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Marília Aguiar Ribeiro do Nascimento* os regulamentos independentes em face da separação de poderes: uma análise à luz da constituição Brasileira e portuguesa The INDePeNDeNT RegULATIoNs FAce The sePARATIoN oF PoweRs: AN ANALysIs oF The BRAzILIAN AND PoRTUgUese coNsTITUTIoN Los RegLAMeNTos INDePeNDIeNTes FAce A LA sePARAcIÓN De Los PoDeRes: UN ANÁLIsIs A LA LUz De LA coNsTITUcIÓN BRAsILeÑA y PoRTUgUesA Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar e refletir se os regu- lamentos independentes violam o princípio da separação de po- deres, tendo em vista as figuras na ordem constitucional portuguesa e brasileira. Primeiramente, discutimos acerca do princípio da separação de poderes e explanamos sobre o regu- lamento e, em seguida, investigamos este na Constituição Bra- sileira e na Constituição Portuguesa. Concluímos que, com o advento da Emenda Constitucional n. 32, aquela passou a ad- mitir os regulamentos autônomos no que tange à extinção de cargos e funções públicos vagos, assim como relativamente à organização e ao funcionamento da Administração Pública Fe- deral. Ainda, os regulamentos independentes delineados na Constituição Portuguesa necessitam de uma lei habilitadora, cuja preterição enseja a inconstitucionalidade formal do diploma. Abstract: This article aims to review and consider whether independent re- gulations violate the principle of separation of powers, in view of those figures in the brazilian and portuguese constitutional order. First, we discuss on the principle of separation of powers and * Mestranda em Direitos Fundamentais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa - Portugal. Advogada e Professora de Direito das Faculdades Integradas de Patos. 9

Os regulamentos independentes em face da separação de poderes

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O presente artigo tem por objetivo analisar e refletir se os regulamentos independentes violam o princípio da separação de poderes,tendo em vista as figuras na ordem constitucional portuguesa e brasileira.

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Marília Aguiar Ribeiro do Nascimento*

os regulamentos independentes em face da separação de poderes: uma análise à luz da

constituição Brasileira e portuguesa

The INDePeNDeNT RegULATIoNs FAce The sePARATIoN oF PoweRs: AN ANALysIs oF The BRAzILIAN

AND PoRTUgUese coNsTITUTIoN

Los RegLAMeNTos INDePeNDIeNTes FAce A LA sePARAcIÓN De Los PoDeRes: UN ANÁLIsIs A LA LUz De LA

coNsTITUcIÓN BRAsILeÑA y PoRTUgUesA

Resumo:

O presente artigo tem por objetivo analisar e refletir se os regu-

lamentos independentes violam o princípio da separação de po-

deres, tendo em vista as figuras na ordem constitucional

portuguesa e brasileira. Primeiramente, discutimos acerca do

princípio da separação de poderes e explanamos sobre o regu-

lamento e, em seguida, investigamos este na Constituição Bra-

sileira e na Constituição Portuguesa. Concluímos que, com o

advento da Emenda Constitucional n. 32, aquela passou a ad-

mitir os regulamentos autônomos no que tange à extinção de

cargos e funções públicos vagos, assim como relativamente à

organização e ao funcionamento da Administração Pública Fe-

deral. Ainda, os regulamentos independentes delineados na

Constituição Portuguesa necessitam de uma lei habilitadora,

cuja preterição enseja a inconstitucionalidade formal do diploma.

Abstract:

This article aims to review and consider whether independent re-

gulations violate the principle of separation of powers, in view of

those figures in the brazilian and portuguese constitutional order.

First, we discuss on the principle of separation of powers and

* Mestranda em Direitos Fundamentais pela Faculdade de Direito da Universidadede Lisboa - Portugal. Advogada e Professora de Direito das Faculdades Integradasde Patos.

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expounded on the regulations and, next, we investigate the in-

dependent regulation in the Brazilian Constitution and in the Por-

tuguese Constitution. We conclude that with the advent of

Constitutional Amendment 32, we hold which it started admitting

autonomous regulations with regard to abolishing positions and

public office vacant as well as for the organization and operation

of Federal Public Administration and the independent regulations

are outlined in the Portuguese Constitution need an enabling law,

whose breach entails the formal unconstitutionality of the statute.

Resumen:

El presente artículo tiene como objetivo analizar y reflexionar si

los reglamentos independientes violan al principio de la separa-

ción de los poderes, considerando estos institutos en el orden

constitucional portugués y brasileño. En primer lugar, discutimos

sobre el principio de la separación de los poderes y comentamos

sobre el reglamento y, en seguida, analizamos este en la Cons-

titución Brasileña y en la Constitución Portuguesa. Llegamos a

la conclusión de que, con el advenimiento de la Enmienda Cons-

titucional n. 32, aquella pasó a admitir los reglamentos autóno-

mos en lo que se refiere a la extinción de cargos y funciones

públicas vacantes, así como relativamente a la organización y

al funcionamiento de la Administración Pública Federal. Además,

los reglamentos independientes señalados en la Constitución

Portuguesa necesitan de una ley habilitadora, cuyo incumpli-

miento implica la in-constitucionalidad formal del diploma.

Palavras-chaves: Separação de poderes, regulamentos inde-

pendentes, Constituição brasileira, Constituição portuguesa.

Keywords: Separation of powers, independent regulation, Bra-

zilian Constitution, Portuguese Constitution.

Palabras clave: Separación de poderes, reglamentos indepen-

dientes, Constitución brasileña, Constitución portuguesa.

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introdução

sabemos que o Poder do estado é uno e indivisível. No en-tanto, este se manifesta por meio de orgãos que exercem determi-nadas funções, as quais representam, de fato, a materialização davontade do estado.

Na verdade, cada Poder exerce preponderantemente umafunção e, secundariamente, as outras duas. Dessa forma, cabe aoPoder Legislativo, tipicamente, a função de criar normas gerais, aoPoder executivo executá-las e ao Poder Judiciário aplicá-las aoscasos concretos.

Todavia, como dissemos anteriormente, atipicamente, oPoder Legislativo pode exercer as outras funções, da mesma formacomo ocorre com os demais poderes. esse fato se configura comouma clara manifestação do mecanismo de freios e contrapesos,não significando nem o domínio de um poder pelo outro nem ausurpação de atribuições, mas a verificação de que, entre eles, háde haver consciente colaboração e controle recíproco para evitardistorções e desmandos, como bem ressalta José Afonso da silva.

em relação à temática do presente estudo, a problemáticasurge em virtude do fato de, no mundo concreto, caber ao executivo,ao governo, a difícil missão de concretizar os comandos normativosabstratos editados pelo Poder Legislativo. Nessa tarefa, a Adminis-tração deverá expedir decretos regulamentares para fiel e corretaaplicação das leis, haja vista que, muitas vezes, estas não trazemas minúcias necessárias e indispensáveis para sua execução.

ocorre que, no tocante aos regulamentos independentes,no seu sentido clássico e absoluto, o executivo acaba, de certomodo, inovando na ordem jurídica, haja vista que prescinde de leianterior para atuar. Nesse sentido, propomos, na presente investi-gação, analisar e refletir se os regulamentos independentes violamo princípio da separação de poderes, tendo em vista as figuras daordem constitucional portuguesa e brasileira.

