), essas formas discursivas podem ser destrudas e reconstrudas em outras bases. A conscincia desses processos , segundo os PCN-LE (1998a: 28), o primeiro passo na construo de uma sociedade mais justa. Concluindo com Moita Lopes (2003:44), aprender uma lngua : aprender a se envolver nos embates discursivos que os discursos a que somos expostos em tal lngua possibilitam, o que igual a saber que estamos discursivamente posicionados de certos modos e que podemos alterar esses modos, para construir outros mundos sociais melhores ou outros significados sobre quem somos na vida social. Para que o processo de construo de significados de natureza sociointeracional se realize, o aprendiz utiliza-se de trs tipos de conhecimentos: o sistmico, o de mundo e o de organizao textual. Os PCN-LE (1998a:29) sinalizam que o conhecimento sistmico envolve os diferentes nveis de organizao lingstica das pessoas: os conhecimentos lxico-semnticos, morfolgicos, sintticos e fonticofonolgicos. O conhecimento de mundo refere-se ao conhecimento prvio que as pessoas tm sobre as coisas do mundo, construdo ao longo de suas experincias de vida (PCN-LE, 1998a: 30). O terceiro tipo de conhecimento refere-se aos conhecimentos que temos sobre como os diversos textos orais ou escritos, com funes diferentes na prtica social, so organizados. Esses trs conhecimentos compem a competncia comunicativa do aluno, preparando-o para o engajamento discursivo. Um processo em que a lngua materna (LM) desempenha seu papel:

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o uso dos conhecimentos sistmicos, de mundo e da organizao textual na construo do significado tambm parte do que o aluno j est acostumado a fazer como usurio de sua lngua materna. (PCN-LE, 1998a:28). Dessa forma, a LM serve como suporte de aprendizagem, com o objetivo de envolver o aluno desde o incio na construo do significado. Portanto, aprender lnguas significa, sobretudo, agir no mundo social por meio da linguagem, com a inteno clara de transform-lo. Nesse sentido, os PCN-LE (1998a:43) documentam que a aprendizagem de LE representa outra possibilidade de se agir no mundo pelo discurso, alm daquela que a lngua materna oferece. O segundo pilar a viso sociointeracional de aprendizagem, que v a aprendizagem acontecer na interao (Vygotsky, 1934/1999, 1930/1998). Os significados so construdos na negociao com o par mais competente que, ao criar uma zona de construo (ZPD)4 , pode desenvolver processos de um nvel potencial para o real. De acordo com essa viso, o professor deve dar lugar fala do aluno. Para tanto, fundamental que o professor desenvolva um trabalho em torno de temas de interesse dos alunos, proporcionando, assim, uma interao cooperativa com os colegas. Para ampliar os vnculos afetivos e realizar tarefas de forma prazerosa, os PCN sugerem a incluso de atividades significativas em sala de aula. O uso de tarefas ser justificado no sentido de que elas ajudaro o aprendiz a desenvolver habilidades de que precisar para realizar tarefas do mundo real, fora da sala de aula. De acordo com Willis (1996), as tarefas cuidadosamente selecionadas serviro de estmulos5 , necessrios para os alunos interagirem, ajudando a encontrar motivao. Portanto, o objetivo e o resultado da tarefa motivaro o estudante a se engajar nela, efetivando uma oportunidade de aprendizagem.

4 5

Zone of Proximal Development. No emprego estmulo aqui no sentido estmulo-resposta adotado pelos behavioristas.

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Discuti brevemente a importncia social da aprendizagem de uma lngua estrangeira. Vejamos agora o grau de sua importncia na formao do cidado brasileiro de quem a sociedade precisa. Para tanto, apresento alguns conceitos sobre a abordagem transdisciplinar e os temas transversais.

6.3.

