Os Gêneros Desgenerizados (Adrián Pablo Fanjul)

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Os Gêneros Desgenerizados (Adrián Pablo Fanjul)

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  • 46 Bakhtiniana, So Paulo, 7 (1): 46-67, Jan./Jun. 2012.

    Os gneros desgenerizados. Discursos na pesquisa sobre espanhol no Brasil / The ungenred genres. Discourses in the research about the

    Spanish language produced in Brazil

    Adrin Pablo Fanjul*

    RESUMO

    Em um corpus de comunicaes apresentadas em congressos de mediano porte

    realizados no Brasil e referidos lngua espanhola, selecionamos aquelas que abordam

    problemticas de gneros denominados como discursivos e/ou textuais, e verificamos que a grande maioria delas trata tambm de assuntos de ensino. Para fins

    analticos, observamos quatro questes nessas comunicaes: que articulao terica

    embasa o trabalho, se ele considera ou no a especificidade de uma lngua estrangeira,

    se inclui algum gnero em especial como objeto da discusso e, nos casos que o

    incluem, como esse gnero ou os enunciados que o representam so relacionados com

    outros enunciados ou com diferentes instncias do discurso. A anlise apontou

    desconsiderao de propriedades que, nos referenciais tericos aludidos, aparecem

    como centrais na problemtica de gneros, juntamente com um abandono da

    materialidade lingustico-discursiva como lugar de indagao.

    PALAVRAS-CHAVE: Gneros discursivos; Lngua espanhola no Brasil; Gnero e

    diversidade lingustica

    ABSTRACT

    In a communication corpus presented in middle-sized congresses in Brazil focusing the

    Spanish language, we have selected those which approach genre issues designated

    discoursive and/ or textual. We found that most of them seem to deal with teaching issues. We investigated four issues in those oral presentations: which theoretical

    articulation is the basis for the work, if it considers or not the peculiarities of a foreign

    language, if it includes a specific genre as an object for discussion and, in those cases

    which include it, how this genre or the utterances which represent it relate with other

    enunciations or different discourse features. We found a disregard for properties which,

    within the theoretical frameworks mentioned, seem to be central in genre issues, along

    with an abandonment of the linguistic-discursive materiality as a matter for studies.

    KEYWORDS: Discourse genres; The Spanish language in Brazil; Genre and linguistic

    diversity

    * Professor da Universidade de So Paulo USP, So Paulo-SP, Brasil; pesquisador do CNPq;

    [email protected]

  • Bakhtiniana, So Paulo, 7 (1): 46-67, Jan./Jun. 2012.

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    1 Diversos momentos para a lngua espanhola no campo cientfico brasileiro

    Reiteradas vezes aparecer neste artigo o termo campo, includo neste

    primeiro subttulo, e comeamos esclarecendo que o empregaremos com o valor que

    ganha na teorizao construda a partir de Pierre Bourdieu, por exemplo, em

    BOURDIEU (1989), como espao estruturado de posies em relao com uma prtica

    social. Em boa medida, os fenmenos dos quais este artigo tenta dar conta tm a ver

    com relaes e descontinuidades entre o campo cientfico e o campo educacional,

    sobretudo com deslocamentos de objetos e conceitos de um campo para o outro,

    processo necessariamente conflituoso. Comearemos com uma informao muito

    sinttica, que no pretende ser um histrico, sobre lugares que o espanhol foi ocupando

    como objeto do campo cientfico no Brasil, mais especificamente na pesquisa

    desenvolvida na universidade. J nesta sntese se visualizar que esses lugares tm sido

    afetados, como no podia ser de outro modo, pela circulao dessa lngua em outros

    campos.

    At os anos 90, a presena da lngua espanhola nos espaos acadmicos e de

    pesquisa no pas registrava um perfil fundamentalmente instrumental, ditado pelas

    funes a ela atribudas. Estas eram viabilizar a leitura literria por parte do pesquisador

    ou do crtico e formar um professor para um ensino que, com exceo de estados como

    o Rio de Janeiro, onde a insero da lngua nos sistemas escolares pblicos favoreceu

    reflexes especficas, teria lugar principalmente no mbito das escolas de idiomas e

    secundariamente em alguns colgios privados, onde predominavam modelos concebidos

    para um ensino comunicativo, pensados para a lngua como recurso econmico ou

    turstico. Os trabalhos de ps-graduao se dedicavam quase exclusivamente s

    literaturas nessa lngua, sendo quase inexistente a reflexo lingustica sobre o espanhol

    nesse mbito. Como explicam CELADA e GONZLEZ (2000) em um texto que

    recomendamos a todo aquele que quiser ampliar, para aquela etapa, a apertada sntese

    que aqui fazemos, predominava uma abordagem da lngua espanhola baseada no

    contraste mais superficial, termo a termo, herdada ainda de instrumentos dos anos 40,

    ou direcionada s metodologias e procedimentos didticos para as modalidades de

    ensino que j mencionamos como as de maior visibilidade na poca.

  • 48 Bakhtiniana, So Paulo, 7 (1): 46-67, Jan./Jun. 2012.

    Nos ltimos anos da dcada de 1990 e nos primeiros do sculo XXI, uma srie

    de fatores combina-se para que esse lugar (ou falta de lugar) da lngua espanhola na

    pesquisa brasileira entre em um processo de mudana e diversificao, que continua

    hoje, e no qual se observam diversas novas tendncias junto com recorrncias de etapas

    anteriores. O primeiro a levar em conta para compreender essas mudanas um fator

    externo academia e que se inicia nos campos econmico e poltico: os processos de

    integrao regional que, antes e depois de sua institucionalizao no Mercosul, do

    lugar a inmeros intercmbios de bens culturais que determinam uma circulao

    qualitativamente diferente para as lnguas na regio. Nesse contexto, no campo

    cientfico, particularmente no que poderamos considerar como seu subcampo

    acadmico, o interesse pelas relaes entre as lnguas espanhola e portuguesa ganha

    uma crescente especializao. Especificamente nos estudos lingusticos, essa relao

    comea a ser abordada a partir de vertentes de forte desenvolvimento na universidade

    brasileira e de alguns pases vizinhos: teorias sobre a aquisio de inspirao gerativista,

    aplicaes de diversas perspectivas nos estudos discursivos e enunciativos e, em menor

    medida, mas tambm marcando uma crescente presena, estudos de gramtica

    descritiva. So produzidos e divulgados, dentre outros, trabalhos de pesquisa sobre a

    aquisio do espanhol por brasileiros (GONZLEZ, 1994), sobre comparaes entre o

    funcionamento do portugus brasileiro e do espanhol (GROPPI, 1997), sobre

    comparaes entre as discursividades relacionadas a ambas as lnguas (SERRANI,

    1994; SANTANNA, 2000; FANJUL, 2002), ou sobre aspectos da subjetividade do

    brasileiro mobilizados pelo contato com o funcionamento do espanhol (CELADA,

    2002), todos abrindo caminhos de interrogao que, graas contribuio de novos

    pesquisadores, se mostram produtivos at hoje.