Pela dogmática jurídica, almejamos responder os seguintesquestionamentos: há, no plano constitucional português e brasileiro,preceitos que consagram os regulamentos independentes? Diantede uma resposta positiva, quais são esses preceitos? existem

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limites para a elaboração de regulamentos independentes nessessistemas? há violação do princípio da separação de poderesquando da emissão de regulamentos independentes? como a dou-trina e a jurisprudência das aludidas ordens constitucionais têm seposicionado a respeito?

Faz-se necessário salientar que se apresenta na doutrinauma celeuma infindável a respeito do fato de o regulamento autô-nomo ser ou não sinônimo de regulamento independente. Fixamos,de antemão, como premissa deste estudo, a consideração de queregulamento independente é expressão sinônima de regulamentoautônomo, seguindo a linha de Diogo Freitas do Amaral (2007),Vital Moreira (2003) e Jorge Miranda (2004, p. 209).

É preciso ressaltar ainda que, no tocante aos regulamentosindependentes na constituição Portuguesa, deteremo-nos na figurados regulamentos independentes do governo, mencionando bre-vemente acerca dos regulamentos emitidos pelas autarquias locais,regiões autônomas, institutos públicos e associações.

os métodos utilizados na investigação foram o técnico-jurí-dico e o correlacional ou comparativo, visto que abordaremos o temade forma crítica e reflexiva, sem nos limitarmos à mera descrição. otrabalho se pautará na investigação doutrinária, legal e jurisprudencialacerca dos regulamentos independentes em face da separação depoderes, à luz da constituição Portuguesa e Brasileira.

No tocante à estrutura do estudo, este se encontra subdivi-dido nos seguintes momentos: no primeiro momento, trataremosde forma preliminar acerca do princípio da separação de poderes,destacando as teorias de Montesquieu e de Locke e traçando umaleitura atual do referido princípio; no segundo momento, abordare-mos o instituto jurídico do regulamento, esboçando alguns concei-tos doutrinários, destacando a relação deste com a lei, bem comoos fundamentos do Poder Regulamentar e as espécies de regula-mentos; no terceiro momento, investigaremos se a constituição daRepública Federativa do Brasil contempla a figura do regulamentoindependente, dialogando tal problemática entre a doutrina e a ju-risprudência pátria; no quarto momento, discutiremos acerca dapossibilidade de existência dos regulamentos independentes naconstituição da República Portuguesa, considerando as posiçõesdoutrinárias e jurisprudenciais.

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a separação de poderes

antecedentes e breves considerações

o contexto das teorias de Locke e Montesquieu tinha comoreferencial o sistema inglês. Na história constitucional inglesa, oprincípio de separação de poderes tem sua origem na necessidadede limitação dos poderes reais, permitindo a contenção do arbítrio.Locke concebeu o poder a partir de uma perspectiva funcional,resultando-o na divisão em Legislativo, executivo e Federativo, ca-bendo ao Rei exercer estes últimos. Já Montesquieu (2000, p. 165-179) estruturou a clássica tripartição do poder em executivo,Legislativo e Judiciário, devendo cada um exercer primordialmenteuma função: ao Legislativo caberia fazer as leis; ao executivo exe-cutar as resoluções públicas; e ao Judiciário julgar os crimes ou asquerelas entre os particulares. com exceção do Judiciário, ao qualfora atribuído um papel invisível e neutro, era grande a inter-relaçãoentre executivo e Legislativo, concebendo-se um sistema de con-trole recíproco entre os poderes.

Dessa forma, assim como Locke, Montesquieu concebeusua teoria como uma forma de preservação da liberdade contra oarbítrio. o autor, no entanto, defendia a impossibilidade de duas outrês funções serem exercidas pelo mesmo órgão, ressalva queLocke só não fazia em relação ao Legislativo e executivo. Montes-quieu (idem, p. 169) afirmou, na obra O espírito das leis, que: “Tudoestaria perdido se o mesmo homem ou mesmo corpo dos princi-pais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: ode fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar oscrimes ou as divergências dos indivíduos”.

Além de ter influenciado diretamente a lei fundamental norte-americana, a separação de poderes constituiu-se dogma concreti-zado no art. 16 da Declaração dos Direitos do homem e do cidadão,de 1789, que previu a não existência de constituição sem o esta-belecimento da separação dos poderes e, ainda, configura-se comoum dos fundamentos de várias cartas constitucionais contemporâ-neas. entretanto, as doutrinas de Locke e Montesquieu demonstramque a separação de poderes na pureza de suas linhas estruturais

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não mais se coaduna às profundas mudanças de natureza inter eintraorgância que se operaram na estrutura política do poder.

leitura atual

A leitura atual da separação de poderes, mormente com apassagem do estado Liberal para o estado social, não permiteuma interpretação ortodoxa em que os ramos do Legislativo, exe-cutivo e Judiciário sejam colocados em uma situação estanque,sem interpenetrações ou interferência de um poder na função deoutro poder (soUsA, 1999, p. 35). há que se afastar, portanto, aideia de uma cisão absoluta das funções dos orgãos de soberania,devendo a leitura do princípio ser relativizada, haja vista que umadivisão mecanicista absoluta e totalizante tornaria inviável o funcio-namento dos orgãos de soberania do estado.

Dessa forma, canotilho (1992, p. 704) ensina que os or-gãos de soberania possuem, no exercício das competências quelhe são atribuídas pelos preceitos constitucionais, um campo de re-serva primário, ligado à atividade finalística de cada poder, consti-tuindo um núcleo essencial e um campo de reserva secundário.

Para Marcelo Rebelo de sousa, hodiernamente, o princípioda separação de poderes se encontra desdobrado em duas dimen-sões: uma de caráter negativo e outra de caráter positivo. A dimen-são negativa adviria do próprio estado Liberal e ditaria a prevençãoda concentração e do abuso do poder, por meio da divisão orgânicae do controle mútuo dos poderes. Dessa forma, a dimensão nega-tiva impõe que os órgãos do poder político não possam praticar atosque reconduzam a outra função do estado. A dimensão positiva, porsua vez, materializa-se enquanto princípio organizativo de optimi-zação do exercício das funções do estado, exigindo uma estruturaorgânica funcionalmente correta do aparelho público. Para o aludidoautor, por se tratar a separação de poderes de um princípio, e nãode uma regra constitucional, o seu entendimento pode ser compri-mido na presença de outro princípio com mais peso concreto, razãopela qual não há como definir núcleos duros no referido princípio(soUsA; MATos, 2006, p. 134).

Antes de adentrarmos no seguinte tópico, cabe mencionar

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que a constituição da República Federativa do Brasil, por exemplo,prevê expressamente o princípio da separação dos poderes, sa-lientando a necessidade de independência e harmonia entre eles,contemplando um sistema de colaboração com mecanismo de con-trole recíproco. constitui-se, ainda, matéria não passível de serabolida mediante emenda constitucional, isto é, trata-se de umacláusula pétrea, conforme podemos depreender no art. 60, § 4º,alínea III, da referida constituição.

No mesmo sentido, a constituição da República Portuguesalhe faz referência expressa enquanto fundamento do estado deDireito Democrático, no seu art. 2º, bem como faz menção em rela-ção aos orgãos de soberania (Presidente da República, governo eTribunais), que devem observar a separação e a interdependênciaprevistas em seu art. 111º, introduzindo a caracterização da divisãode poderes na vertente representativa do sistema de governo portu-guês, como leciona Marcelo Rebelo de sousa (2000, p. 223).

do regulamento

noções

Dentre as principais manifestações do Poder Administrativotemos o poder regulamentar, o qual se materializa pela emanaçãode regulamentos administrativos pelos órgãos competentes.

os regulamentos são considerados como uma fonte de di-reito, colocado abaixo da lei, sendo, não obstante, uma fonte de direitoautônoma. Assim, o regulamento não tem natureza legislativa, temuma natureza específica, sui generis, é uma fonte diferente da lei.