A abordagem transdisciplinar e os temas transversais

Retomando o que j foi discutido, os temas centrais dos PCNLE (1998a) so a cidadania, a conscincia crtica com relao linguagem e os aspectos sociopolticos da aprendizagem de LE. Esses temas articulam-se com os seguintes temas propostos: tica, Sade, Meio Ambiente, Orientao Sexual, Pluralidade Cultural, Trabalho e Consumo, possibilitando a utilizao da aprendizagem de lnguas como um suporte para um pensar maior sobre a sociedade, sobre a natureza, sobre todo o comportamento humano (DAmbrsio, 1999:13). Conforme Morin (2000), a educao do futuro exige um esforo transdisciplinar, capaz de rejuntar cincias e humanidades e romper com a oposio entre natureza e cultura. A questo no o que devo ensinar?, mas o que o aluno precisa ser e saber para que ele possa continuar se desenvolvendo e contribuir para o desenvolvimento do grupo? Responder a essa pergunta de carter formativo significa repensar os contedos e a metodologia da rea, trabalhando questes sociais de forma contnua, sistemtica, abrangente e integrada. Especificamente falando sobre a aprendizagem de uma lngua estrangeira, ningum pode negar a importncia e necessidade de se conhecer a lngua e seu mecanismo; porm, no se pode deixar de lado que a aprendizagem dessa lngua deve significar, sobretudo, uma outra maneira de se conhecer o mundo e intervir nele. Intervir no mundo engajar-se discursivamente. O que acontece, todavia, que muitas vezes o ensino de lnguas nas escolas brasileiras feito de uma forma descontextualizada e distante da realidade do aluno, frustrando tanto aquele que ensina quanto quem aprende. Em se tratando da escola pblica, tem-se ainda mais um

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agravante: o aluno da escola pblica pertence a uma camada da populao excluda social e economicamente. So crianas que, em sua maioria, no viajam, no lem revistas importadas, no possuem TV a cabo, no tm computador. Dotadas de uma estima muito baixa, no conseguem, muitas vezes, progredir, porque no vem ligao entre o que realmente fazem para se comunicar e o que se realiza na aula de LE. Nesse sentido, a responsabilidade do professor torna-se ainda maior, porque deve restituir o direito dessas crianas de desejar, de criar, de buscar, de resgatar a auto-estima, o significado da vida que, no fundo, est por trs desse exerccio proposto pelos temas transversais. Transformar a aprendizagem em uma experincia bem-sucedida, para que o aluno construa uma representao de si mesmo como algum capaz de aprender, , segundo os PCN-Introduo (1998c:72), uma maneira de se resgatar a auto-estima perdida. Concluindo com os PCNLE (1998a:41), a lngua estrangeira no ensino fundamental envolve um complexo processo de reflexo sobre a realidade social, poltica e econmica, com valor intrnseco importante no processo de capacitao que leva libertao.

7.

Dos PCN prtica de sala de aula

Utilizo este espao para desenhar brevemente as linhas gerais que nortearam a construo da unidade didtica. Retomando os PCNLE (1998a), e assim, considerando que: o desenvolvimento de habilidades orais como central no ensino de lngua estrangeira no Brasil no leva em conta o critrio da relevncia social para a sua aprendizagem; a aprendizagem de lngua estrangeira deve garantir ao aluno seu engajamento discursivo, ou seja, a capacidade de se envolver e envolver outros no discurso; a seleo e priorizao dos contedos deve considerar dois critrios fundamentais: as necessidades dos alunos e suas possibilidades de aprendizagem, que articulados ao projeto

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pedaggico da escola, devem ser referncias fundamentais para o estabelecimento de seqenciao dos contedos;

...nasce minha proposta de montagem de uma unidade luz dos PCN, com nfase: na habilidade de leitura, tendo em vista a funo social da lngua e as condies existentes em sala de aula, que inviabilizam o ensino das quatro habilidades comunicativas; no engajamento discursivo do aluno, no uso da linguagem na comunicao; em um padro de progresso geral que enfatiza o conhecimento de mundo do aluno e a organizao textual com a qual o aluno esteja mais familiarizado no uso de sua lngua materna, com o objetivo de envolver o aluno desde o incio na construo do significado; na compreenso geral e no envolvimento na negociao de significado; na informao para que as pessoas tenham acesso mais igualitrio ao mundo acadmico, ao mundo dos negcios e tecnologia;

...utilizando o texto jornalstico para... oferecer ao aluno um contato direto com o texto escrito autntico; capacitar o aluno a buscar as informaes que deseja obter de modo rpido e eficiente, sem precisar ler o jornal e suas sees ou cadernos integralmente; ensinar os alunos a selecionar os fatos, organizando-os, analisando-os, criticando-os, criando possibilidades para o aluno desenvolver operaes e processos mentais que concorrem para a construo da competncia leitora (Faria, 1998);

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oferecer aos alunos os meios de melhorar sua leitura, estabelecendo, assim, laos entre a escola e a sociedade, aproximando a escola da vida; levar os alunos a conhecer diferentes posturas ideolgicas frente a um fato, a tomar posies fundamentadas e a aprender a respeitar diferentes pontos de vista, necessrios ao pluralismo caracterstico do comportamento democrtico; desenvolver a postura crtica do leitor-aluno;