    Paralelamente, e como parte do mesmo contexto de novas relaes entre lnguas

    e saberes nesta regio do mundo, aumenta qualitativamente, no referido perodo, a

    presena da lngua espanhola no campo educacional brasileiro. crescente tendncia a

    sua incluso na grade do ensino regular no mbito privado vem somar-se, em 2005, a lei

    federal 11.161, que d um prazo de cinco anos para que todas as escolas de ensino

    mdio a tenham como disciplina de oferta obrigatria1. Um processo anlogo, mas

    muito mais lento, acontece em relao ao portugus brasileiro nos pases vizinhos,

    1 Como anlise da peculiar maneira como a Lei 11.161 determina a obrigatoriedade do espanhol na escola

    brasileira, recomendamos a leitura de Rodrigues, 2010.

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    sobretudo na Argentina2. Essa presena do espanhol no campo educacional requer,

    como no podia deixar de ser, a formao de professores e a consequente ampliao de

    vagas nas instituies de ensino superior. Desse modo, ela comea a impactar

    fortemente o campo acadmico e de pesquisa, entrando em interao, no isenta de

    contradies, com as tendncias em desenvolvimento nesse ltimo, s quais nos

    referimos no pargrafo anterior.

    Por uma parte, ganha impulso a reflexo na rea de polticas lingusticas,

    fundamentalmente focalizando a anlise de situaes derivadas da prpria implantao

    do espanhol nos sistemas escolares e do embate entre diversas polticas para essa lngua

    no mundo e na regio (LAGARES, 2010). Por outra parte, as prprias tendncias

    dominantes, no pas, na pesquisa e no planejamento da educao em linguagens,

    comeam a ter efeitos nos novos espaos acadmicos que se abrem para a lngua

    espanhola. sobre uma problemtica que vemos relacionada a este ltimo fator que

    trata este artigo.

    2 Dois sintomas e uma indagao

    Acompanhamos com muita ateno a divulgao da produo de conhecimento

    relativa ao espanhol no Brasil, tendo participado, pelo menos nos ltimos anos, dos

    principais eventos onde essa produo divulgada, e tendo acompanhado uma boa parte

    do que fica registrado em pginas e em publicaes. No desconhecemos que, em boa

    medida, as tendncias que ali se observam so perceptveis tambm nos mbitos de

    trabalho com outras lnguas estrangeiras e inclusive com o portugus, mas neste artigo

    nosso objeto de observao sero estudos sobre o espanhol.

    Preocupa-nos que, recorrentemente, so desatendidos, em muitos trabalhos, no

    apenas o funcionamento lingustico, mas tambm a configurao textual e a prpria

    discursividade. Embora nessas elaboraes sejam ecoados legtimos avanos na

    compreenso das complexas relaes entre linguagem, histria e sociedade, a

    especificidade disciplinar tende a ser abandonada sem que por isso sejam assumidos

    com suficincia referenciais tericos de outras cincias humanas e sociais.

    2 A Lei 26.468 estabeleceu, na Argentina, em 2010, a obrigatoriedade da oferta de portugus no ensino

    mdio, empregando uma formulao bastante parecida com a brasileira para o espanhol e dando um prazo

    de 8 anos.

  • 50 Bakhtiniana, So Paulo, 7 (1): 46-67, Jan./Jun. 2012.

    Dois sintomas desse processo, que no vemos como transdisciplinar mas como

    de um certo aplainado disciplinar, tm despertado nossa ateno. Por uma parte,

    observamos um uso de terminologia e uma referncia a conceitos construdos nas

    cincias sociais, que muitas vezes aparecem reduzidos ao senso comum. No trataremos

    aqui dessa problemtica, que deveria ser objeto de outro trabalho. Por outra parte,

    encontramos aquilo que motivou a indagao qual se refere este artigo: abordagens

    terico-prticas do que se denomina gneros discursivos e/ou gneros textuais que

    negligenciam as dimenses textual e discursiva, inclusive se consideradas a partir de

    qualquer um dos referenciais tericos invocados nessas produes.

    Na tentativa de melhor compreender e dar preciso quilo que nos preocupa e, a

    partir dessa compreenso, argumentar para realizar uma contribuio vlida, fizemos

    um levantamento nos anais de dois eventos de significativa convocatria para a rea,

    realizados em 2010, de todas as comunicaes que abordassem, de diversas maneiras, a

    problemtica dos gneros do discurso. Na seo seguinte descrevemos os objetivos e a

    metodologia desse levantamento, para passar, depois, para a anlise dos resultados

    obtidos.

    3 Nossa procura e seus procedimentos

    Nossa indagao partia de um contato prvio com o que constituiria nosso

    corpus e de inquietaes relativamente identificadas, pelo qual nos demos objetivos em

    relao a quatro problemticas que indagaramos nas produes a serem analisadas: a

    delimitao do referencial terico, a ateno s relaes dialgicas e interdiscursivas

    para os enunciados considerados ou ainda para caracterizao de determinados gneros,

    a ateno a aspectos da configurao textual e a considerao da especificidade de ter-se

    um universo lingustico-cultural estrangeiro como espao de trabalho. Como se ver, a

    anlise que desenvolveremos a partir do prximo item percorrer esses quatro aspectos.