Para Jorge Miranda (1986, p. 355), o regulamento pode serentendido como o ato normativo da função administrativa, o ato cria-dor de normas de execução permanente proveniente de um órgãoda Administração Pública, no exercício de um poder específico.

Nessa linha, analisando aquele instituto, Freitas do Amaral(2007, p. 151-152) afirma que os regulamentos administrativos são

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“as normas jurídicas emanadas no exercício do poder administra-tivo por um orgão da Administração ou por outra entidade públicaou privada para tal habilitada por lei”.

o supracitado autor assevera que os regulamentos consti-tuem um produto da atividade da Administração indispensável aofuncionamento do estado Moderno, haja vista que permite ao Par-lamento, por questões de tempo e materiais, desonerar-se de cer-tas atividades; possibilita uma adaptação rápida da norma ainúmeras situações específicas da vida, sobretudo técnicas, quese encontram em constante mutação e no que tange aos regula-mentos dos entes autônomos, porque possibilita, de forma maisadequada do que a lei, a tomada de consideração das diferentesespecificidades regionais, locais ou corporativas (idem, p. 153).

Apontadas essas noções, faz-se mister distinguirmos lei deregulamento para compreendermos o ponto de tensão entre exe-cutivo e Legislativo configurado, mormente, pela admissão dos re-gulamentos independentes.

distinção entre lei e regulamento

José Afonso da silva (2009) entende que o regulamento seassemelha à lei, em seu caráter geral, impessoal e permanente,mas dela se distingue por emanar de orgão diferente, bem comopor ser uma norma jurídica secundária e de categoria inferior à dalei. Lei e regulamento, entretanto, são normas jurídicas gerais eabstratas, obrigatórias e relativamente permanentes.

o aludido autor sustenta que a distinção fundamental resideno fato de que a lei inova a ordem jurídico-formal, seja modificandonormas preexistentes, seja regulando matéria ainda não reguladanormativamente. em contrapartida, o regulamento não contém, ori-ginariamente, inovação modificativa da ordem jurídico-formal, limi-tando-se a pormenorizar, a precisar o conteúdo da lei. Assim, deve,portanto, respeitar os textos constitucionais, a lei regulamentada, alegislação em geral e as fontes subsidiárias a que ela se reporta.

Na mesma linha, Amorim de sousa (1999, p. 128) lecionaque os regulamentos são atos não legislativos, visto que são atosnormativos inferiores à lei e às demais normas que possuem a

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mesma paridade com ela ou têm o mesmo grau hierárquico, nãopodendo, portanto, alterar, modificar, suspender ou revogar umalei. Além disso, são atos abstratos em virtude do fato de não se des-tinarem a prover uma situação, caso ou hipótese determinada, ser-vindo a hipótese fática abstratamente prevista de paradigma a umnúmero indeterminado de situações fáticas semelhantes que pos-sam produzir-se no âmbito de sua abrangência. Além disso, o re-ferido autor (idem, p. 129) defende que os regulamentos sãonormas de execução contínua e permanente, não exaurindo seusefeitos, portanto, com a sua aplicação em um único momento.

Para Marcelo Rebelo de sousa (2007, p. 239) a distinçãosubstancial entre lei e regulamento consiste no fato de que a leipartilha do caráter primário da função legislativa, ao passo que oregulamento partilha do caráter secundário da função administra-tiva, estando subordinado ao princípio da legalidade.

No Direito comparado a doutrina aduz que, originaria-mente, o regulamento se caracteriza por sua natureza secundária,exclusivamente subordinado à lei. É o entendimento de Juan Al-fonso santamaría Pastor (apud cARVALho, 2008, p. 297): “siendo

esta, por excelencia, la fuente primaria del sistema, al reglamento

correspondia el apelativo de norma secundaria”.Para Manuel Afonso Vaz (1996, p. 48), a conexão entre lei

e regulamento muda de acordo com o ordenamento positivo, sendoreflexo das diferentes funções e dos diferentes modos de relacio-namento entre o Legislativo e o executivo.

Para Amorim de sousa (1999, p. 135), as relações entre leie regulamento se encontram disciplinadas em princípios que defi-nem os parâmetros de articulação que os envolvem. Assim, o prin-cípio da primazia denota a completa supremacia e autoridade dalei sobre o regulamento, decorrendo, em princípio, de uma prefe-rência formal, por derivação da fonte de legitimidade, situando-seo regulamento, em consequência, num plano hierárquico inferior àlei (idem, p. 136).

De acordo com o princípio da reserva de lei, a constituição,tipificando determinada matéria como objeto de incidência de lei,somente ela pode legitimamente regulamentá-la (idem, p. 137).Nesse sentido, a constituição Federal Brasileira impõe a autoridadee a supremacia da lei ao estabelecer, em uma cláusula geral e de

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elevado grau de abstração (art. 5º, inciso II), que “ninguém seráobrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtudede lei”.

Por outro lado, o princípio do congelamento do grau hierár-quico ou da reserva de lei em sentido formal diz respeito à ideia deque a reserva de lei não se exaure em sua dimensão material, masabrange também sua moldura formal, sendo uma derivação doprincípio de preferência de lei, numa perspectiva formal. Assim, emconsequência desse princípio, mesmo que determinado assuntonão esteja explicitamente reservado ao domínio da lei, se esta odisciplina, o regulamento estará, em virtude do congelamento dacategoria normativa, impedido de fazê-lo, exatamente por não pos-suir autoridade hierárquica suficiente (idem, p. 137).

Na mesma linha, Marcelo Rebelo de sousa (2006, p. 137)defende que a emissão de regulamentos, desde que legalmente con-formes, não constitui exercício administrativo da função legislativa,uma vez que os regulamentos são, na verdade, puros atos da funçãoadministrativa e não configuram, portanto, legislação material.

fundamento do poder regulamentar

Dentre os doutrinadores portugueses, Freitas do Amaral éum dos que apresenta o fundamento do Poder Regulamentar.Afirma o referido autor que o fundamento pode ser analisado a par-tir de três perspectivas: prática, histórica e jurídica.

Na perspectiva prática, o poder regulamentar se funda, porum lado, no distanciamento do legislador em relação aos casosconcretos da vida social e, por outro lado, na impossibilidade deprevisão absoluta ou na inconveniência de previsão completa porparte do legislador, em termos que aconselham ou tornam muitasvezes necessário que a Administração intervenha, num segundomomento, a fim de criar normativamente as condições de aplicaçãoda lei aos casos da vida (AMARAL, 2007, p. 174). As lacunas dei-xadas pela lei constituem o fundamento prático do poder regula-mentar, na medida em que levam à necessidade da AdministraçãoPública os preencher.

No que tange ao fundamento histórico do poder regulamentar,

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esse se configura na impossibilidade de aplicação rigorosa do prin-cípio da separação de poderes, na forma como fora idealizadopelos teóricos do estado Liberal.