...com nfase na definio de tarefas. Os PCN-LE (1998a) apontam para a importncia da incluso de atividades significativas em sala de aula, o que permite ampliar os vnculos afetivos e confere a possibilidade de realizar tarefas de forma mais prazerosa. Segundo Willis (1996:46), o alvo de uma aprendizagem centrada nas tarefas recriar condies naturais de aprendizagem na sala de aula6 , sem que para isso seja necessria a simplificao dos textos. Os PCN de Lngua Portuguesa (1998b: 45) esclarecem que: por trs da boa inteno de promover a aproximao entre alunos e textos, h um equvoco de origem: tenta-se aproximar os textos simplificando-os aos alunos, no lugar de aproximar os alunos a textos de qualidade. No importa, portanto, o grau de dificuldade do texto, mas a tarefa que se prope para aquele texto. Nesse sentido, a interveno do professor e, conseqentemente, os aspectos a serem tematizados que devero ser tratados com graus diversos de aprofundamento. Apresento, a seguir, uma anlise de parte da unidade que ilustra alguns ensinamentos aprendidos com os PCN-LE (1998a).

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Minha traduo.

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8.

Uma vista parcial da unidade

Desdobro este final em dois, que chamo de (a) resoluo de problemas e (b) extrapolao do texto. Nas duas partes, preocupo-me em analisar os resultados da aula dada por mim para os alunos do Cieja.

8.1.

Resoluo de problemas

Na defesa de um trabalho contextualizado, constru um problema de verdade para os alunos resolverem. Explicando melhor, eles deveriam fazer uma pesquisa em jornais importados7 e comprar uma televiso e um vdeo para a sala de vdeo da escola. Tinham a importncia de R$1.000,00, equivalente na poca a US$1,000,00, que poderiam gastar. Tal situao verdadeira, uma vez que a escola em novembro recebe a verba MEC e, de fato, planejara comprar TV e vdeo novos para a sala de vdeo com uma quantia estipulada de R$1.000,00. Sinalizo aqui, mais uma vez, junto com os PCN-LE (1998a), a importncia da conscientizao pelo professor do uso de tarefas significativas em sala de aula, ou seja, verdadeiras, a fim de que a aprendizagem se efetive. De acordo com Willis (1996), o uso de tarefas ser justificado, uma vez que elas ajudaro o aprendiz a desenvolver habilidades de que precisar para realizar tarefas do mundo real, fora da sala de aula. Para ele, tarefas cuidadosamente selecionadas daro os estmulos necessrios para os alunos interagirem, assim, ajudando a encontrar motivao8 (Willis, 1996:56). Portanto, o objetivo e o resultado da tarefa daro a motivao para que o estudante nela se engaje, efetivando, ento, uma oportunidade de aprendizagem. Tal situao d ao aluno empowerment (Fairclough, 1989), promovendo sua autoimagem, estimulando-o a pensar mais criticamente e, finalmente,

7

O jornal trabalhado em aula foi The Herald, dois exemplares, um de 19 de junho de 1998, sesso A, pp. 03- 17 e de 03 de julho de 1998, sesso B, pp. 04 -06 e sesso E, pp 03-16. Como tenho apenas os cadernos dos jornais utilizados em aula, no h possibilidade de oferecer os nmeros dos referidos jornais. 8 Minha traduo.

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tornando-o capaz de construir algo que seguramente corresponda a sua necessidade. Segue abaixo como foi enunciado o problema dentro da unidade didtica: Chegou a verba MEC para a escola. Em reunio de Conselho de Escola ficou decidida a compra de um televisor e um vdeo estreos para a sala de vdeo. A escola dispe de US$1,000 para a compra. Faa uma pesquisa no jornal importado e nesta tabela preencha os dados que se pedem: marca da TV e vdeo, preo, tamanho, endereo da loja e horrio de atendimento de segunda a domingo (enunciado da tarefa 7 da unidade montada por mim em 1998). Os alunos do Cieja compararam preos, compraram, engajaramse discursivamente para resolver tarefas propostas que tinham valor significativo: comprar um aparelho de TV e vdeo para a escola, com uma verba que vem anualmente do MEC. Os depoimentos escritos de trs alunos ilustram melhor: A1: Aprendi a fazer compras em lojas, pesquisar preos em jornais. A2: Aprendi a procurar anncio no jornal importado e comparei os preos com o Brasil. A3: Aprendi a comparar os anncios no jornal da lngua me e da lngua estrangeira (depoimento escrito sobre o que aprenderam na aula de 10/11/1998). Altamente motivados, fizeram uma pesquisa em jornais importados, calcularam e efetivaram a compra. Retomando os PCN-LE (1998a), a questo central a viso de linguagem que subjaz prtica do professor e como ela viabilizada por meio da metodologia de ensino. Vejamos agora o que dizem os alunos do Cieja sobre a aula: A1 - De vez em quando tinha que ter uma aula dessas de Ingls. Cansa menos, todo mundo discutindo em grupo, aprende mais, bem mais.