    Procuramos congressos de alcance nacional com a maior presena possvel de

    pesquisas em desenvolvimento referidas lngua espanhola no Brasil, apresentadas por

    pesquisadores em formao, de iniciao cientfica, mestrado ou doutorado e/ou de

    professores j atuantes nas universidades. Consideramos, ento, os anais dos dois

    maiores eventos desse tipo acontecidos em 2010, dos quais tambm tnhamos

  • Bakhtiniana, So Paulo, 7 (1): 46-67, Jan./Jun. 2012.

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    participado: o VI Congresso Brasileiro de Hispanistas, organizado pela Associao

    Brasileira de Hispanistas, que teve lugar em Campo Grande entre 31/08 e 03/09/10

    (ESTEVES e ZANELATTO, 2011), e o I Congresso Internacional de Professores de

    Lnguas Oficiais do Mercosul, organizado por diversas associaes de professores,

    dentre elas as de espanhol, dos estados brasileiros mais povoados, e que aconteceu em

    Foz do Iguau, de 19 a 22 de outubro de 2010 (FANJUL e MOREIRA, 2011). Foi

    importante, ainda, na nossa deciso, que se tratasse de congressos em que predominasse

    a apresentao de resultados de pesquisa, mesmo que ela fosse de um nvel muito

    inicial, evitando aqueles trabalhos que se apresentam apenas como relatos de

    experincia e que no seriam de utilidade para nossos objetivos.

    Do total de 259 trabalhos publicados nos dois congressos3, levantamos

    primeiramente aqueles que anunciassem incluir entre seus objetos de estudo, com maior

    ou menor centralidade, tanto a problemtica dos gneros de modo amplo quanto a

    abordagem de algum gnero em especial, identificado como tal (por exemplo, gnero

    coluna de opinio, gnero aviso de emprego, etc.). Consideramos a respeito tanto as

    comunicaes que empregavam o termo gneros do discurso (ou discursivos) como

    gneros textuais (ou de texto), e tambm as que alternavam ambas as

    denominaes. Ficamos com um total de 14 comunicaes4.

    Tivemos o critrio de abordar essas comunicaes como um corpus que seria

    observado a partir de assuntos transversais a todas elas. No individualizaremos

    nenhum caso e, para tanto, no faremos citao. Nosso propsito a discusso de

    tendncias que vemos relacionadas tenso entre campos que explicamos na primeira

    seo deste artigo, no contexto de uma transferncia entre pesquisa e ensino que est em

    desenvolvimento e no pode ser reduzida a nenhum caso em especial. Por isso, embora

    a transcrio de algumas formulaes e sua anlise pudessem enriquecer nossa

    exposio, preferimos prescindir dessa possibilidade neste trabalho. Nosso

    procedimento foi determinar grandes variveis e, depois de uma ponderao

    3 Cada um dos congressos teve muito mais comunicaes, aproximadamente 250 um e 350 o outro, mas

    esse o total dos que enviaram o texto da comunicao para publicao. 4 Levando em conta a proximidade dos dois congressos, verificamos que no se repetissem trabalhos dos

    mesmos autores sobre a mesma pesquisa em andamento. Cabe esclarecer tambm que, no congresso de

    Foz do Iguau, havia trabalhos de autores de pases vizinhos e/ou referidos a outras lnguas, os quais no

    foram considerados porque nossa reflexo tem como objeto os estudos sobre lngua espanhola no Brasil.

  • 52 Bakhtiniana, So Paulo, 7 (1): 46-67, Jan./Jun. 2012.

    quantitativa dos trabalhos em torno delas, chegar a uma reflexo qualitativa que no

    precisasse analisar as expresses singulares.

    A primeira constatao, antes mesmo de estabelecer qualquer outra

    diferenciao, foi que apenas um dos 14 trabalhos no tratava de situaes de ensino.

    Todos os outros 13 se propunham como pesquisas para o ensino (em diferentes nveis e

    modalidades) ou a partir dele.

    Com base nos objetivos enumerados no comeo deste item, as interrogaes que

    lanamos sobre as produes analisadas foram:

    a) O referencial terico acolhe, em torno dos gneros, elaboraes e conceitualizaes

    de procedncia terica heterognea? Quando assim, ele evidencia percepo dessa

    heterogeneidade?

    b) Nas propostas nas quais se focaliza um determinado gnero ou um grupo de

    enunciados atribudos a um gnero, com que classe(s) de objetos ou de fenmenos so

    estabelecidas relaes?

    c) Quais aspectos da materialidade verbal so considerados, de fato, na caracterizao

    dos gneros ou na atribuio de enunciados a eles?

    d) Naqueles trabalhos que tratam do ensino (como j informamos, a imensa maioria, 13

    de 14), so levados em conta a entrada em contato com a lngua segunda/estrangeira e a

    sua materialidade? Se sim, de que modos?

    Alm das regularidades que encontramos como resultados para essas

    indagaes, a observao sistemtica das produes nos mostrou a recorrncia de outros

    dois fenmenos que integraremos na nossa anlise. Por uma parte, nas argumentaes

    de justificativa, um tipo de modalizao contrastiva para a introduo do que

    representado como metalinguagem, sobretudo como gramtica. Por outro lado, uma

    no diferenciao entre gnero e enunciado que chega a tomar forma de expresso

    de identidade em poucas das produes, mas que consideramos significativa, como

    veremos no item 5, devido orientao argumentativa com a qual se relaciona,

    perceptvel em muitos mais casos.

    Nas seguintes sees, abordaremos sucessivamente as observaes realizadas a

    partir das quatro perguntas que formulamos; cada seo corresponder a uma delas.

    Propomo-nos que nosso trabalho no se limite observao crtica do corpus que

    delimitamos, mas tambm que contribua para examinar a complexidade dos problemas

  • Bakhtiniana, So Paulo, 7 (1): 46-67, Jan./Jun. 2012.

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    que efetivamente se atualizam para todo pesquisador que tente pr em relao

    categorias classificatrias para o discurso, como a de gnero, com a questo da

    diversidade e alteridade lingustica. E dado que uma boa parte do corpus que

    analisaremos composta por trabalhos que se propem a contribuir com as prticas de

    ensino, encerraremos o artigo tentando, tambm, uma reflexo direcionada educao

    lingustica.