Para Freitas do Amaral (2007, p. 175), o aludido princípio,se tivesse sido plena e acriticamente aplicado, teria levado a que aAdministração não pudesse editar normas jurídicas, em virtude dofato de que sua emissão haveria de ser prerrogativa exclusiva doPoder Legislativo. Isso não ocorreu por impossibilidade prática, edaí que logo nos anos imediatamente posteriores à RevoluçãoFrancesa haja sido reconhecido por lei à Administração e, sobre-tudo, na constituição do Ano VIII, o poder de, dentro de certos limi-tes, emanar regras jurídicas, ainda que secundárias ou de grauinferior ao das leis. Portanto, do ponto de vista histórico, o poderregulamentar deriva dessa impossibilidade prática de aplicação, nasua pureza, do princípio da separação de poderes.

Na ótica jurídica, o fundamento do Poder Regulamentar temvariado conforme os tempos. Vejamos.

No período da Monarquia absoluta e no da Monarquia libe-ral, o fundamento jurídico do poder regulamentar era o poder ad-ministrativo próprio do monarca, presente na legitimidade dinástica(idem, ibidem).

No estado Liberal de Direito, tal fundamento derivava quasesempre de uma delegação ou autorização dada caso a caso peloParlamento ao governo. É ainda o que ocorre na grã-Bretanha enos estados Unidos da América, onde os regulamentos adminis-trativos se qualificam como delegated legislation.

No estado social de Direito, o fundamento jurídico do poderregulamentar reside na constituição e na lei, como corolário do prin-cípio da legalidade. Assim, o fundamento do poder regulamentar emgeral se encontra na constituição, já o fundamento de cada regula-mento em particular se faz pela exigência de lei prévia para o exer-cício do poder regulamentar, em razão do que se a lei não cria opoder regulamentar, desempenha a função de habilitação legal ne-cessária para se dar cumprimento ao princípio da precedência de lei.

Assim, em face da constituição, não são admissíveis regu-lamentos desprovidos de fundamento legal, mesmo que se reclameda ordem jurídica em geral ou dos princípios gerais de Direito, comosalienta Freitas do Amaral (idem, p. 176), fazendo alusão aos

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ensinamentos de gomes canotilho e Vital Moreira. consistem ex-ceções a tal ideia dois casos em que o poder regulamentar existemesmo sem que a constituição ou a lei o prevejam, tendo funda-mento diverso, quais sejam: os regulamentos internos e os regi-mentos de orgãos colegiais.

espécies de regulamentos

Tendo em vista a relação dos regulamentos administrativosface à lei, a doutrina majoritária os distingue em dois: os regula-mentos complementares ou de execução e os regulamentos inde-pendentes ou autônomos.

os regulamentos complementares ou de execução “sãoaqueles que desenvolvem ou aprofundam a disciplina jurídica cons-tante de uma lei”, completando-a, a fim de viabilizar sua aplicaçãonos casos concretos. caracterizam-se, portanto, pela tarefa de por-menorização, de detalhe e de complemento do comando legisla-tivo, sendo, assim, secundum legem (idem, p. 159).

Desse modo, os regulamentos complementares ou deexecução são expedidos quando a lei transmitir de forma deficitáriadeterminados conceitos ou categorias, cabendo então àquelesdesenvolvê-los.

De outra banda, os regulamentos independentes ou autô-nomos são “aqueles regulamentos que os orgãos administrativoselaboram no exercício da sua competência, para assegurar a rea-lização das suas atribuições específicas, sem cuidar de desenvol-ver ou completar nenhuma lei em especial”. Dessa forma, taisregulamentos não complementam qualquer lei anterior, mas esta-belecem autonomamente a disciplina jurídica que pautará a reali-zação das atribuições específicas cometidas pelo legislador aosentes públicos considerados (idem, p. 161). Nessa seara, MarceloRebelo de sousa (2007, p. 246) entende que os regulamentosindependentes são aqueles que contêm disciplinas materialmenteinovatórias.

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dos regulamentos independentes na constituiçãoda repÚBlica federatiVa do Brasil

cabimento

o Presidente da República, o governador do estado ouDistrital e o Prefeito Municipal podem editar regulamentos sempreque a lei, ao inovar no ordenamento, deixa remanescer aspectos aserem tratados, no exercício da discricionariedade política, pela cú-pula do executivo. Tais regulamentos são veiculados por meio dedecretos do chefe do executivo e, portanto, trazem normas gerais,abstratas e obrigatórias (cARVALho, 2008, p. 296). Assim, o art.84, inciso IV, da constituição da República Federativa do Brasil,dispõe: “compete privativamente ao Presidente da República: […]IV – sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expe-dir decretos e regulamentos para sua fiel execução”.

A doutrina brasileira tradicional, ao interpretar o referido dis-positivo legal, fixou como limite do decreto veiculador de regula-mento a impossibilidade de inovação na ordem jurídica, haja vistaque este deve se limitar a viabilizar a fiel execução da lei. Dessaforma, o fundamento de validade do decreto é a lei, cujos limitesnão pode ultrapassar nem inobservar, sob pena de manifesta ile-galidade. como se vê, no ordenamento jurídico brasileiro a doutrinacomunga com o entendimento de que o decreto possui naturezasecundária, posto que a função normatizadora estaria reservada àlei ou a situações excepcionais como as leis delegadas, tendo emvista o disposto nos arts. 59, IV, e 68, da constituição Brasileira.

Assim, a referida atribuição poderá ser exercida em relaçãoa toda e qualquer lei, prescindindo, portanto, de autorização legal,conforme ADIN n. 3.394-8/AM, Rel. Min. eros grau, DJ 24.08.2007(BoNAVIDes, 2009, p. 1096).

Vale salientar que a lei não poderá determinar prazo para ocumprimento dessa competência, sob pena de incidir em inconsti-tucionalidade, por afronta ao “princípio da interdependência e har-monia entre os poderes”, haja vista que “não se pode obrigar opoder executivo a regulamentar a lei. É uma competência que eledetém por explícita previsão constitucional, sem que o legislador

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ordinário possa obrigá-lo a fazer num determinado limite temporal”(idem, ibidem)1.

Assim sendo, imputa-se ao regulamento a natureza de atonormativo secundário, e não primário, posto ser o seu fundamentonão a constituição, mas a lei, que é ato normativo primário por de-correr diretamente de previsão constitucional.

com base nessa posição, os doutrinadores pátrios sempreafirmaram que não haveria que se falar em decreto ou regulamentoindependente no ordenamento jurídico brasileiro, visto que a com-petência normatizadora dos chefes do executivo é indireta e não re-sulta diretamente da constituição (cARVALho, 2008, p. 299). Nessesentido, o poder regulamentar se limitaria, sem qualquer inovação,a facilitar a execução da norma legal, com a pormenorização do seualcance, por intermédio do exercício da discricionariedade política doPresidente da República, do governador ou do Prefeito do Município.

entretanto, esse entendimento sofreu profundas modifica-ções no Brasil após o advento da emenda constitucional n. 32, quedeu nova redação ao art. 84, VI, da constituição Federal. Anterior-mente, o aludido inciso atribuía ao chefe do executivo a prerroga-tiva de “dispor sobre a organização e o funcionamento daadministração federal, na forma da lei”. Após a emenda, o artigopassou a consagrar a competência do Presidente da Repúblicapara “dispor, mediante decreto, sobre: a) organização e funciona-mento da administração federal, quando não implicar aumento dedespesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; b) extinçãode funções ou cargos públicos, quando vagos”.