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A2 - Foi uma aula gostosa, passou to rpido e a gente nem percebeu. A1 - s vezes, a gente fica na sala de aula, a gente quer aprender, t tumultuado, a gente no consegue fal, se express (sic). Da fica difcil pra gente aprender: a gente l e no entende. Aqui no, a gente procurou, a gente aprendeu alguma coisa. No nosso pas a gente no usa ingls no dia-a-dia. No Colgio deveria ser includo, poderia ter umas aulas como essa, uma vez por semana, uma vez por ms que seja, ia ser muito legal! (gravao da aula, 10/11/1998 - avaliao de dois alunos, A1 e A2, sobre a aula). A avaliao dos alunos comprova a exeqibilidade da transposio didtica. Eles trabalharam em grupo, auto-avaliaram-se e resolveram as tarefas com prazer - afinal, disseram eles, a aula foi gostosa, passou to rpido e a gente nem percebeu. No segundo depoimento dado pelo A1, possvel sentir sua satisfao na resoluo de tarefas significativas: a gente procurou, a gente aprendeu alguma coisa. E mais, os alunos do Cieja, alm de apontarem que gostam de ingls, motivados, ainda pedem mais: poderia ter umas aulas como essa, uma vez por semana, uma vez por ms que seja, ia ser muito legal! Na verdade, esses alunos, que nunca tinham lido um texto produzido por falantes nativos, uma vez estimulados capacidade de falar, discutir, ler, escrever, descobrir e interpretar situaes, foram capazes de fazer suposies e inferncias: A1: ...to dando desconto. Olha 50% ! A2: ...off ... desconto ( gravao de aula:10/11/1998) E interpretar situaes ou pensar de forma criativa: A1: aqui voc economiza . Precisa pesquisar! A2: ... eles no vo pr um anncio que no tem endereo. Tem sim e nis (sic) vai ach, (sic) nem que tem que fic at... A senhora tem computador, professora? Tem internet?

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A1: Ento vai compr por internet, t? No precisa hora, nis compramo (sic) na internet, 24 horas. Nis somo (sic) muito econmico ...com o resto [do dinheiro] nis vamo pra esse tal de Lauderlale (gravao de aula:10/11/1998). Sem prejuzo do lingstico: A1: Aprendi os dias da semana em ingls, escrever endereos, ms, data, horas. A2: aprendi a abreviar os dias da semana [como no jornal] A3: ...Eu aprendi o endereo [eletrnico] da loja (depoimento escrito dos alunos sobre o que aprenderam na aula: 10/11/1998). Especificamente falando sobre a aprendizagem de uma lngua estrangeira, inegvel a importncia e a necessidade de se conhecer a lngua e seu mecanismo; porm, no se pode esquecer que essa aprendizagem deve ser feita de forma contextualizada, ou seja, prxima da realidade do aluno. Por conseguinte, ler em lngua estrangeira no deve ser entendido como uma atividade de decodificao de vocabulrio ou de idias especficas (um cdigo formal lingstico a ser memorizado, totalmente distanciado da subjetividade do aluno), mas como um processo dinmico de desenvolvimento e implementao de estratgias como inferncia, auto-predio, auto-questionamento. Na verdade, o verdadeiro significado do texto cada leitor ir imprimir, baseado nas suas expectativas e vivncias e no seu conhecimento prvio sobre o assunto.

8.2.