    4 O amlgama sobre a heterogeneidade

    Nos referenciais tericos de quase todos os trabalhos lidos so mencionadas e,

    em diferentes graus, comentadas ou resenhadas, fontes que podemos reconhecer como

    de dois acervos diferentes, pelo qual consideramos pertinente observar a partir de quais

    aspectos produzida sua articulao. Por uma parte, referido o conjunto de estudiosos

    que, nas ltimas dcadas, tem recebido a denominao de escola de Genebra, dentre

    outros, alguns que citaremos ao longo deste artigo, como Jean-Paul Bronckart, Joaquim

    Dolz e Bernard Scheuwly. Por outra, o que poderamos denominar como a recepo da

    obra do Crculo de Bakhtin, em alguns casos mediante a citao ou parfrase do prprio

    terico russo, em outros por meio da divulgao efetuada por pesquisadores posteriores.

    Preferimos falar de dois acervos e no empregar outros termos que

    significariam delimitaes mais ntidas, como vertentes ou tradies, porque

    enquanto poderamos reconhecer os genebrinos como uma corrente que hoje atua com

    uma identidade relativamente delimitada em um campo j constitudo dos estudos

    discursivos, a recepo dos trabalhos do Crculo de Bakhtin, como adverte Bubnova

    (2009, p.5-6), deu-se no passado e d-se hoje a partir de inquietaes que no

    necessariamente guardam continuidade com os contextos histricos e epistemolgicos

    da sua produo. De muitos e diversos lugares se dialoga hoje com essa complexa

    construo terica, sendo inevitvel que esse dilogo se estabelea a partir das nossas

    polmicas atuais, como desde j assumimos que acontecer tambm neste trabalho

    quando abordarmos a teorizao de Bakhtin sobre gneros. Alm disso, o conjunto ao

    qual hoje acedemos dessa obra nos aparece como relativamente descontnuo, no apenas

    devido ao hiato que nos separa dele, mas tambm a questes de traduo e ao carter

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    inconcluso de alguns dos textos que conhecemos, fatores que determinam certa

    oscilao terminolgica5.

    So compatveis esses dois acervos? Cremos que h como se estabelecer, entre

    eles, confrontaes instigantes, relaes de convergncia e divergncia, que ensejem

    articulaes produtivas para a reflexo e a pesquisa, embasadas na constatao de que

    no se trata de mesma coisa, nem de continuidade ou herana. Os prprios genebrinos

    o revelam em maior ou menor grau. Bronckart (2007, p.141-143), por exemplo,

    explicita claramente diferenas com Bakhtin a respeito do tipo de relao entre

    atividade humana (o autor usa o termo formas de atividade) e gneros do discurso.

    Alm disso, o desenvolvimento que ele realiza, no conjunto da obra referida, dos

    conceitos de gneros de texto e de aes de linguagem evidencia um foco no plano

    cognitivo que se distingue no apenas da obra bakhtiniana, mas tambm dos interesses e

    dos interrogantes que marcaram sua recepo na teoria literria e nos estudos

    discursivos6, centrados na heterogeneidade de vozes no discurso e na sua relao com as

    subjetividades e com a histria.

    Essa diferente implantao nas cincias humanas e da linguagem, combinada

    com a orientao privilegiada para o estudo da aquisio da linguagem e de sua

    pedagogia que se percebe na produo da corrente de Genebra, so visveis tambm, do

    nosso ponto de vista, nas suas elaboraes em torno dos gneros. significativa, a

    respeito, a identificao dos gneros com modelos, diferentemente da denominao

    tipos, que predomina nas tradues de Bakhtin. Assim, em Schneuwly e Dolz (1999,

    p.7), os gneros de linguagem so caracterizados como modelo comum e como

    representao integrante, com um papel relevante na apropriao das prticas de

    linguagem pelo sujeito aprendiz. Ainda dentro da reflexo sobre cenrios de ensino e

    aprendizagem, h pesquisadores que advertem diferenas entre a perspectiva que

    avaliam como bakhtiniana e a da escola que estamos considerando. Rojo (2008, p.93-

    99), por exemplo, prope e analisa tenses que resultam da articulao entre ambas,

    5 A respeito, vejam-se, por exemplo, as observaes feitas, com diferentes propsitos, por Fiorin (2006,

    178-179) e Bronckart (2007, 143) a respeito do conceito de texto em Bakhtin. 6 Sobre diferentes aspectos dessa recepo so esclarecedores os trabalhos de Fiorin (2006) e de Gregolin

    (2006).

  • Bakhtiniana, So Paulo, 7 (1): 46-67, Jan./Jun. 2012.

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    vendo na segunda o risco de ensejar uma abordagem pedaggica prescritiva,

    precisamente pela concepo do gnero como modelo7.

    Reiteramos que no vemos obstculo para que uma proposta de pesquisa integre,

    no seu referencial terico, a discusso dessas perspectivas, avaliando at que ponto cada

    uma delas pode contribuir para a formulao do seu problema e objetivos, ou para

    determinar seus procedimentos, desde que se evidencie reconhecimento e percepo da

    sua diversidade e descontinuidade. Chega, ento, o momento de dar conta do que

    encontramos a respeito nos trabalhos que constituem o corpus que delimitamos.

    Um dos 14 textos faz referncia somente a um trabalho de Bakhtin, os outros 13

    incluem menes e/ou citaes dos dois acervos referidos nos pargrafos anteriores.

    Desses 13, em 4 casos registramos observaes que mostram que se percebem

    diferenciaes entre eles, ou pelo menos uma localizao distinta no campo dos estudos

    da linguagem, ou das relaes entre linguagem e sociedade. Nos outros 9, a indistino

    total. Em enumeraes ou em sequncia no interrupta aparecem tanto os trabalhos do

    Crculo de Bakhtin quanto de todos os autores j mencionados ou outros da mesma

    linha, em muitos casos, referidos indiretamente por outros autores. Em aplanamentos

    nos quais todas essas heterogneas reflexes pareceriam ter sido historicamente

    produzidas para fundamentar a importncia dos gneros (categoria definida sem

    conflito nem matizes) no ensino, entra tambm a meno de textos de gnero e

    esfera completamente diferentes, como os documentos oficiais que norteiam o ensino

    no pas, fundamentalmente as Orientaes Curriculares Nacionais (MEC/SEB, 2006).