Do supracitado artigo decorre a autorização ao chefe doexecutivo Federal, independentemente de lei prévia, para realizaras competências dispostas nas suas alíneas, ou seja, decreto or-ganizacional da Administração Federal sem acarretar majoraçãode gasto, nem a criação ou extinção de órgãos e decreto que ex-tinga cargos e funções públicas vagas não necessitam de lei daqual retirem o fundamento da sua edição.

Diante da aludida emenda constitucional, parte da doutrinaatual entende que o art. 84, inciso VI, alíneas “a” e “b”, da consti-tuição Federal, passou a admitir os regulamentos autônomos no

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1 conferir ADIN n. 3.394-8/Am, Rel. Min. eros grau, DJ 24.08.2007.

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que tange à extinção de cargos e funções públicos vagos, assimcomo relativamente à organização e ao funcionamento da Admi-nistração Pública Federal.

o aludido entendimento foi consagrado pelo supremo Tribu-nal Federal, havendo vários julgados nesse sentido. Um caso em-blemático foi a ADI n. 2.564-DF2, relatada pela Ministra ellen gracie,em que ela reconhece o regulamento independente, ao entenderpela ausência de ofensa ao princípio da reserva legal, em virtude danova redação atribuída ao inciso VI, do art. 84, pela ec n. 32/2001.

Nesse sentido, ADIN n. 3.254-2/es, Rel. Min. ellen gracie,DJ 02.12.2005 e ADIN n. 2.857-0/es, Rel. Mini. Joaquim Barbosa,DJ 30.11.2007.

Assim, o decreto passa a prescindir da existência de lei pré-via, podendo ser considerado decreto autônomo, o qual retira suavalidade diretamente da constituição, conforme ADIN n. 3.614-9/PR,Rel. Min. carmem Lúcia, DJ 23.11.2007, e não um decreto de exe-cução que consta no art. 84, inciso IV, e que está a depender de lei.

Na mesma linha, José Afonso da silva (2009, p. 485), en-tendendo que os regulamentos autônomos são aqueles que de-monstram a realidade de um poder regulamentar da Administração,sustenta a existência deste quando se trata de regulamentos de or-ganização, nos quais expressamente não se tenha reservado umaesfera à lei, sendo o que ocorre no art. 84, inciso VI, da constituiçãoBrasileira. Paulo Bonavides, Jorge Miranda e walber de MouraAgra (BoNAVIDes, 2009, p. 1098) reconhecem no aludido dispo-sitivo constitucional a existência do decreto autônomo, embora sa-lientem que o conteúdo deste se encontra bastante restrito.

entretanto, Maria sylvia zanella Di Pietro (2005, p. 89)

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2 “Ação Direta de Inconstitucionalidade. Decreto nº 4.010, de 12 de Novembrode 2001. Pagamento de servidores públicos da Administração Federal. Libera-ção de recursos. exigência de prévia autorização do Presidente da República.os artigos 76 e 84, I, II e VI, a, todos da constituição Federal, atribuem ao Pre-sidente da República a posição de chefe supremo da administração pública fe-deral, ao qual estão subordinados os Ministros de estado. Ausência de ofensaao princípio da reserva legal, diante da nova redação atribuída ao inciso VI doart. 84 pela emenda constitucional nº 32/01, que permite expressamente aoPresidente da República dispor, por decreto, sobre a organização e o funciona-mento da administração federal, quando isso não implicar aumento de despesaou criação de órgãos públicos, exceções que não se aplicam ao Decreto atacado”(ADI n. 2.564-DF, rel. Min. ellen gracie, Pleno do sTF, DJU de 06.02.04, p. 21).

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defende a existência de regulamento independente no Direito Brasi-leiro apenas para hipótese prevista na alínea “a” do art. 84, VI, daMagna carta, visto que a alínea “b” não se trata de função regula-mentar, mas de típico ato de efeitos concretos, porque a competênciado Presidente da República se limitará a extinguir cargos ou funçõesquando vagos, e não a estabelecer normas acerca da matéria.

Vale salientar que a constituição Federal estabelece no art.48, alínea “x”, que é competência do congresso Nacional disporsobre a criação, transformação e extinção de cargos, empregos efunções públicas. com a edição da emenda constitucional n. 32,de 11/09/2001, ressalvou-se, de forma explícita, como exceção àregra do artigo anteriormente indicado, a extinção de cargos e fun-ções públicos vagos. Assim, nessa hipótese, bem como no casodelineado na alínea “a”, do inciso VI do citado art. 84, a constituiçãoadmite o exercício da competência pelo chefe do executivo me-diante decreto. Logo, trata-se de ato normativo primário, já que fun-dado diretamente na constituição, que se qualifica como decretoou regulamento autônomo por não exigir aprovação de lei préviasobre a matéria.

Nesse sentido, temos o entendimento de Juan Alfonso san-tamaría Pastor (2005, p. 346), que menciona que “los reglamentos

independientes son los dictados por el Gobierno o la Administración

en las materias reguladas por las leyes, y sin autorización, remisión

o apoderamiento alguno por parte de éstas”. contrariamente a esse entendimento, celso Antônio Ban-

deira de Mello (2003, p. 50), baseando-se no art. 5º, inciso II, daconstituição Federal, assevera a exigência de lei para que o PoderPúblico possa impor obrigações aos administrados, não podendoser substituído por decreto, regulamento ou portaria. Dessa forma,o supracitado autor defende que, mesmo após a ec n. 32, não háfundamento para a existência de decreto autônomo ou indepen-dente no ordenamento brasileiro, devendo este observar a proibi-ção de inovação na ordem jurídica, tratando de matérias nãoreservadas à lei, sob o prisma da discricionariedade política. LúciaValle de Figueiredo (2003, p. 69), por sua vez, afasta a possibilidadedos regulamentos independentes invocando o art. 25 do Ato dasDisposições Transitórias, da constituição Brasileira, que impossi-bilitou a manutenção, até mesmo por lei, de delegações a órgãos

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do Poder executivo. Assim, para a aludida autora, não há possibi-lidade, à míngua da lei, de haver restrições sem afronta cabal aoprincípio da legalidade. Na mesma linha, geraldo Ataliba tambémse rebela contra a admissão do regulamento independente no or-denamento jurídico brasileiro. José dos santos carvalho Filho(2009, p. 60) comunga com esse entendimento, ao defender a ine-xistência, no quadro constitucional vigente, de respaldo para admi-tir-se regulamentos independentes. Para o autor, atos dessanatureza não podem existir porque contrariam o art. 5º, inciso II, daconstituição Brasileira, que fixa o postulado da reserva legal paraa exigibilidade das obrigações.

De outra banda, Raquel Melo Urbano de carvalho (2008, p.299) sustenta que a interpretação sistêmica da constituição em cum-primento à qual a competência do Presidente da República deveriaser entendida à luz dos arts. 2º e 37, caput, da constituição Federal,nem os princípios de independência e harmonia entre os poderes eo da legalidade não são argumentos suficientes para retirar a natu-reza autônoma do decreto editado com base no art. 84, VI.

Dessa maneira, filiando-nos a essa linha de pensamento,entendemos que é possível ao Presidente da República editar atonormativo primário, qualificado como decreto autônomo, nos casosde extinção de função ou cargo público vago e de organização daAdministração Federal sem aumento de gasto, nem extinção e cria-ção de cargo, não podendo essa excepcionalidade ser estendidaa quaisquer outras matérias de competência do chefe do execu-tivo, ou seja, os decretos do Presidente que não versarem sobreas aludidas matérias deverão obedecer a estrita reserva legal,sendo-lhes vedado inovar primariamente no ordenamento, sobpena de violação do princípio de separação de poderes.