Extrapolao do texto

Na unidade referida, planejei uma extrapolao do texto com discusses orais. Propus uma questo inicial e nica: nos anncios em geral, vocs observaram que as letras mudam de tamanho. Na sua opinio, essa mudana do tamanho de letras intencional? Por qu? Apresento a discusso oral final na ntegra para ilustrar as idias apresentadas at aqui. A fala do professor vem sinalizada atravs da

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letra P em negrito e a fala dos alunos, representada por As em itlico. Todos os comentrios em letras maisculas so meus e denotam questes levantadas pelos PCN-LE (1998a). P: Vocs observaram que nos anncios que vocs leram, h uma mudana no tamanho das letras. Na sua opinio, essa mudana do tamanho das letras intencional? Por qu? As: [ a maior] pra chamar a ateno do anncio. P: E a menorzinha? As: a menorzinha pr esconder os juros. A maior pr chamar ateno do preo do produto pr voc ler. Os juros voc no consegue ler. (TICA/MORAL/CONSUMO) P: Portanto, tem uma inteno? As: com certeza. Tem outras que assim : 12 pagamentos, vamos supor de 1,20 , eles pem 12 bem piquinininho, pr voc no entender e pensar que custa 1,20 . Na oferta, eles pem bem grande o preo e voc pensa que a pea toda. pra enrol. Isto aqui, chama propaganda enganosa, t iludindo o cliente tipo chamariz (EDUCAO PARA O TRABALHO E CONSUMO) P : No Brasil fcil comprar, possvel consumir como l? As: No, fora melhor e mais barato, a senhora no viu o preo da mquina? E da televiso? Eles podem comprar, tem estabilidade. Aqui, eles embutem um jurinho (ACESSO INFORMAO, ENSINAR INGLS PARA CONHECER OUTRAS REALIDADES) P: E os salrios so iguais? As: Nem a pau, pra comprar uma mquina dessa vai um ano. L eles ganham por ano n, ento, eles to (sic) ganhando uns mais de 70.000 anual, aqui nem a pau. Trabalho de segunda a segunda no ganho nem 1000 (COMPARAO COM OUTRAS CULTURAS, DISTRIBUIO DE RENDA).

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P: Tem muita gente ganhando dinheiro, no tem? no Brasil?, ou seja, poucos ganhando muito, mas muito; enquanto muitos esto ganhando muito pouco? Como a distribuio de renda no nosso pas, igual? As: Muito desigual. P: Nos pases desenvolvidos de primeiro mundo esta diferena to grande quanto a nossa aqui? As: L diferente daqui, porque l um operrio ganha tanto e tem que pag (sic) imposto de renda e aqui no vai pag, no tem o que com (sic) (DIFERENAS CULTURAIS E SOCIAIS, COMPARAO DE CULTURAS, DESENVOLVIMENTO DE UM ALUNO CRTICO). P: Portanto, quanto mais pobre o pas, pior a distribuio de renda, ser que a gente pode concluir assim? As: Nosso pas tem que t (sic) muito estudo, como se diz, tem que d muita educao pro povo. A gente trabalha, trabalha e no ganha nada. E voc no tem estabilidade, da noite pro dia, voc pode sair do emprego tambm (CIDADANIA) P: Ento a gente no tem emprego, no tem salrio... As: nem educao. Tem, mas no a que a gente merece. (CIDADANIA) P: Ser que haveria soluo para problemas to graves quanto os nossos? As: Eu acho que o Brasil o pas mais mal-educado que tem. Ser que a educao... , ela importante, mas os homens mais educados so os que mais pisa (sic) na camada social pobre, porque o Fernando Henrique, um intelectual, gente, o nosso presidente, Mrio Covas chamou a gente de ignorante, que educao tem eles? Ns tamos (sic) procurando um caminho, mas os intelectuais esto fechando (CONSTRUO DE CONTRA-DISCURSOS DENTRO DA SALA DE AULA DE INGLS ).

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P: Talvez essas camadas pobres, depois de escolarizadas, subindo ao poder, pudessem mudar esta situao? As: Pra mudar, vol... , voltarmos a 1968, met (sic) as mos nas armas e... As: no senhor, eu sou contra a revoluo. Teve revoluo e o pas continua na mesma... Em um contexto de incertezas como o da aprendizagem, tudo que rgido, insensvel e pr-programado tende ao fracasso. Dessa forma, conforme sinalizei h pouco, programei apenas a primeira pergunta; as demais foram sendo construdas na interao professor-aluno. Os resultados mostram as discusses levantadas em torno de temas diversos, envolvendo tica, moral, cidadania, educao para o trabalho e consumo, diferenas culturais e sociais. Tais temas se transversalizaram ao longo da discusso e nortearam essa etapa do trabalho, deixando claro o uso da aprendizagem de lnguas na escola como espao para compreender as vrias maneiras de viver a experincia humana (natureza sociointeracional da linguagem e aprendizagem). Como as temticas discutidas sugeriam a vida social de forma explcita, o engajamento discursivo foi imediato, trazendo a conscincia crtica, que possibilita o surgimento de novas prticas sociais por meio da criao de espaos na escola para a construo de contra-discursos. Assim, temos um dilogo rico em que os conhecimentos do professor e do aluno se entrelaam na busca da construo de um novo conhecimento: ns [o povo brasileiro] estamos procurando um caminho, mas os intelectuais esto fechando. Eis um conhecimento novo que faz com que o professor se desapegue de um saber onipotente e procure ficar mais atento ao saber local e contextual que emerge nessa interao. Trata-se de um saber relacional e contextual, explica melhor Moraes (2003), gerado em uma ecologia de pensamentos e aes que emergem a partir do dilogo em que ambos, professor e aluno, vo se transformando mutuamente, enquanto, simultaneamente, se auto-transformam. A mediao pedaggica resulta, portanto, de uma histria de interaes recorrentes, em que o aprendiz conserva sua identidade, mas de uma