    Mesmo levando em conta as limitaes de espao que impe o formato

    estabelecido para comunicaes em atas de congressos, a extenso desse resultado

    evidencia a pouca ateno ao embasamento terico, ou a pouca relevncia atribuda

    construo desse embasamento na tarefa do pesquisador. Poderamos pensar que essa

    carncia se relaciona a escolhas prticas, que priorizam a aplicao de modelos ou a

    passagem direta para a reflexo sobre os objetos de pesquisa. Nas prximas sees,

    7 Interessa-nos deixar claro que no vemos relao necessria entre a caracterizao do gnero, nem a de

    qualquer outra categoria, e o carter mais ou menos prescritivo das prticas pedaggicas nas quais essa

    categoria se insere. Por exemplo, que um sociolinguista considere que em determinado espao social h

    uma lngua modelar no quer dizer que no possa promover um ensino que desestabilize esse carter modelar e que desafie o status quo das relaes entre lnguas nesse espao. O reconhecimento e a anlise

    crtica da existncia de um modelo no igual a sua reproduo irreflexiva.

  • 56 Bakhtiniana, So Paulo, 7 (1): 46-67, Jan./Jun. 2012.

    porm, veremos como o desenvolvimento dos trabalhos, na sua maioria, afasta-se, de

    modo notvel, do tratamento proposto para o discurso por qualquer um dos acervos.

    5 Do enunciado aos exteriores. Dialogismo?

    Em 10 dos 14 trabalhos analisados, so apresentados ou descritos enunciados

    especficos, enquadrveis em algum gnero, que foram objeto de uma indagao ou de

    um planejamento didtico. Em 7 desses 10 trabalhos, especificamente no seu

    desenvolvimento explicativo, observamos uma passagem quase direta do enunciado

    singular a uma realidade extradiscursiva comentada sem qualquer referncia a

    propriedades mais ou menos generalizveis dos enunciados em questo. Em

    consequncia, essa passagem se faz sem estabelecer relaes de aliana e contestao

    entre o enunciado e outros enunciados, nem de confrontao entre o pretendido gnero e

    outros. O dialogismo, termo ritualmente repetido nos pargrafos de referencial

    terico, completamente ignorado na prtica.

    Concordamos com Machado (2005, p.152) em que a teorizao dos gneros em

    Bakhtin considera no a classificao das espcies, mas o dialogismo do processo

    comunicativo. Por isso, no nos parece coerente com essa base terica pular do

    exemplar da espcie diretamente para a realidade, seja que por tal se entenda o

    contexto socio-histrico ou a situao de ensino, sem interrogar, para tanto, as relaes

    nas quais o enunciado se insere em uma esfera da atividade humana e da comunicao:

    Todo enunciado deve ser analisado, do incio, como resposta aos

    enunciados anteriores de uma esfera dada (o discurso como resposta

    tratado aqui em um sentido mais amplo): refuta-os, confirma-os,

    completa-os, neles se baseia, e supondo-os conhecidos, de alguma

    maneira os leva em conta (BAJTIN, 2008, p.278).8

    Ecoam, em quase todos os trabalhos da mostra colhida, como em muitos outros

    que ouvimos e lemos em congressos e seminrios, afirmaes sobre a necessidade de

    atender pluralidade / multiplicidade de vozes, polifonia e aos discursos outros.

    8 Traduo nossa para o portugus. De modo geral, para esse texto de Bakhtin, empregaremos aqui a

    referida edio em espanhol, traduzida diretamente do russo. A grafia espanholizada Bajtn a que se usa nessa edio. Consultamos, tambm, a edio brasileira traduzida do francs por Maria E. Galvo G.

    Pereira (BAKHTIN, 1997).

  • Bakhtiniana, So Paulo, 7 (1): 46-67, Jan./Jun. 2012.

    57

    So sinais de uma filiao dominante, no campo acadmico, a concepes sobre a

    relao entre linguagem, sujeitos e sociedade que, de diferentes maneiras, questionam a

    unicidade do sujeito falante e a imanncia do texto, e nas quais nos inclumos. Mas sua

    repetio tambm sinal de uma certa automatizao, de que comeam a transformar-se

    em meras frmulas de inscrio em uma discursividade, com escassa relao com as

    prticas efetivas que acompanham. Apesar dessa repetio, como vemos, em 70% das

    comunicaes que assumem um enunciado como objeto, no h qualquer tentativa de

    procurar, nele, discursos alheios, semiocultos e com diferentes graus de alteridade, ou

    sulcos que representam ecos longnquos (BAJTIN, 2008, p.2809) da alternncia dos

    sujeitos na interao. E nos 30% restante, embora se estabeleam relaes

    interdiscursivas10

    , elas no ganham centralidade nos objetivos nem na anlise de

    resultados.

    Precisamente em relao ao dialogismo e a conceitos prximos registramos,

    ainda, em alguns textos da amostra, um fenmeno que percebemos tambm em outras

    produes que no fazem parte das que aqui observamos sistematicamente: um

    deslocamento para valores que esses termos poderiam ganhar no campo educacional,

    sobretudo entre docentes ou estudiosos da Educao que no se relacionam s cincias

    da linguagem. Com efeito, dialogismo, pluralidade de vozes ou palavra do outro

    so ressignificados como possveis qualidades do cenrio de ensino/aprendizagem e

    suas prticas: que o aluno tenha a possibilidade de expressar-se criticamente, de

    contestar, ou de conhecer diferentes vises e perspectivas em torno de algum assunto. E

    os termos so transferidos para essa carga axiolgica positiva sem qualquer marca que

    advirta que se estaria realizando um deslocamento de seu valor e de seu funcionamento,

    como se de fato continuasse falando-se da mesma coisa. A heterogeneidade do discurso

    deixa de ser constitutiva de todo enunciado para passar a ser vista como um trao

    distintivo de certas prticas que precisariam ser estimuladas em prol de um modelo de

    ensino ou, inclusive, de formao cidad.