Importa mencionar que há significativa controvérsia na dou-trina no que tange à incidência do art. 84, inciso VI, da constituiçãoFederal, nos outros níveis de federação, isto é, se há legitimidadedo poder regulamentar originário aos governadores de estado, doDistrito Federal e aos Prefeitos Municipais. entende-se que essadeterminação constitucional, expressa para o âmbito federal, aplica-se também aos estados-membros, Municípios e Distrito Federal,em cumprimento ao princípio da simetria, incidente tanto no queatine ao processo legislativo quanto à organização da Administração

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Pública. Nessa linha, temos a ADI n. 102-Ro, Relator Ministro Mau-rício corrêa, Pleno do sTF, DJU de 29 de novembro de 2002.

Desse modo, é cabível ao governador e ao Prefeito Muni-cipal, pelo princípio da simetria, exercer, independente da Assem-bleia Legislativa e da câmara de Vereadores, as competências doart. 84, VI, extinguindo cargos e funções que estejam vagos ou atri-buindo novo formato organizacional aos orgãos e entidades da Ad-ministração, não podendo se falar em violação ao princípio daseparação de poderes ou à reserva de lei.

limites

Importante salientar que, descumprido o limite constitucio-nal no exercício do poder regulamentar, caberá ao congresso Na-cional sustar ato normativo que tenha ultrapassado os limites dopoder regulatório, nos moldes do art. 49, inciso V, da constituiçãoFederal, configurando-se como um meio de controle para evitar ar-bitrariedade por parte do executivo.

No que tange ao controle judicial sobre o regulamento, se odecreto não corresponde aos casos das alíneas “a” e “b” do incisoVI do art. 84 da Magna carta e se pretende ato normativo primário,ao criar direitos e obrigações novas não amparados na lei aprovadapelo Parlamento, tem-se claro que o chefe do executivo se investiuna função do Poder Legislativo, sem fundamento constitucional.

esse regulamento autônomo que, contrariamente à reservalegal contemplada na constituição, pretendeu inovar a ordem jurí-dica, submete-se ao controle de constitucionalidade, inclusive porintermédio de ação direta de inconstitucionalidade, prevista no art.102, I, “a”, da constituição. Assim, é pacífico na jurisprudência dacorte suprema que decreto autônomo que não se enquadrar noscasos delineados no art. 84, VI, da constituição e que não se fun-damentar em lei prévia pode ter sua inconstitucionalidade arguidaem ação direta, por clara afronta também ao princípio de separaçãode poderes.

Por outro lado, atos regulamentares do chefe do executivoque violam requisitos fixados em lei não apresentam vício de in-constitucionalidade, mas de legalidade, submetendo-se, portanto,

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aos mecanismos de controle de legalidade da administração, quaissejam: mandado de segurança, ação ordinária, ação popular eação civil pública, e não à ação direta de inconstitucionalidade.

dos regulamentos independentes na constituiçãoda repÚBlica portuguesa

cabimento

A discussão acerca da existência dos regulamentos indepen-dentes na constituição da República Portuguesa gira ao redor dodisposto em seu art. 112º, n. 7 e 83. Retomando o conceito de regu-lamentos independentes, Afonso Vaz (1996, p. 483-484) afirma que“por regulamentos independentes entendemos aqueles regulamen-tos que a Administração edita sem referência causal a uma lei”.

o supracitado autor defende que o poder normativo autô-nomo e primário está na constituição da República Portuguesaocupado pelos atos legislativos, ao passo que o regulamento é umato de outra natureza, por razões de hierarquia e por exigência deconformidade – reserva geral de lei –, referindo-se exclusivamenteaos regulamentos governamentais. o regulamento é, portanto, atonormativo da administração sujeito e complementar à lei (idem, p.57). Nessa linha, Afonso Vaz (idem, p. 58) sustenta que o fato de on. 7 do art. 112 da constituição Portuguesa admitir expressamenteos regulamentos independentes não enfraqueceria o referidoentendimento, haja vista que esses regulamentos, em conexãocom a 2ª parte do n. 8 do mesmo artigo, seriam aqueles em que alei se limita a indicar a autoridade que poderá ou deverá emanar oregulamento e a matéria que trata.

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3 7. “os regulamentos do governo revestem a forma de decreto regulamentarquando tal seja determinado pela lei que regulamentam, bem como no caso deregulamentos independentes. 8. os regulamentos devem indicar expressa-mente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectivae objectiva para a sua emissão.”

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No mesmo sentido, Freitas do Amaral (2007, p. 160) entendeque os regulamentos independentes ou autônomos são “aquelesregulamentos que os orgãos administrativos elaboram no exercícioda sua competência, para assegurar a realização das suas atribui-ções específicas, sem cuidar de desenvolver ou completar ne-nhuma lei em especial”. Dessa forma, tais regulamentos nãocomplementam qualquer lei anterior, mas estabelecem autonoma-mente a disciplina jurídica que pautará a realização das atribuiçõesespecíficas cometidas pelo legislador aos entes públicos conside-rados. À título de ilustração, nesse ponto Freitas do Amaral cita osregulamentos que as autarquias locais podem emitir no âmbito darealização das suas atribuições, designados regulamentos autár-quicos, exemplificativamente estabelecidos no art. 13º, n. 1, da Lein. 159/1999, de 14 de setembro, com respaldo constitucional noart. 241º 4, da cRP.

o referido autor (idem, p. 191) ressalta que, normalmente,os regulamentos locais são regulamentos independentes, em quea lei habilitante é a que define as atribuições de cada categoria deautarquias locais, assim como o órgão competente para emitir.Nesse sentido, Vital Moreira (2003, p. 187) salienta que o poder re-gulamentar autárquico não dispensa uma habilitação legal, postoque não é inerente à administração autônoma, sendo evidente que“a concessão do poder regulamentar a uma autarquia habilita todosos seus regulamentos, que só tem de invocar a lei que concede opoder regulamentar”.

É cabível mencionar, ainda, os regulamentos regionais,emitidos pelas regiões autônomas com o fim de “regulamentar alegislação regional e as leis emanadas dos órgãos de soberaniaque não reservem para estes o respectivo poder regulamentar”,conforme prevê o art. 227º, n. 1, alínea “d”, da constituição da Re-pública Portuguesa. entretanto, esta não define a forma como devese revestir este ato, cabendo então tal prerrogativa aos estatutospolítico-administrativos das regiões.

Nesse ponto, Freitas do Amaral (2007, p. 189) critica o art. 34º,

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4 “Artigo 241. As autarquias locais dispõem de poder regulamentar próprio noslimites da constituição, das leis e dos regulamentos emanados das autarquiasde grau superior ou das autoridades com poder tutelar.”

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n. 1, do estatuto Político-Administrativo da Região Autônoma dosAçores, e o art. 41º, n. 1, do estatuto Político-Administrativo da re-gião Autônoma de Madeira, os quais, ao estenderem a forma dedecreto legislativo regional aos regulamentos da Assembleia Le-gislativa Regional de adequação das leis gerais provenientes dosórgãos de soberania que não reservem para estes o respectivopoder regulamentar, permitem que os regulamentos regionais sesubtraiam ao disposto no art. 11º, n. 7, por não invocar a lei precedente.