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maneira congruente com o que ocorre na interao com o educador, que tambm , ao mesmo tempo, educando, idia que perpassa as obras do educador brasileiro Paulo Freire. Com o termo sublinhado na ltima fala do aluno (vol... voltarmos), quero chamar a ateno do leitor para uma autotransformao do aluno, denunciada atravs do seu esforo em se arriscar na construo, em sua lngua materna, de um cdigo elaborado, prximo ao do professor.

9.

Concluso Dizemos ns: eles no querem saber de nada; dizem eles: as aulas no tm nada a ver comigo. Concluso nossa: eles no gostam da escola. No verdade; quase todas as crianas gostam da escola. Do que talvez no gostem muito das nossas aulas. (Mrio Srgio Cortella, 2000)

Na defesa de um trabalho contextualizado, mostrei, com parte de uma unidade de ensino, a importncia de se valorizar a sala de aula de LE para discutir o mundo social, poltico e econmico, sem que tivesse implicado prejuzo na aprendizagem da lngua inglesa. O grande lucro foi apresentar a LE para o aluno, ensinando-o a ser um cidado que tem direitos e deveres e que pode transformar uma sociedade to desigual. A aprendizagem centrou-se no engajamento discursivo do aprendiz, em sua capacidade de se engajar e engajar outros no discurso, de modo a poder agir no mundo social. Retomando os PCN-LE (1998a), o processo de construo de significado resulta no modo como as pessoas realizam a linguagem no uso, e essencialmente determinado pelo momento que se vive (a histria) e os espaos em que se atua (contextos culturais e institucionais), ou seja, pelo modo como as pessoas agem por meio do discurso no mundo social, o que foi chamado de a natureza sociointeracional da linguagem (PCN-LE,1998a:32). Nesse sentido, o estudo crtico da linguagem entendido no como um fator que contribui para a dominao de algumas pessoas ou povos por outros, mas como uma contribuio emancipao dos dominados e oprimidos.

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Vimos os alunos do Cieja, representantes legtimos da cultura popular, construindo significado, exercendo, assim, sua qualidade de discurso dos de baixo, no dizer de Santos (2000), e pondo em relevo o seu cotidiano, ou seja, o cotidiano dos pobres, das minorias, dos excludos. Vimos, tambm, os alunos do Cieja pedindo a incluso de aulas obrigatrias de ingls no currculo das escolas brasileiras: aulas como essa, dizem, todavia. Assim, parece possvel concordar com as idias de Cortella (2000), na epgrafe acima e parafrase-lo: quase todos os alunos gostam de aprender uma lngua estrangeira, entretanto, do que talvez no gostem muito das aulas como so dadas. Concluindo, saliento com este trabalho tambm o papel educacional, scio-poltico do ingls no currculo escolar e como a conscincia desse papel pode permitir ao professor atuar no processo de transformao social. Mostro ainda como possvel desenvolver, em sala de aula, a conscincia crtica de como usamos a linguagem na vida social, enfatizando a importncia de se levantarem temas sociais que auxiliaro o aluno na compreenso do mundo em que vive. Finalizando, gostaria de enaltecer a importncia da lngua inglesa no currculo das escolas brasileiras e seu papel formativo ao lado das demais disciplinas.Recebido em: 07/2004; Aceito em: 12/2004.

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Adelaide Ferreira Margato is a former EFL teacher, pedagogical coordinator and principal in City Council and State-run schools in So Paulo, Brazil. She is currently working as a teacher on a project offered by Cultura Inglesa and PUC-SP to teachers of English from state schools. Her area of research is the on-going education of foreign language teachers. [email protected]

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