    Essa axiologizao positiva, eufrica, atinge um extremo em 4 casos da nossa

    amostra, que primeiramente chamaram nossa ateno por percebermos que se referiam

    aos enunciados individuais dos quais tratavam como enunciado ou gnero

    9 Nas duas citaes deste perodo, traduo nossa.

    10 Assumimos, com Fiorin (2006, p.165 e p.181), a viabilidade de identificar dialogismo com

    interdiscurso.

  • 58 Bakhtiniana, So Paulo, 7 (1): 46-67, Jan./Jun. 2012.

    indistintamente. Uma leitura mais atenta foi mostrando que no se tratava apenas de

    uma indistino entre o geral e o particular, mas da manifestao de uma classificao

    diferente. No somente h o equvoco de que o enunciado seja um gnero, mas

    tambm haveria enunciados que so gneros e outros que no so. Os primeiros seriam

    aqueles que pertencem comunicao real, os enunciados autnticos. Os outros

    seriam os que trazem consigo a artificialidade de um texto criado para a aula ou de

    supostas concepes sobre a lngua como uma gramtica, recorrncia qual nos

    referiremos na seo seguinte.

    verdade que esse extremo se manifestou em poucos casos, mas precisamente

    por ser um extremo, deixa ver atrs de si uma tendncia da qual ele uma das

    continuidades esperveis. Com efeito, o tipo de abordagem do enunciado, para a anlise

    e/ou para o ensino, que a amostra insinua como bastante difundida no est muito longe

    dessa descaracterizao conceitual. Levar um enunciado para o ensino ou inclu-lo em

    um levantamento para o planejamento didtico, de modo que toda a prtica com ele se

    reduza a comentar os fatos e realidades que ele registra ou poderia registrar,

    obliterar, dentre outras coisas, aquilo que o relaciona a um gnero, precisamente

    desgeneriz-lo, por mais que lhe seja atribuda autenticidade. Para perceber o

    enunciado na sua dimenso genrica, que constitui sua insero na realidade,

    imprescindvel analis-lo, como explica BAJTN (2008, p.280) no seu nexo com

    outros enunciados relacionados a ele. E oportuna, para nossa passagem para o item

    seguinte, a observao que o pensador russo faz em um parntese que segue

    imediatamente essa afirmao (p.280): costume analisar esses nexos unicamente no

    plano temtico e no no discursivo, isto , composicional e estilstico11.

    6 Fugas da materialidade

    Nos referenciais tericos de praticamente todos os trabalhos analisados se

    mencionam fatores composicionais e de estilo como elementos para caracterizao de

    gneros, sempre a partir da bibliografia citada ou referida. Mas dos 10 trabalhos

    informados no item anterior, que apresentam enunciados especficos como objeto de

    estudos, apenas em 3 h uma efetiva abordagem analtica de aspectos que podem

    11

    Traduo nossa.

  • Bakhtiniana, So Paulo, 7 (1): 46-67, Jan./Jun. 2012.

    59

    relacionar-se a essas duas dimenses, em dois casos aplicando com bastante

    originalidade alguns modelos descritivos. Um deles precisamente aquele que no trata

    de ensino.

    Dos outros 7, h 2 em que so comentadas caractersticas estilsticas do gnero

    escolhido, adequadamente relacionadas ao lugar social do destinatrio que o gnero

    prefigura. Mas elas se reduzem observao dos pronomes de tratamento, restringindo

    a dimenso estilstica a um paradigma binrio (formal / informal).

    Nos outros 5, nada se registra a respeito, nem sobre qualquer aspecto

    composicional. E de fato, a dimenso composicional no abordada em nenhum dos

    10, a partir de nenhum modelo, apesar de que no faltam, entre os referentes terico-

    metodolgicos mencionados pelos autores, propostas e taxonomias, por sinal, aplicadas

    em muitos trabalhos produzidos no Brasil, inclusive nas reas de lnguas estrangeiras e

    tambm do espanhol. Concordamos com Brait (2006, p.9) em que no se postulou, a

    partir do Crculo de Bakhtin, um conjunto de preceitos sistematicamente organizados

    para funcionar como perspectiva terico-analtica fechada, mas chama nossa ateno

    que no acervo genebrino e nos referentes prximos dele reconhecidos pelos autores

    dos trabalhos que analisamos h, sim, modelos que, embora no sendo completamente

    fechados, mostram sistematicidade, como o folhado textual (BRONCKART, 2007,

    p.119-135), reconhecvel em vrias produes divulgadas no nosso meio, ou as

    configuraes especficas de unidades de linguagem (SCHNEUWLY e DOLZ, 1999,

    p.11-12).

    Cremos que a anlise dos aspectos que em Bakhtin so denominados como

    composicionais requer debruar-se sobre a materialidade verbal com um instrumental

    descritivo, que necessariamente recair sobre unidades de diversa abrangncia, bem

    como sobre vnculos semnticos e/ou sintticos entre elas, havendo necessidade de

    recurso a metalinguagens que denominem essas unidades e esses vnculos. Por isso

    pensamos que este o momento de nos referirmos a outra das recorrncias que

    antecipamos no ponto 3 e que percorre os trabalhos analisados. Cabe destacar que, alm

    de constatar sua apario na nossa amostra, ressoa para ns como algo copiosamente

    ouvido e/ou lido no nosso contato com apresentaes em fruns da nossa rea como um

    todo, para o estudo de qualquer lngua, inclusive a nacional.

  • 60 Bakhtiniana, So Paulo, 7 (1): 46-67, Jan./Jun. 2012.

    Trata-se de um modo de inserir, no enunciado, denominaes referidas

    descrio metalingustica, sobretudo a gramtica, mas no apenas ela. um modo de

    enunciar caracterizado pelo contraste, que assume as seguintes formas:

    - Negao de uma exclusividade: No apenas X / algo mais do que X

    - Exclusiva, opositiva ou adversativa. Y e no X / No X mas Y

    - Adversativa inclusiva: No apenas X mas Y,

    O que representamos com X varia, sendo a gramtica, as regras

    gramaticais, os tipos textuais, os marcadores argumentativos, o cdigo, enfim,

    com denominaes mais os menos felizes, tudo que requer uma metalinguagem;

    inclusive em um caso aparece esse prprio termo. No lugar de Y est o sentido, o

    real, as prticas ou, simplesmente, muito mais. Alguns exemplos que podemos dar

    e que espelham essa recorrncia so No apenas uma gramtica, No regras

    gramaticais, mas uma prtica social, No apenas tipos textuais ou marcadores

    argumentativos, mas o sentido produzido em contextos reais12.