É de bom alvitre citar também os regulamentos institucio-nais que advém de institutos públicos ou associações públicas, apli-cáveis apenas às pessoas que se encontram sob sua jurisdição.

Assim, Freitas do Amaral (2007, p. 161) assevera quedesde a Revisão constitucional de 1982, que introduziu os precei-tos anteriormente descritos, exige-se para a validade de qualquerregulamento independente que ele indique expressamente a lei ouas leis que atribuem competência subjetiva e objetiva para a emis-são do regulamento, ou seja, as leis de habilitação. em virtudedesse fato, o supramencionado autor defende que não podem seremitidos regulamentos independentes diretamente fundados naconstituição, haja vista que o preceito contido no art. 112º, n. 8, de-sautoriza explicitamente regulamentos isentos de fundamento legalprévio, sendo um limite, portanto, o princípio da reserva de lei.Desse modo, para Freitas do Amaral (idem, p. 183), “reconhecerao governo uma competência regulamentar absolutamente inde-pendente equivaleria a tornar (em larga medida) desnecessária aadmissibilidade da emanação de decretos-lei”.

Na mesma linha, Afonso Vaz (1996, p. 58) salienta queexiste sempre uma exigência de conformidade legal, ainda que sóde legalidade formal, isto é, restrita à atribuição legal da competên-cia subjetiva e objetiva para a emissão dos regulamentos, conformese depreende do art. 112º, n. 7. gomes canotilho e Vital Moreira(1993, p. 512) acrescem a esse fato razões de economia constitu-cional, haja vista que, se o governo entender pela criação de dis-ciplina normativa autônoma e originária, deve fazê-lo por meio dosdecretos-leis.

gomes canotilho e Vital Moreira (1993, p. 513-514) susten-tam que a conjugação dos n. 7 e 8 do art. 112º da constituição daRepública Portuguesa demonstra que os regulamentos independentes

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citados no n. 7 são aqueles cuja lei habilitante se restringe a definira competência subjetiva e objetiva para a sua emissão, “em que alei é uma pura lei de reenvio ou de remissão para o regulamento; aía lei é uma pura norma de produção normativa”. Desse modo, osautores ressaltam que tais dispositivos não dão margem para os cha-mados regulamentos autônomos fundados num pretenso poder ori-ginário conferido pela constituição e referidos não à uma lei emparticular, mas à ordem jurídica em geral.

De outra banda, Afonso Queiró, sérvulo correia e Vieira deAndrade sustentam a admissibilidade constitucional de regulamen-tos independentes não derivados nem fundamentados em lei habi-litante anterior não na reivindicação de um campo livre daAdministração à maneira do constitucionalismo monárquico, mascomo a forma da Administração prosseguir com eficiência nos in-teresses públicos, mormente em áreas em que a dinâmica real nãose compadece com os inevitáveis entraves do processo legislativo.

Afonso Queiró (1980, p. 1-19) entende que a constituiçãoda República Portuguesa admite a competência do executivo ela-borar regulamentos independentes, tendo em vista o disposto noart. 199º, alínea “g”: “compete ao governo, no exercício de funçõesadministrativas: [...] g) Praticar todos os actos e tomar todas as pro-vidências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades colectivas”.

sérvulo correia defende os regulamentos independentes apartir do n. 7 do art. 112º da constituição, por entender que o termo“leis” se configura no sentido lato e que este define a competênciasubjetiva e objetiva para a emissão desses regulamentos. o refe-rido autor entende que o vocábulo “leis” tanto pode denotar leis or-dinárias como leis constitucionais, sendo o preceito do art. 199,alínea “g”, definidor da competência objetiva para a edição de re-gulamentos independentes, enquanto o art. 112º, n. 7, combinadocom o n. 6, fundaria a competência subjetiva, aceitando uma nor-mação primária da Administração fora das reservas expressas dosatos legislativos.

Para Afonso Vaz (1996, p. 60) a questão passa não só pelospreceitos constitucionais diretamente ligados à questão, mas tam-bém pela materialidade dogmática da lei na estrutura global norma-tivo-constitucional. Assim, interpretando o art. 112º, n. 6, assevera

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que o constituinte, ao utilizar a expressão regulamentos indepen-dentes, parece admitir um poder normativo primário e autônomoda Administração na observância dos princípios da reserva e daprimazia de lei. entretanto, não parece ser o melhor entendimentoquando se confronta o n. 6 com o n. 7 do mesmo dispositivo legal,haja vista que claramente impõe-se, ao menos, a existência de umalei prévia anterior que defina a competência objetiva (matéria) esubjetiva (órgão) para a emissão do regulamento. Dessa forma,Afonso Vaz (1996, p. 488) exclui o conceito doutrinário rigoroso deregulamentos independentes.

gomes canotilho e Vital Moreira (1993, p. 514) afastam apossibilidade de invocar como fundamento direto e autônomo deum poder regulamentar independente do governo o disposto noart. 199º, alínea “g” da constituição, por primeiro porque “não podeuma atribuição genérica envolver só por si o exercício de determi-nada competência ou a utilização de determinados instrumentosou formas constitucionais” e, por segundo, porque “trata-se de umanorma que obviamente não tem virtualidades para conduzir a umainterpretação restritiva ou correctiva do princípio constitucional daprecedência de lei”.

Na mesma linha, cabral de Moncada (2002, p. 998) en-tende que defender a admissibilidade do regulamento indepen-dente pelo fundamento do art. 199º, anteriormente indicado, comopretende sérvulo correia e Afonso Queiró, levaria a soluções de-sequilibradas no quadro constitucional, posto que a figura do regu-lamento independente apresenta significado e conteúdo distintonuma ordem jurídica como a portuguesa, que admite a competên-cia legislativa normal do governo. Assim, se o governo possui umacapacidade legislativa independente deve usá-la para preencheras lacunas deixadas pelo legislador parlamentar, não havendo mo-tivos para recorrer ao regulamento independente quando “dispõede competência geral”, a reserva de decreto-lei.

Por outro lado, cabral de Moncada (idem, p. 1001) asse-vera que, pelo n. 7 do art. 112º, o regulamento “independente” retirada lei uma definição geral de competências subjetivas e objetivas,o que denota que o grau de dependência em relação à lei é mínimo.essa lei habilitante deve ficar à critério do legislador, que o confor-mará de acordo com sua vontade ou com as características da

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matéria a regular (idem, p. 1002). Dessa forma, como se vê, os re-gulamentos independentes previstos pelo art. 112º tem fundamentolegislativo, mesmo que com densidade mínima. esse fato pode sercorroborado também a partir do art. 266º, n. 2, que estabelece que“os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à cons-tituição e à lei […]”.

Assim, podemos considerar que os regulamentos indepen-dentes, na forma com que se encontram delineados na constitui-ção Portuguesa, não se configuram na sua forma clássica, absolutade definição, haja vista que há a imposição de uma lei habilitadora,cuja preterição acarreta a inconstitucionalidade formal do diploma.Nessa perspectiva, um regulamento independente sem essa lei ha-bilitadora violaria a separação de poderes, haja vista que o governoinovaria a ordem jurídica, função precípua da lei.

limites

o verdadeiro limite da emissão de regulamentos indepen-dentes pela Administração consiste no princípio da legalidade, oqual decorre, na constituição Portuguesa, em geral, dos arts. 2º e266º, n. 2. esse princípio é traduzido a partir de duas dimensões,quais sejam: a preferência de lei e a reserva de lei.

A preferência de lei veda à Administração contrariar o Di-reito vigente, preterindo o ato administrativo à este, no caso de con-flito. A reserva de lei, por sua vez, exige que a atuaçãoadministrativa tenha sempre fundamento numa norma jurídica, de-sempenhando não só uma função excludente, mas também umafunção positiva de reforço do princípio da legalidade da administra-ção (MIRANDA, 2004, p. 219). Dessa maneira, essa dimensãopode se projetar de duas formas, como salienta Marcelo Rebelo desousa (1999, p. 157): constitui precedência de lei, quando exprimirnecessária anterioridade do fundamento jurídico-normativo da atua-ção administrativa; por outro lado, constitui uma reserva de densi-ficação normativa, quando exprimir a necessidade “de o mesmofundamento jurídico-normativo possuir um grau de pormenorizaçãosuficiente para permitir antecipar adequadamente a actuação ad-ministrativa em causa”.

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entretanto, a preferência de lei, hodiernamente, exorbita oâmbito da legalidade em sentido estrito, haja vista que a lei deixoude ser o único parâmetro jurídico da atividade administrativa, sendo,na verdade, o bloco de legalidade, o qual inclui, até mesmo, os re-gulamentos administrativos, passando a assegurar-se também aintangibilidade de determinados atos da própria Administração. To-davia, embora atenuado esse fundamento não se dissolveu, vistoque pode ser imposta sua observância de atos normativos emitidospela própria Administração. Nesse ponto, Marcelo Rebelo de sousa(idem, p. 162) salienta que a preferência de um regulamento sobreum ato não normativo da Administração decorre do fato de que oprimeiro, em virtude de ser diretamente habilitado por lei, apresentauma legitimidade democrática acrescida em relação ao segundo.

No que tange à reserva de lei como precedência de lei, aquestão de se saber em que matérias a atuação da Administraçãocarece de uma prévia habilitação legal não encontra solução cabalno texto constitucional, embora a constituição Portuguesa estabe-leça, explícita ou implicitamente, reservas de lei setoriais em deter-minadas matérias. Na verdade, como ressalta Marcelo Rebelo desousa (idem, p. 166),

a garantia da previsibilidade da actuação administrativa postulaapenas a existência, prévia à actuação administrativa, de umanorma jurídica habilitante dotada de publicidade adequada (re-serva de norma jurídica), mesmo que emanada no exercício dafunção administrativa, e não necessariamente uma reserva de lei.

A maior parte da doutrina, representada aqui por Jorge Mi-randa, Freitas do Amaral e gomes canotilho, sustenta a necessi-dade de uma reserva total de lei, nos termos em que nenhum atoda Administração, em qualquer esfera de sua atividade, poderiadeixar de se fundamentar na lei, tanto que o n. 7 do artigo 112º, jácitado, exige a menção de um fundamento legal específico paratodo e qualquer regulamento.

Na mesma linha, Vital Moreira (2003, p. 189) também men-ciona que os regulamentos independentes têm de respeitar a re-serva de lei, não podendo, assim, incidir em matérias que sejamreservadas à competência legislativa da AR ou à competência da

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lei em geral, salientando, inclusive, que tal restrição não pode sersuperada pela própria lei por meio de uma autorização de interven-ção regulamentar ao invés da lei. Assim, os referidos regulamentosse sujeitam ao princípio da legalidade, não existindo o exercíciodesse poder regulamentar sem fundamento jurídico numa lei ante-rior (cANoTILho; MoReIRA, 1993, p. 513).

Dessa forma, a reserva de lei abrangeria todos os setoresda atividade administrativa, tais quais os relativos ao funcionamentointerno da Administração, de sua estruturação, da criação de pes-soas coletivas públicas, serviços públicos e orgãos administrativos,o procedimento administrativo, dentre outros.

Desse modo, qualquer intervenção de orgão administrativoperante a lei só pode dar-se à título secundário, derivado ou exe-cutivo, nunca com critérios próprios ou autônomos de decisão (MI-RANDA, 2004, p. 221).

entretanto, como foi dito, a reserva de lei se projeta tambémcomo reserva da densificação normativa. Nesse ponto, Marcelo Re-belo de sousa (1999, p. 75) assevera que a reserva de lei exigeque a norma habilitante da atuação administrativa tenha certa den-sidade, capaz de pormenorizar os pressupostos ou meios de atua-ção da Administração. No caso do regulamento, a lei deve definirao menos a competência objetiva e subjetiva para sua emissão,cabendo aquele a densificação normativa da atuação administrativaconcreta, tendo em vista o disposto no art. 112º, n. 7, da constituiçãoda República Portuguesa.

Dessa forma, o princípio da legalidade, nas suas duas di-mensões, convoca o bloco de legalidade sempre como fundamentoe limite da atuação administrativa, existindo certos aspectos estru-turais que são necessariamente vinculados.

Nesse sentido, no que se refere aos regulamentos indepen-dentes na constituição da República Portuguesa, para ocorrer suaemissão deve haver sempre o respeito ao princípio da legalidade,tanto na sua vertente da preferência de lei quanto da reserva delei. Ao revés, a preterição da lei habilitadora enseja a inconstitucio-nalidade formal do diploma, também por clara afronta ao princípioda separação de poderes, posto que, sem lei anterior, haveria ino-vação jurídica, função exclusiva da lei.

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conclusão

Isso posto, pudemos entender que a leitura atual da separaçãode poderes não permite uma interpretação ortodoxa em que os ramosdo Legislativo, executivo e Judiciário sejam colocados em uma situa-ção estanque, sem interpenetrações ou interferência de um poder nafunção de outro poder. Desse modo, verificamos que a Administraçãopode emitir regulamentos no exercício de suas funções.

No tocante ao regulamento independente, vimos que esteprescinde de lei anterior para ser emitido. Analisando-se sua incidên-cia no plano constitucional brasileiro, entendemos que este se en-contra contemplado no art. 84, VI, da constituição da RepúblicaFederativa do Brasil, ou seja, pode ser emitido pelo chefe do exe-cutivo nos casos de extinção de função ou cargo público vago e deorganização da Administração Federal sem aumento de gasto, nemextinção e criação de cargo, não podendo essa possibilidade ser es-tendida a quaisquer outras matérias de competência do chefe doexecutivo. Desse modo, os decretos do Presidente que não versa-rem sobre as aludidas matérias deverão obedecer a estrita reservalegal, sendo-lhes vedado inovar primariamente no ordenamento, sobpena de violação do princípio de separação de poderes.

De outra banda, analisando-se a incidência dos regulamen-tos independentes na constituição da República Portuguesa, pu-demos constatar que, da forma com que estes se encontramdelineados na constituição, não se configuram na sua forma clás-sica, absoluta de definição, posto que há a imposição de uma leihabilitadora, cuja preterição enseja a inconstitucionalidade formaldo diploma. Assim, um regulamento independente sem essa lei ha-bilitadora violaria a separação de poderes, haja vista que o governoinovaria na ordem jurídica, função precípua da lei.

concluímos também que o verdadeiro limite da emissão deregulamentos independentes pela Administração consiste no prin-cípio da legalidade, nas suas duas dimensões, quais sejam: a pre-ferência de lei e a reserva de lei.

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referÊncias

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