    Esse tipo de formulao aparece praticamente na amostra toda, somente dois

    casos no a apresentam. Cremos que pertinente nos perguntarmos pelo seu

    funcionamento argumentativo no espao de interlocuo em que se produz. Contra que

    e contra quem se argumenta? Trata-se de comunicaes em congressos, quer dizer, o

    campo cientfico, ou uma interseo dele com os setores de maior capital simblico no

    campo educacional. Faz quase 40 anos que no tm expresso, nessa interseo,

    concepes sobre as lnguas ou sobre seu ensino que pudssemos reputar como restritas

    a regras, indiferentes ao contexto, que pensem a lngua como frases isoladas ou

    estoques de palavras. H dcadas que o hegemnico entre ns , precisamente, a

    preocupao com a produo de sentido e a procura de respostas sobre a linguagem

    entre as prticas sociais. Qual a necessidade, ento, dessa repetio quase ritual? Na

    medida em que, nas prticas de pesquisa e produo de conhecimento que efetivamente

    se assumem nessas produes, no se visualizam outras abordagens para a descrio e

    classificao dos fatos de linguagem, no evidenciariam essas reiteraes, no seu

    excesso, a grande dificuldade que ainda se encontra para que o ensino de lnguas possa

    ser alguma outra coisa diferente dessa formalizao repetitiva? E a fuga da

    12

    No se trata de citaes, mas de exemplos dados por ns para ilustrar, embora guardem

    correspondncia com o que observamos nas produes lidas.

  • Bakhtiniana, So Paulo, 7 (1): 46-67, Jan./Jun. 2012.

    61

    materialidade em direo a um social que no se indaga precisamente nos enunciados

    com os quais se trabalha, no ter a ver com essa carncia?

    Na sua recente interveno em uma mesa redonda, discutindo o lugar dos

    estudos lingusticos na formao de professores, Gonzalz (2011, p.10-11) se referia a

    esse paradoxo:

    A falta desse aparelho descritivo faz tambm, do meu ponto de vista,

    que a gramtica seja reduzida ao que ela pode ter de pior, e que, para

    sua abordagem, se lance mo de simplificaes, de regras sem sentido,

    arbitrrias, de explicaes j superadas pelo grande volume de

    pesquisas mais slidas, regras e simplificaes que, por sua vez, so

    aplicadas em atividades sem sentido, que no fazem mais do que

    (re)alimentar a rejeio pela gramtica. Uma rejeio em muitos casos

    infelizmente reiterada inclusive por alguns formadores de professores.

    Em sntese, muitas vezes vemos negado, no ensino de lnguas, o

    estudo de sua gramtica, ou pelo menos relativizada sua importncia,

    mas sempre se acaba, em algum momento, tendo que abord-la e, na

    falta de um aparelho descritivo adequado, isso feito da maneira mais

    redutora, quando no superada e equivocada. E feito sem estabelecer

    as relaes necessrias entre essa materialidade e o sentido.

    E tambm na nossa amostra h lugares onde se percebe que, apesar do que se

    proclama, a relao efetiva com os fatos de linguagem, quando abordada, continua

    realizando-se de modo descontextualizado e sem tentar vinculao entre os nveis do

    funcionamento lingustico e discursivo. Em uma das comunicaes analisadas, que tenta

    explicar a produtividade didtica de um gnero que em momento nenhum

    caracterizado a partir de qualquer critrio discursivo, as nicas prticas didticas

    propostas com trs textos representativos dele so completar lacunas em branco para as

    ocorrncias de uma determinada classe de palavra ou forma verbal (uma diferente para

    cada texto). Logo depois localizado o tema do texto como transversal, o texto

    abandonado e indicada aos alunos uma procura na web sobre os fatos.

    No vemos, ento, infelizmente algo mais do que uma gramtica. O que h

    um distanciamento crescente da materialidade lingustica e das regularidades em todos

    os planos do seu funcionamento, tanto a sintaxe quanto a produo de referncia, bem

    como a trama textual, a configurao enunciativa e o dialogismo.

  • 62 Bakhtiniana, So Paulo, 7 (1): 46-67, Jan./Jun. 2012.

    7 Alteridade entre lnguas e indagao em gneros

    Como informamos na terceira seo do artigo, 13 dos 14 textos analisados

    tratam, de diferentes maneiras, do ensino, dando conta de levantamentos e classificaes

    de gneros para algum planejamento, ou avaliando resultados do trabalho em torno de

    algum gnero discursivo no cenrio de ensino. Em 9 deles, o fato de tratar-se de uma

    lngua outra somente se percebe a partir dos textos trazidos como objeto, mas no faz

    parte, de maneira nenhuma, da reflexo em torno da categoria de gnero discursivo ou

    textual e sua insero no trabalho do pesquisador ou do docente, como se ela no

    ganhasse alguma especificidade ou complexidade quando se trata de uma ocasio de

    contato lingustico-cultural, como sem dvida o ensino de uma lngua estrangeira. E

    em alguns dos casos em que se aborda, ela reduzida problemtica de tal gnero

    existir ou no na outra lngua/cultura.

    Cremos que realmente uma grande perda que pouco se indague a respeito da

    problemtica dos gneros do discurso em alteridades lingustico-culturais, sobretudo e

    precisamente em relao a gneros que efetivamente existem em diversas lnguas. No

    apenas porque diferentes vertentes dos estudos discursivos dispem de ferramentas

    tericas que permitiriam iniciar uma reflexo a respeito, mas porque tambm h, na

    reflexo bakhtiniana sobre expressividade, algumas pistas instigantes para abordar a

    complexa questo dos gneros atravs de lnguas diversas.

    O lampejo do expressivo (BAJTN, 2008, p.273) no existe nem nas palavras

    da lngua nem na realidade, gerado pelo contato entre ambas, contato que acontece no

    enunciado. Alm da expressividade individual h, para o autor russo, uma

    expressividade prpria de cada gnero, e nele a palavra ganha uma expressividade

    tpica (2008, p.274). Porm, ela no pertence palavra como item da lngua, mas ao

    gnero, como uma espcie de eco de uma totalidade do gnero que ressoa na palavra

    (p.275). A vinculao com a problemtica da memria resulta evidente, e a partir dela

    que teceremos algumas consideraes.

    Cremos que esse processo funciona de um modo necessariamente diferente na

    percepo de um falante para o qual essa lngua segunda. O eco pode ser ouvido de

    modos inesperados ou dispersar-se e, juntamente, a palavra, de algum modo,

    redireciona-se para a lngua, porque devido ao estranhamento, para o estrangeiro se

  • Bakhtiniana, So Paulo, 7 (1): 46-67, Jan./Jun. 2012.

    63

    atualiza de modo premente a vinculao da palavra com o corpo da lngua outra. No

    cremos, porm, que a expressividade tpica se anule; e menos ainda na atualidade do

    portugus e do espanhol nesta regio do mundo, contato que enseja reverberaes para

    seus ecos particularmente instigantes.

    Essas duas lnguas, na Amrica do Sul, protagonizam um tipo de proximidade

    particularmente interessante para o estudo do funcionamento discursivo, e no apenas

    pelo parentesco e pela irregular diferenciao na sua delimitao histrica como

    unidades glotopolticas. Mais relevantes ainda nos parecem os efeitos de uma

    historicidade que tem em comum processos de colonizao, embora desigualmente

    realizados, a insero em formaes sociais com desigualdades anlogas e em uma

    regio que, antes mesmo do que hoje se denominam processos de integrao, viveu

    como conjunto seu posicionamento relativo na economia e na poltica mundial.

    Isso explica que pesquisas divulgadas no nosso meio considerem a memria

    discursiva como um espao privilegiado para indagar sobre as atuais relaes entre

    essas lnguas e os deslocamentos das subjetividades no seu entremeio, termo

    especialmente feliz que tomamos emprestado do ttulo de um artigo recente no qual se

    afirma que, em cada uma dessas lnguas, permanecem

    determinadas regularidades que, pelo trabalho de separao pelo qual

    passaram, produzem ressonncias: lembrando, rememorando,

    indicando, evocando, insinuando ou simplesmente aludindo a formas

    de dizer do funcionamento da outra (CELADA, 2010, p.117-118).

    Em indagao nossa sobre essa problemtica (Fanjul, 2009, p.199), a partir do

    conceito de espao de memria formulado por Pcheux (1990), propusemos, para dar

    conta de relaes entre o portugus e o espanhol no plano discursivo, a possibilidade de

    espaos de memria compartilhados entre sequncias discursivas em ambas as lnguas

    e de um funcionamento parafrstico entre elas, favorecido pela discursividade e

    eventualmente opacificado pela diferena entre formas das lnguas.

    Pensando essa expressividade tpica como uma memria do gnero na

    materialidade da lngua, cremos que particularmente produtivo observar

    sistematicamente essas aproximaes e distanciamentos entre o portugus e o espanhol

    tanto em gneros discursivos que se manifestam em espaos de abrangncia mundial

    quanto naqueles que se delimitam como tais no espao de uma das lnguas, mas que

  • 64 Bakhtiniana, So Paulo, 7 (1): 46-67, Jan./Jun. 2012.

    permitem indagar sobre ecos de sua expressividade no espao da outra. E, claro, isso

    requer uma disposio para interrogar e descrever a materialidade.

    Concluindo. Quais perfis e qual formao favorecer?

    Tentamos fundamentar a preocupao que expressamos no incio do artigo em

    relao ao que percebemos como uma crescente desateno para o estudo do

    funcionamento lingustico, textual e discursivo, que constitui nossa especificidade como

    pesquisadores e formadores para a educao lingustica. E no apenas na amostra

    analisada, mas tambm em um discurso que circula insistentemente nos mesmos

    espaos, os objetivos desse aspecto da educao so relacionados necessidade de

    contribuir para desenvolver um senso de cidadania.

    Mas, favorece o senso de cidadania afastar-se das metalinguagens? Estudiosos

    do papel das metalinguagens no desenvolvimento da cultura e das relaes de poder

    esto muito longe de v-las como um luxo dispensvel ou incuo. Auroux (2002, p.9)

    nos lembra que a gramatizao mudou profundamente a ecologia da comunicao

    humana e deu ao Ocidente um meio de conhecimento / dominao sobre as outras

    culturas do planeta. Cremos que uma grande contribuio nossa, como pesquisadores,

    para o papel formador do trabalho sobre linguagens na educao pode ser o de

    promover o conhecimento crtico acerca das metalinguagens em uma perspectiva

    transformadora, o que nunca conseguiremos fugindo delas.

    E o que estamos vendo que no apenas da gramtica que se foge, mas de

    tudo que signifique descrever algum tipo de regularidade na superfcie discursiva ou nas

    suas relaes interdiscursivas. O propsito pareceria ser sair o mais rpido possvel do

    funcionamento das linguagens e passar para uma perspectiva avaliativa dos temas e

    fatos. Esse rumo nos traz lembrana a crtica de Bakhtin, que referimos no final do

    item 5, sobre o costume de analisar as relaes entre enunciados somente no plano

    temtico e no no discursivo.

    No parece promissor formar um professor comentador de assuntos e fatos

    sem uma disciplina de estudo com a qual abord-los. Menos ainda embasar esse perfil

    mediante pesquisas que construam instrumentos e prticas que o afastam da

    materialidade dos processos de significao, ao ponto de que, quando deve ou quer dar

  • Bakhtiniana, So Paulo, 7 (1): 46-67, Jan./Jun. 2012.

    65

    conta do funcionamento lingustico, somente lhe resultem compreensveis as verses

    mais vulgarizadas da gramtica normativa tradicional. Privaramos, ainda, o aluno do

    desafio intelectual e por que no, poltico - de ler e de enunciar, nas materialidades

    verbais, o dito / no dito que sustenta aspectos cruciais das relaes humanas. Se esse

    desafio no lhe dado no mbito de trabalho com as linguagens, dificilmente haver

    outro espao da sua educao onde ele acontea.

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    Recebido em 14/03/2012

    Aprovado em 07/05/2012